Roberto Grun (2000), “Dinheiro no bolso, carrão e loja no shopping

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  • 7/22/2019 Roberto Grun (2000), Dinheiro no bolso, carro e loja no shopping

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    1 COLEO CiNCI S SOCI IS D EDUC OCoordenadoras: Maria Alice Nogueira e La Pinheiro Paixoo sujeito da EducaoTomaz Tadeu da Silva (org.)Sociologia da Educao Dez anos de pesquisaVrios AutoresNeo/iberalismo Qualidade To tal e EducaoTomaz Tadeu da Silva e Pablo Gentili (orgs.)Teoria Crtica e EducaoBruno Pucei (or9.)Currculo Teoria e histriaIvor F. GoodsonEtnometodologia e EducaoAlain CoulonA estruturao do discurso pedaggicoBasil BernsteinConhecimento oficialMichael W. AppleEscritos de EducaoAfrnio Catani e Maria Alice Nogueira (orgs.)Famlia e escola - Trajetrias de escolm izao em camadas mdias e popLllaresMaria Alice Nogueira; Geraldo Romanelli e Nadir Zago (orgs)A escolarizao das elites - Um panorama internacional da pesquisaAna Maria Fonseca de Almeida e Maria Alice Nogue ira (orgs.)

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Cmara Brasileira do Livro, SP Brasil)A Escolarizao das elites : um panorama internacional da pesquisa / Ana Maria F Almeida,Maria Alice Nogueira, (organizadoras) . - Petrpolis, RJ : Vozes, 2002.

    Vrios autores.ISBN 85.326.2716-1

    1. Elite (Cincias socia is) - Educao 2 Pesquisa educacional . Almeida, Ana Maria F11 Nogueira, Maria Alice.

    02-1599 CDD-306.43ndices para cat logo sistemtico:

    1. Elites: Escolarizoo : Sociologia educacional 306.43

    ANA MARIA F ALMEIDAMARIA ALICE NOGUEIRA

    orgs.)

    A ESCOLARIZAAOD S ELITESm panorama internacional da pesquisa

    h EDITORAY VOZESPetrpolis2002

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    DINHEIRO NO BOLSO CARRO ELOJA NO SHOPPING:stratgias educacionais e estratgias de

    reproduo social em famlias deimigrantes armnioso Roberto Grn

    avida cotidiana, estamos acostumados a conc eder autonomia ilimitada s estrateglas educacionais dos grupos de agentes que estudamos. Os apontamentosque se seguem, extrados de pesquisas de campo realizadas junto a grupos de imigrantes e seus descendentes no Estado de So Paulo, sugerem que talvez essa atil d e represente uma reificao do ponto de vista dese nvolvido a partir dos valoresvlge,ntes no campo Intelectual. Ao investigarmos as fa las e os comportamentos defamlhas de comerciantes armnios, apareceram salincias que reforaram impresses colhidas em grupos de gerentes de empresas e bancrios a u t ~ d i d a t a s fi

    ou netos ?e imigrantes europeus e japoneses, que denotavam um uso a s t ~ n -te particular das o p o r t ~ n i d d e s educacionais. Para esses grupos , as necessidades .de ass,egurar a reproduo das particularidades culturais tnicas parecem sebl epor as posslbdldades de uso maximizado das chances de promoo socialque podenam adV ir da busca e obteno dos diplomas que consideramos os maiscob iados na sociedade pau lista .

    As famlias de imigrantes costumam desejar que seus descendentes relacionem-se e casem-se com membros de sua etnia, alm de desejar que esses tambm~ b s o a herana ~ l t u r l e religiosa correspondente. No caso especfico dasnaoes comerciantes que estudei, um dos objetivos centrais dos investimentosem educao o desenvolvimento da capacidade do jovem em operar no circuitocomercial de seus ancestrais ou em outro anlogo, porm num nvel de atuaomais elevado (da fabriqueta grande fbrica , da lojinha cadeia de lojas etc.) .

    Universidade Federal de So Carlos.

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    Estes objetivos so apenas parcialmente compatveis com a satisfao dos critrios que fundamentam as hierarquias internas do sistema escolar'.Correndo-se o risco de um excessivo esquematismo, pode-se dizer que, nessas famlias, pede-se que os herdeiros em potencial dos negcios das famlias nosejam instrudos para tratar de ridas questes tericas , mas pa ra a resoluo

    de problemas prticos que possam apa recer no cotidiano das empreitadas familiares, como af irmou uma das pessoas entrevistadas para essa pesquisa.Em geraes passadas, ocorria mesmo um processo de mtua repulso entreos filhos de imigrantes de primeira gerao e as carreiras no setor pblico da eco

    nomia, que demandavam most ras de erudio nos exames de ingresso. As fileirasdos ento bons em pregos pblicos eram bem guardadas pe los filhos das altas emdias camadas sociais da terra , enquanto os imigrantes achavam aquelasposies pouco atraen tes , porque no favoreciam o enriquecimento rpido.

    No universo educacional paulista, tnhamos uma contraposio exemplarentre a Escola Politcnica , pblica e oficialssima, e a Escola de Engenharia Mackenzie, privada, patrocinada por um grupo religioso de vinculao protestante erelativamente distante dos quadros dos governos brasileiros. Comparativamente , a escolarizao realizada em instituies privadas, como a Mackenzie, tinha agrande virtude de parecer diminuir o ardor corporativo que as profisses universitrias tradicionais costumam produzir em seus seguidores, no deixando embotar o tino comercial.

    Quando, a partir das transformaes sofridas pela economia no perodo quese abriu com o Regime Militar, a posse de um diploma de nv el superior tornou-seuma necessidade fundamental para a ocupao legtima da maioria dos postos demando nas organizaes e mesmo para a ocupao legtima do papel de herdeirodas empresas, as escolas privadas reforaram seu lugar e vocao de instituiesque, encarregadas sobretudo de fornecer uma habilitao tcnica, pouco competiam pelas mentes dos seus usurios, aumentando bastant e sua clientela preferencial. Surgiu, assim, uma oferta multifacetada de oportunidades de escolarizaopara herdeiros que pode ser entendida a partir do exemplo das Escolas de Engenharia que esbocei acima.

    Os especialistas encarregados de analisar a expanso do ensino superior talvez tenham exagerado sua preocupao com a queda do n vel de ensino em relao aos padres de excelncia tradicionais. Ao prestar ateno apenas numa certa falta de qualidade do ensino privado sempr e por comparao com as universidades pblicas encarregad as da formao dos grupos dirigentes tradicionais), esses analistas deixaram de notar que, para a maioria dos novos postos de trabalhopara os quais se exigia escolarizao superior, as qualificaes especficas conferidas por cada diploma em particular eram muito menos importantes do que a qua-

    L A pesquisa sobre armnios, realizada no Idesp parcialmente em conjunto com Malak Poppovic, foi efetuadaessencialmente entre o segundo semestre de 1990 e o primeiro semestre de 1991. Mas, muito provavelmente, o padro encontrado atravessou a dcada de 1990, podendo inclusive ter se intensificado. Ela est exposta de man eira sistemtica em Grn (1993).

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    Iificao social de cidado de primeira linha que os diplomas universitrios, deuma maneira geral , passaram a atestar. Trata-se de um processo parecido comaquele que produzia a consagrao do cidado alfabetizado num pas onde o analfabetismo era imensamente majoritrio.Nesse novo quadro , o diploma passou a r epresen tar uma espcie de certificao do carter ntegro do cidado, habilitando-o para ocupar a franja superior dediversos mercados, como o de casamentos ou de afinidades de maneIra geral,transcendendo assim de muito a questo meramente profissional.

    Quando a urbanizao acelerada e a unificao jurdica dos mercados de trabalho comearam a pr em risco os smbolos de s t tu tradicionais das pessoasde bem , a posse de diplomas universitrios , fortemente tributria da distribuiode renda e de capital cultural entre as famlias , acabou ajudando a refazer as antIgas descontinuidades que dividiam a sociedad e tradicional brasileira.

    A anlise das estratgias de socializao tpicas operantes em algumas famlias oriundas da imigrao armnia para So Paulo d cor ao problema. Salta aosolhos o alto grau de transmissibilidade geracional da especializao funcional daco lnia armnia no Brasil. Na nossa pesquisa, por exemplo, vimos que, numa turma de formados no Ginsio da Igreja Apostlica em 1 , mais da metade dos rapazes profissionalizou-se no ramo de calados, enquanto que mais da metade dasmoas casou-se com algum que se dedica quele ofcio . claro que essa Escola Armnia um nicho de socializao protegido po rexcelncia, o que tem resultados sobre a amostra. Mas esse dado indica que o setor de calados um dos fortes estruturadores das formas de sociabilidade maispuras da colnia.

    Procurando as razes da continuidade intergeracional , fomos colocados di-ante de vrios relatos das formas de engajamento na esfera dos calados. Comorevela a fala abaixO', ele precoce e reflete de pelio os condicionantes da estru-tura familiar: Quando o menino tem doze anos , mais ou menos , ele comea a ir demanh na escola e nas tardes ele j vai com o pai na firma de calados, en-quanto a menina, ela fica em casa estudando e ajudando a me; ele vaiaprendendo o negcio. [ ..1passa um tempo e parece at que o rapaz nasceu numa caixa de sapatos [tal a facilidade com que ele se move no I 1te-rior do ramol. (Comerciante estabelecido, com forte atuao comunitria,na poca da entrevista, na faixa dos 50 anos de idade.)A iniciao precoce no ofcio o mecanismo clssico de formao de vocaesno muito bem vistas na sociedade inclusiva. Da funo de mineiro de carvo (Ber

    taux, 1979 ao estilo de vida nobre numa sociedade democrtica (Saint v artin,1980 , esta metodologia aplicadp praticamente por aqueles grupos socIaIs queteriam , num mercado aberto, dificuldades de reproduzir as suas partlculandades.Evidentemente os micromecanismos empregad os por cada segmento variamconfOlme a p o s ~ a preservar. Coube-nos , assim, o estudo das ferramentas empregadas pelas dinastias comerciantes numa sociedade urbana industrial onde

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    as posies mais valorizadas tradicionalmente so as que advm das fOlmaesuniversitrias clssicas.Em momentos em que este topo da hierarquia de prestigio est bem estabelecido, os mecanismos que estudaremos a seguir tm a sua validade mxima comoreprodutores de particularidades tnicas. No perodo atual , quando se destaca ovigor ressuscitado das idias liberais , da apologia da livre-empresa e do empreen-

    dedor, a situao se matiza (Saldiva, 1988 . A disputa pelo ponto mais alto da hierarquia social torna-se cada vez mais complexa, pois , como veremos no prximotpico, ao mesmo tempo em que a figura do negociante intrpido se valoriza , nose trata simplesmente de inverter o sinal da antiga desconfiana que a sociedadedepositava no comerciante, mas da produo de um novo tipo de empreendedor,ungido por um diploma superior, que faz da Administrao uma arte nobre.

    interessante notar inicialmente que, com a iniciao precoce, o perodo deturbulncia do adolescente armnio acaba sendo como que canalizado no negcio (negando o cio .. . Mais do que isso, as formas de socializao q ue se desenvolvem neste processo ajudam a atualizar as posies da famlia em relao translao e evoluo geral do campo econmico.As informaes mostram que os jovens tendem a procurar o relacionamento

    com clientelas de alto nvel social, encontradas nos Jardins, regio sofisticada deSo Paulo, e principalmente nos shoppings centers, desprezando as lojas no centroe nos bairros me nos abastados da cidade, onde a clientela dif ci l, nas pa lavrasde um dos nossos informantes.

    No era assim na gerao da maioria dos nossos informantes, que normalmente se estabeleciam em zonas de grande aflueia popular. Mas isso se davanum momento anterior, quando o processo de segregao social que a Cidade deSo Pau lo vem sofrendo nos ltimos anos ainda no havia feito valer a sua fora.Regies como o centro da cidade podiam ser consideradas pontos de passagempa ra clientes das diversas classes sociais e pod iam abrigar lojas dirigidas a clientelas de d iversos graus de poder aquisitivo.

    Para dar conta das formas de transmisso intergeracional, exploraremos aconceituao por trs do termo shopping; e pa ra enfatizar a mudana entre as geraes, ou no termo loja, estudaremos o di ferencial de socializao da colnia perante a populao paulista como um todo, atravessando as geraes.

    A maturidade econmica dos agentes, no esquema que os informantes nosreve lam, considerada mais rpida e mais promissora do que no circuito das profi sses liberais. Isso parecia ainda mais provvel no perodo em que recolhemos asentrevistas, quando a crise econmica tornava mais problemtica do que nunca ainsero profissional dos univers itrios recm-fom1ados.Nesta coln ia pouco numerosa, em que se contam apenas 25 mildescendentes em todo o Brasil, o apoio tnico atua de maneira mais efetiva no circuito do comrcio, embora a atuao concentrada de descendentes de armnios na co nstruo civil seja um fato ressaltado pelos depoentes. Ao registrar esta tendncia, nos-sos informantes rejeitam explicitamente as caITeiras que adve m da fo rrnao uni-

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    versitria, as quais poder amos , a partir de nossas lentes universitrias, considerarnormais para as classes sociais e gerao dos entrevistados. Nesse sentido, encontramos afirmaes do tipo: todo mundo sabe que diploma no d mais futuropara ningum , como antes; que no comrcio se ganha muito mais,,2.

    Embora pouco documentada diretamente, parece razovel a hiptese de que,nesse cenrio de expanso dos usos do diploma, os annnios se confrontam coma legitimidade do tipo universitrio de prof issionalizao, que um padro de vi-gncia mais amplo. A reproduo da armenidade fica compromet ida pelo novopadro que se desenha. Primeiro, por causa da correlao entre estudos universitrios e casamentos intertnicos; segundo, porque o circuito caladista, onde sedesenvolve o essencial da convivncia tnica, acaba perdendo sua centralidade, jque o princpio tnico deixa de ser a base principal para as coalizes.OS MECANISMOS DA REPRODUO TNICA

    Os mecanismos de controle da reproduo tnico-social que pudemos apreender levam-nos a considerar como iscas os operadores que motivam os jovensa entrarem no circuito ancestral. Surge ento um trinmio, uma seqncia temporal que tipificaramos como dinheiro no bolso, carro e loja no shopping , correspondendo, no interior do sistema simblico vigente, s trs fases da investidura dojovem armnio na maioridade comercial.

    Alm do caldo de cultura que representa a soc iabilidade desenvolvida em torno da produo de sapatos, que aparece quando os infonnantes descrevem-nossuas vivncias nas Escolas Annnias, nas Igrejas e no C1ube3, temos uma srie deincentivos diretos que operacionalizam a socializao.

    O dinheiro no bolso uma evidente tentao para o jovem, que passa assima ser uma espcie de dono da bola e das camisas perante seu grupo de colegas,mas principalmente, induz a personalidade em formao a manter-se no padrode valorao linear do ,dinheiro como nica fonte de status

    Eu dou bastante dinheiro para os meus filhos, para eles sentirem o gostoe terem vontade de ganhar mais. Minha mulher reclama s vezes que eu vouestragar os garotos, mas eu continuo dando, porque eu acho que deste jeito que est certo4 Or

    2. Comerciante. em entrevista da qual participaram vrios dirigentes de um clube da comunidade. A concordncia sobre a laia foi geral.

    3. No momento das entrevistas, funcionavam na capital de So Paulo uma Igreja Catlica, uma Congregao Protestonte e a Igreja Apostlica Armnia. A ltima contaria com a odeso de 85 da comunidade, enquanto a catlica com 10 e a prolestante com 5 . Todas elas mantinham expressivas aes de enquadramento de seuscongregados e se localizavam em tomo do Bairro da Luz e da Estao Armnia do metr paulistano. Haviatambm uma Igreja Apostlica no municpio vizinho de Osasco. Havia duas escolas annnias. A primeu ,a e an-tiga delas localizava-se nas dependncias da principal Igreja Apostlica e a segunda no Bairro de Prnher;os, nomesmo conjunto de edilicios que abrigava a Ugab - Unio Geral Armnia de Beneficncia. O Clube Armemo localizava-se no bairro paulistano de Indianpolis, bastante prximo do seu homlogo Sirio-Libans.

    1 . Comerciante, entrevistado isoladamente .

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    O antiintelectualismo, necessrio para tirar dos limites do pensvel as alternativas universitrias de insero social, surge quase como decorrncia imediatada socializa0 5 . O exame de alguns pares simblicos operados pelos membrosde nossas amostras - e pelos negociantes em geral- do uma idia de como a tendncia instala-se na conscincia dos agentes. O comerciante o homem de aotpico. Valorizando-se a flexibilidade comum a este tipo de atividade, encontramosuma forte contraposio de sentido entre a orientao para a ao do homem denegcios e a orientao para a reflexo do intelectual, com as profisses que exigem nvel superior abarcadas neste plo. Um par simblico corolrio div ide osempreendedores de um lado e os funcionrios do outro, munic iando as estratgias de reproduo tnicas contra a possibilidade de escolhas profissionais no setor pblico ou nas grandes organizaes privadas.

    Alm disso, entra no contexto a definio dos papis sexuais, vinculando ascondutas masculinas loja, que significam a ao e o mundo exterior enquanto opapel feminino se vincula s lides reflexivas, domesticidade. Recupera ndo a falaanterior: Enquanto a menina fica em casa es tudando, o me nino vai ajudar o pai .Cria-se, desta fonna, um composto de significados vinculando a definio de homem comp leto definio de empresrio.

    O carro o estgio seguinte, vivido como uma evoluo natural do dinheiro no bolso . Com toda a carga simblica que o automvel possui na sociedade brasileira, enquanto indicador de riqueza, po tncia e independncia, dispensvel o alongamento da explicao deste item. Cabe apenas a observao da utilizao rotineira, pelos pais e/ou responsveis pelos jovens, da possibilidade de sejogar com a comp lacncia da fiscalizao da lei que exige maioridade legal par.a oscondutores de veculos. Num exemplo extremo, entregar um carro a um jovemmenor de idade pode representar uma irresponsabilidade civil aos olhos da le-gislao, mas tambm um mecanismo de reforo e de antecipao da maioridade real , que podem induzir uma precocidad e na adaptao ao papel social deadulto, que nesta zona do espao social sinnimo de lojista.

    O coroamento do processo acontece atravs da abertura de uma loja prpria, se possvel no shopping , quando o rapaz torna-se independente em termosjurdicos, com o negcio em seu nome, ou como administrador direto dele.

    A preferncia pela loja no shopping mostra a relativizao do padro delegitimidade unilateral baseado no dinheiro. No se trata mais simplesmente dodinheiro que no tem cheiro , mas da convivncia com uma clientela e com co-

    5 o anti ntelectualismo deve ser rigidamente contextualizado, para Ilo aparecer como uma caractenstica natural do grupo. Numa compara50 pan americana, poderamos anotar que nos Estados Unidos, em 1921, aetnia al11lnia registrou a maior porcentagem e estud ntes e nvel superior entre os diversos grupos e imi-grantes. Nessa poca, os acadmicos de origem armnia alcanavam uma proporo de 3 1 a cada 10 000individuos, contra 21 por dez mil de mdia nacional (Mirak, 142). Mesmo no Brasil. o Presidente do Sindicatoda Indstria de Calados de So Paulo no perodo da entrevista, Sebastio Burbulhan, socilogo, mestre emSociologia e se orgulha disso, embora tal profisso no tenha muita aplicao prtica . Cabe entretanto ressalvar que este depoente informounos que nenhum de seus filhos .revelou vocao para continuar no ramode calados.

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    legas lojistas portadores de atributos de distino que elevam tambm, indiretamente, o prpr io j ista 6A procura destes ambientes pode ser considerada um ind icador razovel danecessidade de se in se rir em circulos de sociabilidade mais prestigiosos, alm dafronteira do tnico, apontando para a integrao mais ampla na sociedade inclusiva, atravs do com partilhamento das hierarquias de st tus mais gerais.Neste sentido, interessante notar que parte do espao ocupado pelos armnios no comrcio de calados de combate vem sendo tomado de assalto por comerciantes de origem nordestina , o que pode ser nota do principalmente a partir

    da zona atacadista do Brs, que se desenvolve em torno da Estao FerroviriaRoosevelt , Zona Leste da Cidade de So Paulo.Os estudos sobre enclaves de especializao tn ica (Zenner, 1991) costumam

    apontar para o declinio dos nichos conforme as novas geraes da etnia vo se socializando no pas hspede , j que os novos agentes procuram preferencialmenteposies nas profisses liberais , consideradas de maior prestigio estatutrio . Anossa loja no shopping assinala uma interessante soluo de compromisso,onde a permanncia no ramo d-se com elevao socia l.

    Os mecanismos que co nduzem reproduo das estirpes comerc iante s estl1lturadas segundo principias tnicos no agem somente no espao das colnias . claro que o espao de sociabilidade tnico potencia muito seus efeitos, por causada redoma constituda pelas associaes das colnias , que protegem os agentesda ao de outros princpios estruturadores de gosto - as universidades, os colgiose clubes no-tnicos , onde a convivncia com jovens vindos de outros subespaospoderia ajudar no desabrochar de tendncias de personalidade no incentivadasno subespao tnico. Mas, numa poca de predomnio de idias neoliberais, coma conseqente mxima valorizao social das lides comerciantes, os valores que,em outros tempos, pareceriam pouco nobres na sociedade inclusiva, passam a terconotao positiva.

    Eles passam a disputar espao com outros pad re s de excelncia , alicerando a busca da independncia econmica mesmo em fam ilias onde o destinofunci onrio era padro clssico de insero social. Neste percurso , as formasde socializaoque intervm na criao do gosto pelo negcio nos descendentesde imigrantes expandem-se para as classes mdias e altas em geral, da mesmaforma que se expandiram em outros tempos os elencos de qualidades necessriasao bom funcionrio .

    6. t possivel que, tambm para a gerao precedente, pudesse ser encontrado o desejo de elevao social atravs do contato com uma freguesia de condio social mais elevada, o que simplesmente no tinha como seefeti va r nas condies de exercicio do mtier daquela poca. A localizao desse desejo exclusivamente nasgeraes mais novas pode ter do o resultado da maneira como nossas entrevistas foram realizadas. Na lgi-ca da digresso biogrfica (ensejada pela entrevista), os jovens se viam colocados diant e da necessidade expressiva de se d if erenciarem de seus pais, reforando, por conseqncia, certas diferenas que talvez fossemdes preZildas no cotidiano das empreitadas . Afinal, eles dirigem-se aos bairros mais afluentes municiados pelos capitais familiares acumulados nu geraes precedentes e pelo conhecimento adquirido no cluster tni -co. Sobre isso, ver Bourdieu 1986).

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    A relao dos integrantes de nossa amostra de imigrantes e de seus descendentes com a sociedade e a econom ia paulista poderia ento ser assim esquemalizada:a 1 ge rao de armnios, descon hecedo res dos hb itos, lingua e costumesbrasil eiros, inseridos na pequena indstr ia e/ou iniciando suas atividades atravsda confeco de chinelos de l, circulando fund amentalmen te na colnia, investindo timidame nte na direo do comrcio;b 2gerao, formada por pessoas em geral j nascidas no Brasil e qu e comea a se mover para o com rcio, principalmente voltado para clientelas de baixarenda, cujo gosto pode ser facilm en te percebido por ser um espraiamento de tendncias da moda j vigentes em circulas abastados;c 3 gerao, formada por pessoas que j foram socializadas em ambientesprximos, ou mesmo formadores de moda. Destacamos, pela fama que gozavamp u poca da pesquisa de campo, os em preendimentos/pessoas Zoomp/Kherla-

    k i 1 n Teresa Gureguian / Gureg, podendo comercializar ou fabricar produ os deponta nos mercados de consumo sunturio.Nesta fase madura da insero econmico-social dos desce ndentes de armnios, os armnios de ponta so secundados por um tecido bem urdido de comerciantes patrcios que atualmente tm por referncia estes seus grandes que,provavelmente, os ajudaram em seus primeiros passos rumo ao hall da fama .Por outro lado, o segmento chamado de combate, teve um out ro padro deevoluo prpria, permitindo-nos presenciar, na atualidade, a dominncia de v-rios grupos comerciais importantes, como as cadeias de lojas Babuch, J ea n Daniel e Besni. Neste nvel de atividade, o empresrio deixa de se identifi car direta

    mente com sua clientela e passa a ser grande pelo volume do negcio. Em ambosos casos, a argcia comercial herdada na socializao familiar e da co lnia torna-se uma propriedade diferencial - considerada positivamente, ao contrrio deoutros tempos - que opera no seio das elites brasileiras j razoavelmente fundidas.No caso da produo e comrcio para os segmentos de classe alta, a auscultao do gos to s pode ser explicada por uma sintonia fina com diversos setores dasclasses altas7Para compreender de maneira mais prec isa a evoluo desse grupo, ne cessrio uma sociologia das elites no Brasil - principalmente aquelas em qu e ocapital soc ial o principal ativo do portflio , procurando identific-Ias nosseus ncleos e clivagens, a exemplo dos trabalhos de Michel e Monique Pinon

    para a Frana e George Marcus para os Estados Unidos. Acredito que o camposociolgico brasileiro ainda nos deve uma acumulao mnima ele monografiassobre esse trabalho necessrio de formao de gostos , sem o qual pouco conhe-ceremos sobre a dinmica da produo e espraiamento dos gostos e sensibilidades vigentes em nossa sociedade. apenas a pa rtir de um tal mapeamento que setornar possvel uma anlise do grau de in sero de nossa amostra no espao daselites paulistas e nacionais.7. Confol1l1e lembra-nos Bourdieu ao 10 l1go de toda a sua obra, o gosto a transliterao, para a linguagem colidiana, cio hobitus

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    .IPara o segundo grupo, no qual se destaca o eixo do capital econm ico, a

    aproximao com os valores dominantes na sociedade pode ser m edido pelamaior ou menor si milaridade das formas de gesto adotadas nas empresas tnicascom o tipo de admini strao considerado padro nos termos da sociedade inclusiva. O estabelecimento desse paradigma est ev id entemente relacionado com alegitim idade alcanada pelas Escolas de Administrao e pela sua adoo comoprecondio para apo io po r parte dos rgos de fomento indstria e/ou ao comrci08 Para esse caso, apoiados em trabalhos anteriores , conseguimos maiorsegurana para aprofundar a anlise.

    O ponto essencial a ser notado a presena de uma forte clivagem geracionalopondo, mas tambm unindo, pais e filhos que convivem nos empree ndimentos atuais. Enxergamos a um exemplo da dinmica clssica da disputa entre geraes famili-ares pelo direito de comando sobre os seus haveres. Diante da impugnao do estilode atividades de seus pais por parte das atuais instncias legtimas de difuso de tcnicas de management , como a imprensa especializada e as Escolas de Administrao,os jovens anllnios que se iniciam nos negcios acabam relevando o significado dasexperincias do passado, contribuindo para fazer esmaecer o cluster tnic09 .

    Mas, mesmo nessa instncia, o substrato tnico aparece: ao indagarmos nossos entrev istados jovens sobre suas carreiras escolares, ficava patente a existncia de tenses que os separavam da maior parte de seus colegas de outras origenstnicas e sociais. Ao fa larem sobre sua relao com o contedo dos ensinamentosde gesto e de economia, sua expresso era quase de desdm, ressaltando o carter abstrato do que aprendiam nos cursos superiores, tendo como comparaoimplcita, a Esco la da Vida.De qualquer maneira, tudo indica que estamos diante de uma tpica situaode do uble bind, em que diante de seus pais os jovens armnios armam-se da modern idade encarnada nas modernas tcnicas de gesto empresarial , enquantoque diante de seus colegas mais dados a exerccios reflexivos , eles afirmam a suaindividualidade de homens prticos 0 E, vista pelo ngulo do sistema escolar, essaambigidade condensa a relao que os diversos grupos de imigrantes desenvolvem com o saber estabelecido.

    CONCLUSOAnaliticamente, minha pretenso foi de chamar a ateno para a necessidadede levarmos em conta os mltiplos critrios de hierarquizao social vigentes na

    sociedade brasileira, e as maneiras atravs das quais o sistema escolar acaba sendo relativizado ou controlado na busca de opes para as famlias conduzirem8. Ver Grn (1993). para maiores detalhes.9. claro que no podemos afinl1ar que a experincia d especializ o funcion l sej dot da deuma positividade absoluta . Entre outros problemas, ela impedia, em carter quase completo, as possibilidades de casamento intertnico ou a escolha de carreiras profiss iona is distintas das desejadas pelos detentores do poder patriarc l n f mili10. Em outro trabalho G rein, 1997), exploro essa ambig idade mais extensamente.

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    suas estratgias de reproduo social para encaminharas novas geraes em direo a destinos por elas desejados, ainda que considerados pouco legitimo: na sociedade inclusiva. O exemplo dos armnios d cor es forte s a essas tendenclas epode ser considerado uma pista para procurarmos outras sal inc ias anlogas, baseadas em princpios tnicos ou no.

    Exp ressivamente, o exemplo dos armnios forn ece p istas para uma r q u ~ -logia da onda atua l de empreendedorismo e para a boa acolhida que a pregaaoneoliberal acabou recebendo na nossa soc iedade, Ainda que despercebidas ou encobertas pelas nossas viseiras aca dmicas , essas tendncias sempre tiveram forte presena na sociedade brasileira, esperando apenas um a oportunidade para e:praiar-se. Ainda que alguns asp ectos das estratgias de reproduo que os arn:e-nios desenvolveram na sociedade brasileira possam ser consi derad os rdlossJl1cratlcos , podemos encontrar diversas combinaes dos seus componentes agindo emoutros espaos de sociabilidade e municiando outros grupos na busca de espaosprotegidos para manter suas particularidades ameaadas pelos padres oficiais ousimplesmente legtimos de ensino.REFERNCIAS BIBLIOGRFICASATTIAS-DONFUT , C. (1988). Sociologie des gnerations. Paris: PUF .BERTAUX, D. (1979). Destinos pessoais e estrutura de classes. Rio deJaneiro:Zahar.BOURDIEU, P. (1986) . L'iIIusion biographique. In Actes de la Recherche en Scien-ces Sociales, n. 62-63: 69-72.DUBY, G. (1964). Au XII siec1e: Les jeunes dans la societ aristocratique. In Anna-les, n. 19(6: 835 -846).FAUSTO, B. (1991). A historiografia da imigrao para So Paulo - Questes e

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