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7/21/2019 SEMÂNTICA - UFSC - 2009.pdf http://slidepdf.com/reader/full/semantica-ufsc-2009pdf 1/151 Semântica Florianópolis - 2009 Renato Miguel Basso Luisandro Mendes de Souza Roberta Pires de Oliveira Ronald Taveira Período

SEMÂNTICA - UFSC - 2009.pdf

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  • Semntica

    Florianpolis - 2009

    Renato Miguel BassoLuisandro Mendes de SouzaRoberta Pires de OliveiraRonald Taveira

    4Perodo

  • Governo FederalPresidente da Repblica: Luiz Incio Lula da SilvaMinistro de Educao: Fernando HaddadSecretrio de Ensino a Distncia: Carlos Eduardo BielschowkyCoordenador Nacional da Universidade Aberta do Brasil: Celso Costa

    Universidade Federal de Santa CatarinaReitor: Alvaro Toubes PrataVice-Reitor: Carlos Alberto Justo da SilvaSecretrio de Educao a Distncia: Ccero BarbosaPr-Reitora de Ensino de Graduao: Yara Maria Rauh MllerPr-Reitora de Pesquisa e Extenso: Dbora Peres MenezesPr-Reitor de Ps-Graduao: Maria Lcia de Barros CamargoPr-Reitor de Desenvolvimento Humano e Social: Luiz Henrique Vieira da SilvaPr-Reitor de Infra-Estrutura: Joo Batista FurtuosoPr-Reitor de Assuntos Estudantis: Cludio Jos AmanteCentro de Cincias da Educao: Wilson Schmidt

    Curso de Licenciatura Letras-Portugus na Modalidade a DistnciaDiretor Unidade de Ensino: Felcio Wessling MarguttiChefe do Departamento: Zilma Gesser NunesCoordenadoras de Curso: Roberta Pires de Oliveira e Zilma Gesser NunesCoordenador de Tutoria: Josias Ricardo HackCoordenao Pedaggica: LANTEC/CEDCoordenao de Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem: Hiperlab/CCE

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  • Equipe de Desenvolvimento de Materiais

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    Copyright 2009, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSCNenhuma parte deste material poder ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrnico, por fotocpia e outros, sem a prvia autorizao, por escrito, da Coordena-o Acadmica do Curso de Licenciatura em Letras-Portugus na Modalidade a Distncia.

    Ficha Catalogrfica

    Catalogao na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitria da

    Universidade Federal de Santa Catarina.

    S471 Semntica / Renato Miguel Basso...[et al.]. Florianpolis : LLV/CCE/UFSC, 2009.151p. : 28cm

    ISBN 978-85-61482-17-6

    1. Semntica Estudo e ensino. 2. Gramtica comparada e geral.3. Ensino a distncia. I. Basso, Renato Miguel. II. Ttulo.

    CDU: 801

  • Sumrio

    Unidade A ..........................................................................................11Semntica e pragmtica: delimitando os campos1 ...........................13

    1.1 O vasto domnio do significado ..................................................................13

    1.2 O Significado lingustico ...............................................................................15

    1.3 A noo de significado ..................................................................................20

    1.4 Consideraes finais ........................................................................................24

    Conhecimento semntico e os nexos semnticos: 2

    acarretamento, contradio e sinonmia ............................................25

    2.1 Conhecimento semntico implcito ...........................................................25

    2.2. Composicionalidade .......................................................................................30

    2.3 Trama semntica ..............................................................................................33

    2.4 Condies de verdade ...................................................................................36

    2.5 Consideraes finais ........................................................................................39

    Metalinguagem3 ............................................................................................41

    3.1 Teorema-T ............................................................................................................41

    3.2 Analisando uma lngua ..................................................................................42

    3.3 Consideraes finais ........................................................................................54

    Pressuposio4 ................................................................................................55

    4.1 Caracterizando a pressuposio ..................................................................55

    4.2 Os gatilhos ...........................................................................................................58

    4.3 Acomodando pressuposies ......................................................................61

    4.4 Consideraes finais ........................................................................................63

    Unidade B ...........................................................................................65As descries definidas5 ..............................................................................67

    5.1 O papel semntico das DDs:o comeo do debate ................................68

    5.2 Como capturar a reao das DDs aos contextos A, B e C semanticamente? .............................................................................................69

    5.3 Falsas nos contextos A e B .............................................................................69

    5.4 Nem falsas nem verdadeirasnos contextos A e B ..................................73

    5.5 A funo textual das DDs ...............................................................................76

    5.6 Consideraes finais ........................................................................................79

  • Negao6 ...........................................................................................................81

    6.1 As vrias maneiras de negar .........................................................................81

    6.2 O no ....................................................................................................................83

    6.3 Escopo ...................................................................................................................86

    6.4 Negaes escalares ..........................................................................................88

    6.5 Os itens de polaridade negativa ..................................................................89

    6.6 Negao metalingustica ...............................................................................91

    6.7 Consideraes finais ........................................................................................92

    Quantificao7 ................................................................................................93

    7.1 Introduo ...........................................................................................................93

    7.2 A quantificao nominal ................................................................................95

    7.3 Interao de quantificadores:as relaes de escopo ...........................99

    7.4 Consideraes finais ......................................................................................102

    Comparao (ou a semntica das sentenas comparativas)8 .....103

    8.1 A gramtica da comparao .......................................................................104

    8.2 Interpretando as oraes comparativas .................................................109

    8.3 Consideraes finais ......................................................................................114

    Unidade C ........................................................................................ 117Progresso temporal9 ................................................................................119

    9.1 Referncia temporal e progresso temporal ........................................121

    9.2 Mecanismos de progresso temporal .....................................................123

    9.3 Regras-padro e outras .................................................................................126

    9.4 Consideraes finais ......................................................................................128

    Modalidade os auxiliares modais10 ..................................................129

    10.1 Introduo ......................................................................................................129

    10.2 Auxiliares modais .........................................................................................131

    10.3 A semntica dos modais ............................................................................133

    10.4 O tempo e a modalidade ...........................................................................137

    10.5 Consideraes finais ....................................................................................139

    Coda .................................................................................................. 141

    Referncias ...................................................................................... 145

    Glossrio .......................................................................................... 147

  • Apresentao

    Este Livro-texto introduz uma srie de tpicos em Semntica, uma disciplina que ainda no teve chance de entrar nos ensinos mdio e fundamental e que s muito recentemente aparece em currculos de cursos de Letras (mas no em todos!). O mximo que vemos de semntica na escola diz respeito aos contedos referentes a antnimos e sinnimos. E mesmo as verses mais modernas de ensino de portugus, que tm se basea-do no texto (a Lingustica Textual), pouco utilizam os conceitos da Semntica que, no entanto, so absolutamente fundamentais. Por exemplo, o conceito de anfora, to essencial na construo de um texto, vem da Semntica. Curioso que j contamos, desde 2001, com pelo menos uma publicao que traz pro-postas de ensinar semntica na sala de aula, trata-se de Introduo semntica, brincando com a gramtica (2001), de Rodolfo Ilari. Mas, talvez a ausncia da Semntica na sala de aula possa antes ser explicada por uma certa fobia da gramtica: nos ltimos anos, as pedagogias do ensino de lngua materna tomaram como objetivo nico das aulas de portugus o ensino da leitura e da produo textual. No h dvida alguma que parte da nossa tarefa de edu-cadores ensinar a ler e a escrever, mas certamente estamos perdendo muito se essa for a nossa nica tarefa. Trata-se, na verdade, do mesmo problema que atingiu o ensino da gramtica normativa: ensina-se no somente uma coisa, mas se ensina a repeti-la no h questionamentos, e perde-se a dimenso de se aprender algo sobre a lngua, criando assim a imagem de que no h nada para aprender sobre a lngua. Ora, ensinar sobre a lngua no apenas ensinar regras do bem escrever, e o interesse de estudo de uma lngua no se encerra (e nem se inicia) no texto.

    As lnguas humanas so um objeto muito interessante, extremamente complexo e ao mesmo tempo facilmente acessvel: afinal, todos falamos. por isso que o estudo das lnguas humanas tem sido adotado, em vrias univer-sidades no mundo (dentre elas o famoso MIT), em cursos introdutrios de metodologia cientfica para todas as reas. muito fcil aprender como cons-truir hipteses e refut-las usando as lnguas naturais e, como hoje sabemos, lidar com hipteses, constru-las, submet-las ao crivo da empiria e refut-las parte fundamental do fazer cientfico. Mas, esse movimento exige que obser-

    Massachusetts Institute of Technology

  • vemos a lngua em si sem nos preocuparmos com o fato de que ela o veculo para apreendermos o pensamento dos outros (via leitura ou via escuta) e para veicularmos o nosso pensamento (ou ainda para dissimular o que pensamos, para enganar, via oralidade ou via escrita).

    Mas, olhar a lngua, sua estrutura, sua gramtica, ficou quase que proi-bido depois que se decretou o fim do estudo da gramtica joga-se fora o beb com a gua do banho. claro que no estamos propondo um retorno ao velho esquema de ensinar gramtica normativa, ainda mais a gramtica que praticada nas escolas, uma gramtica que nem da nossa lngua. Ningum no Brasil, com talvez exceo de uns poucos imortais, fala: Eu lho trouxe. Isso portugus europeu! A semntica que voc vai encontrar neste Livro-texto pretende ser uma anlise da estrutura do portugus brasileiro atual da lngua que vocs, que ns de fato falamos - como voc vai ver, uma das vdeo-aulas sobre expresses do tipo pra caralho e puta, que so modificadores de grau. A disciplina de Semntica busca construir um modelo para explicar como possvel que ns, seres finitos, num tempo to curto, em poucos anos, sejamos capazes de atribuir significado a qualquer sentena da nossa lngua, mesmo quelas absolutamente novas, quelas que nunca ouvimos antes. Essa no uma capacidade trivial, embora ela esteja sempre conosco. Um filsofo da linguagem muito famoso, chamado Ludwig Wittgenstein, afirmava que ns somos tanto a linguagem, ela nos constitui de tal forma, que temos dificuldade de nos distanciarmos dela para olh-la. esse, porm, o movimento fundador do cientista: distanciar-se do objeto para poder entend-lo.

    Essa semntica no descende da lingustica estruturalista saussureana Saussure, feliz ou infelizmente, no o pai de todos os linguistas , mas da tradio da lgica e da filosofia da linguagem, de cunho analtico. At a dcada de 70, a Semntica era praticada quase que exclusivamente por filsofos que, de uma maneira ou de outra, estavam respondendo a questes colocadas por Gottlob Frege (1848-1925) sobre lgica, linguagem e matemtica, e entre es-ses filsofos podemos citar Bertrand Russell (1872-1970), Donald Davidson (1917-2003), Richard Montague (1930-1971), dentre muitos outros. Na dca-da de 70, Barbara Partee, uma linguista que estudou com Noam Chomsky e Richard Montague, transps essa tradio para a lingustica, que desde ento s floresce, e no apenas internacionalmente. Embora muito recente, h tam-bm um grupo de semanticistas de relevo no Brasil: Rodolfo Ilari, Ana Lcia Mller, Jos Borges Neto, Roberta Pires de Oliveira, dentre outros.

    Se voc se interessar, procure na internete, por exemplo, os trabalhos de

    Angelika Kratzer, Gennaro Chierchia, Kai von Fintel,

    Irene Heim, Manfred Krif-ka, para alguns expoentes

    atuais.

    Ou, numa terminologia mais prxima da gram-

    tica, seriam advrbios de intensidade.

  • O que caracteriza essa semntica, chamada de formal, no , como pensam alguns equivocadamente, sua relao com a sintaxe gerativa, aquela praticada pelos chomskianos. A semntica se baseia na sintaxe, mas pode escolher sua sintaxe ( muito comum encontrar semanticistas formais que se filiam a uma gramtica chamada de categorial, iniciada por Montague e distante em pon-tos fundamentais da gramtica gerativa). Uma das caractersticas principais da semntica ser uma teoria cientfica e, como tal, amparar-se numa linguagem formal, num clculo lgico. exatamente o que os fsicos fazem ao empregar a matemtica para entender as leis da natureza. Porm, ateno, os fsicos usam a linguagem matemtica para expressar as leis da natureza, mas isso no signifi-ca que eles acreditem que a natureza matemtica. Obviamente, alguns tm tal crena, entre eles o mais famoso Galileu. O mesmo se d com o semanticista: a lgica que ele usa apenas veculo de expresso das regras formuladas, de suas hipteses nenhum semanticista reduz a lngua natural a um sistema lgico. Se voc ouviu tal crtica, certamente foi de algum que no conhece o trabalho dos semanticistas.

    Alfred Tarski, um lgico e filsofo muito importante em vrias reas - porque elaborou, dentre outros, o conceito de metalinguagem -, mostrou que as lnguas naturais so fundamentalmente inconsistentes, elas geram parado-xos. Com isso, ele concluiu que no era possvel dar a elas um tratamento for-mal. Posteriormente, um outro filsofo, Richard Montague, demonstrou que podemos descrever formalmente fragmentos das lnguas naturais. Essas so questes muito complexas e talvez seja preciso investigar mais para podermos saber se as lnguas naturais so ou no, em parte, um clculo. Como voc deve saber a teoria da relatividade coloca a luz como algo paradoxal, que e no matria, e no h uma teoria lgica bvia que d conta dessa situao. No h dvida, contudo, de que, como metalinguagem, a lgica uma ferramenta muito importante para o semanticista.

    Essa maneira de ver as lnguas naturais certamente muito estranha, por-que historicamente fomos levados a acreditar que o portugus e as lnguas so o oposto de cincias exatas, o oposto da matemtica, dos sistemas formais. Mas, no a toa que a matemtica uma linguagem, e talvez seja um equvo-co op-las. Ao longo deste Livro-texto voc vai se deparar vrias vezes com conceitos da teoria de conjuntos da Matemtica. Esperamos que esteja a um convite para que os professores de Portugus desenvolvam juntamente com

    Newton da Costa, um l-gico brasileiro com pouco reconhecimento nacional, props uma lgica in-consistente que pode dar subsdio a tal teoria sobre a natureza da luz.

    Voc teve contato com a Sintaxe Gerativa na disciplina do professor Carlos Mioto! Veja mais em: MIOTO, C. Sintaxe do Portugus. Florianpolis: LLV/CCE/UFSC, 2009.

  • os professores de Matemtica projetos em comum que no sejam apenas para ensinar os alunos a decifrar os problemas de matemtica.

    Usamos conceitos dessa teoria para entender o significado nas lnguas naturais (os semanticistas tambm utilizam comumente funes, mas no fa-remos isso aqui) sem, no entanto, nos comprometermos em afirmar que h uma identidade entre elas. As lnguas naturais se caracterizam por serem con-textuais, por carregarem elementos diticos, aqueles que s ganham sentido na situao de fala, que esto totalmente ausentes das linguagens formais. Isso, porm, no significa que no podemos usar uma linguagem formal, arregi-mentada, como se costuma dizer, para descrever esses fenmenos.

    Ao longo deste Livro-texto, exporemos as questes com as quais lidam os semanticistas, e os mtodos por eles empregados. Veremos isso nos quatro primeiros tpicos do captulo Conceitos Bsicos. O captulo seguinte, Opera-es Semnticas, que traz os prximos quatro tpicos, lidar com problemas semnticos especficos e com algumas solues encontradas na literatura. Por fim, os dois ltimos tpicos do captulo Intencionalidade lidar com proble-mas que tm a ver com tempo e mundos possveis.

    Por ser um assunto novo ao graduando de Letras, que provavelmente no viu nada de semntica no ensino mdio, e tambm por ser um assunto relati-vamente complexo, que envolve rigor nos raciocnios e na resoluo das ati-vidades afinal, a semntica usa a lgica para se expressar , necessrio que voc leia com ateno todo o contedo aqui proposto e se dedique resoluo dos exerccios. quase como aprender matemtica ou fsica: s sabemos mes-mo quando fazemos os exerccios.

    Esperamos que ao final voc saiba como trabalham os semanticistas, quais questes lhes interessam e como eles procuram resolv-las. Tudo o que est ex-posto no que segue foi feito em termos de questionamento, com a intuio de mostrar como a lngua pode ser investigada de um ponto de vista cientfico e com uma metalinguagem estabelecida. Esperamos que voc goste!

    Os autores

  • Unidade AConceitos Bsicos

  • Captulo 01Semntica e pragmtica: delimitando os campos

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    1 Semntica e pragmtica: delimitando os campos

    Neste Captulo, voc vai conhecer o domnio do campo de investigao da Semntica, opondo-o a outros, principalmente ao da Pragmtica.

    1.1 O vasto domnio do significado

    O termo significado tem uma acepo muito mais ampla nas nos-sas conversas cotidianas do que tem na Lingustica, e ele ainda mais restrito quando estamos pesquisando em Semntica. por isso que pre-cisamos, inicialmente, ter clareza sobre o que se entende por esse termo quando estudamos semntica. Por exemplo, no dia-a-dia, conversamos sobre o significado da vida. Essa no , no entanto, uma questo se-mntica, porque ela pergunta sobre o significado de algo que ocorre no mundo: enquanto um fenmeno no mundo, a vida pode receber dife-rentes explicaes, nenhuma delas semntica: a resposta dada pela bio-logia, pela bioqumica, pelas religies, pelo senso-comum. A semntica, no entanto, nada pode dizer sobre o significado da vida enquanto tal ou de qualquer outra coisa no mundo, porque ela explica apenas um tipo muito especfico de fenmeno: o significado que atribumos s sentenas e expresses de uma lngua natural, uma lngua que aprendemos no ber-o, sem aprendizagem formal.

    O mximo que a semntica pode dizer o significado da palavra vida, algo que aparece nos dicionrios. H uma notao especfica que podemos usar para indicar quando se trata de semntica e quando se trata do fenmeno no mundo, as aspas simples, como abaixo:

    (1) Qual o significado da vida?

    (2) Qual o significado de vida?

    Na sentena em (1), o que est em causa o prprio ato de viver, em que condies esse ato faz algum sentido. Em (2), temos uma questo sobre o significado da prpria palavra vida, talvez algo prximo do que aparece nos dicionrios.

  • Semntica

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    Considere outro exemplo. comum especularmos sobre o significa-do de um ato. Suponha que o Joo o chefe da Maria e ele saiu apressado da sala dele em direo sala do presidente da empresa. A Maria pode se perguntar o que significa essa sada brusca de Joo, o que ser que houve para ele sair dessa maneira, algo to incomum. Porm, mais uma vez, essa especulao no semntica, porque a pergunta no sobre o significado de uma fala ou de uma expresso lingustica, mas de um ato realizado por Joo. Contraste com a seguinte situao: Joo est expondo as metas da empresa para o prximo ano, e ele diz: O leiaute da nossa empresa precisa ser reformulado. E a Maria se pergunta: O que ser que leiaute signifi-ca? Neste caso, sim, estamos diante de uma indagao semntica, porque Maria se pergunta sobre o significado de uma palavra, a palavra leiaute, e a resposta deve ser um esclarecimento sobre o significado dessa palavra usando outras palavras: leiaute o projeto do desenho grfico de uma empresa. Maria aprendeu algo sobre a lngua (e no sobre o mundo).

    Assim, uma primeira distino a ser traada, no vasto domnio do termo significado, separa o significado lingustico, que aquele veicula-do pelas lnguas naturais, e o significado no-lingustico, que compre-ende o significado que atribumos a objetos (ou fatos) no mundo e a smbolos que no so parte das lnguas naturais.

    Vejamos um exemplo desse ltimo caso. Imagine a seguinte situa-o: numa aula para arquitetos de interior, um instrutor explica o signi-ficado de smbolos que devem constar num projeto arquitetnico para prdios, como o que apresentamos ao lado:

    Esse smbolo - ele diz apontando para o slide na tela - significa que h acesso para cadeira de rodas. Tal uso do termo significa deve fazer parte da lingustica? Se voc respondeu negativamente, acertou. De fato, esse uso do termo no se refere ao significado lingustico, embora na si-tuao o falante esteja dando o significado de um smbolo. O problema que o smbolo em questo no parte de uma lngua natural. Ele um smbolo no-lingustico, embora convencional.

    Considere agora outra situao. A polcia est procurando um ca-sal que se perdeu numa floresta. De repente, os policiais veem fumaa no cu e um deles diz:

  • Captulo 01Semntica e pragmtica: delimitando os campos

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    Essa fumaa significa que algum fez uma fogueira.

    Mais uma vez, esse uso do significado no lingustico, porque se est atribuindo significado a um fenmeno no mundo. o que ocorre quando, ao notarmos que uma criana est com febre, dizemos: signi-fica que ela est doente. Veja que no se est esclarecendo o significado da palavra febre, mas o que ter febre no mundo pode estar indicando. A febre um sinal de doena, mas no significa, linguisticamente falan-do, doena. Em nenhum dos casos questiona-se sobre o significado de expresses lingusticas, por isso eles no fazem parte do campo da se-mntica, cujo estudo se restringe ao significado lingustico, isto , quele veiculado pelas lnguas naturais.

    Chegamos, ento, a um primeiro quadro, separando o significa-do lingustico do significado no-lingustico, para nos concentrarmos adiante no significado lingustico, isto , aquele que ocorre nas lnguas naturais, e que objeto de estudo da Semntica.

    Significado Lingustico(vnculo atravs de uma lngua natural)

    Significado No-Lingustico

    Convencionais No Convencionais(Natural)

    Febre = Doena

    x

    x

    PARE

    1.2 O Significado lingustico

    Uma primeira constatao a de que no basta separar o significa-do lingustico do significado no-lingustico para delimitar o campo da Semntica, porque o estudo do significado lingustico transborda as mar-gens do que fazem os semanticistas, as margens da semntica, ocupando tambm a pauta das cincias cognitivas e, em particular, da Pragmtica. Para desde j entendermos um pouco melhor as diferenas e relaes entre semntica e pragmtica, consideraremos a seguinte situao: a Ma-

    Qual a relao entre signi-ficados lingusticos e o que acontece no nosso crebro?

  • Semntica

    16

    ria a empregada de Joana. Ambas sabem que a roupa est estendida no varal. De repente, Joana profere (3):

    (3) T chovendo.

    A Maria mais que depressa sai correndo para tirar a roupa do varal, dizendo:

    (4) J t indo tirar a roupa do varal.

    Veja que os atos de Maria, inclusive o ato lingustico (seu proferi-mento), no respondem ou se relacionam diretamente sentena que Joana proferiu, mas decorrem dela. Se atentarmos apenas para o signi-ficado da sentena, notaremos que a Joana afirma que, no momento em que ela profere a sentena, o caso de que est chovendo e nada mais. Ela no pede explicitamente para que a Maria recolha a roupa do varal, mas possvel deduzir que foi isso que a Joana quis dizer se contex-tualizarmos a fala de Joana, isto , se atentarmos para outros elementos dados pela situao de fala e que constituem o proferimento lingustico: Joana e Maria sabem que a roupa est no varal, que Maria a empre-gada - ela quem deve cuidar dos afazeres da casa - que chuva molha a roupa, que o que a Joana disse verdade (a Joana no est brincando) etc. Todas essas informaes (e outras) constituem o fundo conversa-cional no qual o proferimento de Maria se realiza, e esse fundo permite um raciocnio inferencial de Maria, como: dada a situao, se a Joana disse que est chovendo porque ela quer que eu tire a roupa do varal. Tanto a resposta quanto os atos de Maria mostram que ela entendeu o pedido indireto de Joana. Esse significado tambm lingustico, porque ele depende do que foi dito na situao, mas ele no propriamente semntico, porque ele depende de um clculo inferencial (da esfera da pragmtica) que envolve elementos contextuais a partir do significado da sentena, este sim objeto da semntica.

    Vejamos outra situao:

    Cludia a me de Pedro, e ele est se preparando para sair para a escola. Ela nota que ele no est levando nem capa de chuva, nem guarda-chuva, e ela sabe que est chovendo. Ento, ela profere:

    (5) T chovendo.

  • Captulo 01Semntica e pragmtica: delimitando os campos

    17

    A fala de sua me leva Pedro a pegar o guarda-chuva antes de sair. A sentena (5) diz exatamente o mesmo que a sentena (3): no momento em que o falante profere a sentena o caso de que est chovendo a semn-tica das duas sentenas a mesma. Mas, as inferncias mudaram, porque mudou o fundo conversacional em que se d a interao lingustica. Nesse caso, os elementos na situao levam a outro raciocnio: se minha me disse que est chovendo porque ela quer que eu leve o guarda-chuva, para que eu no me molhe.

    Assim, mesmo restringindo a noo de significado para a de sig-nificado lingustico podemos ainda subdividir esta em dois nveis de significado: um que est atrelado ao significado da sentena, a uma composio estrita do significado das palavras, e outro, que depende do significado da sentena mais informaes sobre a situao em que a sentena proferida pelo falante. Essa a distino entre o significado da sentena e o significado do falante, respectivamente.

    Podemos, grosso modo, dizer que Semntica cabe o estudo do

    significado da sentena, enquanto cabe Pragmtica o estudo do

    significado do falante.

    No difcil encontrar na literatura a distino entre significado da sentena e significado do falante sendo estabelecida atravs da ausncia ou presena do contexto para o clculo do significado algo como: a se-mntica estuda o significado fora do contexto (fora de uso). No entan-to, preciso tomar cuidado com essa definio porque a interpretao do sentido da sentena muitas vezes leva em considerao o contexto, a situao de fala. Por exemplo, o significado da sentena (3) e (5) : no momento em que a sentena proferida, o caso de que est chovendo. Assim, essa sentena verdadeira somente se, quando o falante a profere, o caso de que est chovendo, no importa se no contexto de (3) ou de (5). Note, contudo, que incorporamos o contexto nessa descrio porque necessrio saber quando e onde o falante fala (3) ou (5): ora, a verdade da sentena depende de estar ou no chovendo quando e onde a sentena pronunciada, e o quando e onde (data, hora, local) no so lingusticos.

    Vejamos outro exemplo. A sentena

  • Semntica

    18

    (6) Eu estou com fome.

    Significa que o falante, no momento em que profere a sentena, est num estado de fome. Num mesmo momento, ela pode ser verdadeira para um falante e falsa para outro. Ou ela pode ser verdadeira para um falante num momento e falsa para o mesmo falante em outro momento. Sem levarmos em considerao o contexto, no h como estabelecer plenamente o significado dessa sentena (e da maior parte das sentenas nas lnguas naturais).

    Uma maneira mais segura de separar a semntica da pragmtica atravs da noo de inteno do falante: a pragmtica busca recons-truir o que o falante quis dizer ao proferir uma sentena, qual era a sua inteno comunicativa; importante notar que se trata de inteno co-municativa, isto , o falante quer que o ouvinte perceba sua inteno ao proferir uma dada sentena, o que o levou a dizer o que disse. H, evidentemente, outras intenes para alm da comunicativa, mas essas no pertencem ao domnio da lingustica.

    Por sua vez, a semntica tem como objetivo reconstruir o sentido da sentena, porque a composio de palavras fornece significado sentena. Ambas remetem ao contexto, mas o fazem com finalidades distintas.

    Como voc pode ter notado, as relaes entre semntica e prag-mtica so bastante estreitas e as questes levantadas pela pragmtica requerem um estudo parte (que no ser alvo direto desta Disciplina). Nosso interesse apenas separar o domnio da semntica. A discusso acima deve ter permitido entender os seguintes quadros:

    Semntica Pragmtica

    Significado da Sentena (SS).O que a sentena diz.

    Significado do falante (SF).O que o faltante quer dizer com a sentena que ele profere.

    Observe outro exemplo, com base nesses quadros: Suponha que Ma-ria responda pergunta Quem quer namorar um semanticista? usando a seguinte sentena: Teresa quer namorar um semanticista. Com esse profe-rimento, possvel salientar duas interpretaes semnticas (a e b a seguir) se o proferimento feito fora de algum contexto especfico, e no mnimo quatro interpretaes pragmticas (c, d, e, f) podem ser tomadas, somente depois que escolhermos entre (a) ou (b):

  • Captulo 01Semntica e pragmtica: delimitando os campos

    19

    Teresa quer namorar um determinado indivduo X, que a) semanticista.

    Teresa quer namorar algum, desde que seja um semanticista.b)

    Teresa quer namorar um determinado indivduo, semanticista: c) ela sabe quem , mas no Maria, porque Teresa no lhe revelou o seu nome.

    Teresa quer namorar um determinado indivduo X, semanticista: d) tambm disse a Maria como se chama e o apresentou a ela, mas Maria, por precauo, no julga oportuno entrar em particulares.

    Teresa est interessada por X e deseja namor-lo, disse a Maria e) quem ; ocorre que Maria sabe que um semanticista. Neste ponto no relevante decidir se Teresa sabe disso, se ignora ou se Maria j tenha lhe dito. O fato que Maria julga que, como Teresa est defendendo uma tese em Sintaxe, os dois no podero nunca se entender e aquele namoro no vai acontecer (suponha que sintaticistas e semanticistas no se combinam ou so rivais). Ou seja, Maria exprime aos interlocutores (que co-nhecem muito bem as ideias de Teresa) a sua perplexidade.

    Teresa quer namorar X, que semanticista; Teresa terminou f) com um namorado que estuda sintaxe, assim como ela estu-da sintaxe. Mas, neste ponto, Teresa quer fazer cimes ao ex-namorado, namorando um semanticista. Todos sabem que o ex-namorado de Teresa odeia semanticistas e isto seria muito penoso para ele.

    No exemplo acima, a sentena traz duas interpretaes semnti-cas, visveis em (a) e em (b): se voc observar bem, a sentena Tereza quer namorar um semanticista ambgua; a sentena pode ainda car-regar outras interpretaes pragmticas (de (c) a (f)). Percebe-se que na pragmtica outras informaes so necessrias, como, por exemplo, as intenes de Tereza presente na interpretao pragmtica (f): ela quer fazer cimes ao ex-namorado, que o ex-namorado odeia semanticistas etc. Mais uma vez, na pragmtica, o falante precisa de outras informa-es alm daquelas oriundas de sentena o significado da sentena , como, por exemplo, o contexto, as intenes, o uso etc. A ideia que a

  • Semntica

    20

    pragmtica precisa do significado da sentena, aliado s intenes do falante no momento de proferimento da sentena.

    1.3 A noo de significado

    Esta Unidade comeou com a explicao da noo de significado nos limites da Semntica. Para a Semntica, significado se restringe ao significado que as sentenas de uma lngua tm, sem levar em consi-derao a inteno do falante. Mas, mesmo essa noo restrita precisa ainda ser melhor compreendida.

    Essa foi uma das muitas contribuies de Gottlob Frege para a se-mntica das lnguas naturais. Frege, no famoso artigo Sobre o Sentido e a Referncia (1892, ber Sinn und Bedeutung), mostra que preciso distinguir facetas no conceito de significado, pois se no separamos es-ses aspectos no entendemos as razes das sentenas (7) e (8) serem semanticamente distintas, tendo em vista que em ambas se estabelece uma identidade entre dois nomes prprios:

    (7) A Estrela da Manh a Estrela da Manh.

    (8) A Estrela da Manh a Estrela da Tarde.

    Gottlob Frege foi um matemtico e filsofo alemo que viveu entre 1848

    e 1925, e reconhecido como o pai da semntica formal. Suas pesquisas

    influenciaram reas da lgica, da filosofia e dos estudos do significado.

    Muitos dos conceitos que utilizamos em semntica formal so frutos do

    seu trabalho, como o princpio da composicionalidade, a formalizao

    dos quantificadores, a distino entre sentido e referncia, e tambm

    entre representao (que tem a ver com psicologia) e cor (que tem a ver

    com atos de fala) dos enunciados etc. Com suas pesquisas, Frege prati-

    camente lanou a agenda dos estudos em semntica, discutindo pro-

    blemas como a pressuposio, atitudes proposicionais, intenso versus

    extenso. A distino entre sentido e referncia, crucial em seu pensa-

    mento, pode tambm ser pensada como o que significa exatamente o

    sinal = e o que ele relaciona. Se retornamos ao nosso par de exemplos

    Gottlob Frege (1848-1925)

  • Captulo 01Semntica e pragmtica: delimitando os campos

    21

    7) A Estrela da Manh a Estrela da Manh.

    8) A Estrela da Manh a Estrela da Tarde.

    podemos dizer que vemos relacionado em (7) e em (8) no refern-

    cias, mas sim sentidos, em outras palavras, a igualdade no uma

    igualdade de objetos no mundo, mas sim de maneiras para chegar-

    mos ou atingirmos com nossas palavras objetos no mundo. Por isso,

    (8) uma sentena interessante desse ponto de vista: ao informarmos

    sentidos diferentes para um mesmo objeto, aprendemos coisas no-

    vas. De resto, se fosse uma identidade de objeto, de referente, (8) seria

    uma sentena falsa: ora, no h, de um ponto de vista lgico e estrito

    da interpretao de =, dois objetos iguais no mundo. Contudo, (8)

    no falsa, logo, ela no relaciona referncias, mas sim sentidos.

    A sentena (7) uma sentena analtica, isto , ela verdadeira sempre, independente de como o mundo ora, se uma sentena sempre verdadeira, independentemente dos fatos, podemos dizer que ela no informativa, ou seja, no aprendemos nada com ela.

    Mais uma vez, proferir uma sentena analtica, que obviamente verdadeira, provoca imediatamente uma implicatura. Se o falante est dizendo algo que trivialmente verdadeiro, ento porque ele est que-rendo dizer outra coisa; afinal, por que diramos algo que (todos sabem que) sempre verdadeiro?

    Podemos pensar o seguinte: no caso de algum dizer O Joo o Joo,

    em que o ouvinte conhece o Joo e sabe que ele tem uma caractersti-

    ca marcante (por exemplo, ser extremamente meticuloso), o significado

    do falante ao proferir O Joo o Joo justamente chamar a ateno

    para essa caracterstica do Joo (pense em casos como Me me).

    Voltando sentena (7), vemos que ela estabelece uma identidade entre o mesmo nome, A Estrela da Manh. Por sua vez, a sentena (8) estabelece uma identidade entre nomes diferentes; como em O Joo o Joo Paulo.

  • Semntica

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    Nesse caso, temos uma sentena informativa: suponha que voc sabe quem o Joo, mas no sabe quem o Joo Paulo; ao ouvir que O Joo o Joo Paulo voc aprendeu algo novo, que o Joo tem dois nomes: Joo e Joo Paulo. claro que a verdade (ou a falsidade) da sentena (8) depende de como o mundo . No necessrio que o Joo tenha os nomes Joo e Joo Paulo; podemos pensar em vrios mundos parecidos com o nosso, em que Joo tem apenas um nome. O mesmo se aplica sentena (8): que Estrela da Manh e Estrela da Tarde sejam dois nomes para um mesmo objeto no mundo - o planeta Vnus - algo contingente (e no necessrio). Ao contr-rio de sentenas como (7), sentenas como (8) so sintticas, precisamente porque sua verdade ou falsidade depende de como o mundo . No nosso mundo, a sentena (8) verdadeira. Veja, novamente, que podamos pensar em um mundo em que (8) seja falsa: basta que A Estrela da Manh e A Es-trela da Tarde se refiram a objetos distintos.

    A teoria clssica de significado, qual Frege se contraps, entendia que o significado de uma expresso era o objeto no mundo. Assim, o significado de Estrela da manh seria o objeto no mundo, no caso o planeta Vnus. Mas, se fosse esse o caso, como que diferenciaramos (7) e (8)? Se ambas fossem verdadeiras, ento elas se referenciariam ao mesmo objeto. Se este fosse o caso, como que perceberamos que elas so diferentes? Como que saberamos que Estrela da Manh e Estrela da Tarde so dois nomes diferentes se o significado objeto no mundo? No haveria como. A soluo proposta por Frege distinguir aspectos do termo significado: quando sabemos o significado de uma sentena sabe-mos duas coisas: a que objeto ela se refere e o sentido da expresso, isto , o pensamento que est associado quela expresso. O que diferencia (7) e (8) o fato de que seu sentido diferente; o pensamento que elas veiculam no o mesmo, embora elas se refiram ao mesmo objeto.

    Frege mostrou, ento, que a noo de significado comporta duas face-tas, ambas objetivas, porque de domnio pblico: o sentido e a referncia.

    A referncia o objeto no mundo, enquanto o sentido o modo de apresentao do objeto, como conhecemos esse objeto, o cami-

    nho que nos leva at ele.

  • Captulo 01Semntica e pragmtica: delimitando os campos

    23

    Um mesmo objeto pode ser apresentado de diferentes maneiras, por caminhos diversos. Quando nos deparamos com um novo cami-nho, um novo sentido, aprendemos algo a mais sobre o objeto. Em (8) temos dois caminhos, Estrela da Manh e Estrela da Tarde, para uma nica referncia, o planeta Vnus, como mostra o desenho a seguir (ver lado direito), enquanto em (7) temos um nico caminho, Estrela da Manh, para a referncia (ver lado esquerdo):

    Estrela da Manh Estrela da Manh

    Estrela da Tarde

    Como dissemos, quanto mais sentidos temos para chegar a um objeto, mais sabemos sobre esse objeto; podemos abord-lo atravs de mais entradas. Considere o seguinte exemplo. Suponha que o objeto do qual queremos falar o indivduo Hitler, e esse indivduo alcana-do pelo nome prprio Adolf Hitler. Mas, podemos alcan-lo usando outras expresses que funcionam como um nome prprio, isto , que permitem alcanar um e apenas um indivduo. As descries definidas cumprem essa funo, por isso mesmo Frege tambm as denomina de nomes prprios. Eis algumas descries definidas que alcanam Hitler, o indivduo: o marido de Eva Brown, o autor de Mein Kampf, o Fhrer. Se, por exemplo, voc no sabia que Hitler havia escrito Mein Kampf, ao interpretar a sentena Hitler o autor de Mein Kampf voc aprendeu algo a mais sobre Hitler; agora voc tem mais um caminho para chegar at ele. Aprendemos sobre o mundo atravs de sentenas sintticas.

    Contudo, aqui preciso fazer uma ressalva: no se deve confundir o caso de (8) com a sinonmia. Em (8), no temos um exemplo de si-nonmia, porque h dois sentidos que so identificados, i.e., h duas re-presentaes para o mesmo objeto. Na sinonmia temos um nico sen-tido (um nico caminho) veiculado por expresses distintas, por isso sinonmias so sentenas analticas; mais adiante, no prximo tpico, veremos detalhadamente a noo de sinonmia; por enquanto, nos basta apenas outro exemplo:

  • Semntica

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    (9) Maria mulher de Pedro o mesmo que Maria esposa de Pedro.

    O que caracteriza a sinonmia que expressar o mesmo pensamen-to (o mesmo conceito), o mesmo sentido, atravs de expresses distintas: ser esposa de e ser mulher de veiculam o mesmo conceito atravs de palavras diferentes. Se o caso de que a Maria mulher do Pedro, tem que ser o caso, necessariamente, de que a Maria esposa de Pedro. No possvel imaginar um mundo em que seja verdadeiro que a Maria a mulher do Pedro e outro em que falso que ela a esposa do Pedro. diferente, claro, usar ser esposa de e ser mulher de, mas essa dife-rena no semntica, no se d no plano dos conceitos; essa diferena sociolingustica: esposa uma palavra mais formal do que mulher, por exemplo. Nesse caso, trata-se de um nico caminho para a mesma referncia. No h, portanto, acrscimo de informao sobre o mundo: se voc j sabe que a Maria mulher do Pedro, dizer que ela esposa no acrescenta informao sobre o mundo. O que pode ocorrer uma aprendizagem sobre a linguagem: aprende-se uma nova expresso, sem haver acrscimo de sentido.

    1.4 Consideraes finais

    Ao fim deste Tpico, voc j deve estar familiarizado com o campo de estudo da Semntica. Assim como para quaisquer campos de investi-gao cientfica, imprescindvel que separemos nosso objeto de estudo dos objetos das demais disciplinas prximos ou distantes a ele. Para o caso do campo de estudo da Semntica, vimos inicialmente qual o significado que a Semntica estuda; num segundo momento, isolamos esse significado do uso que fazemos dele, o qual , por sua vez, o campo de estudo da Pragmtica.

    Comeamos a ver tambm as primeiras ideias de Frege e o ferra-mental bsico do semanticista, como os conceitos de sentido e de refe-rncia. Nos tpicos a seguir, exploraremos cada vez mais essas ideias e conceitos.

  • Captulo 02Conhecimento semntico...

    25

    2 Conhecimento semntico e os nexos semnticos: acarretamento, contradio e sinonmia

    Voc vai ver aqui algumas das operaes semnticas bsicas, como as de acarretamento e sinonmia, e tambm conhecer os nexos semnticos existen-

    tes entre sentenas. Relacionaremos essas operaes e nexos a conhecimentos inatos dos falantes.

    2.1 Conhecimento semntico implcito

    Aps a discusso sobre possveis diferenas entre semntica e prag-mtica, esclarecemos o objeto de estudo da Semntica: o significado lin-gustico das lnguas naturais. Esse significado possibilita alguns nexos semnticos entre sentenas. Quando perguntamos o significado de algu-ma palavra, muitas vezes buscamos aquele modelo significativo presente nos dicionrios. Porm, no h no dicionrio maneiras pr-estabelecidas de como uma palavra pode se combinar com outra em busca da trama de significados, dos nexos que favorecem infinitas interpretaes. Essas combinaes so decorrentes do prprio uso da lngua pelos seus falantes, mas no esto nem presentes nos dicionrios nem tampouco algum nos ensina: so conhecimentos implcitos. Uma rea da lingustica moderna defende que o nosso conhecimento semntico um dote gentico, por-tanto, os possveis nexos semnticos so decorrentes de uma capacidade inata de combinao de palavras e sentenas, parte do conhecimento se-mntico implcito ou competncia semntica. Observe um exemplo:

    (1) Pedro filho de Joo.

    Quando algum pronuncia a sentena acima, intuitivamente possvel afirmar que a sentena (2) a seguir verdadeira: em todos os mundos que a sentena (1) verdadeira, a sentena (2) tambm verdadeira, ou seja, se verdade que Pedro filho de Joo, tambm verdade a sentena (2), tratando-se, obviamente, dos mesmos Pedro e Joo:

    (2) Joo pai de Pedro.

    Esses nexos, presentes nas lnguas naturais, podem ser entendidos como relaes provocadas pela trama de significados das sentenas.

  • Semntica

    26

    No nosso mundo folclrico sabemos que o Saci Perer tem apenas uma das pernas. Ento, as trs sentenas a seguir so verdadeiras:

    (3) O Saci no tem uma perna.

    (4) O Saci tem perna.

    (5) O Saci no tem as duas pernas.

    Porm, a sentena a seguir falsa:

    (6) O Saci no tem perna.

    Como sabemos que as sentenas (3), (4), (5) e (6) esto relaciona-das, e que somente (6) falsa, dentro do nosso conhecimento de mundo? Sabemos porque temos essa capacidade inata de estabelecer relaes en-tre sentenas e em que condies elas so verdadeiras. Como j mostra-mos que o campo da semntica o significado lingustico da sentena, sua pergunta bsica : o que um falante (de uma lngua natural) sabe quando sabe o sentido de uma sentena qualquer de sua lngua? Res-ponder a essa pergunta construir uma teoria sobre um tipo particular de conhecimento: o conhecimento que um falante tem do significado das sentenas (e palavras) de sua lngua. Evidentemente, esse conhe-cimento implcito, isto , o falante tem esse conhecimento e o utiliza nas suas interaes cotidianas, mas no sabe descrev-lo, no o conhece conscientemente. Ele como o conhecimento implcito que temos e que nos permite caminhar: sabemos caminhar, mas so poucos (se que h algum) os que sabem todos os passos que permitem que caminhemos: quais articulaes se movem ou quais msculos e nervos sensoriais esto envolvidos, por exemplo. O mesmo ocorre com o conhecimento que te-mos do significado das sentenas: sabemos o que as sentenas da nossa lngua significam, mas no sabemos descrever e explicar cientificamente esse conhecimento. Este justamente o objetivo do semanticista: descre-ver e explicar esse conhecimento semntico que um falante tem.

    Neste Tpico, vamos enfrentar, parcialmente, essa questo: o que um falante sabe quando sabe o significado de uma sentena qualquer de sua lngua? Certamente, ele sabe em que condies uma sentena qual-quer de sua lngua verdadeira, e em que momentos ela ou no verda-deiramente usada. Ele tambm sabe compor e interpretar sentenas que

  • Captulo 02Conhecimento semntico...

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    nunca ouviu antes. Finalmente, ele sabe deduzir de uma sentena outras sentenas. Antes de lidar especificamente com cada um desses conheci-mentos, vamos exemplific-los rapidamente.

    Suponha que algum pea para voc dizer o que a sentena T cho-vendo significa. Voc certamente sabe a resposta e uma maneira muito frequente de explicar dizer quando a sentena T chovendo verda-deira: a sentena T chovendo significa que est chovendo quando o falante a profere. Esse seu conhecimento no se restringe, obviamente, a essa sentena, ele se aplica a qualquer outra; at mesmo a uma sentena que voc nunca ouviu antes. Muito provavelmente, voc nunca ouviu ou leu a sentena a seguir:

    (7) Uma nuvem alaranjada tomou devagarzinho o quarto de Sara.

    Voc no tem qualquer problema em imaginar como o mundo deve ser para que ela seja verdadeira, certo? Como voc sabe isso? Ora, voc sabe o que as palavras em (7) significam e sabe combin-las, por isso voc pode interpretar um nmero infinito de sentenas. Veja que se voc sabe que a sentena (7) verdadeira, voc sabe outras sentenas, como:

    (8) H um nico quarto que de Sara.

    (9) O evento (a nuvem alaranjada tomar devagarzinho o quarto de Sara) ocorreu no passado.

    Esse outro conhecimento derivado do fato de que voc entendeu a sentena (7). Assim, quando sabemos o significado de uma sentena, sabemos, inevitavelmente, o significado de muitas outras sentenas que esto enredadas nela.

    H outro conhecimento semntico que os falantes possuem: a parfrase. Inicialmente, preciso diferenciar entre uma parfrase desen-cadeada pelo lxico daquela que a prpria sentena opera. Um exemplo de parfrase lexical aquela que pode ser desenvolvida por substantivo, adjetivo, verbo ou preposio, como nos mostram as expresses a se-guir, respectivamente:

    (10) Joo vizinho de Pedro Pedro vizinho de Joo.

    (11) Maria mais gorda que Joana Joana mais magra que Maria.

    Tradicionalmente, a par-frase entendida como alternativa de expresso que mantm o mesmo sentido.

  • Semntica

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    (12) Maria atravessou a Avenida Paulista Maria cruzou a avenida paulista.

    (13) A casa de Maria fica atrs do Hospital O hospital fica na frente da casa de Maria.

    H ainda aquela parfrase desencadeada pelas sentenas, que a que nos interessa aqui. Algumas operaes sintticas permitem que algumas sentenas derivem o mesmo sentido. Certas operaes fazem esse papel de conservar o mesmo sentido, como a nominalizao, a substituio de formas verbais (finita x infinita) ou o alamento de verbos, como nos mostram as sentenas a seguir, respectivamente:

    (14) Os gafanhotos destruram a cidade A destruio da cidade pelos gafanhotos.

    (15) Nas frias, era comum eu estudar semntica Nas frias, era comum que eu estudasse semntica.

    (16) Em poca de eleies, foi preciso que a Polcia Federal inter-viesse em algumas cidades Em poca de eleies, a Polcia Federal precisou intervir em algumas cidades.

    Como esse conhecimento pode ser explicado? Como descrever esse conhecimento atravs de uma teoria do significado? A ideia a de que, quando interpretamos qualquer sentena em nossa lngua, de alguma for-ma, ns a avaliamos em mundo(s), para determinar se ela verdadeira ou falsa; ou melhor, relacionamos sentenas a mundo(s), para avaliar se uma determinada sentena verdadeira ou falsa. Observe um exemplo:

    (17) Pedro surfa.

    O que quer dizer um falante conhece sua lngua ou um falante sabe o significado das sentenas de sua lngua? A resposta : ao saber o significa-do de sua lngua, o falante conhece suas condies de verdade. Dessa forma, ao interpretar a sentena (17), ns dividimos os mundos a partir de dois aspectos: o verdadeiro ou o falso: mundos em que essa sentena verda-deira, ou seja, mundos em que Pedro surfa, e mundos em que ela falsa, ou seja, mundos em que Pedro no surfa. Como podemos observar, estamos falando de mundos, no plural, isto , em mais de um mundo, os chamados mundos possveis. Ento, de agora em diante, no estranhe ao mencionar-

  • Captulo 02Conhecimento semntico...

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    mos mundo(s) no plural ou, simplesmente, mundos possveis.

    Suponha a existncia de quatro mundos: w1, w2, w3, w4. Observe agora a sentena Pedro surfa em um certo modelo:

    w1 Vw2 Vw3 Vw4 F

    Imagine agora que, alm de Pedro, Joana tambm surfa, assim dis-criminados nos mundos: em w1, Pedro surfa e a Joana surfa. Em w2, Pedro surfa e Joana esquia. Em w3, tanto Pedro quanto Joana surfam. Em w4, Pedro joga futebol e Joana surfa. Em w1, w3 e w4, verdadeiro que Joana surfa. Em w2, falso. J em w1, w2 e w3, verdadeiro que Pedro surfa; em w4, falso. Como se observa, avaliamos as sentenas relativizando-as a mundos possveis (e tambm ao tempo, embora no estejamos levando em considerao esse aspecto por enquanto). Em ou-tros termos, a sentena Pedro surfa verdadeira em todos os mundos em que Pedro surfa (w1, w2 e w3) e a sentena Joana surfa verdadeira em todos os mundos em que Joana surfa (w1, w3, e w4).

    At agora falamos em mundos ou mundos possveis, sem ao me-nos discrimin-los. Apesar de essa discusso aparecer em tpicos pos-teriores, por ora, basta-nos afirmar que mundos possveis so mundos que podem ser diferentes do nosso, em um ou mais de um aspecto. Pode haver mundos em que no h gua, nem humanos, nem prdios, nem bancos, nem uma determinada vizinha chata, ou aquela sogra insupor-tvel... Quando queremos dar conta da semntica de sentenas como: Se eu fosse voc, restringimos os mundos possveis queles mundos que so prximos ao nosso, em que a nica diferena eu ser voc. Mas essa uma restrio lingustica/cognitiva, para interpretarmos a sentena. Su-ponha um mundo igual a esse, mas a nica diferena que o homem no foi lua, ou um mundo em que o Brasil no campeo do mundo no futebol, ou um mundo em que no h sol, ou um mundo com sete luas.

    A semntica que estudamos nesta Disciplina capta essa noo de mundo(s) ou mundos possveis, ao afirmar que a interpretao de uma sentena depende da relao entre linguagem e mundo(s). Por esse mo-tivo, ela denominada de semntica referencial ou semntica deno-

    Alm dos fatos como as coisas realmente so, h fatos sobre como as coisas podem ser ou poderiam ter sido (Stainton, 1996, p. 77).

  • Semntica

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    tacional, exatamente porque sentenas so avaliadas em mundo(s) ou mundos possveis a fim de determinar suas condies de verdade. Isso interessante porque, como foi visto, saber o significado de uma sentena conhecer suas condies de verdade. E quanto mais aprendemos sobre o significado, ou, de um modo global, quanto mais aprendemos como a linguagem funciona, estaremos mais perto do conhecimento da mente e do crebro.

    De agora em diante, vamos nos ater mais detalhadamente a alguns desses conhecimentos semnticos dos falantes, como composicionalida-de, acarretamento, contradio, sinonmia e condies de verdade.

    2.2. Composicionalidade

    Uma propriedade que constitui o conhecimento semntico de um falante e que, portanto, deve ser apreendida por uma teoria do significa-do lingustico, a composicionalidade. Quando um falante sabe o signi-ficado de uma sentena, ele sabe no apenas suas condies de verdade, ele sabe tambm comp-la e decomp-la. Se o falante entende a sen-tena T chovendo, ele sabe o significado de estar e chovendo e, na verdade, sabe que chovendo se decompe em chov(e)- e -ndo. Sabe ainda que essas unidades mantm o mesmo significado em infinitas sentenas nas quais elas podem ocorrer. Por exemplo, veja que chov(e)- d a mesma contribuio nos diferentes contextos em que aparece de passagem, um falante tambm sabe que o significado de chover est re-lacionado com chuva, chuvisco, gua, entre outros:

    (18) a. Vai chover.

    b. Choveu ontem.

    c. Choveria, se no estivesse ventando.

    O falante sabe ainda qual a contribuio do progressivo, represen-tado em T chovendo pela perfrase verbal estar V+ndo (estou can-tando, est falando). Ele sabe que no contexto em que T chovendo proferida, a perfrase indica progressividade, isto , o evento descrito, o evento de chuva, est ocorrendo simultaneamente ao momento de fala, como aparece no esquema a seguir:

  • Captulo 02Conhecimento semntico...

    31

    momento de fala

    chove

    Podemos entender que a composicionalidade expressa o fato de que um falante sabe compor o significado de uma sentena a partir do significado de partes mnimas, isto , o significado de uma expresso mais complexa o resultado de uma composio de suas partes. No caso de T chovendo, o falante soma o significado de chov(e)- mais o significado da perfrase estar + -ndo.

    A composicionalidade explica a criatividade, a capacidade de es-

    tarmos a todo instante construindo e interpretando sentenas que

    nunca ouvimos antes.

    muito provvel que ningum que esteja estudando esta disciplina de Semntica encontrou antes a sentena a seguir, mas nenhum de ns tem qualquer problema em interpret-la, isto , todos ns sabemos em que mundos ela verdadeira:

    (19) O gato azul est de ponta-cabea.

    Essa sentena verdadeira em todos os mundos em que h um ni-co gato saliente no contexto e esse gato azul e ele est de ponta-cabea. No temos problema algum para interpret-la porque conhecemos o significado de cada um dos termos que a compem.

    Chomsky foi um dos primeiros, na lingustica, a chamar a ateno para o fato de que os falantes so criativos, porque produzem e inter-pretam sentenas que nunca ouviram antes. Esse fato, aparentemente to trivial, refutou tanto as teorias comportamentais da aprendizagem (que acreditam que as lnguas humanas so aprendidas por estmulo e resposta) quanto as teorias estruturalistas sobre a linguagem humana (que entendiam, grosso modo, que a linguagem era um conjunto fecha-do de sentenas). Chomsky mostra que a linguagem aberta, infinita, indeterminada, mas previsvel no sentido de que podemos calcular o novo, porque sabemos construir sentenas a partir do significado de unidades mnimas (tomos) e regras de combinao, que so recursivas, isto , se aplicam repetidamente, em diferentes situaes.

    Com a obra Syntactic Structures (1957)

  • Semntica

    32

    A recursividade tambm uma competncia semntica do falan-

    te, ela uma propriedade lingustica que nos fornecida genetica-

    mente. Segundo Chomsky, Hauser e Fitch (2002), a recursividade

    a propriedade que distingue naturalmente a linguagem dos seres

    humanos da linguagem dos demais animais. Somente na lingua-

    gem dos seres humanos possvel calcular o novo. Se uma abelha

    tem de comunicar a outras abelhas que o inimigo vem chegando,

    ela se utiliza de um conjunto de fatores, a dana, a batida das asas, o

    zumbido etc., que devem ser desempenhados de uma determinada

    e nica forma, seno as outras abelhas no vo entend-la. Ou seja,

    h um nico caminho para se chegar ao objetivo: em outras pala-

    vras, as abelhas no tm capacidade de fazer parfrases. J na lin-

    guagem humana so possveis infinitas maneiras de se alcanar tal

    objetivo, ou, nos termos de Frege, diferentes sentidos para se chegar

    a uma referncia.

    Na sentena T chovendo, combinamos o significado de chov(e)- com o significado do progressivo, atravs de uma regra que permite combinar ra-dicais verbais com a perfrase progressiva, estar ndo. Essa regra de combi-nao a mesma que recorre em inmeras outras sentenas da lngua (como em est nevando, est chuviscando, est amando, est falando etc.).

    Evidentemente, um dos problemas que o semanticista enfrenta de-terminar quais so as unidades mnimas e como elas so adquiridas pelo falante. A determinao das unidades mnimas para constituir o lxico de uma lngua uma tarefa bastante complexa e que se d na interface com a morfologia. Considere, por exemplo, a sentena:

    (20) O Joo saiu apressado.

    Certamente, o lxico deve conter um item para sair, uma raiz como sa(i)-, que se combina com diferentes flexes, cada uma delas conglomerando significados: -u indica terceira pessoa do singular do pretrito perfeito do indicativo. Compare com:

    (21) O Joo saa apressado.

    Recapitule algumas noes de Morfologia

    em: MARGOTTI, Felcio W. Morfologia do Portu-gus. Florianpolis: LLV/

    CCE/USFC, 2008.

  • Captulo 02Conhecimento semntico...

    33

    As sentenas (20) e (21) no tm o mesmo significado e a di-ferena, neste caso, est no aspecto: o primeiro perfectivo; o segundo, imperfectivo.

    Veja que no lxico esto o radical e os sufixos tempo-aspectuais. J apressado mais complicado: vamos coloc-lo no lxico nessa forma? Ou ser que no lxico deve aparecer apenas pressa e apressado deve ser gerado via uma regra de derivao morfolgica que passa do adje-tivo pressa para o verbo apressar e, finalmente, a forma de particpio passado do verbo ou de adjetivo apressado? Esses so problemas de quem estuda morfologia.

    2.3 Trama semntica

    Outra propriedade que caracteriza o conhecimento semntico de um falante sua capacidade de deduzir sentenas de outras sentenas. O falante no sabe apenas em que condies uma sentena verdadeira e como (de)comp-la, ele sabe outras sentenas quando ele sabe uma sen-tena. Por exemplo, suponha que a sentena T chovendo seja verdadei-ra (ou que ela seja considerada verdadeira). Nesse caso, o falante tambm sabe que a sentena (22) falsa, e que a sentena (23) verdadeira:

    (22) No t chovendo.

    (23) T caindo chuva.

    Se T chovendo for falsa, obtemos um resultado oposto e com-pletamente previsvel: (22) verdadeira e (23) falsa. Sabemos isso simplesmente porque entendemos o que uma sentena significa e esse entendimento envolve conhecer outras sentenas que esto semantica-mente relacionadas sentena conhecida.

    O par T chovendo e No t chovendo exemplifica um caso de contradio: se a primeira verdadeira, a segunda tem que ser (neces-sariamente) falsa e vice-versa. Em outros termos, suponha que A e B so sentenas quaisquer de uma lngua, e que V e F esto por verdadeiro e falso, respectivamente; assim, uma contradio ocorre quando:

    se A V, B F (e vice-versa)

  • Semntica

    34

    Sentenas contraditrias so sentenas que no podem ser simulta-neamente verdadeiras: se est chovendo no pode ser o caso de que no est chovendo (e vice-versa).

    Algum pode replicar o seguinte: mas s vezes a gente diz t e no t chovendo. verdade, mas, em geral, esses so casos em que o falante est criando uma implicatura raciocnios pragmticos ou casos de limites vagos para os quais no h certeza sobre o uso da sentena. Em geral, muito estranho afirmar contradies como Joo e no homem e, por isso mesmo, elas tendem a disparar implicaturas: o que o falante quer ao proferir uma sentena contraditria implicar que algumas caracte-rsticas do predicado se aplicam, enquanto outras no se aplicam. Assim, ao proferir a contradio acima o falante est implicando que em alguns aspectos Joo homem e em outros no. Mas, essa uma maneira de resolver a (aparente) contradio.

    A relao entre T chovendo e T caindo chuva , ao mesmo tem-po, de acarretamento e de sinonmia, que nada mais do que um duplo acarretamento (ou acarretamento em mo dupla).

    Uma sentena A acarreta outra (B) se em todos os contextos em que

    A verdadeira B tambm verdadeira, por isso dizemos que, se h

    acarretamento, uma sentena se segue necessariamente da outra.

    Por exemplo, se est chovendo, ento certo que est cain-do chuva, afinal no possvel imaginar uma situao em que es-teja chovendo sem que caia chuva do cu (deixe de lado os usos metafricos envolvendo chover, como por exemplo est choven-do ptalas de rosa). Note ainda que a sentena T caindo chuva acarreta a sentena T chovendo: se est caindo chuva, ento est chovendo. Quando h duplo acarretamento, temos sinonmia. Acarretamento (de A para B): Se A V, ento B necessariamente V.

    Sinonmia: A acarreta B e B acarreta A.

    Note que a relao de acarretamento supe uma direcionalidade: se A V, ento B necessariamente V. A sinonmia o acarretamen-to de mo dupla porque ele vale nas duas direes. Mas, nem sempre

  • Captulo 02Conhecimento semntico...

    35

    acontece termos o duplo acarretamento. Por exemplo, a sentena (24) acarreta a sentena (25), mas o contrrio no verdadeiro, logo no h sinonmia:

    (24) Joo preparou o almoo.

    (25) Joo fez algo.

    claro que os mundos em que Joo cozinhou o almoo so mun-dos em que ele fez algo (h, portanto, acarretamento de (24) para (25)), mas os mundos em que Joo fez algo incluem outros mundos alm da-queles em que Joo preparou o almoo: por exemplo, mundos em que ele fez o jantar, mundos em que ele saiu de casa, em que ele se levantou etc. (portanto (25) no acarreta (24)). Veja o grfico de acarretamento a seguir, no qual os bales indicam conjuntos de mundos: o conjunto de mundos em que a sentena em (24) verdadeira est includo no con-junto de mundos em que (25) verdadeira:

    Mundos em que Joo preparou o almoo.

    Mundos em que Joo fez algo.

    Considere, agora, a relao entre a sentena (24) e a sentena (26):

    (26) Joo fez o almoo.

    Suponha que preparar o almoo significa fazer o almoo. Logo, se (24) verdadeira, (26) tambm e vice-versa. Nesse caso, o conjunto de mundos em que (24) verdadeira coincide exatamente com o conjunto de mundos em que (26) verdadeira. Temos, assim, um caso de sinonmia. A figura representando o conjunto de mundos a seguinte:

    Mundos em que Joo preparou o almoo

    Mundos em que Joo fez o almoo

    =

  • Semntica

    36

    H outras relaes entre as sentenas (muitas vezes chamadas de ne-

    xos semnticos) que so objeto de estudos do semanticista, por exem-

    plo, a pressuposio, a anfora, a comparao, dentre outros. Vol-

    taremos a elas ao longo desta Disciplina, por enquanto voc deve ter

    claro o conceito de contradio, acarretamento e o de sinonmia.

    2.4 Condies de verdade

    Como dissemos, um primeiro aspecto do conhecimento que um falante tem sobre o significado das sentenas que uma teoria semn-tica deve capturar o fato de que ele sabe em que condies o mundo precisa estar para que uma sentena seja verdadeira. por isso que na semntica se afirma que o significado de uma sentena so as suas con-dies de verdade. Sublinhe-se que se trata de condies de verdade, isto , o falante pode no saber se a sentena efetivamente verdadeira ou falsa; o que interessa que ele com certeza sabe em que condies ela pode receber um ou outro valor de verdade: o verdadeiro ou o falso. Por exemplo, podemos dizer precisamente em que condies a sentena (27) pode ser verdadeira (suas condies de verdade) sem que possa-mos verificar se ela de fato verdadeira:

    (27) Tem 531 insetos no meu jardim neste momento.

    A Semntica no lida com o uso da sentena, mas com a sentena em sua potencialidade de uso. As condies de verdade expressam o conhecimento mnimo que um falante tem quando ele sabe o que uma sentena significa: o potencial de uso dessa sentena. O mnimo que ele sabe, se ele entende uma sentena, separar, atravs dela, o mundo em dois blocos: de um lado, as situaes em que a sentena verdadeira; de outro, aquelas em que ela falsa. Ao ouvir a sentena t chovendo, um falante do PB delimita dois esboos de mundo:

    T chovendo falsa T chovendo verdadeira

    Leia-se Portugus Brasileiro.

  • Captulo 02Conhecimento semntico...

    37

    O falante sabe que a sentena T chovendo falsa nos mundos esquerda do quadro; e verdadeira nos mundos direita. nesse sen-tido que uma sentena desenha um esboo de como o mundo deve ser para que ela seja verdadeira, o que significa que ela tambm desenha os mundos em que falsa. Assim, uma sentena estabelece uma relao entre linguagem e estados de mundo (ou mundos), deixando espao para muita vagueza e indeterminao, dois fenmenos semnticos bem interessantes.

    O significado de uma sentena sempre (e necessariamente) in-determinado, precisamente porque ele recobre inmeras situaes (no nosso exemplo, situaes em que est uma chuva fraca, chuva com sol, chuva forte, chuvinha...) em que esse significado verdadeiro. A inde-terminao deve ser distinguida da vagueza, o fato de que muitas vezes no temos certeza se a sentena verdadeira ou no em uma dada si-tuao. Por exemplo, se no momento em que T chovendo proferida falante e ouvinte esto numa situao em que est uma chuvinha bem fininha poderia ser difcil de definir se est ou no chovendo, ou se eles esto numa forte maresia, por exemplo. Estamos, nessa situao, num caso limite em que tanto possvel afirmar que est chovendo, quanto que no est.

    A indeterminao vem do fato de que uma mesma sentena ver-dadeira em muitas situaes diferentes, sem que o falante tenha dvida sobre se a sentena se aplica ou no situao. Por exemplo, estamos numa situao em que nenhum de ns tem dvida sobre se est ou no chovendo; estamos de acordo que est chovendo. Mas, so inmeras as situaes em que isso ocorre: est chovendo e frio; est chovendo e ca-lor; est chovendo forte, muito forte, uma tempestade, est chovendo na rua, no dentro de casa etc.

    O significado de uma sentena estabelece, ento, em que condies no mundo ela verdadeira e, portanto, em que condies ela falsa. Esse modelo permite entendermos como se d a troca de informao atravs da linguagem. Suponha que um amigo seu telefone de So Paulo e pergunte:

    (28) Como est o tempo a?

    Ver: Pires de Oliveira; Basso; Mendes e Souza (2007) para uma caracterizao mais precisa da diferena entre vagueza e indeterminao.

  • Semntica

    38

    A palavra a um ditico, isto , uma expresso lingustica cujo sig-

    nificado s plenamente determinado (interpretado) se se levar em

    considerao a situao de fala. Trata-se assim de um elemento vari-

    vel cuja interpretao depende do contexto: se o ouvinte est em Sal-

    vador, a significa Salvador; se ele est em Manaus, significa Manaus,

    e assim por diante. Os exemplos claros de diticos so os pronomes

    pessoais, como eu e voc: quando eu falo eu refiro-me a mim, que

    sou o falante, e o voc refere-se ao ouvinte, voc; quando voc fala,

    voc passa a ser eu e eu passa a ser voc. Confundiu? Ento leia aten-

    tamente prestando ateno na presena e ausncia de aspas simples

    que indicam a lngua-objeto, isto , a lngua que estamos explicando.

    Suponha que o ouvinte, a quem foi endereada a pergunta (28), esteja em Florianpolis. Nesse caso, a significa Florianpolis, o lugar onde o ouvinte est. Logo, o falante pergunta sobre o tempo em Floria-npolis, uma informao que o ouvinte tem, j que ele est em Florian-polis. Se o falante no sabe como est o tempo em Florianpolis, ento seu estado de conhecimento inclui mundos em que chove em Florian-polis e mundos em que no chove em Florianpolis; por isso mesmo que ele faz a pergunta sobre o tempo. Ao ouvir T chovendo como resposta, h uma mudana no estado de conhecimento do falante: agora ele sabe sobre o tempo em Florianpolis, ou seja, ele consegue delimitar, ao interpretar a sentena, o conjunto de mundos em que verdade que chove em Florianpolis no momento em que ele est.

    Como vimos, o significado estabelece em que condies uma de-terminada sentena verdadeira. Ento, quando dizemos que o falante tem conhecimento semntico, queremos dizer que ele sabe em que con-dies uma sentena qualquer de uma lngua pode ou no ser verdadei-ra. Um semanticista procura desvendar esse conhecimento, construindo uma teoria do significado. Para tal empreendimento, ele utiliza o que se denomina metalinguagem, que iremos discutir no prximo Captulo.

  • Captulo 02Conhecimento semntico...

    39

    2.5 Consideraes finais

    Neste Captulo exploramos conceitos semnticos bsicos, que esta-ro presentes em toda investigao semntica. Como voc vai ver, mes-mo neste Livro-texto, que uma apresentao dos vrios temas de se-mntica, os conceitos de contradio, sinonmia, acarretamento, e outros que acabamos de ver, sero retomados diversas vezes.

    De particular interesse so as ideias de composicionalidade e a de trama semntica. A primeira responde pelo fato de entendermos e po-dermos produzir sentenas que nunca antes tenhamos visto; a segunda, pelo fato de sabermos que as sentenas de uma lngua esto sempre em relao com outras sentenas, ou seja, quando sabemos que Joo che-gou, automaticamente sabemos que ele tinha sado.

    A ideia de condies de verdade, por sua vez, permite capturar nos-sas intuies quanto composicionalidade e trama semntica numa teoria formal sobre a linguagem. E a essa teoria que nos voltamos no prximo Captulo.

  • Captulo 03Metalinguagem

    41

    3 MetalinguagemVoc ter conhecimento sobre a ideia de condies de verdade e a ma-

    neira como funciona uma semntica verifuncional. Apresentaremos tambm exemplos a voc, exemplos de derivao semntica, investigando o papel que

    argumentos e predicados desempenham nessas derivaes.

    3.1 Teorema-T

    A maneira mais usual na Semntica de descrever o fato de que o falante sabe em que condies uma sentena verdadeira utilizar o famoso Teorema-T:

    A sentena T chovendo verdadeira em Portugus Brasileiro se e

    somente se (abreviado sse) est chovendo no momento em que a

    sentena proferida.

    Uma sentena-T pode parecer trivial, mas ela no , e preciso entender o que est por trs dela. Uma sentena-T expressa um conhe-cimento: o conhecimento sobre o significado da sentena. A impresso de trivialidade se explica porque tanto a lngua-objeto, aquela que que-remos explicar (e que sempre aparece marcada formalmente, atravs das aspas simples), quanto a metalinguagem, a linguagem que utilizamos para explicar a lngua-objeto, isto , para estabelecer as condies em que o mundo deve estar para que a sentena seja verdadeira, so o por-tugus. Mas, compare:

    (1) A sentena ich liebe dich verdadeira em alemo se e somente se o falante ama o ouvinte no momento de fala.

    Nesse caso, a sentena-T parece menos trivial, porque a lngua-ob-jeto o alemo, e damos sua condio de verdade usando o portugus como metalinguagem. As sentenas-T podem ser facilmente generali-zadas atravs do esquema-T, a seguir, em que p est por uma sentena qualquer da lngua-objeto e q por uma sentena da metalinguagem:

    (T de Tarski, 1944)

  • Semntica

    42

    Esquema-T: p verdade na lngua X sse q

    A lngua-objeto no est sendo efetivamente usada, mas apenas mencionada. Suponha, por exemplo, a sentena eu te amo. Se ela efe-tivamente usada, o falante se compromete com o que ela diz, isto , o falante est expressando o que sente com relao ao ouvinte. Mas, veja que, neste Livro-texto, no estamos usando essa sentena feliz ou in-felizmente, no estamos expressando amor por ningum quando a mo-bilizamos aqui. O que ocorre, neste Livro-texto, que mencionamos a sentena, tratamos dela como um objeto terico, fora de uso, para tentarmos entender o significado que ela tem em uso. J as palavras e sentenas na metalinguagem esto sendo usadas, isto , utilizamos o conhecimento implcito sobre seu significado para explicar a lngua-objeto; a metalinguagem remete ao mundo ou a um modelo de mundo. Note a diferena entre lua e lua nos exemplos a seguir. No primeiro caso, estamos falando sobre a palavra lua, porm no segundo estamos usando lua para nos referirmos ao objeto lua no mundo. A sentena (2) faz sentido, a sentena (3) no:

    (2) Lua tem trs letras.

    (3) Lua tem trs letras.

    por isso que a sentena (4) expressa um conhecimento:

    (4) Lua em portugus significa lua.

    3.2 Analisando uma lngua

    Antes de mais nada, importante salientar que, grosso modo, todas as expresses de uma lngua tm sentido e referncia.

    Na teoria semntica que adotamos, encontramos dois tipos de en-tidades no mundo: os objetos (ou indivduos), que so particulares, e os valores de verdade, isto , o verdadeiro e o falso. Este ltimo um objeto muito peculiar e comum os alunos terem muita dificuldade em enten-der as razes de precisarmos desses objetos, mas isso se deve em parte a uma concepo muito concretista de objeto. Por exemplo, o nmero 2 refere-se a um objeto no mundo, mas esse objeto no concreto. co-mum encontrarmos a seguinte crtica aos modelos referenciais de semn-tica: a que objeto no mundo se refere a beleza? Mas, essa crtica mostra

    Veja novamente, confor-me o Captulo 1.

  • Captulo 03Metalinguagem

    43

    apenas que o conceito de objeto foi mal compreendido, porque tem forte respaldo no conceito de objeto de senso comum, ou seja, de objeto con-creto. Porm, no esse o caso. Os mundos do semanticista so modelos formais, constitudos por objetos entendidos matematicamente: valores para uma varivel, como os nmeros ou expresses que preenchem os x, y e z das equaes. apenas por questes didticas que, em geral, esses modelos so apresentados atravs de exemplos concretos.

    Assim, no modelo semntico, os elementos da lngua se referem ou a indivduos (e conjuntos de indivduos e conjuntos de conjuntos de in-divduos) ou a valores de verdade. Nessa proposta, cuja base Frege, h dois tipos de expresses na lngua: expresses saturadas (ou completas) e expresses insaturadas (ou incompletas).

    As expresses saturadas caracterizam-se por se referirem a um nico

    objeto no mundo, um indivduo ou um valor de verdade. Um nome

    prprio, por exemplo, uma expresso saturada, porque se refere a

    um nico indivduo. J um predicado, como ser feliz, insaturado,

    dado que ele no se refere a um indivduo em particular, mas sim a

    um conjunto de indivduos: os indivduos que so felizes.

    bastante intuitivo entender que os nomes prprios, como Joo, Maria, Lus etc., se referem a um indivduo em particular. Menos intuiti-vo o fato de que, na Semntica, os nomes prprios tm sentido, porque o sentido precisamente o que permite acessarmos um referente no mun-do. Quando algum diz Hitler imediatamente acionamos uma refern-cia, o indivduo Hitler. Essa ponte da palavra para o mundo o sentido. No caso das expresses saturadas, como os nomes prprios, essa ponte entre uma expresso da linguagem e um nico indivduo no mundo.

    Linguagem Sentido Referncia (Mundo)

    Hitler

    Nomes Prprios

    Estamos aqui trabalhan-do com um modelo bem simples, em que s h um indivduo chamado Joo. E, de fato, na nossa vida s aparentemente que h dois indivduos chamados Joo, porque no fundo o nome prprio inclui o sobrenome.

  • Semntica

    44

    O sentido , pois, uma funo que associa a cada expresso da ln-gua uma nica referncia no mundo. A maneira usual de implementar-mos essa ideia na semntica atravs de uma funo de interpretao, normalmente representada por colchetes duplos [[ ]]. Assim, temos:

    [[Hitler]]

    Linguagem

    Hitler

    MUNDO

    =

    Entre os colchetes duplos temos linguagem, j do outro lado da equao temos um indivduo. Note que estamos retornando distino entre lngua-objeto e metalinguagem. O sinal de igual precisamente a funo de interpretao.

    Assim como os nomes prprios, as descries definidas (o menino de azul, o atual presidente do Brasil etc.) tambm so expresses satu-radas, porque se referem a um nico indivduo no mundo; por isso, para Frege, elas tambm so nomes prprios. Uma descrio definida uma expresso complexa que se compe de um artigo definido e um predica-do, e se refere a um e apenas um indivduo no mundo. Na sentena

    (5) Lula o atual presidente do Brasil.

    temos uma sentena de identidade entre um nome prprio, Lula, e uma descrio definida, o atual presidente do Brasil. Trata-se, obvia-mente, de uma sentena sinttica, porque um acaso histrico que o atual presidente do Brasil seja o Lula. Tanto o nome prprio quanto a descrio definida se referem ao mesmo indivduo no mundo, mas o fazem atravs de sentidos distintos (de funes diferentes):

    [[o atual presidente do Brasil]] = Lula

    [[Lula]] = Lula

    O ltimo caso de expresso saturada so as sentenas, como Joo estuda, Maria trabalha, Pedro ama Joo etc. Sentenas obviamente no se referem a um indivduo em particular no mundo, mas a um valor de verdade. Sentenas so verdadeiras ou falsas. Uma sentena uma

  • Captulo 03Metalinguagem

    45

    expresso saturada porque ela expressa um pensamento completo e permite alcanarmos um objeto em particular: ou a verdade ou o fal-so (enquanto objetos matemticos!). Uma expresso como O menino que est de azul no expressa um pensamento completo, mas serve para apontar um indivduo em particular no mundo trata-se, portanto, de uma descrio definida. Compare com O menino que est de azul caiu da escada. Nesse caso, temos uma sentena, porque h um pensamento completo e podemos, em confronto com um estado no mundo, afirmar se ela verdadeira ou falsa. Como as descries definidas, as sentenas so estruturas complexas e podem, portanto, ser decompostas em ele-mentos menores. Essa decomposio tambm objeto de estudo deste Livro-texto. Por enquanto, basta entender que sentenas so estruturas complexas saturadas que tm como referncia um objeto em particular: ou a verdade ou a falsidade.

    3.2.1 Predicados e argumentos

    A partir de agora, vamos decompor sentenas. Decompor uma sentena em suas unidades mnimas e mostrar as regras de composio um trabalho rduo que tem sido realizado pelos semanticistas ao lon-go de geraes. No possvel apresentar essas conquistas de uma nica vez, porque h vrias questes que so, muitas vezes, bastante comple-xas. por isso que essa decomposio feita por etapas. Vamos iniciar apresentando os conceitos bsicos de argumento e de predicado, que so os paralelos na sintaxe dos conceitos de expresso saturada e insatu-rada, respectivamente. Considere a sentena em (6):

    (6) Joo estuda.

    Sua forma sinttica pode ser grosseiramente representada por:

    S

    SN

    N

    SV

    V

    Joo estuda

  • Semntica

    46

    A representao arbrea de uma sentena visa a mimetizar uma pro-

    priedade fundamental das lnguas naturais: o fato de que os elemen-

    tos lingusticos se combinam hierarquicamente e no linearmente,

    como poderamos julgar se nos contentssemos com a nossa percep-

    o da linguagem em que, aparentemente, um elemento se segue a

    outro. A ideia de hierarquia de constituinte, grosso modo, os elemen-

    tos a partir do qual uma sentena montada e no qual ela pode

    ser reduzida, fundamental para a sintaxe gerativa, conforme aquela

    iniciada por Noam Chomsky (1928- ). A idia, contudo, de que h hie-

    rarquia na sintaxe e de usar representaes arbreas mais antiga.

    Intuitivamente, o significado da sentena (6) funo do significado de suas partes (composicionalidade): Joo e estuda. Essas partes com-portam-se, no entanto, de modo muito diferente. Joo, como vimos, um nome prprio e, como tal, se refere a um indivduo especfico no mundo, por isso uma expresso saturada; em termos sintticos, Joo o argu-mento do predicado estuda. Por sua vez, o predicado estuda uma ex-presso insaturada porque ela no se refere a um objeto em particular no mundo (nem a um indivduo, nem a um valor de verdade). Alm disso, ela no uma estrutura completa, porque no expressa um pensamento.

    Sem maiores informaes, por exemplo, sobre quem que estamos falando, estuda no expressa um pensamento e nem possvel ave-riguar se verdadeiro ou falso. por isso mes-mo que essa expresso insaturada, ela precisa de um complemento para se saturar. Uma vez saturada, ela vira uma sentena que veicula um pensamento completo e pode se referir a um objeto em particular. A expresso estuda tem uma posio aberta, que pode ser preenchi-da por diferentes argumentos, gerando, ento, uma nova estrutura saturada:

    A expresso estuda um predicado, isto , uma expresso insa-turada que pede uma complementao, uma saturao. Uma expresso

    Joo

    Maria

    O menino que est de azul

    Pedro

    O atual presidente do Brasil---

    estuda

  • Captulo 03Metalinguagem

    47

    insaturada pode ser pensada como uma estrutura na qual h um lugar vazio (uma valncia):

    _______ estuda

    Esse lugar pode ser preenchido por diferentes argumentos; cada ar-gumento satura o predicado diferentemente, gerando sentenas diferen-tes: Joo estuda, Maria estuda, O menino que est de azul estuda etc.

    O resultado de saturarmos uma expresso insaturada formar uma

    expresso saturada, uma sentena, que se refere a um objeto, o ver-

    dadeiro ou o falso.

    Dissemos que todas as expresses da lngua tm sentido e refern-cia. A que estuda se refere? Estuda um predicado de um lugar, isto , com uma posio aberta e por isso chamado de predicado monoar-gumental, ou seja, deve tomar um e apenas um argumento. Predicados de um lugar se referem a um conjunto de indivduos; assim,estuda se refere ao conjunto dos indivduos que tm a propriedade de estudar.

    Quando usamos a palavra conjunto, o que temos em mente a teoria

    de conjuntos, da Matemtica. Quando na Matemtica se questiona

    o conjunto dos nmeros primos, o que se busca a descrio de to-

    dos os nmeros que so nmeros primos, ou seja, todos os nmeros

    primos pertencem a um conjunto, o conjunto dos nmeros primos.

    Na Semntica, o termo conjunto funciona semelhantemente. Ao

    usarmos o termo conjunto, buscamos colocar no mesmo conjunto

    aqueles elementos que tm a mesma propriedade, por exemplo, no

    conjunto de estudar, temos todos os elementos que compartilham

    a propriedade de estudar. Ento, ao usarmos o termo pertence ao

    conjunto de, queremos incluir no conjunto aqueles elementos ou

    objetos que dele fazem parte. Como veremos, os nomes comuns,

    como mdico, e predicados de um argumento, como correr, deno-

    tam conjuntos de indivduos.

  • Semntica

    48

    No primeiro caso, temos o conjunto de indivduos que tm a pro-

    priedade de ser mdico - em termos robustos, o conjunto de todas

    as pessoas que so mdicas; no segundo conjunto, temos os indiv-

    duos que tm a propriedade de correr ou, simplesmente, o conjunto

    daqueles que correm. Ento, na sentena Pedro corre, o que que-

    remos dizer que Pedro pertence ao conjunto daqueles que tm a

    propriedade de correr.

    Vamos compor semanticamente a rvore citada anteriormente. Comeamos pelos ns terminais, isto , as unidades mnimas que, no caso da sentena (7), so Joo e estuda.

    Joo refere-se ao indivduo

    [[Joo]] =

    Observe que estuda refere-se a um conjunto de indivduos (os que aparecem entre chaves):

    [[estudar]] = { }

    A sentena Joo estuda tem ento a forma ao lado; essa forma tam-bm conhecida como derivao de uma sentena; no caso, da sentena Joo estuda.

    Semanticamente, podemos parafrasear essa sentena por Joo per-tence ao conjunto daqueles que estudam. Mas, para chegar a tal par-frase, precisamos de uma regra semntica que permita compor o SN (sintagma nominal) com o SV (sintagma verbal), para que a sentena (S) seja verdadeira sse o referente do SN pertencer ao conjunto denota-do pelo SV para o nosso caso, Joo estuda (S) verdadeira sse Joo

    S

    SN

    N

    SV

    V

    Joo estuda

  • Captulo 03Metalinguagem

    49

    (SN) pertence ao conjunto dos que estudam (SV). Essa regra se chama Aplicao Funcional e vamos apresent-la informalmente, porque uma definio formal requer conceitos que ainda no dominamos. No exem-plo anterior (e este ser sempre o caso quando estivermos no n S), a aplicao funcional aplica a funo estuda ao argumento Joo.

    H duas maneiras de representarmos um conjunto:

    Apresentamos os elementos que compem o conjunto, ou a)

    Explicitamos a propriedade que os elementos tm. No exem-b) plo anterior, explicitamos os elementos do conjunto. Eis mais um exemplo: suponha que queremos explicitar o conjunto dos nmeros naturais maiores que 1 e menores que 4. Podemos enumerar os elementos desse conjunto: {2, 3}; mas, podemos tambm dar a definio do conjunto: {x / x maior que 1 e me-nor que 4}. No primeiro caso, damos a referncia; no segundo, damos o sentido. Podemos fazer o mesmo com estuda:

    [[estuda]] = {x / x estuda}

    Em linguagem mais natural: o conjunto dos x tal que x estuda. A idia da aplicao funcional a seguinte: na extenso (referncia) do SV temos o conjunto {x / x estuda}. Na extenso do SN temos Joo. A aplicao funcional permite substituir a varivel (x) por Joo, obtendo a sentena Joo estuda, que verdadeira se e somente se Joo estuda. Essa uma instncia da sentena-T. Mas, note que ela o resultado de um clculo, da soma das extenses (um outro nome para referncia) de Joo e estuda. Note ainda que chegamos s condies de verdade da sentena e no a um resultado, ao verdadeiro ou ao falso. O resultado depe