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A FORMAÇÃO PELA EXPERIÊNCIA LIVRE E A AUTORIDADE DA VONTADE GERAL: CONCEITOS QUE DIALOGAM NA PEDAGOGIA POLÍTICA DE ROUSSEAU OLIVEIRA, Neiva Afonso Professora Adjunto da Faculdade de Educação da UFPel [email protected] GHIGGI, Gomercindo Professor Adjunto da Faculdade de Educação da UFPel [email protected] OLIVEIRA, Avelino da Rosa Professor Titular da Faculdade de Educação da UFPel [email protected] O veio principal que move o projeto político de Rousseau é a questão da liberdade não alienável e não desvinculada da própria natureza humana. Desde o Discurso sobre a origem e a desigualdade entre os homens, no texto rousseauniano, a liberdade é situada como o objeto da mais alta aspiração a ser buscado pelos homens. O autor critica aqueles que a julgam transferível e encontra em Pufendorf a oposição a suas idéias quando este afirma que assim como se pode alienar os bens a outrem, poder- se-ia, também, alienar a liberdade. Em Rousseau, a denúncia da não-liberdade humana encontra-se na célebre frase “o homem, por toda parte, está a ferros.” Trata-se de uma falta de liberdade, grifada pela exploração de um homem sobre o outro e, sobretudo, pela perda de sua autonomia. Para o autor genebrino, a renúncia do homem à sua liberdade constitui o renegar a sua própria qualidade de homem. Quando Rousseau afirma que a soberania não pode ser exercida pelos homens quando estão submetidos a seus chefes, coloca, aí, toda expressividade de que o cidadão é aquele que, pelo contrato, não obedecendo a ninguém, mas unindo-se a todos, obedecerá tão-somente a si mesmo e permanecerá “tão livre quanto era antes”. Aqui, o autor emprega o termo “associação” o qual adquire uma carga semântica peculiar ao explicitar também um não à submissão, restaurando a cooperação entre os membros do corpo político. Aos olhos de Jean-Jacques Rousseau, o ingresso na sociedade representa um passo inevitável que o indivíduo daria ao sair do estado de natureza. Porém, este ingresso não seria marcado pelos vícios da submissão ou da escravidão, senão pela liberdade e pela busca do bem comum. Trata-se de uma proposta alternativa àquela em que a sociedade da época de Rousseau iniciara já a viver. Ao eu individualista de Locke e ao homem lobo de Hobbes, Rousseau contrapõe o eu comum, livre enquanto membro

Rousseau

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tEORIA DO ESTADO

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  • A FORMAO PELA EXPERINCIA LIVRE E A AUTORIDADE DA VONTADE GERAL: CONCEITOS QUE DIALOGAM NA PEDAGOGIA POLTICA DE ROUSSEAU

    OLIVEIRA, Neiva Afonso Professora Adjunto da Faculdade de Educao da UFPel

    [email protected]

    GHIGGI, Gomercindo Professor Adjunto da Faculdade de Educao da UFPel

    [email protected]

    OLIVEIRA, Avelino da Rosa Professor Titular da Faculdade de Educao da UFPel

    [email protected]

    O veio principal que move o projeto poltico de Rousseau a questo da liberdade no alienvel e no desvinculada da prpria natureza humana. Desde o Discurso sobre a origem e a desigualdade entre os homens, no texto rousseauniano, a

    liberdade situada como o objeto da mais alta aspirao a ser buscado pelos homens. O autor critica aqueles que a julgam transfervel e encontra em Pufendorf a oposio a suas idias quando este afirma que assim como se pode alienar os bens a outrem, poder-se-ia, tambm, alienar a liberdade. Em Rousseau, a denncia da no-liberdade humana

    encontra-se na clebre frase o homem, por toda parte, est a ferros. Trata-se de uma falta de liberdade, grifada pela explorao de um homem sobre o outro e, sobretudo, pela perda de sua autonomia. Para o autor genebrino, a renncia do homem sua liberdade constitui o renegar a sua prpria qualidade de homem.

    Quando Rousseau afirma que a soberania no pode ser exercida pelos homens quando esto submetidos a seus chefes, coloca, a, toda expressividade de que o cidado aquele que, pelo contrato, no obedecendo a ningum, mas unindo-se a todos, obedecer to-somente a si mesmo e permanecer to livre quanto era antes. Aqui, o

    autor emprega o termo associao o qual adquire uma carga semntica peculiar ao explicitar tambm um no submisso, restaurando a cooperao entre os membros do corpo poltico. Aos olhos de Jean-Jacques Rousseau, o ingresso na sociedade representa um passo inevitvel que o indivduo daria ao sair do estado de natureza. Porm, este

    ingresso no seria marcado pelos vcios da submisso ou da escravido, seno pela liberdade e pela busca do bem comum. Trata-se de uma proposta alternativa quela em que a sociedade da poca de Rousseau iniciara j a viver. Ao eu individualista de Locke e ao homem lobo de Hobbes, Rousseau contrape o eu comum, livre enquanto membro

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    de um corpo social limitado apenas pela volont gnrale que ... sempre certa e

    tende sempre utilidade pblica. (Rousseau, 1983, p.46) Para viver em sociedade, cada um de ns d-se completamente, ou seja, submete

    aos padres coletivos todos os impulsos naturais da criatura individual, sendo, no entanto, essa submisso uma condio igual para todos. Aquele que desejar fazer prevalecer seus instintos e desejos naturais, estar vivendo margem da sociedade e dever ser tratado como algum que renuncia sua prpria liberdade de associao. Sendo ele um membro do corpo poltico e renunciante igualdade bsica, f-lo adoecer e emudecer a vontade geral, em seu aspecto de somatrio do substrato comum das

    vontades particulares. Cabe ressaltar que a liberdade individual, aqui defendida por Rousseau, est atrelada, vinculada ao bem de todos:

    Enfim, cada um dando-se a todos no se d a ningum e, no existindo um associado sobre o qual no se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde, e maior fora para conservar o que se tem. (Rousseau, 1983, p.33)

    A restrio que a teoria rousseauniana impe liberdade individual constitui a busca do bem comum e a participao de todos os indivduos como membros do corpo poltico.

    Ao submeter a liberdade individual e o egosmo soberania da vontade geral,

    Rousseau ressitua o estado da questo da liberdade, restringindo-a ao pacto e associao dele advinda.1 Neste sentido, podemos afirmar que o indivduo, reconhecendo o estado de misria em que se encontra antes de associar-se, comea a fazer parte da sociedade no somente para a ela aderir, mas tambm para que sua

    liberdade prevalea. Cabe aqui ressaltar que a insgnia pela qual Rousseau caracteriza a sociedade de sua poca a desigualdade entre os homens. A sociedade tal como foi vivenciada pelo autor genebrino uma sociedade desigual, impregnada pela dominao social e poltica ente os homens.

    Os homens se olhavam de cima para baixo ou de baixo para cima, segundo o ponto de vista que era o do poder, mas que o poder propriamente dito havia abandonado: das relaes de poder restavam sobretudo as relaes. Eles [os homens] se relacionavam entre si de acordo com o ponto de vista da desigualdade. O esprito da sociedade era a desigualdade. (Manent, 1990, p.102)

    1 Norberto Bobbio denomina essa liberdade como positiva, situando-a dentro dos parmetros da

    autodeterminao e autonomia, colocando Hobbes, Locke e Montesquieu como propugnadores da liberdade negativa.

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    A relao dos homens, perpassada pela desigualdade, conduz situao de que

    os indivduos no so cidados, mas proprietrios. Ao homem burgus dirigida a crtica mais dura, afirmando que o contrato social um contrato de proprietrios. No entanto, imediatamente, nos esclarece Rousseau, o referido proprietrio, at ento apenas preocupado com sua prpria preservao e seu eu egosta, passa a preocupar-se

    com uma nova personificao que a pessoa interligada ao bem comum e unidade social. No tivesse Rousseau dado este segundo passo em direo unidade social e ele seria, com razo, aclamado como liberal. No entanto, a sua valorao do bem comum em relao ao interesse privado que lhe permite, e ns assim o podemos dizer, escapar

    das malhas do liberalismo e colocar-se na perspectiva da autonomia do cidado que participa e soberano em suas decises. Manent (1990) situa assim esta escolha de Rousseau:

    ... o Contrato Social no pode conter um programa poltico. Por uma de suas vertentes, ele abarca e repete os ensinamentos de Locke, e rotulado como liberal; por outra, descortina um futuro radicalmente indeterminado, em que o nico guia ser a idia de unidade social, da identificao do interesse e da vontade de cada um com o interesse e a vontade de todos. E a nica maneira de assegurar que essa identidade ser realizada, que o interesse pblico no se confundir com nenhum interesse privado, colocar o interesse pblico proporcional contradio que ele estabelece com todos os interesses privados... (p.115)

    Como obras pedaggicas de Rousseau, vimos considerando o Contrato Social e o Emlio. O prprio fato do Contrato Social estar contido no Emlio explica a vontade instrutora do autor de ensinar as regras bsicas para que o cidado insira-se na sociedade. O Contrato Social visa instruir: Rousseau instrui-se atravs dele, instrui

    tambm Emlio e, ainda, todo cidado. A que objetiva, portanto, a pedagogia do Contrato Social, ou conforme esclarece seu subttulo Princpios do direito politico? A expresso direito poltico significa, em Rousseau, o estudo das leis que regulam, no corpo poltico, as relaes entre o poder e os cidados. Neste sentido, Rousseau acompanha Montesquieu para quem, com efeito, o direito poltico constitudo pelas

    relaes entre os que governam e os governados. O que se pode esperar, ento, de uma obra pedaggica intitulada Do Contrato Social e que tem por subttulo Princpios do direito poltico? Pode-se esperar que ela nos instrua a respeito do princpio da sociedade (o contrato) e, sob o ngulo dos princpios que a regulam, das relaes entre o poder e os cidados. Porm, o que interessa a Rousseau o aspecto da legitimidade do poder, ou seja, se pode haver, no corpo poltico, algum poder legtimo: Quero indagar, diz o

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    autor, no primeiro pargrafo do Contrato, se pode existir, na ordem civil, alguma

    regra de administrao legtima e segura ... (Rousseau, 1983, p.21) Dizendo de outro modo, possvel extrair do direito poltico regras para a convivncia e para a unidade social? Ou, possvel o poder legtimo na organizao social? esta a pergunta fundamental do direito poltico para Rousseau, tornando-se a questo pedaggica por

    excelncia a explicitao da natureza do poder poltico: que princpios conferem estatuto de legitimidade ao poder poltico? A resposta encontra-se no Contrato, onde divisaremos princpios que fundamentam a legitimidade do poder. De que modo, pois, desenvolve-se a pedagogia do Contrato? Tomando os homens como so e as leis como

    podem ser. Temos, aqui, dois aspectos distintos da obra. No se trata de compreender as leis

    como existem, ao modo de Montesquieu, mas como podem ser, luz do que os homens so em sua natureza profunda e genrica. Por outro lado, o trecho citado,

    completo Quero indagar se pode existir, na ordem civil, alguma regra de administrao legtima e segura, tomando os homens como so e as leis como podem ser. (Rousseau, 1983, p.21) revela que, ao lado de preocupaes de ordem puramente especulativa ou terica, Rousseau tambm alimenta preocupaes de ordem prtica, de

    tal modo que seus princpios possam resultar em ao, ou seja, em regra de administrao legtima e segura. Conforme Arbousse-Bastide & Machado (1983), Rousseau pretende que ao e princpios sejam atendidos a um s tempo. Portanto, entendido sob os dois aspectos mencionados, o Contrato estaria impregnado de trs

    nveis distintos de vises: as de cunho antropolgico, reveladoras de uma filosofia do homem fundamentadora do segundo nvel, ou seja, do pensamento poltico estrito, e finalmente, a terceira viso, a das questes de ordem prtica, fundada na segunda. Embora distintos, estes trs nveis no se separam, razo pela qual deveramos poder encontrar tambm, alinhavando-os, um ponto central de referncia, em que imbricassem

    todas as linhas do sistema rousseauniano, e do qual irradiasse o valor germinal dos conceitos. Esse ponto de contato da antropologia, da teoria poltica e das questes prticas tem como base argumentativa a distino entre o homem natural e o homem poltico, os quais representam dois ambientes especulativos distintos e inseparveis. As

    categorias com que Rousseau pensa o homem natural e seu mundo no so as mesmas com que ele pensa o homem social e o corpo poltico. O momento do contrato produz um corte na reflexo e gera dois universos conceptuais diferentes. Os termos expressam idias diversas quando cortados pelo conceito contrato. nesta categoria, portanto, e

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    atravs da anlise dos conceitos que a determinam, que se deve buscar o ponto de

    partida da compreenso global da obra Contrato Social, pois as alternncias conceptuais que mencionamos tornam-se inteligveis se compreendermos o deslocamento produzido no discurso pela idia de contrato. Tal deslocamento perfeitamente compreensvel, se analisarmos o filo do pensamento rousseauniano combinado defesa do homem no

    estado natural, mas chegando, pelo contrato, a um estado de sociabilidade possvel, como forma de restaurar a convivncia entre os homens. Esta posio de Rousseau plenamente aclamada e considerada vlida por Kant, cuja anlise da sociedade continua condizente com nossa sociedade atual, do homem marcado pelo mercado.

    ... e Rousseau no estava enganado ao preferir o estado dos selvagens, se se deixar de lado o ltimo estdio que a nossa espcie tem ainda de subir. Estamos cultivados em alto grau pela arte e pela cincia. Somos civilizados at o excesso, em toda a classe de maneiras e na respeitabilidade sociais. Mas falta ainda muito para nos considerarmos j moralizados. (Kant, 1990, p.32)

    Em termos epistemolgicos, Rousseau busca superar constructos iluministas, optando, no pela razo abstrata, mas pelo costume, sentimento e experincia, servindo-

    se da reflexo de Locke a respeito. Argumenta que o domnio da razo no deu conta do projeto de aumentar a moralidade e a felicidade do homem, tornando-o infiel e egosta em sua ntima natureza. Cita a propriedade privada, a diviso do trabalho e de classes e as ms paixes como frutos do Iluminismo, embora admita que a razo pode orientar os

    impulsos e a liberdade. O homem nasce livre. Para manter-se livre obriga-se a contratar com os outros. Os contratos sero desfeitos se os responsveis pela sua organizao tornarem-se dspotas. A crtica de Rousseau organizao social vigente oscila entre a defesa de livre individualismo e modelo coletivo de organizao social. Embora no

    pretenda produzir regresso sociedade primitiva, procura manter o resguardo de valores inatos, decorrendo apaixonada defesa da democracia direta, embora inimiga da liberdade particular, procurando elaborar um pensamento voltado construo de teorias reguladoras da educao e da poltica. O desenvolvimento humano de acordo

    com a natureza tarefa da educao, o que exige conhecimento das leis psicolgicas e do desenvolvimento dos educandos. O respeito individualidade de cada educando pela observncia das leis da natureza critrio central para pensar a educao. por essa razo que a educao deve dar-se em funo do desenvolvimento da criana, de suas

    aptides e interesses, processo no qual o educador realiza intervenes apenas quando necessrio, respeitando seu curso natural. assim que aparece um conceito de humano

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    conformado s leis da natureza, reconhecido como primitivamente bom. No exagero

    nosso recorrer a grande parte do trecho de abertura de Emlio ou Da Educao2 que bem pode servir-nos como aporte para refletir sobre o ato educativo, seus antecedentes e sua justificativa respaldada pela prpria natureza.

    TUDO CERTO em saindo das mos do Autor das coisas, tudo degenera nas mos do homem. Ele obriga uma terra a nutrir as produes de outra, uma rvore a dar frutos de outra; mistura e confunde os climas, as estaes; mutila seu co, seu cavalo, seu escravo; transtorna tudo, desfigura tudo; ama a desformidade, os monstros; no quer nada como o fez a natureza, nem mesmo o homem; tem de ensin-lo para si, como um cavalo de picadeiro; tem que mold-lo a seu jeito como uma rvore de seu jardim.

    [...] Amanham-se as plantas pela cultura e os homens pela educao. [...] Nascemos fracos, precisamos de fora; nascemos desprovidos de tudo,

    temos necessidade de assistncia; nascemos estpidos, precisamos de juzo. Tudo o que no temos ao nascer, e de que precisamos adultos, -nos dado pela educao.

    Essa educao nos vem da natureza, ou dos homens ou das coisas. O desenvolvimento interno de nossas faculdades e de nossos rgos a educao da natureza; o uso que nos ensinam a fazer desse desenvolvimento a educao dos homens; e o ganho de nossa prpria existncia sobre os objetos que nos afetam a educao das coisas.

    Cada um de ns portanto formado por trs espcies de mestres. O aluno em quem as diversas lies desses mestres se contrariam mal educado e nunca estar de acordo consigo mesmo; aquele em quem todas visam os mesmos pontos e tendem para os mesmos fins, vai sozinho a seu objetivo e vive em conseqncia. Somente esse bem educado.

    Ora, dessas trs educaes diferentes a da natureza no depende de ns; a das coisas s em certos pontos depende. A dos homens a nica de que somos realmente senhores e ainda assim s o somos por suposio, pois quem pode esperar dirigir inteiramente as palavras e as aes de todos os que cercam uma criana?

    Sendo portanto a educao uma arte, torna-se quase impossvel que alcance xito total, porquanto a ao necessria a esse xito no depende de ningum. Tudo o que se pode fazer, fora de cuidados, aproximar-se mais ou menos da meta, mas preciso sorte para atingi-la.

    Que meta ser essa? A prpria meta da natureza; isso acaba de ser provado. Dado que a ao das trs educaes necessria sua perfeio, para aquela sobre a qual nada podemos que cumpre orientar as duas outras. (Rousseau, 1995, p.9-11)

    2 Os excertos da obra pedaggica de Rousseau, aqui lembrados, so tambm citados por Gadotti (2004 )

    para apontar o genebrino como ... um grande observador da natureza e da natureza humana em particular. (p.20) O discpulo de Dewey e Paulo Freire, como se auto-denomina (p.23), utiliza-se da referncia dos trs mestres de Rousseau e comenta a boa gnese humana da qual Jean-Jacques Rousseau apologista: Para Rousseau, nascemos bons, mas nascemos fracos e precisamos da educao. A tarefa grande. Para nos educarmos, precisamos da concorrncia de trs mestres. So eles: a natureza humana, a sociedade e as coisas.Em outras palavras: precisamos de ns mesmos, do indivduo (autoformao), da espcie (heteroformao) e do meio ambiente (ecoformao. (p.21)

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    Embora venhamos considerando Emlio tambm uma obra poltico-pedaggica,

    tanto quanto o Do Contrato Social o , encontra-se nessa segunda a explicitao de um conceito caro teoria rousseauniana. Trata-se do conceito autoridade, recidivo no s em Rousseau, mas, tambm, em grande parte da tradio filosfica. Nas passagens de sua obra pedaggica citadas acima, esse conceito aparece subrepticiamente, respaldando

    tanto a figura do Autor das coisas como a natureza e suas metas ou a ao daquele que ouse engendrar a educao.

    Quanto origem da autoridade, a discusso aparece explcita no Contrato Social. Rousseau afirma: Visto que homem algum tem autoridade natural sobre seus

    semelhantes e que a fora no produz qualquer direito, s restam as convenes como base de toda a autoridade legtima existente entre os homens. (1983, p.26) Tomando como ponto de partida as idias apresentadas por Hugo Grotius na obra Direito da Paz e da Guerra, o genebrino pergunta: Se um particular (...) pode alienar sua liberdade e tornar-se escravo de um senhor, por que no o poderia fazer todo um povo e tornar-se sdito de um rei? (1983, p.26) A isso relacionada, Rousseau reflete a problemtica da liberdade, afirmando:

    Se quisermos saber no que consiste, precisamente, o maior de todos os bens, qual deva ser a finalidade de todos os sistemas de legislao, verificar-se- que se resume nestes dois objetivos principais: a liberdade e a igualdade. A liberdade, porque qualquer dependncia particular corresponde a outro tanto de fora tomada ao corpo do Estado, e a igualdade, porque a liberdade no pode subsistir sem ela. (1983, p.66).

    O indivduo livre enquanto o coletivo, organizado pelo bom governo, por todos respeitado. tanto mais livre quanto mais slida for a organizao social. Indagando-se a respeito da liberdade dos que se opem s leis no consentidas mas que

    a elas devem submeter-se, Rousseau afirma que a questo no est bem proposta:

    O cidado consente todas as leis, mesmo as aprovadas contra sua vontade e at aquelas que o punem quando ousa violar uma delas. A vontade constante de todos os membros do Estado a vontade geral: por ela que so cidados e livres. Quando se prope uma lei na assemblia do povo, o que se lhes pergunta no precisamente se aprovam ou rejeitam a proposta, mas se ela est3 ou no de acordo com a vontade geral que a deles. (1983, p.120-121).

    3 Aqui, a fim de garantir sentido na citao, optamos por corrigir um grave erro cometido pela tradutora

    de Rousseau, que inverte a lgica de pensamento do autor. No original, l-se: ... nest pas prcisment sils approuvent la proposition ou sils la rejettent, mais si elle est conforme ou non la volont gnrale ... (uvres III, p.441) Entretanto, a traduo dada como ... se esto ou no de acordo .... Ora, ademais do erro lgico, se Rousseau admitisse perguntar pela concordncia ou no dos cidados em

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    Rousseau previne: o poder soberano, por mais absoluto que seja, no pode ultrapassar os limites impostos pelas convenes gerais, estas, sim, soberanas em relao definio, colocando disposio de cada indivduo o direito de dispor de tudo quanto foi fixado por tais convenes, no nvel da propriedade ou da liberdade. A partir do contrato, h o processo em que cada indivduo aliena algo de si. o que Rousseau defende quando afirma que pelo pacto social, cada um aliena de seu poder, de seus bens e da prpria liberdade, convm-se em que representa to-s aquela parte de tudo isso cujo uso interessa comunidade. (1983, p.48) Cabe ao soberano o julgamento de tal importncia. Mesmo assim, garante que a natureza humana liberdade, o que implica que abdicar da liberdade abdicar da prpria qualidade de homem, dos direitos da humanidade e at dos prprios deveres.

    No h recompensa possvel para quem a tudo renuncia. Tal renncia no se compadece com a natureza do homem, e destituir-se voluntariamente de toda e qualquer liberdade equivale a excluir a moralidade de suas aes. Enfim, uma intil e contraditria conveno a que, de um lado, estipula uma autoridade absoluta, e, de outro, uma obedincia sem limites (1983, p.27).

    H em Rousseau uma intencionalidade educativa onde a relao entre liberdade e autoridade uma das tenses que ocorre, para recuperar o homem primitivo e natural e pens-lo em sua relao social. Da concepo de natureza humana exposta em sua exterioridade, Rousseau extrai o critrio de construo do essencial no humano: o que

    tem valor permanente e substantivo, que necessrio. principal pensar o humanismo para compreender a natureza humana. Os homens tm a comum vocao humanidade. Nesta perspectiva de formao e educao h um elemento que se destaca sem o que o homem perde a dimenso que o distingue: a liberdade, no ilimitada, mas regulada pela

    necessidade, por condies naturais e por obedincias sociais, estabelecidas por contrato. A tenso entre liberdade e autoridade pe o autor em situao paradoxal. o que defende Matos (1979) ao afirmar que ... Rousseau expressa claramente o paradoxo, presente no ideal educativo de humanidade livre e de liberdade situada,

    realizada concretamente ou condicionada no pacto social (p.73). nessa tenso que se coloca a atividade como princpio fundamental da sua pedagogia: a idia de aprendizagem associada experincia. Defendendo a tese da importncia da curiosidade do educando, o autor aposta no contato intenso com a natureza para que tal ocorra.

    relao vontade geral, estaria recaindo no mais crasso individualismo, estranho a seu pensamento. evidente, pois, que o genebrino no prope que tal se pergunte aos cidados, mas que a assemblia seja consultada quanto conformidade da lei com a vontade geral.

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    assim que a educao no ser instncia encarregada de preparar a criana apenas para o

    futuro, mas j para a prpria vida presente, pela construo de ambientes de liberdade, deixando ao educador o papel de acompanhante do educando, revelando explcita intencionalidade de formao humana. Assim, j no Prefcio do Emlio, Rousseau expe claramente sua posio.

    No se conhece a infncia: com as falsas idias que dela temos, quanto mais longe vamos mais nos extraviamos. Os mais sbios apegam-se ao que importa que saibam os homens, sem considerar que as crianas se acham em estado de aprender. Eles procuram sempre o homem na criana, sem pensar no que esta , antes de ser homem. (1995, p.6)

    O genebrino avana em sua concepo de liberdade e autoridade, agregando sua preocupao com a autonomia, ao afirmar: O nico indivduo que faz o que quer aquele que no tem necessidade, para faz-lo, de pr os braos de outro na ponta dos seus ... (Rousseau, 1995, p.67) Com esta afirmao, pretende enfatizar a prevalncia da liberdade sobre a autoridade. E acrescenta: O homem realmente livre s quer o que pode e faz o que lhe apraz. Eis minha mxima fundamental. (1995, p.67) Reconhece a liberdade limitada a que submetida a criana desde o incio de sua vida, o que o leva a defender a tese da no imposio ou interferncia na infncia. Reconhecendo em Rousseau perspectivas de formao atrelada s leis da natureza, fundamental destacar que o autor prope liberdade com regramento. Tecendo crtica aos modelos

    institucionalizados de formao, afirma: Experimentaram todos os instrumentos, menos um, o nico precisamente que pode dar resultado: a liberdade bem regrada. Ningum deve meter-se a educar uma criana se no souber conduzi-la ... (1995, p.77). O principal educar para a liberdade e no para a domesticao, incutindo foras e no hbitos de sujeio, respeitando a originalidade das pessoas. O respeito individualidade de cada educando, pela observncia s leis da natureza, princpio para pensar a educao, que deve ser realizada em funo do desenvolvimento, aptides e interesses da criana. O educador deve saber acompanhar o desenvolvimento da criana

    realizando intervenes apenas quando necessrio, respeitando o seu desenvolvimento natural, o que permite afirmar que a obra pedaggica de Rousseau a primeira grande tentativa de oposio pedagogia essencialista e elaborao de elementos da pedagogia da existncia. Preparar a criana para o futuro no deve ser objetivo primordial da educao, mas esta deve constituir-se na prpria vida da criana.

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    Em suma, tambm est presente nos textos de Rousseau o tema histrico da

    relao entre liberdade e autoridade, a partir de sua concepo de natureza e da necessria organizao dos homens em sociedade, em compulsria convivncia livre limitada, o que o leva a no descartar completamente a severidade educativa. Se existe uma ocasio em que a severidade necessria em relao s crianas, no caso em

    que os bons costumes so atacados, ou quando se trata de corrigir os maus. (1994, p.57). Particularmente influente na obra freiriana, Rousseau indica caminhos para dar organicidade vida humana, bastante atnita no tempo em que escreveu suas reflexes. Falamos da obra de Rousseau influente nos estudos freirianos porque a articulao entre liberdade e autoridade em ambos explcita. A autoridade epistmica e moral que aparece tematizada em Rousseau, fundamentalmente baseada na experincia e no respeito s competncias que o homem capaz de descobrir, est presente na proposta de construo do conhecimento e da moralidade em Freire, e isso possibilita

    aproximaes. Leituras banalizadas tomam de Rousseau a idia de que a liberdade incompatvel com a autoridade. Rousseau, lido a partir de sua base filosfica, busca preservar a liberdade atravs da autoridade da vontade geral. O contrato social no fruto de uma suposta essncia natural, sequer das vontades individuais postas de

    acordo, mas da vontade geral, substrato comum de homens livres. A autoridade, no tirnica, surge e tem sentido to-s para garantir o cumprimento do acordado sob a soberania da vontade geral.

    Referncias

    GADOTTI, Moacir. Os mestres de Rousseau. So Paulo: Cortez, 2004. KANT, Immanuel. Idia de uma histria universal com um propsito cosmopolita. In: A

    paz perptua e outros opsculos. Lisboa: Edies 70, 1990. p.21-37. (Textos Filosficos; 18)

    MANENT, Pierre. Histria intelectual do liberalismo: dez lies. Rio de Janeiro: Imago, 1990. (Tempo e Saber)

    MATOS, Rosa Maria Martini de. Reflexes sobre o princpio da educao negativa em Rousseau. Cadernos da UCS. Rousseau - ensaios. Caxias, UCS, 1979.

    ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ; Ensaio sobre a origem das lnguas ; Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens ;

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    Discurso sobre as cincias e as artes. 3. ed. So Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores)

    ________. Emlio ou Da educao. 3.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. ________. Projeto para a educao do Senhor de Sainte-Marie. Porto Alegre: Editora

    Paraula, 1994. ________. uvres Compltes. V. III. Paris: Gallimard, 1964. (Bibliothque de la

    Pliade)