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1 Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Psicologia Departamento de Teoria Psicanalítica Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica Curso de Mestrado Saber e psicose: a instituição como campo do Outro Andréia da Silva Stenner Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica. Orientadora: Prof ª Ana Cristina Costa de Figueiredo Rio de Janeiro Fevereiro, 2004

Saber e psicose: a instituição como campo do Outrolivros01.livrosgratis.com.br/cp083179.pdf · Alguns críticos tendem a ser refratários à psicanálise por equivalerem-na aos

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Psicologia

Departamento de Teoria Psicanaltica

Programa de Ps-graduao em Teoria Psicanaltica

Curso de Mestrado

Saber e psicose: a instituio como campo do Outro

Andria da Silva Stenner

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de ps-graduao em Teoria Psicanaltica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Teoria Psicanaltica.

Orientadora: Prof Ana Cristina Costa de Figueiredo

Rio de Janeiro Fevereiro, 2004

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Saber e psicose: a instituio como campo do Outro

Andria da Silva Stenner

Orientadora: Prof Ana Cristina Costa de Figueiredo

Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de ps-graduao em Teoria Psicanaltica da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Teoria Psicanaltica. Aprovada por: _________________________________________________ Prof Orientadora Dr Ana Cristina Costa de Figueiredo Universidade Federal do Rio de Janeiro _________________________________________________ Prof Dr Ana Carolina Lo Bianco Clementino Universidade Federal do Rio de Janeiro _________________________________________________ Prof Dr Maria Tavares Cavalcanti Universidade Federal do Rio de Janeiro(IPUB)

Rio de Janeiro Fevereiro, 2004

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STENNER, Andria da Silva. Saber e psicose: a instituio como campo do Outro/ Andria da Silva

Stenner.- Rio de Janeiro: UFRJ/ CFCH,I.P.,Teoria Psicanaltica, 2004.

x,120f.:il.

Orientadora:Prof Ana Cristina Costa de

Figueiredo.Dissertao(mestrado)-UFRJ/ CFCH/ Programa de Ps-

graduao em Teoria Psicanaltica,2004.

Referncias Bibliogrficas: f.114-120.

1.Psicanlise 2.Psicose 3.psiquiatria 4.instituio

I. FIGUEIREDO, Ana Cristina Costa de. II.UFRJ, CFCH,

Teoria Psicanaltica

III. Ttulo.

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AGRADECIMENTOS

A Ana Cristina Costa de Figueiredo pela orientao cuidadosa e por partilhar de sua

ateno e rigor mesmo em momentos difceis.

Ao Programa de Ps-graduao em Teoria Psicanaltica por ter contribudo em meu

percurso terico.

A Capes, pelo apoio que tornou vivel minha pesquisa.

Aos professores e psicanalistas que instigaram meu desejo pela psicanlise.

A minha anlise e aos meus pacientes, cujo o exerccio da clnica me permitiu avanar.

Ao CAPS CASAVIVA-MG onde pude iniciar meu trabalho com a psicose.

Aos colegas do CAPS Santos Dumont MG e aos colegas que, ao longo do caminho,

colocaram-se eticamente diante da clnica.

Aos meus amigos, especialmente, Rosa Simes e Andra Guerra pelo incentivo.

Ao meu amigo, jornalista Cludio Pfano, por sua reviso do texto.

A minha me, cuja ausncia deixou como herana a coragem e a persistncia.

A minha famlia, pelo apoio e assistncia.

Aos meus sobrinhos Caio, Vitor e Elisa, meus amores.

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No entender era to vasto que ultrapassava

qualquer entender entender era sempre limitado. Mas

no entender no tinha fronteiras e levava ao infinito,

ao Deus. No era um no-entender como um simples de

esprito. Era uma beno estranha como a de ter

loucura sem ser doida.Era um desinteresse manso em

relao s coisas ditas do intelecto, uma doura de

estupidez.

Mas de vez em quando vinha a inquietao

insuportvel: queria entender o bastante para pelo

menos ter mais conscincia daquilo que ela no

entendia. Embora no fundo no quisesse compreender.

Sabia que aquilo era impossvel e todas as vezes que

pensara que se compreendera era por ter compreendido

errado. Compreender era sempre um erro preferia a

largueza to ampla e livre e sem erros que era no-

entender. Era ruim, mas pelo menos se sabia que se

estava em plena condio humana.

Clarice Lispector

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RESUMO

Saber e psicose: a instituio como campo do Outro

Andria da Silva Stenner

Orientadora: Prof Ana Cristina Costa de Figueiredo

Resumo da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de ps-graduao em Teoria

Psicanaltica da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos

necessrios obteno do ttulo de Mestre em Teoria Psicanaltica.

O presente trabalho tem o objetivo de mostrar a relao entre saber, psicose e

instituio a fim de discutir a funo da instituio como campo do Outro na psicose, numa

prtica feita por muitos.

Primeiramente, interrogaremos a constituio do saber na psiquiatria e na

psicanlise com a inteno de cernir o saber que funda a instituio para tratar a psicose.

Utilizaremos o conceito de elaborao -a durcharbeitung - em Freud e Lacan a fim de

pensar o saber como uma construo do tratamento e que pressupe a reflexo do lugar do

Outro.

Em seguida, trabalharemos para responder a particularidade da relao do sujeito e

do Outro em seus efeitos na parania, na melancolia e na esquizofrenia.

E, finalmente, utilizaremos a noo do tempo lgico de Lacan - o instante de ver,

o tempo de compreender e o momento de concluir para trabalhar a temporalidade na

clnica como campo do Outro, a partir de alguns casos clnicos acompanhados em um

servio de sade mental.

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Rio de Janeiro

Fevereiro, 2004

RESUM

Savoir et psychose: la institution comme champ de lAutre

Andria da Silva Stenner

Directrice de Thse: Prof Ana Cristina Costa de Figueiredo

Resume du Mmoire de Matrise em Thorie Psychanalytique presente lInstitut de

Psycologie de lUniversit Federal de Rio de Janeiro UFRJ, exig pour lobtention du

titre de Matre em Thorie Psychanalitique.

Le prsent travail a lobjectif de montrer la relation entre savoir, psychose et

institution afin de discuter la fonction de linstitution comme champ de lAutre dans la

psychose dans une pratique plusieurs.

Dabord, on va mettre en question la constitution du savoir dans la psychiatrie et

dans la psychanalyse avec lintention de cerner le savoir que fonde l`institution pour traiter

la psychose . On va utiliser la conception de lelaboration - la durcharbeiten - en Freud et

en Lacan afin de penser le savoir en tant que construction du traitement ce que prsuppose

la reflexion du lieu de l`Autre.

Ensuite, on va travailler pour rpondre la particularit de la relation du sujet et de

lAutre dans ses effets sur la paranoa, la mlancolie et la schizophrnie.

Finalement, on va utiliser la notion du temps logique de Lacan linstant de voir,

le temp de comprendre et le moment de conclure pour travailler la temporalit dans la

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clinique dans le champ de lAutre, partir de quelques cas cliniques acompagns dans un

service de sant mental.

Rio de Janeiro

Fvrier,2004

Saber e psicose: a instituio como campo do Outro

SUMRIO

I. INTRODUO...........................................................................................................9

II. DA PSIQUIATRIA PSICANLISE: SABER E INSTITUIO.........................14

2.1 - Breve percurso histrico da psiquiatria...................................................................16

2.2.- Saber e psiquiatria..................................................................................................23

2.3 - Saber e psicanlise.................................................................................................29

2.4- Saber e psicose.........................................................................................................38

III. O DISCURSO DO OUTRO......................................................................................42

3.1- Outro: o antecendente lgico do sujeito...................................................................45

3.2 Do Outro ao sujeito: a identificao.......................................................................57

3.3- A incidncia do Outro na psicose.............................................................................63

3. 4- Os efeitos do Outro na parania, esquizofrenia e melancolia.................................73

IV. PARA QUE SERVE A INSTITUIO NA PSICOSE?..........................................83

4.1 -A instituio e a prtica de muitos...........................................................................88

4.2-A funo do secretrio ou testemunha......................................................................95

4.3-Do caso social para o caso clnico: a construo do caso e os trs tempos lgicos da

instituio......................................................................................................................103

9

V. CONCLUSO.........................................................................................................111

VI. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..................................................................114

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I. INTRODUO Neste trabalho, reunimos saber, psicose e instituio para pensarmos a

estruturao da psicose no campo do Outro tal como a psicanlise o concebe. Trata-se de

um percurso necessrio para tentarmos descobrir a funo da instituio na psicose.

tambm a busca de uma construo de saber que inclui o sujeito psictico. Mais ainda,

uma tentativa de dar uma resposta tica para a segregao historicamente sofrida pela

loucura em nome de um saber que, sob o pretexto de estud-la, a excluiu e encarcerou.

O que essa dissertao nos traz, a princpio, perpassando pela histria da

psiquiatria, o estatuto do saber na psicose. Saber esse resgatado pela incidncia da

psicanlise como episteme fundamental na constituio das instituies de sade mental.

A psicanlise no nem uma weltanschauung nem uma filosofia que pretende dar a chave do universo. Ela comandada por uma visada particular que historicamente definida pela elaborao da noo de sujeito. Ela coloca esta noo de maneira nova, reconduzindo o sujeito sua dependncia significante.(LACAN ,1964,p. 78).

As perguntas que trazem os matizes dessa dissertao so o resultado de nossa

experincia de oito anos de trabalho em instituies de sade mental, nas diversas

modalidades que as novas formas de tratar a loucura oferecem: reunies, oficinas, passeios,

atendimentos domiciliares, individuais, grupos de famlia, etc.

Dessa forma, quando trabalhamos em instituio, somos convocados a todo

instante a ter um saber sobre o paciente, um diagnstico, um prognstico, um projeto, uma

resposta sobre o que fazer com as demandas que partem, em sua maioria, de outros e que

so sempre de uma urgncia para alm da prpria urgncia do sujeito psictico em questo.

a clnica da psicose que nos convida a no recuar. Por isso, quando pensamos

em um tratamento dentro de uma instituio onde uma equipe interdisciplinar acompanha e

decide a direo do caso, necessrio nos perguntar qual o saber est em jogo na

instituio.

Cabe aqui esclarecer que existem vrios saberes que compartilham do campo da

sade mental, mas no foram objeto de nosso estudo nem de nossa pesquisa por

encontrarmos na psicanlise e na psiquiatria elementos fundamentais para se pensar uma

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clnica institucional com a psicose. Dessa forma, faz-se necessrio elucidarmos o percurso

terico desenvolvido em nosso trabalho.

Em nosso primeiro captulo iremos pensar a relao da psiquiatria e da

psicanlise com o saber. A psiquiatria , como veremos, o saber que funda a instituio

para a loucura. Quanto psicanlise, claro que, no podemos afirmar que todos os

servios possuam psicanalistas ou que nessas instituies de sade mental se exera a

psicanlise, mas os efeitos de seu discurso so sentidos pela forma como a clnica, na

reforma psiquitrica, ressurge para escutar o sujeito psictico.

Como dissemos anteriormente, no foi objeto de nosso trabalho uma pesquisa

de campo sobre isso. Marcadamente, a experincia que delimita a nossa escrita est restrita

ao trabalho de Minas Gerais que sofre uma grande influncia do movimento lacaniano.

Alguns crticos tendem a ser refratrios psicanlise por equivalerem-na aos

saberes que normatizam e disciplinam a subjetividade da loucura, submetendo a loucura

sua interpretao. So as teorias sociais que tratam a psicose e sua excluso como uma

questo histrica e poltica de segregao. No estaremos analisando esse vis terico,

contudo, ao cernirmos a incidncia da psicanlise na instituio, estaremos respondendo de

forma precisa a essas afirmaes. Trata-se de dizer que a psicanlise no reduz o psictico a

um objeto e, mais ainda, quando introduz o delrio como uma tentativa de cura, sustenta, na

fala do psictico, um saber que deva ser escutado.

Por isso, nos colocamos diante de uma pergunta fundamental: qual o estatuto

do saber para a psicanlise? Assim, retomaremos o conceito de elaborao -a

durcharbeitung - em Freud e o tempo de compreender em Lacan para pensarmos o saber

como uma construo do tratamento e que pressupe pensar o lugar do Outro. Se o saber

suposto ao inconsciente e se o inconsciente o discurso do Outro, de que Outro se trata

na psicose, qual o saber que est em jogo e mais, se o sujeito advm no lugar do Outro,

que sujeito esse na psicose?

Essa questo nortear nosso segundo captulo. Assim, tomaremos a noo de

Outro na obra lacaniana abordando suas concepes at O seminrio, livro 11(1964),

conforme suas descries nos esquemas L, R e I e o matema S(A) retirado do Grafo do

Desejo(1960). Caminharemos, tal qual um percurso analtico, do Outro(A) em sua

consistncia at sua inconsistncia para todo ser falante.

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Acreditamos que esse percurso d a flexibilidade e o rigor terico ao Lacan dos

anos 50 e ao Lacan aps a conceituao de objeto a. O que nos possibilita sustentar o

sujeito da psicose no como um deficitrio ou simplesmente reduzir a psicose ausncia ou

presena do significante Nome-do-Pai. Obviamente, no temos a pretenso terica de ir

at o ltimo ensino de Lacan. Contudo, a partir do matema de S(A) e do tratamento que

demos s noes e conceitos nesse momento da obra lacaniana conseguimos um marco

terico-clnico para fundamentar uma prtica clnica com psicticos.

Ao final desse captulo, a estrutura psictica foi estabelecida em seus efeitos em

sua relao ao campo do Outro nas formas clnicas da melancolia, esquizofrenia e parania.

Obviamente, no pretendemos abarcar toda a conceituao sobre esses tipos clnicos em

Freud e em Lacan. Tambm o autismo no foi objeto de nosso estudo por no termos casos

de autismo em nossa experincia clnica institucional.

Em nosso ltimo captulo, lanamos uma pergunta que consideramos o cerne de

nossa dissertao e que nos fez enveredar por todo esse caminho de pesquisa. A pergunta

refere-se sobre a funo da instituio para a psicose. Retomaremos um momento

importante de construo conceitual da psicanlise na instituio com a noo de

Coletivo de Jean Oury(1976). Esse Coletivo diferencia-se da coletividade institucional

que tende ao universal. Trabalharemos com os significantes da sade mental e da

psicanlise para pensar a incluso do sujeito em uma dimenso particular na

homogeneidade da instituio. A posio do analista na instituio tambm ser abordada

na funo, denominada por Lacan(1955-56), de secretrio do alienado, bem como o lugar

que a prtica psicanaltica demarca na sade mental.

E, finalmente, nos deteremos na experincia que tem influenciado nossas

prticas no Brasil, nomeada como pratique plusieurs . Prticas que surgem como um

modo de tratar a psicose a partir do campo do Outro. Alguns fragmentos de casos clnicos

de uma instituio ilustram a articulao entre o nosso percurso terico e a clnica.

O Centro de Ateno Psicossocial (CAPS) CASAVIVA-MG foi onde tivemos

nosso primeiro contato com a psicose a cu aberto. Fazemos a ressalva de esclarecer que

no iremos tomar o caso em toda a sua propriedade, mas tomar seus fragmentos como

significantes que representam a discusso por ns estabelecida nesse trabalho.

Ao apresentarmos os casos clnicos, mais uma vez a psicanlise foi a baliza

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fundamental, ao utilizarmos os trs tempos lgicos de Lacan(1945) para dimensionar a

temporalidade na psicose e na instituio. O que tentaremos responder que a instituio

serve psicose na medida em que promove uma escanso no curto-circuito do

descarrilhamento estrutural desses sujeitos.

O instante de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir

promovem efeitos no campo do sujeito e do Outro. Para a instituio, operam pela via da

construo do caso clnico e para o sujeito, como possibilidade de inscrio em um Outro

menos invasivo e mais acolhedor. Essas intervenes e seus efeitos atuam como ponto de

basta e retroagem abrindo novos tempos lgicos no cotidiano da instituio, ou seja, na

relao do sujeito com o Outro.

Gostaramos ainda de esclarecer que alm de Oury, mencionamos outros

importantes autores que contriburam para o desvendamento dos textos, freudianos e

lacanianos, e acrescentaram importantes reflexes acerca do tema.

Alguns autores so frutos do encontro de nossa prtica com a teoria.Por

exemplo, os apontamentos da dissertao de Maria Tavares Cavalcanti trouxeram

importantes diretrizes na constituio de uma clnica com a psicose, iniciada no CAPS em

1995.Outros autores se fizeram presentes em nossa prtica, pela via da superviso clnica,

como Eduardo Rocha. E, finalmente, autores, como Charles Melman, que nos foram

apresentados em nossos seminrios do mestrado no Programa de Teoria Psicanaltica da

UFRJ, trazendo importante contribuio a respeito do saber, enriquecendo a discusso aqui

elaborada.

Sem dvida, esses autores e trabalhadores da clnica com a psicose demarcaram

um olhar sobre nossa prtica clnica, possibilitando encontrar algumas respostas para a

construo, sempre faltosa, e, por isso, desejante dessa dissertao.

Nesse sentido, lemos, certa vez, que a prtica em sade mental era uma prtica

espera de uma teoria. Ou como nos disse Cavalcanti(1992), uma teoria construda no

cotidiano de uma prtica. Como uma psicanalista que trabalha com a sade mental ficou a

responsabilidade de construir um saber sobre o que testemunhei no trabalho institucional.

Em Televiso, Lacan nos diz que uma prtica no precisa ser esclarecida para

operar(LACAN,1974,p.20). Contudo, a partir das construes tericas que buscamos

avanar nos impasses clnicos com a psicose. O que nos convoca a tentarmos contribuir de

14

alguma forma para se fazer pensar o trabalho da psicanlise numa prtica feita por muitos.

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II.DA PSIQUIATRIA PSICANLISE: SABER E INSTITUIO

A construo do conceito da loucura traz, historicamente, a construo de um

campo de saber - a psiquiatria - e a instaurao de um modelo institucional de excluso que

ser marcado por uma ruptura entre razo e desrazo e posteriormente uma aliana entre a

assistncia e a segurana, entre a alienao e o cuidado.

Com um breve percurso histrico, discutiremos como o saber sobre a loucura

foi constitudo, dando origem a uma concepo de tratamento que trouxe o surgimento de

um modelo clnico sob a tica da patologia mental. E, fundamentalmente, que a

demarcao de um saber sobre a loucura trouxe o surgimento da Psiquiatria. J a

Psicanlise, desvendando o psiquismo na descoberta das formaes freudianas do

inconsciente, constri um saber que, posteriormente, tambm ir intervir no modelo

institucional do tratamento da loucura.

Na chamada Idade Clssica, sculos XVII e XVIII, segundo Foucault (1978, p.

78), a interveno e constituio do campo da loucura fez-se a partir do confinamento, da

excluso, da observao para tratar e classificar os doentes mentais. No sculo XX, o

asilamento posto em questo, bem como as formas criadas em seus muros, e com isso,

uma poltica ampla prope a rediscusso do manicmio como nica forma de tratamento:

a chamada Reforma Psiquitrica.

Da origem da psiquiatria psiquiatria reformada, da concepo original de

doena mental para a atual noo de sade mental, do alienado manicomial ao usurio dos

servios de sade mental na atualidade, vrias concepes e modelos institucionais surgem

com o propsito de dar conta dos fenmenos da loucura.

Em nossa realidade, a Reforma Psiquitrica Brasileira traz como efeito, dentre

outros, a marca dos dois campos de saberes: Psiquiatria e Psicanlise, a partir dos quais as

intervenes teraputicas e sociais iro se constituir tendo conseqncias numa clnica que

se prope a tecer um saber sobre a loucura. Clnica que envolve a Psiquiatria e a Psicanlise

de forma diferente.

Da doena mental pineliana para a sade mental da Organizao Mundial de

Sade (OMS), o que nos interessa neste recorte o lugar que a Psicanlise e a Psiquiatria

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ocupam como construo de saber e mtodo de tratamento. Nesse sentido, comearmos por

Pinel fundamental. Sobre ele, ao desacorrentar os loucos, nos diz Serpa (1996, p. 18) (...)

como um primeiro momento, uma fundao sobre a qual vai ser erigida a primeira morada -

o asilo - de um novo saber - a psiquiatria.

Ao inaugurar o asilo, Pinel cria no s um espao de excluso, como disse

Foucault, mas tambm institui uma teraputica. Mais do que isso, ao colocar a possibilidade

de cura, com seu tratamento moral, ele aposta que h algo no louco alm de sua prpria

loucura, ou seja, um sujeito - na acepo que lhe prpria, ou seja, no restinho de razo.

na base da noo pineliana que o saber da psiquiatria e o da psicanlise retornam ento para

uma demarcao conceitual. E algumas interrogaes delimitam essa investigao. De que

forma a clnica psiquitrica e a clnica psicanaltica partilham um saber sobre a loucura?

Qual o estatuto discursivo da loucura para a psiquiatria e para a psicanlise principalmente

no que tange a sua relao com o saber? possvel falar de uma conjuno entre estes dois

campos de saberes?

Para tentar responder a essas questes percorreremos algumas definies

histrico-conceituais da psiquiatria enquanto um campo de saber, em seu surgimento,

especificamente com Pinel, que como se pde constatar permite que o louco emerja como

um sujeito em seu resto de razo.

J, num segundo momento, com a reforma psiquitrica, verificaremos que essa

aposta refeita pelos psiquiatras neopinelianos. Partiremos dos modelos internacionais

para retratar sua influncia na reforma brasileira. E, finalmente, introduziremos o estatuto

do saber na psicanlise para tentar apreender qual o estatuto do saber na psicose.

17

2.1- Breve percurso histrico da psiquiatria

Historicamente, a loucura s se torna objeto de estudos e prticas no final da

Idade Mdia. A lei, a religio e a medicina iro tecer sua prpria interpretao do louco que

no tem qualquer participao no que lhe acontece. A lei desqualifica-o, a religio afasta-o

de si mesmo e do outro e o condena com a mistificao das figuras demonacas atravs da

chamada possesso. O que se tem em comum que o discurso do louco silenciado.

Desde a medicina hipocrtica, passando pela galnica, que atravessou o perodo medieval, o renascimento e chegou ao limiar do sculo XVIII como um importante paradigma na medicina, um conhecimento sobre a loucura, suas causas, manifestaes e tratamento, j era formulado. Evidentemente, nos termos prprios daqueles discursos mdicos. (SERPA, 1996, p. 18).

Michel Foucault, ao propor a investigao dos discursos (como eles se formam,

porque aparecem e desaparecem) cita como inerente ao discurso, trs procedimentos:

excluso, controle e delimitao. O primeiro a interdio ou a palavra proibida, ou seja,

no se pode tudo dizer, nem em qualquer lugar, nem por qualquer um. A terceira categoria,

a delimitao, consiste na oposio entre verdadeiro e falso, contida na vontade de verdade.

Interessa-nos, a segunda categoria, o controle, definido como separao ou rejeio. Esse

mecanismo refere-se segregao da loucura, ou seja, da palavra do louco. O louco

aquele cujo discurso no pode circular como o dos outros.(FOUCAULT, 1996, p. 10).

Com o advento do discurso da razo, a experincia trgica da loucura agora

equivale a desrazo e passa a ser objeto de estudo e de prticas segregativas, mais

marcadamente pela via da excluso do que do tratamento. Se na Idade Mdia, o louco

circulava no social, fazendo parte do cenrio e da linguagem a partir do sculo XVII,

chamado perodo da Grande Internao, que os loucos, juntamente com os criminosos,

prostitutas, sifilticos, desocupados, enfim, os sem-razo sero excludos (FOUCAULT,

1975, p. 78).

A sociedade nessa poca passa a ser estruturada sob a gide do regime burgus,

semente do capitalismo e que ir propagar a produo, a circulao, a acumulao de

riquezas e, principalmente, a capacidade de trabalho como condio de adaptao e de

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garantia de estar no social. somente a partir do final do sculo XVIII, com Pinel, que o

olhar sobre a loucura comea a se delimitar. Excluso, controle e delimitao passam a

construir, de fato, um discurso sobre o louco. A loucura inspira cuidados mais especficos e

passa a ser reconhecida como diferena e, na medida em que se ope ordem da razo,

vista como doena.

Com Pinel, o controle social e moral passa a ser o tratamento conferido ao

louco. No sculo XIX, o esboo de um tratamento e de uma classificao sobre a loucura

comea a se delinear. Nesse momento, nasce uma prtica que constri o saber psiquitrico.

Para Amarante:

A obra de Pinel - cujos pilares esto representados pela constituio da primeira nosografia, pela organizao do espao asilar pela imposio de uma relao teraputica - representa o primeiro e mais importante passo histrico para a medicalizao do hospital, transformando-o em instituio mdica (e no mais social e filantrpica), e para a apropriao da loucura pelo discurso e prtica mdicas.(AMARANTE, 1995, p. 27).

Por outro lado, no espao asilar que segrega de onde surgiro algumas

prticas que vo tentar organizar uma teraputica assistencial ao chamado doente mental.

Cavalcanti (1996, p. 49), ao reler Pinel, em autores como Foucault e Swain, traz

duas vertentes importantes para pensar a estrutura institucional que cerca a loucura. Trata-

se de uma forma mais complexa do que uma viso ingnua ou maniquesta que um olhar

superficial possa nos oferecer. Por exemplo, em Foucault, encontramos a excluso e a

segregao como funo primordial de nascimento e de recurso de tratamento da loucura.

J, em Swain, vemos a possibilidade de interveno teraputica que s a partir da

interveno de Pinel foi possvel ocorrer.

De um lado, Foucault traz um Pinel acorrentando loucura, mas Swain traz, em

Pinel, a idia de cura, o que possibilita pensar que h um sujeito, nesse pouco de razo da

loucura.

O fundamental da ruptura pineliana a revelao de que a loucura deve ser concebida a partir de sua abertura possibilidade de uma tomada teraputica, deixando de ser um universo fechado sobre si mesmo e totalmente inacessvel. Deixa de fazer sentido a separao entre loucura curvel e incurvel, toda loucura merecendo um

19

cuidado teraputico e uma continuidade de ateno mdica, independentemente do tempo de durao da doena, pois este sempre indecidvel e individual.(CAVALCANTI, 1996, p. 49).

Portanto, a herana pineliana descortina um novo horizonte para a psiquiatria

ao se consolidar como um saber e uma prtica institucional que produz e reproduz cuidados

e modalidades teraputicas.

O sculo XX traz toda uma poltica de assistncia loucura calcada

basicamente no asilamento. O que a preocupao teraputica em relao aos loucos revelou

foi, ao mesmo tempo, uma manifestao de intolerncia social loucura.

Por um lado, h toda uma estruturao da prtica asilar em conjunto com a

constituio de uma teoria e o prprio desenvolvimento da farmacologia e, por outro, a

critica a esse modelo comeou a propor uma nova organizao psiquitrica.

O movimento da reforma ir rediscutir inteiramente o funcionamento do

manicmio, bem como, propor outros modelos de interveno e tratamento da loucura,

agora, denominada doena mental.

Movimentos no interior do hospcio como as Comunidades Teraputicas na

Inglaterra e nos EUA e a Psicoterapia Institucional na Frana, e, fora do hospcio, como a

Psiquiatria Democrtica Italiana, a Psiquiatria de Setor Francesa sero a tnica dos embates

tcnicos, tericos e polticos aps a 2 Grande Guerra. necessrio frisar que no se trata

aqui de detalhar historicamente cada modelo, mas t-los como referncia para explicar os

fundamentos dos saberes em questo.

Portanto, temos as reformas restritas ao mbito do hospcio: Comunidades

Teraputicas e Psicoterapia Institucional; as que propunham abrang-lo, como a Psiquiatria

de Setor e a Psiquiatria Preventivista . E, por ltimo, aquelas que questionam o asilo como

dispositivo de tratamento: a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democrtica Italiana.

Nesse percurso de institucionalizao da loucura, a psicanlise ter sua

influencia. As comunidades teraputicas surgem nessa perspectiva, com a idia de tratar os

grupos de pacientes como um nico organismo psicolgico (grupos operativos, de

atividades etc.) onde a funo teraputica seria uma tarefa no apenas dos tcnicos, mas

dos prprios internos, dos familiares e da comunidade. Uma chamada teraputica ativa

ir cercar a loucura com nfase na reabilitao pela via do trabalho e de criao de uma

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microssociedade.

A psicanlise tambm marcar o campo da psiquiatria francesa.A Psicoterapia

Institucional Francesa surge tambm dentro do asilamento, tendo, como princpio, o resgate

do potencial teraputico do hospital psiquitrico, sofrendo forte influncia da psicanlise.

Surge, como inovao, por considerar a prpria instituio psiquitrica como uma instncia

a ser tratada.

Franois Tosquelles, Hermann Simon, Gisela Pankow e a psicanlise lacaniana

contriburam para que Oury pudesse criar as bases de sua teoria aplicada ao tratamento dos

psicticos na instituio, incluindo vrios lugares estruturados para criar possibilidades e

ofertas teraputicas diversas. Criando, no Hospital, um tecido institucional que pudessse

acolher queles que possuam um defeito no acolhimento e, ao mesmo tempo, interferir no

ambiente iatrognico do Hospital.

Assim, muitos dos sintomas que os pacientes institucionalizados apresentam, tais como a agitao e a deteriorao(cronificao) so, na verdade, conseqncias iatrogncias do meio segregativo e pouco estimulante em que eles se encontram.A primeira coisa a fazer, e vimos que Esquirol j preconizava esta atitude, tratar o hospital para que ele se torne, pelo menos potencialmente, teraputico. (CAVALCANTI, 1992, P.206).

Fora do manicmio, a psiquiatria preventiva dos EUA e a psiquiatria de setor

francesa elegem o modelo da sade mental calcado no discurso de que o paciente ser

tratado dentro do seu meio social e a passagem pelo hospital ser uma etapa transitria.

Ambas, sustentadas na lgica da reduo dos custos com internao e na inadequao do

hospital para responder complexidade das doenas mentais. Enquanto estratgias

polticas, as duas correntes estavam embasadas em pressupostos tericos que usavam da

abordagem social e tambm da psicologia e da psicanlise, como saberes principais.

J a antipsiquiatria inglesa e a psiquiatria democrtica italiana iro propor a

desconstruo dos modelos existentes e a inveno de novos. Fundada na crtica de que

essas experincias teraputicas no tocam no problema da excluso e da prpria concepo

da loucura, a antipsiquiatria radicaliza ainda mais quando prope a ruptura com o

saber/poder mdico e promove uma poltica que pretende libertar a loucura, onde o louco

visto como uma vtima da ordem pblica e da alienao social.

Dessa forma, o manicmio se caracterizaria como a metfora moderna da

21

excluso na relao com a diferena.

Os italianos postulavam um processo em que a loucura pudesse ser redimensionada no para fazer sua apologia, mas para criar condies que permitissem que esse momento de sofrimento existencial e social se modificasse(BARROS, 1990, p. 50).

O Ps-guerra j se mostrava frutfero em seus questionamentos do tratamento e

da constituio de uma forma nova de saber sobre a doena mental em toda a Europa e

Estados Unidos. J o Brasil estava muito mais sob o efeito da prtica do incio do sculo,

salvo algumas excees isoladas. Isso porque, a loucura j nasce em nosso pas asilada. Os

grandes hospcios so criados a partir da vinda da famlia real e iro se proliferar e se

consolidar a partir da dcada de 60, quando esse setor privatizado pelo governo e percebe-

se que a loucura lucrativa.

Nessa mesma poca, surgem tambm as comunidades teraputicas no Brasil que

procuram ser uma resposta ao problema do manicmio, ao tentar resolver o problema da

liberdade dentro do hospcio e, onde o psicanalista torna-se um certo modelo identificatrio

para os outros membros da comunidade teraputica. Dessa forma, a psicanlise se faz

presente no Brasil principalmente inspirada em Anna Freud e Melanie Klein.

Tratava-se, nessa poca, de aplicar os procedimentos psicanalticos ao funcionamento da prpria instituio, numa espcie de psicanlise partout, em que o psicanalista seria o pice da pirmide(FIGUEIREDO, 2001, p. 94).

As comunidades teraputicas tiveram o mrito de introduzir uma escuta clnica

a partir da psicanlise e tambm de problematizar (...)a questo da cidadania do doente

mental em um momento em que esse conceito sequer estava em

pauta(TEIXEIRA,1993,p.269). Contudo, somente a partir de 1987, com o Movimento

dos Trabalhadores da Sade Mental, que as idias da reforma psiquitrica ganharam

contorno e fora no pas.

Anteriormente ao processo da reforma, todo o campo do saber psiquitrico j

estava edificado em bases notoriamente conhecidas por suas funes de normativizao e

manuteno da ordem social estabelecida. Condio sob a qual se fundou o processo de

excluso da participao social do louco na vida pblica.

22

A introduo das chamadas atividades teraputicas, principalmente, por uma

tentativa de reforma institucional -comunidades teraputicas, por exemplo - tinham, como

ponto em comum - independente de sua concepo terica - a tentativa da recuperao do

doente mental, em sua capacidade de adaptao.

A introduo da reforma para a sociedade mais ampla ter a sustentao da

psiquiatria comunitria e ir introduzir as noes de comunidade e sade mental. O

tratamento continuar atrelado s noes de adaptao ao grupo social numa tentativa de

psiquiatrizar o social.Convivendo com esse modelo preconizado pela Organizao Mundial

de Sade(OMS) e, de certa maneira, respaldado nos princpios da lei do Sistema nico de

Sade (SUS), os servios de sade mental recebero grande e importante influncia dos

outros modelos existentes.

A Psiquiatria Democrtica Italiana, ao trazer o conceito de territrio e ateno

psicossocial, inaugurar as referncias scio-culturais que cercam o agora usurio da sade

mental. E tanto a psiquiatria setorizada quanto psicoterapia institucional estaro

matizando os diversos modelos de servios em sade mental.

Portanto, de uma maneira geral, o nomeado campo da sade mental no Brasil traz

uma prtica de tratamento que, ao manter o paciente na comunidade, tenta fazer deste lugar

um recurso teraputico, respondendo a um mandato que no seja o de legitimar a excluso

social.

A Psiquiatria Democrtica Italiana, ao ser acolhida no Brasil, retoma, com Basglia,

essa discusso do ponto que lhe sine qua non, que se trata de discutir no a instituio que

abriga o louco, mas a prpria loucura, pois ela que est em questo.(ROTELLI, 1990, p.

89).

No se trata aqui de levar essa questo supresso da instituio, como fizeram os

italianos. Alis, o que essa dissertao ir colocar mais adiante exatamente que h um

lugar para a instituio no tratamento da psicose. E o que se pode ressaltar e corroborar

aqui, como princpio do que foi dito por Basglia, que qualquer tratamento que se

pretenda tico deve partir do sujeito, deve partir de um questionamento da doena, ou da

loucura para se pensar numa direo seja ela qual for.

As chamadas novas prticas, no Brasil, trazem uma dimenso poltica e social

que se espelham, no campo terico, nos paradigmas basaglianos da desisntitucionalizao e

23

na influncia da psicoterapia institucional francesa. A psiquiatria e a psicanlise

constituem os saberes de base desse campo, presentes em todas as

vertentes(...)(TENRIO, 2001, p. 53).

A psicanlise reaparece para propor uma clnica institucional que tenta equacionar e

mesmo interrogar as sadas subjetivas aos imperativos da reabilitao psicossocial,

apontando para a escolha sempre particular do sujeito psictico de estar no social e mesmo,

sua forma singular de cidadania.

O breve percurso acima elucidado serve para delinear o cenrio histrico no

qual ir se desenrolar o tratamento da loucura e tambm nos abre a possibilidade de discutir

o saber na instituio.

24

2.2 -Saber e psiquiatria

Para discutirmos o saber na psiquiatria, que consideramos um tema complexo e

amplo, iremos nos restringir a autores que elencamos como fundamentais. O percurso feito

em relao ao saber psiquitrico ser norteado pelos trabalhos de Paul Bercherie (1989) que

traz os fundamentos da Clnica Psiquitrica; de Robert Castel (1978) e de outros autores

que discutem o tema com relevncia.

Segundo Bercherie pode-se ver trs momentos na psiquiatria: a psiquiatria

clnica, do sc XVIII; a psiquiatria clssica, no sculo XIX; e a psiquiatria moderna, do

final do sculo XIX.

A chamada psiquiatria clnica surge com Pinel. Para Castel, trata-se de um

mtodo classificatrio cuja conseqncia prtica dirigir a ateno para sinais e sintomas e

agrup-los.(CASTEL, 1978:103). Apesar de atribuir a causa da doena mental ao tipo

fsico, Pinel acreditava mais importantes e numerosas as causas de ordem moral.

O alienismo , efetivamente, a primeira forma de psiquiatria social. falso pretender que - salvo, talvez, no momento do organicismo triunfante - a medicina mental tenha posto de lado as condies histricas e sociais que atuam na gnese da doena mental. Ao contrrio, elas constituem sua preocupao constante. (CASTEL, 1978, p. 113).

Em oposio ao pinelismo, surge sob a inspirao do modelo darwiniano de

uma evoluo das espcies, a teoria da degenerescncia, que se tornar hegemnica na

psiquiatria. Portanto, temos de um lado, a posio de Pinel em sua descrena das teses

anatomopatolgicas sobre a alienao mental e do outro o movimento inaugurado por

Morel que ir caracterizar, posteriormente, a segunda fase da psiquiatria, a psiquiatria

clssica. A inteligibilidade da doena no mais dada pelo grupo a que pertencem seus

sintomas, mas em referncia a uma causalidade oculta.(CASTEL, 1978, p. 259). Nesse

momento, a psiquiatria tenta sua afiliao a um ramo da neurologia ainda nascente,

aproximando-se da doutrina das localizaes das doenas nas regies cerebrais.

Em meados do sculo XIX, uma grande querela se estabelece entre os que

supunham uma causalidade psicolgica para a loucura e os que pretendiam uma causa

25

biolgica, cujo representante importante foi Kraepelin.A psiquiatria surge ento dentro

desse campo, definido por Castel:

Campo psiquitrico: cdigo terico, que permite formular noes que iro constituir e dar inteligibilidade ao objeto de que pretende se encarregar psiquiatria; uma tecnologia de interveno, um dispositivo institucional, um corpo de profissionais; um estatuto do usurio (CASTEL, 1978, p. 12).

Descobrir o substrato anatmico e o agente etiolgico das doenas apontava

para um quadro descritivo cuja matriz advinha da prpria fenomenologia de Husserl-

concepo da filosofia como uma cincia do homem que deve ser percebida pelo fenmeno

- que pressupunha classificar e descrever as funes, os distrbios agrupando-os em

grandes quadros nosolgicos. O organodinamismo de Henry Ey seguiu esse quadro, mais

tarde elidido pela homogeneizao dos diagnsticos, cuja principal finalidade tornou-se a

pesquisa dos medicamentos.

A busca de uma causalidade fez com que a psiquiatria inaugurasse uma tradio

clnica que estruturou seu perodo clssico, construindo um grande aparato de saber clnico

e terico de fundamental importncia.A psiquiatria clssica, em seu surgimento, foi

fundada atravs do estudo dos casos, das apresentaes de pacientes de Charcot e dos

estudos de Kraepelin, Bleuler e Krafft-Ebing, entre outros. Esses estudos construram as

bases de uma nosografia que inclusive foi utilizada por Freud em suas formulaes.

Segundo Birman (2001), at 1950 e 60, a psicanlise foi a referncia da psiquiatria :

De fato, seja como psiquiatria dinmica, como se passou nos Estados Unidos, seja como psiquiatria psicanaltica, como ocorreu na Europa e principalmente na Frana, at os anos de 1950/60 a psiquiatria teve tanto seu projeto quanto seu destino atrelado ao da psicanlise. Foi esse o caso das comunidades teraputicas anglo-saxnicas, da psicoterapia institucional francesa, da psiquiatria comunitria e preventiva norte-americana e sua contrapartida francesa na psiquiatria de setor, e das prticas teraputicas com pequenos grupos iniciada no front sanitrio da Segunda Grande Guerra. (BIRMAN, 2001, p. 21).

Em sua terceira fase, a partir da dcada de 50, a psicodinmica, viria

caracterizada pelas correntes fenomenolgicas de um lado e pela psicanlise de outro. Ao

mesmo tempo em que as novas descobertas medicamentosas dessa poca fizeram uma certa

26

ruptura com a psicanlise e com uma clnica de fenomenologia clssica da psiquiatria. O

marco fundamental dessa virada histrico-conceitual sem dvida a descoberta da

clorpromazina e o desenvolvimento de uma psicofarmacologia que iniciaria o que hoje se

denomina como Psiquiatria Biolgica ou Remedicalizada.

Para alm das implicaes polticas que a chamada indstria farmacutica produziu

ou suas conseqncias ticas, a introduo da psicofarmacologia trouxe remanejamentos

tericos e epsitemolgicos. Podemos perceber que os diagnsticos e a sua conseqente

direo de tratamento passaram a ser marcados pelo manejo do medicamento e pelos

manuais de classificao. Esses manuais acabam por obedecer a essas descobertas dos

novos sintomas mentais, desaparecendo a nosografia clssica e subsumindo a prpria fala

do paciente como detentora de algum saber dando lugar aos distrbios dos

neurotransmissores e s tentativas medicamentosas de equilibr-los.

Essa sem dvida uma resposta de origem, ou seja, o nascimento da psiquiatria

viria centrado num desejo, principalmente de se moldar pelos critrios de cientificidade da

prpria medicina, reivindicando um reconhecimento de sua prtica que s com o advento

das chamadas neurocincias que a mesma obteve.O conhecimento da sintaxe neuronal ir,

atualmente, definir a vida mental e responder pelos fenmenos clnicos:

Em uma psiquiatria remedicalizada, biolgica, o cnone cientfico obedece aos ditames das cincias naturais, dos procedimentos experimentais, que pretendem isolar relaes de causalidade por meio de caractersticas externas- mas no conceituais - dos eventos, obedecendo a uma regularidade e a uma generalidade passvel de serem formuladas sob a forma de leis, e garantindo com isso no s grande objetividade, como tambm poder de predio e interveno no curso dos acontecimentos. (SERPA, 2001, p. 33-34.)

Portanto, essa psiquiatria remedicalizada, sendo concebida como um mtodo que

suplanta a classificao e a fenomenologia da clnica, ao enquadrar a doena do seu

paciente nos manuais, coloca o psiquiatra como um observador bem orientado pelos

manuais. E, restringi a sua participao no tratamento eliminao do sintoma, pela

reduo da clnica administrao de medicamentos.

Por outro lado, historicamente, o advento dos remdios tambm possibilitou

27

outras formas de interveno da loucura fora do campo institucional dando origem ao

processo de reforma. Foi a partir do uso da medicao que outras abordagens, fora do

manicmio, foram propostas e se tornaram possveis.

Com a possibilidade de um tratamento aberto, que a reforma psiquitrica buscar

o predomnio do movimento de uma psiquiatria democrtica, que ir opor-se a essa

psiquiatria puramente remedicalizada, situando-a como uma cincia cujo mito de

neutralidade e objetividade deixam de lado o valor simblico da loucura e de suas

prticas discursivas.

Como foi dito anteriormente, a reforma ir criticar, no s o manicmio como

modelo de tratamento, como tambm, o prprio saber da psiquiatria sobre a loucura, bem

como, as intervenes clnicas que ocorrem no tratamento. O que est em questo, com a

rediscusso da loucura, a retomada da complexidade do fenmeno, bem como, das suas

aes e cuidados que iro interferir fundamentalmente no saber/fazer da psiquiatria.

exatamente esse saber que posto em questo: alienao, doena mental, o isolamento

como forma de tratamento, o tratamento moral. isso que ir permitir rever e ressituar o

binmio conhecimento e objeto.

No cerne do processo de reforma psiquitrica existe, portanto, uma importante e contempornea discusso sobre as cincias. A psiquiatria foi fundada em um contexto epistemolgico no qual a realidade era um dado natural, capaz de ser apreendido, mensurado, descrito e revelado, e a cincia era sinnima de produo de um saber positivo, neutro e autnomo: a expresso da verdade! A partir de ento a psiquiatria vem contribuindo, tanto no aspecto conceitual, com a construo de conceitos como degenerao, cretinismo, idiotia, quanto no aspecto prtico, pela inveno do manicmio, do tratamento moral e das terapias de choque, para a consolidao de um imaginrio social no qual a diferena associada anormalidade.(AMARANTE, 2001, p. 107).

Todas essas formalizaes tericas iro determinar o que a OMS reuniu e

nomeou como o campo da Sade Mental que se redefine, por um lado, para a psiquiatria

biolgica, como medicao para os sintomas elencados no Manual de Classificao

Internacional das Doenas (CID-10), e, para a psiquiatria democrtica, como uma prtica

de reabilitao psicossocial, numa clnica ampliada e num trabalho de equipe.

28

Sob a gide de uma clnica que vai do olhar escuta, a psicanlise, em nossos

servios de sade mental, retomada como uma episteme fundamental na direo de

tratamento dos novos usurios das redes de sade. A psicanlise introduz um dilogo com a

psiquiatria e um engajamento poltico com a psiquiatria democrtica para se constituir

como um campo de saber.

Cavalcanti(1996), em seu texto A psiquiatria e o social traz os trs momentos da

psiquiatria que obedeceriam a um ideal democrtico de uma cura psquica do sujeito do que

ele , enquanto alienao e separao de si mesmo, pela razo.

O primeiro momento refere-se revoluo de Pinel com sua afirmao de que h

sempre um resto de razo no mais alienado dos alienados e que, portanto, h sempre

oportunidade de uma ao continuada, a fim de que alguma aproximao e resgate da razo

se possa dar(CAVACANTI, 1996,p.53-54). Depois, o segundo momento, caracterizado

pelo asilamento. Seria o momento poltico da psiquiatria, aonde a vida institucional vem

para possibilitar o tratamento da loucura. E, por ltimo, o terceiro momento, que se

caracteriza pela impotncia do asilo em dar uma resposta loucura: o momento

freudiano. Esse momento estabelece um corte na onipotncia do saber psiquitrico e se abre

para insistncia em se escutar o sujeito, ou melhor, o que fala nele, o inconsciente como tal.

A psicanlise surge como uma contribuio importante no incio do sc. XX

com a construo de um saber sobre o inconsciente. O pensamento psicanaltico ir nortear

as estratgias de tratamento num leque que vai de Freud a Lacan, numa aplicao variada

da psicanlise nas instituies, como por exemplo, das comunidades teraputicas, da

psicoterapia institucional e como diretriz em vrios servios de sade mental, atualmente,

no Brasil. Minas Gerais constitui um exemplo importante na articulao de uma clnica

institucional lacaniana com as prticas de reabilitao.

Dessa forma, psicanlise e psiquiatria democrtica esto em juno ao retomar o

valor da linguagem na loucura e ao trabalharem numa perspectiva de tratamento da loucura

pelo vis da escuta clnica - de uma escuta entre os saberes que operam a partir da fala do

paciente. Contudo, a contribuio psicanaltica no est isenta de embates nos novos

modelos institucionais atuais, que oscilam entre uma convivncia harmnica de hegemonia

ou numa excluso radical, como nos aponta Figueiredo:

29

Nos anos 1980/90, encontramos o deslocamento do modelo das Comunidades Teraputicas para o dos Centros de Ateno Diria, tambm conhecidos como Centro de Ateno Psicossocial. Observamos uma enorme resistncia figura do psicanalista como detentor dO saber bem, ao modo do Mestre e Senhor da psicanlise. O discurso da cidadania, da desmedicalizao e da ao social prevalece sobre os excessos interpretativos e psicologizantes que circulavam em nome da psicanlise. A politizao do tratamento passa a ser o eixo central, e este parece prescindir da psicanlise, vista agora como parte de uma clnica obsoleta e resduo da interveno mdica. A questo parece se deslocar de um modelo psicologizante para um socializante. (FIGUEIREDO, 2001, p. 94).

Nesse sentido, trata-se, para ns, de cernir a psicanlise como um mtodo, um

mtodo de tratamento que visa um saber que pode intervir num trabalho institucional.

Dessa forma, no nos interessa precisar ou pesquisar a sua influencia nos novos modelos

de ateno em sade mental, mas falarmos da sua incidncia como saber que legitima o

saber da clnica.

30

2.3 - Saber e psicanlise

Em sua conferncia Psicanlise e psiquiatria, de 1916, Freud fala aos mdicos

que escutem seus pacientes para, com isso, diminurem suas resistncias psicanlise. A

psicanlise opera de um lugar diferenciado da psiquiatria, mas no deixa de ter relao com

ela, como vimos anteriormente. Sua relao com a psiquiatria nos dada por Freud:

(...) a psicanlise procura dar psiquiatria a base psicolgica de que esta carece.Espera descobrir o terreno comum em cuja base se torne compreensvel a conseqncia do distrbio fsico e mental. Com esse objetivo em vista, a psicanlise deve manter-se livre de toda hiptese que lhe estranha, seja de tipo anatmico, qumico ou fisiolgico, e deve operar inteiramente com idias auxiliares puramente psicolgicas.(FREUD, 1916, p. 30).

Evidentemente, uma psiquiatria dominada pelas neurocincias no afeita

psicanlise. Tanto a psicanlise quanto a psiquiatria reformada - retomando uma tradio

pineliana - apostam que h um sujeito na loucura. Obviamente, com uma dimenso muito

particular no que tange psicanlise.

A noo de sujeito com que trabalham os protagonistas da reforma no unvoca e no se refere necessariamente ao sujeito que advm de uma clnica. Ela pode se referir ao sujeito psicolgico, ao sujeito cidado, ao sujeito da ao social ou mesmo sujeito do inconsciente(TENRIO, 2001, p. 121).

E, mais do que isso, quando a psicanlise introduz seu mtodo, ela aposta que

h um sujeito que pode advir atravs de um saber que ele porta.

Portanto, nesse captulo, iremos abordar o saber que a psicanlise introduz a

partir de seu mtodo aplicado clnica da neurose, e a partir dessa mesma clnica, que o

saber surge pela fala do paciente.

Nesse sentido, a hiptese freudiana do inconsciente surge a partir das

investigaes clnicas de casos contemplados pela psiquiatria, principalmente pelos estudos

de Charcot e Breuer. O caso da jovem Anna O., tratada por Breuer entre 1880 e 1882

coloca Freud em contato com os sintomas histricos e com aquilo que a prpria paciente

nomeou como a talking cure, a cura pela fala, que rompe com o modelo vigente na poca, a

31

hipnose. O mtodo psicanaltico enunciado pela prpria Anna,coloca o paciente a falar,

mais ainda, descobre-se que a fala tem efeitos. Em seu texto O tratamento Psquico(ou

anmico), Freud(1905) est s voltas com o poder da palavra e da presena do analista. A

magia das palavras restaurada aps a descoberta das cincias naturais que a haviam

deixado de lado.

Com o advento da cincia, a medicina deixou aos filsofos o que era do campo

do anmico e foi cuidar do corpo, ou seja, o estudo do anmico pelo fsico. Mas, o contrrio,

o estudo dos fenmenos anmicos, segundo Freud, foi abandonado por no encontrar um

terreno de cientificidade. Contudo, essa prpria prtica mdica constatou distrbios e

queixas que no encontravam respaldo nos processos somticos.

Surge a hiptese do sistema nervoso como um aparato que tentava localizar os

sintomas. Ou seja, num primeiro momento, tudo deveria ser explicado pelo somtico,

depois, quando se v que isso no possvel, quer dizer, que no h equivalncia entre as

queixas e o soma surge, num segundo momento, a hiptese do sistema nervoso como uma

fronteira entre o fsico e o psquico, mas no havia, mesmo assim, uma equivalncia do

anmico com o soma. o que afirma Freud: (...) os sinais da doena no provinham de

outra coisa seno de uma influncia modificada da vida anmica sobre seu corpo, devendo-

se, portanto buscar no anmico a causa imediata da perturbao. (Freud, 1905:273).

O que nesse momento interessava que o fenmeno anmico estava ali apesar de

sua tentativa de excluso e produzindo efeitos sobre o corpo, afetando-o. E o tratamento

passava pela vontade do paciente em se curar e pela posio do mdico em provocar a cura.

Foi o que Freud denominou expectativa confiante ou angustiante. Freud compara a

determinao em curar-se s curas milagrosas e msticas, cuja ao da palavra exercia um

grande poder de modificao nos estados anmicos.

Quando entendemos por tratamento psquico o esforo de provocar no doente os estados e condies anmicas mais propcias para a cura, vemos que esse tipo de tratamento mdico , historicamente, o mais antigo (...). A prpria personalidade do mdico adquiria prestgio por derivar diretamente do poder divino, j que, em seus primrdios, a arte curativa estava nas mos dos sacerdotes(FREUD, 1905, p. 279).

A palavra aqui ainda usada para o recurso da sugesto, via hipnose, e s,

32

posteriormente, que a palavra ganhar um novo sentido no tratamento, vinculado muito

mais a um ganho de saber, na tentativa de tornar conscientes os fenmenos inconscientes

com a criao da regra fundamental: a associao livre. J que alguns impedimentos foram

encontrados no processo de hipnotizar os pacientes. O que marcante nessa poca a

descoberta de Freud da importncia da palavra no tratamento e tambm no processo que

mais tarde ele ir tropear: a transferncia.

A descoberta do mtodo catrtico d origem ao processo da associao livre, j

que o sintoma resiste ao mtodo da hipnose:

Criticamos o hipnotismo por dissimular as resistncias e assim impedir que o mdico possa perceber o jogo das foras psquicas. A hipnose no destri as resistncias e desse modo s fornece dados incompletos e sucessos passageiros. (FREUD, 1904 [1903], p. 5)

a partir da clnica tambm, especificamente com o caso Dora (1905 [1901]),

que Freud percebeu que havia algo para alm da decifrao do inconsciente que se tratava

dos sentimentos dirigidos pessoa do analista - a transferncia - e que impediram o

processo. Ou seja, na impossibilidade da evocao da lembrana, o paciente coloca em ato

o que no faz surgir pela via da rememorao:

A resistncia acompanha o tratamento passo a passo. Cada associao isolada, cada ato da pessoa em tratamento tem de levar em conta a resistncia e representa uma conciliao entre as foras que esto lutando no sentido do restabelecimento e as que se lhe opem, j descritas por mim(FREUD, 1912, p. 115).

Freud depara-se com a resistncia no inconsciente, no processo associativo e

que surge como um compromisso entre as exigncias dessa resistncia e as do trabalho de

investigao e aqui que surge a transferncia (FREUD,1912, p.115). Da resistncia para a

repetio, o paciente, ao no recordar alguma coisa que esqueceu e recalcou, faz ato, ou

seja, repete naturalmente na experincia da anlise. Freud cita, como exemplo, um paciente

que no se recorda der ter sido desafiador e crtico em relao autoridade paterna, mas

que repete esta atitude com o analista (FREUD, 1912, p. 165).

O mtodo que se esboa ir exigir do paciente um trabalho decorrente dessa

prpria resistncia, pois se torna impossvel uma eficcia na descarga afetiva pela

33

reproduo verbal como cura do trauma que, originalmente, ocasionou o sintoma. Ao

abandonar a ab-reao, Freud se depara com a elaborao, na impossibilidade de se

reproduzir o traumtico catrticamente, mas de elabor-lo atravs de um trabalho psquico -

a durcharbeitung - termo que aparece com este sentido em1914, do Recordar, repetir e

elaborar.

Deve-se dar ao paciente tempo para conhecer melhor esta resistncia com a qual acabou de se familiarizar, para elabor-la, para super-la, pela continuao, em desafio a ela, do trabalho analtico segundo a regra fundamental da anlise(FREUD, 1914, p. 170).

Desse modo, a elaborao de um saber do paciente tem a presena do analista e

de seu manejo, e do analisando, que trabalha sob os efeitos da experincia da anlise.

Nesse sentido, o saber da psicanlise est entrelaado com a interpretao do

material recalcado reproduzido na transferncia e o seu prprio manejo, e, mais ainda, que

ao tentar preencher lacunas na memria (FREUD,1914, p.163) paradoxalmente ir

deparar-se com a impossibilidade do prprio dizer -concebido aqui como uma

impossibilidade de tornar o inconsciente consciente - j que a resistncia insiste ao que da

ordem da decifrao.

J em 1914, Freud adverte aos analistas de que de nada serve nomear a

resistncia sem que o analisando possa elaborar, ou seja, no se trata de um saber a ser

oferecido, mas advindo deste trabalho do analisando.

Em 1937, no trabalho de Anlise terminvel e interminvel, Freud aponta que a

decifrao ou a mera comunicao ao paciente no obtm resultado, j que o aumento de

saber no intervm no sintoma. Ele faz a comparao com o esclarecimento sexual das

crianas que no faz com que elas abandonem suas teorias infantis no que ele mesmo

postula: Aps tais esclarecimentos, as crianas sabem algo que no conheciam antes, mas

no fazem uso do novo conhecimento que lhes foi presenteado. (FREUD, 1937, p. 266) .

Nesse sentido, pensamos o estatuto do trabalho no tratamento psicanaltico como bem nos

aponta Figueiredo:

Tratar em psicanlise fazer trabalhar, e quem trabalha o sujeito, este o sentido da elaborao, o Durcharbeitung de Freud. Em

34

outras palavras, o trabalho atravs do tempo, do analista, do pensamento, e da ao dentro e fora dos atendimentos. (FIGUEIREDO, 2000, p. 83)

Trabalho esse que Freud coloca como um tempo para se conhecer melhor a

resistncia. (FREUD, 1914, p. 170). Podemos relacionar esse trabalho, a durcharbeitung,

ao tempo para compreender- um dos tempos lgicos da experincia analtica formulados

por Lacan(1945). a ao pstuma do trauma sexual, desenvolvida por Freud (1896) na

Etiologia das neuroses, que Lacan retoma como o a posteriori (LACAN, 1966, p. 839)

que traz a idia do tempo lgico, ou seja de que h uma re-elaborao dos acontecimentos.

O tempo, como modulador, aparece em seu estatuto lgico no texto de Lacan (1945)

O tempo lgico e a assero de certeza antecipada. A partir de um problema proposto para

devolver a liberdade de trs prisioneiros, Lacan prope os trs tempos lgicos como

soluo que essa experincia testemunhou. O problema resolvido em trs momentos: o

instante de ver, como o que se apresenta, o tempo de compreender, onde se objetiva

alguma coisa alm dos dados de fato(LACAN, 1966, p. 205), e o movimento lgico que

decide por concluir. O tempo de compreender um tempo de demora que, segundo

Lacan, apresenta-se como a urgncia do momento de concluir.(LACAN, 1945,p.206).

Nesse tempo de meditao h um (...) retorno da intuio que o

objetivou(LACAN,1945,p.205). Esse retorno o efeito da prpria assero antecipada

feita pelo sujeito em sua experincia analtica.

H, portanto, um trabalho que visa o sujeito e o implica na medida em que a

experincia analtica instaura um instante de ver para o sujeito. O tempo de

compreender pode reduzir-se ao instante de olhar, mas esse olhar em seu instante, pode

incluir todo o tempo necessrio para o tempo de compreender(LACAN, Idem).E

necessariamente o sujeito est implicado nesse processo.

Como, por exemplo,Freud,ao perguntar para Dora( FREUD,1905[1901]) sobre qual

a parte dela no que ela vem lhe queixar, significa dizer para o analisando que o mesmo se

implique em sua fala, como retoma Lacan (1951) em seu texto Interveno sobre a

transferncia. necessrio frisar aqui que Lacan, no incio de seu ensino, trabalha com o

conceito de fala plena entre sujeitos- intersubjetividade - que posteriormente ser re-

elaborado j que a fala do sujeito, portadora da dimenso inconsciente por si mesma

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interdita .O sujeito de que se trata o sujeito suposto ao saber para alm do analisando e do

analista e a suposio de saber ao inconsciente, est a dimenso da transferncia. E

tambm o que o analisando traz que posto a trabalho como sujeito na experincia

analtica(LACAN, 1936).

E, para que, de fato, o sujeito possa aparecer, , justamente, o que estamos

visando nesse percurso sobre a elaborao de saber. O saber do analisando, no se trata da

dimenso da palavra, da histria, do sentido, mas da emergncia do sujeito, definido como:

(...) um sujeito no suposto por outro sujeito e sim por um significante que o representa

para outro significante.(Lacan, 1967, p.18).E que, ao represent-lo, o significante no d

conta de sua totalidade, remete-se a outro significante, dividindo o sujeito. sobre esse

sujeito que se responsabiliza pelo que lhe concerne em sua diviso subjetiva pela via

significante que o saber faz questo.

O sujeito surge como efeito dessa articulao dessa experincia analtica, tal

como Lacan (1936) a define, no Para alm do princpio de realidade, como fato de

linguagem. No se trata de uma fala que pressupe um locutor. O sujeito est para alm da

enunciao, trata-se do sujeito do inconsciente, na diviso entre o significante e significado,

que por isso porta sempre uma verdade que no plena, e que por isso no se trata de tornar

consciente o que inconsciente. o que Lacan afirma, posteriormente, em Televiso

(LACAN, 1974, p. 11): Digo sempre a verdade: no toda, porque diz-la toda no se

consegue. Diz-la toda impossvel, materialmente: faltam as palavras .

Durante o tratamento, h uma elaborao de saber visando o sujeito do inconsciente,

o que marca a entrada ou o incio do tratamento tambm tem relao com o saber. o que

nos assinala Melman (2002), ao falar da crena de que comungamos de que em algum lugar

existe uma algum que sabe:

Acontece, e isso um passo muito importante a considerar, que ns no deixamos de atribuir um sujeito a esse saber, quer dizer que ns no pensamos que um saber annimo, ou uma escritura, organizada em um texto indecifrvel. Ns no deixamos de atribuir-lhe um sujeito, quer dizer que esse saber, para ns, se presta suposio de que existe um sujeito que tem a mestria dele, e esse sujeito que Lacan chamar o sujeito suposto ao saber suporte da transferncia(...) (MELMAN, 2002, p. 3).

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com O seminrio, livro 11 (1964) que Lacan introduz o sujeito suposto ao saber,

instaurado a partir da transferncia, no incio do tratamento. A paixo da ignorncia,

assinalada em O seminrio, livro I (1953-54) abre a dimenso da procura de saber:

Na anlise, a partir do momento em que engajamos o sujeito, implicitamente numa pesquisa da verdade, comeamos a constituir sua ignorncia. Somos ns que criamos essa situao e, portanto essa ignorncia (...) essa ignorncia no , pois, uma pura e simples ignorncia.(LACAN, 1953-54, p. 194).

O que essa suposio aponta que, ao seguir a regra fundamental da anlise,

necessrio ter uma crena de que esse saber se institui, h um Outro que sabe. Outro aqui

definido como o que no um semelhante, aquilo que antecede e exterior ao sujeito

(CHEMAMA, 1995:156).Conceito fundamental que ter seu desdobramento no segundo

captulo de nossa dissertao.

Por outro lado, a suposio que instaura a experincia analtica, revela, ao longo do

trabalho, que no existe esse saber na figura do analista. No existe um sujeito que sabe

(MELMAN, 2002, p. 11) No existe um significante que represente o sujeito em seu ser.

Nesse sentido, o ganho de saber da elaborao do analisante aponta para o sujeito

que, no momento de concluir, no tem um saber a mais que se acumula em sua experincia

analtica, mas um saber que se descompleta o tempo todo, trata-se de um furo nesse saber

no sabido, recalcado, que insiste, como diz MELMAN (2002, p. 3) num restinho de

inconsciente.

O saber se diferencia de conhecimento e se trata de uma convico, poderamos

dizer crena ? O que Freud disse com convencer-se que h um saber inconsciente, um

saber suposto, que advm de suas formaes, atos falhos, sonho, sintoma.

necessrio esclarecer o que se denomina por saber. Miller em Psicanlise ou

Psicoterapia (1997, p. 11), quando fala do saber, articula-o a fala antes e aps o advento da

psicanlise:

Desde sempre, sabe-se que falar cura, no momento. Sabe-se que ir mal, estar doente, talvez uma forma de falar quando j no se sabe falar. Na linguagem de hoje, diz-se somatizar, o que quer dizer que o corpo se torna um meio de palavra. Que haja uma relao entre o mal e a palavra no uma descoberta de Freud; a medicina, antes de inserir-se no discurso da cincia, sabia muito

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bem o valor de alvio da confisso e da palavra de absolvio.(MILLER, 1997, p. 11).

A pergunta lanada sobre o saber tem relao com as causas, com a ordem das

causalidades materiais, biolgicas, qumicas ou mesmo, podemos questionar se haveria

uma causalidade psquica, como nos aponta Miller (1997, p. 11).

Melman assinala, a partir de Lacan, como propriedade mesma do inconsciente, que

esse inconsciente ignora o que lhe causa: o saber da castrao. O saber do inconsciente

no sabe nada da castrao (MELMAN, 2002, p. 11).

Ao analista cabe reproduzir o ato inaugural freudiano que, ao abandonar a

hipnose com sua conseqente sugesto, deixando de ser o operador de uma verdade a

priori, pe o analisando a trabalho com a tarefa de produzir o saber inconsciente. Isso

acontece, na medida em que, o analista lhe pede que associe, dando-lhe a palavra e

acolhendo os efeitos da transferncia sem ocupar o lugar do Outro do saber, mas

permitindo que essa crena exista, no para que o sujeito atinja um conhecimento socrtico

de si mesmo, mas que visa a verdade do ser do sujeito.

Freud(1904), em seu texto Sobre a Psicoterapia, bem claro ao enunciar a

sugesto, tomando emprestado a definio de Da Vinci da pintura e da escultura, como

procedendo per via di porre e a anlise per via de levare, ou seja, enquanto a pintura

procede pelo mtodo de por, colocar sobre a tela branca, a escultura retira a massa para

fazer a obra, esculpi-la.

E nesse trabalho, Freud coloca todo rigor que deve se abster como ele prprio

avisa em Observaes sobre o amor de transferncia (1914), de uma ambio teraputica

ou um furor sanandi e, ao mesmo tempo, em relao medicina diz: Mas acreditar que as

neuroses podem ser vencidas pela administrao de remediozinhos incuos subestimar

grosseiramente esses distrbios...(FREUD,1914, p.188) e continua: No; na clnica

mdica sempre haver lugar para o ferrum e o ignis,lado a lado com as medicinas e, da

mesma maneira, nunca seremos capazes de passar sem uma psicanlise... (FREUD, 1914,

p. 188 ).

Abrir mo da ambio teraputica abrir mo, em ltima instncia, de um

poder atribudo ao analista atravs do saber. A psicanlise instaura um saber que no tem

semelhana com o armazenar saberes como prescrio. Trata-se, sobretudo, de sustentar

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uma falta nesse saber que faz com que aquela curiosidade sexual infantil recalcada,

movimente-se nessa hincia que o analista sustenta com um saber sobre a castrao na sua

douta ignorncia. Contudo, na psicose o saber nos trazido de forma diferenciada. J que

na psicose, como veremos adiante, trata-se de outra relao com o saber.

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2.4- Saber e psicose

Historicamente, a psiquiatria viu-se num embate em suas hipteses etiolgicas

entre suas vertentes biolgicas ou psicognicas para atribuir um lugar ao louco. E teve,

como resultado, a excluso deste louco, alienado, em sua experincia, desprovendo sua fala

de qualquer saber sobre o que lhe acontecia. O que a psicanlise pde fazer, ao se constituir

enquanto um campo epistemolgico, foi reconhecer uma produo discursiva e de saber na

loucura cujo delrio, nos remetendo a Freud, seria uma tentativa de cura(1911).

O discurso freudiano, ao inaugurar o inconsciente, revela um saber na neurose,

cujo sintoma tem uma lgica prpria e, fundamentalmente, a existncia de um saber na

psicose. Em O seminrio, livro 3 (1955-1956), Lacan nos diz que, na psicose, as produes

emergem a margem de um saber especfico, pois se trata de um saber herdado tradicional

transmitido. Trata-se de um saber que no comunga a ordem neurtica da filiao edipiana.

O que dizemos quando dizemos, por exemplo, que na psicose algo vem a faltar na relao do sujeito com a realidade, trata-se, com efeito, da realidade estruturada pela presena de um certo significante herdado tradicional transmitido(LACAN, 1955-1956, p. 283).

Mas esse saber uma produo e ela no fruto de um erro, como queria

Henry Ey, mas sendo, como diz Lacan a loucura um fenmeno do pensamento, onde

questiona o prprio instrumento vigente de tratamento e a causalidade da loucura:

Para falar em termos concretos, haver alguma coisa que distinga o alienado dos outros doentes, a no ser pelo fato de o encerramos num asilo, enquanto hospitalizamos estes ltimos? Ou ainda, ser que a originalidade de nosso objeto da prtica - social- ou da razo-cientfica? (LACAN, 1946, p. 155).

Ao erro, atribudo ao delrio, Lacan traz cena -o que nenhum lingista ou

filsofo sustentaria- sua teoria da linguagem como uma reproduo das realidades comuns,

partilhadas, onde diz que a loucura vivida no registro do sentido (LACAN, 1946, p.

166) e, trata-se de uma realidade do sujeito, enquanto fato de linguagem.

Nesse sentido, poderamos acrescentar ainda que no existe realidade fora do

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significante no que neurose e psicose esto submetidas. A especificidade do discurso da

psicose encontra-se em sua relao com a significao cujo saber tem um carcter

indiscutivelmente neolgico (LACAN, 1955-1956, p. 42). Ou seja, trata-se de uma

significao no partilhada num uso inusitado da linguagem cuja perda da realidade

freudiana substituda pela criao de uma nova realidade. essa linguagem que permite

reconhecer a assinatura do delrio. O prprio doente sublinha que a palavra tem peso em si

mesma. Antes de ser redutvel a uma outra significao, ela significa em si mesma

(...)(LACAN,1955-1956,p. 43-44).

O campo do significante emerge para a neurose e para psicose, ele dado

primitivamente e s passa a ter efeitos na medida em que o sujeito o faz entrar em sua

histria, ou seja, se de sada, uma bateria significante nos dada, (...) preciso ainda que a

ordem do significante, o sujeito a adquira, seja colocado em seu lugar numa relao de

implicao que afeta o seu ser (LACAN, 1964, p. 216).

Lacan, em Posio do Inconsciente (1960), nos afirma que para todo o sujeito

h um isso fala dele, ou seja, uma interveno do significante ainda onde h um sujeito

em vias de advir, onde ele significado, nomeado por essa bateria significante. Contudo, na

psicose, algo entre o isso fala de mim e (...) ali que ele me apreende que o sujeito

tropea, ou mortifica-se. Como Schreber que v anunciada a notcia de sua morte, o

significado que vem de forma inapreensvel.

No se trata aqui de adentrarmos na especificidade da tessitura do delrio, mas

de, ao trazer o saber da psicose, fazermos desse saber propriedade de um sujeito que nos

interessa na experincia analtica. E, mais ainda, a prxis psicanaltica visa o sujeito, sujeito

responsvel na autoria de sua produo, de seu sintoma, de seu delrio, ao contrrio de um

sujeito irresponsvel, suprimido ou abolido pela classificao da psiquiatria

biolgica.Como nos diz Miller, h um sujeito em questo.

Todo o seu esforo, a propsito da psicose, no tem nenhum sentido, a no ser o de fazer da psicose uma questo de sujeito. Isso quer dizer que no se trata de avaliar o louco em termos de dficit, ou de dissociao de funes, e que nada vai mudar com a determinao molecular da psicose que nos prometida para o futuro: o sujeito tem de contentar-se com o que determina. No esqueamos que Freud situa o delrio como uma tentativa de cura. No se trata de uma doena: ao contrrio, o testemunho de que o sujeito emerge da catstrofe pela significao que ele elucubra.

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a que podemos situar na psicose um momento de morte do sujeito: ponto zero onde a significao se evacua por completo (MILLER, 1996, p. 164).

Com Schreber, Freud traz, no s o fenmeno da loucura como parte essencial

da realidade psquica, como tambm, traz a figura do mdico como essencial na construo

do tratamento do paciente sob o mecanismo da transferncia, o que veremos

posteriormente, ao abordarmos a construo do caso clnico.

Assim, a aposta de que h um sujeito na psicose intrnseca a uma produo desse

sujeito como efeito de um trabalho clnico. Poderamos cernir a uma diferena

fundamental no que diz respeito clnica. Para uma determinada clnica psiquitrica a fala

do paciente nomeada, descrita e apreendida no manual do CID-10 (Classificao

Internacional das Doenas) e, onde as demandas sociais (familiares, vizinhos, ordem

pblica) so, na maior parte das vezes, prioritrias ou nicas na leitura do caso clnico,

entrando como operadores determinantes na conduo teraputica.

Por outro lado, para a psicanlise, o dizer do paciente e os efeitos de sua fala, os

operadores e indicadores sob os quais todas as outras demandas esto submetidas, enquanto

ali apostamos que h um sujeito, em vias de advir. Ou seja, cada vez que um paciente faz

uso da palavra e que possa endere-la a uma escuta, uma interveno surge para fazer da

advir um sujeito. Sujeito esse que pode se localizar em seu delrio e em sua produo

discursiva.

Quando a psiquiatria se dispe, em seu diagnstico, a ir alm da remisso do

sintoma ou mesmo do atendimento da demanda social, ela abre a possibilidade de

conjuno e dilogo com o saber psicanaltico. E a, algum saber clnico pode ser

partilhado. Essa uma discusso que remete ao ltimo captulo, onde se articula a

particularidade do saber da psicose na instituio diante do qual a psicanlise no pode

recuar.

Se na loucura h um sujeito e h sentido, como situamos o saber? Obviamente, o

saber diferencia-se nos tipos clnicos: neurose, psicose e perverso. Na verdade so

respostas que trazem a marca do inconsciente.

Na neurose, o saber no sabido, recalcado; na perverso, o saber desmentido e na

psicose o saber se materializa na certeza, ou seja, que se sabe sobre ele. Eis o grande

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desafio que a psicose nos impe por estrutura, do isso fala nele, que o assujeita, invade e

mortifica para a localizao de um sujeito. Onde s podemos acolher os efeitos destes

momentos a partir de uma escuta e de uma clnica com a psicose.

Oferecer uma escuta clnica pressupor que existe um saber no sujeito, como

vimos anteriormente, que o paciente porta. E mais ainda, por se tratar de uma questo do

sujeito necessrio pensar como a psicanlise pode fazer este sujeito emergir,

fundamentalmente, como ele advm no campo do Outro. , portanto, a partir do Outro que

poderemos falar do que se passa em relao psicose.

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III. O DISCURSO DO OUTRO

Neste captulo, iremos abordar o campo do Outro e o sujeito como emergindo a

partir das operaes de alienao e separao. Essas operaes so trabalhadas, por

Lacan, em O seminrio, livro 11 (1964) e no texto A posio do Inconsciente (1960).

Tambm faremos um percurso pela identificao, em sua vertente freudiana, retomada no O

Seminrio, livro 9 (1961-1962). a partir das conceituaes elencadas nesses textos que

poderemos tambm apresentar a identificao como uma das resultantes dessa operao de

alienao e separao na constituio do sujeito.

Ao enodar sujeito e Outro, estaremos tentando trilhar a situao peculiar do

sujeito na psicose. Trata-se, principalmente, de retomar o campo das psicoses em O

seminrio, livro 3 (1955-1956) e em De uma Questo Preliminar a todo tratamento

possvel da psicose (1957-1958). Em O seminrio, livro 3, Lacan, ao analisar o pensamento

inconsciente de Freud, traz o pensamento articulado em linguagem, numa cadeia que vai do

sujeito ao Outro, ininterruptamente. Esse monlogo supostamente interior est em perfeita

continuidade com o dilogo exterior, e bem por esta razo que podemos dizer que o

inconsciente o discurso do Outro (LACAN, 1955-1956, p. 128).

Dessa forma, para saber o que se passa nessa relao importante para se pensar o

sujeito, especificamente o sujeito da psicose, ir se tomar como efeitos subjetivos deste

assujeitamento ao Outro, as entidades clnicas da melancolia, esquizofrenia e da parania.

Como afirma Lacan, o assujeitamento ao Outro inevitvel ao sujeito e de onde

ele pode advir: (...) o sujeito s sujeito por ser assujeitamento ao campo do Outro, o

sujeito provm de seu assujeitamento sincrnico a esse campo do Outro (LACAN, 1964,

p. 178).

Nesse sentido, o Outro aparece ao longo da obra lacaniana em vrias categorias.

No incio de seus seminrios, de 1954 1956, o Outro aparece como o que funda a

existncia e o campo do simblico,aparece como absoluto ou como excludo na psicose,

aparece tambm desdobrado, na neurose, como primordial e representante da lei. Em

1957-58, o Outro aparece como tesouro dos significantes, o inconsciente, de onde provm o

cdigo da linguagem.E, finalmente, at onde pudemos chegar, em 1960, o Outro aparece

barrado para todo sujeito, e, revela sua inconsistncia, nos fazendo pensar qual o lugar do

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Outro e, mais ainda, como o sujeito vai surgir no lugar desse Outro que lhe preexiste?

Abordaremos as concepes do Outro at O seminrio, livro

11(LACAN,1964), conforme suas descries nos esquemas L, R e I e o matema S(A)

retirado do Grafo do Desejo(LACAN,1960).Esse percurso faz-se necessrio para

verificarmos o engendramento do sujeito no Outro. No nos cabe aqui fazer uma anlise

detalhada dos esquemas, bem como do prprio grafo do desejo que levou cinco anos para

ser construdo por Lacan.Trata-se, somente, de precisar o lugar do Outro nesses esquemas.

O esquema L, apresenta a fundao do sujeito a partir do Outro. O R situa o

Outro duplicado pela funo do significante Nome-do-pai cuja operao delimita o

campo da realidade e, finalmente, o esquema I fala da catstrofe do sujeito psictico, numa

referncia a Schreber(FREUD,1911), ao no conseguir operar essa separao do Outro sem

barra e sua posterior tentativa de cura ou estabilizao colocando o Ideal do Eu, no lugar do

Outro(A).

No esquema L, o Outro aparece separado do sujeito pelo muro da linguagem.

O sujeito fala com seus semelhantes no eixo a, a, mas no sabe o que diz nem o que . Ele

se v do outro lado, de maneira imperfeita, como vocs sabem, devido ao carter

fundamentalmente inacabado da Urbild especular (LACAN, 1954:55,p. 308). O sujeito

fala com seu eu pela via imaginria, ao mesmo tempo em que o S(Es) na dimenso

inefvel, do isso fala nele traz o inconsciente como o inacessvel que porta o

desconhecido e que o sustenta simbolicamente.

Um dos nomes deste Outro o Outro primordial ou prvio que Lacan ir, relendo o

dipo, denomin-lo como desejo primordial materno. Ele nomeado tambm como a fonte

dos significantes, o tesouro inconsciente, cujo significante flico, barrando o desejo da me,

o introduz como o Outro barrado(A).

O sujeito surge dessa operao de alienao ao desejo materno(DM) e separao

pela falta que se institui no Outro(A). Dessa forma, a identificao a um significante que o

represente a resultante desta equao lgica.

Na psicose, veremos como o lugar do Outro e do sujeito ganham contornos

particulares, pois no opera a barra que separa sujeito e Outro e seus objetos. tambm

essa sobreposio do eixo imaginrio e simblico que no veremos na psicose, pois o

sujeito acredita no seu eu. O Outro, portanto, aparece como excludo de sua funo

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simblica, mas maciamente presente e invasor pelos fenmenos da alucinao e do delrio.

E, nesse sentido, esquizofrenia, parania e melancolia daro o testemunho do que se passa

nessa relao.

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3.1- Outro: o antecendente lgico do sujeito

Para pensarmos o campo do Outro, faremos um percurso pelos esquemas de

Lacan. O esquema L por onde comearemos.Esse esquema aparece em O seminrio,

livro 2 (1954-1955) e no seminrio sobre A Carta Roubada (1956). retomado em O

seminrio, livro 3 (1955-1956) e em sua ltima verso simplificada em De uma Questo

Preliminar a todo tratamento possvel da psicose (1957- 1958).

No esquema L, o Outro o que funda a existncia do sujeito, lugar da linguagem,

cuja relao confere uma anterioridade lgica fundadora do sujeito. Nesse esquema, o

Outro aparece como Absoluto no eixo do simblico, como alteridade, condio de

existncia do sujeito de onde o sujeito recebe sua determinao significante.Podemos

definir o simblico, exatamente, como o que demarca as diferenas mnimas da linguagem,

trata-se mesmo da introduo do significante,da ordem do significante, enquanto ela se

distingue da ordem da significao(LACAN, 1955-1956,p.216). O imaginrio pode ser

pensado pela via do significado, como o registro das equivalncias, do semelhante, das

imagens que constituem a relao entre eus(LACAN,1960,p.150). O real, nesse

momento, o que est excludo do simblico, o que no tem representao possvel pela

linguagem, o que escapa a simbolizao.

O esquema L composto de 4 elementos : S(Es), a(outro), a(eu), e A (Outro).

A relao entre sujeito e Outro se d por um desvio no eixo imaginrio. Sujeito e Outro

esto separados pelo que Lacan denominou o muro da linguagem.Essa relao inaugural

para todo sujeito e comporta uma matriz identificatria, como veremos adiante ... o eu

esse mestre que o sujeito encontra num outro...(LACAN, 1955-1956, p. 11).

Retomando O seminrio, livro 3, teremos de (S a a) o eixo imaginrio onde o

sujeito se dirige ao eu, recebendo dele uma imagem e o eixo simblico de (A a s) que funda

e determina o sujeito, distinguindo o outro semelhante do A (Outro) como a quem se dirige

a fala enquanto tal. E para se ter o acesso ao campo do Outro, lugar do inconsciente, uma

barreira se coloca, o muro da linguagem.Trata-se da Outra cena e que por isso seu acesso se

d pelas formaes do inconsciente: ato falho, chiste, etc...

Eis a forma que o esquema L aparece em De uma Questo Preliminar a todo

tratamento possvel da psicose(LACAN,1957-1958,p.555):

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Assim, o Outro simblico introduz uma distncia entre a e a e possibilita a

emergncia do sujeito que est em S(ES), em sua inefvel e estpida existncia, em seus

objetos, a, em seu eu, ae, em A de onde se coloca a questo de sua existncia, ou seja,

retorna sobre o sujeito. O sujeito, portanto, se constitui alienado no Outro, pois se A for

retirado de seu lugar Outro, o eixo imaginrio no lhe dar sustentao.

O Esquema L serve de base ao esquema R, que acrescenta o falo como o

significante que ir inscrever-se no Outro, desdobrando-o em Outro da linguagem e Outro

da lei. Eis o esquema R (LACAN, 1957-1958,p.559):

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ESQUEMA R:

Assim, o esquema R traz o primeiro tringulo( i m) onde situa-se o Outro

primordial, que desdobra-se no segundo tringulo(M I P), onde o Outro marcado pela

entrada do significante paterno, promovendo os deslocamentos necessrios na constituio

do campo da realidade, balizando as instncias do eu e ideal do eu, bem como a inscrio

do sujeito como barrado (S)em sua relao com o objeto de desejo que tambm representa-

se por uma falta. Ou seja, a entrada do pai, enquanto um significante, ao mesmo tempo que

barra o desejo da me, interdita o desejo incestuoso do filho. Esse esquema traduz no