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https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate Ano XXIII nº 41, jan.-jun. 2014 – ISSN 2176-6622 p. 280-292 RESENHA CRÍTICA DA OBRA: “Um Discurso Sobre as Ciências”, de Boaventura de Sousa Santos 1 Monique Bertotti Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista do Programa de Bolsas de Mestrado e Doutorado da PUCRS – Probolsas, com atuação no Parque Científico e Tecnológico da PUCRS – Tecnopuc. [email protected] 1 INTRODUÇÃO A obra “Um discurso sobre as ciências”, de Boaventura de Sousa Santos, é um resgate histórico das ciências desde o paradigma dominante na modernidade, passando pela sua crise, até chegar ao período de transição em que vivemos, quando emerge um novo paradigma. A resenha será dividida em duas partes, e a primeira sublinhará as críti- cas feitas pelo autor ao uso do paradigma dominante na atualidade, tendo em vista que não responde mais aos anseios científicos e sociais. Ademais, trará a ideia do autor de que o modelo de ciência dominante, ou seja, da racionalidade científica, deve ser substituído por um novo paradigma, qual seja, o “paradig- ma de um conhecimento prudente para uma vida decente”. Para justificar o paradigma proposto, o autor apresenta um conjunto de teses, que serão sin- tetizadas ao longo da exposição: a) todo o conhecimento científico-natural é científico-social; b) todo conhecimento é local e total; c) todo conhecimento é autoconhecimento; d) todo conhecimento científico visa a se constituir em 1 Santos, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 16. ed. Porto: B. Sousa Santos e Edições Afrontamento, 2010. 59p. RESENHA

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    Ano XXIII n 41, jan.-jun. 2014 ISSN 2176-6622

    p. 280-292

    RESENHA CRTICA DA OBRA: Um Discurso Sobre as Cincias, de Boaventura de Sousa Santos1

    Monique Bertotti

    Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestranda em Direito pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Bolsista do Programa de Bolsas de Mestrado e Doutorado da PUCRS Probolsas, com atuao no Parque Cientfico e Tecnolgico da PUCRS Tecnopuc. [email protected]

    1 INTRODUO

    A obra Um discurso sobre as cincias, de Boaventura de Sousa

    Santos, um resgate histrico das cincias desde o paradigma dominante na

    modernidade, passando pela sua crise, at chegar ao perodo de transio em

    que vivemos, quando emerge um novo paradigma.

    A resenha ser dividida em duas partes, e a primeira sublinhar as crti-

    cas feitas pelo autor ao uso do paradigma dominante na atualidade, tendo em

    vista que no responde mais aos anseios cientficos e sociais. Ademais, trar a

    ideia do autor de que o modelo de cincia dominante, ou seja, da racionalidade

    cientfica, deve ser substitudo por um novo paradigma, qual seja, o paradig-

    ma de um conhecimento prudente para uma vida decente. Para justificar o

    paradigma proposto, o autor apresenta um conjunto de teses, que sero sin-

    tetizadas ao longo da exposio: a) todo o conhecimento cientfico-natural

    cientfico-social; b) todo conhecimento local e total; c) todo conhecimento

    autoconhecimento; d) todo conhecimento cientfico visa a se constituir em

    1 Santos, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as cincias. 16. ed. Porto: B. Sousa Santos e Edies Afrontamento, 2010. 59p.

    RESENHA

  • Resenha Crtica da Obra: Um Discurso Sobre as Cincias, de Boaventura de Sousa Santos

    281Direito em Debate Revista do Departamento de Cincias Jurdicas e Sociais da Uniju

    senso comum. Por sua vez, a segunda parte do trabalho trar consideraes

    crticas acerca da obra, com o escopo de frisar a pertinncia das colocaes

    do autor na atualidade.

    2 RESENHA

    O autor inicia a obra, cuja primeira edio de 1987, citando as ambi-

    guidades, complexidades e incertezas que pairam no tempo presente. Destarte,

    ao analisarmos a cincia do passado, veremos que, ao mesmo tempo em que

    parece ser parte de uma pr-histria longnqua, a base do campo terico da

    cincia atual. Do mesmo modo, ao voltarmos os olhos para o futuro, tambm

    veremos situaes contraditrias convivendo, na medida em que, ao mesmo

    tempo em que vislumbramos a sociedade da informao e do conhecimento,

    quando a tecnologia o centro de tudo, nos deparamos com uma cincia sem

    limites, que desemboca em guerras nucleares e em catstrofes ambientais. Tal

    paradoxo tpico de momentos de transio, como o ainda vivido nos dias de

    hoje (em que pese a obra seja de 1987, a fase de transio citada pelo autor

    ainda no chegou ao fim). Nesses momentos, urge que faamos perguntas

    simples, ou seja, profundas, mas de fcil entendimento, pois so essas que so

    capazes de causar revolues. Foram perguntas assim as feitas por Rousseau

    em meados do sculo 18, quando a humanidade vivia outra fase de transio.

    Diferentemente, contudo, das respostas que Rousseau elaborou outrora, as

    nossas sero, com certeza, extremamente complexas, at porque tambm

    altamente complexo o contexto em que a pergunta feita, tanto em termos

    sociolgicos quanto em termos psicolgicos.

    A transio citada por Boaventura de Sousa Santos diz respeito ao

    fim do ciclo de hegemonia de uma certa ordem cientfica. Para explicar essa

    transio entre tempos cientficos, estrutura a obra de forma a, primeiro, carac-

    terizar a ordem cientfica hegemnica para, em seguida, analisar a crise dessa

    hegemonia e, finalmente, propor um perfil de uma ordem cientfica emergente.

  • Monique Bertotti

    282ano XXIII n 41, jan.-jun. 2014

    2.1 O paradigma dominante

    O modelo de cincia dominante o de racionalidade cientfica.

    Constituiu-se a partir da Revoluo Cientfica do sculo 16 e desenvolveu-se,

    primeiramente, tendo como base as cincias naturais apenas no sculo 19

    estendeu-se s cincias sociais emergentes, tornando-se um modelo global.

    O modelo em comento admite uma variedade interna considervel, mas no

    tolera o senso comum e as humanidades ou estudos humansticos (estudos

    histricos, filolgicos, jurdicos, literrios, filosficos e teolgicos). Ademais,

    como modelo global que , o modelo da racionalidade cientfica totalitrio,

    uma vez que nega o carter racional a todas as formas de conhecimento que

    no seguirem seus princpios epistemolgicos e suas regras metodolgicas.

    O paradigma dominante, portanto, aceita apenas uma forma de conhe-

    cimento verdadeiro, a saber, a que segue os seus preceitos. Assim, o autor cita

    seguidores dessa racionalidade cientfica: Coprnico, Kepler, Galileu, Newton,

    Bacon e Descartes, cientistas que acreditavam ter encontrado, nas suas reas

    de pesquisa, o nico conhecimento verdadeiro. Esse paradigma cientfico luta,

    de forma ferrenha, contra todas as formas de dogmatismo e de autoridade,

    uma vez que seus cientistas esto certos de que o que os separa do paradigma

    aristotlico e medieval uma nova viso do mundo e da vida, a qual distin-

    gue conhecimento cientfico de conhecimento do senso comum e natureza

    de pessoa humana. Ademais, ao contrrio da cincia aristotlica, desconfia

    sistematicamente das evidncias das experincias imediatas, as quais, por estar

    na base do conhecimento vulgar, so ilusrias. Nas palavras de Boaventura

    de Sousa Santos: Com base nesses pressupostos, o conhecimento cientfico

    avana pela observao descomprometida e livre, sistemtica e tanto quanto

    possvel rigorosa dos fenmenos naturais (2010, p. 13).

    A cincia moderna empregava como instrumento de anlise a ma-

    temtica, a fim de encontrar o conhecimento mais profundo e rigoroso da

    natureza. Dessa ode matemtica derivaram duas consequncias principais:

    1) conhecimento como sinnimo de quantificao: as qualidades do objeto

  • Resenha Crtica da Obra: Um Discurso Sobre as Cincias, de Boaventura de Sousa Santos

    283Direito em Debate Revista do Departamento de Cincias Jurdicas e Sociais da Uniju

    investigado so relegadas a segundo plano, uma vez que o mais importante a

    sua traduo em quantidade, ou seja, a sua quantificao; 2) reduo da com-

    plexidade do mundo, por meio da diviso e classificao sistemtica: a diviso

    primordial a que distingue entre condies iniciais e leis da natureza. Assim,

    a descoberta de leis da natureza requer o isolamento das condies iniciais

    relevantes e pressupe que o resultado se produzir independentemente do

    lugar e do tempo em que se realizarem as condies iniciais, ou seja, a posio

    absoluta e o tempo absoluto nunca so condies iniciais relevantes. Conforme

    Wigner, citado por Boaventura de Sousa Santos (2010), esse princpio o mais

    importante teorema da invarincia da fsica clssica.

    De acordo com Santos (2010), as leis da cincia moderna so um tipo

    de causa formal aristotlica, na medida em que privilegia o como funciona

    em detrimento de qual o agente ou qual o fim das coisas. nesse ponto que o

    conhecimento cientfico rompe com o senso comum, uma vez que nele a causa

    e a inteno convivem harmoniosamente, enquanto naquele a determinao

    da causa formal obtida por meio da expulso da inteno.

    A cincia moderna pressupe um mundo sem mudanas, em que pre-

    valece a segurana, a ordem e a previsibilidade em todos os sentidos da vida.

    Nesse contexto, possvel formular leis e pretender que elas sejam seguidas

    e respeitadas, seja nas cincias naturais (com Newton, principalmente), seja

    nas cincias sociais (nas quais os grandes precursores foram Bacon, Vico e

    Montesquieu). Essa ideia de mundo-mquina a chave do mecanicismo da

    poca moderna. paradoxal concluir que toda a transformao que nos conduz

    sociedade da informao e do conhecimento, era das incertezas, em que

    as leis no tm vez, oriunda de uma viso de mundo em que a ordem e a

    estabilidade imperam. Consoante o autor, a verdade que so precondies

    para as transformaes em curso.

    A previsibilidade dos fenmenos naturais, por meio de leis fsicas e

    matemticas, fundamentou o determinismo mecanicista que ir sustentar a

    cincia moderna. Esse modelo de fazer cincia, ento hegemnico, logo foi

    empregado pelas cincias sociais. Afinal, se foi possvel descobrir as leis da

  • Monique Bertotti

    284ano XXIII n 41, jan.-jun. 2014

    natureza, seria possvel descobrir as leis da sociedade. Assim, com a emergncia

    das cincias sociais, em meados do sculo 19 duas correntes distintas a respeito

    do emprego do modelo mecanicista pelas cincias sociais emergiram: a primeira

    visava a aplicar, na medida do possvel, ao estudo da sociedade os princpios

    epistemolgicos e metodolgicos utilizados no estudo da natureza (cincias

    sociais como parte das cincias naturais; modelo eleito por Durkheim); a se-

    gunda reivindicava uma epistemologia e uma metodologia prprias ao estudo

    das cincias sociais, com base nas especificidades do seu objeto de estudo, a

    saber, o ser humano (Max Weber, Peter Winch).

    Ambas as correntes, contudo, so concepes da cincia moderna,

    ainda que a segunda represente um sinal de crise e possua alguns elementos

    da transio para um outro paradigma cientfico. Explica-se: ambos os

    entendimentos seguem o modelo de racionalidade das cincias naturais, visto

    que empregam distines como natureza X ser humano, natureza X cultura

    e ser humano X animal, tpicas do paradigma dominante e so prisioneiras

    do reconhecimento da superioridade das cincias naturais em detrimento das

    cincias sociais.

    2.2 A crise do paradigma dominante

    H diversos sinais de que o paradigma dominante atravessa uma crise

    que, alm de profunda, irreversvel. Tal crise resultado de uma pluralidade

    de condies, as quais podem ser distintas entre condies sociais e tericas.

    Quanto s condies tericas, o autor destaca que contriburam para a

    crise do paradigma dominante: 1. a revoluo cientfica iniciada com Einstein e

    sua teoria da relatividade (importa salientar que Einstein relativizou as leis de

    Newton, consideradas at ento como intocveis, no domnio da astrofsica; 2.

    a mecnica quntica (relativizou as leis de Newton no domnio da microfsica,

    com Heisenberg e Bohr); 3. o rigor da matemtica (nesse contexto, importa

    destacar as investigaes de Gdel, com o teorema da incompletude e os

    teoremas sobre a impossibilidade); 4. o avano do conhecimento nas reas

  • Resenha Crtica da Obra: Um Discurso Sobre as Cincias, de Boaventura de Sousa Santos

    285Direito em Debate Revista do Departamento de Cincias Jurdicas e Sociais da Uniju

    da microfsica, qumica e biologia na segunda metade do sculo 20 (como

    exemplo, tm-se as investigaes do cientista Ilya Prigogine, como a teoria

    das estruturas dissipativas e o princpio da ordem por meio de flutuaes).

    No que respeita s condies sociais da crise do paradigma da cincia

    moderna, no so tratadas de forma detalhada, certamente em virtude de

    sua complexidade e de sua extenso. De acordo com o autor, o que a cincia

    ganhou em rigor das ltimas dcadas do sculo 20, perdeu em capacidade de

    autorregulamentao. Destarte, as ideias de autonomia da cincia e do desin-

    teresse do conhecimento findaram com o fenmeno global da industrializao

    da cincia. O fato pode ser exemplificado tanto com o ocorrido no Japo,

    com as bombas de Hiroshima e Nagasaki, quanto, mais recentemente, com

    as catstrofes ecolgicas e os constantes perigos de guerras nucleares. Como

    discorre o autor, portanto, notrio que a industrializao possui compromis-

    so com os centros de poder econmico, social e poltico, os quais definem as

    prioridades das cincias. Por fim, Boaventura de Sousa Santos ainda salienta

    dois efeitos principais oriundos da industrializao da cincia, quais sejam,

    a estratificao da sociedade cientfica, com a proletarizao de inmeros

    cientistas, e a investigao capital-intensivista, que tornou impossvel o livre-

    -acesso a equipamentos, aumentando o fosso de desenvolvimento cientfico

    entre pases ricos e pobres.

    2.3 O paradigma emergente

    Os sinais da crise do paradigma dominante permitem especulaes

    acerca de qual ser o paradigma emergente, mas no o determinam. Nesse

    sentido, o autor prope o paradigma de um conhecimento prudente para

    uma vida decente (Santos, 2010, p. 7), o qual no apenas um paradigma

    cientfico de conhecimento prudente, mas tambm um paradigma social de vida

    decente, tendo em vista que a revoluo cientfica ocorre em uma sociedade

    revolucionada pela cincia. Para justificar o paradigma proposto, Boaventura

    apresenta um conjunto de teses: a) todo o conhecimento cientfico-natural

  • Monique Bertotti

    286ano XXIII n 41, jan.-jun. 2014

    cientfico-social; b) todo conhecimento local e total; c) todo conhecimento

    autoconhecimento; d) todo conhecimento cientfico visa a se constituir em

    senso comum.

    a) Todo o conhecimento cientfico-natural cientfico-social

    De acordo com o autor, no h mais sentido a concepo mecanicista

    que faz distines entre cincias naturais e cincias sociais, ainda mais que

    os avanos recentes da fsica e da biologia rechaam tal dualismo. Ademais,

    ao contrrio do que ocorria na cincia moderna, no paradigma emergente a

    inteligibilidade da natureza presidida por conceitos, teorias, metforas e

    analogias das cincias sociais, na tentativa, inclusive, de aproximar as cincias

    da humanidade. Nas palavras do autor: como se o dito de Durkheim se

    tivesse invertido e em vez de serem os fenmenos sociais a serem estudados

    como se fossem fenmenos naturais, serem os fenmenos naturais estudados

    como se fossem fenmenos sociais (Santos, 2010, p. 42).

    b) Todo conhecimento local e total

    Na cincia moderna, tem-se a ideia de que quanto mais especfico o

    conhecimento, melhor a pesquisa, e mais explorado est o seu objeto. Tal

    conhecimento, contudo, segregador, e torna o cientista um ignorante especia-

    lizado. Assim, no paradigma emergente, o conhecimento total e, sendo total,

    tambm local, pois til aos indivduos de determinada comunidade. Sendo

    local, tambm total, porque reconstitui os projetos de conhecimento locais,

    ou seja, incentiva a emigrarem para outros lugares cognitivos. O conhecimento

    do paradigma emergente, portanto, ao ser total, no determinstico e, ao

    ser local, no descritivista. Ademais, no segue um nico mtodo cientfico,

    mas utiliza de uma pluralidade metodolgica (no paradigma dominante, vista

    como uma transgresso metodolgica).

  • Resenha Crtica da Obra: Um Discurso Sobre as Cincias, de Boaventura de Sousa Santos

    287Direito em Debate Revista do Departamento de Cincias Jurdicas e Sociais da Uniju

    c) Todo conhecimento autoconhecimento

    A maior personalizao do conhecimento advm da composio

    transdisciplinar e individual que caracterizam o paradigma emergente. Assim

    como no h mais razo na distino entre cincias naturais e cincias sociais,

    tambm no se pode mais tolerar a distino entre sujeito e objeto feita pela

    cincia moderna. Desse modo, podemos afirmar que todo o conhecimento,

    ou seja, todo o ato de conhecer o objeto autoconhecimento, isto , forma

    de o cientista conhecer.

    d) Todo conhecimento cientfico visa a se constituir em senso comum

    A cincia moderna faz do cientista um ignorante especializado e do

    cidado comum um ignorante generalizado. O paradigma emergente, ao

    contrrio, entende que nenhum conhecimento desprezvel, e estimula a inte-

    rao entre os mesmos. Destarte, no despreza o senso comum, pois entende

    que, apesar de, sozinho, ser conservador, sua interao com o conhecimento

    cientfico extremamente enriquecedora, e cria uma nova racionalidade, a

    qual feita de racionalidades.

    3 ALGUMAS CONSIDERAES CRTICAS

    O socilogo portugus Boaventura de Sousa Santos um dos maiores

    pensadores contemporneos, e suas crticas, sempre muito bem formuladas

    e fundamentadas, versam acerca de temas como globalizao, sociologia

    do direito, epistemologia, democracia e direitos humanos. Na obra ora em

    anlise, no diferente: o autor critica o paradigma dominante e rechaa as

    diferenciaes que tendem a criar desigualdades cientficas, como a distino

    entre cincias naturais e cincias sociais e o desprezo ao senso comum. Assim,

    e em busca de uma democratizao do conhecimento cientfico, vislumbra a

  • Monique Bertotti

    288ano XXIII n 41, jan.-jun. 2014

    emergncia de um novo paradigma, o qual denomina paradigma de um co-

    nhecimento prudente para uma vida decente, apto a valorizar as mais variadas

    experincias humanas e ampliar o acesso ao conhecimento.

    Na obra aqui analisada, o autor faz reflexes acerca das mudanas que

    esto ocorrendo nas cincias a partir da crise do paradigma dominante, ou

    seja, a crise da cincia moderna e a emergncia de um novo paradigma, que

    acompanha a cincia ps-moderna. Tais modificaes esto inseridas em um

    contexto de mudanas sociais, uma vez que no h como modificar a socieda-

    de sem refletir nas cincias e nem se quer que assim seja. Essas mudanas

    sociais so muito bem explicadas por Bauman, que define o contexto em que

    a cincia moderna se desenvolveu como fase slida e o contexto atual como

    fase lquida:

    Em primeiro lugar, a passagem da fase slida da modernidade para

    a lquida ou seja, para uma condio em que as organizaes sociais

    (estruturas que limitam as escolhas individuais, instituies que asseguram a

    repetio de rotinas, padres de comportamento aceitvel) no podem mais

    manter sua forma por muito tempo (nem se espera que o faam), pois se de-

    compem e se dissolvem mais rpido que o tempo que leva para mold-las e,

    uma vez reorganizadas, para que se estabeleam. pouco provvel que essas

    formas, que j presentes ou apenas vislumbradas, tenham tempo suficiente para

    se estabelecer, e elas no podem servir de arcabouos de referencias para as

    aes humanas, assim como para as estratgias existenciais a longo prazo, em

    razo de sua expectativa de vida curta: com efeito, uma expectativa mais curta

    que o tempo que leva para desenvolver uma estratgia coesa e consistente, e

    ainda mais curta que o necessrio para a realizao de um projeto de vida

    individual (2003, p. 7).

    Na fase lquida, em que a sociedade se organiza em rede, no h lugar

    para as definies hierrquicas e estratificadas que dominaram na cincia

    moderna. A insegurana, a no conformidade s regras, a incerteza e a in-

    quietude, no so mais as vils, as causadoras dos maus sociais e cientficos,

  • Resenha Crtica da Obra: Um Discurso Sobre as Cincias, de Boaventura de Sousa Santos

    289Direito em Debate Revista do Departamento de Cincias Jurdicas e Sociais da Uniju

    mas as grandes propulsoras das novas descobertas cientficas, as quais s so

    possveis a partir de uma desconstruo das leis e das hierarquias que vigeram

    no passado.

    Apesar, contudo, de todas as mudanas, de toda a desconstruo de

    Leis e da vigncia de uma nova cincia, ainda aprendemos cincia a partir do

    paradigma antigo. No obstante a transio ser lenta, uma vez que o paradigma

    moderno no ir sucumbir repentinamente,2 ensinar ainda a Fsica sob as leis

    de Newton ou o Direito como somente aquilo que est legislado, demonstra o

    quo difcil se desapegar das certezas e seguranas do passado, que, apesar

    de falsas, acomodavam-nos (e, infelizmente, ainda nos acomodam). Na era da

    incerteza e da insegurana, a inquietude a maior virtude, a mola propulsora

    das novas descobertas.

    No mbito do Direito no diferente. Os paradigmas que serviram

    modernidade no atendem mais aos anseios que acompanham a ps-

    -modernidade:

    Os tradicionais paradigmas que serviram bem ao Estado de Direito

    do sculo XIX no se encaixam mais para formar a pea articulada de que

    necessita o Estado contemporneo para a execuo de polticas pblicas

    efetivas. Assim, perdem significao: a universalidade da lei, pois os atores

    sociais possuem caractersticas peculiares no divisveis pela legislao abs-

    trata; o princpio da objetividade do direito, que o torna formalmente isento

    de qualquer contaminao de foras polticas, quando se sabe que toda a

    legislao vem formulada na base de negociaes polticas e partidrias; a

    2 A ps-modernidade chega para se instalar definitivamente, mas a modernidade ainda no deixou de estar presente entre ns, e isto fato. Suas verdades, seus preceitos, seus princpios, suas instituies, seus valores (impregnados do iderio burgus, capitalista e liberal), ainda permeiam grande parte das prticas institucionais e sociais, de modo que a simples superao imediata da modernidade iluso. Obviamente, nenhum processo histrico instaura uma nova ordem, ou uma nova fonte de inspirao de valores sociais, do dia para a noite, e o viver transitivo exatamente um viver intertemporal, ou seja, entre dois tempos, entre dois universos de valores enfim, entre passado erodido e presente multifrio (Bittar, 2008, p. 133-134).

  • Monique Bertotti

    290ano XXIII n 41, jan.-jun. 2014

    idia da conteno do arbtrio pela lei, fator em descrdito frente ineficcia

    e inefetividade das atitudes de combate corrupo e s taxas elevadssimas

    de impunidade; a regra de igualdade perante a lei, como garantia da indis-

    tino e do deferimento dos mesmos direitos a sujeitos igualmente capazes

    e produtivos no mercado, quando se sabe que as oportunidades so maiores

    para uns e menores para outros; a idia de que a codificao representaria

    uma obra cientfico-legislativa, obra-prima do saber jurdico, com disciplina

    nica e sistemtica das matrias por ele versadas, insuscetveis de lacunas e

    de erronias, possibilitando a exegese harmnica do sistema, quando se sabe

    que os cdigos possuem o mesmo potencial de dissincronia com as mudanas

    sociais que os demais textos normativos; a tripartio clara das competncias

    das esferas e das instncias do poder como forma de manter o equilbrio do

    Estado, o que na prtica resulta em dissintonia entre as polticas legislativas,

    as polticas judicirias e as polticas administrativas e governamentais, criando

    Estados simultneos orientados por valores desconexos; a idia da democracia

    representativa como fomento igualdade de todos e realizao da vontade

    geral rousseauniana, quando se sabe que a populao vive merc dos usos e

    abusos na publicidade, no discurso e na manipulao polticas; a intocabilidade

    da soberania, como forma de garantia da esfera de atuao com exclusividade

    dos poderes legislativos, jurisdicionais e executivos em bases territoriais fixas

    e determinadas na ordem internacional, quando se sabe que a interface da

    internacionalizao dos mercados e da interdependncia econmica tornam

    inevitvel o processo de integrao; a garantia de direitos universais de primeira

    gerao, como forma de expressar a proteo pessoa humana, o que na pr-

    tica ainda pouco se incorporou s realizaes scio-econmicas; a garantia da

    existncia da jurisdio como garantia de acesso a direitos, quando se sabe que,

    em verdade, a justia se diferencia para ricos e pobres, pelos modos como se

    pratica e pelas deficincias reais de acesso que possui (Bittar, 2008, p. 145-146).

    A nova realidade social e cientfica em que vivemos fora-nos a repensar,

    a aprender e a ensinar a cincia jurdica a partir desse novo paradigma, ou seja,

    do paradigma emergente. Destarte, urge deixarmos para trs o positivismo e

  • Resenha Crtica da Obra: Um Discurso Sobre as Cincias, de Boaventura de Sousa Santos

    291Direito em Debate Revista do Departamento de Cincias Jurdicas e Sociais da Uniju

    a segurana jurdica, e a viso de que somente Direito o que est nos C-

    digos: o Direito muito maior que isso, e no se pode querer que, em plena

    modernidade lquida, quando a transformao permanente, os cidados

    vejam suas condutas engessadas em Cdigos e em milhares de leis, as quais,

    em sua maioria, sequer conhecem.

    O novo pensar cientfico defendido por Boaventura de Sousa Santos,

    portanto, traduz a nova ordem social, em que a interao, a incerteza e a in-

    segurana so as principais caractersticas. Essa nova cincia exige um novo

    paradigma, uma vez que seus anseios no so mais atendidos pelos mtodos

    conservadores, hierrquicos e ortodoxos da cincia moderna. Esse paradigma

    deve ser, alm de cientfico, social, uma vez que, na ps-modernidade, o co-

    nhecimento cientfico e no cientfico esto em permanente contato e servem

    sociedade, a fim de torn-la menos desigual e mais democrtica. A adoo

    do novo paradigma urgente, pois as mudanas sociais a exigem. Assim,

    Ou enfrentamos os excrementos sociais expelidos pelos parlamentos,

    instituies e favelas, para recolher o que de proveitoso resta na reconstruo

    dialgica de um futuro melhor para a humanidade; ou prosseguimos cegos,

    bebendo do vinho desse louco Bacco cartesiano, para que as geraes vindouras

    decidam o que fazer com o que restar dela e do mundo que conhecemos ou

    que conseguimos reconhecer (Aronne, 2010, p. 38).

    4 REFERNCIAS

    ARONNE, Ricardo. Aproximaes crticas ao Direito Civil-Constitucional, re-personalizao, Direitos Reais e caos: determinismo dogmtico e indeterminao jurisprudencial. In: ARONNE, Ricardo. Razo e caos no discurso jurdico e outros ensaios de Direito Civil-Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 37-76.

    BAUMAN, Zygmunt. Modernidade lquida. Traduo Plnio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. 258p.

  • Monique Bertotti

    292ano XXIII n 41, jan.-jun. 2014

    BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na ps-modernidade. Revista Seqncia, n. 57, p. 131-151, dez. 2008.

    SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as cincias. 16. ed. Porto: B. Sousa Santos e Edies Afrontamento, 2010. 59p.

    Recebido em: 24/2/2014

    Aceito em: 9/3/2014