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Serão Todos Filhos de Adão? A África Subsaariana e o Mundo Cristão Letícia C. F. Destro 1. Introdução No imaginário cristão do século XV, o universo, o globo terrestre, a Ilha da Terra e principalmente o mundo (Ecúmeno) tinham conotações muito específicas que merecem ser aqui especificadas. O universo era concebido como uma criação de Deus, portanto era finito e perfeito tudo nele já estava feito de forma inalterável e de acordo com um modelo arquetípico e único (O’GORMAN, 1992: 72). A imagem arcaica do universo a que o Cristianismo deu contornos teológicos era a de uma imensa esfera com duas zonas concêntricas que se diferenciavam principalmente pela natureza. A primeira e mais afastada da Terra (centro) era a zona celeste que continha as órbitas do empíreo (reservado aos santos, anjos e seres abençoados), do primeiro motor (causa inicial de todo o movimento), do cristalino, do firmamento e dos sete planetas, juntamente com o Sol e a Lua. Em seguida começava a segunda, a sublunar, que continha os quatro elementos: o fogo, a água, o ar e a terra. Nessa zona, conhecida também como elementar ou da decomposição, eram gerados os seres vivos destinados a perecer (Idem: 75). O globo terrestre, por sua vez, não era sequer um corpo celeste, “era uma massa de matéria mais pesada do universo: uma grande bola que, fixa no centro, suportava o peso das massas de matéria em escala crescente de leveza [...]” (Idem: 74). Ele era,

Serão todos filhos de Adão? A África subsaariana e o mundo cristão

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Page 1: Serão todos filhos de Adão? A África subsaariana e o mundo cristão

Serão Todos Filhos de Adão? A África Subsaariana e o Mundo Cristão

Letícia C. F. Destro

1. Introdução

No imaginário cristão do século XV, o universo, o globo terrestre, a Ilha da

Terra e principalmente o mundo (Ecúmeno) tinham conotações muito específicas que

merecem ser aqui especificadas.

O universo era concebido como uma criação de Deus, portanto era finito e

perfeito – tudo nele já estava feito de forma inalterável e de acordo com um modelo

arquetípico e único (O’GORMAN, 1992: 72). A imagem arcaica do universo a que o

Cristianismo deu contornos teológicos era a de uma imensa esfera com duas zonas

concêntricas que se diferenciavam principalmente pela natureza. A primeira e mais

afastada da Terra (centro) era a zona celeste que continha as órbitas do empíreo

(reservado aos santos, anjos e seres abençoados), do primeiro motor (causa inicial de

todo o movimento), do cristalino, do firmamento e dos sete planetas, juntamente com o

Sol e a Lua. Em seguida começava a segunda, a sublunar, que continha os quatro

elementos: o fogo, a água, o ar e a terra. Nessa zona, conhecida também como

elementar ou da decomposição, eram gerados os seres vivos destinados a perecer (Idem:

75).

O globo terrestre, por sua vez, não era sequer um corpo celeste, “era uma massa

de matéria mais pesada do universo: uma grande bola que, fixa no centro, suportava o

peso das massas de matéria em escala crescente de leveza [...]” (Idem: 74). Ele era,

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então, o alicerce de todo o cosmo e alojava a zona do inferno, que também estava

estruturado em órbitas correspondentes aos sete pecados. Na última esfera vivia Lúcifer.

A distribuição do globo em terra e mar, por sua vez, suscitava indagações a

respeito do tamanho de cada uma dessas partes. Indagações essas que conheceram

soluções hipotéticas se vistas à luz dos conhecimentos atuais, mas não arbitrárias, pois

respondiam a exigências de natureza científica e religiosa, como ressalta Edmundo

O’Gorman (Idem: 76). A primeira refere-se à tese aristotélica que tem como princípio a

predominância do elemento água, o Oceano, na totalidade do globo terrestre. E a outra,

à noção bíblica, na qual predominava a terra: “Deus ordena que as águas que estão

debaixo do céu ajuntem-se num só lugar, e apareça o [elemento] árido. [...] E Deus

chamou ao [elemento] árido terra e ao conjunto das águas chamou mares” (Gênesis 1, 9-

10).

Essa preocupação estava diretamente relacionada à navegação, principalmente

na época em que se buscava o melhor caminho para as Índias. Se fosse admitida a

hipótese que atribuía à Ilha da Terra uma enorme extensão, seria mais viável uma

travessia pelo Mar Oceano (Atlântico), já que não se sabia ao certo se o fim meridional

da África era mesmo o Equador, conforme indicação de Claudio Ptolomeu (90-168

d.C.). De acordo com o geógrafo egípcio em seu A Geografia, a África se estendia de tal

modo para o sudeste que se encontrava com a Península Asiática e o Mar Índico, em

consequência, era um mar fechado tal como o Mediterrâneo (Ptolemy, 2011:159). Na

reprodução de Ptolomeu editada em Ulm de 1482, o caminho para a Índia, contornando

a África, é bloqueado, conforme a legenda do próprio exemplar, por uma “terra

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incógnita secund. Ptolomeu” ao sul da Ethiopia Interior.1 Ao contrário, se a Ilha da

Terra fosse considerada uma extensão diminuta, o caminho costeiro seria o mais

aconselhável. Essa foi a decisão dos portugueses sob a inspiração do príncipe Henrique

(1394-1460) quando lançaram-se em busca da Índia, acreditando que os confins da

África não se estenderiam além do Equador.

Outra questão ligada ao tamanho da Ilha da Terra dizia respeito à possibilidade

de haver terras antípodas em outros hemisférios. Na Antiguidade, acreditava-se que nem

toda a Ilha da Terra era adequada para abrigar o mundo, partes dela eram consideradas

inabitáveis em um sentido absoluto. Eram regiões nas quais se supunham existir certas

condições cósmicas que o homem jamais alteraria ou remediaria, porque dependiam da

própria estrutura do universo. Essas “outras terras” ou Orbis Alterius, portanto, caso

pudessem ser habitadas, o seriam por outras criaturas que não o homem (O’GORMAN,

1992: 88).

A teoria clássica a esse respeito, de acordo com O’Gorman, ganhou contornos

definitivos com Aristóteles e sua divisão do globo terrestre de acordo com as cinco

zonas: duas polares, duas temperadas e a intermediária, chamada zona tropical, tórrida

ou quente. As únicas habitáveis eram as zonas temperadas, as compreendidas entre os

círculos árticos e os círculos dos trópicos, ou seja, a extensão do mundo habitável ficava

compreendida dentro da zona temperada setentrional, no hemisfério norte. As demais

teriam as intransponíveis barreiras dos círculos do Ártico e do Trópico de Câncer.

1 Ao analisar o mapa, a parte ao sul do Equador, como o próprio cartógrafo escreve, não era

conhecida por Ptolomeu; portanto, foi uma anexação dos conhecimentos da época da edição.

Ver: Johannes de Armsshein. “The world”. Ulm, 1482. Osher Collection, Osher Gallery,

University of Southern Maine, Portland.

http://www.oshermaps.org/search/zoom.php?no=235.0001#img0.

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Dessa forma, caso a concepção cristã de mundo aceitasse a afirmação da

existência dessas terras, claramente se distinguiria a Ilha da Terra do Ecúmeno (mundo)

– apenas a parte habitável por seres humanos – pois a primeira compreenderia todas as

terras do globo: as antípodas e o ecúmeno.

Contudo, a possibilidade de as terras além do Ecúmeno serem habitadas por

espécies distintas confrontava diretamente o mais básico dos preceitos cristãos: o da

unidade fundamental do gênero humano. Tendo em vista que todos procederam de um

único e original casal, não haveria lacunas no dogma cristão para espécies de homens

diferentes e nem mesmo no Evangelho, segundo o qual os ensinamentos de Cristo e de

seus apóstolos haviam chegado aos confins de toda a Ilha. No entanto, a contestação da

teoria de que os homens descendem de um único casal é tão antiga quanto ela própria.

Conforme ressalta Leon Poliakov, antigos exegetas judeus concluíram que o universo

provavelmente tivera uma criação anterior e que algo dessa criação talvez subsistisse em

“anjos, demônios, ou homens, quiçá melhores, quiçá piores que a posteridade de Adão”

(POLIAKOV, 1974: 105).

Dessa forma, salienta-se que a ideia de que nem todos descendem de um pai

comum circulava muito antes das descobertas de Novos Mundos, embora tenha

recebido mais adeptos nos séculos que se seguiram, ganhando contornos mais

definitivos no século XVIII.

2. A África dos “herdeiros de Cam”

O cristianismo atribuiu à antiga divisão do mundo – Europa, Ásia e África – um

fundamento próprio, no qual a Terra fora repartida entre os três filhos de Noé. De

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acordo com essa tradição, Cam (pai de Canaã), o filho mais novo de Noé, “tendo visto a

nudez de seu pai [embriagado], saiu fora a dizê-lo a seus dois irmãos” (Gênesis 9, 22-

23). Ao despertar da embriaguez e saber o que ocorrera, Noé amaldiçoou a geração de

seu filho: “Maldito seja Canaã, ele será escravo dos escravos de seus irmãos” (Gênesis

9, 25-26); e abençoou a posteridade dos outros dois, Sem e Jafet, por terem-no

respeitado e vestido. Após o dilúvio, cada filho foi povoar uma parte no mundo, e “[...]

Sem, seu primogênito, habitou a parte oriental, e Cão, a parte do meio dia [África], e

Jafet habitou a parte setentrional [...]” (PEREIRA, 1954: 22), conforme ressalta o

cosmógrafo real português Duarte Pacheco Pereira (1460-1533).2

A Europa conservou, portanto, a posição elevada que já ocupava na cultura

clássica e era o reduto da verdadeira civilização fundada na fé cristã. À África, habitada

pelos descendentes de Cam, coube o último lugar na hierarquia, como se pode

testemunhar pelas próprias palavras do cronista-mor do reino de Portugal, Gomes Eanes

da Zurara (1410-1474):3

E aqui haveis de notar que estes negros, posto que sejam Mouros como os outros, são

porém servos daqueles por antigo costume, o qual creio que seja por causa da maldição

que depois do dilúvio lançou Noé sobre seu filho Cam, pela qual maldisse, que a sua

geração fosse sujeita a todas as outras gerações do mundo, da qual estes descendem [...]

(ZURARA, 1937: 85).

2 O manuscrito foi provavelmente escrito entre os anos de 1506 e 1508. É um relato das suas viagens ao

longo de toda a costa ocidental africana dedicado a D. Manuel I. O original da obra perdeu-se, existindo

hoje apenas duas cópias. A mais antiga, que data da primeira metade do século XVIII, se encontra na

Biblioteca Municipal de Évora e a outra, da segunda metade do mesmo século, está na Biblioteca

Nacional de Lisboa.

3 A crônica foi escrita em 1448, a pedido do então rei para presentear seu tio, o rei de Nápoles, e é o

primeiro livro sobre a costa ocidental africana. O manuscrito desapareceu, tendo-se notícias dele em

1837, quando foi encontrado na Biblioteca de Paris. Contudo, há uma cópia dele editada e adaptada por

Valentim Fernandes do início do século XV. Uma versão de 1841, transladada do manuscrito original, se

encontra na Biblioteca Nacional de Lisboa, na Biblioteca Nacional de Madrid (séc. XVIII) e na Biblioteca

de Munique (séc. XVII).

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O mundo representado segundo tais premissas teológicas consolidou-se nos

mapas denominados T.O. (Orbis Terrarum), cujo exemplo mais antigo se encontra no

Ethimologiarum Originum de Santo Isidoro de Sevilha, do século VII. Suas

características básicas ilustram bem a revelação bíblica: o mundo tripartido em forma de

T, símbolo de Cristo crucificado, com Jerusalém ao centro rodeada pelo oceano. O

Paraíso Terrestre, acima do quadrante que ocupa a Ásia. As outras duas partes são

representadas por Europa e África. Cada uma dessas áreas está associada aos três

herdeiros de Noé.

O mapa de Hereford, atualmente na catedral de Hereford (onde provavelmente

era exposto durante as missas), na Inglaterra, elaborado entre 1290 e 1300, é um

exemplar dessa perspectiva, o que fica claro nas imagens que o adornam (Fig. 1). Não

se sabe ao certo a sua autoria, apenas que foi assinado por Ricardo de Haldingham e

Lafford, e destinado a Hereford desde que foi completado (ficando nesta cidade desde

então).4 O mapa possui numerosas figuras que representam cidades, montanhas,

animais, seres mitológicos e eventos bíblicos. Na parte superior, fora do orbe, está

representado o julgamento final, com Cristo entronizado. O mundo, por sua vez, é

reconstituído caoticamente, cabendo, portanto, ao homem, a partir de suas ações e

valores religiosos, merecer entrar no reino celeste ordenador e eterno.

Dentre as regiões que o mapa representa, a África e a Ásia são as que

apresentam informações menos precisas. Nelas os elementos maravilhosos e “reais”

estão bem misturados, há várias cidades existentes que contrastam com minotauros e

dragões. No quadrante destinado à África, há várias cidades conhecidas especialmente

4 O primeiro fac-símile foi produzido por Thomas Ballard of Ledbury em 1830, em Londres.

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pelo comércio mediterrânico. Ao sul, contudo, há um corredor, talvez uma terra

antípoda, onde se reúne uma coleção de exemplares de monstros – especialmente os

descritos por Plínio –, tais como os Blêmios (que não possuem cabeça e cujos órgãos

dos sentidos estão localizados no peito), os Ciápodes (monstros com apenas um pé) e os

Amyctyraes (monstros com lábios inferiores protuberantes que podem servir para

proteger do sol).5

Essas figuras monstruosas, muitas vezes, marcavam o início do território

desconhecido, sendo que a localização e, especialmente, a climatologia eram

importantes aspectos para a explicação da variedade de tipos e costumes. A África, pelo

clima extremo, abrigava diversos deles, desde trogloditas até pigmeus (BURKE, 2004:

17). A própria etimologia da palavra “monstro” origina-se de mostrar (monstrare), no

sentido de indicar algo ou prenunciar o significado de algo.

A partir dessa configuração geográfica, os monstros eram designados, além da

morfologia, através de um quadro de distinções pautado especialmente em diferenças

“culturais”. Na taxonomia de Plínio, por exemplo, certos seres, como a raça de Homens

Sem Discurso, eram definidos exclusivamente com base na linguagem, seja pelo que era

considerado a ausência de discurso articulado ou pelo idioma incompreensível (muitas

vezes também tratado, por desconhecimento, como ausência de linguagem). Outro

elemento diferenciador dizia respeito aos tipos de alimentação: os comedores de Lótus

em Homero, por exemplo, os Antropophagi, dentre outros. A habitação, como os

monstros homéricos que habitavam bosques, florestas, cavernas e desertos, também

seria um determinante de monstruosidade, além do uso de armas primitivas e a nudez. É

5 O mapa de Psalter e de Ebstorf, ambos de meados do século XIII e também exemplares T.O.,

similarmente trazem, na mesma região (entre o Nilo? e o Oceano), exemplos de monstros como os

desenhados no mapa de Hereford.

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nesse sentido, analisa Peter Burke, que os antigos Antropophagi se transformam nos

canibais quando transplantados para os Novos Mundos (Idem: 28).

A grande questão tratada, entretanto, pelos autores ligados à Igreja residia no

problema de explicar o motivo da existência de monstros, sendo que na própria

Escritura Sagrada apresentam-se alguns exemplares de seres monstruosos: no livro de

Jó, capítulos 40 e 41, descrevem-se, por exemplo, os monstros marinhos Beemot e o

famoso Leviatã. Há ainda as bestas apocalípticas e os seres extraordinários das profecias

de Daniel. A partir disso, Marie-Hélène Huet argumenta que os monstros também eram

considerados um resultado da glória e ira de Deus: “alguns dos mais famosos casos de

progênies de monstros foram construídos como mensagem mandada por Deus para

expressar sua ira em relação aos pecados do homem” (HUET, 2004: 131; tradução

nossa). Ou, como aposta Santo Agostinho na sua interpretação de Plínio: os monstros

seriam parte da maravilhosa variedade da criação de Deus. Como cristão que era, Santo

Agostinho aborda a questão a partir da descendência de Noé; já que o Dilúvio teria

renovado toda a população da Terra, esses seres descenderiam também do patriarca

(PRIORE, 2000: 24).

Dessa forma, a existência dos monstros confrontava questões relativas à

definição da própria humanidade. De modo geral, as raças monstruosas pareciam ficar

entre a condição de animal e a de humano, porém eram uma criação de Deus conforme

defendia Santo Agostinho. Na classificação de Lineu, já no século XVIII, os monstros

(anões e gigantes) eram a categoria final do homo sapiens (PRATT, 1999: 68).

Sendo assim, transladar para o desconhecido elementos fantásticos e também

bíblicos parecia, portanto, facilitar a assimilação e o controle sobre o espaço estrangeiro.

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Os exemplares posteriores de carta-portulano,6 entretanto, tinham, além disso, interesses

geográficos que dessem conta, em especial, das rotas de comércio. A atenção se voltava

em específico para as rotas em que se adquiriam mercadorias suficientes para abastecer

o comércio mediterrâneo e principalmente para os países do Ocidente cristão, que

buscavam uma substituição das moedas visando estancar a hemorragia de metais

preciosos em benefício do Oriente. O ouro do Sudão foi uma alternativa que, durante

um período, manteve o equilíbrio comercial. Essa riqueza sudanesa era filtrada através

das rotas africanas traçando o Saara em direção ao Magrebe, região que a partir do

século XIII se tornou a mina de ouro sem a qual a atividade comercial mediterrânea

teria se paralisado. Todas as mercadorias que a Europa podia fornecer afluíam pelas

cidades norte-africanas, cidades essas que ligaram a história do Magrebe aos longínquos

destinos das cidades e dos reinos do grande anel do Níger para além do Saara

(BRAUDEL, 1953: 69-70).

Essas cartas, entretanto, ainda ornamentavam regiões exóticas como Ásia e

África com elementos fantásticos e religiosos. Um exemplar famoso dessa categoria é o

Atlas Catalão elaborado em 1375 e cuja autoria é concedida ao judeu Abrão Cresques

(1325?-1387), cartógrafo real maiorquino (Fig. 2). O Atlas, conservado na Biblioteca

Nacional de Paris, foi encomendado pelo rei Pedro IV de Aragão como um presente

para o rei Carlos V da França.

Cresques utilizou-se, como de costume, de passagens bíblicas para preencher o

mapa, além de informações geográficas, históricas e mitológicas. Na África, em

específico, há destaque para a figura alegórica do imperador de Mali, trajando vestes

6 A carta-portulano é um tipo de “cartografia” baseada em experiência efetiva e, sendo uma eficaz técnica

representativa, ela constitui um revolucionário avanço sobre o período anterior. É motivada por

necessidades de tipo hidrográfico e articula-se diretamente com os roteiros (“portulanos”) de que é a

expressão gráfica (MARQUES, 1994: 21).

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muçulmanas e segurando uma pedra de ouro, seguida pelo desenho da cidade de

Tombuctu – um típico representante da África subsaariana. A presença do Mansa é

sintomática em vários outros mapas da época e muito provavelmente sua popularidade

se devia a uma viagem que o Mansa Musa7 fizera a Meca. Aproveitando-se da estadia

na capital egípcia, conforme ressalta Alberto da Costa e Silva, tratou de colocar seu

nome e o de sua cidade em evidência, espalhando sua fama por todo o mundo árabe e

até mesmo europeu. A imagem passada era a de um rei riquíssimo, senhor do ouro,

construída a partir do esbanjo do metal ao longo da rota de Mali a Meca (SILVA, 1996:

306). Ao lado do rei há um camelo e um negro nu representando os habitantes nativos

daquelas paragens conhecidos pelos viajantes principalmente pela ausência de

vestimenta. A seguir aparece o Rei de Organa, com turbante e vestido azul, cuja legenda

diz: “aqui reina o rei de Organa, sarraceno que tem contínua guerra com os sarracenos

marítimos, e com outros árabes (alarahps), ou occidentaes” (tradução nossa). Na

sequência aparece o rei da Núbia e por último, conforme a legenda, rei da Babilônia.

É provável que esse mapa seja um dos primeiros a considerar a existência de

populações nativas africanas com algum tipo de poder organizador, representado pela

figura do soberano, o rei – embora o termo demonstre claramente uma projeção de

categorias conhecidas pelo cartógrafo sobre o “outro”. De acordo com o historiador

Jean Massing, a iniciativa de representar as regiões por seus governantes era uma forma

de repassar a ideia de que o continente era permeado por monarquias centralizadas (cf.

MASSING, 2005).

7 Kanku Musa subiu ao trono por volta de 1307 sob o título de Mansa Musa I. Reinou de 1307 até 1332

(NIANE, 2010: 165).

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3. A nova configuração do mundo

No final do século XV e no século XVI, as novidades advindas das grandes

navegações trouxeram transformações profundas na concepção de mundo, conforme

discutimos anteriormente. A África circunscrita à região do Mediterrâneo ganhou

maiores contornos para além do Saara e um conjunto de terras, que se convencionou

chamar de Novo Mundo, surgiu, abalando a antiga concepção de Orbis Terrarum.

Localizadas para lá do limite imposto pelo oceano, facilmente poderiam ser um Orbis

Alterius que os antigos acreditavam existir. O problema estava posto: se as terras além

do Oceano eram uma outra ilha de que tanto falavam os pagãos, o que seriam seus

povoadores? No entanto, se fossem humanos, como chegaram até o novo continente?

Como escaparam do Dilúvio bíblico? Pois, de acordo com o Gênesis, somente os

animais e homens da Arca de Noé salvaram-se do Dilúvio.

Então o que dizer das espécies de animais desconhecidas e da humanidade

daquelas gentes? Se todos os povos descendiam de Adão e, após o Dilúvio, de Noé,

como teriam chegado àquelas terras distantes? Duarte Pacheco exprimiu muito bem essa

questão:

Muitos Antigos disseram que, se algua terra estevesse ouriente e oucidente com outra

terra, que ambas teriam o grau do Sol igualmente e tudo seria de ua calidade. E quanto à

igualeza do Sol é verdade; mas como quer que a majestade da grande natureza usa de

grande variedade, em sua ordem, no criar e gerar das cousas, achamos, por experiência,

que os homens deste promontório de Lopo Gonçalver e toda a outra terra de Guiné são

assaz negros, e as outras gentes que jazem além do mar oceano ou oucidente (que tem

grau do Sol por igual, como os Negros da dita Guiné) são pardos quási brancos; e estas

são as gentes que habitam na terra do Brasil, de que já no segundo capítulo do primeiro

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livro fizemos menção. E que algum queira dizer que se muitas árvores nesta terra há,

que tantas e mais, tão espessas, há nesta parte ouriental daquém do ouceano de Guiné. E

se disserem que estes daquém são negros porque andam nus e os outros são brancos

porque andam vestidos, tanto privilégio deu a natureza a uns como a outros, porque

todos andam segundo nasceram; assi que podemos dizer que o sol não faz mais

empressão a uns que a outros. E agora é pera saber se todos são da geração de Adão

(PEREIRA, 1954: 161).

Tanto os nativos da África subsaariana quanto os índios americanos esbarravam

na questão primordial: a unidade fundamental do gênero humano. O problema apontado

por Duarte Pacheco demonstra que para além da questão geográfica, como se tentou

convencionar, a pergunta principal dizia respeito a serem ou não filhos de Adão.8

Negras ou pardas, aquelas gentes desafiavam o preceito bíblico fundamental de unidade

do gênero humano. As novas terras, ainda mais pelo seu completo desconhecimento,

geraram dúvidas a respeito da Sagrada Escritura. A possibilidade de explicação,

conforme analisa O’Gorman, foi reconhecê-las como uma entidade separada e diferente

do Orbis Terrarum, mas que, apesar disso, constituía a sua “quarta parte”. O mapa-

múndi do cartógrafo alemão Martin Waldseemüller, de 1507,9 um dos componentes do

Vosgean Gymnasium em Saint-Dié-des-Vosges (na França), ilustra as terras

recentemente conhecidas já como a quarta parte do mundo, sendo o primeiro documento

cartográfico conhecido que ostenta o nome de América (Fig. 3). Ou seja, não só se

8 Séculos mais tarde, sobre o mesmo raciocínio, um discípulo de Lineu diria: “na África encontram-se

negros e macacos antropóides; na América do Sul, sob o mesmo clima, ambos inexistem; não decorre daí

que os homens negros são fruto de um cruzamento entre macacos e homens brancos?” (POLIAKOV,

1974: 157). 9 A respeito do Universalis cosmographia secundum Ptholomaei traditionem et Americi Vespucii

aliorumque lustrationes, sabe-se que foram feitas mil cópias desse mapa, mas apenas uma é conhecida e

ela se localiza na Biblioteca do Congresso, em Washington, D.C.

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reconhecem as novas terras como uma entidade diferente e separada do Orbis, mas

também se atribui à referida entidade um nome próprio que a individualize.

Nesse sentido, o Orbis Terrarum perdera seus antigos limites insulares da

arcaica noção de mundo bondosamente destinado por Deus ao homem, para se

converter em um mundo aberto que o homem conquista e transforma (O’GORMAN,

1992: 185). Dessa forma, o Oceano passou a ser incluído no Orbis e, portanto, cessou

automaticamente de delimitar o mundo como vinha sendo pensado. Assim, a separação

que as suas águas impunham às porções de terras não submersas não significava mais

uma descontinuidade, mas um mero acidente geográfico: “[...] por diferente que possa

parecer, a separação oceânica entre a América e a antiga Ilha da Terra é da mesma

natureza daquelas que individualizam geograficamente a Europa, a Ásia e a África”

(Idem: 187). Dessa forma, a separação oceânica entre América e a antiga Ilha da Terra

era da mesma natureza daquelas que separavam Europa, Ásia e África.

Estas observações, analisadas por O’Gorman e contidas na Cosmographiae

Introductio,10

mostram que o pressuposto fundamental estava em considerar a totalidade

da terra como um todo contínuo. Enquanto terras contínuas, independentemente do

espaço de mar que existia entre elas, puderam ser definidas com um novo conceito

geográfico: “continentes”.11

Assim sendo, o mundo já não se dividia mais em “partes”,

mas em quatro continentes de uma mesma terra.

As descobertas geográficas, portanto, revelaram que os mapas que os antigos

legaram estavam equivocados. Mas não era apenas uma questão de erro empírico; a

10

Cosmographiae introductio cum quibusdam geometriae ac astronomiae principiis ad eam rem

necessariis. Insuper quatuor Americi Vespucii navigationes. Universalis Cosmographiae descriptio tam

in solido quam plano, eis etiam insertis, quae Ptholomaeo ignota a nuperis reperta sunt. Livro publicado

em 1507 pela Academia de Saint-Dié, que inclui a Lettera de Américo Vespúcio em tradução latina e a

carta geográfica destinada a ilustrá-lo, o mapa-múndi de Martin Waldeseermüller. 11

Atendo-se, conforme ressalta O’Gorman, à acepção original do termo, que se refere a contínuo,

imediatamente junto ou vizinho de alguma coisa (O’GORMAN, 1992: 190).

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ruptura com o mundo dos antigos, conforme ressalta Klass Woortmann, foi uma ruptura

face a um padrão de autoridade: “a experiência da autoridade começa a ser substituída

pela autoridade da experiência” (WOORTMANN, 1996: 33). Essa transformação, além

disso, se expressa no novo significado dos mapas: se antes eram uma representação

simbólica do mundo bíblico, agora passaram a se tornar instrumentos práticos,

destinados a descrever e medir o mundo. A revolução na concepção do espaço, que

agora é habitável, torna a Europa um continente entre outros, existindo, assim, homens

não europeus. Começa-se a colocar o difícil problema da alteridade e da unidade da

humanidade, que encontrou diferentes soluções desde o Iluminismo.

Mas voltemos para os estranhos habitantes. Assim como os negros africanos, os

nativos da América foram considerados bestiais e selvagens. Conforme ressalta

Woortmann, a projeção de um imaginário sobre o ameríndio – nu, descabelado, pagão e

possuidor de tecnologia rudimentar – foi também uma exotização do outro. Para a

América, assim como para a África ao sul do Saara anteriormente – embora com menor

frequência –, foram transplantadas imagens de Plínio, o velho, e inclusive as de

Mandeville e Isidoro de Sevilha (WOORTMANN, 2004: 73). Monstro e selvagem

confundiam-se em um mesmo personagem inventado, expressando tudo aquilo que a

civilização negava. Ao mesmo tempo, expressavam problemas teológicos: “se o homem

havia sido criado à imagem e semelhança de Deus, e se o europeu era o paradigma de

tal criação, tudo que se afastava do europeu, vale dizer, do cristão, era monstruoso,

fosse em sentido físico ou moral” (Idem: 74).

Mas a selvageria tanto podia ser negativa quanto idílica. A não valorização do

ouro, o paganismo e outras características levavam à infantilização do outro. Nesse

caso, o selvagem ameríndio era a inocência, o estágio primitivo do homem. Nesse

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estágio primitivo, o selvagem viveria em um estado de pureza edênica, sem as manchas

do pecado original, sendo uma antítese do mundo da corte e da cidade. Dessa forma, por

vezes, os colonizadores concebiam os ameríndios como seres destituídos de intelecto e

impróprios para a vida em sociedade. A nudez, os desregramentos sexuais, a

inexistência de um poder centralizador, o canibalismo, o desconhecimento de Deus os

integravam a uma natureza selvagem típica das feras animálias. Em outros momentos, a

solidariedade, o cuidado com as crianças, a ingenuidade e a inocência aproximavam-nos

do reino da concórdia e do equilíbrio, conforme ressalta Ronald Raminelli

(RAMINELLI, 1996: 41).

Para completar, os índios rapidamente foram considerados homens, veri

homines, pela Santa Sé. Se a escravidão era compatível com a sociedade pecadora,

como se poderiam escravizar legitimamente esses inocentes homens como defendiam

alguns? Não se pode negar que a escravização de índios aconteceu, mas diferentemente

do que ocorreu com os negros, muitos tentaram protegê-los das forças exploradoras da

colonização. Um amplo corpo de legislação foi criado para isolar e proteger os nativos

americanos.

No entanto, a redução gradual da escravidão dos índios contribuiu para aumentar

a demanda de nativos africanos, que não eram protegidos por uma grande rede de

sanções imperiais. Alguns dos principais advogados dos índios, como o bispo Luanda,

eram os maiores defensores da escravidão negra (DAVIS, 2001: 199). De acordo com

Brion Davis, essa discriminação levou quase naturalmente a uma visão de que os negros

africanos tinham nascido para serem escravos e eram inferiores aos índios tanto quanto

aos brancos. Esboça-se, assim, um contraste entre índios “brancos” e etíopes “negros”,

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sublinhada, como sugere Poliakov, já no primeiro livro que trata do “Novo Mundo” (De

Orbe Novo, de Pedro d’Anghera,1516) (POLIAKOV, 1974: 110).

Brion Davis justifica a diferença pelo fato de as sociedades africanas serem,

segundo ele, muito mais populosas e organizadas do que as indígenas, havendo, assim,

pouca razão para associar o africano a uma natureza primitiva e não corrompida. Além

disso, o negro já havia sofrido, em algumas regiões, influência da cultura muçulmana.

Dessa forma, “[...] ele [o negro africano] estava muito adiantado em matéria de cultura

para ser considerado um inocente selvagem sem terra e liberdade [...]” (DAVIS, 2001:

209). Se os africanos foram considerados, de certa forma, mais organizados socialmente

e isso levou a sua escravização não saberíamos dizer. Afinal, eram julgados, muitas

vezes, como gentios e bestas.

A escravidão do negro africano parecia assim justificada, pois se afirmava que

ele nascera para o trabalho. Além disso, considerava-se que cometiam crimes enormes e

detestáveis e que eram bárbaros; assim, a escravidão era simplesmente a sua salvação.

Parece ser com esse sentimento que Zurara razoa sobre a piedade que há daquelas

gentes:

Eu te rogo que minhas lagrimas nem sejam dano da minha consciencia, que nem por sua

lei daquestes, mas sua humanidade constrange a minha que chore piedosamente o seu

padecimento. E se as brutas animálias, com seu bestial sentir, por um natural instinto

conhecem os danos de suas semelhantes, que queres que faça esta minha humanal

natureza, vendo assim antes meus olhos aquesta miseravel companha, lembrando-me de

que são da geração dos filhos de Adão! (ZURARA, 1937: 121-122)

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Esse interesse por escravos africanos ficou ressaltado, inclusive na cartografia. O

planisfério de Cantino,12

que data do ano de 1502, já ressalta, como se fosse esse seu

interesse principal a respeito da África, os lugares donde se obtêm escravos e outras

iguarias (Fig. 4). Na legenda referente a “Serra Leoa”, inscreve-se que é um lugar de

muito ouro e o “Castello da mina”, rodeado por nativos africanos e casas nativas, é

acompanhado de uma legenda que ressalta a existência de ouro, escravos e muitas

outras coisas de muito proveito. A respeito do “rei de Meni” (Benim), uma legenda diz

que é mouro e que sua gente trata com os navios portugueses que tiram dali escravos,

ouro, papagaios e pimenta. Mais para o interior, há referências às terras do Rei de

Organa e do Rei da Núbia, que, como já ressaltamos, são figuras típicas dos mapas tipo

portulanos. O interior do continente, entretanto, continua desconhecido e apenas

nomeado como “Terra do Preste Juam”.

O mapa de Cantino também apresenta a existência de um novo reino, o reino do

Congo (localizado a sudoeste da África) cujo representante era o Manicongo,13

registrado pela legenda: “Aquj eh o Rey de magnicongo [...]”. Cantino, além de já

delimitar melhor as fronteiras africanas até o Cabo da Boa Esperança devido à

circunavegação de Bartolomeu Dias, também já inscreve as novidades advindas com as

expedições de Pedro Álvares Cabral. Nas “terras novas” está desenhada uma paisagem

composta por papagaios, símbolo de ouro, árvores e rios.

12

O planisfério de Cantino foi feito no início do ano de 1502 por um cartógrafo português a mando de

Alberto Cantino (séc. XV-séc. XVI) como encomenda para o duque de Lisboa. A encomenda fora

realizada com a exigência de que se desse conta das novidades, como ressalta A. Teixeira Mota, das

“novas terras” a Ocidente (MOTA, 1977: 2). 13

De acordo com Alberto da Costa e Silva, por volta do século XIV, o chefe de um reino local, Antino-

Uene, decidiu se atribuir o título de manicongo para expressar-se como senhor de todo o Congo. Pelo

título, ele será senhor, por direitos de linhagem, de vários outros chefes, ainda que seu reino fosse bem

pequeno, restringindo a uma aldeia (cf. SILVA, 1996: 496-498).

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A Terra Brasilis ganha maior ornamentação em mapas posteriores, como o

mapa-múndi do cartógrafo da escola francesa de Dieppe, Pierre Desceliers (1500?-

1558?),14

elaborado em 1550, onde o autor representa os hábitos e costumes dos

indígenas (Fig. 5). Podem-se vislumbrar, também, cenas de combates entre índios e

europeus, de pesca e caça. A fauna sobressai-se com cobras, lagartos ou jacarés e

animais aquáticos. A América já está avançadamente inventada. A África, por sua vez,

apresenta-se com suas fronteiras corretamente delimitadas. Mas quem vive nessa África

já inventada geograficamente? Os mesmos habitantes que outrora se encontravam nas

regiões desconhecidas ou os contatos contribuíram para o avanço da percepção do

outro?

Para começar, há dois textos no continente com os seguintes títulos: Affrique e

Ethiopie. No que se refere a Affrique, Desceliers escreve que a região mais próxima da

Europa é relativamente fértil e próspera; no entanto, a maior parte do continente é

deserta por causa do clima e dos animais perigosos. O autor ainda destaca os diferentes

animais, como leões, elefantes, camelos, leopardos, linces, dromedários e diversos

outros. A Ethiopie, por sua vez, é dividida em duas partes. Segundo o texto, a maior

parte dos habitantes dessa região possui faces de monstros. Os que vivem ao leste são

cristãos e a oeste são chamados de mouros. Em Meroe (antiga cidade às margens do rio

Nilo, na Núbia) se acham canela, pedras preciosas e minas de ouro. Verifica-se,

portanto, uma distinção entre África e Etiópia.

Outra diferenciação se faz através da inversão das imagens. A região norte, com

os reis da Mauritânia e da Núbia, se encontra invertida em relação aos demais desenhos

14

A vida de Pierre Desceliers é, em grande parte, desconhecida. Sabe-se apenas que foi ordenado padre e

examinou pilotos marítimos, tendo sido autorizado a outorgar licenças em nome do rei da França.

Existem, além disso, três mapas cuja autoria é atribuída a Desceliers: um de 1546, que se encontra na

Biblioteca John Rylands, em Manchester; o de 1550, que está em Londres, na British Library, e que é

objeto de nossa análise; e o de 1553, que foi destruído no incêndio de Dresden, Alemanha, em 1915.

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ao sul do Saara. Provavelmente, essa era uma tentativa de diferenciá-los das terras dos

negros. O imperador cristão Preste João e seus súditos, embora se localizem na região

etíope, também aparecem invertidos.

Na “terra dos negros”, por sua vez, estão representados os reis de Organa, do

Congo e um outro sem legenda. Acima do Manicongo, o artista desenhou dois negros

sentados, um dos quais está segurando um machado e uma pepita de ouro. Ambos

possuem os lábios inferiores alargados, detalhe contado ao comerciante veneziano Luís

de Cadamosto15

em conversa com negros a respeito dos povos com quem faziam a troca

muda, espécie de comércio de sal onde não se falava:

[...] eram homens muito pretos e bem formados de corpo, e maiores um palmo do que

eles; e têm o lábio inferior com mais de um “somesso” de largo, o qual cai até o peito,

grosso e vermelho, mostrando pela parte de dentro deitar como que sangue; e o lábio de

cima tinham-no como pequeno [...] (CADAMOSTO, 1938: 111).

Próximo a uma das margens do rio Nilo há dois monstros, dentre eles um

Blêmio. Ao sul do continente, se verificam ainda mais exemplares de monstros; nesse

caso são animais alados, com cabeça de uma espécie e corpo de outra. Se, conforme

analisei anteriormente, muitos desses monstros e/ou seres fabulosos serviam para

habitar, no imaginário medieval, lugares desconhecidos, sobressai-se disso que, apesar

de o continente estar delimitado geograficamente e dos avanços dos contatos, ainda

persistiam lugares-comuns a respeito da África e de seus habitantes e desconhecimentos

com relação ao sul e ao interior africano.

15

O manuscrito é referente a duas viagens feitas à costa ocidental da África nos anos de 1455 e 1456.

Logo no início do ano de 1507, encontra-se o relato de Cadamosto incluído na coletânea Paesi

nuovamente ritrovati et Novo Mondo da Alberico Vesputio florentino intitulato, que em 1550 é inserida

no Delle navigazioni et viaggie de Ramusio.

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4. Considerações finais

No presente artigo busquei apresentar algumas considerações sobre o processo

referente à invenção, enquanto um conceito, da África e dos africanos a partir do estudo

da literatura de viagem e da cartografia inseridos em uma visão cristã do mundo. Quais

foram as formas e as características que viriam a constitui tal invenção, bem como os

caminhos e desvios que a trariam para a esfera do ser e pensar ocidental, foram algumas

questões que procurei desbravar.

Assim sendo, concepções acerca da África surgem nos textos e mapas desde a

Antiguidade Clássica. As regiões da Líbia, Etiópia, e do Egito eram os clássicos

representantes da África e continuaram a sê-lo por muitos séculos. Mas mesmo na

divisão de mundo antigo, havia uma hierarquia na qual a Europa ocupava o mais alto

patamar.

Com a disseminação do Cristianismo, as explicações sobre universo, o mundo e

o globo terrestre ganharam novos contornos. Antigas teorias delinearam novos

paradoxos. As terras alterius agora substancializam um problema para a cosmologia

cristã pautada na Sagrada Escritura. Existiriam terras para além daquelas anunciadas

pela Bíblia? E pior, seriam habitadas? Nesse contexto, a África seria palco de

representações fantásticas. Muitos acreditavam que ela abrigaria outras espécies, como

monstros, e também terras antípodas ao sul; embora tal imagem contradissesse o

principal preceito católico da unidade fundamental do gênero humano.

Na divisão do mundo cristã pautada pelo Livro Sagrado e pela clássica passagem

do Antigo Testamento na qual a distribuição das partes do mundo se faz por Noé entre

seus filhos, a África e seus habitantes receberam a maldição rogada pelo pai a Cam e

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ocupou, dessa forma, o mais baixo posto na hierarquia das partes do mundo. Seus

habitantes estariam, assim, condenados eternamente a servir os demais herdeiros: os de

Sem e Jafet.

No entanto, como demonstrei, as grandes navegações, por sua vez, se

incumbiram de desordenar esse mundo traçado pela Igreja Católica. O contato com

povos de maneiras e costumes tão distintos acirraram ainda mais os debates a respeito

da teoria adamita: aquela gente de costumes tão selvagens e bestiais seria também

descendente de Adão?

Nessa conjuntura, o norte africano era o eixo comercial nas trocas mediterrâneas,

mas as novas extensões ao sul – principalmente a partir da linha equatorial – guardavam

os antigos estereótipos. Os reis nativos, os monstros de terras ignotas, o lendário

imperador cristão Preste João, os negros pagãos passíveis de conversão e a natureza

exuberante e exótica confrontavam-se com os mouros brancos da região árida e seca do

Norte, infindáveis inimigos dos cristãos. Diversas foram as imagens que permearam a

África.

Mais tarde, outra realidade surge, um Novo Mundo se afigura no horizonte do

Oceano Atlântico e com ela se multiplicam problemas insolúveis, que nos tempos

modernos acarretaram o descrédito das genealogias da Bíblia. A existência dos índios

precisava também ser justificada, além de suas terras, às quais a explicação cristã nem

ao menos fez menção. Contraditoriamente, os nativos americanos, para muitos

defensores, pareciam muitas vezes desfrutar da inocência e felicidade de uma era

anterior à queda do homem. Dessa forma, sua escravização foi calorosamente

condenada por muitos: como legitimar a escravidão desses possíveis filhos do paraíso?

E, assim, os nativos africanos permaneciam no limiar da hierarquia. O paradoxo central

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dessa situação, no entanto, parece óbvio. Como justificar a escravidão dos africanos

subsaarianos sem também ferir a unidade fundamental do gênero humano? Tal

ambiguidade, contudo, não foi suficiente para coibir o tráfico de escravos.

As realidades não europeias foram, dessa forma, o espelho dos europeus.

Revelando-se nos retratos dos Outros, os povos da Europa reafirmaram a sua

experiência histórica e mantiveram a sua suposta proeminência. Os africanos, por sua

vez, carregaram os estereótipos que a sua invenção lhes concedeu. Estereótipos esses

que permearam as imagens da(s) África(s) por longos anos.

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ANEXOS

Figura 1: Mapa de Hereford, 1290. Cópia facsímile, Wychwood Editions.

Fonte: http://www.henry-davis.com/MAPS/

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Figura 2 - Atlas Catalão, 1375

Fonte: http://gallica.bnf.fr

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Figura 3: Universalis cosmographia... de Martin Waldseemüller,1507

Fonte: http://www.loc.gov

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Figura 4 – Planisférios de Cantino, 1502.

Fonte: http://www.cedoc.mo.it/

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Figura 5 – Pierre Desceliers, 1550.

Fonte: http://www.bbc.co.uk/bbcfour/beautyofmaps/historical_maps.shtml#/desceliers/intro/

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Resumo

Este trabalho tem por objetivo analisar a invenção, enquanto conceito, da África

subsaariana a partir das representações mediadas pela cartografia e literatura de viagem

cristãs dos séculos XV e XVI. As características que viriam a dar forma ao que se

convencionou a chamar de África subsaariana ou Negra, e em última instância à própria

noção de negro, bem como os caminhos e desvios que os trouxeram para a esfera do

pensar ibérico cristão e, portanto, europeu, serão algumas questões que buscaremos

tratar.

Palavras-chave: História da África, representação, cartografia e literatura de viagem

Abstract

This work aims to analyse the invention, as a concept, of sub-Saharan Africa on the

basis of the representations mediated by Christian cartography and travel literature from

the XV and XVI centuries. The characteristics that would eventually shape what today

is conventionally called sub-Saharan or Black Africa, and in a last instance the notion of

a black race itself, as well as the paths and detours that have brought these elements to

the sphere of Iberian Christian, and thus European, thinking are some of the matters we

propose to approach in this paper.

Keywords: History of Africa, representation, cartography and travel literature