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Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 1 São Tiago Maior: o Apóstolo Mataíndios (séculos XVI E XVII) Juberto de Oliveira Santos 1 Resumo O objetivo é retratar a utilização de santos conquistadores na América Ibérica, compreendendo o uso do culto de São Tiago Maior como parte das estratégias da conquista hispânica nos trópicos, submetendo os nativos à ordem colonial. A adaptação do culto de São Tiago, iniciado no século IX (844), correspondeu à manutenção da proteção dos conquistadores na luta contra os novos inimigos da fé, mas com uma nova roupagem e função: sendo o aliado dos espanhóis na luta contra os índios. E com o avanço da colonização, seus poderes passam a ser invocados visando a controlar os nativos rebeldes. O santo fora transformado, mais uma vez, em cavaleiro, adotando uma nova imagem, a de Santiago Mata- índios. Seu culto, portanto, foi utilizado como parte das estratégias da conquista tanto de corpos quanto de almas. Na leitura dos cronistas do período da conquista em Nova Espanha e no Peru busco indicações sobre a devoção ao santo, como eram feitas suas representações e o que se buscava reforçar com a divulgação de tal religiosidade. Assim, se buscará entender como o culto a São Tiago pode ter sido um instrumento de dominação e evangelização dos nativos do Novo Mundo e de proteção dos conquistadores espanhóis. Tiago Maior, o Filho do Trovão São Tiago Maior foi um dos apóstolos de Jesus Cristo. Tiago era natural de Betsaid, na Galiléia, e pescador de profissão. Era filho de Zebedeu, um pescador da Galiléia, e Maria Salomé e era irmão mais velho de João, apóstolo e evangelista. Quando Jesus instituiu os doze Apóstolos, ele acrescentou a Tiago e João o nome de “Boanerges”, isto é, Filhos do Trovão, visando a expressar a sua natureza apaixonada e impulsiva 2 . Assim, esse apóstolo é chamado de Tiago Zebedeu; Tiago, irmão de João; Tiago Boanerges ou Tiago, o Maior. 1 Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ. E-mail: [email protected]

São Tiago Maior: o Apóstolo Mataíndios (séculos XVI E XVII)

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ISBN - 978-85-61621-01-8

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São Tiago Maior:

o Apóstolo Mataíndios (séculos XVI E XVII)

Juberto de Oliveira Santos1

Resumo

O objetivo é retratar a utilização de santos conquistadores na América Ibérica,

compreendendo o uso do culto de São Tiago Maior como parte das estratégias da conquista

hispânica nos trópicos, submetendo os nativos à ordem colonial. A adaptação do culto de São

Tiago, iniciado no século IX (844), correspondeu à manutenção da proteção dos

conquistadores na luta contra os novos inimigos da fé, mas com uma nova roupagem e

função: sendo o aliado dos espanhóis na luta contra os índios. E com o avanço da colonização,

seus poderes passam a ser invocados visando a controlar os nativos rebeldes. O santo fora

transformado, mais uma vez, em cavaleiro, adotando uma nova imagem, a de Santiago Mata-

índios. Seu culto, portanto, foi utilizado como parte das estratégias da conquista tanto de

corpos quanto de almas. Na leitura dos cronistas do período da conquista em Nova Espanha e

no Peru busco indicações sobre a devoção ao santo, como eram feitas suas representações e o

que se buscava reforçar com a divulgação de tal religiosidade. Assim, se buscará entender

como o culto a São Tiago pode ter sido um instrumento de dominação e evangelização dos

nativos do Novo Mundo e de proteção dos conquistadores espanhóis.

Tiago Maior, o Filho do Trovão

São Tiago Maior foi um dos apóstolos de Jesus Cristo. Tiago era natural de Betsaid, na

Galiléia, e pescador de profissão. Era filho de Zebedeu, um pescador da Galiléia, e Maria

Salomé e era irmão mais velho de João, apóstolo e evangelista. Quando Jesus instituiu os

doze Apóstolos, ele acrescentou a Tiago e João o nome de “Boanerges”, isto é, Filhos do

Trovão, visando a expressar a sua natureza apaixonada e impulsiva2. Assim, esse apóstolo é

chamado de Tiago Zebedeu; Tiago, irmão de João; Tiago Boanerges ou Tiago, o Maior.

1 Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. E-mail: [email protected]

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Nos Evangelhos percebemos que Jesus possuía dentre os apóstolos aqueles escolhidos

como testemunhas de acontecimentos especiais na sua vida. Tiago era um destes agraciados,

pois é visto na ressurreição da filha de Jairo3, na Transfiguração4, quando Jesus se retirou para

orar e transfigurou-se diante de Elias e Moisés; além de estarem presentes com Jesus no Horto

das Oliveira, na agonia do Senhor, ao lado de Pedro e João5.

São Tiago Maior6

El Greco, Hl. Jacobus der Pilger, 1610 Toledo, El Greco Museum. Espanha

2 Isso se deu porque, certa vez, quando os samaritanos trataram mal Jesus, eles perguntaram ao Mestre se “deviam invocar os céus para que fossem devorados pelo fogo”. Em outro episódio, pediram a Ele se poderiam sentar a sua direita e a sua esquerda quando o mesmo estivesse em plena Glória. Apesar de repreendê-los, Cristo teria enxergado na dupla o dom da graça e, carinhosamente, os apelidou dessa forma. In: (Mc 3, 17) Bíblia Sagrada, Editora Ave-Maria, 150ª Edição, São Paulo, 2002. p.1325 3 Jairo, o chefe de uma sinagoga, tem uma filha às portas da morte. Enquanto Jairo pede a ajuda de Jesus chega mesmo a notícia de que ela já tinha morrido. No entanto, Jesus, decidido, exorta-o a ter fé. Vai visitar a filha de Jairo e ela foi curada milagrosamente. In: Bíblia Sagrada. 150ª Edição, São Paulo: Editora Ave-Maria, 2002. p. 1358-1359. 4 (Mt 17, 3-9) Bíblia Sagrada, op. cit., p.1304-05. 5 (Mc 14, 32-34) ibid., p. 1341. 6 Imagem extraída do site: http://www.tu-dresden.de/phfikm/Kunstgeschichtefinal/spanien/matam.html. Acesso em: 15 de junho de 2006.

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A última notícia que temos dele na Bíblia é no livro dos Atos dos Apóstolos, quando

se fala da perseguição de Herodes, para agradar aos Judeus. Tiago é considerado o protomártir

dos apóstolos, morto pelo Rei Herodes Agripa I (10 a.C - m. 44 d.C ), em Jerusalém7. Teria

sido sepultado em Jerusalém, mas, segundo outra tradição, seu corpo foi trasladado para a

Galícia (Espanha). A partir daí, vemos inúmeras lendas, as quais tentam dar conta desse

translado. A partir do relato de sua morte, o que vemos são tentativas de explicar o que se

passou com o corpo do apóstolo. As tradições e lendas passam a fazer parte de sua história,

leituras que tendem a ser duvidosa e até imaginárias, segundo alguns críticos. Depois o local

da sepultura ficou esquecido durante séculos.

O Surgimento de seu Culto na Espanha

Segundo a tradição cristã, o Apóstolo Tiago passa vários anos pregando o Evangelho

na região norte da Espanha, onde está situada a vasta Galícia, naquela época uma província

romana, logo depois da ascensão de Jesus Cristo. Tiago escolhera aquela região da Espanha

para realizar a sua pregação do Evangelho. Teria pregado durante cinco ou seis anos, mas sem

muito sucesso. Vendo que não tinha êxito e só havia ganhado nove discípulos, deixou ali dois

deles para pregar e com os outros sete voltou para a Judéia, onde foi morto. Nada disto se

pode comprovar historicamente. Não vai além do século VIII ou, quando muito, do VII, a

tradição da vinda de São Tiago, e são dignos de ponderação os argumentos em contrário

deduzidos do silêncio da literatura eclesiástica até esse tempo. Datam do século IX os

primeiros textos que falam da transladação do corpo do apóstolo e do seu sepulcro em

Compostela. Este sepulcro e o dos dois discípulos, santo Atanásio e São Teodoro, foram

identificados com os que aparecem debaixo do Altar-mor da catedral e cuja construção é

evidentemente romana. Leão XIII declarou-os autênticos, pela bula Deos Omnipotens (1 nov.

1884).

No século IX, no ano de 813, um eremita chamado Pelayo, viu uma estrela de brilho

intenso, que parecia assinalar um lugar preciso. Iniciaram-se escavações no local e

descobriram o corpo do apóstolo intacto. O lugar ficou conhecido como Campo das Estrelas

ou Campus Estelae, dando origem ao nome Compostela. Assim nasceu a devoção, a tradição

à Santiago, o apóstolo peregrino. Começaram a acontecer muitos milagres. A imagem de São

7 (At 12, 1-2) Bíblia Sagrada, op. cit., p. 1428.

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Tiago passa a representar um peregrino (com sandálias, cajado na mão, chapéu, cabaça...). A

presença de um corpo apostólico elevou aquele lugar ao nível de Antioquia, de Éfeso e de

Roma e, mais importante ainda, fez nascer o líder cristão capaz de unificar a luta contra o

inimigo comum, os muçulmanos.

Abaixo, como exemplo, vemos uma imagem, representando Tiago como apóstolo

peregrino. Imagens e pinturas de São Tiago passarão a representá-lo com novos atributos:

com sandálias, cajado na mão, chapéu, concha, cabaça e manto serão alguns dos atributos da

sua representação de peregrino.

São Tiago Peregrino, ca. 1489–1493. Gil de Siloe. Espanha; The Cloisters Collection, 1969 (69.88)

Museu Metropolitano de Arte, Nova York, EUA.8

São Tiago tornava-se o santo Padroeiro da Espanha9. O apóstolo peregrino passava a

ser cultuado pelos cristãos ibéricos. Da mesma forma que os muçulmanos tinham sua

8 Imagem extraída do site: www.metmuseum.org/toah/ho/08/eusi/ho_69.88.htm. Acesso em: 20 de abril de 2006.

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peregrinação à Meca10, os cristãos também passariam a sua peregrinar à região de Santiago de

Compostela. Eles seguiam uma rota (caminho de Santiago) para chegar à sepultura do

apóstolo.

O Santo Reconquistador

Os árabes invadiram a Espanha em 711 e deixaram, aos ibéricos, apenas o norte da

península, conhecida por Astúrias, onde se mantém a resistência à dominação praticamente

consolidada. Nesse período, fazia falta aos hispânicos uma figura que unificasse a luta contra

o inimigo comum. Nas batalhas, se os mouros invocavam a Maomé, os cristãos passam a

chamar por Santiago. Nos arredores de Logroño, a apenas dezessete quilômetros da cidade, no

sopé de uma colina sobre a qual ainda se avistam as ruínas de um antigo castelo, situa-se a

pequena aldeia de Clavijo. Embora, situada fora da rota de peregrinação, foi ali que ocorreu

um dos fatos mais importantes da história do Caminho de Santiago. Em 23 de maio de 844, o

rei Ramiro I de Leon (842-850) enfrentava grande desvantagem numérica as tropas

muçulmanas do califa Abderramán II. No meio da batalha, o apóstolo Santiago apareceu

montado em um corcel branco, decapitando os mouros e ajudando a vitória dos cristãos,

contrariando todos os prognósticos.

9 LORENZO, Francisco Singul. “Sentido e Imaxe da Peregrinación a Santiago de Compostela”, Seminario Permanente de Literatura Comparada, Departamento de Ciência da Literatura, Rio de Janeiro: Faculdade de Letras – UFRJ, 1997. p.41. 10 Meca é a cidade onde nasceu Maomé em 570. É a mais importante de todas as cidades santas do Islã, visitada todo ano por numerosos peregrinos. Situada a oeste da Península Arábica, é a capital do Hejaz. Possui atualmente uma população com cerca de 1.692 milhões habitantes. A peregrinação a Meca é chamada Hajj. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Meca. Acesso em: 12 de agosto de 2007.

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Santiago Matamoros

São Tiago Maior na Batalha de Clavijo Juan Carreño de Miranda, 1660, Museum of Fine Arts, Budapest11.

A tradição diz que esta vitória só foi possível porque São Tiago, em pessoa,

ajudou as tropas cristãs, montado em um cavalo branco. Desde então, nasceu o culto de São

Tiago Matamoros ("mata mouros") que rapidamente espalhou-se pela Europa. É assim que

Santiago, o apóstolo de Jesus, que confia no poder da palavra, converte-se num guerreiro, que

toma a espada. Deste modo, o culto religioso ao apóstolo tornou-se, ainda, motivo de fé e de

esperança nas lutas medievais pela reconquista das terras sob dominação. Nascia, aí, uma

nova representação de São Tiago, não mais exclusivamente como apóstolo ou peregrino, mas

como cavaleiro defensor da cristandade em Espanha. Muitos combatentes, nobres e plebeus,

juraram tê-lo tido a seu lado, nas encarniçadas e sangrentas batalhas travadas nos campos de

honra, dando origem à lenda de Santiago, o Mata-mouros – Matamoros, estímulo ao povo e

exemplo da coragem hispânica na defesa do reinado cristão.

11 Imagem extraída de: http://www.lacabalesta.it/testi/santi/giacomo.html. Acesso em: 16 de outubro de 2006.

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Esse culto atravessou definitivamente os Pirineus (e os tampos) e a figura de Santiago

Matamouros foi muito bem recebida reforçando o legado de Carlos Magno na luta dos

cristãos contra as tropas islâmicas. Por conta disso, o santo foi muito importante durante todo

o período da Reconquista na Espanha e Portugal, tornando-se o símbolo do foco espiritual.

São Tiago tornou-se o santo Padroeiro da Espanha. E a espada como punhal em forma de cruz

se tornou o símbolo do apóstolo Tiago. Ao longo dos séculos, essa figura celestial, montando

um cavalo branco, espada na mão, mostrou-se capaz de carregar um significado mais amplo,

se levarmos em consideração o seu papel na conquista do Novo Mundo. A partir do século

XV vemos uma Europa em fase de transformação, tanto na economia quanto na política, nas

artes, nas ciências e na fé.

Em uma obra datada da segunda metade do século XVIII, a qual assinalava a vida dos

grandes reis, papas e imperadores europeus; em relação ao reinado de Ramiro I, há referência

ao apóstolo em sua nova conformação guerreira.

“RAMIRO I – Foi valoroso, e se fez célebre pela gloriosa vitória de Clavijo, que alcançou dos infiéis, matando 60 U. Mouros, por favor, especial do Céu, que conseguiu invocando o Apóstolo Santiago Maior, o que ele reconheceu, e agradeceu, enriquecendo com grandes dádivas a sua Igreja de Compostela, e instituindo a ordem dos seus Cavaleiros, que depois confirmou o Papa Alexandre III em 1175. Morreu em I. de Fevereiro de 850. Reinou 26 anos.”12

O santo patrono e defensor do rei da comunidade cristã era um cavaleiro sobrenatural

que ajudava os reinos cristãos contra o Islã e na expansão territorial em direção ao sul da

península. Assim, o Santiago das Escrituras é o pescador que se tornou um dos Apóstolos. O

Santiago dos soldados era o cavaleiro que entrava nas batalhas para auxiliar os cristãos contra

os mouros. A cada vitória frente aos exércitos do Califa, a tradição do “Santo

Reconquistador” ia se tornado cada vez mais forte.

São Tiago e o Período da Expansão Ibérica

Com o término da guerra de Reconquista e o conhecimento das terras a oeste da

Europa, as energias da união entre o reino de Aragão e Castela voltaram-se para a busca de

12 SILVA, Damião l e. Historia Cronológica dos Papas, Emperadores, e Reys, que tem reinado na Europa, do Nascimento de Christo até o fim do anno de 1730. Coimbra: Officina de Antônio Simões Ferreyra, 1731. p. 166-167.

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riquezas (ouro e prata principalmente) nas recém descobertas terras ocidentais. Através desses

objetivos, muitos espanhóis partem para o ocidente, muitas vezes clandestinamente em busca

de tais fortunas e guiados pelo móvel religioso. Nesse período de grandes transformações

surgiu a figura de Martinho Lutero (1483-1546), um monge agostiniano da cidade de Erfurt

(parte central da atual Alemanha), que passou a questionar dogmas e começa a difundir uma

nova doutrina religiosa com novos valores e concepções de mundo; iniciando o período

conhecido posteriormente como a Reforma Protestante, o qual foi um movimento que rompeu

a unidade do Cristianismo centrado pela Igreja de Roma. Esse movimento é parte das grandes

transformações econômicas, sociais, culturais e políticas ocorridas na Europa nos séculos XV

e XVI, que enfraqueceram a Igreja permitindo o surgimento de novas doutrinas religiosas –

Protestantes.

O Concilio de Trento, em decreto de 1563, determinou o uso maciço de imagens para

fins de propaganda e doutrinamento, reafirmando a necessidade prática de demonstração

visual a título de exemplo e de edificação. As imagens se constituem como parte fundamental

da comunicação humana, capaz de transmitir tanto sentimentos quanto conteúdos intelectuais

e seu poder no campo religioso é fora de dúvida, sendo o didatismo da arte da contra-reforma

bom exemplo disso. O uso das imagens era pensado como mecanismo de comunicação e,

portanto, catolização. Assim, a evangelização passa a ser ampliada, com inúmeras estratégias,

dentre as quais se destacam o uso do culto dos Santos e da Virgem Maria e a difusão de

imagens. Iniciam destruindo templos, imagens e qualquer lembrança de uma característica

religiosa nativa e substituindo por elementos e imagens cristãos. Vê-se uma agressão porque

esta conquista religiosa causa modificação de hábitos que remontam às origens de um povo, e

isto vai enfraquecendo tais povos para a conquista se concretizar.

Para Gruzinski13, a empresa colonial, até o século XVIII, foi acompanhada do que ele

chama de “ocidentalização” e que, segundo o autor, anima processos profundos e

determinantes: a evolução da representação do indivíduo e das relações interpessoais, a

transformação dos códigos figurativos e gráficos, dos meios de expressão e de transmissão do

saber, a mutação da temporalidade e da crença, a redefinição do imaginário e do real. O autor

aponta ainda que a evangelização era o maior instrumento da ocidentalização, tendo, portanto,

a conquista espiritual buscado o domínio tanto das almas como dos corpos. E uma das 13GRUZINSKI, S. A guerra das imagens e a ocidentalização da América. In: VAINFAS, Ronaldo. (org.). América em tempo de Conquista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

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maiores estratégias da conquista espiritual era a guerra das imagens. Dessa forma, fez desse

modo, parte das estratégias de evangelização na América a construção de santuários, capelas,

conventos e catedrais; além de expor suas representações divinas sobre fachadas, paredes e

muros, ocorrendo concomitantemente duas frentes: as campanhas de extirpação das idolatrias

(modo como viram as crenças nativas) e a evangelização sistemática dos índios.

Para os evangelizadores, a redução dos cultos indígenas ao demoníaco implicava, ao mesmo tempo, uma condenação moral e uma rejeição estética. Os deuses locais só podiam ser horrendos. O ícone indígena era imediatamente rebaixado à posição de ídolo proscrito e repugnante. Mas a desqualificação e o rebaixamento decretados pelos evangelizadores baseavam-se em categorias, classificações e divisões desconhecidas pelos índios.14

No Novo Mundo e, mais especificamente no México e Peru, entendemos que a

Espanha utiliza a maioria dos recursos visuais de que dispunha no século XVI, com a

finalidade de embasar o seu plano de dominação. As sociedades indígenas não tinham

reconhecidas suas instituições e, principalmente, suas crenças religiosas. Para a Igreja

Católica, tais crenças eram vistas como “falsas, com uma idolatria também falsa, através da

veneração de imagens vãs e sem fundamento, inspiradas, sem dúvida, pelo diabo”15. Assim,

esse processo de cristianização hispânico foi altamente enfocado na localização, detectação e

destruição maciça de tais símbolos e ídolos. A condenação da idolatria nativa garantiria a

combinação dos interesses e objetivos cristãos e os da Coroa: busca de riquezas e a salvação.

Esse processo de “limpeza” é iniciado com a destruição de templos, imagens, pinturas e

qualquer lembrança de uma característica religiosa nativa. Tais símbolos foram substituídos

por elementos e imagens cristãos.

O maior instrumento de difusão da fé era a imagem, pois facilitava a comunicação

com os nativos e possuía um enorme papel pedagógico. Gravuras, estátuas e quadros vindos

da Europa e, posteriormente, produzidos na Nova Espanha, assumiam um importante papel na

difusão do ideário de mundo tal como a fé católica o concebia. E esse processo de infusão

durou os três séculos da dominação espanhola. É importante ressaltar que esse processo não

foi apenas de assimilação por parte dos nativos, mas assumiu também uma série de estratégias

de apropriações e reinterpretações vastamente aproveitadas pelas sociedades indígenas na

14 GRUZINSKI, S. La colonización de lo imaginario. Sociedades indígenas y occidentalización en el México español. Siglos XVI - XVIII. México: F C E, 1991. p. 176. 15 GRUZINSKI, S. A guerra das imagens e a ocidentalização da América.

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América espanhola. Em relação a são Tiago Maior, entendemos que tal culto foi amplamente

difundido nas terras ultramarinas, além da doutrina, dos dogmas, das crenças e das demais

tradições católicas, como parte do projeto de inclusão da América Hispânica no Ocidente

cristão. Entende-se que a catequização vista no colonialismo espanhol na América vai se

dando ampliada com a construção de santuários, capelas, conventos e catedrais; além de expor

suas representações divinas sobre fachadas e muros, ocorrendo concomitantemente duas

frentes: as campanhas de extirpação das idolatrias e a evangelização sistemática dos índios.

São Tiago Maior: um conquistador nos Trópicos

Entendemos que a difusão do culto de São Tiago esteve desde já vinculada com o

processo da Expansão Marítima espanhola, vendo também sua atuação com o encorajamento

dos navegantes espanhóis, sendo ele, mais uma vez solicitado como protetor no além-mar

visando também à segurança dos tripulantes das embarcações. A religiosidade hispânica era

forte e o povo sempre recorreu a Deus, a Virgem e aos santos para superar os momentos de

tormenta e angústia. No período da Reconquista (Séc. VIII – XV), vemos a forte atuação “Del

Señor Santiago” em favor do povo ibérico. Com a saída rumo ao desconhecido, a mares

nunca antes navegados, o apóstolo seguiu junto como um defensor. São inúmeros os relatos

de capitães assinalando esse fervoroso auxílio sobrenatural. Desde a primeira expedição de

Cortez vemos a presença de tal ajuda.

No ano de mil e quinhentos e dezenove, havendo chegado com uma pequena frota a terra firme desta Nova Espanha, aquele prodígio de fortaleza e prudência militar Fernando Cortes; flor dos Capitães do mundo, e singular glória de nossa Espanha, e saltando em terra com quinhentos espanhóis no rio de Tabasco junto ao povo de Titla; topou-se com 40 mil índios que foram ao seu encontro. E a mando em seu favor o glorioso apóstolo Santiago, lutando com eles (...) os venceu e matou muitos deles.16

Essa proteção trazia muita segurança e coragem aos espanhóis, pois assim como seus

antepassados, teriam sucesso em sua jornada, pois Santiago estava com eles e não deixaria

que nada de mal acontecesse. Nos séculos XVI - XVII vemos os relatos de suas aparições e

suas extraordinárias ajudas nos momentos mais cruciais das batalhas e nos momentos de

16 OJEA, Hernando. (O.P.). Historia del glorioso apostol Santiago(1615). Santiago de Compostela: Hunta Galicia/consellería de Cultura e Xuventude, 1993. p. 241-242.

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desespero e desânimo dos conquistadores. O santo assegurava o triunfo da fé, não sobre os

povos nativos, mas sobre o demônio que se encontrava entre eles (lembrando a questão da

Idolatria a qual eram acusados pela Igreja). O santo era todo-poderoso e até bastante cruel, só

se inclinava perante a Deus. Quando guerreava com os nativos, sempre os vencia.

Saliento ainda que inúmeras embarcações receberam o nome do Apóstolo visando

ampliar a proteção. As naus eram “batizadas” de Santiago e a devoção crescia e se espalhava

pelas regiões. Temos relatos de embarcações em Portugal possuindo também o nome do

santo. Uma das embarcações da Armada de Fernando de Magalhães (1480-1521), na famosa

viagem de circunavegação, em 1519, recebeu tal honraria. Eram cinco embarcações

(Santiago, Trinidad, San Antonio, Concepción e Victoria) sendo tripuladas por cerca de 234

homens ao todo. A Santiago era a menor embarcação, com 75 toneladas e com 32 pessoas a

bordo. Durante a estadia em Porto de San Julian, Fernão de Magalhães procurou efetuar o

levantamento da costa mais para Sul, sendo designado o “Santiago”, o menor dos navios, para

tal missão. Os conquistadores tinham no santo como grande protetor no ultramar.

Após o Concílio de Trento, a Igreja de Roma passou a intensificar os projetos de

catolização da América, com inúmeras estratégias, dentre as quais se destacam as ações

ostensivas dos missionários Jesuítas, o uso do culto dos Santos e da Virgem Maria e a difusão

de imagens. Iniciaram destruindo templos, imagens e qualquer lembrança de uma

característica religiosa nativa e substituindo por elementos e imagens cristãos. Vê-se uma

agressão porque esta conquista religiosa causa modificação de hábitos que remontam às

origens de um povo, e isto vai enfraquecendo tais sociedades nativas, facilitando sua

dominação psicológica, fazendo com que a conquista fosse possibilitada. Segundo Pierre

Chaunu, esta conquista religiosa também representava a vitória de uma religião otimista e que

encorajava os homens naquele momento, sobre uma religião pagã, idólatra e pessimista.

Georges Baudot assinala que a “A conquista espiritual da América é posivelmente a maior

empresa de transmutação ideológica da época moderna”.17

Vêem-se amplas vantagens dos espanhóis em meio às batalhas: aproveitavam-se das

rivalidades das sociedades nativas para aumentar consideravelmente seu exército; a utilização

dos cavalos e armas de fogo; conheciam o ferro e o aço, causando um efeito psicológico

muito grande e um forte temor por parte dos índios. E unia-se às táticas e instrumentos bélicos 17BAUDOT, Georges. La vida cotidiana em la América española em tempos de Felipe II, siglo XVI, México: Fondo de Cultura Econômica, 1983. p. 287.

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de dominação o uso das imagens e do culto dos santos, como um vetor essencial da

sensibilidade religiosa, pois o discurso religioso, muitas vezes, tornou-se um dos meios da

conquista.

A produção artesanal das imagens se achava comprometida com o serviço da

cristianização e penetração da cultura ibérica no ultramar. Nesse âmbito percebe-se também o

uso em particular do culto a São Tiago Maior que auxiliara a luta dos espanhóis contra os

infiéis, na figura de mata-mouros, sendo o símbolo da destruição moral do povo inimigo além

de sua destruição física; com uma nova roupagem e função: sendo o executor de índios.

Transformava-se, pois, no Apóstolo Mata-índios. Diz a historiadora mexicana Elisa

Vargaslugo:

Não cabe a menor dúvida de que uma das maiores figuras sagradas da hagiografia espanhola, que foi para a Nova Espanha e que figurou como importante personagem da conquista militar, foi Santiago Apóstolo, Santiago Matamoros; santo padroeiro de Espanha, quem, segundo o registro deixado por Dom Rafael Heliodoro Valle, aparecendo sete vezes durante as batalhas entre índios e espanhóis montado num brilhoso corcel branco, espada na mão, lutando pelo triunfo da Espanha.18

Nota-se que, mesmo após o fim do longo processo de Reconquista, o culto a são

Tiago permanecia forte. O padroeiro do povo espanhol passaria a ser mais uma vez solicitado,

sendo, dessa vez, o soldado sobrenatural o protetor dos conquistadores no Novo Mundo, um

verdadeiro guerreiro em terras ultramarinas.

O Apóstolo Mataíndios

Algumas décadas após a queda da sociedade Inca, um nobre indígena andino,

habitante de uma região ao sul dos Andes Peruanos, resolveu escrever ao rei Felipe III (1578-

1621) da Espanha. Seu objetivo era a reforma do governo colonial espanhol, a fim de salvar

os povos andinos das forças destrutivas da exploração colonial, das doenças e da mescla

racial. Assinalava as péssimas condições em que os índios viviam. Escreveu um texto de

1.200 páginas, com cerca de 300 imagens ocupando lugar de estaque em cada capítulo. Felipe

Guamán Poma de Ayala (1535?-1615) entendia o poder persuasivo que as imagens podiam

trazer ao leitor. A carta se perdeu no caminho e foi achada cerca de 300 anos depois. Em um

18 VARGASLUGO, Elisa. Imágenes de la conquista em el Arte Novohispano. In: sentido y proteção de la conquista. Leopoldo Zea (org.). México: Instituto Panamenricano de Geografia e História, fev.1995. p.132.

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dos capítulos, traz informações sobre a intervenção de São Tiago na Guerra de Arauco (1550-

1656) contra os Incas, em Cuzco. O autor marca como se dá essa ajuda, além das

conseqüências para os nativos peruanos. Analisemos a gravura do livro de Guamán Poma de

Ayala:

Santiago Mataindios19

Observando a imagem entendemos melhor os novos atributos que esta

representação do santo passa a ter: a vestimenta do apóstolo e de seu cavalo é diferente da

época medieval: trajando uma armadura dourada e ornamentada dos pés a cabeça, na cabeça

vemos o Elmo e, em um dos braços, um escudo em forma arredondada. Porta um estandarte

em uma das mãos e uma espada bem afiada na outra. Características típicas dos

conquistadores e podemos ainda ressaltar o cavalo usando adereços vistos no exército 19 A Conquista milagrosa del Senhor São Tiago Maior, apóstolo de Jesus Cristo, em Cuzco.” In: AYALA, Don Felipe Guamán Poman de.. La primera Crónica y Buen Gobierno. 1615, p.406.

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espanhol naquele período. Também observamos uma semelhança com os antigos relatos

ibéricos da aparição de São Tiago Maior, como acontecia no período da Reconquista: vindo

dos céus, raios caindo nos inimigos, montado em um cavalo branco e empunhando uma

espada em uma das mãos e um estandarte na outra. Além disso, vemos os espanhóis gritando

o nome do santo antes das batalhas, tal qual acontecia nos confrontos contra os mouros. A

ilustração traz essas descrições e mostra um inca caído aos pés do cavalo, sem reação,

subjugado. Essa era a prática da conquista: com a ajuda de São Tiago, não tinha como os

nativos reagirem, pois a vitória já estava assegurada pela ajuda divina. Estavam assombrados

e debilitados por tantas novidades impostas pelos conquistadores. O imaginário colonial

passava a estar norteado também pela invocação do “Senhor Santiago”. Ao analisar este

manuscrito podemos perceber a mudança de característica do culto ao apóstolo. Escreveu em

1615, após cerca de 30 anos de trabalho, uma crônica sendo destinada somente ao Rei Felipe

III de Espanha. O texto é do século XVII, porém outros relatos assinalam que essa

“readaptação” aconteceu desde os primeiros anos da Conquista.

Na leitura dessa e de outras crônicas do período da Conquista em Nova Espanha e

no Peru (Bernal Diaz de Castilho e Don Felipe Guamán Poman de Ayala) tem-se buscado

indicações sobre a devoção ao santo; como eram feitas suas representações e o que se

intentava reforçar com a divulgação de tal devoção. Nesse sentido, intenta-se compreender

como o culto a São Tiago pode ter sido um importante instrumento de dominação e

evangelização dos índios do Novo Mundo. Além das crônicas, a documentação iconográfica é

fundamental. As imagens são importante elemento de nossa cultura, de nosso imaginário.

Elisa Vargaslugo aponta ainda que a imagem plástica da conquista se apresenta em

duas vertentes: em representações narrativas e em composições alegóricas referidas à

conquista dos nativos, havendo, ainda a combinação dessas duas formas. Nesse sentido, é

fácil perceber que o culto a São Tiago, o padroeiro da Espanha, seria de grande importância

no período da conquista, como um personagem principal; aparecendo novamente sob a forma

guerreira, em inúmeras batalhas entre ameríndios e espanhóis. E quando o processo de

conquista ia se desenvolvendo, seus poderes passavam a ser invocado visando a controlar os

nativos rebeldes. Outro ponto interessante é que a conquista dos nativos se dava tanto pela

ação dos missionários, como pelo medo dos índios pelos espanhóis.

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Dessa forma vemos que a difusão do culto cristão foi deixando de ser exclusiva do

clero espanhol e foi passando também para as mãos indígenas, que, aos poucos, foram

difundindo a fé dentro da região onde habitavam. O culto a São Tiago também esteve inscrito

nesse âmbito e as imagens foram um vetor privilegiado na cristianização do imaginário

indígena. Os nativos viam São Tiago como um deus, desde o primeiro instante: para eles, era

o grande fator que garantia sempre a vitória espanhola. Não tinha como vencer uma força

sobrenatural, a qual era superior aos seus deuses. Segundo o pesquisador Louis Cardaillac20:

O cavalo de Santiago aterrorizou os indígenas e se converteu durante séculos em um símbolo de conquista da Nova Espana. Os primeiros índios corriam aterrorizados dos cavalos. Eles achavam que se tratavam de homens com duas cabeças e quatro patas. Muito rapidamente, a aparição do cavalo na colonização da América teve intervenções milagrosas. Vemos a vigência da imagem do cavalo de Santiago na cultura popular mexicana. 21

Santiago Mataindios22

20 Louis Cardaillac é investigador do Colégio Jalisco em Guadalajara, México. 21 CARDAILLAC, Louis. Santiago, de matamoros a mataindios. In: Revista La Aventura de la História. Espanha: Arlanza Ediciones, S.A. nº 33 - Julho 2001. 22 Pintura Cusqueña do século XVIII. Museu de Cuzco – Peru. Disponível em: http://www.elperuano.com.pe/identidades/64/apuntes.asp. Acesso em: 18 de janeiro de 2007.

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Segundo as crônicas da época, Santiago apareceu mais de 13 vezes nas batalhas

mantidas na América, das quais nove delas tiveram lugar em menos de 23 anos (1518-

1541).23 Na conquista de México também se assinala a aparição de Santiago, mas o soldado

Bernal Dias de Castilho (1496-1584), que esteve presente, escreveu em sua crônica24 que

ainda que outros dessem por certa a aparição do apóstolo, na realidade muitos não o viram.

Bernal foi testemunha e ator dos principais sucessos na queda das grandes sociedades

indígenas meso-americanas, tais como os Maias e os Astecas, na epopéia dos espanhóis na

América no Século XVI. 25

Além das aparições nas batalhas, São Tiago foi a devoção hispânica mais representada

nas pinturas de retábulo e esculturas, em quase todos os conventos e igrejas; além dos

afrescos, os quais expunham aos nativos o essencial da iconografia cristã nos séculos XVI e

XVII.

Porém, o que ainda hoje se sabe, existem duas interessantes e belas criações dos primeiros anos do século XVII, nelas que trazem a conquista espiritual e – também a ferocidade – da derrota física dos povos pré-hispânicos. Nas obras, os protagonistas são Santiago Apóstolo e o povo asteca.26

Sabe-se que difusão dessa forma de representação, como Mata-índios, foi muito

ampla, pois evangelizadores pregavam utilizando quadros, realizando inúmeros comentários.

E, com o passar dos anos, os próprios índios começaram a reproduzir tais representações.

23 CARENAS, Francisco. RAMOS, Alicia. Santiago: Santo apóstol de dos mundos. Encuentros en Catay, N. 7, 1993. 24 CASTILLO, Bernal Díaz del. História verdadeira da conquista da Nova Espanha. Edição, índices e prefácio de Carmelo Saenz de Santa Maria. Espanha: Madrid, Quinto Centenario: Alianza, 1989. 25 Informação extraída do site: http://pt.wikipedia.org/wiki/Bernal_Diaz_de_Castilho. Acesso em 12 de set.2006. 26 VARGASLUGO, Elisa. op. cit. p. 132.

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Batalha contra os Araucans27

A metrópole constituiu uma forma – impactada pelo visual, com a propaganda, o rigor

teológico e a massificação urbana – que serviu ao absolutismo monárquico, para difundir a

cultura hispânica e transmitir a fé cristã e garantir a inserção indígena na nova Ordem

Colonial. Ao mesmo tempo em que a difusão do culto a São Tiago foi um dos seus grandes

alicerces nesses primeiros dois séculos no Novo Mundo. Cada sociedade (conquistadores e

conquistados) possuía seus próprios valores, identidades, e, principalmente religiosidades

distintas. São Tiago seria um dos personagens principais visando a resolver tal impasse. O

conformismo das derrotas facilitou muito a aceitação de uma divindade “invisível” como

Santiago, que cavalgava milagrosamente por novos céus e novas terras, que, com suas

aparições, rapidamente deixava enfraquecido o espírito dos indígenas, assombrado e

debilitado, auxiliando os missionários e os conquistadores espanhóis a alcançarem seus

objetivos.

27 La bataille contre les Araucans (1550). Gravura Anônima do século XVII. In: OVALLE, Alonso de., Historica relacion del reyno de Chile, Santiago de Chile. Instituto de Literatura chilena, 1969. (Primeira edição lançada em Roma, em 1646)

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O período da conquista e colonização dos espanhóis na América trouxe inúmeras

conseqüências tanto para os nativos quanto para os habitantes do velho mundo. As sociedades

indígenas passaram a disputar suas terras com os conquistadores, sua estrutura social foi posta

em questão, seus cultos negados e combatidos. Vemos um período longo de tensão e um

gradual processo de apropriações culturais de ambos os lados, promovido pela forçada

convivência entre espanhóis e ameríndios.

Considerações Finais

Nesse processo, a divulgação do culto ao Apóstolo São Tiago Maior, fez parte das

estratégias de dominação hispânica e conquista espiritual, buscando submeter política e

moralmente os nativos à Coroa espanhola. O grande patrono foi, mais uma vez, solicitado

como protetor dos desbravadores dos mares, dos navegantes do período da expansão, dos

conquistadores do Novo Mundo. Durante os séculos XVI e XVII, foi “visto” inúmeras vezes

andando por novas terras e convertendo milhares de almas. Através de iconografias e

documentos textuais, averiguamos que o apóstolo pescador, o apóstolo peregrino, o cavaleiro

medieval teve seu culto readaptado, sendo reinventado com uma nova roupagem, visando a

uma nova incumbência em prol da expansão espanhola. Os mouros estavam vencidos, mas

colocava-se à frente dos hispânicos um novo inimigo: os indígenas.

Veremos Santiago Mataindios assombrando, aniquilando e controlando seus novos

oponentes ao longo dos dois primeiros séculos de dominação hispânica. Santiago montará

novamente em seu fiel corcel branco, vestirá uma nova armadura dourada, empunhará sua

afiada espada, terá seu brilhoso estandarte em uma das mãos e cavalgará por novas terras e

novos céus, teria assegurado a vitória dos seus fiéis.

Assim, ao longo dos séculos, essa figura celestial, montando um cavalo branco, com

espada na mão, mostrou-se capaz de carregar um significado mais amplo, se levarmos em

consideração o seu papel na conquista do Novo Mundo.

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