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SADER, Emir. Apresentação à Ideologia Alemã.pdf

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  • 9APRESENTAO

    I

    A busca do conhecimento e da verdade pelo pensamento humano partiu sempre da dicotomia entre sujeito e objeto. As diferentes respostas dadas pelas vrias correntes do pensamento a essa questo permitiram sua classi-ficao na grande lista de tendncias idealistas, empiristas, racionalistas, materialistas, metafsicas etc.

    Para o pensamento aristotlico, a verdade se identifica com a ausncia de contradio. Se A igual a A, no pode ser igual a B ou a qualquer no A. Simplesmente isso. Sua lgica codifica essas normas elementares, sem as quais qualquer discurso se torna impossvel. Se uma coisa igual a si mesma e diferente de si mesma, se ela igual a si mesma e igual a outra coisa, trata-se de uma contradio, indicao insofismvel de uma falsidade.

    Essa lgica chamada de formal ou da identidade norteou a grande maioria das correntes do conhecimento ao longo dos sculos, da Antiguida-de, passando pela Idade Mdia, chegando ao mundo moderno e avanando at o contemporneo. Podemos dizer que ela continua a moldar o senso comum, consistindo na leitura mais difundida da realidade emprica, tal como ela costuma ser vivenciada por grande parte da humanidade. Nela, a contradio sintoma de falsidade.

    A revoluo copernicana no pensamento humano veio com a reverso dessa identificao na obra de Georg Wilhelm Friedrich hegel para quem, em vez de falsidade, a contradio aponta para a apreenso das dinmicas essenciais de cada fenmeno. Captar a contradio passa a ser sintoma da apreenso do movimento real dos fenmenos.

    A inverso hegeliana coloca em questo outro pressuposto do pensamen-to clssico: a dicotomia sujeito/objeto. Antes, tal dicotomia era condio da reflexo epistemolgica, assim como forma de compreenso da insero do homem no mundo. Do cogito cartesiano ao eu transcendental kantiano, a diferenciao sujeito/objeto habitou, com diferentes roupagens, todos os sistemas filosficos pr-hegelianos.

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    Apresentao

    O pensamento de hegel atinge justamente o que era assumido como um dado da realidade: a separao contraposio ou reencontro entre sujeito e objeto. Ele descarta a validade de interrogaes tais como: se o objeto pode ser apreendido pelo sujeito ou em que medida este deter-minado ou determina a existncia daquele. Em sua perspectiva, a primeira e maior das questes para o conhecimento do mundo, mas tambm para a compreenso do estar do homem no mundo, passa a ser a busca das razes pelas quais sujeito e objeto aparecem diferenciados e contrapostos. Redefinem-se assim os termos subjetividade e objetividade, cada um deles, mas sobretudo a relao entre eles.

    hegel marca tambm uma diferenciao com o nascente pensamento sociolgico, que busca trilhas pelo caminho aberto pelas cincias biolgi-cas e absolutiza a identificao da verdade com o mximo distanciamento entre sujeito e objeto, expresso paradigmaticamente na obra de Auguste Comte e mile Durkheim. Para estes, a garantia da veracidade do conhe-cimento est na medida do afastamento entre sujeito e objeto conside-rao dos fe nmenos sociais como coisas , a ponto da identificao, incorporada linguagem corrente, de objetividade com verdade, no sentido de conhecimento isento, universal. As dimenses subjetivas, por sua vez, passam a ser assimiladas a um falseamento do conhecimento verdadeiro dos objetos.

    As novidades radicais da dialtica hegeliana vo em duas direes. A primeira, a do questionamento dessa concepo de objetividade. Para hegel, o desafio maior explicar o que costuma ser aceito como dado: por que o mundo nos aparece com uma grande ciso entre sujeito e objeto? Por que o mundo nos aparece como alheio?

    Para responder a essas questes, hegel introduz no pensamento filos-fico a noo de trabalho, uma noo altamente corrosiva para as preten-ses a-histricas e sistemticas do pensamento tradicional. O conceito de trabalho posteriormente redefinido por Marx em termos histricos e materiais permite rearticular a relao entre sujeito e objeto, mediante a verso de que os homens produzem a realidade inconscientemente Eles fazem, mas no sabem, na frmula sinttica de Marx no prefcio a O capital , em que no se reconhecem. Introduz-se assim, junto com o conceito de trabalho, o de alienao.

    Esse conceito diferencia radicalmente o pensamento dialtico de outros enfoques, permitindo redefinir as relaes entre sujeito e objeto, entre subjetividade e objetividade. O mundo criado pelos homens, embora no de forma consciente, o que permite explicar tanto a relao intrnseca entre eles quanto o estranhamento do homem em relao ao mundo e a distncia deste em relao ao homem.

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    A ideologia alem

    hegel reivindica o conceito de contradio, no como sintoma de fal-sidade, mas como motor do movimento do real. O exemplo da dialtica do senhor e do escravo utilizado como a forma mais clara da relao de interdependncia das determinaes aparentemente opostas, mas que esto includas uma na outra. Apreender a contradio da sua relao apreender a essncia de cada polo e o sentido de sua relao mtua.

    II

    Aps um perodo em que oscilou em torno da polarizao herdada da filosofia poltica clssica e de hegel, entre sociedade civil e Estado, ora valorizando um polo em detrimento do outro, ora refazendo o caminho oposto, Marx rompe com essa viso, para fazer o que denomina anatomia da sociedade civil. A abordagem da ideologia um passo essencial nessa anatomia, porque remete o conhecimento desta s condies materiais de existncia em que se assenta. A Alemanha tornou-se objeto privilegiado dessa reflexo, pelo peso que tiveram os vrios sistemas de ideias no seu desenvolvimento.

    O acerto de Marx e Engels com sua herana filosfica conclui em A ideologia alem um longo caminho iniciado com os primeiros textos de Marx e se d ao mesmo tempo do amadurecimento de uma teoria alternativa. Tal teoria ganha corpo especialmente a partir dos Manuscritos econmico-filosficos de Marx, quando se torna claro que o recurso dia-ltica hegeliana significa uma negao, uma incorporao e uma superao dessa herana, na direo da teoria materialista da histria.

    O roteiro dA ideologia alem retoma a trajetria de hegel, mas se vale de instrumentos distintos e desemboca em caminhos muito diferentes. Para hegel, necessrio comear pela crtica das iluses do conhecimento o que Marx e Engels passaro a cunhar como ideologia. hegel aponta duas dessas iluses: tomar as coisas pela sua forma de apario e relegar o real para um mundo completamente separado das suas aparncias. Esses nveis de apreenso da realidade correspondem a nveis efetivamente existentes do real, porm segmentados, separados uns dos outros e sobretudo do significado que engloba a ambos. O mundo que nos aparece sob a dico-tomia entre sujeito e objeto, entre subjetividade e objetividade, tem de ser desvendado nas suas razes, para compreendermos o porqu dessa ciso, enquanto as iluses mencionadas optam por um dos dois polos e os abso-lutizam. A apreenso da verdade do real consiste justamente na explicao da forma pela qual o real se desdobra em sujeito e objeto.

    Para hegel h dois movimentos. O primeiro, em que o mundo perde sua unidade, cinde-se, duplica-se, produzindo a dicotomia entre o mundo sensvel e o mundo suprassensvel. Surgem o estranhamento, a alienao,

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    Apresentao

    a conscincia que no se reconhece no mundo e o mundo como realidade alheia conscincia. De um lado, a conscincia pura; de outro, ao alienar--se, a conscincia convertida em objeto de si mesma, contemplada, mas no reconhecida. como se a conscincia olhasse para o mundo tal qual estivesse olhando pela janela e no olhando para si mesma, no espelho do mundo.

    O segundo movimento trata da passagem da conscincia em si cons-cincia para si, com o real retomando sua unidade perdida, reabsorvendo os dois polos em uma unidade superior, eliminando a ciso do mundo. O ca-minho da razo portanto o caminho do reconhecimento da ciso e de suas razes; em seguida, de sua superao e do restabelecimento de sua unidade.

    Afirma-se, assim, pela primeira vez na histria da filosofia, que o mun-do produto do trabalho humano, como realidade histrica construda coletivamente pelos homens. Tambm pela primeira vez afirma-se, na filo-sofia, que o homem um ser histrico, o que dado por sua capacidade de trabalho.

    O ajuste de contas de Marx e Engels comea pelo principal dos pensa-dores hegelianos de esquerda, aquele que mais os havia influenciado, Ludwig Feuerbach. Esse autor tambm se props a fazer a crtica do idea-lismo de hegel. Seu ponto de partida o das iluses, mas o das iluses psicolgicas, como chave para decifrar a expresso mais tpica da aliena-o a religiosa.

    Para Feuerbach, a capacidade de abstrao est na origem da aliena-o religiosa, em que o homem projetaria suas caractersticas, elevadas ao infinito, em um ser externo ao homem. Em vez de ser criado por Deus, como acredita a viso religiosa, o homem quem cria Deus. De criao, se torna criador. O homem o Deus do homem, conclui. Porm, Feuerbach no incorpora a categoria trabalho e assim a superao das iluses se reduz a um processo de desmistificao, retomando a forma mais clssica de idealismo o da primazia da conscincia sobre a realidade. O sujeito volta o ocupar o lugar essencial como processo de desalienao. O pro-cesso de inverso da alienao religiosa orien ta a concepo de Marx sobre a alienao ainda nos Manuscritos econmico-filosficos, mas em A ideologia alem o carter materialista da crtica alienao surge como ponto de no retorno do pensamento marxista.

    Nos Manuscritos..., o foco colocado na economia poltica e a aliena-o aponta para seu fundamento na categoria de trabalho. A produo de riqueza representa para o operrio a transferncia de valor para a merca-doria e seu empobrecimento como trabalhador. A depreciao do mundo dos homens aumenta em razo direta da valorizao do mundo das coisas. O trabalho produz ao mesmo tempo mercadorias e o operrio enquanto

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    A ideologia alem

    mercadoria. O resultado do trabalho se enfrenta com seu produtor como um objeto alheio, estranho est dado o mecanismo essencial de explicao da alienao. Como produtor, o operrio no se sente sujeito, mas objeto do seu objeto. A ativi dade de produo a fonte da alienao e no mais um processo de iluso psicolgica ou intelectual.

    Somente em A ideologia alem, portanto, esses elementos sero articula-dos para constituir uma teoria explicativa das condies histricas de produo e reproduo da vida dos homens.

    III

    As iluses do esprito puro fazem que Marx e Engels dediquem este longo livro a negar a filosofia de hegel, de que eles mesmos foram depo-sitrios. O resultado uma crtica dos devaneios, das fantasias humanas e das falsas ideias que fazem sobre si mesmos e sobre o mundo.

    O exerccio de mtodo que enunciam, ainda incipientemente, no se limita desmistificao de ideias equivocadas sobre a realidade, mas se prope a pesquisar as condies que permitem que essas ideias existam e tenham tanta preponderncia. h um deslocamento do debate do plano das ideias puras para o da realidade concreta em que elas so geradas.

    Marx e Engels, desde o incio de suas carreiras tericas e polticas, se debruaram sobre o entendimento de um fenmeno que identificavam como o atraso alemo: aparecia-lhes como uma figura desconjuntada, com uma cabea enorme onde cabiam, entre tantos, Immanuel Kant, hegel, heinrich heine, Johann Goethe, Ludwig van Beethoven , porm com um corpo pequeno, mirrado, que no conseguia se libertar das travas das socie dades pr-capitalistas. Aprisionados por essas estruturas arcaicas, os alemes canalizavam para a cabea, gerando maravilhosas obras do esprito, as energias com que no conseguiam promover a derrubada do velho regime e a Queda da Bastilha alem.

    No se pode dizer que exista uma ruptura entre os escritos anteriores de Marx e Engels e A ideologia alem. h sim uma evoluo, com trans-formaes em um processo que ganha novo corpo terico especialmente desde os Manuscritos econmico-filosficos, que representam a incorpo-rao de conceitos como os de trabalho e de alienao. As Teses sobre Feuerbach e o captulo sobre esse filsofo alemo no corpo da obra re pro duzem temas esboados anteriormente, mas agora em um marco histrico que ganha contornos mais definidos. Em A ideologia alem, o ma terialismo histrico ganha o formato que ter no restante da obra desses dois autores.

    O livro um exemplo da dialtica hegeliana: uma relao de negao e incorporao, de superao, no sentido dialtico de Aufhebung. Essa

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    Apresentao

    superao parte da definio do significado do materialismo marxista, dos pressupostos incontornveis para todo ser humano:

    Os pressupostos de que partimos no so pressupostos arbitrrios, dogmas, mas pressupostos reais, de que s se pode abstrair na imaginao. So os indivduos reais, sua ao e suas condies materiais de vida, tanto aquelas por eles j encontradas como as produzidas por sua prpria ao.1

    Ao construir sua teoria na luta constante para marcar uma clara deli-mitao em relao presena monstruosa de um sistema de pensamento to tentador como o hegeliano , Marx e Engels concentraram o combate terico inicial em uma diferenciao em relao aos pressupostos idealis-tas de hegel. Na diferenciao com o saber absoluto, os dois filsofos revelam a natureza do seu materialismo, que remete para a produo e a reproduo das condies de existncia dos homens. Dela decorrem as relaes dos homens com a natureza e com suas formas de organizao social, isto , dos sujeitos com o que lhes aparece como a objetividade do mundo. Uma forma especfica de apropriao da natureza determina as formas de organizao social e a conscincia.

    A apreenso do significado que as formas de reproduo da vida tm para a existncia humana representa a primeira grande formulao do materialismo dialtico para a compreenso da histria e da conscincia humana. A cada estado de desenvolvimento das formas de produo ma-terial da sua existncia correspondem formas especficas de estruturao social, alm de valores e formas de apreenso da realidade.

    Destacar esse papel de pressuposto incontornvel da produo da vida material significa, ao mesmo tempo, colocar o trabalho no centro das condies de vida e conscincia humana. O homem se diferencia dos outros animais por muitas caractersticas, mas a primeira, determinante, a capacidade de trabalho. Enquanto os outros animais apenas recolhem o que encontram na natureza, o homem, ao produzir as condies da sua sobrevivncia, a transforma.

    A capacidade de trabalho faz com que o homem seja um ser histri-co; isto porque cada gerao recebe condies de vida e as transmite a geraes futuras, sempre modificadas para pior ou para melhor. Embora tenha o potencial transformador da realidade, o que o homem mais recu-sa trabalhar. Foge do que o tornaria humano porque no se reconhece no que faz, no que produz, no mundo que transforma. Porque trata-se de trabalho alienado.

    Na introduo desta obra, Marx e Engels ridicularizam o essencialismo do idealismo alemo, reivindicado pelos chamados hegelianos de esquerda,

    1 Ver adiante p. 86-7.

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    A ideologia alem

    com base na contraposio entre a lei de gravidade e o reino dos sonhos em que eles descansam. Nas Teses sobre Feuerbach, essa crtica tem o impacto da forma de aforismos, mas a articulao entre as iluses ideol-gicas e as condies materiais de sua produo aparece em A ideologia alem como seu eixo central.

    Os neo-hegelianos no se perguntam em que o terreno social onde es-to pisando condiciona o seu pensamento colocando a questo central para a caracterizao da ideologia. No haviam incorporado a categoria trabalho, a qual, juntamente com a introduo indita de categorias como foras produtivas demonstrando como j se articulava o essencial do arcabouo de interpretao marxista da histria , permite a superao efetiva do marco do pensamento de hegel. A compreenso do processo de trabalho permite, ao mesmo tempo, a compreenso da origem da se-parao da teoria e da prtica e das formas que permitem sua reconexo.

    Desde suas primeiras obras, Marx e Engels identificam um papel para a categoria trabalho, porm inicialmente era apenas uma forma geral de luta do homem contra a natureza, como base de todas as sociedades humanas. O labor esteve, desde o incio, ligado alienao, provocando a questo da forma como essa degenerao da atividade humana foi possvel. Mas, desde o comeo, o trabalho era analisado na perspectiva da sua abolio, do processo de desalienao, revelando como se tratava j de uma anlise ao mesmo tempo negativa e positiva.

    A ideologia alem a primeira obra em que a articulao das catego rias essenciais da dialtica marxista emerge, madura, superfcie. Apario que surge, como vimos, sob a rica forma da negao e da superao, em que a crtica da realidade , ao mesmo tempo, a crtica de sua ideo logia nesse caso, dos neo-hegelianos de esquerda , forjando simulta neamente as novas categorias, que iro transformar a teoria e a realidade concreta sobre a qual ela se constri.

    Emir Sader