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Resumo Sob o perspectivismo de que “qualquer vida vale a pena”, o texto produzido a partir de uma conferên- cia explora certos campos de tensões que operam no campo da saúde sob o olhar da relação saúde e direito. Apesar de reconhecer os elementos consti- tutivos molares desse campo, advoga a noção de que os enfrentamentos vitais do modelo atual, no qual há vidas que valem mais a pena que outras, deve se dar ali na molecularidade do agir em saúde, na gestão e no cuidado, trazendo o lugar da prática como chave para a produção efetiva de novos modos de se pro- duzir as vidas, nos quais as diferenças são riquezas, e a vizinhança entre os distintos saberes é nuclear para a construção de apostas. Nestas, a riqueza de conexões existenciais é o melhor modo de se apostar que a produção de vida expressa o mais fundamental da construção do campo da saúde. Lançando mão de autores da micropolítica e da esquizoanálise, procura conduzir uma reflexão sobre as implicações desse “olhar construtivo. Palavras-chave: Política de saúde; Movimento sani- tário; SUS; Micropolítica; Direito e saúde; Gestão e Cuidado em saúde. Emerson Merhy Professor titular de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro/Macaé Endereço: Rua Marques de Abrantes 16, Flamengo, CEP 22239-061, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected] 1 Texto baseado na Conferência “Saúde e Direitos: escolhas para fazer o SUS” proferida no dia 23 de outubro de 2011, no XII Congres- so Paulista de Saúde Pública, promovido pela Associação Paulista de Saúde Pública, em São Bernardo do Campo, SP. Saúde e Direitos: tensões de um SUS em disputa, molecularidades 1 Health and Rights: tensions of a disputing SUS, molecularities Saúde Soc. São Paulo, v.21, n.2, p.267-279, 2012 267

Saude e Direitos - Tensoes de Um Sus Em Disputa - Merhy

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  • ResumoSob o perspectivismo de que qualquer vida vale a pena, o texto produzido a partir de uma confern-cia explora certos campos de tenses que operam no campo da sade sob o olhar da relao sade e direito. Apesar de reconhecer os elementos consti-tutivos molares desse campo, advoga a noo de que os enfrentamentos vitais do modelo atual, no qual h vidas que valem mais a pena que outras, deve se dar ali na molecularidade do agir em sade, na gesto e no cuidado, trazendo o lugar da prtica como chave para a produo efetiva de novos modos de se pro-duzir as vidas, nos quais as diferenas so riquezas, e a vizinhana entre os distintos saberes nuclear para a construo de apostas. Nestas, a riqueza de conexes existenciais o melhor modo de se apostar que a produo de vida expressa o mais fundamental da construo do campo da sade. Lanando mo de autores da micropoltica e da esquizoanlise, procura conduzir uma reflexo sobre as implicaes desse olhar construtivo.Palavras-chave: Poltica de sade; Movimento sani-trio; SUS; Micropoltica; Direito e sade; Gesto e Cuidado em sade.

    Emerson MerhyProfessor titular de Sade Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro/MacaEndereo: Rua Marques de Abrantes 16, Flamengo, CEP 22239-061, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

    1 Texto baseado na Conferncia Sade e Direitos: escolhas para fazer o SUS proferida no dia 23 de outubro de 2011, no XII Congres-so Paulista de Sade Pblica, promovido pela Associao Paulista de Sade Pblica, em So Bernardo do Campo, SP.

    Sade e Direitos: tenses de um SUS em disputa, molecularidades1

    Health and Rights: tensions of a disputing SUS, molecularities

    Sade Soc. So Paulo, v.21, n.2, p.267-279, 2012 267

  • AbstractAccording to the point of view that every life is worth it, this text, based on a conference made by the author at the XII Congress of Public Health of So Paulo, discusses certain areas of tension that are operative in the field of health regarding the relationship between health and rights. In spite of recognizing the molar constitutive elements of this field, it defends the idea that the vital fights inside the current model, in which there are lives that are more worth it than others, must happen inside the molecularity of the work in health, inside the man-agement and inside the care. It has to put the locus of practice as a key to the effective production of new modes of producing lives, where the differences are wealth and the vicinity between distinct forms of knowledge is nuclear to the making of bets. In these bets the richness of existential connections is the best way of betting that life production expresses the most fundamental aspect when building the field of health. Taking support from authors that discuss micro politics and schizoanalysis, the author tries and conducts a reflection about the implications of this constructive regard.Keywords: Health Politics; Sanitary Movement; SUS; Micro Politics; Health and Right; Management and Health Care.

    Para o mdico sanitarista Maurcio Chakkour

    Para apresentar a minha reflexo sobre o tema Sade e Direito: escolhas para fazer o SUS, optei por construir algumas imagens, expressivas do meu perspectivismo sobre as prticas de sade, o estado, o governo, entre outras dimenses; estas trazem para a cena o reconhecimento, que fao, de que o SUS se constitui em um campo de prticas sociais, situado sob uma superfcie de tenses que o posiciona como lugar permanente de disputas, sociais e histricas.

    De certa maneira, falar sobre muitas das temti-cas que podem atravessar o SUS tentar dar visibili-dade s foras e tenso constitutivas que o operam (Merhy, 2002a), para tornar explcitos os territrios de prticas que se disputa para sua conformao. Com este objetivo, destaco algumas daquelas ten-ses que considero centrais para o momento atual, em particular pela contribuio que possam dar no entendimento e aprofundamento do debate sobre a relao entre sade e direito, sempre olhados na perspectiva daquela tica.

    Para dar substncia vital a isso, trago de incio a imagem do que chamo SUS utopia, porque me permi-te colocar em evidncia muitas das questes nucleares que marcam nas minhas apostas o campo de disputa estruturante desse territrio de prticas sociais.

    Em primeiro lugar, tento reconhecer que no pouco, em particular no nosso pas, operar em um territrio de disputa social o campo da formao das polticas sociais, em particular na sade, no qual tem que se enfrentar as vrias apostas sociais sobre a pro-duo do sentido das vidas, individuais e coletivas.

    O uso daquela imagem traduz, para mim, a im-portncia do SUS como campo de prticas que opera nesse processo de produo e como isso o implica como lugar de enfrentamento daquela produo de sentidos. Ainda mais considerando-se essa disputa em um pas muito especfico como o Brasil, que no um pas qualquer diante dessa temtica do direito ou das conquistas sociais. Pois, nela h uma longa construo, no qual esse processo de produzir as desigualdades sociais ou da luta contra as desigualdades sociais enfrenta exatamente essa questo: que tipos de produo de vidas se quer.

    Ser que as vidas de todos e de qualquer um, valem a pena? Ou nem tanto? (Merhy, 2002b; 2010).

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  • Essa uma questo central, porque nesse pas se tem uma longa histria na qual a construo desse processo a permanente afirmao de que no valem, quer dizer, visitando exausto os 500 anos de pas mostra-se o quanto ele centrado na noo de que a vida das pessoas deve ser qualita-tivamente diferente, sendo que umas devem valer mais que outras.

    Pode-se, por exemplo, lembrar-se do nosso pas-sado colonial, do escravagista, mas pode-se tambm focar no perodo republicano para elaborar sobre isso, pois no necessrio ir to longe. O perodo republicano que se realiza durante esses ltimos cento e poucos anos um perodo muito explcito sobre essa questo, por reafirmar que de fato a vida de certos agrupamentos sempre valeu muito mais a pena do que a vida de outros. Diria at mais, que a construo dessas vidas que valem a pena sempre se deu em cima do consumo dessas vidas que so consideradas como as que no valem tanto a pena.

    Portanto, quando lano essa imagem do SUS utopia digo que todo esse processo social brasi-leiro - nesses ltimos trinta anos ou algo prximo disso que trabalha pela possibilidade de construir uma nova lgica nas prticas de cuidado na sade, de fato tem que enfrentar essa lgica anterior na sua constitutividade. E isso posiciona a todos desse campo social diante da questo: quais so as apostas que devem ser enfrentadas, quando vrios atores sociais vm e advogam a noo de que a sade um direito de todos, de que a construo da sade como um direito de todos um dever do Estado? Quando advogam que deve se construir uma poltica especfica que siga os princpios da universalizao, da equidade, da integralidade, e que para isso h que se produzir uma nova lgica nos arranjos ins-titucionais, no campo da poltica governamental, de cunho participativo e democrtico, para operar essa poltica?

    Quando se anda nesses terrenos no h dvida: de que se deve travar muitas disputas, das quais algumas bem radicais e nucleares, inclusive no sen-tido de estruturante tico-poltico do desenho de um devir social de certos desejos coletivos, utpicos; de que neste processo pode-se operar uma certa sada da forte tradio que ordena a histria brasileira, a de que as vidas das pessoas, a vida dos coletivos, no

    so equivalentes, no so igualmente fundamentais e nem devem ser.

    Nesse sentido, colocar essa imagem analisadora do SUS utopia tem o sentido de mostrar a disputa central que certo modo de fazer o SUS deve carregar dentro de si, com clareza suficiente que lhe abra a possibilidade de que o SUS s se realiza na medida que se governa pelo lema: a vida de qualquer um vale a pena. E, se a vida de qualquer um vale a pena, isso deve ter a fora, tensa verdade, de que ali no fazer do cotidiano do cuidado, no s a vida de quem se considera como socialmente significante que deve ser valorada, mas de modo fundamental a vida daquele morador de rua, daquele desinvestido socialmente que muitos dizem j no servir para mais nada, por ser improdutivo, no cidado, que s provoca inteis gastos sociais sem trazer nenhum benefcio para a coletividade (Merhy, 2012).

    Ao no se dar visibilidade a tudo isso e ao no se explicitar de modo claro as tenses sobre isso, inclusive produzindo novos espaos de conversas nas organizaes em torno dessas questes, os ti-pos de apostas que constituem o SUS e seus vrios lugares ticos-polticos, compromete-se de maneira nuclear a disputa mais vital da construo de uma certa alma dos modos de cuidar (Testa, 1997).

    A construo de certas lgicas de cuidado, certas redes de cuidado, a ateno a certos coletivos sociais, tm que partir em primeiro lugar dessa reflexo-aposta, desse perspectivismo, de que as vidas valem a pena, e mais que isso, de que qualquer forma de vida vale a pena (Guattari, 2000). Essa imagem do SUS utopia seria forte e basal para o reconhecimento de que este campo de prticas sociais fundamental-mente um campo de disputas radicais que no so fceis, inclusive porque trazem grandes implicaes no s para a luta em torno de um imaginrio no consagrado, mas para as formas de concretiz-lo ali no dia a dia das redes de servios, com impacto sobre os modos de produzir o cuidado em sade como um todo, no plano individual e coletivo.

    Essa uma questo, no meu olhar, que ao mesmo tempo potencializa a possibilidade de compreender as implicaes que h quando se est nesse campo da poltica do Sistema nico de Sade, e coloca o quanto necessria a capacidade coletiva de enfren-tar uma agenda to complexa.

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  • As pginas de jornais, por si, mostram o tamanho dessa briga ao revelarem a todo tempo como tem sido a conformao das polticas para certos agru-pamentos sociais, nas quais o processo da sade vem ocupando a centralidade e onde emergem de modo explcito as desigualdades no investimento na vida do outro. Nesse sentido, procuro tornar aqui impossvel pensar sobre o conjunto dessas questes como evidente que impossvel pensar sobre essa temtica do direito se no ficar clara a percepo de que no so simples questes conceituais, mas algo para ser vivido (Deleuze, 2012), porque entrar numa aposta da SUS utopia construir na ao prticas cotidianas que estabeleam novos sentidos enriquecedores dos viveres, como forma de produzir a sade.

    ******

    Abro, agora, uma segunda grande questo que con-sidero relevante e fundamental nessa discusso: as disputas que esto cravadas no territrio da sade, enquanto campo de produo do cuidado, na sua dimenso individual e coletiva.

    Como dizia antes, esse um campo que permite perceber com clareza as implicaes de uma aposta de que a vida de qualquer um vale a pena, no como algo para representar no pensamento, formular e dizer, mas para ser vivida nos encontros com os outros, em particular no mundo do trabalho em sade. Algo pra ser vivido porque se apresenta ali na cotidianidade dos encontros que constituem o Sistema nico de Sade, como realidade efetiva, nas prticas das equipes e de seus profissionais.

    Por ser to substancial, h que se debruar sobre essa questo com mais detalhe. Para isso, fao o convite de outra imagem: a que considera a visuali-zao dos encontros que so produzidos no campo de prticas do SUS, que devem ser da ordem de milhes e milhes por ano. Penso tambm sobre os vrios modelos de organizao de servios e redes de cuidado que a so operados e o jogo entre as dimen-ses pblicas e privadas que os atravessam. Jogo que est colocando em cena todos que a se encontram: trabalhadores, usurios e gestores bvio que h mais, mas nesse momento isso basta, pois volto ao tema pblico e privado em outro momento.

    Dentro dessa imagem, sobre esses encontros, que acho que so da ordem, de fato, de bilhes, me posiciono: o que ocorre neles de modo molecular (Guattari, 2012) a cada encontro? Como atravessado por aquele jogo, como nele se expressa a implicao da vida do outro, como circulam os poderes, entre (Foucault, 1979)? De que modo se constri a aposta na vida do outro? Vale a pena?

    E a h uma batalha central, uma tenso cons-titutiva da maior expresso. De que modo, no meu agir nesses encontros com os usurios e os meus colegas de trabalho, como algum que aposta no SUS, dou substncia para esse outro que ali est, em ato. Como o significo, de que maneira o trago para o meu campo de interveno, como objeto ou como sujeito, faz toda a diferena.

    Ali, na minha prtica cotidiana de encontro com os usurios ou com os membros da minha equipe, no dia-a-dia da minha produo como sujeito da ao, tanto das minhas prticas de produo de cuidado, quanto dos modos como governo minhas relaes na organizao (Merhy, 2002a), se no conseguir me acercar do outro qualquer, enquanto um outro que , sempre, sujeito do desejo, sujeito da vontade, de conhecimento relevante, produtor de modos de vida, de existncias, significativas e centrais para visualizar modos de produo da sade e de coletivos atuantes (Merhy e col., 2011).

    Nesse encontro com algum, posso valor-lo de uma maneira muito diferenciada, como enrique-cimento em mim pela sua diferena (Viveiros de Castro, 2010) ali em ato, ou agir de maneira comple-tamente oposta e inclusive me sentindo ameaado por aquela diferena, vinculando-me muito mais com uma produo de morte do que de vida. Aqui, morte no sentido de empobrecer as redes de cone-xes existenciais que todos sempre esto inseridos, como por exemplo, em um agir manicomial.

    Ao me encontrar com o outro em que me abro para a produo relacional que isso traz, se no me posiciono para as trocas que isso pode produzir no me disponho a ser afetado pelo outro pelas vrias formas de conexes que ali esto sendo produzidas. No me disponho a entend-lo como algum que produtor em si de modos de vida e nem a me desar-mar do lugar do saber sobre o outro como objeto de mim. Nesses modos de agir, nego em ao qualquer

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  • realizao de um SUS utopia.Para marcar como encaro isso, a imagem que

    trago, que sei ser muito pesada, mas que j parte de reflexes minhas anteriores, a imagem da cons-truo do agir torturador nas prticas de sade. Vou me explicar melhor, porque acho que necessrio fazer isso, para no ser banal.

    Por que uso esse tema do torturador? Porque ima-gino que h acontecimentos interessantes de serem observados, semelhana do encontro entre um trabalhador de sade e um usurio. Esse encontro um encontro muito vivo, em ato, um acontecimento em si. Por mais que o trabalhador tenha todo um arcabouo de conhecimento tecnolgico (Mendes Gonalves, 1994), no consegue dar conta de tudo que vai acontecer ali, no momento do encontro. Esse encontro produtor de sentido em si, para alm do que j est previamente imaginado para ele (Merhy e Onocko, 1997) (Ayres, 2001).

    Por mais que se tente enquadrar e conter tudo que ali ocorre, h uma dinmica intensiva do traba-lho vivo em ato operando de todos os lados. Isso cria uma imprevisibilidade que se realiza, por exemplo, no campo da produo do cuidado. A joga-se com muitas possibilidades de produo. Por exemplo, pode-se operar na direo da capacidade de produzir vnculos sem domnios entre os que esto nesse cam-po, capacidade de acolher as diferenas em ambos sentidos, de falar e de escutar entre iguais, e por a vai. Mas, e talvez por isso mesmo, no interior desses encontros-acontecimentos pode-se ter a capacidade de se produzir exatamente o contrrio: vinculo como dominao, escutas e falas entre uns mais legtimos falantes que outros, entre outras.

    Exatamente por isso pego emprestada a ima-gem do torturador. O torturador um operador de encontros-acontecimentos e no necessrio ter sido torturado para dizer isso. Ao debruar-se sobre as lgicas do agir torturador, v-se que um agir que trabalha com o encontro.

    O que um torturador e um torturado? H muitas dinmicas, nisso, que inclusive j foram objeto do olhar de muitos pensadores. Alfredo Naffah Neto (1985) produziu uma tese sobre o assunto. No tenho essa pretenso, pois s vou construir certa imagem desse encontro e explor-la para fins da minha reflexo.

    Nessa imagem, destaco a presena do agir tor-turador tentando produzir no encontro a fala do torturado: no uma fala qualquer, mas que o tortu-rado fale aquilo que ele quer escutar. O torturador chega a matar o outro por isso. Podemos imaginar que o torturador est supondo que o torturado vai poder revelar, com sua informao, algo que ser substancial para a sua ao vigilante e policialesca. Tortura-o para que produza a escuta que deseja e vai com isso at a exausto, correndo o risco inclusive de, com a produo da morte, perder a informao.

    Ora, essa dinmica do trabalho vivo em ato do torturador sobre o torturado. essa relao do tra-balho vivo do prprio torturado, do torturado com o torturador, uma dinmica interessante de se observar, pois me parece que tambm pode estar cravada no mundo da produo do cuidado. Por qu? Porque ali, na cotidianidade, uma boa parte daqueles bilhes de eventos, de encontros que a gente disse que o SUS proporciona, merecem ser olhados de um modo analtico, um pouco sobre esses ngulos que sugiro; ou seja, talvez seja interessante mirar nessa implicao da ao, do quanto a vida do outro vale a pena mesmo.

    Poder pensar sobre essa tenso do agir tor-turador na produo do cuidado, d a chance de visualizar de que maneira a organizao das redes de cuidado, as prticas dos profissionais, os modelos de cuidado, muitas vezes, centram-se numa lgica em que o saber do usurio s interessa se ele falar aquilo que se quer ouvir. Ou seja, h uma dinmica nesse encontro, tecnolgica porque cravada em certa lgica clnica e epidemiolgica, fincada nas prticas de cuidado individual e coletiva, que de certa maneira se assenta em uma grande tenso quanto a esse agir, ali dentro, no ato, que pode ser explorada para ser reafirmada ou vazada, na sua polissemia. No ?

    Vou usar um exemplo bem contemporneo, que tem a ver com o tema do crack, para dimensionar isso. Hoje, pode-se escutar no rdio ou na televiso propagandas educativas sobre a lgica de funcio-namento do crack, na qual se diz: diga no ao crack. Essa frase uma coisa interessante por conter uma ideia estruturante de que o sujeito desejante a o crack, a pedrinha, e voc, usurio, o seu objeto.

    Nessa propaganda no se permite a reflexo que

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  • possa sugerir: por que algum faz a escolha pelo uso do crack, ou seja, porque que um individuo que usa o crack faz de modo desejante essa escolha? Na propaganda h uma inverso, da pedra do crack como sujeito do desejo e do individuo como mero objeto, carregando com isso uma outra questo por dentro dela, a de que o usurio de droga, como efetivo sujeito desejante, no dono de seu prprio desejo e portanto tem que ser tutelado por quem sabe disso, por ele.

    Reconhecer isso ou no, faz toda a diferena no mundo do cuidado e nas ofertas que sero constru-das, inclusive na produo de sentidos para o agir ali no encontro com o usurio, que insisto no ser um dependente qumico, mas usurio de droga.

    Se o meu agir na produo do cuidado j parte do princpio que estou diante de um objeto e no de um sujeito desejante, implico, nas minhas constru-es do cuidado individual e nas prticas coletivas da sade, em modos torturador de ser. Isso me au-toriza dizer que o objeto, usurio de droga, no sabe o que quer e age maliciosamente, que quem sabe o profissional, o servio de sade, que deve, portanto, decidir. Com um agir torturador posso at produzir uma fala, como: me interne.

    Isso um bom exemplo do que chamo de uma lgica de prtica de cuidado vinculada ao que deno-minei de agir torturador, inclusive pelo exerccio intensivo, em ato, do trabalho vivo, no qual eu des-conheo a capacidade de desejo e de fala do outro em torno dos muitos desenhos tico-estticos como opes de existncias, que possa produzir. Caminho, desse jeito, exatamente para outro lugar, no qual posso produzir no outro o desejo de desejar aquilo que acho que ele tem que desejar. Pois , vejam que uma simples propaganda, pode carregar tudo isso.

    Carrega tudo isso e com implicaes serissimas para aquela discusso sobre a temtica do SUS uto-pia no eixo sade e direito. no interior dos bilhes de encontros sobre essa tenso que se pode resolver por vrios mecanismos a autorizao mtua, ou no, de uma certa abertura para o encontro intercessor (Deleuze, 2010) que h a, para poder operar com o outro novas maneiras de produo de modos de viver. H poder poltico institudo para isso, mas h tambm para fazer o contrrio. Por isso, nessa dimenso, como diz Guattari (1987), joga o lugar

    tico-poltico como fora que se inscreve no interior desses processos.

    A partir do exemplo do crack possvel ir para qualquer outro lugar no mundo do cuidado, como por exemplo a situao de usurios de servios tidos como diabticos, hipertensos, tuberculosos, ver isso em repetio ou em vazamento, e olh-los sobre a intensa produo de fracassos teraputicos, que se produz, quando se desapropria o outro do seu prprio modo de viver, do seu mundo de desejos e subjetivante.

    Chamo a ateno de novo para que se perceba no campo dessa segunda imagem de que modo reafirmado o campo da sade em geral e do SUS em particular, como campo de disputa. Pode-se e deve-se tomar essa disputa e colocar em anlise o prprio agir torturador, de si, do seu coletivo de trabalho, atravs das prticas individuais e coletivas que so construdas, ali, nos vrios encontros do dia a dia no mundo do trabalho.

    O no reconhecimento e a no possibilidade do outro operar como sujeito do desejo efetivamente nesses encontros, disputando com a gente as exis-tncias que quer viver, convive com a tenso de outras foras, tambm constitutivas desse processo, que podem fazer instituir outras conformaes do encontro, nas quais pode-se se dispor a abertura para trocas e acontecimentos imprevisveis, em acontecimento, atravs dos processos relacionais a existentes, bem como das afeces que o outro produz, enquanto enriquecimento dos modos de se conectar a novas construes de redes existenciais (Merhy, e col., 2011) coletivamente construdas. Sempre no e com o outro.

    Com isso, trago para o centro das aes tico-po-lticas cada um que a pode se encontrar, dispondo-se ou no a essas trocas ou a neg-las. E, nesse senti-do, chave pensar sobre a potncia que se inscreve nesses agires para, a priori, se ver implicado de modo individual e coletivo nos encontros da produo do cuidado, em uma aposta que define quais so as existncias que devem ser vividas e quais as exis-tncias que devem ser detonadas. E, nesse momento, no ato de cuidar incorporam-se de modo imediato as mesmas tenses do SUS utopia.

    A h um elemento tambm vital para se enten-der outra dimenso da temtica do direito, que

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  • a de reconhecer o outro como sujeito produtor de direito e no simplesmente como cumpridor do direito. Um direito no s como uma negatividade, mas como uma possibilidade de produo de vida, de existncias, como sugere, em vrios momentos, Marilena Chaui (2006).

    ******

    Essas questes abrem, nas suas tenses constituti-vas, outro tipo de disputa relevante, que me leva a caminhar para uma terceira cena, que vou construir para trazer tona as muitas situaes que atraves-sam e se expressam no campo das relaes entre as dimenses do pblico e do privado, que habitam o campo da sade como um todo e, em especfico, esses territrios que venho tratando, como o da produo do cuidado e das redes organizacionais que lhe do substrato.

    Antes de tudo, esse tema do pblico e do privado me convida a pensar pelo menos dois grandes luga-res; estesdepois vo me puxar para o quarto grande elemento que eu ainda vou querer tratar aqui. Um destes lugares quando se fala do pblico e privado no campo institucional da propriedade dos bens, ou seja, da apropriao privada dos bens, como as instituies privadas e suas conformaes; em contraponto, temos a prpria construo do governo enquanto uma ordem pblica, que, no entanto atra-vessada tambm pelo pblico e o privado sob as for-mas de apropriaes que se produzem socialmente dos arranjos institucionais e dos estabelecimentos pblicos (Serrano, 2012).

    Destes pontos de vista h algo que vale a pena observar, que anda por dentro do SUS, relevante na conversa com o SUS utopia; Diz respeito exatamen-te a esses mecanismos de apropriao dos lugares pblicos e seus arranjos sob a tica privatizante, como se pode cercar em qualquer tipo de anlise so-bre a produo do cuidado que esteja sendo operada em torno do interesses exclusivos de uns, e no de outros. Isto desenha uma dimenso de privatizao do pblico que tem alto impacto sobre o sentido da produo da sade, ocorrendo quando algumas vidas valem mais a pena ou quando o interesse de grupo se impe sobre o da multiplicidade de sentidos contidos nos coletivos.

    Diria que isso talvez um ponto muito marcante no SUS de hoje, e que me posiciona em um lugar de avaliao sobre esse campo de poltica muito difcil de ser trabalhado, devido a minha implicao hist-rica, junto com muitos, na luta pela construo desse campo de prticas sociais. No vou dizer que isso uma viso negativa, de perda, mas a considero, de certo ponto de vista, como problematizadora. Ela deva ser reconhecida como tal, at para que possa se posicionar de forma resistente, no sentido de agir na produo anti-sua-destruio. Considero que essa dimenso dos processos de privatizao dos inters-tcios do pblico anda em dobra com outra: o grande crescimento dos interesses das instituies priva-das, de vrios tipos, que se vinculam construo do SUS, que denomina-se de campo complementar e suplementar.

    Nesse tempo de Sistema nico de Sade, essa grande questo a da privatizao - vem adquirindo um desenho que vale a pena ser expresso atravs de alguns analisadores que podem alargar os modos de olh-la, compreend-la e de resistir.

    Reconheo que, no momento, no estou muito otimista, mas, como disse, isso s desafia a postura de se colocar a favor da construo de problemas a serem enfrentados e a a questo passa a ser, de novo, a de encarar e entrar nas disputas que devem ser travadas. Pois h muitas apostas sobre essa cons-truo do pblico e privado no SUS; historicamente, alis, esse um dos bons marcadores das disputas que o Movimento Sanitrio brasileiro travou. E estas apostas e disputas permitem posicionamen-tos implicados e sobreimplicados (Lourau, 2004), importantes quanto aos modelos de construo do pblico e privado, no campo da sade, sobre suas vrias dimenses.

    Houve uma aposta no que deveria ser a cons-truo do pblico e do privado no campo das ins-tituies, na organizao do SUS, cujo surgimento vem de antes da construo constitucional dessa poltica:vem l do movimento sanitrio pr-SUS, que pensava as possibilidades organizacionais dos primeiros arranjos institucionais que acabaram tendo alguma expresso, na prpria constituio brasileira em primeiro lugar, e depois nas lei da sade e regulamentao infraconstitucional.

    Essa aposta procurava construir, centralmente,

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  • um Sistema nico de Sade que se organizasse enquanto aparato pblico e que, ao se organizar en-quanto aparato pblico, reconhecesse que o privado tinha o seu lugar na oferta de servios de sade, sob duas dimenses: uma, dos estabelecimentos que se posicionariam complementarmente organiza-o do aparato pblico do SUS; outra, de um setor privado que operasse em si, direto no mercado da venda de planos de sade, considerado suplementar. (Campos, 2006)

    Quando se procura montar uma imagem desse processo, o Sistema nico de Sade visto como aparato pblico e cerne do Sistema Nacional de Sade. a base desse sistema sobre vrios aspectos, tanto no sentido da organizao geral da poltica de sade e, portanto (tomando o mbito governa-mental como campo de prticas de formulao), de deciso nuclear sobre o sentido do campo, como de prticas regulatrias, avaliativas, de financiamento e, inclusive, nucleares, na prpria constitutividade das redes de cuidado. Nisso, os setores privados en-tram para complementar: como, quando o sistema nico no tem capacidade de oferta de certos tipos de procedimentos, ento vai-se ao mercado de procedimentos e se faz compras. O suplementar vem do reconhecimento de que h um setor privado com uma clientela de consumidores especfica, a de consumidores do produto plano de sade, apesar de continuarem sendo tambm clientela-cidado do SUS.

    Essa era a imagem, que se firmou aps vrias disputas no prprio interior do movimento sanitrio e que se mostrou uma das viveis no perodo ime-diato, aps a ditadura, do processo constitucional. Foi desenhada nas negociaes do perodo consti-tuinte, l pelos anos 1980, l pela VIII Conferncia Nacional de Sade, na qual houve confronto entre posies distintas sobre a plena estatizao ou no do campo da sade.

    De um modo ou de outro, essa imagem est mar-cada l nos registros da constituinte, quando muitos militantes desse movimento iam ao Congresso Na-cional discutir com os deputados e com os senadores para tentar mostrar porque era importante que o setor privado ficasse sob a nossa capacidade regu-latria, porque que era importante definir que o SUS deveria ser pblico e o centro de todo esse processo

    de construo. Mesmo no tendo conseguido tudo que alguns desejavam tornar tudo absolutamente pblico conseguiu-se em termos constitucionais o reconhecimento legal de que o privado tinha relevn-cia, e como tal deveria estar sob a ao estatal.

    Esse processo, durante as dcadas de constru-o do SUS como mquina organizacional, desde a Constituio de 1988, apontou para uma reverso da aposta inicial no que se refere s lgicas que se transversalizam nos arcabouos pblico e privado do SUS. Aquelas apostas no se efetivaram.

    Talvez com certo sentido provocativo, apostando que se pode colocar em reflexo crtica os coletivos sociais que apostam no SUS quanto conformao e os lugares do pblico e do privado na construo do sistema nacional de sade, trago aqui como imagem que expressa um certo rosto do SUS:, que ele , que se tornou, de fato, complementar do setor privado vendedor de procedimentos e, tambm, suplementar s operadoras de planos de sade.

    Do meu perspectivismo, esse reconhecimento necessrio, mesmo que seja difcil de ser assimi-lado pelas nossas sobreimplicaes com um SUS pblico e central. O SUS-complementar e o SUS-suplementar precisam ser colocados em anlise, pois so a prpria evidncia de como est complexa a luta pelo SUS-utopia.

    Sei que esse desenho deve inquietar, mas como j havia afirmado antes, me inquietaria mais se no fosse certa forma de problematizar a disputa na qual se inserem todos que a atuam. E se no servisse como parmetro avaliativo-interrogador das propostas privatizantes que tm se realizado nas experincias de muitos governos municipais, estaduais e federal, inclusive sob as mais distintas prticas de privatizao dos arranjos institucionais e das redes de cuidado.

    Isso pode apontar para a possibilidade de se olhar o quanto o modo de organizar a capacidade de produo das redes de cuidado, atravs do Sistema nico de Sade, tem sido governado por essa lgica, e o quanto essa lgica vem ordenando a sua estru-turao. Inclusive, de que maneira isso contribui para uma real transferncia do fundo pblico do SUS, para os setores privados que vm efetivamente governando a agenda SUS.

    Diria mais: que aquela imagem do suplementar

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  • como algo menor e secundrio, como muitos do movimento sanitrio sempre consideraram, est de muito ultrapassada. Porque do ponto de vista da capacidade de operar sobre uma populao de ses-senta milhes de brasileiros num total de duzentos, isso at cria a iluso de ser um setor secundrio. Entretanto, do ponto de vista dos recursos, na mo-bilizao de fundos prprios, a situao oposta: o suplementar opera com muito mais que todo o SUS, mobilizando perto de 55% de todos os recursos que esto envolvidos com o campo da sade. Alm de parasitar os outros 45%. (Bahia e Scheffer, 2010)

    O mais dramtico desse processo todo que, quando se aborda os vrios grupos sociais para procurar entender o que imaginam para si, enquanto acesso a redes de cuidado de sade, h uma evidn-cia inquestionvel da vontade de serem usurios-consumidores dos planos de sade, e no usurios-cidados do SUS. Isso mais que dramtico, no desejo o SUS-suplementar uma representao social consolidada, que d sustentabilidade aos processos de privatizaes mais selvagens, apesar de ser efeito dos mesmos.

    Alm disso, marca um campo de disputa que j resultado de perdas e, portanto, mais rduo ainda, pois pede novos coletivos sociais operando a construo de um SUS que tenha como seu desa-fio reafirmar a si mesmo como alternativa, como poltica pblica, junto aos distintos grupos sociais, procurando comprovar que as prticas de sade fora do mercado que so as implicadas com a produo de mais vida qualificada.

    No h como no tornar explcito o conjunto dessa problematizao, pois s assim pode-se no lamentar mas resistir. H que se debruar sobre essas dimenses do processo de privatizao e criar uma pauta de enfrentamento, sem advogar ingenuamente de que o que estatal pblico, por si. Isso exige novas possibilidades e necessidades de se trazer para a cena um debate de novo tipo para a questo do estado, seus arranjos organizacionais e a conformao das polticas sociais.

    H uma conversa muito tensa nisso tudo, com o SUS utopia e com o agir anti-torturador: de que maneira consigo operar o enfrentamento de que a vida de qualquer um vale a pena, se estou ordenado numa materialidade de produo que exatamente

    centrada numa lgica invertida, na qual a vida do outro me interessa enquanto consumidor e substrato para o lucro?

    O desafio posto o de como vazar isso na sua constitutividade, ali no agir micropoltico do traba-lho vivo em ato, produtor de novas possibilidades de sentido, que no s o institudo.

    Reconhecer essa tenso, sua constitutividade e esse desafio, pode projetar o olhar sobre a privati-zao na sua molecularidade, no s sob o olhar da natureza da propriedade, mas da construo dos espaos de ao nos quais se opera a produo do cuidado e da gesto, ali no encontro cotidiano dos coletivos. Isto exige ficar atento ao que chamo de privatizao dos arranjos, como formas de suas apro-priaes e ocupaes, sobre interesses de alguns e a excluso do de outros que ali esto.

    Nessa molecularidade que se inscreve o traba-lho vivo em ato, tanto no cuidado quanto na gesto, comprometido com um SUS-utopia, que pode fazer explodir os poderes constitudos pelas lgicas per-versas do mercado e da privatizao.

    Para isso, no poderia deixar de apontar como os processos sociais, hoje em dia, de organizao dos campos profissionais, em particular os do campo da sade, tm constitudo um terreno frtil para criar fragmentao e medo do diferente.

    Diria que as profisses, em geral, seguem a mesma lgica instituda e, portanto, tomar qualquer uma delas, permite falar de todas. Como exem-plo, olhando para a prtica mdica e a prtica da enfermagem, enquanto modos profissionais que disputam de forma molecular as aes de sade, ao trazerem para si, de maneira privada, os arranjos institucionais, pode-se verificar o significado das potncias cravadas no agir do trabalho vivo em ato, para reafirmar lgicas profissionais centradas ou a busca coletiva de outros sentidos e agregaes entre profisses (Ceccim e Cappozolo, 2004; Feuerwerker e Merhy, no prelo).

    H que se reconhecer, nesses ltimos anos, que essas profisses vm agindo de um modo muito eficaz na capacidade micropoltica de operar nes-se fronte, definindo modos de privatizaes bem criativas dos aparatos organizacionais, e que isso, junto com o setor privado do mercado da sade, tm conseguido tomar para si o conjunto da prpria

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  • agenda do SUS, numa somatria privatizante, do micro para o macro, sob vrias modalidades, com isso direcionando os fundos pblicos da sade para a construo de mais mercado no campo.

    Nessa direo, insisto que se deve tomar o territ-rio molecular como o fronte principal de disputa por novas lgicas de cuidado, por novos desenhos orga-nizacionais e por novas conformaes das equipes de sade. Insisto nisso, pois me parece vital.

    Quer dizer, o ordenamento micropoltico, mole-cular, nesses processos que tais profisses operam, por exemplo,chega ao ponto de intervir no interior dos modos de agir dentro dos processos de formao dos trabalhadores, nas mais variadas frentes. Con-seguem colocar as escolas a servio de si. Pode-se exausto mostrar, como exemplo, como as escolas mdicas tm sido fabricadas de maneira molecular pela ao de certa prtica da medicina, que se realiza ali na cotidianeidade da formao, nos encontros um a um, mas no tenho a inteno de aprofundar essa tarefa, por ora. O que vale o reconhecimento, para visar a disputa e os tipos anti a serem produzidos, na resistncia (Foucault, 2010).

    Construir modos coletivos e solidrios no inte-rior das equipes de sade, ordenados pela aposta na produo da vida do outro, antes de qualquer territrio profissional a priori, uma guerra das mais saudveis e produtora de outros sentidos, que invade com riqueza os modos privatizantes de se construir as aes profissionais solidrias s lgi-cas do mercado e das apropriaes corporativas dos arranjos organizacionais.

    ******

    Por esse caminho, passo para a ltima grande ques-to em torno da temtica do SUS como campo de disputa de que trato nesse material. Essa refere-se s disputas pela construo dos aparatos institu-cionais que podem operar os distintos processos necessrios para dar conta dos campos de tenso base para as vrias formas de disputa e ao mesmo tempo lugar organizacional de produo do campo de ao da poltica institucional, enquanto ao de governo. E, em si, tenso, pois avanar em um proces-so SUS-utopia pede arranjos no idnticos para os fazeres opostos.

    Nesse momento, interessa um debruar sobre a disputa pela construo dos aparelhos governa-mentais, tensamente conformados e em constante processo de mutaes, para que se possa imaginar e agir, para operar com outras lgicas que no sejam as dos mecanismos de privatizao, de um SUS para uns e no para todos, podendo permeabiliz-los e publiciz-los ao mximo.

    Muitas das experincias que so conhecidas, atravs de relatos e textos, sobre o operar por den-tro as mquinas governamentais tm trazido uma reflexo necessria sobre o fato de que a maior parte dos arranjos que pensamos para desterritorializar o domnio mais privado sobre as mquinas gover-namentais no funcionaram a contento. Ou seja, arranjos como os do controle social, a relao com os movimentos sociais, a dinmica de operar este encontro por dentro dos arranjos, no funcionaram to plenamente de modo mais permanente, como se imaginou.

    E o pior disso tudo que assim como no h uma grande pauta de enfrentamento da privatizao em todas suas modalidades pelos vrios coletivos que compem o movimento sanitrio, tambm no h uma agenda governamental decisiva sobre isso, de uma maneira muito clara. Alis, no vejo nem mesmo a busca de algum consenso em torno de um diagnstico de modo explcito, que possa orientar um campo de ao entre eles.

    De novo, estamos diante de uma discusso que sempre atravessou o SUS: o que significa tratar da questo de uma reforma do Estado que possa trazer a multido, em sua multiplicidade, para dentro dos vrios arranjos institucionais, com a inteno de vazar as prticas de governo. Isso pede a possibili-dade de repensar a tenso muito fundamental entre a produo de novos arranjos, que transversalizem os territrios governamentais, e suas apropriaes privadas e pblicas. Talvez uma das principais pautas seja rever as teorias sobre o estado, que tm servido de base para pensar sobre essas questes e as alternativas que so imaginadas.

    No mais possvel ficar naqueles eixos ana-lticos que se tinha, de sociedade politica versus sociedade civil; aquilo no foi e no suficiente, no tem mostrado potncia para compreender to-dos os mbitos dos problemas que se apresentam,

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  • conforme apontado aqui. A imagem de que se deve fazer a sociedade civil crescer como forma de cons-truo de uma sociedade mais inclusiva devedora da perspectiva social democrtica, que tem alguma validade em certas circunstncias, como as situa-es de regimes ditatoriais, mas que evidentemente no vem resolvendo a fundo aquelas questes de construo de um estado de nova ordem, como o estado-multido.

    Por outro lado, tambm no possvel ficar cen-trado na ideia de que fazer crescer o aparato estatal, em si, acaba por tornar certo campo de ao poltica mais pblico. Isso tudo sem pensar nos que ainda acham que a lgica do estado mnimo seria mais democratizante, mas isso j se sabe onde d: em um aumento importante da desigualdade social e poltica, no mbito das sociedades capitalistas.

    Na realidade, se est diante de uma disputa mais sofisticada, que pode apontar que a luta pelos arran-jos institucionais de tipos novos coetnea com a luta contra a lgica da desigualdade capitalstica, sob todos seus muitos formatos. Ao mesmo tempo, obriga a ter que inventar novas lgicas de transver-salizaes entre os vrios arranjos institucionais, da ordem da multiplicidade dos coletivos existentes no mbito social como um todo, nas suas diferenas e operados por distintas lgicas. As lgicas das prti-cas das mquinas estatais, de um lado, e as lgicas das prticas das multides, do outro.

    Poder pensar a organizao do estado na tenso de explorar a multido que a h contida nele, feito por alguns autores de modos bem interessantes. Imagino campo semelhante de preocupao, mesmo que com formulaes distintas, no opositoras, as ofertas produzidas por Boaventura Souza Santos (2007), que fala da ideia de um estado movimento social, e de um Toni Negri e Michael Hardt (2005) que vm com o tema da multido. Para tirar proveito disso, creio que se precisa agregar outros tipos de invenes.

    No de hoje, me ocupo de algumas ideias como a que expresso na pergunta: o estado existe ou no existe? E se o estado existisse e no existisse, ao mesmo tempo? Como se poderia tentar compreender isso, para vaz-lo na tenso pblico e privado que h nele, a todo tempo, e na direo da construo dos seus arranjos institucionais, dos seus processos de

    gesto coletiva e da diferenciao na construo dos vrios projetos de uma poltica que aposta que a vida vale a pena, sob qualquer formato, que suas diferenas enriquecem o campo de disputa.

    Como ampliar a compreenso sobre o que governo, arranjo governamental, formulao e im-plementao de polticas, ao se partir da premissa que todos governam no interior das organizaes? Ou mais, considerando que sobre o perspectivismo do SUS-utopia s um estado tenso e em disputa o tempo todo, operado ativamente no mundo da sua prpria gesto, que funcionaria a favor da grande poltica, aquela que permite a disputa e a construo de cada vez modos estticos de viver mais ricos e diferenciados, no interior dos vrios coletivos em ao.

    Construir e viver na diferena de uma vida no fascista (Rago, 2009) deveria ser a alma da existn-cia do prprio estado enquanto arranjo institucio-nal a operar disputas e horizontes de convivncias sociais. Para avanar um pouco mais nesse desafio, que vejo tambm como um dos centrais no momento atual, de grande burocratizao e centralizao das mquinas aparelhos de estado, que proponho a reflexo adiante.

    O estado enquanto aparelho uma evidncia, mas tambm uma evidncia como no aparelho, pois tambm e ao mesmo tempo uma roda e uma praa. Vou, atravs de um simples exemplo, explici-tar isso e sua importncia. E se assim o , existe e no existe ao mesmo tempo, no mesmo territrio e no campo molecular do agir.

    Quando se pede para um grupo de trabalhadores para apresentarem a organizao em que trabalham, muitos sem pestanejar vo relatando o desenho do organograma da mesma. Porm, ao se agregar a essa pergunta uma outra, sobre em quantos lugares eles encontraram outros trabalhadores e falaram do trabalho que faziam e at tomaram decises novas sobre, aqueles mesmos trabalhadores passam a indicar a quantidade, quase infinita, de lugares que no pertencem aos arranjos do organograma e que serviram de ponto de encontros, de conversas, de debates, de reflexes, de formulaes, de decises e por a vai. Por isso, quando depois se volta para a pergunta se sua organizao est s no organogra-ma, passam a dizer que ela o organograma, mas

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  • tambm no o organograma.Desse modo, pode-se imaginar o que quiser para

    se pensar onde que est o estado e seus arranjos que o operam, como so construdas e efetivamente produzidas as formulaes e implementaes das polticas. Pode-se imaginar que o estado existe e tambm no existe. Que ele em si multido. Que em si institudo e vazado. Que a micropoltica do trabalho vivo em ato dos coletivos vai produzindo mutaes incontveis no seu existir.

    Pode-se imaginar o que se quiser sobre o que o pblico e o privado nisso tudo, e tentar imaginar como conversar sobre quem governa, como governa e de que modo pode-se inventar arranjos favorveis a todos esses encontros no territrio da micropoltica do fazer o estado-aparelho, enquanto um dobrar e desdobrar em roda, em praa, ali no cotidiano das instituies.

    Dessa forma, ainda muito interrogativa e con-vocatria, gostaria pelo menos que se pudesse re-conhecer a dimenso da complexidade que tratar desse quarto elemento, que me parece tambm ser fundamental, e que estaria hoje cravada na prpria concepo da radicalidade necessria para se pen-sar o que seria a construo de um campo social de prticas, democrtico. Inevitavelmente, o pers-pectivismo de um SUS-utopia tem que negociar com isso e reconhecer que na molecularidade do se fazer estado esto os pontos de furo dos modelos centralizadores e anti-vida que operam o campo das polticas governamentais, hoje. Se no se trouxer essa agenda para si, neste momento crtico que se vive, creio que se ter pouco a falar sobre essa rela-o sade e direito, daqui a alguns anos, sob a tica da constituio de 88.

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