Revista SER

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Revista SER

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  • SER SocialBraslia, v. 16, n. 35, julho a dezembro de 2014

    Revista do Programa de Ps-Graduao em Poltica SocialDepartamento de Servio SocialUniversidade de Braslia

  • SER SocialBraslia, v. 16, n. 35, julho a dezembro de 2014

    Revista do Programa de Ps-Graduao em Poltica SocialDepartamento de Servio SocialUniversidade de Braslia

    ISSN 2178-8987 (verso eletrnica)

    SER Social Braslia v. 16 n. 35 p. 241-484 jul.-dez./2014

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    SER Social: Revista do Programa de Ps-Graduao em Politica Social / Universidade de Braslia. Departamento de Servio Social. SER Social. V. 16, n. 35, 2. sem./2014.

    V. 1, n. 2 1. sem./1998. Braslia: SER Social UnB, 1998. Semestral. Continuao de: Debate Social, v. 1, n. 1, 1995 Interrompida de 1996 a 1997. ISSN 2178-8987 (verso eletrnica) 1. Servio Social. I. Universidade de Braslia, Departamento de Servio Social.

    CDU: 3(05)

    Todos os direitos editoriais so reservados para a revista SER Social. Nenhuma parte da revista pode ser reproduzida, estocada ou transmitida por quaisquer meios e formas existentes ou a serem criados sem prvia permisso por escrito da Comisso Editorial, ou sem constar os crditos de referncia, de acordo com as leis de direitos autorais vigentes no Brasil.

    As opinies e os conceitos emitidos nos trabalhos, bem como a exatido, adequao e procedncia das citaes e referncias, so de exclusiva responsabilidade do(s) autor(es), no refletindo necessariamente a posio da Comisso Editorial.

    SER Social Peridico Semestral do Programa de Ps-Graduao em Poltica Social, Departamento de Servio Social Instituto de Cincias Humanas Universidade de Braslia

    Editor Chefe Evilasio da Silva Salvador

    Comisso Editorial Reginaldo GuiraldelliSandra Oliveira TeixeiraSilvia Cristina Yannoulas

    Conselho EditorialAna Eizabete Mota (UFPe/Recife-Brasil); Denise Bomtempo Birche de Carvalho (UnB/Braslia-Brasil); Elaine Rosseti Behring (UERJ/Rio de Janeiro-Brasil); Fernanda Rodrigues (UCP/Porto-Portugal); Franois Houtart (Univ. Catlica de Louvain/Louvain-Blgica); Graciela di Marco (Unsam/Buenos Aires-Argentina); Ivanete Boschetti (UnB-Braslia/Brasil); Ivete Simionato (UFSC/Santa Catarina-Brasil); Jorge Luis Acanda (Univ. de La Habana/Havana-Cuba); Jos Geraldo de Sousa Jnior (UnB/Braslia-Brasil); Luis Moreno (CSIC/Madri-Espanha), Maria Carmelita Yazbeck (PUC/So Paulo-Brasil); Peter Abrahamson (Seoul National University/Seoul-South Korea); Vicente Faleiros (UnB/Braslia-Brasil); Yolanda Guerra (UFRJ/Rio de Janeiro-Brasil).

    Equipe de Apoio Kssya Siqueira Silva

    Reviso Em portugus: Tereza Vitale Em ingls: Fernando Luis Demtrio PereiraProduo finalEditorial Abar

    Figura da capa Candido Portinari, Greve, 1950, pintura a leo, 55 X 46cm. Agradecimentos ao professor Joo Cndido, fundador e diretor-geral do Projeto Portinari.

    Copyright by Ser Social (verso eletrnica)

  • SUMRIO / CONTENTS

    Editorial / Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 248

    Debate / DiscussionFragmentao da luta poltica e agenda de desenvolvimento / Fragmentation of the political struggle and the developmentagenda. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253Eduardo Fagnani

    Debatedores(as) / DebatersEstado, transformismo e supremacia rentista no capitalismo dependente brasileiro contemporneo / State, transformism and rentier supremacy in the Brazilian contemporary dependent capitalism . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 296Rodrigo Castelo

    Reforma poltica, neodesenvolvimentismo e classes sociais / Fragmentation of the political struggle and the development agenda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 303Tatiana Berringer

    Artigos Temticos / Thematic ArticlesPobreza e cidadania em tempos de neodesenvolvimentismo no Brasil / Poverty and Citizenship in times of neo-developmentalism in Brazil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 308Salviana de Maria Pastor Santos SousaMaria Eunice Ferreira Damasceno Pereira

    Financeirizao do capital e questo social no contexto do novo-desenvolvimentismo / Financialization of capital and social question in the context of the neo-developmentalism . . . . . . . . . . . 327Mably Jane Trindade Tenenblat

  • Neodesenvolvimentismo: uma velha roupa colorida? Uma an-lise crtica das polticas sociais para as cidades / Neo-developmenta-lism? an old coloured clouthing? A critical analysis of social policies for cities . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 354Andra Lima da Silva Bruna Massud de Lima Luciana do Nascimento Simio

    A poltica de assistncia social brasileira e o neodesenvolvimen-tismo: notas ao debate / The politics of social assistance brazilianand neo-developmentism: notes to the debate . . . . . . . . . . . . . . . 377Mossicleia Mendes da Silva

    Artigos de Temas Livres / Free Thematic ArticlesO Servio Social na Poltica Nacional de Recursos Hdricos: demandas e desafios de atuao na perspectiva do usurio / Social Work in the National Water Resources Policy: demands and acting challenges in the users perspective . . . . . . . . . . . . . . . . 401Desiree Cipriano Rabelo Sheila Perim Albuquerque LopesTasa da Rosa Barros Proza

    O processo de trabalho em empreendimentos vinculados ao Programa de Economia Solidria / The process of work in enterprises related to the solidarity economy program . . . . . . . . 421Caroline Goerck Fabio Jardel Gaviraghi

    Parcelamento fundirio da cidade de Ponta de Pedras, PA: uma abordagem metodolgica / Study of urban land division ofthe city Ponta de Pedras, Par state: a methodological approach . . . 439Jssica Andretta MendesSandra Maria Fonseca da Costa

  • Resenha / ReviewTrabalho e neodesenvolvimentismo choque de capitalismo e nova degradao do trabalho no Brasil, de Giovanni Alves . . . 454Carla Beatriz de Paulo

    Resumos de Teses e Dissertaes / Tesis and Dissertation AbstractA crtica Assistencializao da Seguridade Social, segundo Mota: uma contribuio pela via da singularidade do Distrito Federal no contexto da aplicao da Poltica de Assistncia Social / The criticism of Assistencializao the Brazilian Social Security, according Mota: a contribution via the uniqueness of the FederalDistrict in the implementation of the Social Assistance Policy . . . . 460Jamaira Lanna e Silva Anchita

    Avanos e retrocessos do direito sade no Brasil: uma esperana equilibrista / Advances and retreats of the right to health in Brazil:a tightrope walker hopes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 462Jarbas Ricardo Almeida Cunha

    Transferncias de renda e polticas ativas para o mercado de trabalho: do merecimento por destituio a destituio de direitos / Transfers of income and active policies for the labourmarket: the worthiness for dismissal the dismissal of rights . . . . . . 464Tzya Coelho Sousa

    Oramento pblico e redistribuio com enfoque de gnero: uma anlise da experincia do Equador / Public budget and redistribution with a gender perspective: an analysis of theEcuadorian experience . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 466Sarah de Freitas Reis

  • O Ornitorrinco de Chuteiras: determinantes econmicos da poltica de esporte do governo Lula e suas implicaes sociais / The Platypus of Shoes: economic determinants of sports policy of theLula government and its social implications . . . . . . . . . . . . . . . . . 468Pedro Fernando Avalone Athayde

    Orientao gentica e anemia falciforme: o papel do profissional de sade na educao em sade e preservao de direitos / Genetic guidance and sickle cell anemia: the role of health professionals inhealth education and preservation of rights . . . . . . . . . . . . . . . . . 470Ana Carolina de Oliveira Pinho

    Conquistas e limites no acesso das mulheres previdncia social aps a Constituio Federal de 1988: anlise da proteo social para donas de casa de baixa renda / Progress and limits of womens access to social security after the 1988 Federal Constitution: analysisof low-income housewives social benefits . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 473Talita Teobaldo Cintra Cordeiro

    Normas Editoriais / Editorial Norms . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 477Consultores ad hoc de SER Social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 484

  • SER Social, Braslia, v. 16, n. 35, p. 249-252, jul.-dez./2014

    O segundo semestre de 2014 marcado, entre outros fatos rele-vantes no Brasil, pelo processo eleitoral que culminou, aps uma acirrada disputa, com a reeleio da presidenta Dilma Rousseff, indicando assim um ciclo de 16 anos no poder da coalizao poltica liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Para muitos analistas, o perodo em curso marcado pela ascenso do novo-desenvolvimentismo como principal estratgia para o enfrentamento da crise que atinge a economia brasileira. Contudo, o que se assistiu ao apagar das luzes de 2014 foi a nomeao de uma nova equipe econmica para promover um ajuste fiscal aos moldes neoliberais e a edio de duas medidas provisrias que restringem e cortam direitos dos/as trabalhadores/as, como: seguro-desemprego, penses, auxlio-acidente, abono salarial, entre outros.

    Nesta edio da revista SER Social (v. 16, n. 35), do Programa de Ps-Graduao em Poltica Social da Universidade de Braslia (UnB), cujo tema central Poltica Social e o Desenvolvimentismo, so apre-sentados artigos de pesquisadores, profissionais e estudantes, que anali-sam os padres, avanos, retrocessos, caractersticas, perspectivas e limi-tes colocados para a poltica social brasileira com o chamado novo-desenvolvimentismo.

    Para tanto, a seo Debates da SER Social traz o artigo Frag-mentao da luta poltica e agenda de desenvolvimento, do prof. Eduardo Fagnani. O texto parte da constatao de que o papel da democracia foi mitigado sob a hegemonia do capital financeiro e do pensamento neoliberal. Para o autor, nas ltimas dcadas, o campo progressista deixou de tratar dos grandes temas nacionais relacionados ao enfrentamento do subdesenvolvimento poltico, econmico e social do pas com a fragmentao da luta poltica em torno de pautas seto-riais especficas prevalecendo ante o debate de temas estruturais. Para Fagnani, o desafio do campo progressista ampliar os dilogos na pers-

    EDITORIAL

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    SER Social, Braslia, v. 16, n. 35, p. 249-252, jul.-dez./2014

    Editorial

    pectiva de construir consensos para a formulao de um projeto nacio-nal de combate s diversas faces das desigualdades sociais, o que demanda a construo de um campo de alianas e debates pblicos cada vez mais ampliados. Para tanto, o autor sugere pontos de uma agenda sobre a dimenso social do desenvolvimento.

    Debatendo com o artigo de Fagnani, Rodrigo Castelo, em seu texto Estado, transformismo e supremacia rentista no capitalismo dependente brasileiro contemporneo, destaca que a unidade entre as foras de esquerda no Brasil uma tarefa urgente, no somente para combater o avano da direita e seus extremistas, mas para colocar em tela o projeto autnomo dos interesses histricos da classe trabalha-dora. Com isso, para Castelo preciso se ter clareza de quais foras sociais podero compor uma nova unidade dos trabalhadores urbanos e rurais, necessria para os enfrentamentos em um cenrio poltico cada vez mais polarizado.

    Esta seo Debate tambm conta com o artigo Reforma pol-tica, neodesenvolvimentismo e classes sociais, de Tatiana Berringer. O texto expe divergncias com as caracterizaes de novo-desenvolvi-mentismo e social-desenvolvimentismo, para ento destacar que a bandeira de luta da reforma poltica deve estar conectada a um processo poltico mais amplo que a estratgia da social-democracia.

    A seo Artigos Temticos sobre Poltica Social e Desenvolvi-mentismo conta com quatro artigos. Pobreza e cidadania em tempos de neodesenvolvimentismo no Brasil, de Salviana Sousa e Maria Pereira, apresenta uma reflexo a partir do Fundo de Combate e Erra-dicao da Pobreza, que articula a pobreza e cidadania e a pobreza e neodesenvolvimentismo como modelos polticos adotados pelos gover-nos brasileiros nas duas ltimas dcadas. J o texto de Mably Tenenblat, Financeirizao do capital e questo social no contexto do novo--desenvolvimentismo, problematiza o fenmeno da mundializao financeira e o recrudescimento da questo social brasileira na cena contempornea, tendo como pano de fundo o chamado novo desen-

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    SER Social, Braslia, v. 16, n. 35, p. 249-252, jul.-dez./2014

    volvimentismo. Andra Silva, Bruna de Lima e Luciana Simio com Neodesenvolvimenstismo: uma velha roupa colorida? Uma anlise crtica das polticas sociais para as cidades destacam que associado ao modelo neoliberal, a perspectiva do desenvolvimento no campo das polticas sociais resgatada, sob nova roupagem, denominada neode-senvolvimentismo. O artigo das autoras identifica um quadro de desmonte de direitos historicamente conquistados, sinalizando a neces-sidade de uma articulao de foras para a construo de uma alterna-tiva anticapitalista. No fechamento da seo, A poltica de assistncia social brasileira e o neodesenvolvimentismo: notas ao debate, de Mossicleia Silva, discute a atual configurao poltica de assistncia social, partindo do pressuposto de que existe um processo de tensiona-mento desta poltica, que se expressa nas importantes diferenas em termos de recursos investidos na implementao do Sistema nico de Assistncia Social, incapaz de financiar a consolidao de uma rede de servios socioassistenciais pblica e de qualidade, e os largos investi-mentos em Programas de Transferncia de Renda.

    A SER Social publica, tambm nesta edio, em Temas Livres, trs artigos. O primeiro O Servio Social na Poltica Nacional de Recursos Hdricos: demandas e desafios de atuao na perspectiva do usurio, de Desiree Rabelo, Sheila Lopes e Tasa Proza, trata de um assunto relevante na atual conjuntura, chamando a ateno para a defesa do direito agua, como campo de ateno e atuao do Servio Social. O outro artigo intitulado O processo de trabalho em empre-endimentos vinculados ao programa de economia solidria, de autoria de Caroline Goerck e Fabio Gaviraghi, e analisa as cooperativas e asso-ciaes de trabalho que foram criadas no Brasil, nas ltimas dcadas do sculo XX, como uma das formas de gerar trabalho e renda aos sujeitos que se encontram excludos do mercado formal de trabalho. Fechando a seo temos Parcelamento fundirio da cidade de Ponta de Pedras (PA): uma abordagem metodolgica, de Jssica Mendes e Sandra Costa. As autoras apresentam uma proposta metodolgica para analisar o processo de parcelamento da terra urbana naquele municpio.

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    SER Social, Braslia, v. 16, n. 35, p. 249-252, jul.-dez./2014

    Editorial

    Alm destes artigos, esta edio, apresenta uma resenha feita por Carla de Paulo sobre o livro Trabalho e neodesenvolvimentismo, de Giovanni Alves.

    Com esta publicao esperamos contribuir com as anlises e reflexes com o debate em curso sobre o desenvolvimentismo e as pol-ticas sociais brasileiras perante a crise que atinge o capitalismo contemporneo.

    Boa leitura!

    Comisso Editorial SER Social

  • Debate / Discussion

    Fragmentao da luta poltica e agenda de desenvolvimento1 / Fragmentation of the political struggle and the development agenda

    Eduardo Fagnani2

    Resumo: O papel da democracia na representao dos interesses gerais da sociedade foi mitigado, nas ltimas quatro dcadas, da concorrncia capitalista sob a hegemonia do capital financeiro e do pensamento neoliberal. O papel que se espera dos partidos polticos progressistas, como instituies articuladoras das demandas da sociedade numa pers-pectiva de transformao, foi esvaziado. O ataque ao poder dos sindi-catos, protagonista das transformaes sociais no capitalismo, tambm foi um dos focos da investida neoliberal. Em funo desses fatos, nas ltimas dcadas, o campo progressista deixou de tratar dos grandes temas nacionais relacionados ao enfrentamento do subdesenvolvi-mento poltico, econmico e social do pas. A fragmentao da luta poltica em torno de pautas setoriais especficas tem prevalecido ante o debate de temas estruturais. Com raras excees, perdeu-se a perspec-tiva de que o encaminhamento de muitas dessas pautas segmentadas depende de superarem-se constrangimentos estruturais polticos e econmicos pensados na tica de um novo projeto de transformao.

    1 Texto elaborado como contribuio para o debate promovido pelo Movimento da Reforma Sanitria Brasileira, integrado por vrias entidades que historicamente atuam em defesa da sade coletiva no Brasil. O autor agradece as crticas e sugestes de Eli Iola Gurgel Andrade, Fernando Nogueira Costa, Joaquim Soriano, Jorge Mattoso, Lena Lavinas, Luis Eugenio Portela Fernandes de Souza, Marcio Pochmann, Nelson Rodrigues dos Santos, Silvio Caccia Bava, Tatiana Santos, Wilson Cano e Wladimir Pomar, feitas verso preliminar deste ensaio.

    2 Economista, professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit) e coordenador da rede Plataforma Poltica Social Agenda para o Desenvolvimento .

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    SER Social, Braslia, v. 16, n. 35, p. 253-295, jul.-dez./2014

    Eduardo Fagnani

    Em ltima instncia, os protestos populares de junho de 2013 repuse-ram o conflito redistributivo no centro do debate nacional. As respos-tas no podem ser minimalistas, mas pensadas na perspectiva de um projeto de transformao. O desafio do campo progressista ampliar os dilogos na perspectiva de construir consensos para a formulao de um projeto nacional nucleado no combate s diversas faces das desi-gualdades sociais, o que demanda a construo de um campo de alian-as e debates pblicos cada vez mais ampliados. Este ensaio sugere pontos de uma agenda sobre a dimenso social do desenvolvimento. Essa via poder abrir pistas para que a luta poltica se liberte dos labi-rintos em que est enredada.

    Palavras-chave: desenvolvimento; distribuio da renda; desigualda-des sociais; Estado de Bem-Estar Social.

    Abstract: The role of democracy in the representation of the general interests of society was mitigated, in the last four decades, from the capitalist concurrence under the hegemony of the financial capital and the neoliberal thought. The role expected by the progressive political parties, as articulator institutes of the demands of society in a perspec-tive of transformation, was dumped. The attack on the power of trade unions, protagonists of the social transformations in capitalism, was also one of the neoliberal assault outbreaks. Due to these facts, in the last decades, the progressive field stopped working on major national issues to face the political, economic and social underdevelopment of the country. The fragmentation of the political struggle on specific guidelines has prevailed compared to the debate on structural themes. With rare exceptions, there was a loss in the perspective that the addressing of many of these targeted guidelines depend on the political and economic structural constraints overtake conceived from the viewpoint of a new project of transformation. Ultimately, the popular protests of June 2013 replaced the redistributive conflict in the center of national debate. The answers cannot be minimalistic, but they need to be thought in the perspective of a transformation project. The chal-lenge of the progressive field is to expand the dialogue in the perspec-tive to build consensus for the formulation of a nucleated national project to combat the numerous aspects of social inequalities, which

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    Fragmentao da luta poltica e agenda de desenvolvimento

    requires the construction of an alliance field and public debates increa-singly enlarged. This essay suggests points of an agenda on the social dimension of development. This path may open tracks for the political struggle to be released from the mazes in which it is entangled.

    Keywords: development; income distribution; social inequalities; Welfare State.

    Este artigo tem por objetivo ressaltar a importncia da construo coletiva de um projeto de transformao que deveria servir como referncia para a luta poltica no Brasil neste incio do sculo 21. Isso porque, nas ltimas dcadas, o campo progressista deixou de tratar dos grandes temas nacionais relacionados ao enfrentamento do subdesen-volvimento poltico, econmico e social do pas. A fragmentao da luta poltica em torno de pautas setoriais especficas tem prevalecido ante o debate de temas estruturais. Com raras excees, perdeu-se a perspectiva de que o encaminhamento de muitas dessas pautas segmen-tadas depende de superarem-se constrangimentos estruturais polticos e econmicos pensados na tica de um novo projeto de transformao.

    A segmentao de pautas tende a conduzir os diversos atores polticos para labirintos cujas portas de sada dificilmente sero encon-tradas. Partidos polticos, sindicatos, movimentos sociais e universida-des parecem viver enredados e prisioneiros de seus prprios labirintos (seo 1). Os protestos populares reabrem perspectivas promissoras para impulsionar a retomada do pensamento crtico sobre um projeto de transformao na perspectiva do desenvolvimento. O pano de fundo obscuro do mal-estar exposto pelas ruas parece guardar relaes com as mltiplas faces da crnica desigualdade social brasileira.

    Se essa hiptese estiver correta, em ltima instncia, os protestos repuseram o conflito redistributivo no centro do debate nacional. As respostas no podem ser minimalistas, mas pensadas na perspectiva de um projeto de transformao (seo 2).

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    SER Social, Braslia, v. 16, n. 35, p. 253-295, jul.-dez./2014

    Eduardo Fagnani

    O desafio do campo progressista ampliar os dilogos na pers-pectiva de construir consensos para a formulao de um projeto nacio-nal nucleado no combate s diversas faces das desigualdades sociais, o que demanda a construo de um campo de alianas e debates pblicos cada vez mais ampliados.

    A ltima parte desse ensaio sugere pontos de uma agenda sobre a dimenso social do desenvolvimento. Essa via poder abrir pistas para que a luta poltica se liberte dos labirintos em que est enredada (seo 3).

    Fragmentao da luta poltica

    O papel da democracia na representao dos interesses gerais da sociedade foi mitigado nas ltimas quatro dcadas da concor-rncia capitalista sob a hegemonia do capital financeiro e do pensa-mento neoliberal.

    Com a hegemonia dos mercados desregulados, a poltica deixou de tutelar a economia. A sociedade perdeu capacidade de conter o mpeto desagregador das foras de mercado. Existe clara assimetria na representao poltica, em favor dos interesses do poder econmico. A esfera pblica foi esvaziada ante os valores do individualismo e da meritocracia. Os Estados nacionais foram enfraquecidos e perderam a capacidade de coordenar projetos de transformao. Forjaram-se cultura e ideologia retrgradas em relao ao desenvolvimento.

    Para Hirsch (2013) o capitalismo transformado em sentido neoliberal minou as bases da democracia liberal representativa e ocorre ampla submisso da sociedade civil e do Estado economia. O objetivo exitoso da grande contraofensiva neoliberal era criar um sistema poltico-econmico livre de interferncias democrticas. Estabeleceu-se um sistema mundial de Constitucionalismo neolibe-ral que, na prtica, retirou de cada Estado a possibilidade da influn-cia poltica democrtica.

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    Fragmentao da luta poltica e agenda de desenvolvimento

    Nesse processo, o carter do sistema poltico tambm sofreu modificaes. O sistema fordista de partidos populares, que aglutina-vam amplos interesses sociais e procuravam influenciar os processos polticos decisrios, passou a ser coisa do passado, aponta Hirsch. Esse modelo foi substitudo pela ideia da individualizao, impulsio-nada pelos prprios partidos, pela qual o comportamento do mercado penetra em todas as reas da vida, desde a famlia at as escolas e as universidades. O indivduo como empresrio de si mesmo torna-se a figura central das relaes sociais, afirma o autor. O desgaste da demo-cracia parece ser generalizado em todo o mundo, desafiado pelo poder hegemnico dos interesses do grande capital financeiro.

    No caso brasileiro, tambm preciso levar em conta a secular capacidade das elites, para preservarem o status quo social, como ressal-tada por Celso Furtado (1979, p. 1-2). Para o autor, o Brasil um pas em que a misria de grande parte da populao no encontra outra explicao que a resistncia das classes dominantes a toda mudana capaz de pr em risco seus privilgios. No golpe de 1964, a classe diri-gente apelou s foras armadas, a fim de que essas desempenhassem agora o papel de gendarme do status quo social, cuja preservao passava a exigir a eliminao da democracia formal.

    Nos anos da dcada de 1980, a manuteno desses privilgios foi novamente ameaada pela fora do movimento social. Aps cambalea-rem num primeiro momento, as elites retomaram o flego, enterraram a emenda da eleio direta, voltaram ao governo com o novo pacto conser-vador de transio democrtica, manipularam para evitar a vitria de Lula em 1989 e, a partir do ano seguinte, reassumiram suas cadeiras cativas no centro do poder. Passado o susto, conservados os privilgios, acataram o projeto liberal imposto pelos mercados, abrindo mo de alter-nativas e de graus de manobras para a resistncia poltica e econmica.

    Essa trajetria emblemtica da fantstica capacidade de mime-tizao de comportamentos detida pela classe poltica para representar os interesses do poder hegemnico (econmico, poltico, miditico) em

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    SER Social, Braslia, v. 16, n. 35, p. 253-295, jul.-dez./2014

    Eduardo Fagnani

    cada conjuntura. Observe-se o paradoxo de polticos identificados com a ditadura coordenarem a transio democrtica; ou ainda, o fato de que partidos polticos identificados com as marchas populares dos anos 1970 e 1980, alguns anos depois coordenarem a implantao do anta-gnico projeto neoliberal.

    Esse quadro mais geral tem influenciado a ao dos movimentos sociais, partidos polticos e sindicatos do campo progressista. Os parti-dos esto desengonados, os movimentos sociais fracionados, os sindi-catos aqum do espao que lhes cabe, alerta a professora Maria da Conceio Tavares.3

    O papel que se espera dos partidos polticos progressistas, como instituies articuladoras das demandas da sociedade numa perspectiva de transformao, foi esvaziado, nas ltimas dcadas. Os partidos e o sistema poltico como um todo esto submetidos mercantilizao do voto, tornando-se dependentes das bancadas particularistas de toda espcie.

    A crise do sistema partidrio impe limites ao presidencialismo de coalizo. O imperativo da conciliao de interesses polticos antag-nicos limita a ao dos governos do Partido dos Trabalhadores na arti-culao das demandas da sociedade, identificadas com suas bandeiras histricas. Por sua vez, em geral, os partidos da esquerda radical descon-sideram a correlao de foras e adotam posturas paralisantes, na medida em que a utopia socialista posterga iniciativas de transformao social para o futuro ps-capitalista.

    O ataque ao poder dos sindicatos, protagonista das transfor-maes sociais no capitalismo, tambm foi um dos focos da investida neoliberal. A partir do final dos anos 60 comeou a haver certo inc-modo com o poder dos sindicatos e com a interferncia do Estado.

    3 Maria da Conceio Tavares. Resistir para avanar. O resto arrocho. Entrevista a Saul Leblon, Carta Maior, 11/06/2014. Disponvel em: .

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    Fragmentao da luta poltica e agenda de desenvolvimento

    A primeira coisa que Reagan e Thatcher fizeram, foi derrotar os sindicatos. Esse foi o fator decisivo para impulsionar o neolibera-lismo, aponta Belluzzo (2013b). De fato, o ataque aos direitos trabalhistas foi um dos ncleos da ofensiva dos mercados. Na base de tal redirecionamento estava a vontade de quebrar a espinha dorsal dos sindicatos e dos movimentos organizados da sociedade, afirma Draibe (1993, p. 92).

    No Brasil, nos anos da dcada de 1990 em decorrncia das privatizaes, da reestruturao produtiva e da estagnao econmica os sindicatos sofreram duros golpes e derrotas e foram forados a adotar pautas defensivas. A recente recuperao da atividade econmica e do mercado de trabalho mitigou esse quadro. No obstante, uma parte importante destes sindicatos foi capturada pela atuao do governo nos ltimos anos, o que limitou uma postura mais agressiva. Em parte por isso, alm das suas pautas corporativas, o movimento sindical tambm no recuperou sua capacidade de protagonizar os debates sobre os grandes temas nacionais e defender um projeto alter-nativo de sociedade.

    Apenas como ilustrao, observe-se que a correta pauta pelo fim do fator previdencirio mostra-se minimalista diante das amea-as consolidao da seguridade social recorrentes desde 1989. O debate sobre esse tema deveria ser pensado na perspectiva mais ampla de se pressionar para que a Constituio da Repblica seja cumprida nos dispositivos referentes organizao, financiamento e controle social. O momento requer que se questionem as desonera-es fiscais que esto corroendo as bases de financiamento da previ-dncia, sade, assistncia social e do Fundo de Amparo ao Trabalha-dor (FAT). hora de pressionar por mudanas na contabilizao inconstitucional praticada pelo Ministrio da Previdncia e Assistn-cia Social (MPAS) desde 1989, que no considera a previdncia como parte da seguridade social; e que no contabiliza as renncias fiscais como fonte de receitas da previdncia social.

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    SER Social, Braslia, v. 16, n. 35, p. 253-295, jul.-dez./2014

    Eduardo Fagnani

    Esse enredo que acomete os partidos polticos e os sindicatos inter-fere na ao do movimento social em seu conjunto. Como se sabe, da natureza destas mobilizaes setoriais tratar de temas tambm setoriais ou especficos. Mas na ausncia da ao mobilizadora dos partidos, observa-se a fragmentao das pautas de luta poltica em torno de questes muito especficas. Em geral, perdeu-se a perspectiva de que pouco poder ser feito em termos setoriais na ausncia de um projeto de transformao.

    Tomando-se novamente a seguridade social como exemplo, observe-se que, muitas vezes, os movimentos sociais ligados aos setores da sade, previdncia, assistncia social e seguro-desemprego partici-pam de disputas fratricidas na defesa de suas pautas, o que paradoxal luz do texto constitucional. Os movimentos sociais deveriam de forma unificada exigir o cumprimento da Constituio da Repblica. Como se sabe, os arts. 194 e 195 organizam esses setores e suas fontes de financiamento de forma integrada, alm de assegurar mecanismos de controle social (Conselho Nacional da Seguridade Social) que nunca foram implantados.

    A academia tambm no escapa desta lgica. Em relao ao passado, sobretudo nos anos de 1950 a 1970, so poucos os trabalhos que debatem as questes nacionais na perspectiva do desenvolvimento. A questo complexa e reflete, em alguma medida, os valores do indi-vidualismo, da meritocracia e da produtividade que foram enraizados no seio das universidades.

    Protestos populares, desigualdades e conflito redistributivo

    Aparentemente h dois vetores que explicam as motivaes dos protestos populares de 2013 amplificados pela violncia policial. O primeiro a crise da poltica e da democracia. Existe convergncia de opinies no sentido de que o sistema representativo monopolizado pelos partidos est envelhecido e burocratizado4 e os cidados no se

    4 Consultar Altman (2013), Belluzzo (2013a), Nassif (2013) e Werneck Vianna (2013).

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    sentem representados. A crise afeta todos os partidos polticos e o Poder Legislativo dos trs entes federativos.

    O segundo vetor a crise da cidadania social percebida pela mercantilizao e pelas lacunas das polticas sociais universais e urbanas que atinge feies crticas nas grandes metrpoles (MARICATO, 2013). Em alguma medida, a insatisfao popular est sinalizando que os avanos recm-conquistados na incluso de parcela significativa da populao ao mercado de consumo, apesar de positivos, no so sufi-cientes. Os protestos apontam que preciso ir alm e promover a inclu-so pela cidadania; pedem direitos e no mercadoria; exigem servios pblicos de qualidade e no servios regidos pelo lucro.

    Em ltima instncia, a mensagem queremos escolas, hospi-tais, postos de sade e servios pblicos com padro Fifa contesta os dogmas do Estado mnimo, enraizados no pas pela ofensiva neolibe-ral nos anos da dcada de 1990, que vendem a iluso de que bastam polticas focalizadas para alcanar-se o bem-estar. Ao mesmo tempo, elas reforam a viso de que o desenvolvimento requer os mesmos valores do Estado de Bem-Estar Social que foram formal-mente inscritos na Carta de 1988.

    A soberania popular parece querer acertar as contas com o passado. Um quarto de sculo depois, os cidados esto perguntando aos poderes Executivo e Legislativo dos trs entes federativos: quando vamos cumprir o que reza a Constituio da Repblica?

    As respostas das autoridades dos trs nveis de governo deram-se em torno de temas importantes, mas distantes da natureza estrutural dos problemas. No se pode resumir a questo da sade falta de mdi-cos, em uma conjuntura em que 45% dos brasileiros identificam a sade como o principal problema do pas.5 Da mesma forma, as ques-

    5 Pesquisa Datafolha. Disponvel em: .

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    tes da educao e do transporte pblico vo muito alm da falta de recursos e de problemas nas planilhas das tarifas, respectivamente.

    O mais grave ocorreu no caso da reforma poltica. Aps rejeitar a correta proposta do plebiscito, o Congresso Nacional simplesmente deu as costas para a soberania popular, para preservar o status quo social.

    Essas duas faces do mal-estar escamoteiam o pano de fundo mais obscuro marcado pelas mltiplas faces da desigualdade social, histrica e crnica. As diversas insatisfaes latentes vieram tona por razes ainda desconhecidas, mas certamente influenciadas pela violncia poli-cial para conter as aes do Movimento do Passe Livre, num contexto cultural influenciado pelas mdias sociais. Seja como for, em ltima instncia, ao colocar o dedo nessa ferida, os protestos repuseram o conflito redistributivo no centro do debate nacional.

    Isso porque as respostas exigem mudanas estruturais pensadas na perspectiva de um projeto de transformao mais amplo. Esse conflito superpe questes historicamente no enfrentadas e novas demandas colocadas pela sociedade em transformao nas ltimas dcadas. As velhas desigualdades tm razes histricas herdadas do passado escra-vocrata (CARVALHO, 2001), do carter especfico do capitalismo tardio (CARDOSO DE MELLO, 1998) e da curta experincia democrtica do sculo 20 (SKIDMORE, 1989; DREYFUSS, 1981).

    A sociedade que lutou contra a ditadura instalada em 1964 queria acertar as contas com esse passado. Para isso escreveu a Cons-tituio da Repblica de 1988, que estabeleceu a democracia e consagrou as bases de um sistema de proteo social inspirado em valores do Estado de Bem-Estar Social (FAGNANI, 2005). Mas a notvel capacidade para preservar o status quo social, que apangio das elites brasileiras, colocou em plano secundrio, mais uma vez, a soberania popular.

    A cidadania social consagrada pela Carta de 1988 introduziu uma nova face do conflito redistributivo em torno da disputa pelos

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    fundos pblicos. Essa disputa foi intensificada nos anos da dcada de 1990, quando se optou pela insero subordinada do pas no capita-lismo globalizado.

    Na primeira dcada do sculo 21, foram engendradas alternativas ao modelo que vinha sendo implantado, que resultaram na melhoria dos padres de vida da populao. O projeto social-desenvolvimentista elaborado pelo Partido dos Trabalhadores (MERCADANTE; TAVA-RES, 2001) ganhou maior centralidade na agenda governamental a partir de meados da dcada passada e houve melhor conjugao entre objetivos econmicos e sociais. A economia cresceu e distribuiu renda, fato indito da histria recente. Caminhou-se no sentido da construo de um modelo econmico menos perverso que o padro histrico.

    Reconhecer esse fato, no entanto, no implica endossar a ideia de que foi implantado um novo padro de desenvolvimento. A viso de que os governos progressistas eleitos em diversos pases da Amrica Latina seriam ps-neoliberais (SADER, 2014), tambm deve ser observada com cuidado. verdade que foi aberta uma nova etapa de lutas contra a hegemonia do mercado. Mas, apesar dessa marcha, o continente est muito aqum de superar e virar a pgina do neoliberalismo.

    Como sinaliza o historiador Perry Anderson, neste incio de sculo o neoliberalismo segue aprofundando seu poder no mundo. verdade que, nesse cenrio, de governos progressistas da Amrica do Sul, o continente passou a ser portador de uma esperana que no existe em nenhum outro lugar do mundo hoje. Na sua viso, o Brasil est na linha de frente deste processo de abrir frestas para caminhar no contrafluxo da ideologia mundial dominante.6

    Em suma, apesar dos progressos recentes, as marcas profundas das desigualdades sociais no foram apagadas. Tem razo a direo nacional do Partido dos Trabalhadores (2014) que, ao apontar os dese-

    6 O Brasil e a Amrica Latina, segundo Perry Anderson, Carta Maior, 15/10/2013.

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    jos da sociedade pela realizao de um conjunto de reformas estrutu-rantes, faz referncia necessidade de se resgatarem as reformas de base propostas por Joo Goulart e interrompidas pelo golpe militar h 50 anos. paradoxal que, passado meio sculo, as reformas poltica, bancria, tributria, administrativa, educacional, urbana e agrria ainda permaneam na ordem do dia.

    A dimenso social de um projeto de transformao para o sculo 21

    A diversidade e a complexidade dos temas estruturais a serem enfrentados pressupem a formulao de uma agenda de transforma-o que consolide os progressos recentes, mas caminhe muito alm.

    verdade que essa perspectiva limitada pela correlao de foras amplamente favorvel ao poder econmico. Da mesma forma, a democracia brasileira um processo em construo e ainda prevalece na sociedade um caldo de cultura antidemocrtico e favorvel ao golpismo que tem sido explorado por lideranas polticas da oposio e por seto-res da mdia. certo que enfrentar as velhas e as novas desigualdades exige que o conflito redistributivo favorea a sociedade e a cidadania em detrimento do poder econmico, o que coloca limites manuteno da tradicional poltica de conciliao entre interesses polticos opostos.

    Tambm verdade que, aps quarenta anos da ofensiva neoli-beral, falar em agenda de desenvolvimento pregar no deserto. No obstante, no parece haver outro caminho possvel caso se queira, de fato, enfrentar as desigualdades sociais, pano de fundo do mal-es-tar contemporneo.

    Novos desafios ao pensamento estruturalista

    Em linhas muito gerais, podemos dizer que o pensamento estru-turalista latino-americano desenvolvido pela Comisso Econmica para a Amrica Latina e Caribe (Cepal) priorizava a transformao

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    estrutural da economia da base agrrio-exportadora em urbano-indus-trial. Em ltima instncia, a estratgia almejava a construo dos est-gios superiores da pirmide industrial verticalmente integrada. A industrializao era a nica via possvel para reduzir as assimetrias entre o centro e a periferia e superar o subdesenvolvimento.7

    A profunda heterogeneidade estrutural do emprego e da estru-tura produtiva era vista como um dos obstculos ao pleno desenvolvi-mento das foras produtivas capitalistas. A concentrao da renda decorrente dessa heterogeneidade, bem como o excedente de mo de obra que se deslocava do campo para a cidade, limitava a demanda por bens de consumo e a dinmica do crescimento. A maior parte da popu-lao mantinha-se submetida lgica da subsistncia e no tinha acesso aos frutos do progresso tcnico. A precria insero no mercado de trabalho e os baixos salrios impediam sua incorporao ao mercado de consumo de massas. Num pas de industrializao tardia, a estratgia de desenvolvimento deveria, necessariamente, priorizar a industrializao e a superao das heterogeneidades estruturais.

    Em funo da sua incipiente institucionalidade, a poltica social no foi contemplada como instrumento complementar para promover a redistribuio da renda e equidade social ao contrrio do que ocor-ria, simultaneamente, na Europa e nos EUA (1945-1975), onde houve articulao virtuosa entre os regimes de Estado de Bem-Estar Social e crescimento econmico.

    De toda a forma, desde 1930 o Estado brasileiro cumpriu tarefas fundamentais num pas de industrializao tardia. Os sobressaltos que se seguiram ao golpe de 1964 prosseguiram at os anos da dcada de 1980, com a crise do padro de financiamento da economia e do setor pblico. Colocado no epicentro da crise, o Estado perdeu o comando da poltica macroeconmica e da iniciativa do crescimento.

    7 Para o aprofundamento do pensamento da Cepal consultar os diversos artigos clssicos reu-nidos por Bielshowisky (2000).

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    No plano internacional, o desenvolvimento capitalista baseado na Segunda Revoluo Industrial sob a hegemonia americana, entrou em crise nos anos 70. O movimento de ajuste global dos pases centrais criou ambiente favorvel ruptura dos compromissos entre o capital e o trabalho firmados nos anos de ouro (1945-1975) do capitalismo regulado. A ideologia neoliberal ganhou vigor e com o fim da bipolari-dade mundial transformou-se no pensamento nico.

    O Brasil foi um dos ltimos pases a ceder ao apelo neoliberal. Quando o fez, nos anos da dcada de 1990, adotou postura passiva, e nossos governos abriram mo das possibilidades de exerccio de poltica macroeconmica ativa. O triunfo do neoliberalismo no contexto da globalizao e sob a hegemonia das finanas internacionais ampliou o poder dos mercados e minou as bases do Estado brasileiro. Por mais de um quarto de sculo, a questo do desenvolvimento perdeu centrali-dade e os traos estruturais do subdesenvolvimento foram agravados.8

    Na dcada passada, foram engendradas alternativas ao modelo econmico que vinha sendo implantado desde 1990 e que resultaram na melhoria dos padres de vida da populao. O crescimento teve consequncias na impulso do mercado de trabalho e do gasto social, potencializando os efeitos redistributivos da seguridade social instituda pela Constituio de 1988.

    Com isso, aps ter sido interditado por mais de duas dcadas, o debate sobre o desenvolvimento voltou a mobilizar a reflexo acad-mica. Atualmente, esse pensamento est estruturado em duas correntes

    8 Na viso de Cano (2010, p. 2), a um futuro estudioso da historiografia macroeconmica recente latino-americana no passar despercebida a drstica mudana qualitativa e quantita-tiva da formulao da poltica econmica a partir de fins da dcada de 1980. Desde ento, a maior parte dos economistas e acadmicos abandonou suas preocupaes de longo prazo, de crescimento e desenvolvimento, ou seja, deixou de se preocupar com o futuro do pas. Mui-tos fizeram ainda pior a partir da de 1990, ao declarar seu credo ao neoliberalismo. Nesse contexto, de desenvolvimentistas de ontem, passaram a ser inimigos do elevado crescimento; de industrialistas, passaram a aceitar a reprimarizao de nossa pauta exportadora. Trocaram a estratgia do protecionismo necessrio, pela estultice da abertura internacional dos mercados de commodities, em troca de nosso imprescindvel mercado interno de manufaturados.

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    principais: o novo desenvolvimentismo e o social-desenvolvimen-tismo (BIANCARELLI, 2012).

    No primeiro caso, o enfrentamento da questo social aparece como objetivo desejvel (BRESSER-PEREIRA; THEUER, 2012). No entanto, no so apontados caminhos para o atendimento desses anseios e a prpria estratgia econmica limita essas possibilidades. Na viso crtica de Carneiro (2012, p. 772), a omisso do papel do Estado como elemento crucial na redistribuio da renda uma constante no trabalho de muitos autores identificados com o novo desenvolvimentismo.

    Esse ponto transparece, sobretudo, na distino entre o investi-mento e o gasto corrente. O investimento teria importncia maior para a sustentao do crescimento, e os autores desse matiz esquecem-se de dar a nfase necessria ao gasto corrente e s transferncias e a seu papel crucial na redistribuio da renda e, portanto, acelerao do cresci-mento via ampliao do multiplicador, sublinha Carneiro.

    A principal proposta sugerida na rea fiscal que as receitas deveriam ser superiores aos gastos correntes mais os juros e a poupana da resultante, suficiente para financiar o investimento. Como se sabe, parte expressiva do gasto social classificada como despesas correntes.

    Em contraposio ao novo desenvolvimentismo, a corrente social-desenvolvimentista busca articular um projeto mais homogneo e de escopo mais amplo. A ideia-chave nas reflexes envolvendo o social-desenvolvimentismo a definio do social como eixo do desen-volvimento. Segundo Carneiro (2012, p. 774):

    Prope-se uma inverso de prioridades relativamente ao velho e ao novo desenvolvimentismo nos quais o desenvolvimento das foras produtivas era o principal objetivo a alcanar. A despeito de conti-nuar relevante, esse objetivo estaria subordinado meta de desen-volvimento social, vale dizer, a direo e intensidade do primeiro estariam subordinadas s prioridades do segundo.

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    Mais especificamente, a ampliao do consumo de massas fundada na redistribuio da renda seria o fator dinmico primordial do crescimento. Em funo da relevncia do mercado interno, o social-desenvolvimentismo prope uma inverso radical nos determinantes do crescimento ao atribuir um papel chave ao consumo de massas e redistribuio da renda.

    Esta estratgia teria de estar ancorada em polticas distributivas que acarretassem a melhoria progressiva da distribuio funcional da renda, ampliao dos rendimentos do trabalho acima da produtividade e ampliao do crdito. Essa combinao permitiria superar o carter subordinado dos segmentos produtores de bens de consumo no capita-lismo, afirma o autor.

    Em trabalho recente, Bielschowsky (2012) sublinha que o pas tem o privilgio de possuir, ao mesmo tempo, trs poderosas frentes de expanso. Primeiro, um amplo mercado interno de consumo de massa. Segundo, uma forte demanda nacional e mundial por seus abundantes recursos naturais. Terceiro, as perspectivas favorveis quanto s demandas estatal e privada por investimentos em infraes-trutura (econmica e social). Esses trs motores do desenvolvimento seriam um conjunto que poucos pases do mundo possuem. Observe-se que dois motores esto vinculados s polticas sociais: mercado interno de consumo de massas e investimentos na infraes-trutura social. Nesse sentido, a corrente social-desenvolvimentista fornece pistas importantes para ampliar a articulao entre as dimen-ses econmica e social do desenvolvimento.

    Apesar da perspectiva promissora colocada pela corrente social-desenvolvimentista, ainda existem lacunas na compreenso da complexidade da dimenso social do desenvolvimento. Em geral, como no passado, a nfase continua recaindo na expanso do mercado interno de consumo de massas e na superao da persistente hetero-geneidade estrutural. Por outro lado, questes como concentrao da riqueza (rural e urbana), injustia tributria e desigualdades (regio-

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    nais e entre classes sociais) no acesso aos bens e servios sociais bsicos (como sade, educao, saneamento, transporte de massa, alimenta-o e previdncia social) no tm merecido a mesma ateno do pensamento neoestruturalista.

    Entende-se que o desenvolvimento no sculo 21 tambm requer aes especficas voltadas para promover uma sociedade mais homog-nea e igualitria. O projeto nacional tambm deve dispor de aes espe-cficas que promovam o bem-estar, distribuam a riqueza e incorporem as demandas derivadas das profundas transformaes que, em curto perodo, provocaram a rpida constituio de uma sociedade de massas, urbana e metropolitana.

    Ao contrrio do que ocorria em meados do sculo passado, a institucionalidade das polticas sociais brasileiras foi reforada nas lti-mas dcadas, em decorrncia da Constituio de 1988. Servios sociais bsicos so considerados como direitos da cidadania e devem ser promovidos pelo Estado para o conjunto da populao, incluindo os mais pobres.

    Uma sociedade mais equnime e justa requer a universalizao da cidadania e a desmercantilizao das polticas sociais. Neste incio do sculo 21, no existem razes para que deixemos, mais uma vez, de nos inspirar na experincia da socialdemocracia europeia do ps-guerra.

    Em outras palavras, apesar dos avanos na institucionalidade das polticas sociais, o pensamento neoestruturalista continua a desconsiderar o seu papel como instrumento para promover a redis-tribuio da renda, a equidade social e a homogeneizao do sistema econmico. Poucos analistas consideram, por exemplo, que a notvel expanso da renda das famlias ocorrida na dcada passada, base do ciclo recente de crescimento, tambm foi determinada pelas transfe-rncias de renda da seguridade social (previdncia rural e urbana, assistncia social e seguro-desemprego), sobretudo devido aos impac-tos da valorizao do salrio mnimo sobre o piso dos benefcios.

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    Em 2012, foram concedidos mais de 37 milhes de benefcios (70% equivalem ao piso do salrio mnimo).

    Mesmo assim, preciso ressaltar que as postulaes da corrente social-desenvolvimentista apontam um campo promissor de investi-gao em torno de temas que articulam as dimenses social e econ-mica do desenvolvimento.9 Um obstculo adicional deriva do fato de que, via de regra, esse debate no faz parte do horizonte dos especialis-tas em polticas sociais, cujos estudos so notoriamente marcados pelo recorte setorial.

    Condicionantes estruturais da dimenso social do desenvolvimento: poltica, Estado e economia

    Uma das faces mais evidentes do conflito redistributivo reposto pelas marchas populares a disputa pelos fundos pblicos.10 O atendi-mento das reivindicaes populares depende da capacidade da socie-dade para apropriar-se dos recursos que tm sido capturados pelo poder econmico nos ganhos especulativos sobre a dvida pblica e por inmeros mecanismos de transferncias tributrias.11

    O enfrentamento desse conflito em favor das demandas da sociedade depende, em primeiro lugar, do reforo da esfera pblica.

    9 Consultar especialmente Carneiro (2012), Biancarelli (2012), Bielschowsky (2012) e Fonseca e Haines (2012).

    10 Essa disputa ampliou-se a partir de 1990 com a adoo de poltica monetria baseada em juros bsicos obscenos que elevou o endividamento e favoreceu a captura de recursos pbli-cos pelo capital financeiro. A crescente transferncia de renda para os detentores da riqueza (juros) permanece elevada. Em 2012, o Oramento Geral da Unio (OGU) totalizou R$ 1,4 trilho. A parcela apropriada pelo capital financeiro (juros e encargos da dvida) represen-tou 32% desse total (excluindo-se o refinanciamento da dvida). Os incentivos fiscais para a reproduo do capital tambm subtraem recursos do gasto social.

    11 Analisando os protestos populares de 2013, o presidente do MST foi direto ao ponto: para atender os anseios da sociedade, afirma Stdile, o governo precisa cortar juros e deslocar os recursos do supervit primrio que beneficia os rentistas para os investimentos produtivos e sociais. E isso que a luta de classes coloca para o governo Dilma: os recursos pblicos iro para a burguesia rentista ou para resolver os problemas do povo? (O significado e as perspectivas das mobilizaes de rua. Entrevista com Joo Pedro Stdile. Jornal Brasil de Fato, 24/6/2013).

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    Sem o resgate da democracia e da poltica, as chances de xito da agenda de desenvolvimento sero reduzidas. As manifestaes populares refor-am a viso de que a sociedade demanda reforo da democracia partici-pativa, prestao de contas pelos governantes e representantes, respon-sabilidade pblica pela qualidade dos servios, transparncia no processo decisrio e definio de prioridades que sejam do interesse geral e no do interesse particular (FLEURY, 2013).

    Por outro lado, a crise do sistema partidrio impe limites ao presidencialismo de coalizo. As alianas para assegurar a governabili-dade tornam qualquer governo refm de interesses fisiolgicos e de partidos sem contedo programtico ou com posies ideolgicas anta-gnicas. Singer (2014) tem razo ao afirmar que uma ampla camada de parlamentares fisiolgicos chantageia o governo, obrigando-o a negociar no varejo, de modo ininterrupto. No meio dessas negociaes complica-das e inevitveis, o interesse nacional vira mera moeda de troca. Esse quadro limita as possibilidades de responder ao desejo cada vez mais latente por parte da sociedade de realizao de um conjunto de refor-mas estruturantes, conforme expressa recente resoluo da Direo Nacional (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 2014).

    Nesse sentido, a reforma poltica a mais importante delas. No debate em curso, diversos pontos tm sido discutidos, com destaque para o financiamento pblico exclusivo das campanhas, o voto distrital misto, a fidelidade partidria, o fim das coligaes proporcionais e a ampliao da participao direta da populao na poltica. Na mesma perspectiva, se coloca o debate em torno da questo da democratizao da mdia (FONTANA, 2013).

    O segundo requisito para enfrentar o conflito redistributivo em favor das demandas da sociedade o fortalecimento do papel do Estado. Ser preciso libert-lo das amarras impostas pelo mercado e recuperar sua capacidade de planejamento de longo prazo e de coordenao de polticas estruturais.

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    Como se sabe, em sociedades de capitalismo tardio, o Estado cumpre tarefas essenciais no planejamento de aes de longo prazo, financiamento dos projetos estruturantes e coordenao dos investi-mentos pblicos e privados. capacidade para promover uma poltica econmica adequada ao crescimento da economia, soma-se a necessi-dade de polticas setoriais especficas (industrial, inovao, tecnologia etc.) e outras que contribuam para a estruturao do mercado e das relaes de trabalho e para a distribuio de renda. Em uma sociedade desigual como a brasileira, cabe ao Estado arbitrar por projetos que incorporem as demandas dos segmentos sociais mais vulnerveis. No obstante, esta tarefa tambm no trivial. Aps a experincia liberali-zante dos anos da dcada de 1990, as bases materiais e financeiras do Estado foram minadas.

    Como salienta Cano (2010, p. 7), no h na histria econmica do capitalismo, nenhum caso de pas que tenha se desenvolvido sem o concurso expressivo de seu Estado nacional. E esse papel, no plano interno, cumpriu-se via induo, estmulos, incentivos fiscais, cambiais e financeiros, compras governamentais, pesquisa e desenvolvimento tecnolgico etc. No plano externo, ele se traduz na defesa de sua moeda nacional, de sua fora armada e sua diplomacia. O papel do Estado nacional no desenvolvimento inquestionvel inclusive nos pases do centro do sistema capitalista como Alemanha, Japo, Inglaterra e EUA. O mesmo se verifica nos casos da Coreia do Sul e de Taiwan, e mais recentemente a China, afirma o autor.

    Finalmente, o crescimento econmico baseado na indstria e manufatura condio necessria para o desenvolvimento. Como se sabe, o subdesenvolvimento constitui um processo histrico, criado a partir da forma como se d a insero na economia capitalista interna-cional. Nas ltimas trs dcadas, tem havido regresso dos manufatura-dos na pauta exportadora, elevao dos dficits comerciais de produtos industriais de mdia a alta tecnologia e acentuada queda da participa-o da indstria de transformao no PIB (CANO, 2010). A questo

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    que se coloca se esse padro de desenvolvimento sustentvel e vivel no longo prazo, dado que a integrao na economia mundial perma-nece dominada pela exportao de matrias-primas.

    O recente ciclo de crescimento baseado, sobretudo, na expanso da renda das famlias e do crdito e nas exportaes de matrias-primas mostra sinais de esgotamento em funo do endi-vidamento pessoal e do agravamento da crise financeira internacio-nal, cuja natureza complexa no contexto da globalizao e da desregulamentao financeira.

    Nesse cenrio, o novo ciclo de crescimento da economia requer elevao da taxa de investimento situada em torno de 19% do PIB entre os anos da dcada de 1970 e o incio da dcada de 2000, a taxa de inverso caiu de 25% para 16% do PIB.

    A questo do financiamento de longo prazo da infraestrutura e da indstria de maior complexidade tecnolgica constitui outro ponto crtico, a despeito do papel que vem sendo desempenhado pelos bancos pblicos. A reestruturao do sistema financeiro nacional para fortalecer o mercado de capitais e solucionar nosso estrutural estrangulamento do financiamento de longo prazo outra tarefa que se impe.12

    O enfrentamento desses complexos problemas estruturais requer que a gesto macroeconmica e a estratgia de desenvolvimento este-jam sintonizadas para criar ambiente favorvel para os objetivos de mais longo prazo. No entanto, os pressupostos tericos que do subs-trato ao trip macroeconmico (cmbio flutuante, supervit fiscal e metas de inflao) no convergem com o projeto social-desenvolvi-mentista, afirmam Biancarelli e Rossi (2013). Esse modelo foi conce-bido para impor limites discricionariedade da atuao do Estado e submeter as autoridades polticas aos princpios de uma viso liberal de desenvolvimento, sublinham os autores.

    12 Para o aprofundamento desses pontos, consultar Cano (2010).

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    Na viso de Barbosa (2014), com o aprofundamento da crise financeira dos pases desenvolvidos, que alterou o padro de insero externa da economia brasileira, o trip transformou-se numa armadi-lha para o crescimento. Em suas palavras:

    O dficit em transaes correntes se amplia num contexto de baixo crescimento e presses inflacionrias concentradas no setor de ser-vios. O governo faz o cmbio se valorizar por meio do aumento dos juros para controlar uma inflao que no de demanda, penalizando os investimentos pblicos e as polticas sociais a fim de assegurar o supervit primrio. Paralelamente, as altas taxas de juros impem um patamar de rentabilidade mnimo para as empresas concessionrias de servios pblicos, comprometendo o papel do Estado na definio de metas de investimento e de preos exequ-veis para o sistema econmico. Os juros altos impem ainda uma presso de custos para o sistema produtivo, travando a ampliao do mercado de capitais e jogando para o BNDES a herclea tare-fa de atuar em todas as frentes infraestrutura, inovao, setor industrial, governos municipais e estaduais e internacionalizao das empresas brasileiras. Para completar, constrangem a expanso dos gastos em educao, sade, habitao e mobilidade urbana, que precisam de mais investimentos e cujos impactos sobre o emprego e a renda se mostram expressivos. Para que as engrenagens deste capitalismo voltem a funcionar (...) temos que superar o trip da poltica econmica (...).

    No obstante, ficamos presos ao trip, reverenciado como se fosse a prpria santssima trindade, afirma o autor.

    A promoo dessas mudanas estruturais de difcil encaminha-mento no curto prazo, pois significa caminhar no contrafluxo da ideolo-gia dominante e da correlao de foras favorvel ao poder econmico.

    Observe-se que, inicialmente, o governo Dilma Rousseff procu-rou alterar a gesto ortodoxa do trip macroeconmico. Entretanto, a

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    Fragmentao da luta poltica e agenda de desenvolvimento

    reao dos mercados forou o governo a recuar. Mesmo assim, o terro-rismo econmico continua em marcha.

    O dilema de qualquer governo arbitrar entre a presso das ruas e as presses dos mercados. No auge das manifestaes populares, a presidenta da Repblica sintetizou esse conflito ao afirmar que a socie-dade estaria exigindo que o cidado, e no o poder econmico, esteja em primeiro lugar. Posteriormente, diante das presses do mercado, procurou conciliar o inconcilivel. De um lado, foram apresentadas propostas de pactos para enfrentar as demandas populares: Pactos da Educao Nacional, Mobilidade Urbana e Sade Pblica. De outro, foi lanado o Pacto pela Responsabilidade Fiscal, exigido pelo poder econmico. Essas tenses ficaram mais evidentes com as sucessivas elevaes da taxa bsica de juros realizada pelo Banco Central desde o incio de 2013 (de 7,5% para 11,0%).

    Por essas razes, fica evidente que, sem presso social, no ser poss-vel fazer com que os interesses do cidado venham em primeiro lugar.

    Eixos sobre a dimenso social do desenvolvimento: propostas para o debate13

    Um projeto de desenvolvimento para o Brasil do sculo 21 continua a depender de mudanas estruturais nos rumos da poltica e da economia. Mas ele no pode prescindir de objetivos voltados para combater as desigualdades da renda, da riqueza, da estrutura

    13 As notas a seguir baseiam-se em duas frentes de pesquisas coordenadas pelo autor em 2013. A primeira, no mbito do projeto Desafios e oportunidades do desenvolvimento brasileiro: dimenses econmicas e sociais promovido pelo Centro de Gesto de Estudos Estratgicos (CGEE) e realizado em articulao com o Instituto de Economia da Unicamp, por meio da Rede Desenvolvimentista (Aspectos Econmicos) e pela rede Plataforma Poltica Social (Aspectos Sociais). Esses eventos foram organizados de forma articulada com o intuito de integrar o debate entre as dimenses econmicas e sociais do desenvolvimento. A reflexo sobre a dimenso social foi organizada em torno de 12 temticas e reuniu 51 especialistas (consultar CGEE, 2013). O segundo campo de reflexo foi coordenado em conjunto com a especialista Ana Maria Medeiros da Fonseca e realizado no mbito do projeto Propostas para o Brasil realizado pela Fundao Perseu Abramo. Os resultados esto consolidados em 22 artigos, escritos por 41 especialistas (consultar FAGNANI; FONSECA, 2013, a e b).

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    tributria, do mercado de trabalho e do acesso aos bens e servios sociais bsicos. Portanto, de forma sucinta, este ensaio prope para o debate os seguintes pontos de uma agenda sobre a dimenso social do desenvolvimento:

    Desigualdades de renda e de riqueza.

    Desigualdades da estrutura de imposto.

    Desigualdades do mercado de trabalho.

    Desigualdades de acesso aos servios sociais: o desafio de universalizar a cidadania.

    As reformas para ampliar a cidadania social.

    O ps-Bolsa Famlia: o desafio de transformar os brasileiros pobres em cidados portadores de direitos da cidadania.

    Os novos desafios colocados pela transio demogrfica.

    Desigualdades de renda e de riqueza

    O primeiro ncleo estruturante da dimenso social do desenvol-vimento deve ser o combate s desigualdades de renda e de riqueza.

    Entre 2001 e 2011, o ndice de Gini caiu de 0,594 para 0,527. A concentrao da renda recuou aos padres de 1960, mas ainda permanece entre as mais elevadas do mundo. Na dcada passada, samos da 3 para a 15 pior posio global e ainda estamos distantes de pases mais igualitrios onde o Gini inferior a 0,4. Paralelamente aos desnveis regionais, existem as extremas desigualdades de oportunida-des entre os vrios grupos sociais (BARBOSA; AMORIM, 2013).

    Temos ainda vivo, no Brasil, o problema da reforma agrria. Esse tema deixou de ser questo para os pases centrais, j que essas naes fizeram a reforma agrria em nome da modernizao do capi-talismo. O Brasil, ao contrrio, teve vrios ensaios abortados e, aqui, o tema permanece atual, ao contrrio do que prega a voga liberal dominante. A secular concentrao da riqueza agrria no Brasil permanece intocada: em torno de 1% dos proprietrios fundirios

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    controlam metade de todas as terras (STDILE, 2014). Por essa razo, a reforma agrria est na ordem do dia como necessidade para construirmos uma sociedade democrtica e ter o desenvolvimento social, afirma o presidente do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). No obstante, o avano do agronegcio convive com uma nova etapa de esvaziamento da reforma agrria (ROMAMO; CAMPOLINA; MENEZES, 2013).

    As desigualdades da sociedade brasileira tambm se refletem na apropriao fsica do espao urbano. A reforma urbana continua sendo urgente e necessria para impedir o avano da especulao e das formas predatrias de uso e de ocupao do espao das cidades. Os recentes avanos na incluso social e na distribuio da renda so insuficientes para termos uma cidade mais justa, afirma Maricato (2013). Para ela, no basta distribuir renda; tambm preciso distribuir cidade.

    Desigualdades da estrutura de impostos

    Combater as desigualdades sociais tambm requer aes no sentido de se enfrentarem as injustias do sistema de impostos, cujos ncleos centrais vigoram desde meados da dcada de 1960.

    Estudo realizado por Lavinas (2013) aponta que, na literatura sobre finanas pblicas, consolidou-se o entendimento de que a tribu-tao direta (que incide sobre a renda e o patrimnio) tende a ser progressiva. Nos pases-membros da OCDE, o peso desses tributos representa 33% da arrecadao total. No Brasil, ao contrrio, os tribu-tos que incidem sobre a renda (pessoa fsica e jurdica) corresponderam 19,0% da arrecadao total em 2011; e aqueles que taxam o patrim-nio equivaliam apenas a 3,7%. Por sua vez, os tributos indiretos (inci-dentes sobre consumo) representaram 49,2% da arrecadao total. A carga tributria indireta atinge proporcionalmente os mais pobres.

    Estudos consolidados por Afonso (2013) apontam que as pessoas que recebiam at dois salrios mnimos comprometiam 53,9% da sua renda com o pagamento da carga tributria indireta em 2008. Em

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    contrapartida, aqueles que percebiam mais de trinta salrios mnimos comprometiam 29,0% da renda com impostos indiretos.

    Mais grave o fato de que a reforma tributria que tramita no Congresso Nacional no caminha na direo de corrigir essa injustia crnica. Muitos estudiosos chamam a ateno para a ausncia de compromisso com a justia tributria (KHAIR, 2008; SALVADOR, 2008; POCHMMAN, 2008).

    Alm disso, a proposta embute ameaas de desmonte das bases de financiamento das polticas sociais conquistadas pela Constituio de 1988. Observe-se que, por detrs da simplificao, esconde-se o fim das vinculaes, a desonerao da folha de contribuio dos emprega-dores para previdncia social e a extino de fontes de financiamento do oramento da seguridade social (Cofins, PIS, Contribuio Social do Salrio-Educao e CSLL).

    A concretizao dessas mudanas sem a garantia constitucional de vinculao de recursos fragilizar o financiamento da educao e o oramento da seguridade social, afetando a sustentao dos gastos em setores como previdncia social (INSS urbano e previdncia rural), assistncia social, sade, seguro-desemprego, gerao de emprego e capacitao profissional (Fundo de Amparo ao Trabalhador, FAT) (FAGNANI, 2008).

    Desigualdades do mercado de trabalho

    Na ltima dcada, ocorreram avanos na gerao de empregos com carteira assinada, reduo do desemprego, valorizao da renda do trabalho e reduo da informalidade.

    Mesmo assim, a estrutura produtiva e do mercado de trabalho ainda guarda traos e caractersticas de economias subdesenvolvidas ou perifricas: elevada heterogeneidade, presena disseminada do subem-prego, excedente estrutural de mo de obra, alta concentrao da renda,

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    baixos salrios e elevada rotatividade dos postos de trabalho (OLIVEIRA, 2013; IBARRA, 2013).

    Continuam a existir desigualdades na distribuio da renda do trabalho e insegurana para os trabalhadores que esto submetidos aos contratos flexveis (KREIN, 2003).

    A ampliao da participao relativa do emprego industrial em segmentos de maior valor agregado, inovao e tecnologia, o fortale-cimento da ao sindical e a ampliao do papel do Estado na regula-o e na fiscalizao das relaes trabalhistas tambm so desafios a serem enfrentados.

    O enfrentamento desses pontos conflita com a atual etapa da concorrncia capitalista, marcada pela maior mobilidade e concentra-o do capital. As estratgias de localizao espacial das corporaes internacionais impem a liberalizao do comrcio, o controle da difu-so do progresso tcnico e o enfraquecimento da capacidade de nego-ciao dos trabalhadores.14

    Desigualdades de acesso aos servios sociais: o desafio de universalizar a cidadania

    Outro ncleo estruturante da dimenso social do desenvolvi-mento deve ser o combate s desigualdades de acesso aos bens e servios sociais bsicos.

    A Constituio da Repblica consagrou as bases de um sistema de proteo inspirado nos princpios da universalidade, da seguridade e da cidadania. A Constituio zela pela igualdade de direitos, mas, na prtica, h uma considervel distncia entre direitos estabelecidos e o exerccio desses direitos. As polticas sociais universais foram mercanti-lizadas e apresentam lacunas e vazios de oferta de servios que se refle-

    14 Luiz G. Belluzzo. Mobilidade do capital e progresso tcnico. Valor, 05/03/2013.

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    tem na falta de acesso ou acesso desigual para as diversas camadas da populao. O desafio que se impe universalizar a cidadania, equali-zando-se as condies de acesso para todos, incluindo os segmentos pobres e vulnerveis, bem como a desmercantilizao da oferta de servios (LAVINAS, 2013).

    Qualquer agenda de desenvolvimento inclui a educao como um de seus componentes. Apesar dos avanos recentes, o pas ainda se encontra distante de um ideal de igualdade de oportunidades educacio-nais. A educao acumula desigualdades e ausncias; a escolaridade mdia da populao baixa em relao aos parmetros internacionais; o analfabetismo de jovens e adultos permanece elevado; a universaliza-o da oferta ainda apresenta lacunas no ensino infantil, mdio e supe-rior; e estar na escola no garante o aprendizado, e a questo da quali-dade permanece viva (ROCHA, 2013; WALTENBERG, 2013).

    Consolidar a seguridade social de acordo com os princpios esta-belecidos pela Constituio da Repblica outra tarefa que se impe. Desde a promulgao da Carta de 1988, a seguridade social tem enfren-tado forte oposio de setores da sociedade e do mercado. Esse fato contribuiu para que princpios constitucionais da organizao da segu-ridade social, do oramento da seguridade social e do controle social (Conselho Nacional da Seguridade Social) fossem descumpridos. Nesta perspectiva, ser preciso organizar a seguridade social e o oramento da seguridade social como reza a Carta de 1988. Tambm ser preciso instituir o Conselho Nacional da Seguridade Social, previsto no par-grafo nico do art. 194 da Constituio Federal.

    A consolidao da seguridade social tambm requer a extino da Desvinculao das Receitas da Unio (DRU) e a reviso da poltica de desonerao fiscal que, em conjunto, subtraem parcelas expressivas de recursos que poderiam ser aplicados nos setores da sade, previdncia, assistncia e seguro-desemprego (FAGNANI; TONELLI VAZ, 2013a).

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    Observe-se que, em 2012, a DRU retirou da seguridade social R$ 52,6 bilhes. O acumulado, apenas para o perodo 2005-2012, totaliza mais de R$ 286 bilhes. Essa subtrao de recursos, que restringe o supe-rvit do setor, no aparece nos relatrios oficiais como uma transferncia de recursos da seguridade social para o oramento fiscal. como se esses recursos fossem, por natureza, do oramento fiscal.

    Ainda em 2012, as isenes tributrias concedidas sobre as fontes da seguridade social (CSLL, PIS/Pasep, Cofins e Folha de Pagamento) totalizaram R$ 77 bilhes (1,7% do PIB). A previso para 2014 que elas atinjam R$ 123,2 bilhes (2,7% do PIB) (Anfip, 2013). Assim como a DRU, esse processo tambm deprime o supervit da seguridade social e poder comprometer sua sustentao financeira no futuro.

    Na previdncia social, ser preciso enfrentar o debate sobre o mito do dficit. Essa falcia, sem amparo constitucional, no consi-dera a previdncia como parte da seguridade social. Assim, desconsi-dera as demais receitas que compem o oramento da seguridade social. Paradoxalmente, essa contabilizao tem sido reproduzida pelo Minis-trio da Previdncia Social, desde 1989.

    A preservao das fontes de financiamento da previdncia social tambm requer a alterao da forma oficial de contabilizao das renn-cias previdencirias, que no considera as renncias fiscais como recei-tas do setor. Da mesma forma, requer o fim da Desvinculao das Receitas da Unio (DRU), criada em 1994 e renovada continuamente. Outro desafio extinguir o Fator Previdencirio e o teto nominal redu-zido para os valores da aposentaria, forando a adeso dos segurados ao sistema privado suplementar (FAGNANI; TONELLI VAZ, 2013b).

    Outro desafio ampliar a cobertura previdenciria. Na dcada passada, a expanso da cobertura dos trabalhadores ativos reverteu quadro crtico vivido desde 1992. Em 2010, pde-se recuperar o pata-mar de 18 anos atrs. Mesmo assim, mais de um tero dos trabalhado-res brasileiros no contribuem para a previdncia social, ou seja, no

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    esto protegidos no presente e no tero proteo na velhice (COSTANZI; ANSILIERO, 2013).

    No caso da sade, a Constituio da Repblica consagrou o Sistema nico de Sade (SUS) como pblico, universal e baseado na cooperao entre entes federativos. Mas, desde os anos 1990, o Parla-mento e os trs entes federativos do Poder Executivo no priorizaram investimentos na ampliao da oferta pblica de servios, especial-mente, nos sistemas de mdia e alta complexidade. Diversos segmen-tos da populao no tm acesso adequado sequer aos servios de ateno bsica. O SUS surgiu como anttese da poltica privatista adotada pela ditadura militar, mas a democracia brasileira no foi capaz de barrar a mercantilizao do setor (VIANA; SILVA; LIMA; MACHADO, 2013).

    Com relao ao servio social, os avanos ocorridos na institui-o do Sistema nico de Assistncia Social (Suas) precisam ser consoli-dados. Existe amplo espao de reformas para articular a assistncia social com os demais setores que compem a seguridade social. Os desafios para o futuro tambm envolvem a superao da tradio conservadora e patrimonialista que ainda prevalece no setor. Outro desafio avanar nas dimenses que transcendem os benefcios mone-trios (Bolsa-Famlia e Benefcio de Prestao Continuada). Nesse sentido, a consolidao do Suas tambm depende do fortalecimento da oferta de servios socioassistenciais, o que requer a efetiva responsabili-zao dos trs entes federativos na produo da ateno e no seu finan-ciamento (SPOSATI; CORTES; COELHO, 2013).

    O programa Seguro-Desemprego apresenta uma anomalia espe-cfica do mercado de trabalho brasileiro: a demanda por seguro-desem-prego aumenta quando a taxa de desemprego cai. Esse paradoxo explicado, especialmente, pela elevada taxa de rotatividade do emprego (CARDOSO JR.; MUSSE, 2013).

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    Alm disso, o Sistema Pblico de Emprego beneficia os trabalha-dores mais bem inseridos no mercado laboral, mas ele no eficaz na incluso produtiva, num cenrio em que mais de dois teros dos adul-tos beneficirios do programa Bolsa-Famlia trabalham em empregos precrios (IBARRA, 2013).

    Com relao alimentao, o acesso aos alimentos foi impulsio-nado, na ltima dcada, em decorrncia de muitos fatores: a melhoria da renda das famlias pobres, a insero do direito alimentao entre os direitos sociais; a intensa atividade do Conselho Nacional de Segu-rana Alimentar e Nutricional (Consea); da instituio do Sistema nico de Segurana Alimentar e Nutricional (Susan); do impacto do Programa Nacional da Agricultura Familiar (Pronaf ); do Programa de Aquisio de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) e do Programa Nacional de Alimentao Escolar (PNAE). Todavia, a implantao do Susan recente (2005) e sua consolidao ainda enfrenta muitos obst-culos (MENEZES; CAMPOLINA; ROMANO, 2013).

    A agenda de desenvolvimento tambm deve levar em conta que, nos ltimos 60 anos, o Brasil nunca contou com polticas nacio-nais de habitao popular, saneamento e mobilidade urbana que fossem portadoras de recursos financeiros e institucionais compatveis com os problemas estruturais agravados desde meados do sculo passado em funo da acelerada urbanizao. Como consequncia, as polticas habitacionais durante muitos anos foram inacessveis para as camadas de baixa renda (ELOY; COSTA; ROSSETTO, 2013). No saneamento ambiental, mais de 40% dos brasileiros no tm acesso adequado gua, e mais de 60% no tm coleta de esgoto adequada (HELLER, 2013). O atual caos do transporte revela um quadro crnico da precria mobilidade urbana com a insuficincia da oferta de transporte de massa (FAGNANI, 2011).

    As desigualdades raciais e de gnero tambm esto enraizadas na sociedade. O total de estudantes brancos de 18 a 24 anos que frequen-tam o ensino superior quase o dobro dos jovens estudantes pretos ou

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    pardos. No mercado de trabalho, a proporo de pretos ou pardos em trabalhos informais bem superior populao de cor branca. A taxa de mortalidade por agresses na populao jovem negra quase trs vezes superior que se constata na populao branca. Alm disso, entre os 10% mais pobres da populao brasileira, mais de dois teros so pretos ou pardos (IBGE, 2013).15

    As reformas para ampliar a cidadania social

    Outro ncleo estruturante da dimenso social do desenvolvi-mento deve ser a realizao de reformas estruturais necessrias para promover a universalizao da cidadania social.

    O financiamento das polticas sociais universais requer reforma tributria que promova a justia fiscal, taxando-se o lucro e o patrim-nio, e no o consumo. Como mencionado, o projeto que tramita no Congresso Nacional no caminha nesta direo e, mais grave, extingue as fontes de financiamento constitucionalmente vinculadas aos gastos sociais universais.

    Alm disso, preciso restabelecer os mecanismos de financia-mento que foram assegurados pela Constituio da Repblica, mas desfigurados pela rea econmica na dcada de 1990. A DRU e a captura de recursos do oramento da seguridade social so exemplares. Outro ponto diz respeito poltica de desonerao de impostos, implantada desde meados da dcada passada, que limita as bases de financiamento da proteo social.

    Da mesma forma, ser preciso restabelecer o pacto federativo, esvaziado pela crescente centralizao das receitas tributrias na esfera federal, bem como pela elevao do endividamento de estados e muni-cpios em funo da poltica monetria restritiva, seguida pela adoo de severo programa de ajuste fiscal para esses entes que foi adotado nos

    15 Consultar: .

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    anos da dcada de 1990. Esse fato limita a gesto pblica dos servios sociais que, de forma correta, passaram a ser administrados pelos muni-cpios em cooperao com os demais entes federativos.

    A superao das desigualdades do acesso aos bens e servios sociais tambm requer que se enfrentem os processos de mercantiliza-o que foram difundidos a partir de 1990 pelos trs nveis de governo para diversos setores, com destaque para a sade, o saneamento, o transporte pblico, a assistncia social, a previdncia e a educao.

    Assegurar servios pblicos de qualidade a todos os brasileiros tambm exige o fortalecimento da gesto estatal, enfraquecida pelo avano de diversos mecanismos de gesto privada que cria duplicida-des, fragmentao e dificuldades para assegurar um padro de eficin-cia. Dentre diversos mecanismos que limitam a gesto estatal eficiente, destaca-se a Lei de Responsabilidade Fiscal que simultaneamente restringe a contratao de pessoal e incentiva a difuso de organizaes sociais, ONGs, Oscips e cooperativas. Essas organizaes sociais (cria-das em 1997) acabam sendo utilizadas com a finalidade de burlar a Lei de Responsabilidade Fiscal (criada em 1999), pois os gastos dessas instituies so contabilizados como servios de terceiros e no como despesas de pessoal.

    O ps-Bolsa-Famlia: o desafio de transformar os brasileiros pobres em cidados portadores de direitos da cidadania

    Outro eixo estruturante da dimenso social do desenvolvimento deve ser enfrentar o desafio de transformar os brasileiros pobres em cidados portadores de direitos da cidadania.

    O programa Bolsa-Famlia pea importante do amplo sistema de proteo social brasileiro e cumpre papel de relevo no combate s situaes de vulnerabilidade extrema, tendo contribudo para que a porcentagem de pessoas que vivem em pobreza extrema casse pela metade entre 2003 e 2011.

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    O desafio consolidar os progressos recentes e, especialmente, avanar na difcil perspectiva de transformar todos os brasileiros em cida-dos plenos. Em parte, esse difcil caminho vem sendo trilhado pelo Plano Brasil Sem Misria, mas os problemas ainda so complexos.

    A questo posta para o futuro intensificar as articulaes do programa Bolsa-Famlia e do Plano Brasil Sem Misria com as polticas sociais universais introduzidas pela Constituio de 1988. Isso requer andar por via de mo dupla. De um lado, exige esforos dos ministrios setoriais responsveis pela gesto das polticas universais, no sentido de ampliar a oferta de servios para as regies e populaes no atendidas. Isso no significa focalizar as polticas universais, mas, sim, expandir essas polticas para que elas tambm atendam os contingentes mais pobres. E, de outro lado, exige esforos do Ministrio do Desenvolvi-mento Social no sentido de ampliar servios e buscar articulaes insti-tucionais com os demais rgos sociais e com os entes da Federao (FONSECA; JACCOUD; KARAM, 2013; JACCOUD, 2013).

    Os novos desafios colocados pela transio demogrfica

    Finalmente, o ltimo ncleo estruturante da dimenso social do desenvolvimento deve ser enfrentar o fato de que, alm desses velhos problemas, a dinmica demogrfica pressionar o Estado, a sociedade e a democracia para que enfrentem novos desafios (RIBEIRO DE OLIVEIRA, 2013).

    O envelhecimento da populao aumentar os gastos pblicos com sade e previdncia. De fato, entre 2000 e 2050 a populao de idosos aumentar (de 5,5% para 15,3% da populao total). Todavia, no existe nenhuma bomba que precise ser desarmada agora para evitar a catstrofe. Em parte porque a reforma da previdncia reali-zada em 1998 (EC 20) j tornou as regras de acesso mais rigorosas que as vigentes na maior parte dos pases desenvolvidos (FAGNANI, 2007).

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    Por outro lado, a populao de at 14 anos cair (de 29,8% para 19,3%). Logo, a presso por gastos com idosos ser contrabalanada pela menor presso do gasto com educao. Hoje, temos cerca de 46 milhes de jovens em idade escolar. Em 2040, sero cerca de 20 milhes.

    Mais importante: o percentual de pessoas em idade ativa (15 a 64 anos) aumentar e abrir uma janela de oportunidade demogr-fica. O desempenho da economia poder (ou no) criar condies para a incorporao desse contingente crescente em idade ativa; poder (ou no) apresentar condies materiais para que essa enorme janela de oportunidades seja aproveitada.

    Portanto, no est dado que transio demogrfica ser um nus inevitvel. Ela poder ser nus ou bnus depender das opes econmicas que sero adotadas. Se formos capazes de adotar um modelo de desenvolvimento que assegure emprego e renda e avance na reduo das desigualdades e na melhoria da distribuio da renda, em 2050 seremos uma sociedade menos vulnervel, com maior preparo educacional e qualificao profissional e menos dependente dos progra-mas de proteo social. Uma sociedade na qual os indivduos tero maior capacidade de enfrentar com autonomia suas demandas e neces-sidades nos diversos ciclos da vida (includa a proteo na velhice).

    Alm disso, plantamos as bases de uma proteo financeira para o futuro. Caso necessrio, em 2050, parte da capitalizao do Fundo Soberano, que est sendo constitudo com recursos das taxas e royalties da explorao do pr-sal, poder ser canalizada para o financiamento da previdncia, seguindo-se a exemplar experincia da Noruega que inspi-rou a criao do fundo brasileiro.

    Contudo, as foras do mercado enveredam pela trilha do terro-rismo demogrfico: difundem a questionvel viso de que a bomba demogrfica levar, inevitavelmente, catstrofe fiscal. O objetivo oculto impulsionar novas rodadas de supresso de direitos sociais.

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    Nesse sentido, a questo que se coloca : Como enfrentar esse desafio na perspectiva progressista? Como financiar a sade e a previ-dncia num contexto de queda da relao entre contribuintes e benefi-cirios? Como capturar parcela da renda auferida pelos ganhos de produtividade?

    Notas finais

    Neste ensaio, argumentamos que o papel da democracia na representao dos interesses da sociedade foi mitigado aps quatro dcadas de dominncia do capital financeiro e de hegemonia da doutrina neoliberal.

    Uma das consequncias disso tem sido a fragmentao da luta poltica em torno de temas setoriais especficos. Com raras excees, perdeu-se a viso de que no ser vivel encaminhar muitas dessas pautas se no se enfrentarem questes estruturais mais amplas tratadas na perspectiva do desenvolvimento.

    Os protestos populares iniciados em 2013 parecem abrir pers-pectivas mais promissoras para impulsionar a retomada do pensamento crtico sobre o desenvolvimento. O pano de fundo mais profundo desses protestos dado pela crnica desigualdade social brasileira. Se essa hiptese estiver correta, os protestos repuseram o conflito redistri-butivo entre capital e trabalho no centro do debate nacional.

    As respostas exigem mudanas estruturais pensadas na perspec-tiva de um projeto nacional de transformao. Procurando contribuir para esse debate, foram apresentados pontos que podero ser contem-plados numa agenda sobre a dimenso social do desenvolvimento.

    Muitas opes adotadas no passado no tm mais validade e ser preciso desbravar caminhos inovadores para enfrentar os desafios asso-ciados falncia do modelo global de acumulao. necessrio ques-tionar o modelo civilizatrio e as bases do desenvolvimento capitalista

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    que chegou ao seu limite e no tem mostrado condies de incorporar pases e populaes.

    Outro desafio conciliar desenvolvimento com a sustentabili-dade ambiental. Como aponta Grzybowski (2011), no d para salvar o planeta e esquecer a humanidade. A questo que se coloca como mudar, conciliando a agenda da sustentabilidade da natureza e da vida com a justia social?

    Mesmo com dvidas e incertezas, cabe ao campo progressista ampliar os dilogos na perspectiva de se construrem consensos em torno de um projeto identificado com as reivindicaes da sociedade. A tarefa complexa, tanto pelo carter estrutural dos fenmenos quanto pelo conservadorismo das elites, num contexto em que a correlao de foras favorece as finanas globalizadas. Todavia, no h outro caminho a seguir, caso os setores progressistas queiram, de fato, enfrentar o mal-estar contemporneo exposto pelas ruas.

    Para no haver um personagem procura de autor, fica a