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SIMPÓSIO 1 - A oralidade em diferentes perspectivas Estímulos para produção oral - Ana Carla Lanzi Ciola (FATEC-Bauru) RESUMO: Este trabalho tem como objetivo traçar um paralelo entre a produção escrita e oral do aluno enquanto aprendiz de língua estrangeira. Através da revisão bibliográfica de estudiosos alemães, entre eles Blanken, Portmann, Hässermann, Piepho e Bohn partimos do princípio de que escrever é um fazer, do qual o aprendiz, ao contrário do falar, tem maior controle. Ciente dos benefícios que uma atividade escrita exerce sobre a produção oral, sugere-se aqui aplicações didáticas para sala de aula que auxiliem o professor em sua prática pedagógica. Palavras-chave: Produção oral; Produção escrita; Aprendizagem de língua estrangeira. Introdução Sabemos que as habilidades de falar e escrever numa língua estrangeira, por serem habilidades produtivas, são as que impõem maior dificuldade no processo de aprendizagem. Entretanto, ao traçar um paralelo entre a produção escrita e oral do aluno enquanto aprendiz de língua estrangeira, permite-se o desenvolvimento de um plano de estratégias que facilitem a produção oral do aluno enquanto aprendiz de língua estrangeira através da produção escrita Este estudo teve sua gênese no curso de capacitação a professores de alemão como segunda língua, “Wie bringe ich meine Lerner zum Sprechen” oferecido pelo Goethe Institut de São Paulo, em 2010. Como não há publicação desse material em português, fizemos uma “tradução nossa” nas citações seguidas da transcrição do texto original na nota de rodapé. Através da revisão bibliográfica de estudiosos alemães, entre eles Blanken, Portmann, Hässermann, Piepho e Bohn partimos do princípio de que escrever é um fazer, do qual o aprendiz, ao contrário do falar, tem maior controle. Enquanto se escreve, o escritor é seu próprio leitor. Isto, segundo Bohn, abre espaço para um controle sobre clareza textual, gramatical, além do conteúdo e a possiblidade de expressão de opinião. Sendo assim, propomos que atividades escritas, por exigirem do aluno reflexão, concentração, coerência de ideias e uso correto da estrutura da língua, auxiliam o aluno positivamente em sua produção oral. Para isso serão analisados os processos de produção cognitiva da linguagem escrita e oral, assim como seus produtos. Ciente dos benefícios que uma atividade escrita exerce sobre a produção oral, sugerimos aqui aplicações didáticas para sala de aula que auxiliem o professor em sua prática pedagógica. Entre elas a necessidade de avaliar distintamente cada habilidade. Dar ênfase para a espontaneidade e fluência da produção oral e assertividade na escrita. Propomos que ambas as habilidades devem ser direcionadas, enquanto a fala deve soar espontânea e natural, textos escritos devem ser melhor planejados e preparados.

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SIMPÓSIO 1 - A oralidade em diferentes perspectivas

Estímulos para produção oral - Ana Carla Lanzi Ciola (FATEC-Bauru)

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo traçar um paralelo entre a produção escrita e oral do aluno enquanto aprendiz de língua estrangeira. Através da revisão bibliográfica de estudiosos alemães, entre eles Blanken, Portmann, Hässermann, Piepho e Bohn partimos do princípio de que escrever é um fazer, do qual o aprendiz, ao contrário do falar, tem maior controle. Ciente dos benefícios que uma atividade escrita exerce sobre a produção oral, sugere-se aqui aplicações didáticas para sala de aula que auxiliem o professor em sua prática pedagógica. Palavras-chave: Produção oral; Produção escrita; Aprendizagem de língua estrangeira. Introdução

Sabemos que as habilidades de falar e escrever numa língua estrangeira, por serem habilidades produtivas, são as que impõem maior dificuldade no processo de aprendizagem. Entretanto, ao traçar um paralelo entre a produção escrita e oral do aluno enquanto aprendiz de língua estrangeira, permite-se o desenvolvimento de um plano de estratégias que facilitem a produção oral do aluno enquanto aprendiz de língua estrangeira através da produção escrita

Este estudo teve sua gênese no curso de capacitação a professores de alemão como segunda língua, “Wie bringe ich meine Lerner zum Sprechen” oferecido pelo Goethe Institut de São Paulo, em 2010. Como não há publicação desse material em português, fizemos uma “tradução nossa” nas citações seguidas da transcrição do texto original na nota de rodapé. Através da revisão bibliográfica de estudiosos alemães, entre eles Blanken, Portmann, Hässermann, Piepho e Bohn partimos do princípio de que escrever é um fazer, do qual o aprendiz, ao contrário do falar, tem maior controle. Enquanto se escreve, o escritor é seu próprio leitor. Isto, segundo Bohn, abre espaço para um controle sobre clareza textual, gramatical, além do conteúdo e a possiblidade de expressão de opinião.

Sendo assim, propomos que atividades escritas, por exigirem do aluno reflexão, concentração, coerência de ideias e uso correto da estrutura da língua, auxiliam o aluno positivamente em sua produção oral. Para isso serão analisados os processos de produção cognitiva da linguagem escrita e oral, assim como seus produtos.

Ciente dos benefícios que uma atividade escrita exerce sobre a produção oral, sugerimos aqui aplicações didáticas para sala de aula que auxiliem o professor em sua prática pedagógica. Entre elas a necessidade de avaliar distintamente cada habilidade. Dar ênfase para a espontaneidade e fluência da produção oral e assertividade na escrita. Propomos que ambas as habilidades devem ser direcionadas, enquanto a fala deve soar espontânea e natural, textos escritos devem ser melhor planejados e preparados.

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Finalmente, concluímos que a produção oral deve ser trabalhada em partes, onde o aluno possa planejá-las e prepará-las separadamente. O resultado do processo é o produto, o texto pronto. Seguindo a teoria dos pesquisadores estudados, apresentamos uma produção textual orientada, que se realiza em três etapas distintas: inicia-se com o planejamento do conteúdo, seguido do planejamento da fala e finalizado com a realização da fala propriamente dita. Assim a complexidade da ação comunicativa é reduzida, uma vez que o aprendiz tem sua atenção focada em uma etapa do processo de cada vez. A promoção das competências produtivas: aspectos da produção oral

As habilidades produtivas, ou seja, as habilidades de falar e escrever são as

que apresentam maior dificuldade para os alunos de línguas estrangeiras. Ao falar e escrever todos os níveis de linguagem, a partir do nível pragmático-situacional (destinatário, tipo de texto, o objetivo comunicativo, declarações anteriores, entre outros) até o volume da fala, grafia, escolha de vocabulário, são detalhadamente planejados até a sua realização em forma de fala ou escrita. O processo de compreensão, por outro lado, ocorre diante de uma atribuição significativa. Isto é o que geralmente acontece, antes que cada palavra e cada construção sejam decodificadas. Blanken (1988) descreve o processo de produção da fala a partir de modelos psíquicos ou neurolinguísticos, nos quais os subprocessos do complexo comportamento comunicativo são isolados e as diversas etapas do processo reproduzidas. Nesses modelos, o processo de produção de fala é dividido em três níveis: um nível de planejamento que antecede a fala, um nível do planejamento da fala e um nível de execução. Além de incluir um órgão de fiscalização (Monitor), que monitora tanto o planejamento quanto a execução do processo podendo realizar eventuais correções.

Conhecendo brevemente cada nível: 1. Nível de planejamento que antecede a fala (nível pragmático

semântico) Consiste no planejamento da estrutura “conteúdo-pragmática” do ato de fala -

considera fatores tais como a intenção do falante, tipo de texto, informações de contexto, conhecimento de mundo, conhecimento situacional, informação anterior...

2. Nível do planejamento da fala. Consiste no planejamento do ato da fala e sua formulação levando em conta o

nível de som, palavra, frase e texto, e é determinada pelo planejamento que antecede a fala. As partes desse processo envolvem:

• ativação de significados das palavras, • ativação de formas fonêmica ou grafêmica de palavras, • linearização do nível da frase ou palavra, • ativação de elementos supra-segmentais, • processos morfológicos e morfofonológicos. 3. Nível de execução. Planejamento e execução motora da fala ou movimentos grafomotores. 4. Monitor do planejamento e execução. Mesmo estas informações gerais e pouco pormenorizadas permitem

reconhecer a complexidade dos processos de produção da fala. Aprendizes de línguas estrangeiras não têm apenas o problema dos limitados conhecimentos de línguas

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estrangeiras e habilidades elencadas nos níveis 2 e 3. Devido às dificuldades com a língua o aprendiz de uma língua estrangeira focaliza sua atenção principalmente no nível de planejamento de fala, ou seja, os mesmos níveis 2 e 3; assim, o ato da fala pode tornar-se muitas vezes exaustivo, deixando pouco espaço para o planejamento da capacidade de processamento pragmático e conceitual. Com os falantes nativos é exatamente o oposto: sua atenção esta voltada principalmente para os aspectos pragmáticos e contextuais do ato de comunicação, enquanto o planejamento da fala se dá automaticamente durante a fala em si.

Entre língua falada e escrita e as condições de sua produção, há diferenças significativas. Ignorando as numerosas formas intermediárias e as transições entre as duas habilidades, elencam-se pelo menos as seguintes diferenças: produção, produto e efeito de retenção.

Produção: A linguagem falada é espontânea e produzida com menos variedade de formas linguísticas do que a linguagem escrita. Enquanto se fala a atenção está voltada para a comunicação, o conteúdo e a adequação do enunciado, as formas lingüísticas, por outro lado, em grande parte são produzidas inconsciente e automaticamente. A fluência tem um papel importante tanto no planejamento mental como na realização motora da fala. A escrita, no entanto, é mais lenta e reflexiva, e é conectada a um planejamento mais profundo e detalhado. A atenção direcionada para a forma linguística é relativamente forte (correção, estilo / formulação tipo de texto), e os meios linguísticos são utilizados conscientemente. A escrita é o meio cognitivo-consciente. “Escrever é um ato do qual eu (em oposição ao momento do discurso) tenho completo controle. Ao escrever, também sou sempre meu próprio leitor. Há também um espaço de máxima clarificação não só da exatidão (gramatical, em relação ao texto, etc.), mas também do conteúdo, tais como expressão pensamentos.” (HÄUSSERMAN; PIEPHO, 1996, p. 321)1

Enquanto se fala, os parceiros compartilham uma estrutura comum de comunicação (a situação, conhecimentos anteriores,...). A linguagem falada se estabelece neste contexto comunicativo e, além disso, é acompanhada por elementos não verbais. Os enunciados da fala muitas vezes não são muito explícitos, pois são aliviados com o conhecimento comum dos parceiros de comunicação. Através da relação direta entre os parceiros há um feedback constante de modo que os problemas de comunicação podem ser resolvidos imediatamente. A linguagem escrita, no entanto, é independente da situação, os parceiros de comunicação não têm um conhecimento comum da situação, é “a comunicação em tempo deslocado” (PORTMANN, 1991, p. 238)2. Enquanto a língua falada se relaciona fortemente com o contexto extralinguístico, a linguagem escrita refere-se a diretamente a um contexto verbal. Portanto, o texto escrito deve ser muito mais explícito.

Portmann (1991) afirma que a palavra falada é irreversível, uma vez expressa, ela só pode ser corrigida abertamente. A palavra escrita, no entanto, pode ser corrigida em retrospecto. O controle do enunciado ocorre em paralelo com o diálogo, escrevendo, é possível em retrospecto. Assim, existem diferentes requisitos em matéria de planejamento linguístico e de conteúdo.                                                                                                                          1 "Schreiben ist ein Tun, das ich (im Gegensatz zum Sprechen) selbst vollständig kontrollieren kann. Während des Schreibens bin ich ja stets auch mein eigener Leser. Das schafft Raum zur größtmöglichen Klärung nicht nur der (grammatischen, textbezogenen usw.) Richtigkeit, sondern auch der inhaltlichen, z.B. gedanklichen Aussage."

2 "zeitverschobene Kommunikation"

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Produto: Como mencionado acima, o texto escrito é muito mais explícito do que o expresso verbalmente, pois não existe uma situação de referência comum, e não é possível um retorno imediato (por exemplo, uma pergunta). Para Portmann (1991) os termos utilizados devem ser claros e organizados. Além disso, as expectativas quanto à forma linguística são muito mais elevadas: o produto da escrita deve ser um texto coerente, isto é uma série de frases relacionadas, a forma linguística correta desempenha um papel importante, e existem normas relativamente elevadas dependendo do tipo de texto, formato de exibição, uso de meios linguísticos, etc. Por esta razão, Rath (1975) conclui que o texto escrito é geralmente mais complexo do que o falado, isto envolve a forma de construções sintáticas, o comprimento da frase, a variação lexical e sintática, entre outros. No entanto, o texto falado é caracterizado por rupturas, novas abordagens, mudanças de plano, correções abertas, pausas,..., portanto, alcançar o objetivo da comunicação é mais importante do que a precisão e a correção.

Efeito de retenção: a escrita é decisivamente o meio de aprendizado mais intenso, o efeito de retenção é maior do que o da fala devido ao seu intenso planejamento e processamento de multicanais (visual / gráfico, grafomotor, o discurso interior) em contraste com a fala fugaz e espontânea. Bohn (1989, p. 57) enfatiza que “o efeito das impressões visual e motora da escrita se sustentam mais rapidamente no aprendizado do que outras”3, e ele se refere, neste contexto, da “função de formação do pensamento” da escrita. De acordo com Bohn, o mesmo vale para o apoio mútuo de habilidades: “A escrita influencia positivamente o desenvolvimento da fala... A influência da escrita sobre eventos de fala é geralmente maior do que o contrário”4 (BOHN, 1996, citado por STORCH, 2009).

A partir desta breve comparação é possível extrair algumas implicações gerais para o ensino em sala de aula:

• Entre as habilidades orais, fluência e espontaneidade desempenham um papel muito importante. “Muitas vezes um discurso fluente, mas com incorreções, é mais bem aceito do que um que é constantemente interrompido por conta de reflexão sobre as regras gramaticais” 5 (NEUF-MÜNKEL; ROLAND, 1991, p. 109). Ao escrever, no entanto, a adequação da forma lingüística e precisão desempenham um papel maior. • Consequentemente, a linguagem oral e escrita devem ser avaliadas e corrigidas diferentemente. Na fala, a ênfase está em fatores como adequação, clareza, fluência, alcance de objetivos da comunicação, no entanto a linguagem correta faz parte da correção e avaliação do texto escrito. • Devido ao efeito de retenção elevado da escrita, deve-se utilizar menos repetição nos exercícios escritos do que nos orais. As atividades de aprendizagem, especialmente a aquisição de conhecimentos de linguagem (vocabulário, exercícios de gramática, etc.) deve ser fortemente sobre a linguagem escrita. • A promoção de competências produtivas é feita em grande parte por meio da habilidade alvo em si. Uma vez que as habilidades se apóiam

                                                                                                                         3  "dass visuelle und schreibmotorische Eindrücke beim Lernen schneller und nachhaltiger wirken als andere"  4  "Das Schreiben beeinflusst die Entwicklung des Sprechens positiv ... Der Einfluss des Schreibens auf Sprechvorgänge ist im Allgemeinen größer als umgekehrt"  5  (...)  "indem man mehr das flüssige, vielleicht fehlerhafte Sprechen fördert als ein stockendes Sprechen, das durch ein ständiges Nachdenken über grammatische Regeln verursacht wird."

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mutuamente uma à outra, é vantajoso falar para escrever, e especialmente positivo escrever para falar. • Ambas as habilidades devem ser desenvolvidas com alvos, a promoção inclui a fluência espontânea e descontraída da fala; no entanto, textos escritos devem ser produzidos com mais planejamento e preparação.

Propostas de atividades para a sala de aula: processo de promoção da habilidade oral. O professor que deseja melhorar a proficiência linguística de seus alunos de

forma contínua, deve se perguntar frequentemente ao planejar: quando, o que e por que o faz. A seguinte estrutura pode servir como uma ferramenta para definir o tom e, assim, orientar nas etapas de ensino previstas ou fases específicas. Podem-se distinguir três fases ou etapas do desenvolvimento da habilidade complexa de falar nas aulas para iniciantes:

Fase A - atividades para o desenvolvimento, verificação e garantia de habilidades de compreensão.

Fase B - atividades e exercícios que preparam a comunicação. Fase C - atividades e exercícios que desenvolvem e estruturam da

comunicação. Fase A - atividades para o desenvolvimento, verificação e garantia de habilidades de compreensão.

No primeiro contato com um texto de língua estrangeira ou com uma situação

em sala de aula, o aprendiz de língua deve saber primeiramente do que se trata. Sendo assim, aconselha-se que o professor apresente a situação, assegure a compreensão do contexto ou esclareça o seu contexto de aplicação.

Além disso, o aluno pode também precisar de ajuda para compreender a informação contida no texto. Para isso, o professor pode verificar se o aluno compreendeu a informação mais importante corretamente. O ouvinte / leitor não precisa compreender a totalidade da informação em todos os detalhes. Objetivo do autocontrole ou revisão feita pelo professor não é simplesmente perguntar informações individuais, mas assegurar a compreensão do tema, do conteúdo. Importante ressaltar que a situação apresentada, ou o diálogo, que será aprendido como um modelo faça sentido. Sugere-se ainda a necessidade de combinar a apresentação com várias tarefas, por exemplo exercícios de audição global ou seletiva ou exercícios de leitura.

Segundo Neuner, (1981) as atividades para verificar a compreensão nas aulas para iniciantes devem ser basicamente mecânico-reprodutivas. Para isso sugere exercícios como falso-verdadeiro, conectar alternativas, exercícios de múltipla escolha, entre outros. Alerta que exercícios de tradução, especialmente literal, devem ser evitados nesta fase, mas o aluno deve ser gradualmente trazido para instrução do professor, para a autodetecção de texto desconhecido ou partes do diálogo. E, claro, deve-se trabalhar com a apresentação de diálogos com a justaposição de som e a palavra escrita. Normalmente subestima-se a dificuldade dos alunos em relacionar o

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que é ouvido com a palavra escrita. Se a escrita é para ser usada como um auxiliar de memória, a fonética deve ser muito bem praticada anteriormente. E não se deve esquecer que é muito difícil para iniciantes identificar partes do texto que ouviram.

Proposta de exercícios para o desenvolvimento, verificação e garantia de habilidades de compreensão.

Trata-se de contextualização dos textos, e depois da apresentação para o

reconhecimento das palavras-chave ou mensagens-chave. É o momento de incorporação contextual do texto / diálogo. Para garantir a contextualização, a interpretação semântica, à ativação do pré-conhecimento na apresentação de um texto / diálogo, propõe-se perguntas como: quem, com quem, onde, como, por quê?

Atividades e exercícios adequados: • descrição e contextualização da ilustração: Quem, com quem, onde, quando,

por que, como? • formar hipóteses sobre as situações, textos, títulos, temas apresentados. • associograma sobre questões ou situações • representação de uma situação - nas discussões em classe, como role-play,

ou uma oportunidade real na sala de aula - incluindo entrevistas com os aluno e orientada pelo professor.

Atividades e exercícios adequados para reconhecer as palavras-chave da afirmação central

• uma fase de garantia da compreensão e de controle, mas também • de entrada através da maximização de uma variedade de audição ou leitura

atividades • reconhecer e destacar partes especifícas; • marcar as diferenças / anormalidades entre a pronúncia e escrita; • reconhecer em diálogos escritos as variantes que foram efetivamente

ouvidas; • ordenar tiras com trechos do texto; • marcar passagens que apresentam dificuldade fonética; • exercícios de preenchimento de lacuna para controle de leitura ou audição; • atividades de múltipla escolha para controle de leitura ou audição; • perguntas Wh (com pronomes interrogativos) para controle de leitura ou

audição; • reprodução do conteúdo ou a situação na língua materna.

Fase B - Tarefas e exercícios para preparar a comunicação Nessa etapa é importante que os alunos dominem as manifestações fonéticas e

articulatórias e que possam memorizar partes delas, a fim de usá-las mais tarde sem pensar muito. Automatismo é uma das palavras-chave para esta fase.

Portanto, os exercícios nesta etapa são prioritariamente reprodutivos, isto é eles têm um forte caráter imitativo. São fortemente orientados, ou seja, os alunos não têm muitas oportunidades para dizer algo diferente do que o especificado: ele deve

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seguir as exigências da atividade. Mas como as atividades são essenciais para preparar o livre uso da linguagem, elas não devem ser realizadas mecanica e repetitivamente.

A repetitição de frases modelo tem como objetivo principal o desenvolvimento da fluência da oralidade em sua articulação e comunicação. Para que isso seja alcançado, as atividades devem ter significado para o aluno. Os alunos encontram-se em uma fase na qual precisam de ajuda e de muitos modelos, a fim de poder dizer o que querem. Lembrando sempre que o conteúdo e as situações devem ser importantes aos aulunos e os mesmos devem se identificar com elas.

As tarefas ou exercícios, deste nível podem ser mais ou menos reprodutivas ou dirigidas, dependendo de quão longe ou quão perto o aluno esteja do objetivo da aprendizagem. Se o objetivo do aprendizado for novo, então as atividades deverão ser mais reprodutivas e, possivelmente, orientadas. Quanto mais próximo o aluno estiver da meta de aprendizagem, mais produtivas deverão ser as atividades, ou seja, quanto mais o aluno se desprender dos modelos mais eles podem contribuir consigo próprio.

Para esta fase, Schatz (2006) sugere que as atividades e exercícios devem focar os seguintes aspectos (parcialmente isolado e parcialmente integrado):

• Exercícios de fonética: Exercícios para sons individuais, combinações de som, sílaba tônica, entonação da palavra e da frase.

• Exercícios para a fluência oral: Para aumentar a fluência - articulatória e comunicativa - propõem-se exercícios repetitivos, tais como falar em coral e exercícios de eco, mas também aqueles que permitem pequenas variações de um modelo, mas para as quais a automação é importante, como exercícios em correntes e em pares.

• Exercícios que se relacionam com a construção e consolidação do vocabulário que parecerão espontâneos ao falar. Tarefas e exercícios que preparam a comunicação.

Nesta fase a fonética e a produção textual (exercícios de repetição,

preenchimento de lacunas, exercícios em corrente ou em dupla, etc.) ocupam papel central. Pois o objetivo principal desta etapa é desenvolver a articulação e processamento fonológico, bem como promover a fluência e a automação da fala.

Para o desenvolvimento de articulação e aprimoramento do processamento fonológico

1 – Repetição oral (sequência: em coro ou individual). • todos repetem em uníssono; • grupos falam em uníssono (por exemplo, um diálogo); • repetição individual; • variação de entonação / emoções / volume (por exemplo, feliz, com

raiva, triste, estressado, sussurrando, gritando, etc.); • repetição de frases isoladas ou grupos de palavras; • articulação dos sons individuais; • aumento da repetição de declarações longas - do início ao fim; • repetição de murmúrio; • repetição apenas das últimas duas ou três palavras. 2 – Leitura em voz alta.

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• ler determinadas passagens, ouvir e repetir; • karaokê textual; • o professor lê o diálogo em voz alta, alunos ouvem e articulam as

palavras sem som; • ler, ouvir e repetir (individualmente ou em coro). 3 – Desenvolvimento da fluência oral – memorização e automação • exercícios com lacunas para fixação – lacunas de palavras inteiras ou

partes da palavra; • ler, cobrir o texto, falar (individualmente ou em pares) – trocar papéis; • professor modifica parte do texto/frase e alunos identificam as

mudanças, fazendo as devidas correções; • professor menciona uma palavra e alunos completam a frase.; • professor traduz a frase para o português e os alunos falam na língua

que estão aprendendo; • jogos de memorização: memória, dominó, dado; • diálogo com lacunas que deverão ser completadas com informações

pessoais; • Kugellager- alunos se posicionam em duas rodas, uma externa e outra

interna, apenas uma das rodas gira e alunos se entrevistam.

Fase C - atividades e exercícios que desenvolvem e estruturam a comunicação. A passagem do fase B para a C deve ser fluente e com pouco direcionamento.

As atividades são, portanto menos reprodutivas e mais abertas. O aluno recebe apenas partes das falas e completa a outra metade do diálogo com as estruturas aprendidas.

Os exercícios com os quais ele trabalha são agora menos direcionados, podendo ser abertos ou oferecer certa liberdade de escolha (NEUNER, 1981), em outras palavras, o aluno tem liberdade de determinar o conteúdo da declaração em si - de acordo com sua competência.

Estes exercícios promovem a liberdade de expressão, baseando-se no que foi aprendido - com o objetivo de integrá-los na língua que está sendo aprendida. Existe, neste nível, uma continuidade dos exercícios mais controlados e estruturados até que se tornem mais livres ou completamente abertos. Isto depende do nível de dificuldade ou complexidade da atividade.

O objetivo básico é preparar o aluno para um uso livre e espontâneo da linguagem em uma situação real a partir do uso menos controlado de recursos linguísticos. As tarefas típicas deste nível são: variações do diálogo com pouca assistência, entrevistas ou role-plays, histórias ilustradas, etc.

As situações, papéis e eventos de comunicação são ainda definidos neste nível, mas devem, se possível, ser cada vez mais projetados a partir dos próprios alunos. Por esta razão, as atividades e exercícios devem ser mais produtivos do que repetitivos.

Os alunos se expressam parcialmente direcionados, no entanto, eles têm a oportunidade de variar suas respostas e têm liberdade para dizer o que querem.

Atividades reprodutivas/produtivas

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• diálogos com lacunas; • diálogos abertos com algumas frases dadas; • diálogos com palavras chaves; • diálogos com variações; • entrevistas; • discussões; • história em quadrinhos com falas dadas; • apresentação. O aluno aplica gradualmente os conhecimentos e competências adquiridos a

fim de poder expressar-se livremente. Para Neuner “a performance em uma língua estrangeira deve caminhar para uma situação espontânea”6 (1981, p. 23). A situação do ensino em si oferece muitas possibilidades de comunicação genuína. Portanto, expressões na língua que está sendo estudada deverão ser oferecidas aos alunos desde o início do discurso e, os alunos deverão ser motivados a aplicá-las. Pois muitas destas expressões são úteis durante a comunicação na língua estrangeira.

Conclusão Todos os alunos devem escrever muito. Isto é especialmente verdadeiro às

atividades voltadas à linguagem, que estão conectados com reflexão, pensamento e conscientização. Em geral escrever deve ter um impacto muito positivo sobre a aprendizagem de línguas.

Sendo assim estes três caminhos devem ser seguidos concomitantemente. 1. As etapas do processo e das habilidades devem ser explicadas e exercitadas

isoladamente: • em um dado nível: geralmente, cada exercício promove um recurso

linguístico (vocabulário, gramática, formação de palavras...), • em um nível de habilidade específica: estes são exercícios, a fim de criar

subcomponentes específicos da habilidade-alvo (por exemplo, ao discurso conversacional específico significa na proficiência linguística dos elementos de textualização nas habilidades de escrita).

2. O complexo processo de produção da fala pode ser controlado em vários níveis por certos procedimentos metodológicos, como a fala de um diálogo através da utilização de cartões de diálogo (fluência) ou de escrita pela orientação de um texto paralelo (escrita).

3. Finalmente, os aspectos processuais devem ser fomentados. Aqui, o complexo processo de produção da fala é dividido em subprocessos, planejado pelos alunos individualmente, preparado e processado em sucessão; o resultado do processo é o produto do texto final. Uma produção de texto processualmente orientada, que é baseada no modelo de produção de fala acima descrito é executada em três passos separados:

• Passo 1: planejamento pragmático-conceitual • Passo 2: planejamento da fala

                                                                                                                         6  Handeln in der Fremdsprache soll spontan zu einem Sachverhalt, begründend oder kommentierend erfolgen.  

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• Passo 3: realização da fala propriamente dita Sendo assim, a complexidade do ato comunicativo é reduzida pelo fato de que

o aluno pode concentrar sua atenção em cada passo em uma determinada parte do processo.

Referências

BLANKEN, Gerhard. Sprachproduktionsmodelle. Freiburg: Hochschulverlag, 1988. BOHN, O. S. In: STORCH, Günther. Deutsch als Fremdsprache. Eine Didaktik: Theoretische Grundlagen und praktische Unterrichtsgestaltung. München: Wilhelm Fink, 2009 HÄUSSERMANN, Ulrich; PIEPHO, Hans-Eberhard. Aufgaben-Handbuch Deutsch als Fremdsprache. Abriß einer Aufgaben- und Übungstypologie. München: Iudicum, 1996. NEUF-MÜNKEL, G.; ROLAND, R. Fertigkeit Sprechen. München: Langenscheidt, 1991. NEUNER, G.; KRÜGER, M.; GREWER, U. Übungstypologien zum kommunikativen Deutschunterricht. München: Langenscheidt, 1981. PORTMANN, Paul R. Schreiben und Lernen. Grundlagen der fremdsprachlichen Schreibdidaktik. Tübingen: Niemeyer, 1991. RATH, Rainer. Linguistik und Didaktik. Tübingen: Guten Narr Verlag, 1975. SCHATZ, Heide. Fertigkeit Sprechen: Fernstudienangebot Germanistik. Deutsch als Fremdsprache. München: Langenscheidt, 2006.

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(Re)categorização social e (des)legitimação: Uma análise sociocognitivista de formas pronominais referenciais nos discursos de Martin Luther King e

Malcolm X - Ana Cristina Aguiar Spengler (IFRN)

RESUMO: Este artigo situa-se no campo da Linguística Cognitiva em interface com a Análise Crítica do Discurso e diz respeito à uma análise linguístico-discursiva dos textos I have a dream de Martin Luther King e The ballot or the bullet de Malcolm X. Apresenta uma investigação do modo como os fenômenos de (re)categorização social e (des)legitimação de discursos e grupos são construídos pelos líderes por meio da referenciação pronominal. Palavras-chave: Linguística cognitiva; (Re)categorização; (Des)legitimação. Introdução

Categorizar entidades é um fenômeno que se evidencia desde cedo no cotidiano de nossas vidas. Tendemos a organizar tudo em grupos ou classes bem definidas, conforme a percepção que temos dos elementos ao redor. De acordo com Martelotta e Palomanes (2008, p. 180), essa necessidade de organização está diretamente relacionada à nossa condição humana e visa a facilitar a manipulação das entidades que integram o nosso dia a dia. A atividade de categorização tem como critério básico a percepção de semelhança de características e/ou particularidades inerentes e comuns entre os seres que nos conduz a excluí-los de uma determinada classe, grupo ou categoria e incluí-los em outra de modo relativamente eficaz. De acordo com Piedade, categorizar “é um processo mental habitual do homem, pois vivemos automaticamente classificando coisas e idéias, a fim de compreender e conhecer” (PIEDADE, 1983 apud LIMA, 2009, p. 156).

Este trabalho resulta de nossas inquietações quanto ao processo de (re)categorização social, vivenciado pela sociedade norte-americana durante o Movimento pelos Direitos Civis dos anos sessenta, do século passado em que, tanto negros quanto brancos encontravam-se divididos em relação à causa, gerando o surgimento de, pelo menos, quatro novos grupos: 1. negros integracionistas; 2. negros separatistas; 3. brancos aliados; e 4. brancos resistentes ao direito de igualdade com os afro-americanos. A nosso ver, o fenômeno da (re)categorização e o processo de (des)legitimação encontram-se interligados e relacionados entre si e se evidenciam de forma contundente em momentos de conflitos sociais, onde grupos se confrontam para se manter no poder ou desafiá-lo, logo, o nosso aporte teórico baseia-se na Linguística Cognitiva (doravante LC) em um enfoque sociocognitivista e desenvolvemos o tema (des)legitimação fundamentados na Análise Crítica do Discurso (doravante ACD), mais especificamente em pesquisas realizadas por Teun A. van Dijk. Recorremos ainda à Linguística Textual (doravante LT), por entendermos que a referenciação, objeto de estudo desta, nos fornece subsídios linguísticos concretos para a investigação dos fenômenos. Investigamos o modo como as formas pronominais de referenciação I, you, we e they usados por MKL e MX nos ajudam a compreender como ocorre a construção da (re)categorização social e são utilizados por ambos como um recurso linguístico de(des)legitimação de grupos e discursos.

1 Linguística Cognitiva: breves considerações

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De acordo com Duque (2003) a LC, que surgiu entre o final da década de 70 e início da de 80, sendo institucionalizada nos anos 90, teve seu grande impulso devido ao interesse pelo fenômeno da significação iniciado no movimento da Semântica Gerativa e pela investigação psicolinguística sobre o papel dos protótipos no processo de categorização com Eleanor Rosch. Uma vez que os processos de categorização representam uma área de investigação relevante para a LC, Miranda (2000, p. 85) destaca como discussão pertinente para as ciências cognitivas o repensar as teorias da categorização para além do mero categorizar aspectos formais da língua em fonemas, morfemas, estruturas sintáticas etc. É papel da LC, afirma, “dimensionar novos parâmetros de categorização dos fenômenos de linguagem, capazes de recobrir os processos de significação em sua densidade formal e sociocognitiva”. Ungerer e Schmid (1996, p. x), nas considerações iniciais à sua obra An introduction to cognitive linguistics (Uma introdução à linguística cognitiva), descrevem a LC como “uma abordagem à linguagem que se baseia na nossa experiência de mundo e do modo como o percebemos e o conceitualizamos” (tradução nossa). 1.2 Teorias sobre categorização 1.2.1 A teoria Semelhanças de família de Wittgenstein

A ideia Aristotélica de que as entidades têm sua essência caracterizada pela presença de propriedades necessárias e suficientes, o que justificam serem o que são, foi revista por Wittgenstein através de uma teoria a que denominou de Semelhanças de família. Partindo de uma reflexão sobre as características presentes nos jogos que os fazem serem jogos, Wittgenstein faz toda uma preparação para a sua teoria, levando-nos a pensar sobre os diversos tipos de jogos existentes em suas mais diversas modalidades – jogos de carta, de tabuleiro, olímpicos etc. Em seguida, questiona sobre o que há em comum entre eles para que sejam chamados de jogos. Deduz que as modalidades apresentam apenas aspectos de afinidades, semelhanças, alguns traços presentes em uns e ausentes em outros e, ainda assim, apesar desta instabilidade, nós os reconhecemos como jogos. Conclui seu raciocínio assegurando que, se não há um elemento comum a todos os jogos, logo o conceito de jogo não pode ser definido como um conjunto de propriedades necessárias e suficientes (OLIVEIRA, 1999, p. 20-21).

Para Wittgenstein, Semelhanças de família explica bem a questão da categorização através da superposição dos membros que compõem uma categoria, comparando-a ao que acontece a uma família, onde “os itens A e B são intrinsecamente relacionados, enquanto B se assemelha a C, C a D, D a E, e assim sucessivamente, até que cada item apresente, pelo menos, um elemento em comum com os outros itens, ressaltando-se que poucos elementos são comuns a todos os itens do mesmo grupo” (RODRIGUES-LEITE, 2005). 1.2.2 A teoria dos protótipos de Rosch

A categorização fora objeto de investigação nas mais diversas áreas de pesquisa até que a Psicologia Cognitiva trouxe o fenômeno a um foco central, graças ao trabalho pioneiro de Eleanor Rosch e sua dedicação em estudar o assunto.

O conceito de Semelhanças de família elaborado por Wittgenstein inspira Rosch a pensar em uma teoria de protótipos em que a categorização não ocorre

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através de traços discretos, mas por atributos típicos que variam culturalmente e em sua relevância para a estruturação das categorias (BONINI, 2002, p. 38-39).

Para Rosch apesar de os membros não precisarem compartilhar o mesmo traço para pertencerem a uma categoria, cada membro necessita compartilhar pelo menos um traço com o protótipo para assemelhar-se a ele e ser aceito na categoria. Isto indica a necessidade dos traços, ponto que se encontra, de certa forma, em concordância com o modelo clássico, porém descarta a sua suficiência, ponto divergente da CNS de Aristóteles. Na visão de Rosch, existe uma relação direta entre os indivíduos e o meio social onde estão inseridos em que uma força determina o mundo real sobre as categorias. Nesse sentido, o que Rosch afirma é que, ao assimilarmos o maior número de informações possível com o mínimo de esforço cognitivo para o reconhecimento de elementos como pertencentes a uma determinada categoria, faz com que esta categoria seja a representação da estrutura de mundo percebida da melhor forma possível, ou seja, isso ocorre pelo fato de a categoria reunir atributos comuns e reconhecíveis pelos indivíduos de um modo em geral. 1.3 Os Modelos Cognitivos Idealizados e categorização conceitual

Uma das formas de (re)categorizarmos as entidades em volta acontece nos discursos pelo uso de elementos gramaticais como a uso das formas pronominais. Apoiamo-nos em Lakoff (1987) em seus estudos sobre os Modelos Cognitivos Idealizados (MCI) e, mais especificamente, sobre os MCI do tipo simbólico para realizarmos a relação referenciação e recategorização social proposta neste estudo. De acordo com Lakoff, organizamos o nosso conhecimento de mundo por meio de modelos cognitivos idealizados (doravante MCI) cujos efeitos prototípicos e estruturas categoriais constituem os subprodutos dessa organização.

Os modelos cognitivos são construtos idealizados que não dependem de um ajuste perfeito ao mundo e resultam da interação do aparato cognitivo humano e da realidade, mediada pela experiência. Segundo Feltes, os MCI são determinados por necessidades, propósitos, valores, crenças, etc., tornando possível a construção de diferentes modelos para a compreensão de uma mesma situação, podendo, até mesmo, serem contraditórios entre si (FELTES, 2007, p. 89). Em outras palavras, os MCI são o resultado de nossa interação com outros indivíduos bem como da categorização humana aliados a aspectos culturais aprendidos e armazenados na mente ao longo da vida.

Os MCI baseiam-se em quatro princípios estruturados (LAKOFF, op. cit., p. 68) denominados: estruturas proposicionais, estruturas de imagem-esquemática, mapeamentos metafóricos e mapeamentos metonímicos que, conforme ressalta Feltes (op. cit., p.128), originam cinco tipos básicos de MCI, a saber, de esquemas de imagens, proposicionais, metonímicos, metafóricos e simbólicos.

Segundo Imaculada (2009, p. 34-35), as estruturas proposicionais referem-se à ontologia dos MCI, ao passo que, as estruturas de esquemas de imagens fornecem a estrutura para aquelas. Ambas as estruturas encontram-se relacionadas a “características do aparato cognitivo humano bem como a características básicas” da experiência físico-corporal. Já os modelos de esquemas de imagens dizem respeito à nossa experiência com o mundo material por meio de imagens sinestésicas resultantes da percepção que temos do próprio corpo, de seus movimentos e do formato dos objetos.

Quanto aos mapeamentos metonímicos, Lakoff (op. cit., p. 77) os concebe como “uma das características básicas da cognição”, pois é comum os indivíduos

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recorrerem a um aspecto bem assimilado ou de fácil percepção de algo para, posteriormente, utilizá-lo em situações em que esse aspecto venha representar o todo ou significar parte de algo mais complexo. Por fim, os modelos metafóricos são responsáveis pela expressão de algo do domínio abstrato através de domínios concretos frutos da experiência humana.

Como mencionamos anteriormente, os princípios estruturadores dos MCI geram outros princípios básicos de organização do pensamento. Dentre eles, encontram-se os MCI simbólicos, sobre os quais passamos a discorrer mais detalhadamente, porém, não de forma exaustiva, justificando este destaque por meio da relevância e importância destes modelos no momento da análise do corpus.

Os MCI simbólicos situam-se dentro de uma proposta de gramática cognitiva lançada por Langacker (FELTES, op. cit., p.167) derivada da combinação do modelo de formas com modelos cognitivos. Esta proposta considera que as construções gramaticais estabelecem uma relação estreita dentro do par ‘forma-significado’7 (FS), sendo F referente às formas sintáticas e fonológicas e S referente ao significado e uso, ou seja, forma e significado são interdependentes e motivadas por uma realidade cognitiva. Lakoff (FELTES, 2007, p. 167) divide os MCI simbólicos em três níveis de descrição linguística: o dos itens lexicais, o das categorias gramaticais e o nível das construções gramaticais.

Dos três níveis acima mencionados, é o das categorias gramaticais e, mais especificamente, o uso de formas pronominais pessoais nas quais nos apoiamos por crermos que estas formas não somente viabilizam a (re)categorização de entidades bem como revelam as várias possibilidades de categorias conceituais advindas de um mesmo pronome, extrapolando, assim, a visão tradicional de uma relação óbvia e fechada em torno de um referencial e referente sem se levar em consideração quaisquer fatores sócio-histórico-cognitivos envolvidos em uma determinada enunciação no momento de seu uso. 2 A ACD e os processos de legitimação e deslegitimação

Van Dijk (1998, p. 255) sugere que a legitimação é uma das principais funções sociais de ideologias, visto que “as ideologias são as bases das representações sociais compartilhadas por membros de um grupo”. Assim sendo, os grupos se organizam pelo compartilhamento de crenças sociais, o que une os indivíduos em torno de um ideal, levando-os a agir de forma coordenada. As ideologias devem ser entendidas como interface entre sociedade e cognição. Mesmo dentro de uma diversidade de valores e conceitos existentes na sociedade, os grupos se articulam por meio de afinidades, compartilhando e reelaborando suas crenças. A legitimação é, portanto, um ato social e/ou político de dimensão interativa e que está relacionado a um posicionamento de autodefesa de um determinado falante quando este tem a oportunidade de apresentar seus argumentos, boas razões, motivações aceitáveis para ações passadas ou presentes que podem ser criticadas por outros.

O discurso legitimador está, geralmente, associado a contextos institucionais, porém, também se evidencia em ações ou atividades desempenhadas por pessoas de um modo geral como um recurso para justificar atitudes ou ações ao perceberem que poderão sofrer algum tipo de retaliação, reprovação, condenação, julgamento contrário, discordância ou, até mesmo, ataques (VAN DIJK, op. cit., p. 256). Os

                                                                                                                         7 Ênfase nossa.

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discursos legitimadores também pressupõem normas e valores os quais determinam se uma tomada de ação, ou decisão política é justa dentro de um dado sistema político, legal ou, em um contexto mais amplo, dentro da ordem moral estabelecida por uma determinada sociedade.

Falcone (2008, p. 78-79) reitera a visão de Van Dijk de que a legitimação ou a deslegitimação é um acontecimento integrante do nosso cotidiano, ressaltando que o cenário ou o momento em que ocorre é bastante variado como, por exemplo, durante uma conversa entre vizinhos ou em uma reunião entre amigos que assistem a uma partida de futebol, em uma discussão sobre política ou economia doméstica, dentre tantos outros contextos.

Van Dijk (2000 apud FALCONE, 2008, p. 86) apresenta a legitimação como um ato social e político concretizado na prática discursiva, destacando o seu caráter sociointerativo, pois acredita que os discursos podem também se configurar em atitudes responsivas a grupos e/ou atores sociais quanto à sua legitimidade. Ao tratar sobre deslegitimação, Van Dijk (1998, p. 258), assevera que esta surge em momentos de conflitos sociais e ideológicos nos campos das ideias ou de recursos sociais escassos, mas também na busca pela legitimação. Segundo o estudioso, neste caso, a dominação envolverá estratégias voltadas para a deslegitimação de dissidência interna bem como de competição ou ameaça externa. As estratégias seguem um esquema ideológico que desafiam a existência ou identidade do outro grupo.

Na concepção de Falcone (2008, p. 68), a (des)legitimação de atores e grupos sociais é entendida como uma atividade de complexas relações sociais, norteadas por modelos cognitivos, sendo o discurso um recurso fundamental no processo. Daí, a afirmação que não há grupos legitimados ou deslegitimados em definitivo, uma vez que a (des)legitimação é um processo decorrente de posicionamentos intersubjetivos de indivíduos inseridos em um determinado contexto social e influenciados por um contexto histórico. 3 Referenciação

Na década de 80, surge uma nova orientação para estudos dos textos decorrente da conscientização de que toda ação é acompanhada por processos de natureza cognitiva. Quando agimos, dispomos de modelos mentais de operações e tipos de operações. Sendo assim, dentro desta perspectiva, “[...] o texto passa a ser considerado resultado de processos mentais: é a abordagem procedural, segundo a qual os da comunicação possuem saberes acumulados quanto aos diversos tipos de atividades da vida social, têm conhecimentos representados na memória que necessitam ser ativados para que sua atividade seja coroada de sucesso” (KOCH, 2009, p. 21).

Desse modo, durante a produção textual, há que se considerar que os indivíduos já trazem para as situações comunicativas certas expectativas por meio da ativação de conhecimentos prévios e experiências com objetivos específicos a serem alcançados. Cabe a LT, portanto, desenvolver modelos procedurais, visando a atender a compreensão dos processos cognitivos envolvidos na integração dos vários sistemas de conhecimento que se estabelecem entre os parceiros de comunicação.

A referenciação constitui um instrumento de análise bastante relevante, pois fornece os subsídios necessários para investigarmos como as formas pronominais referenciais evidenciam seus respectivos objetos-de-discurso e constroem a (re)categorização social bem como a (des)legitimação de discursos. De acordo com Koch (2008, p. 119), “a referenciação é responsável [...] pela introdução no texto de

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referentes novos ou inferíveis a partir de outros elementos do co-texto, isto é, pela ativação ou alocação dos referentes na memória de trabalho; e na remissão a referentes já introduzidos, de modo a serem re-alocados ou reativados na memória opcional do interlocutor.”

O uso de pronomes é apontado pela estudiosa (KOCH, op. cit., p.67) como uma das estratégias de referenciação textual, por meio do qual é possível reconstruir objetos previamente mencionados, mantendo o foco, em um determinado discurso (oral ou escrito), com o propósito de originar “cadeias referenciais ou coesivas, responsáveis pela progressão referencial do texto”.

Citando Levinson, Marine (2009, p. 33) apresenta os pronomes pessoais como um tipo de dêixis responsável por codificar o papel dos participantes envolvidos em determinado acontecimento discursivo no momento de uma enunciação, em que a “primeira pessoa” gramaticaliza a referência do falante a si mesmo, a “segunda pessoa” faz referência a um ou mais destinatários e a “terceira pessoa” referencia indivíduos não envolvidos diretamente no momento do acontecimento discursivo quer como falante ou como destinatários. O processo de referenciação por meio de pronomes é, na concepção de Marcuschi (2009, p. 110), provavelmente, o fenômeno mais estudado e mais desenvolvido pelo fato de se tratar de um importante fator de organização textual.

Neste estudo, utilizamos o recurso da referenciação por meio de formas pronominais estudada pela LT a fim de investigarmos o fenômeno da recategorização social proporcionado pela progressão referencial em sua relação com os diversos objetos-de-discurso que surgem por meio dessa progressão. 4 O contexto sócio-histórico da produção dos textos

Os Estados Unidos da América dos anos sessenta são descritos como uma sociedade polarizada (JONES, 1977, p. 45). De um lado, negros divididos entre si, contraditoriamente, lutando por direitos iguais (destaque nosso) aos dos brancos; do outro, brancos divididos entre aqueles que acreditavam ser possível uma convivência pacífica entre todos os cidadãos americanos independente de raça ou cor e aqueles que se recusavam a aceitar essa igualdade racial, tentando sustentar a visão de supremacia da raça branca, mantendo os negros privados de direitos completamente iguais.

Foi durante o governo do presidente Eisenhower que se deu a aprovação do Civil Rights Act (o Ato dos Direitos Civis) no ano de 1957 – a legislação dos primeiros direitos civis desde o fim da Guerra Civil. Após sua aprovação, muitos brancos se recusavam a cumprir o que prescrevia a lei e, por várias vezes, fez-se necessária a intervenção por parte do presidente, utilizando-se das forças armadas para garantir a decisão da Suprema Corte que ordenara o fim da segregação no país (JONES, op. cit., p. 42).

Liebig (2003, p. 28) descreve a América dos anos 60 como estando “sentada num caldeirão negro borbulhante, em plena ebulição”, visto que os direitos civis negados aos negros durante o período da escravidão agora precisavam ser respeitados e postos em prática a qualquer preço. Nesse cenário de lutas pelos direitos civis, dois líderes negros americanos destacavam-se junto à comunidade afro-americana – MLK e MX – sendo o primeiro, integracionista e defensor de uma luta pacífica e o segundo, separatista, defensor da luta armada. 5 Análise dos textos I HAVE A DREAM e THE BALLOT OR THE BULLET

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O quadro seguinte contém dados numéricos de ocorrências das formas

referenciais pronominais do caso sujeito em T1 e T2, bem como, o índice de ocorrência em percentuais para fins de avaliação e comparação, tomando-os como base das nossas reflexões e considerações finais.

T1 – I have a dream T2 – The ballot or the bullet

Pronomes Nº de

ocorrências Índice de

ocorrência

Pronomes Nº de

ocorrências Índice de

ocorrência I 15 27,79% I 86 18,67%

You 6 11,11% You 175 37,96% We 31 57,40% We 111 24,07%

They 2 3,70% They 89 19,30% TOTAL: 54

100,00% TOTAL: 461

100,00%

O quadro revela, acima de tudo, em torno de que categorias de sujeitos os

discursos são construídos. Observamos que, enquanto em T1, o discurso está mais voltado para o coletivo em que MLK se inclui, ou seja, na forma pronominal we, T2 tem sua maior concentração na forma pronominal you. Analisando os dados, vemos que, isso se dá pelo propósito na mente de cada autor/discursante no momento do seu pronunciamento e, mesmo antes, uma vez que os discursos não foram improvisados, mas bem pensados, elaborados e lidos. Em seus discursos, MLK e MX visavam atingir seu público-alvo, categorizando-os de acordo com o papel e responsabilidade a serem desempenhados na causa.

Ao usar o pronome we, MLK leva a sua audiência a assumir uma responsabilidade que inclui a ‘todos’. Tomemos como ‘todos’, o grupo, no qual, ele próprio se insere e que não é formado apenas por negros, mas também por brancos, pardos e demais raças presentes ao evento em Washington. Assim, MLK categoriza o grupo, inicialmente, como o ‘grupo dos iguais’, independente de cor de pele. We remete ainda para todos aqueles que professavam ideais religiosos, político-ideológicos, apresentavam aspectos socio-econômico-culturais diferentes, mas que, por meio da tolerância e sensibilidade à causa seriam capazes de conviver de forma harmoniosa, pacífica, objetivando o bem comum, enfim, todos estavam irmanados entre si pela igualdade entre os indivíduos.

A forma pronominal you corresponde ao maior índice de ocorrência em T2 e revela que o foco de MX são os negros, excluindo quaisquer outras raças do seu projeto separatista. Ao fazer uso desta forma pronominal, MX cria novas categorias, a saber, a ‘dos explorados’, ‘dos segregados’, ‘das vítimas dos políticos brancos em períodos de eleição’, ‘dos diferentes em relação aos brancos’ (desde a cor ao tratamento dado pelo estado para as duas raças), ‘dos não-americanos’, mas também ‘dos responsáveis pelas mudanças necessárias para a viabilização do seu projeto separatista’. Seu discurso centrado no outro é uma tentativa de persuadir o seu público-ouvinte de que era ele que tinha nas mãos o poder de decidir sobre seu destino futuro separado dos brancos opressores.

O segundo maior índice de ocorrência em T1 concentra-se no uso da forma pronominal I. Em T2, observamos que este índice recai sobre o uso de we. No

Quadro  1  –  Análise  comparativa  dos  dados  obtidos  em  T1  e  T2  

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discurso de MLK, vemos que, todas as vezes que o autor faz uso desta forma, ele tenta construir esquemas de imagem em torno da pessoa que são de ‘pai’, ‘idealista’, ‘cristão’, ‘pacifista’. A recorrência no uso de I está associada a um alto grau de apelo emocional de um cidadão que se auto-recategoriza em diversos papéis desempenhados no seu dia-a-dia como qualquer pessoa comum que tem família, sonha com um futuro melhor para os filhos, professa uma fé e crê em uma luta pacífica através de métodos de conscientização dos opositores da causa. Estes esquemas acionam vários comportamentos que característicos do ‘modelo’ contido em cada esquema e que servem para todo o grupo envolvido na causa.

Em relação a MX, todas as vezes em que usa we, o objetivo é inserir todos os negros dentro de um mesmo contexto. Conceitualmente MX, recategoriza esta raça como pertencente ao grupo dos ‘miseráveis’, ‘sofredores’, ‘explorados’, ‘segregados’ e ‘vítimas de violência por parte dos brancos’. No entanto, observamos que we também recategoriza os negros em indivíduos pertencentes aos mais diversos pensamentos político-ideológicos, tais como, pertencentes a diferentes religiões ou a algum grupo político, mas que devem se unir em prol da causa separatista e criação da nação negra.

O terceiro índice de ocorrências em T1 incide sobre o pronome you, enquanto que em T2, o terceiro índice recai sobre o uso de they.

Ao usar o pronome you, MLK categoriza os negros como ‘classe sofredora e vitimada pelo preconceito’, contudo, o baixo índice no uso desta forma pronominal nos leva a crer que, embora o autor não desconsidere de todo esta categoria, seu foco não é enfatizá-la ou supervalorizá-la, pois seu discurso está construído em torno de uma esperança de dias melhores para aqueles que compõem a nação americana e não no sofrimento dos negros.

Quanto ao uso de they, podemos afirmar que, MX concentra o seu foco e sua preocupação em deixar clara a existência de uma categoria formada por ‘inimigos’, principalmente, em períodos de eleição. Surge assim a categoria do branco opressor que anos antes eram os senhores de escravos e agora ocupavam cargos no executivo, judiciário e legislativo, mantendo os negros sob a mesma condição histórica de ‘escravos’.

Por fim, o quarto índice de ocorrência pronominal em T1 se dá por meio do uso de they que, ao contrário do que faz MX, não visa a estabelecer uma relação de inimizade ou animosidade em relação ao branco ou mesmo criar grupos opostos. Dos dois usos mencionados, um faz alusão aos homens brilhantes e magníficos que elaboraram a Constituição americana e o outro faz alusão aos filhos ainda pequenos de MLK, trazendo sobre esta segunda referência o esquema de uma nação futura ideal onde impera a igualdade de direitos para todos os cidadãos americanos.

MX utiliza a forma pronominal I como recurso categorizador dos diversos papéis por ele desempenhados na luta ou assumidos no dia a dia, como, ser ‘muçulmano’, ‘separatista’, ‘favorável a atitudes violentas contra brancos quando afrontado por estes’, dentre outros.

Os índices, de um modo geral, também revelam como as formas pronominais referenciais além de criarem e recriarem categorias conceituais também estão fortemente associadas à legitimação do próprio discurso e deslegitimação do discurso do outro.

Ao utilizar o pronome we com maior frequência do que os demais, MLK constrói um discurso legitimador da igualdade entre todas as raças, não importando as diferenças pessoais em termos de crença, valores, grau de instrução, posição social, posses etc. dentre os indivíduos presentes ao evento e engajados no movimento. A

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ideia de que ‘todos’ estão no mesmo barco e de que compartilham uma mesma dor e sofrimento é a maneira encontrada pelo líder para legitimação da igualdade. MLK tenta, ainda, construir através desse pronome um discurso legitimador de uma luta pacífica e deslegitimador dos métodos violentos sugeridos pelo seu contemporâneo MX. Todos engajados na causa devem ser conscientes de que devem agir de forma justa, correta para alcançar o que lhes é justo e de direito.

Quanto ao uso do pronome I, vemos que a legitimação do próprio discurso se dá em torno de um modelo criado em torno da imagem do próprio líder, acionada por meio de esquemas que remetem ao ‘pai’, o ‘idealista’, ‘o homem justo e íntegro’, ‘o cristão’, ‘o pacifista’.

O uso de you por MLK legitima a luta como justa, uma vez que, este pronome está associado com a condição dos negros de classe sofrida. You também legitima a igualdade entre todas as raças, referindo-as como ‘irmãos’, acionando o esquema ‘família’ em que se um sofre, todos os elementos da família sofrem junto.

O uso de they legitima as atitudes justas dos homens que elaboraram a Constituição, assegurando a sua validade para todos os cidadãos americanos e, em seu segundo uso, legitima a esperança representada pelos quatro filhos de MLK ainda pequenos de que dias melhores viriam.

Na fala de MX, vemos que a legitimação do discurso em torno do uso pronominal you acontece por meio da responsabilização do seu público-ouvinte quanto ao seu papel no processo de mudança de sua condição de miserabilidade e sofrimento por métodos violentos, caso fossem necessários, reagindo ao munir-se de armas ou revidar aos ataques dos brancos. A legitimação do seu discurso acontece, ainda, por meio da tentativa de persuasão dos negros para a criação de uma nação separada dos brancos. Por trás deste pronome há, também, a tentativa de deslegitimar o discurso do outro, quer do branco, ao mostrar que este não era amigo do negro, mas seu inimigo que o oprimia e com quem não deveria haver acordo, quer do movimento pacifista e integracionista de MLK, ao incitar sua audiência negra a atitudes violentas contra os bancos violentos e segregacionistas.

A forma pronominal we é usada como recurso legitimador da existência de um grupo exclusivo de negros que sofrem, são excluídos, explorados, diferentes dos brancos, não-cidadãos americanos. Este pronome cria automaticamente o grupo oposto, o do ‘branco opressor, do ‘inimigo’, legitimando as diferenças raciais, a existência de um tratamento diferenciado e injusto, além de deslegitimar a possibilidade de uma luta pacífica com um branco violento. We também deslegitima os métodos empregados por MLK em sua luta por direitos iguais em que MX confronta o outro líder, questionando até mesmo sua crença ao ironizar sobre os negros saírem à luta cantando versos cristãos de que haverão de triunfar um dia sem reagir, oferecendo a outra o outro lado da face nos momentos de afronta. Com isso, MX deslegitima o apoio da luta sobre a fé cristã, chegando a alegar que religião deveria ficar de fora, pois o momento era de ação.

Na maior parte do uso do pronome they, MX deslegitima o discurso das autoridades constituídas e eleitas com a ajuda do voto do negro, apontando que, ao chegarem ao poder, esquecem-se da comunidade negra. Legitima, apoiado neste pronome, seu discurso de necessidade de mudança por meio do voto ou da bala devido ao fato de os negros não poderiam, sequer deveriam confiar nos inimigos. They claramente remete para aqueles que estão em lado oposto, distanciados pela cor, pelos ideais, crenças, valores, posições político-ideológicas, a saber, o branco interessado na manutenção do jugo sobre os negros e os negros no anseio por condições de vida melhores separados do branco.

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Finalmente, ao utilizar o pronome I, vemos a tentativa por parte de MX de legitimação do próprio discurso através da imagem de uma postura ética frente à luta, mesmo não sendo cristão como a maioria absoluta dos seus ouvintes, mas mostrando que, mesmo sendo muçulmano, o que, na verdade interessava para os negros era seu engajamento na luta pelo separatismo ainda que isso custasse a reação violenta dos negros para a conquista de seu projeto de uma nação construída por negros para negros. A religião, portanto, deveria ser deixada de fora. Considerações finais

Durante a investigação, constatamos que, de fato, os fenômenos de

(re)categorização conceitual e a (des)legitimação de discursos são perfeitamente passíveis de investigação quando consideramos quem são os indivíduos envolvidos no processo discursivo, ou seja, quem pronuncia o discurso e quem é o seu público-alvo, o contexto socio-histórico-cultural de produção do discurso e propósitos a serem atingidos, além do reconhecimento, por parte de quem o analisa de que este envolve aspectos cognitivamente motivados.

Podemos afirmar que análises realizadas fizeram uso extensivo do referencial teórico sobre o qual esta dissertação se baseia a fim de tentarmos responder as questões norteadoras na hipótese lançada na Introdução desta pesquisa, a saber, de que os discursos de MLK e MX (re)categorizam socialmente os indivíduos por meio da utilização e recorrência de formas pronominais referenciais, tais como, I, you, we e they (eu, você(s), nós, eles) com a finalidade de (des)legitimar a (des)igualdade racial entre os norte-americanos no momento sociohistórico em que encontravam-se inseridos.

Ao final deste trabalho, constatamos a riqueza de aspectos passíveis de investigações futuras que constituem, a meu ver, o aprofundamento daquilo que aqui apresentamos. Como sugestões, apresentamos as seguintes: 1. os estudos dos textos selecionados através da referenciação pronominal, adicionando aos pronomes do caso sujeito, as formas pronominais do caso objeto e possessivos e; b. além dos discursos de Martin Luther King, Jr e Malcolm X, o acréscimo do discurso Yes, we can de Barack Obama, levando em consideração os dois momentos socio-históricos-culturais vividos pelos três líderes e seus diferentes momentos de luta, investigando como o fenômeno de (re)categorização e a (des)legitimação de discursos são utilizados por Obama como estratégia de vitória nas eleições presidenciais de 2008.

Assim sendo, ressaltamos o valor desta pesquisa não somente pelos objetivos até aqui alcançados, pela relevância do tema abordado, mas também pela possibilidade que temos aprofundamento do estudo dos fenômenos de (re)categorização conceitual e (des)legitimação de discursos em momentos de conflitos sociais, quando reconhecemos que estas envolvem situações e aspectos cognitivamente motivadas e que se refletem por meio da atividade discursiva. REFERÊNCIAS BONINI, Adair. Gêneros textuais e cognição: um estudo sobre a organização cognitiva da identidade dos textos. Florianópolis: Insular, 2002. DUQUE, P. H. Teoria dos protótipos, categoria e sentido lexical. In: MOLLICA, M. C.; RONCARATI C. (orgs.) Anais do III Congresso Internacional da ABRALIN. Rio de Janeiro, 2003. Disponível em:<http://www.filologia.org.br/revista/artigo/7(21)13.htm>Acesso em: 26jul. 2010.

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FALCONE, K. (Des)legitimação: ações discursivo-cognitivas para o processo de categorização social. 2008. 276f. Tese (Doutorado em Linguística) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Pernambuco, Recife. FELTES, H. P. de M. Semântica cognitiva: ilhas, pontes e teias. Porto Alegre: Edipucrs, 2007. KOCH, I. V. As tramas do texto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. _____. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 2009. _____. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2010. LAKOFF, G. Women, fire and dangerous things: what categories reveal about the mind. Chicago/London: The University of Chicago Press, 1987. LIEBIG, S. M. Dossiê black e branco: literatura, racismo e opressão nos Estados Unidos e no Brasil. João Pessoa: Idéia. 2003. p. 28-33. LIMA, G. A. B. Categorização como um processo cognitivo. Ciências e cognição. vol. 11, 2007. p. 156-167. Disponível em <www.cienciasecognicao.org> Acesso em: 20out. 2009. MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. MARINE, T. De C. Um estudo sócio-discursivo do sistema pronominal dos demonstrativos no Português Contemporâneo. Dissertação de Mestrado. MARTELOTTA, M. E. ; PALOMANES, R. Lingüística cognitiva. In : MARTELOTTA, M.E. (org.) Manual de linguística. 1ª ed. São Paulo : Contexto, 2008. p. 177-192. OLIVEIRA, M. A tradição Roschiana. In: OLIVEIRA, M. B. e OLVEIRA, M. K. Investigações cognitivas: Conceitos, linguagem e cultura. Porto Alegre: Artmed, 1999.p. 17-34. RODRIGUES-LEITE, J.E. Construindo versões de mundo: Reflexões sobre a atividade de categorização nas aulas de português. Revista do GELNE (UFC), v. 06. 2005. p. 69-90. UNGERER, F.; SCHMID, H. J. An introduction to cognitive linguistics. Longman: London/ New York, 1996. p. viii-xiv. VAN DIJK, T. A. Ideology: a multidisciplinary approach. London: Sage, 1998.

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Poéticas vocais: Beckett e Tarkos - Annita Costa Malufe (PUC-SP)

RESUMO Desde o poema-partitura Un coup de dés (Mallarmé), algumas tendências da poesia contemporânea enfatizam o potencial sonoro e performático da leitura. Tem-se aí um tipo especial de “poéticas vocais”, empenhadas no fluxo da palavra falada, em que Samuel Beckett (1906-1989) e Christophe Tarkos (1963-2004), seriam casos exemplares. O artigo analisa essas poéticas objetivando problematizar o contágio na poesia escrita pela vocalidade e repensar o papel imprescindível da performance da leitura, mesmo que silenciosa. Palavras-chave: Poesia contemporânea; oralidade; performance.

Gostaria de propor o diálogo entre duas poéticas de dois autores da literatura que, embora não tenham se conhecido pessoalmente, se encontram em um traço comum. Este traço definiria aquilo que chamarei aqui de uma poética vocal contemporânea. O primeiro deles é o irlandês Samuel Beckett (1906-1989), mais conhecido no Brasil por sua obra para teatro, mas também escritor de uma extensa e importante obra em prosa, prosa poética e poesia. Já o segundo, bem menos divulgado, é o francês Christophe Tarkos (1963-2004), poeta mais recente, embora também falecido, e um autor de certo modo herdeiro de caminhos trilhados por Beckett na literatura.

Certamente esses dois autores não são os únicos a apresentar no contemporâneo uma poesia centrada na questão da voz. No entanto, me parece que eles seriam casos exemplares de uma certa poética vocal que se define pelo trabalho com o fluxo da voz. Como se buscassem captar o movimento da voz se dando, seu desenrolar no tempo, sua música. Quando pensamos nesta materialidade da voz, podemos ser remetidos por exemplo àquilo que ficou conhecido por “Poesia sonora”, e que tem seus precursores no início do século XX, com os dadaístas, com os poemas fonéticos de Ugo Ball e Kurt Schwitters, trabalhando só com os sons das palavras, em poemas que não queriam dizer nada mas apenas soar e brincar com ritmos e sonoridades. E, depois, os diversos poetas que vão começar a gravar suas vozes e operar com aparelhos eletrônicos para produzir ruídos, na proximidade mais estreita com a música eletroacústica.8 Poetas que vão trabalhar com a oralidade de fato, em termos empíricos, ou seja, com o próprio som da voz (e não necessariamente com o texto escrito, em muitos deles).

Mas nesses dois casos, Beckett e Tarkos, trata-se de uma poesia ou uma literatura especificamente escritas, que não se definem como sonoras. Ainda que ambos os autores tenham a proximidade com suportes para além do papel – no caso de Beckett, o teatro e no de Tarkos, as audições públicas de poesia e as gravações em áudio e vídeo –, o suporte privilegiado por eles não deixou de ser o livro e o texto escrito. Quando falo aqui em poesia vocal, portanto, tento definir um certo tipo de escrita que teria como seu material privilegiado o fluxo da voz falada. A voz em suas continuidades, quebras, movimentos, modulações, ondulações, velocidades,

                                                                                                                         8 Como por exemplo Brion Gysin (1916-1986), François Dufrêne (1930-1982) e Henry Chopin (1922-2008), Ghérasim Luca (1913-1994) ou Bernard Heidsieck (1928-).

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oscilações, linhas melódicas e rítmicas. Seriam textos que funcionam como uma partitura a ser executada nas leituras – seja em voz alta, baixa ou em silêncio. Partitura esta que, ao executarmos, nos faz escutar uma espécie de música da fala ou uma música vocal, que soa mesmo em nossa leitura silenciosa. Portanto, é como se o texto incorporasse a sua performance oral, a internalizasse, e se tornasse um roteiro de escuta de vozes.

Neste sentido, temos um precursor: Mallarmé e seu poema Um lance de dados [Un coup de dés], de 1897, que para muitos seria um marco da passagem da poesia moderna para a contemporânea. No prefácio a Um lance de dados Mallarmé sugeria justamente que este seu poema fosse lido como uma partitura, que o leitor poderia executar ao ler em voz alta, tal uma música. Era a execução sonora que estava em jogo na disposição gráfica inusitada, no jogo das tipologias com os brancos da página:

Ajunte-se que deste emprego a nu do pensamento com retrações, prolongamentos, fugas, ou seu desenho mesmo, resulta, para quem queira ler em voz alta, uma partitura. A diferença dos caracteres tipográficos entre o motivo preponderante, um secundário e outros adjacentes, dita sua importância à emissão oral e a disposição em pauta, média, no alto, embaixo da página, notará o subir ou descer da entonação (MALLARMÉ, 1998, p. 254).

Assim, ao mesmo tempo que o poema se espacializa, descobre o espaço da

página e o utiliza como material, ele também aponta para uma superação da página. Ele sugere uma saída do livro, uma expansão para fora do silêncio da página a partir da leitura em voz alta, ou a partir do paralelo com a música de concerto. Ele se espacializa e simultaneamente se temporaliza, portanto, sugerindo uma vivência sua no desenrolar do tempo. Ao falar de Um lance de dados, Octavio Paz salienta justamente a comparação feita por Mallarmé entre a distribuição do poema na página e a ideia de partitura, e diz: “Não creio no fim da escritura; creio que cada vez mais o poema tenderá a ser uma partitura. A poesia voltará a ser palavra pronunciada” (PAZ, 1996, p. 27).

Um lance de dados seria como um primeiro passo na modernidade em direção a algo que vai acontecer na poesia do século XX e que se expressa de diferentes modos em diferentes poetas. Dos caminhos abertos por este poema emblemático, encontramos por exemplo essa ideia do escrito que capta o movimento da voz. Numa notação como a de Um lance de dados, temos o fato do poema trazer no corpo de sua escrita sua própria execução oral, sua vocalização. O corpo escrito do poema estaria portanto marcado por certos índices de vocalidade ou oralidade, se quisermos retomar a expressão utilizada por Paul Zumthor, ao falar das indicações de leitura presentes nos manuscritos medievais.9 Esses índices, como diz Zumthor, podiam ser verbos que se referiam à oralidade, como o verbo dizer ou falar, ou ouvir, escutar. E podemos expandir esta ideia e imaginar que esses índices podem ser gestos ou movimentos típicos da oralidade, como a hesitação, o truncamento, a reiteração ou o afeto de continuidade e fluência, por exemplo.

No projeto de Mallarmé, pode-se destacar ainda a sugestão de que o poema aconteceria, como um lance de dados, a cada vez, inesperadamente; em cada leitura,                                                                                                                          9 Ao estudar poemas orais da tradição medieval, Zumthor fala em “índices de oralidade” ao se referir a indicações presentes nos manuscritos medievais que remeteriam às execuções orais desses poemas – os índices eram, por exemplo, verbos que se referiam à oralidade (ZUMTHOR, 1987, p. 42). Esses textos eram as primeiras notações.

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em cada performance ou execução de cada leitor, de modo único e irrepetível. Ou seja, o poema é uma partitura e, tal como acontece com uma peça musical, sua execução é algo único, que acontecerá a cada vez de um modo, no tempo de cada leitura. Já temos aqui portanto, neste poema de 1897, a ideia da leitura enquanto execução. O que, a partir do conceito de Paul Zumthor, equivale a pensar na leitura enquanto performance.

Lembremos que a performance, para Zumthor, implica em dois traços típicos do que definiria a experiência poética para ele: em primeiro lugar, a presença de (ao menos) um corpo; em segundo, a confluência de uma rede de encontros, um cruzamento, dando-se de modo irrepetível, em um “tempo real” de execução, na presença deste corpo. Ler poeticamente, para Zumthor, implica em ler corporalmente, em passar por uma experiência em que o corpo é imerso, é afetado, e ao mesmo tempo se modifica, incorpora novas sensações, aprende algo inédito. E o que de certo acontece é que alguns textos podem ter mais ou menos força para conseguir isto. E esta força também dependerá daquele que lê: “Que um texto seja reconhecido por poético (literário) ou não depende do sentimento que nosso corpo tem” (ZUMTHOR, 2000, p. 41). Ou seja, a performance é uma espécie de irrupção, é algo que acontece entre esses dois corpos (no mínimo dois: o leitor e o texto), de modo singular.

Samuel Beckett

Penso em Samuel Beckett como um importante desdobramento dessas ideias; uma espécie de matriz no contemporâneo de uma poética centrada no fluxo vocal, trazendo para a escrita o movimento da voz pronunciada: tornando nossa leitura uma escuta de vozes em tempo real e enfatizando o caráter performático de qualquer leitura. É interessante ver que em Beckett este trabalho começa com sua escrita das peças para teatro, gênero que requer um tipo de texto que funcione ao ser proferido em voz alta – afinal, o texto dramático se destina a ser vocalizado, encarnado na voz dos atores, sendo portanto já concebido enquanto uma partitura vocal. Após sua primeira peça, Esperando Godot (1948), os romances e novelas tomam rumo novo e passam a intensificar fortemente a presença de vozes e o elemento dramático. É então que ele escreve sua conhecida trilogia romanesca da década de 1950, composta por Molloy (1951), Malone morre (1951) e O inominável (1953).

Apesar de nos referirmos a esses livros como romances ou novelas, é certo que eles pouco se encaixam em gêneros preestabelecidos – seria mais preciso falarmos em uma prosa poética. Pouco ou nada resta aqui daquilo que definiria uma forma narrativa tradicional. Enredo, personagens, tempo e espaço narrativo: todos os elementos romanescos são colocados em xeque. O personagem é talvez a instância mais afetada por este abalo. Pouco a pouco, o que acontece em Beckett é uma dessubjetivação dos personagens, que vão se reduzindo cada vez mais a vozes, a linhas vocais.

No caso de O inominável, último e mais radical da trilogia, o protagonista se resume a um crânio, de onde sai uma voz que fala sem parar, remetendo a personagens dos romances anteriores de Beckett. Essa voz se torna independente, se descola de personagens e enredos. O que parece estar em jogo é o próprio percurso dessa voz ininterrupta, em fluxo contínuo. E esse fluxo vocal torna-se ao mesmo tempo narrador, personagem e cenário, lugar em que passeiam esses personagens anteriores, agora desencarnados. É uma primeira pessoa estranha portanto, despersonalizada, como já falou o escritor Maurice Blanchot (1959), dentre outros críticos de Beckett. Trata-se de um “eu” que não se encarna em um corpo tampouco

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em um sujeito, mas sim, encarna-se em um fluxo vocal, fluxo de palavras sem fim. Vejamos um trecho:

(...) estou em palavras, sou feito de palavras, palavras dos outros, que outros, o lugar também, o ar também, as paredes, o chão, o teto, palavras, todo o universo está aqui, comigo, sou o ar, as paredes, o emparedado, tudo cede, abre-se, deriva, reflui, flocos, sou todos esses flocos, cruzando-se, unindo-se, separando-se, onde quer que eu vá me reencontro, me abandono, vou em direção a mim, venho de mim, nada mais que eu, que uma parcela de mim, retomada, perdida, falhada, palavras, sou todas essas palavras, todos esses estranhos, essa poeira de verbo (...) (BECKETT, 2009, pp. 149-150)

Este movimento de vocalização vai se intensificando na obra de Beckett. Tem-

se mais e mais a impressão de um forte trabalho rítmico com as vozes. Em seguida, o romance Como é (1961) irá radicalizar o trabalho com o som e o fluxo. Escrito sem pontuação nem letras maiúsculas, o texto é cortado em blocos, de diferentes tamanhos, separados por espaços em branco. O que guia o texto não é necessariamente o enredo ou a sintaxe, mas é um ritmo, uma pulsação. Tem-se um personagem insólito que narra sua história de modo fragmentário e desconexo, em uma voz monótona e acelerada, que parece conduzida pelo ritmo sonoro e o leitor precisa adivinhar as entonações para ler:

tantas palavras tantas perdidas uma a cada três duas a cada cinco primeiro o som depois o sentido mesma proporção ou melhor nenhuma nenhuma perdida ouço tudo entendo tudo e vivo outra vez tenho vivido outra vez não digo em cima na luz entre as sombras à procura da sombra eu digo aqui SUA VIDA AQUI em suma minha voz senão nada portanto nada senão minha voz portanto minha voz tantas palavras encadeadas como assim primeiro exemplo (BECKETT, 2003, p.108)

A partir de Como é, haveria na obra de Beckett uma “metamorfose do texto

em partitura para uma música verbal”, para usar os termos de Fábio de Souza Andrade em seu livro Samuel Beckett: o silêncio possível. Para ele, o texto de Beckett teria evoluído no sentido de um: “casamento dos olhos que leem com a fala, da escrita com a escuta silenciosa” (2001, p. 159), passando a ser “uma escrita que se vale da escuta para se constituir” (p. 160). Com a ausência de pontuação e paragrafação, o texto solicita ao leitor uma atenção à entonação, por exemplo, que pode estar contida numa expressão ou a entonação contida na repetição de uma palavra (como por exemplo, no trecho acima: “ou melhor nenhuma nenhuma perdida”). Desse modo, a criação do sentido do texto na leitura depende dessa escuta, solicita uma “maior atenção às entonações que as palavras assumem ao serem proferidas em voz alta” como diz Fabio de S. Andrade (IDEM, p. 161). É então a própria escrita que internaliza esse movimento vocal, audível e se torna preciso “escutar” o texto para que ele faça sentido. Mesmo quando silenciosa, a leitura se torna, desse modo, uma escuta. Christophe Tarkos

Encontramos também essa transformação da leitura em escuta nos poemas de Christophe Tarkos. Pouco conhecido no Brasil, Tarkos é um dos principais nomes da poesia francesa atual. Autor de mais de vinte livros, construiu uma poética muito

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performática e fortemente atrelada à vocalidade. Mais do que poeta, Tarkos se dizia um “fazedor de textos” e de “improvisações-performances”. Sua poética é toda tomada pelo som e o movimento da voz. Mais do que temas ou significados, o que está em jogo é o percurso rítmico dessa voz, suas espirais, seus gestos obsessivos, hesitantes, sua música.

Seus poemas são em geral próximos a poemas-em-prosa. São textos encadeados, em que o fluxo da fala arrasta a escrita, por reiterações, rodeios, repetições de palavras, de frases inteiras ou expressões, e por permutações. Há uma clara relação de Tarkos com a obra de Beckett, no sentido de assimilações e influências mais ou menos declaradas. No entanto, Tarkos radicaliza as repetições – que também são muito presentes em Beckett –, criando textos exaustivamente reiterativos, repetitivos e permutantes:

Eu atravesso a ponte, a ponte atravessa o Sena, eu atravesso o Sena, caminho ao longo da ponte, eu não paro, quando caminho eu olho o Sena, a água, sigo por uma ponte, caminho sobre a água, a ponte passa sobre a água, a ponte é longa, eu caminho longamente, vou bem junto ao parapeito da ponte, a ponte passa por cima do Sena, olho o Sena, a água, a água cinza, não estou só, o Sena não está só, estou sobre uma ponte, eu caminho olhando para o rio, a água do rio, a água cinza do rio, eu sigo por um dos lados da ponte, a ponte se alonga de uma margem a outra do Sena, eu caminho de cabeça baixa, a ponte deixa o Sena correr, não olho para a correnteza, tenho sob os olhos a água cinza e larga que passa, eu passo, eu caminho, eu sigo meu rumo, sigo a ponte, eu atravesso a ponte, reparando de vez em quando na água cinza do Sena, a ponte larga atravessa toda a largura do Sena, eu apenas caminharei. (TARKOS, 2001, p. 11).10

Como neste fragmento, os blocos de texto de Anachronisme partem de ideias

ou descrições simples para desdobrá-las em uma escrita rítmica. O que sobressai, e parece se sobrepor à camada da significação, é o fluxo sonoro, o jogo de reiterações e variações. De modo que a descrição acaba servindo apenas como o pretexto para um jogo rítmico mais complexo, na qual a significação é arrastada e incorporada. É a partir desse trabalho rítmico que Tarkos cria aquilo que seria para ele, em francês, a pâte-mot – uma “pasta-palavra”, ou uma “massa-palavra”: conceito criado por ele para explicar a interessante concepção de linguagem que permeia sua produção poética.

Para Tarkos, a linguagem é uma substância pastosa, viscosa, formada por palavras coladas umas nas outras: “a substância de palavras suficientemente grudadas para querer dizer” (TARKOS, 1999, p. 32), define Tarkos em Le signe =, curioso livro, misto de poesia e formulações conceituais. A ideia de pâte-mot tenta tornar sensível a ideia de que não existem palavras sozinhas, tampouco significações isoladas. As palavras só existem em conjunto, fundidas, aderidas umas às outras, formando esta pasta-palavra, que possui seu movimento próprio. Os significados só existem conjugados a uma fisicalidade da língua. A substância pastosa do discurso é mole, elástica, pode se alongar, distender, passar por contorções, ela não se quebra, ela se estende, se molda, se retorce. A linguagem toda seria um contorcionismo de ritmos e velocidades, de imagens, sons, elementos mínimos, cores, respirações, evocações, cheiros, texturas – e o próprio sentido é esta pasta (ou esta pasta é o próprio sentido):

                                                                                                                         10 Tradução de Heitor Ferraz Mello, incluída no artigo “A lucidez hipnótica de Tarkos” (2005).

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A lista de palavras que é preciso fundir resulta em um pastel. Donde o fato de que tudo o que dizemos tem um sentido de pasta, tem uma pasta de sentido. Toma a forma de uma pasta. Depois a pasta pode se apresentar em não importa qual sentido, se inverter, se revirar, fazer uma argola, fazer argolinhas, ela tem sempre um sentido, ela não se deforma, pois ela é uma pasta ela pode tomar todas as formas ela não fica menos sensata cheia de sentido daquilo que dizemos, podemos esticá-la e esticá-la ainda, alongá-la bastante como ela é elástica ela não se quebra (...) (IDEM, 31-32).11

A palavra para Tarkos não seria um signo com suas duas faces, como na

semiologia, assim como o enunciado não poderia ser decomposto em frases e as frases em palavras. Em sua concepção poética da linguagem, não teríamos palavras, mas apenas esta pasta-palavra, uma massa material e espessa, concreta, densa, que sai de nossa boca, a cada vez uma, a cada vez uma massa diferente, repousando “sobre a elasticidade das sensações” ou “sobre uma modificação da apreensão” (IDEM, p. 35). O dizer é, assim, uma massa, em que sons, imagens, significados, designações estão todos misturados, compactados; uma massa submetida a suas oscilações rítmicas. Como se vê, não se trata de negar a dimensão do significado ou eleger a dimensão sonora em detrimento daquela da significação – como por exemplo nos poemas fonéticos dadaístas, ou muitos dos adeptos da poesia sonora, que buscavam negar por completo a face representacional da linguagem. Os poemas de Tarkos não deixam de trabalhar com significados, mas eles os inserem em um outro regime, colocam os significados em função de um movimento corpóreo, rítmico.

A poética de Tarkos parece compreender a definição de um conceito de sentido muito próximo ao de voz que tentamos estabelecer aqui: a voz como essa materialidade, essa continuidade, esse fluxo espesso em que as palavras estão fusionadas, fundidas, agregadas. A voz como um fluxo sonoro que carrega imagens, significados, afetos, timbres, memórias, gestos. A voz como construtora inseparável do sentido. Afinal, como separar uma palavra dita daquela voz que a diz? Como separar, no que seria o sentido do que é dito, forma e conteúdo, significado e significante? Seja na voz falada ou escrita, o sentido aparece aqui como algo inseparável do acontecimento do dizer, dando-se em simultaneidade com ele, em seu desenrolar, ou seja: “Aquilo o que dizemos da o sentido do que dizemos”, diz Tarkos (IDEM, p.40). Em outra formulação sua mais adiante, lemos: “O sentido é dado na fala pela fala, é ao se conduzir que a fala conduzida toma sentido, o sentido não se dá daquilo que é falado mas é dado por aquilo que é falado, em massa, em grupo, em espessura, continuando, em totalidade, repetindo, enrolando (...)” (IDEM, ibidem).12

É curioso esse esforço de Tarkos em direção a uma materialidade ou concretude da língua, mas sem que isto implique, como dizíamos, na opção pelo som em detrimento do significado, ou da forma em detrimento do conteúdo. O que parece estar em jogo, tanto em sua prática de escrita quanto nas formulações teóricas que aí aparecem, é uma outra concepção de sentido, que extrapola a dimensão da significação ou ainda, a dimensão representacional da linguagem. Mas que não nega a significação e sim a incorpora na criação de sentido. Trata-se portanto de conceber um sentido que se dá para além dela, um sentido que antes de tudo não coincide com o significado e não se restringe às dimensões linguísticas – ainda que delas dependa intrinsecamente para se dar. Tal concepção é bastante próxima àquela trabalhada por

                                                                                                                         11 Tradução provisória minha. 12 Tradução provisória minha.

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exemplo por Gilles Deleuze, filósofo que provavelmente Tarkos leu com certa atenção, dada a proximidade de seus conceitos com o pensamento de Deleuze.13

Para os objetivos de nosso artigo, vale ressaltar a vivência que é proposta por esses poemas vocais: a ideia de que o sentido do poema é algo que depende de um percurso da leitura, que se dá na sua performance, momento em que o leitor é conduzido pelas circunvoluções vocais sugeridas pelo texto, e que a significação é incorporada ao mesmo tempo, participando deste percurso:

Qual é o fluxo, qual é o fluxo que encontra um obstáculo, qual é esse fluxo, o fluxo encontra um obstáculo, qual é esse fluxo que encontra um obstáculo o fluxo encontra mais de um obstáculo, o fluxo viu um obstáculo pelo obstáculo do qual o fluxo viu o obstáculo, o fluxo quis ir em direção ao obstáculo que ele viu, eis um fluxo que vem em encontro de um obstáculo, os fluxos vêm a seu encontro, o obstáculo ia em direção ao fluxo, os fluxos viram mais de um obstáculo, qual é o fluxo, o fluxo vai encontrar um obstáculo que encontra os fluxos (...) (TARKOS, 1998, p. 25)14

Como se pode notar no início deste poema de Caisses, há uma significação,

mas ela não é assimilada prioritariamente de modo intelectual pelo leitor. Ela vai sendo antes carregada pelos gestos repetitivos do texto. Ela não deixa de estar aí, mas ela vai sendo vivenciada na leitura de modo até inevitável, pela insistência das orações e reincidência das palavras. De modo que ela acaba assimilada de um modo corpóreo, por imposição de presença. Uma oração vai levando à outra, vai chamando a outra, em um encadeamento ininterrupto, em um fluxo – que não por acaso é tematizado em mais de um poema por Tarkos. Esta dinâmica é criada em grande parte por essas repetições obsessivas, de palavras, expressões, orações, que são repetições de uma natureza tal que, a cada vez que retornam, parecem esticar a massa de palavras, esgarçá-la, fazendo-a se criar em um movimento contínuo. A pasta-palavra depende, assim, deste movimento espiralado, em que cada retomada implica em um acréscimo ou uma permutação. Nesta linha contínua, o poema empurra a leitura para adiante, ele não sugere uma volta, mas impulsiona para frente o gesto de ler, avizinhando-o ao de uma escuta.

Já foi mencionado que o procedimento de repetição é um dos mais frequentes na poesia de Tarkos. Ele afirmava que a repetição era uma estratégia sua para enfrentar o problema da falta de memória, que o acometeu muito cedo em decorrência de um tumor cerebral (do qual faleceu aos 40 anos de idade). Em razão da doença, ele começou a ter dificuldades para ler, não conseguindo passar da primeira linha dos textos. Esta linha inicial é aquela que aparece e reaparece nos textos, como nota Heitor Ferraz Mello em seu artigo sobre o poeta (2005). É este mote inicial que é reiterado, desdobrado e permutado, ao longo do texto. No caso do poema citado

                                                                                                                         13 A concepção de sentido que atravessa toda a filosofia de Deleuze é trabalhada mais pontualmente na obra Lógica do sentido (Logique du sens, 1969), na qual o sentido é definido como uma fronteira entre as palavras e as coisas. O sentido para Deleuze não é de natureza linguística, sendo uma transversal que corta as dimensões da proposição (significação, designação e manifestação) e que seria da ordem do acontecimento (outro conceito importante na filosofia de Deleuze e que, nos limites e escopo deste artigo, não teríamos como abordar) – sendo portanto da ordem de uma irrupção, que se dá a cada vez de modo único e irrepetível. Para o que interessa neste artigo, vale remarcar a proximidade do conceito de sentido em Deleuze e aquele de performance, que podemos desdobrar a partir de Zumthor. O sentido não é preexistente mas é sempre uma produção em “tempo real”. 14 Tradução provisória minha.

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acima, a oração inicial “qual é o fluxo” retorna três vezes ao longo do texto e é ela que serve de desencadeador para as permutações e variações que ocorrem.

A primeira oração é assim, muitas vezes, aquela que serve de gancho para uma espécie de improvisação na escrita e na voz: o próprio Tarkos costumava improvisar seus poemas em tempo real, em público, tal um instrumentista. O texto avança por retomadas, criando lentamente um lugar, um ambiente sonoro, sonorizado:

Isso só depende da minha voz, em um tempo morto durante todo um tempo morto, eu falo, é minha voz que é minha doença, é minha voz que é doente, tudo o que minha voz falou no tempo cíclico, finito, minhas palavras, o escoamento das minhas palavras é toda minha doença, o redondo da minha voz, o redondo de tudo o que eu disse, tudo que eu disse se arredonda e se enrola e se fecha, é e é minha doença que é preciso tratar, que eu vim tratar, trata-se falando, trata-se fazendo um redondo de palavra em um tempo morto, fazendo uma redondeza de um grupo de palavra em um tempo dado, isso será tudo, isso será minha doença e meu tratamento. (...) (TARKOS, 2001, p. 48).

Neste outro fragmento de Anachronisme vê-se tematizada a questão da

repetição enquanto uma forma de tratamento ou autocuidado. A repetição circular e obsessiva da voz foi tornando-se mais e mais uma estratégia não apenas composicional mas vital para Tarkos; um modo de transformar a doença em seu antídoto: “trata-se falando”, trata-se fazendo rodeios com as palavras, repetindo, criando uma ciranda exaustiva com as palavras. Muitas vezes, criando quase uma espécie de mantra, que nos embala, juntamente a memórias, remissões, significados, imagens, conceitos. O que se vê neste poema é uma positivação do ato de repetir: ao invés dele ser visto como um erro ou fruto de uma incapacidade, ele ganha uma potência afirmativa, produtiva e mesmo curativa.

No caso da poesia de Tarkos, que é muito próximo àquele de Beckett, o procedimento de uma repetição irregular – que não segue uma métrica regular como aquela utilizada na poesia tradicional e nas canções – tem como principal efeito produzir esta sensação de uma voz que fala. Afinal, na linguagem escrita, a repetição é vista com resguardos, o modelo ideal do que seria a linguagem escrita não comporta a repetição excessiva ou gratuita – enquanto que na fala a repetição é um dos principais recursos de construção textual. A repetição irregular, portanto, enquanto procedimento de escrita poética, potencializa a sensação de se estar diante de uma voz falada e não uma voz escrita. Ao repetir, Tarkos faz com que o escrito seja invadido por movimentos e atmosferas da nossa vivência da oralidade, da fala de todos os dias, da voz que soa alto ou baixo, murmura ou grita, retoma, reitera, gagueja, hesita. Podemos pensar o quanto a voz que fala improvisa, precisa improvisar; ela hesita, retoma, repete. E ela se apresenta no tempo real daquele que a escuta.

É esta vivacidade do improviso que é sentida nos textos de Tarkos. Por isto seus poemas podem nos dar a sensação de estarem se escrevendo no momento mesmo em que lemos, como se a leitura fosse a escuta de uma performance dando-se ali, naquele instante. Como se ambos, leitor e poema, estivéssemos imersos em um mesmo “tempo real”, participando juntos de um mesmo fluxo, de uma mesma situação enunciativa; participando juntos da mesma performance.

Neste sentido, vale salientar a experiência de imersão em que nos colocam essas poéticas vocais. Ainda que não estejamos em uma performance pública, em uma leitura coletiva estrito senso – como na poesia da tradição medieval estudada por Zumthor por exemplo –, somos imersos nessas correntes de vozes, conduzidos por

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esse fluxo da fala em contínuo escoamento. A voz invade a mudez da página e a povoa de sons. Gilles Deleuze dizia que “há uma pintura e uma música próprias da escrita, como efeitos de cores e sonoridades que se elevam acima das palavras” (1993, p. 9). E esses efeitos, que se elevam acima das palavras, esses sons, que se ouve através e entre elas, só acontecem no instante da performance; momento em que a presença do corpo do poema-partitura e o corpo do leitor-performer se encontram, se intermodulam e produzem o movimento: criam o sentido.

Referências bibliográficas ANDRADE, Fábio de Souza. Samuel Beckett, o silêncio possível. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. BECKETT, Samuel. Como é. Trad. Ana Helena Souza. São Paulo: Iluminuras, 2003 (dos originais em francês Comment c’est, 1961, e em inglês How is it, 1964). ______________. O inominável. Trad. Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2009 (do original em francês L’Innommable, 1953). BLANCHOT, Maurice. Le Livre à venir. Paris: Gallimard/ Folio, 1959. DELEUZE, Gilles. Critique et clinique. Paris: Minuit, 1993. _______________. Logique du sens. Paris : Minuit, 1969. MALLARMÉ, Stéphane. Poésies et autres textes. Paris: Le Livre de Poche, 1998. MELLO, Heitor Ferraz. “A lucidez hipnótica de Tarkos”. In: Revista Trópico, 2005. Link: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2542,1.shl (em 06/09/2011). PAZ, Octavio. Signos em rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, 1996. TARKOS, Christophe. Anachronisme. Paris: P.O.L, 2001. __________________. Caisses. Paris: P.O.L, 1998. __________________. Le Signe =. Paris: P.O.L, 1999. ZUMTHOR, Paul. La Lettre et la voix. Paris: Seuil, 1987. ______________. Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Educ, 2000 (do original Performance, réception, lecture, 1990).

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A unidade comunicativa conversacional - Hudinilson Urbano (USP)

RESUMO: O presente artigo propõe reflexões e um conceito de frase oral conversacional. A comunicação é um dos eventos mais comuns da comunicação diária. Compreende uma alternância de “turnos”, ou de intervenções faladas, entre os parceiros conversacionais. Cada turno, por sua vez, contém uma ou mais construções mínimas com valor comunicativo, denominadas “frases”. Nenhum estudo abrangente e sério de Língua Falada pode prescindir, direta ou indiretamente, de sua abordagem, identificação e definição.

Palavras-chave: frase; frase oral; entonação; conceito.

INTRODUÇÃO Um palestrante que, de forma consciente, premeditada e planejada,

cumprimentasse sua platéia com Boa tarde, colegas! Tudo bem! estaria produzindo uma frase típica da língua falada conversacional?

Há algum tempo temos nos proposto a observar e refletir sobre o que consideramos uma frase oral e seus eventuais padrões linguísticos (se é que pode haver esse tido de expectativa na ocorrência da frase oral), tendo como contraponto a frase escrita.

Em palestras menos formais e de pequeno público ouvimos com certa frequência saudações espontâneas e simples dos palestrantes como Oi, pessoal; tudo bem!

Esse tipo de enunciado, mais a busca de uma noção operativa do que seja uma frase oral da conversa do dia a dia, nos trouxe à lembrança um artigo de Dorothea Franck, intitulado “Sentenças em turnos conversacionais: um caso de ´double-bind´ sintático”, publicado na década de 80, em que ela fazia reflexões sobre o conceito de “sentença” ou “frase”. Suas reflexões, como informa, foram suscitadas pela leitura do seguinte texto, todo escrito em caixa alta e sem qualquer pontuação, que aparecia nos painéis dos aviões da época, à frente das poltronas:

NO SMOKING PLEASE FASTEN SEAT BELTS

ou seja: NÃO FUMAR POR FAVOR APERTAR OS CINTOS.1

Franck esclarece então que, ao contemplar o enunciado todo, lia o segmento

POR FAVOR associado a NÃO FUMAR, ou seja: NÃO FUMAR POR FAVOR. Após a decolagem, porém, ao ser apagado o segmento NÃO FUMAR, lhe pareceu claramente que POR FAVOR estava associado a APPERTAR OS CINTOS, ou seja: POR FAVOR APERTAR OS CINTOS.

Esse processo de mudança de aliança sintática levou-a a perceber que coisa semelhante ocorre nas conversações reais. Então passou a arrolar exemplos e fazer análises.

Nessa altura, percebemos nós que a frase de saudação “Oi, pessoal; tudo bem!” (e mesmo o enunciado Boa tarde, colegas! Tudo bem?), poderia estar nas mesmas condições, se fosse proferida sem qualquer entonação frasal específica, como se as quatro palavras (OI PESSOAL TUDO BEM) tivessem sido simplesmente

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retiradas de um dicionário. Nessas condições, a palavra “pessoal” poderia ligar-se tanto ao segmento anterior “Oi” como ao segmento posterior “Tudo bem”, ou seja: Oi, pessoal! ou: Pessoal, tudo bem?

A partir dessa constatação e da sugestão metodológica de Franck, propomos a depreensão, caracterização e noção dessa realidade, que chamaremos de “frase oral” ou “unidade comunicativa conversacional”, observando várias ocorrências frásicas orais, desde as mais simples até outras mais complexas.

E começamos, justamente, tendo em mente a seguinte pergunta proposta por Castilho, inspirada nos trabalhos da referida autora: Existe mesmo a frase na língua falada?

Do trabalho de Dorotheia Franck extraímos, ainda, inicialmente cinco trechos bastante significativos para o presente enfoque, fazendo os devidos destaques em grifo, a saber:

a) “que tipos de objetos devem ser considerados frases, para que nossa definição seja compatível com os pressupostos básicos da análise conversacional?”;

b) “os lingüistas têm que encarar as frases não apenas como unidades no tempo, mas também como unidades-a-serem-descobertas, enquanto ainda prossegue sua produção”;

c) “em vez de analisar as frases como produtos terminados da atividade da fala, de uma perspectiva pos-factum, parece mais cabível (...) tratá-las como processos que se desenrolam no tempo”;

d) “uma breve inspeção de dados conversacionais confirma que as frases ou componentes frasais (...) são efetivamente operativos, não somente para a análise linguística, mas para os próprios participantes”;

e) “a ‘bagunça’ da sintaxe da linguagem conversacional pode parecer um empecilho para o linguista acostumado a lidar com material limpo e purificado. Mas, precisamente, essas características são as que satisfazem as necessidades funcionais da conversação natural.”

Os trechos d) e e) são de particular interesse para as nossas considerações sobre os “dados conversacionais” que compõem um evento conversacional.

DADOS CONVERSACIONAIS

O trecho d) chama a atenção para os “dados conversacionais”, em cotejo com

o “material limpo e purificado” referido no trecho e). Esses dados, que são, na verdade, recursos-suportes da frase conversacional,

dizem respeito aos: 1) recursos linguísticos; 2) recursos não linguísticos, porém paralinguísticos; 3) recursos extralinguísticos. Os primeiros constituem, pois, os segmentos de natureza linguística, que, por

sua vez, compreendem os recursos: a) verbais, representados pela materialidade verbal, enquanto produção

linear segmental das palavras ou fonemas, considerando-se inclusive eventuais elipses e reformulações como repetições, correções, paráfrases, bem como todo o co-texto. Trata-se, enfim, mais ou menos, do chamado módulo sintático da Gramática das Línguas. Esses segmentos incluem: segmentos lexicais (palavras, locuções, expressões...) e segmentos não lexicais, como as intervenções responsivas simples dos ouvintes ou feed back do tipo ahn ahn;

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b) suprassegmentais, representados pela materialidade não verbal, suprassegmental, mas linguística. É o caso da entonação (ou entoação) em sentido amplo, ou melodia frasal, compreendendo, inclusive, entonação intencionalmente conclusa, inflexões de voz, pausas, silêncio etc. Trata-se, enfim, do módulo fonológico da Gramática das Línguas.

Na realidade, são esses dois tipos de recursos, que constituem os suportes materiais das frases orais, linguisticamente falando.

Os recursos “não linguísticos” são os aqui considerados “paralinguísticos”, na medida em que integram diretamente as frases orais, porém sem participarem da natureza linguística dos primeiros. Tais recursos compreendem o olhar, riso, meneios de cabeça, gesticulação, eventualmente até a postura dos parceiros conversacionais.

Os recursos “extralingüísticos” referem-se a todo o entorno das frases orais. Grosso modo, são os conhecidos “contextos”, destacando-se o “contexto situacional”, entre outros.

Como se sabe, tais dados ou recursos - normalmente não discretos como os suprassegmentais - são sempre complexos, numerosos e muitas vezes superpostos e/ou produzidos em sequência complementar numa sintaxe ou frase a dois, e, portanto, de difícil percepção, observação e descrição, ainda que – e talvez pior ainda – quando aprisionados em gravações, sem a captação direta pelo ouvido do documentador ou analista.

Isso exige que, constituindo os “recursos linguísticos, (verbais e suprassegmentais) os suportes materiais verbais das frases orais, como ficou dito acima, apenas eles serão em princípio aqui contemplados. Por outro lado, a percepção dos recursos “não lingüísticos” e “extralingüísticos” (de indiscutível significação, porém, para a realização dos eventos conversacionais) será confiada à perspicácia e experiência dos leitores, que também são igualmente falantes da língua.

DEPREENSÃO DO CONCEITO DE FRASE ORAL

Isto posto, propomos inicialmente, à semelhança de OI PESSOAL TUDO

BEM, as seguintes sequências de palavras escritas, imaginando-as, porém, como ocorrências oralizadas (daí sua transcrição não ortográfica), mas sem qualquer curva entonacional ou tom frasal e contexto, pois não se trata propriamente de frases. Na verdade, são apenas simples sequências da palavras, onde são respeitadas somente suas tonicidades naturais individuais, como é o caso de: pessoal (da letra a, que é oxítona), pobre (da letra b, paroxítona), mínima (da letra d, proparoxítona), consideradas em estado de dicionário.

Sequências oralizadas (a) oi pessoal tudo beim (b) pobri homeim (c) frasi é uma unidade mínima di comunicação (d) Robertu Sílvia Sílvia Robertu Agora, imaginemos essas mesmas sequências, realizadas no tempo e em

situações concretas, com propósitos interacionais definidos, segundo contextos e padrões entonacionais específicos2. Poderíamos obter as seguintes frases, agora transcritas ortograficamente, por questões de praticidade nesta exposição escrita.

a) Oi, pessoal! Tudo bem?

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Consideradas duas frases, compõe-se cada uma de dois segmentos enlaçados, dentro de uma única curva entonacional definida e conclusa. São frases proferidas por um falante que se dirige a um grupo de amigos, caracterizando-se a primeira como uma saudação e a segunda como uma interrogativa fática.

O mesmo grupo de palavras poderia, entretanto, representar outros tipos frásicos, se proferidas de outras formas e com outros propósitos, mas sempre com entonações conclusas, a saber:

a - 1: Oi! Corresponderia aqui a uma frase interjectiva de simples saudação, com

estrutura e entonação típicas desse tipo de interjeição a - 2: Oi, pessoal! O falante intencionalmente profere uma saudação, servindo-se da interjeição

acoplada ao vocativo, dentro de uma única linha melódica com uma primeira parte descendente ou normal e uma segunda e última com entonação conclusa ascendente .

a - 3: Tudo bem? Como segmento verbal frásico solitário, ainda que oralizado com uma

entonação conclusa, não parece de uso tão corrente, a não ser acoplado claramente a uma situação de um encontro casual. Mesmo nesse caso costuma aparecer depois de um Oi! ou Ola! Estruturalmente se trata de uma interrogativa, com entonação ascendente, mais com função fática.

a - 4: Pessoal, tudo bem? Esta frase pode ser descrita por um vocativo introduzindo uma interrogativa

fática, valendo ambos por uma saudação em dois tempos, com dois grupos de entonação ascendentes: o primeiro é o de menor saliência, enquanto o segundo é de maior saliência e contém a típica entonação conclusa. Ambos, em conjunto, sinalizam uma saudação.

Como se observa, o vocativo “pessoal” tem gramaticalmente posição livre, dependendo essa posição somente da intenção do falante e condições de produção da própria frase. Nesse sentido, estando ele numa posição intermediária B, num conjunto de três segmentos (A, B, C), pode ligar-se duplamente ora a A ora a B. Daí a importância da curva entonacional intencionalmente definida; se mal definida, a ligação será, em princípio, ambígua para os ouvintes.

b) Pobre homem! Trata-se de frase exclamativa, com função emotiva, cuja entonação revela uma

curva descendente conclusa. A palavra “pobre”, como sabemos, tem valor semântico diferente conforme

esteja antes ou depois do seu determinado substantivo: homem pobre (valor objetivo, descritivo); pobre homem (valor subjetivo, equivalendo a “infeliz”). Nessas condições, em princípio, o falante não tem opção de proferir uma frase emotiva com o adjetivo posposto, sendo essa uma restrição da Gramática da Língua.

c) Frase é uma unidade mínima de comunicação. É uma frase assertiva normal, declarativa, com entonação em que a voz se

eleva numa primeira parte e decresce em seguida numa segunda parte. Essa frase tem uma estrutura oracional, definida pela articulação de sujeito e predicado. Como tal, a entonação ascendente e descendente está muito vinculada a esse padrão de estrutura gramatical, mais frequente na língua escrita.

d) Roberto! Sílvia. Sílvia! Roberto.

Para o exame desses segmentos, faz-se necessário a descrição inicial do contexto situacional. Trata-se de um encontro casual de três pessoas, em que uma

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delas faz uma apresentação recíproca das outras duas suas amigas recém-chegadas ao espaço da situação e desconhecidas entre si: Roberto e Sílvia.

A pessoa apresentante profere pausadamente os dois pares de frases, dirigindo-os ora a Roberto ora a Sílvia, lançando-lhes ao mesmo tempo olhares e gestos de apresentação. Assim, a palavra Roberto, no primeiro par, e a palavra Sílvia no segundo elevam-se a categoria de frases vocativas, ao passo que Silvia no primeiro par e Roberto no segundo são propriamente as frases de apresentação.

As entonações, todas as quatro conclusas, são ascendentes nos vocativos (Roberto!, Sílvia!) e descendentes nas emissões apresentativas (Sílvia, Roberto)

CONCEITO DE FRASE ORAL

Examinadas então essas ocorrências ilustrativas de frases orais típicas, entre

tantas outras possíveis variantes - de que todos temos experiência viva na conversação diária – formulamos, primeiramente, o seguinte conceito de frase na língua falada, particularmente conversacional, iluminando-o, porém, posteriormente com observações complementares.

Frase oral é uma unidade de tamanho e estrutura a priori indefinidos, caracterizada pela intencionalidade, espontaneidade e imprevisibilidade, dentro de um contexto. O essencial, do ponto de vista da fala, porém, é ter uma forma linguística e um conteúdo comunicativo, produzidos e definidos (forma e conteúdo) entonacionalmente.”

OBSERVAÇÕES COMPLEMENTARES

A formulação do presente conceito demanda alguns comentários e

questionamentos, à luz dos dados conversacionais, no início descritos, particularmente os dados conversacionais “linguísticos”, e à vista de outras posturas teóricas, aqui apenas acenadas.

Denominação A denominação frase não é pacífica. Para o que denominamos frase, são

encontrados termos como sentença, oração, enunciado etc. (Cf. Castilho, 2010: 58, 243). Sem entrar no mérito da questão, cuja discussão não cabe nos limites deste artigo, deixamos claro que adotamos o termo frase para todo segmento ou conjunto deles que compreenda na sua extensão uma forma lingüística e um propósito comunicativo, identificado por uma curva entonacional.

A frase pode ser oracional ou não oracional, conforme contenha ou não uma articulação de sujeito e predicado. A frase oral pode ter ou não estrutura oracional, sendo comum carecer desse esquema; sobretudo a frase oral conversacional popular.

A frase da língua falada tem especificamente recebido, entre outras, as denominações de unidade comunicativa (UC), unidade discursiva (UD), parecendo-nos que esta contém uma dimensão mais especificamente discursiva, como o próprio nome sugere, enquanto aquela é mais abrangente para a fala em geral e à conversação em particular.

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Preferimos adotar simplesmente a denominação de frase oral e mais especificamente frase oral conversacional para essa realidade que nos parece a mais próxima da fala espontânea do dia a dia.

Conceitos próximos ou afins Inicialmente, cabe lembrar com Castilho a referência a mais de 130 definições

já apontadas por linguistas, sobre essa realidade linguística, dando conta da extrema dificuldade de um consenso quanto a uma definição.

A unidade comunicativa é adotada e caracterizada por Marcuschi (Cf. Urbano, 2011:135ss); a unidade discursiva, já defendida por Castilho em trabalho anterior é redefinida com ligeiras alterações agora na sua Nova Gramática, p 232, como:

um segmento do texto caracterizado semanticamente por preservar a propriedade de coerência temática da unidade maior, atendo-se como arranjo temático secundário ao processo informativo de um subtema, e formalmente por se compor de um núcleo e de duas margens, sendo facultativa a figuração destas.

Ao dizer, na sequência, que “o núcleo da unidade discursiva se compõe de uma ou mais sentenças, tematicamente centradas”, fica claro que a sua unidade é uma unidade discursiva, não necessariamente igual à unidade frase, como aqui entendemos.

Todavia, para a realidade que temos em mente, supomos mais cabível a definição de Camara Jr., quando, falando da frase do discurso, parece referir-se diretamente à frase do discurso “falado”. Com efeito, diz: “A frase é a unidade do discurso, quando um falante se dirige a um ou mais ouvintes sobre um assunto dentro de uma situação concreta. Caracteriza-se pela entoação, ou tom frasal, que é a marca do seu plano hierárquico em face da forma ou formas lingüísticas que utiliza. O que lhe dá individualidade é o propósito definido do falante, e assim a frase varia desde a formulação linguística completa até a simples interjeição.” (1959:206-7)

Como se vê, nessa definição, por outras palavras, se contém todas as propriedades e características que os nossos exemplos e conceito contemplam.

Entonação Do conceito exposto por Camara Jr., destacamos a marca entonacional, tão

típica, que em passagem anterior o autor reproduz a observação enfática de Karcevski quando afirma: “é precisamente a entoação que faz a frase. Não importa que vocábulo ou reunião de vocábulos, não importa que forma gramatical, não importa que interjeição podem, se a situação exige, servir de unidade de comunicação. A entoação vem proceder à atualização desses valores semiológicos virtuais, e, desde esse momento, achamo-nos em presença de uma frase.” (1959: 194)

Todos que pensam a frase como uma forma mínima de comunicação destacam o valor da entonação para a própria caracterização e delimitação da frase oral.

Da nossa parte, salientamos o caráter suprassegmental da entonação, seu conceito amplo em termos de melodia frasal abrangente, compreendendo curvas ascendentes, descendentes, inflexões de voz concomitantes com pausas etc.

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Dada a relevância da entonação no conceito da frase, repisamos ainda as seguintes observações de Jota (1976:118), pinçadas no verbete ENTOAÇÃO:

Linha melódica determinada pela variação de tons das sílabas, no encadeamento da palavra e da frase. (.. ) Na chamada entoação normal a tensão é mais ou menos uniforme (...); é o que se observa quando o falante se expressa naturalmente, sem emprestar à enunciação nenhum caráter de emotividade, expressividade, pergunta, exortação etc. (...) (...) Pode ainda, sob outro aspecto, ser ascendente, descendente, ascendente-descendente etc. (...) Na frase Partirei amanhã, a modulação é normal, mas difere em Partirei amanhã, se permitires, onde o tom ascendente na primeira oração (pelo que se percebe não acabar o período no amanhã) passa a descendente na segunda.

Jota segue fazendo várias outras reflexões com base em diferentes curvas

entonacionais, que expressam valores ilocucionais de vários tipos. No entanto, o caso analisado da frase Partirei amanhã, com uma só oração e modulação neutra, em cotejo com a frase Partirei amanhã, se permitires, composta de duas orações, exemplificam suficientemente o valor das duas entonações “conclusas”: a primeira no amanhã da frase de uma oração e a segunda no permitires descendente da frase de duas orações e dão a justa medida que advogamos para o traço entonacional na identificação, caracterização e delimitação das frases orais, particularmente na conversação, sejam simples, sejam complexas.

As considerações de Jota lembram-nos uma frase extraída do inquérito 360 do Projeto NURC/SP, p. 137, linhas 58-62, que aqui adaptamos:

L1 (...) enfim o futuro a Deus... L2 pertence Trata-se de um “par conversacional adjacente” que, juntos, representam uma

frase dividida em duas partes e produzida por dois falantes, em que a primeira fala apresenta uma curva ascendente e a segunda uma curva descendente conclusa, delimitadora da frase.

Esse tipo de entonação é comum em provérbios, cujas frases se dividem em duas partes: a primeira termina num tom mais alto denominada “prótase ou condicionante”, produzindo um clímax ou expectativa e tensão; a segunda, num tom descendente, constituindo a “apódose ou condicionada”, que soluciona a expectativa e desfaz a tensão, como em De hora em hora Deus melhora.

Conteúdo Na denominação de Marcuschi e nas noções e caracterizações anteriores,

falou-se em unidade comunicativa, propósito comunicativo, conteúdo comunicativo, assunto etc., o que implica a ideia central de que a frase é uma unidade de “comunicação”.

Por sua vez, o termo comunicação nos remete a algumas ideias afins ou paralelas. Destacamos duas.

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A primeira é que está embutido no termo a ideia de conteúdo, conteúdo comunicativo. Não o vinculamos necessariamente ao conhecido “conteúdo proposicional”, mas sim a uma mensagem que pode “conter” uma informação, um pensamento, um sentimento, uma ordem, uma manifestação de contato etc. (dentro das chamadas “funções da linguagem”), indicados intencionalmente, ainda que mais ou menos de modo inconsciente;

Já Bally explicava a frase como forma de comunicação de pensamento (...), podendo o pensamento ser: um julgamento de fato (verdadeiro ou falso) um julgamento de valor (bom ou mau) ou uma volição (algo desejável ou indesejável) (cf. Linguistique générale francaise, cap.I, pp. 35-42, apud Martins, p. 165)

Em outras palavras, Martins explica que, como unidade de comunicação, a frase exprime um sentido, encerra um conteúdo, que corresponde à sua função.

Na sequência, a autora vai detalhando as funções principais das frases em geral, nelas incluídas, particularmente, as frases orais conversacionais. Nesses detalhamentos, vai, ao mesmo tempo, complementando as nossas observações sobre os traços entonacionais.

Assim, a frase que realiza fundamentalmente a função representativa é a frase declarativa, em que o emissor exprime um fato que a seu juízo é verdadeiro ou falso: é marcada por entoação descendente que corresponde ao ponto final na escrita e a uma entonação conclusa na fala.

A frase que cumpre a função emotiva, em que o falante deixa transparecer sentimentos variados, é principalmente a frase exclamativa, com entonação ascendente. Aqui entendemos que se localizam, além das frases com alguma articulação de membros, as frases inarticuladas, como as interjeições, as frases interjectivas.

A frase que desempenha a função apelativa é, por excelência, a imperativa, em que o falante exprime um fato desejável ou indesejável numa ordem, pedido ou súplica; acompanha-a uma entonação descendente mais acentuada que a da declarativa. Por exprimir algo que o falante deseja ou não e certamente considera bom ou mau, a frase imperativa é simultaneamente apelativa e emotiva.

Também a frase interrogativa, de entonação variável conforme tenha ou não palavra interrogativa, como quem?, como?, onde? etc., é simultaneamente emotiva (exprime o desejo do locutor de saber alguma coisa, podendo ir de uma discreta curiosidade a uma intensa ansiedade) e apelativa (atua sobre o interlocutor do qual se espera uma resposta)

Cremos ainda que não se pode esquecer as frases fáticas (aliás, entendemos que todas as frases carregam, em princípio, uma missão fática, de contato). Nesse caso aparecem também muitas frases interjectivas, inarticuladas, ao lado de outras devidamente articuladas.

Quanto às frases interjectivas, cabe recordar a categórica afirmação de Camara de que “assim a frase varia desde a formulação lingüística completa até a simples interjeição.”

A segunda observação com relação ao termo comunicação, no contexto da conversação, é que o termo lembra basicamente a ideia de “troca” de mensagens entre interlocutores, isto é, falante e ouvinte, salvo, normalmente, nas frases emotivas.

Isto significa a produção de formulações espontâneas (ou seja, não elaboradas) e, muitas vezes, imprevistas da forma linguística, seja como Pergunta, seja como Resposta, correndo os riscos dessa espontaneidade e imprevisibilidade, serem responsáveis por lapsus linguae, hipérboles, incoerências e contrassensos etc. Nesse sentido, a saudação referida no início deste artigo, Boa tarde, colegas! Tudo bem! não

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é um bom exemplo para o conceito de frase oral conversacional, uma vez que se trata de um enunciado “consciente, premeditado, planejado e previsível.”

Tamanho e estrutura As frases sob enfoque revelam tamanho e estrutura indefinidos. Ressaltamos

que estrutura indefinida, que inclusive pode ser inarticulável, não quer dizer obviamente estrutura inexistente. Tamanho e estrutura dependem de diversos fatores, dentre os quais, saliente-se o contexto e mais uma vez a entonação. Em teoria, em termos de frase oral, quanto mais contexto menos estrutura linguística.

Embora tamanho e estrutura não sejam traços definidores por si sós das frases orais, cremos ter deixado claro que elas revelam também muitas vezes estruturas e tamanhos típicos.

Particularmente, quanto ao tamanho, cabe lembrar, por exemplo, que, normalmente, essas frases se constituem de segmentos breves, como “emissões aos jatos”, de acordo com a conhecida expressão de que fala Chafe, podendo realizar-se desde simples interjeições monossílabas até encadeamento de vários sintagmas, como exemplificamos atrás.

Contextos Finalmente, quanto aos contextos, a par do chamado co-texto ou contexto

linguístico, particularmente na língua escrita, cabe destacar o contexto situacional. Entretanto, não se deu aqui tratamento privilegiado a esse tópico. Lembramos, porém, apenas, que, na falta de uma detalhada explicitação desse contexto nos exemplos, espera-se que ele seja recuperado, de forma econômica e “virtual”, graças à sensibilidade, experiência e perspicácia dos leitores, obviamente com muita freqüência imersos em situações de conversa. No entanto, a questão da contextualização e contextos pode também ser enfocada de diversas outras formas e objetivos, que não cabe aqui debater. (Cf. Urbano,2011:52ss)

CONCLUSÃO

Os limites e objetivos deste artigo determinaram uma opção metodológica econômica, graças à qual não operamos um corpus real – que é um dos princípios dos estudos da língua falada – mas consideramos suficientes os exemplos transcritos de memória e cabalmente analisados, confiando mais uma vez no compartilhamento de conhecimentos e experiência dos leitores igualmente falantes.

A pretensão de incluir a noção de frase oral conversacional entre as mais de 130 definições de frase já propostas por linguistas é consciente e ponderada, uma vez que toma esse objeto de definição, devidamente ancorado nos próprios “dados conversacionais”, claramente descritos. Nesse sentido, o conceito resulta simples, realista, objetivo, praticável e franqueado, na medida em que dá conta das infinitas ocorrências frásicas da língua oral.

Referências bibliográficas BALLY, Charles. Traité de stylistique française. V. 1. Geneve-Paris:Georg C. Klincksieck, 1951.

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CAMARA JR. Mattoso. Princípios de Linguística Geral. 3 ed. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1959. __________ Dicionário de Filologia e Gramática. 2 ed. Rio de Janeiro-São Paulo: J. Ozon, 1964. CASTILHO, Ataliba Teixeira de. Nova gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010. __________ e PRETI, Dino. A linguagem falada culta na cidade de São Paulo – Materiais para seu estudo – Vol. II – Diálogos entre dois informantes. São Paulo:T. A Queiroz, 1987. JOTA, Dicionário de Linguística. Rio de Janeiro: Presença, 1976. FRANCK, Dorothea. Sentenças em Turnos Conversacionais: um caso de double bind sintático. Cadernos de Estudos Linguísticos:11:0-20, 1986. MARTINS, Nilce Sant´Anna. Introdução è Estilística: A Expressividade na Língua Portuguesa. 4 ed. rev. São Paulo: EDUSP, 2008. URBABO, Hudinilson. A frase na boca do povo. São Paulo:Contexto, 2011.

Notas: 1- Utilizaremos doravante o enunciado em português. 2 – Bally (1951:93, 267) faz uma distinção entre entonação e pronúncia que faz muito sentido neste passo: pronúncia, que é a simples emissão de palavras com suas repectivas tonicidades, é inexpressiva e automática; entonação, que tem a ver com o tom frasal, é expressiva e consciente. Para ilustrar essa distinção, Bally formula a sequência VOCÊ ESTÁ AÍ, sem sinais de pontuação, cujas palavras podem ser “pronunciadas”. Produzidas como frases, a sequência pode ser entonada como uma frase declarativa (Você está ai.) ou como frase interrogativa (Você está aí?)

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A metaenunciação em textos falados: o caso da heterogeneidade mostrada15 - Sílvia Fernanda Souza Dalla Costa (UPM)

RESUMO: Este trabalho está situado no âmbito dos estudos da enunciação e investiga textos falados, evidenciando neles a ocorrência de expressões metaenunciativas, com os objetivos de: analisar as não-coincidências do dizer apresentadas em tais expressões, no contexto em que são produzidas; evidenciar a existência de procedimentos metadiscursivos na resolução de conflitos no texto falado; e, analisar a função que o metadiscurso exerce na produção de sentidos pelos interlocutores. Analisaram-se dois inquéritos D2, corpus do Projeto NURC/RS. Palavras-chave: Metaenunciação; Heterogeneidade do discurso; Texto falado.

Introdução

A heterogeneidade mostrada, conceito inerente à heterogeneidade constitutiva do discurso, é uma evidência do caráter dialógico das manifestações discursivas. A linguagem é heterogênea como os discursos são heterogêneos tendo em vista que têm a propriedade de dialogarem entre si.

É possível afirmar que todas as operações inerentes à língua em uso possuem este traço característico, no entanto, é em algumas delas que a heterogeneidade se evidencia de maneira mais clara. É o caso das operações metadiscursivas, as quais se constituem em um movimento de auto-reflexividade da língua em uso, no qual o “fazer discursivo” é referenciado no próprio discurso.

As operações metaenunciativas apresentam um movimento de auto-reflexividade, ou seja, são um procedimento linguístico-discursivo em que o falante se reporta ao dizer em si e não ao dito. As formas metaenunciativas são estritamente reflexivas e correspondem a um desdobramento no âmbito de um único ato de enunciação. Tal recurso, em geral, é utilizado no processo de construção da compreensão entre os interlocutores, buscando resolver conflitos e estabelecer sentidos.

Por isso, o “dizer sobre o dizer” é, muitas vezes, utilizado como um recurso para que o enunciador conduza a compreensão do interlocutor, buscando estabelecer sentidos, o mais próximo possível, do almejado pelo enunciador.

Este trabalho está situado no âmbito dos estudos da enunciação e investiga textos falados, evidenciando neles a ocorrência de expressões metaenunciativas. Tem como objetivos: analisar as não-coincidências do dizer apresentadas em tais expressões, no contexto em que são produzidas; evidenciar a existência de procedimentos metadiscursivos na resolução de conflitos no texto falado; e, analisar a função que o metadiscurso exerce na produção de sentidos pelos interlocutores.

                                                                                                                         15  Este trabalho contou com o apoio financeiro do Fundo Mackenzie de Pesquisa /MACKPESQUISA.  

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Os discursos em que a linguagem se constitui são heterogêneos porque confluem para a sua construção. No dizer de Authier-Revuz (2004, p.69) “todo o discurso se mostra constitutivamente atravessado por “outros discursos” e pelo “discurso do outro”. O outro não é um objeto (exterior, do qual se fala), mas uma condição (constitutiva, para que se fale) do discurso de um sujeito-falante que não é fonte-primeira desse discurso.

Segundo Hilgert (2006, p.165): “o dialogismo decorre do fato de os discursos serem constitutivamente interacionais, assumindo, por isso, a enunciação, por meio do qual a interação se realiza. (...) Para além das relações dialogais face a face, o dialogismo se revela no caráter responsivo dos discursos. Todo discurso ao mesmo tempo que responde a outros discursos, desencadeia novas formas de manifestação discursiva”.

Para contextualizar o metadiscurso, os pressupostos teóricos que delineiam esta pesquisa são o dialogismo, em Bakhtin; a enunciação, de Benveniste a Fiorim; o conceito de metadiscurso, proposto por Authier-Revuz e Maingueneau; e, a heterogeneidade constitutiva, em Bakhtin e Authier-Revuz. Assim, faz-se uma discussão teórica que procura diferenciar as noções de heterogeneidade constitutiva e heterogeneidade mostrada, em Authier-Revuz, de metadiscusividade e metaenunciação, para, a partir destas, analisar alguns excertos encontrados no corpus.

1. A heterogenidade constitutiva e os discursos Authier-Revuz distingue a heterogeneidade constitutiva da linguagem, da

enunciação – a “que está presente nela, em ação, de maneira permanente, mas não diretamente observável” – da heterogeneidade mostrada: “há o heterogêneo manifesto sobre o fio, produzindo nele rupturas observáveis”. (2004, p.179). Identificam a heterogeneidade mostrada no fio do discurso, todas as manifestações em que os outros discursos, as outras vozes, se explicitam, isto é, se mostram. Essa distinção entre as duas formas de heterogeneidade não é uma distinção de natureza, pois, na verdade, a heterogeneidade constitutiva é condição para que haja heterogeneidade mostrada. Ou seja, a heterogeneidade constitutiva não é mostrada formalmente, por recursos linguísticos, mas é identificável e recuperável pelo leitor ou interlocutor quando este recorre a sua memória discursiva e o relaciona com outros.

O princípio básico de Authier-Revuz é a heterogeneidade constitutiva, “condição de existência do fato enunciativo”(2004:175). Segundo esse princípio, portanto, os textos são heterogêneos por natureza, ou seja, eles só têm existência nessa perspectiva. (AUTHIER-REVUZ , 2004, p.165). Em síntese, observa-se que a heterogeneidade, com os procedimentos interacionais da construção do texto falado, pode-se admitir, no entanto, o que é a interação face a face uma das realizações linguísticas em eu esse caráter se manifesta de maneira explícita. (AUTHIER-REVUZ , 2004, p.166) 1.1 A heterogeneidade mostrada-marcada

As manifestações de heterogeneidade mostrada marcada aparecem sempre

sinalizadas por marcas linguísticas ou diacríticas, usadas de forma fixa e para esse

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fim. Dentre suas ocorrências está a negação, o discurso direto, o discurso indireto, as glosas do enunciador, o uso de aspas. Para este artigo considerar-se-á as glosas do enunciador, tendo em vista que estas estão relacionadas com o metadiscurso e apresentam configurações de atividade de dizer sobre o dizer.

1.2 A heterogeneidade mostrada não-marcada

São as manifestações que não são identificáveis por formas fixas, mas por índices variados de ordem textual, para-textual ou contextual. Nesta categoria pode-se incluir o discurso direto livre, a intertextualidade por imitação, a ironia, a pressuposição. É possível perceber que há um discurso alheio ao seu, mas cabe ao leitor identificar, pois a marcação não é explícita no texto. Nela as inferências do leitor precisam ser mais eficazes no sentido de identificar e interpretar as marcas inerentes ao texto e que precisam ser recuperadas para estabelecer o sentido.

1.3 O Metadiscurso

As operações metadiscursivas, no caso deste estudo as glosas do enunciador,

constituem-se em um movimento de auto-reflexividade da língua em uso, no qual o “fazer discursivo” é referenciado no próprio discurso. O “dizer sobre o dizer”, muitas vezes é utilizado como um recurso para que o enunciador conduza a compreensão do interlocutor, buscando estabelecer sentidos, o mais próximo possível, do almejado pelo enunciador.

Tal afirmação é amparada pelo pressuposto de Bakhtin (1988, p.138), quando afirma que “só a corrente da comunicação verbal fornece à palavra a luz da sua significação”. Maingueneau e Authier-Revuz também evidenciam que a as formas metadiscursivas são a prova de que o discurso possui uma heterogeneidade constitutiva e que ela se evidencia (seja mostrada ou não) de diferentes formas, tanto no texto oral como nos escritos.

Ainda é possível definir que, para Authier -Revuz (1998, p.14-15), o estudo do metadiscurso está situado em duas balizações teóricas: a da metalinguagem e a da enunciação. Neste sentido, afirma a autora que:

Através de uma série de oposições, a configuração visada é progressivamente especificada como tendo relação: - com metalinguagem natural, observável no discurso (...), o poder de reflexividade das línguas naturais, que é ao mesmo tempo “restrição”(...) - com a metalingüística comum (...) que dá acesso às representações de sujeitos ao sujeito da linguagem (da língua, do sentido, da comunicação...). - com o metaenunciativo, auto-representação do dizer se fazendo (...) em que o discurso sobre a prática da linguagem, emergindo desta em pontos do dizer que requerem mais dela do que um comentário, conjuga os dois planos da prática e da representação – como parte dessa prática.; (...). (AUTHIER-REVUZ, 1998, p.15).

1.4 Metaenunciação

Entende-se por atividade metaenunciativa ou, simplesmente, por metaenunciação, todo procedimento linguístico-discursivo em que o falante, no

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desdobramento da interação, se reporta ao dizer em si e não ao dito. As formas metaenunciativas são “estritamente reflexivas” e “correspondem a um desdobramento no âmbito de um único ato de enunciação; há um dizer do elemento, linguístico realizado por um comentário desse dizer” (AUTHIER-REVUZ, 1998, p.84).

A atividade metaenunciativa é, portanto, um dizer sobre o dizer. Nela o falante distancia-se, por um momento, do “conteúdo” e observa as palavras com as quais expressou. (AUTHIER-REVUZ,1988, p.166-167). 2.0 Os procedimentos metadiscursivos e o texto falado: uma análise.

O presente trabalho aborda uma pesquisa descritiva, a qual tende a investigar um fato e descrevê-lo. Deste modo, procura-se nele analisar e descrever como ocorrem os procedimentos metadiscursivos na construção do texto falado em uma situação de diálogo face a face, como é o caso do Diálogos entre dois informantes, ou seja os inquériots D2, constituintes do Material coletado pelo Projeto NURC – Norma Urbana Culta. O trabalho em análise de conversação é empírico, pois exige que seu material de pesquisa seja constituído de textos falados, produzidos em situações reais de comunicação. O textos analisados são dois inquéritos D2 (diálogo entre dois informantes), pertencentes ao corpus do Projeto NURC/RS (inquérito 130 e 207).

Como procedimentos, realizou-se a audição e a leitura dos inquéritos selecionados e deles extraíram-se as ocorrências de metaenunciados. Na sequência, analisou-se cada excerto a partir das categorias da heterogeneidade mostrada, propostas por Authier-Revuz:

(1) não-coincidência interlocutiva; (2) não-coincidência entre as palavras e as coisas; (3) não-coincidência do discurso consigo mesmo; e, (4) não-coincidência das palavras consigo mesmas. Após, fez-se a discussão dos efeitos de sentido produzidos por tais expressões,

particularmente à luz dos conceitos de enunciação propostos em Benveniste e Fiorin e levando em conta as noções de metadiscusividade e metaenunciação, discutidas por Hilgert, Jubran e Rizzo.

2.1 Análise de procedimentos metadiscursivos no texto falado

2.1.1 As não-coincidências do dizer em Authier-Revuz Para reforçar a análise, situamos, em Authier-Revuz, as categorias das não

coincidências do dizer, ou tipos de modalização autonímica, apresentadas em alguns excertos analisados. Para a autora, são comentários do enunciador sobre a sua própria enunciação:

a) não-coincidência interlocutiva; b) não-coincidência do discurso consigo mesmo; c) não-coincidência entre as palavras e as coisas; d) não-coincidência das palavras consigo mesmas. a) Não-coincidência interlocutiva

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Este tipo de metadiscursividade pode ser, então, considerada como uma característica própria das interações face a face, nas quais os falantes se veem constantemente na iminência de terem de negociar suas intervenções na construção do discurso em favor de seus interesses e propósitos comunicacionais. As manifestações metadiscursivas que se caracterizam pela não-coincidência interlocutiva põem em evidência, então, a negociação como fator de evolução dos processo interacionais. São exemplos, expressões como: como você acaba de dizer...; permita-me dizer....entende o que eu quero dizer...

b) Não-coincidência entre as palavras e as coisas. Esta categoria caracteriza as expressões que “representam as buscas,

hesitações, fracassos, sucessos... na produção da ‘palavra exata’, plenamente adequada à coisa” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.83).

Por meio desses procedimentos, o falante se manifesta, quase sempre de forma explícita, que não lhe ocorre a formulação adequada para aquele ponto da evolução do texto, que está buscando essa formulação, que tem dúvidas e incertezas quanto à propriedade da denominação escolhida, ou que apresenta soluções aproximativas. Verifica-se nessa modalização uma incompatibilidade entre a palavra e a coisa a ser denominada. São exemplos expressões tais como: se se pode dizer...; na falta de algo melhor...

c) Não-coincidência do discurso consigo mesmo. Todos os procedimentos metadiscursivos que representam esta categoria têm a

finalidade de atribuir seu escopo, ou seja, à palavra ou expressão a que se referem uma outra fonte enunciativa, ou, como diz Authier-Revuz (2004:83), “assinalam, no discurso, a presença de palavras pertencentes a um outro discurso”. Expressões tais como: como dizia....; como se diz na fronteira...., no sentido cristão..., representam esta categoria.

d) Não-coincidência das palavras consigo mesmas Cabe referir também aqui que as atividades metadiscursivas da ordem da não-

coincidência das palavras com elas mesmas não identificam textos prototipicamente falados. Podem ocorrer neles, mas sua ocorrência não depende das condições da interação face a face. Por isso, elas são igualmente frequentes em textos falados de baixa intensidade dialogal e também em textos escritos. Exemplo: X, é o caso de dizer... X, é a palavra!

2.1.2 Análise do excerto 01

DOC - De que forma vocês acham por exemplo que o enSIno... que hoje estão tão decaído... pode justamente levar as pessoas a uma aceitação ou não... DE condicionamentos ou possibilidades de opção? L1 – eu acho que essa pesquisa é... esta pesquisa é tremendamente significativa... essa pesquisa... vocês estão buscando o quê? O padrão MÉ::dio... de comunicação? DOC – é

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L1 – da língua? DOC – é L1 vocês estão buscando o padrão médio não é? DOC – é:: L1 – olha eu me propus a fazer a pesquisa me propus a responder a pesquisa... Exatamente pra tente/ pra tentar colocar durante a pesquisa ainda que vocês não levam ( ) ... a vocês não interessa o conteúdo ... Mas pelo menos pra colocar aqui o meu protesto nessa busca d/ ((risos)) do padrão médio... de comunicação? por quê? DOC – é o padrão culto né? L1 – padrão culto que seja... A nível de cultura por quê? Por que buscar?... Pra mim não... Acho que não tem ne-nhum sentido ne-nhum sentido... Posso estar chocando vocês....

(NURC/ RS Inquérito 120. In: HILGERT, 2009, p.28-29) No primeiro turno de L1, inicialmente ele realiza o procedimento de repetição

com o termo “essa pesquisa”. Na seleção lexical, ele se demonstra insatisfeito com o termo em questão para expressão a ideia. Tal busca é explícita, pedindo a colaboração de seu interlocutor por meio da expressão “vocês estão buscando o quê?”

A partir de então, o fluxo da informação passa a ser interrompido pelos procedimentos metaenunciativos que se voltam para a compreensão do termo.

Há um compartilhamento dos falantes na busca de estabelecer a compreensão, na seleção do termo mais adequado. No entanto, ocorre um procedimento de não coincidência entre a palavra e a coisa que representa: padrão médio de comunicação, padrão culto...

Então, L1 demonstra insatisfeito com o termo e se volta novamente para ele: padrão culto que seja.

2.1.3Análise do excerto 2

L2 - (...) a musculatura começa a ficar um pouco flácida... mas aí não retorna nunca... sem exercício... o músculo é:: ... como é que vou dizer pra vocês? é uma:: um eLÁStico...em uma fibra elástica... Quanto mais tu trabalhares mais ela s/ela se distende né? Se pegar essas borrachinhas de dinheiro... – que o nome técnico é atílio e ninguém diz... – conforme tu vais indo ela arrebenta claro... Fibra muscular é isso (...)

(NURC/ RS- Inquérito 207. In: HILGERT, 2009, p.67)

No excerto 2, L2 deixa claro que está em busca de um termo que facilite a compreensão de seu interlocutor, apontando um caso de não-coincidência interlocutiva, com a expressão como é que vou dizer para vocês? Ele demonstra preocupação em monitorar a compreensão e estabelecer sentido para o seu ouvinte. Não satisfeito, ele ainda se utiliza de uma analogia, comparando com as “borrachinhas de dinheiro” e julgando novamente que este não é um termo adequado,

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faz um inserção deixando claro que conhece o termo técnico para esta expressão coloquial.

2.1.4 Análise do excerto 3

L1- não faz nada, não sabem nem o que fazer do dinheiro... L2 – é que não tem bom gosto L1 – não tem bom gosto L2 – eu não digo relação eu diria o seguinte... que o dinheiro... pode proporcionar o bom gosto entende? L1 – claro tu tendo dinheiro tu pode comprar L2 – claro... pode montar o que tu quiser L1 – montar o que tu quiser... L2 – ( ) o dinheiro dizem que o dinheiro não traz felicidade admito a felicidade... vamos dizer da pessoa entende?... assim... eu sinceramente eu sou feliz à beça né? Não tendo não me preocupo com nada... (...)

(NURC/ RS Inquérito 207. In: HILGERT, 2009, p.80) No excerto 03, percebe-se a presença de três procedimentos metaenunciativos

com funções diferenciadas. No segundo turno de L2, ele utiliza de um dizer sobre o dizer apontando que a

“questão não ter bom gosto”, anteriormente citada por ele e repetida por L1 como forma de afirmação, não é a expressão mais adequada.

Introduzindo com a expressão “eu não digo relação eu diria o seguinte... “, nega o já dito e propõem um sentido diferente: “o dinheiro pode proporcionar o bom gosto”, caracterizando uma não-coincidência das palavras consigo mesmas.

No último turno de L2, ele novamente realiza procedimentos metaenunciativos a atribuir a uma outra voz a este dito (“dizem que dinheiro não traz felicidade”), caracterizando uma não-coincidência do discurso consigo mesmo.

Em seguida, monitora novamente o discurso com um “vamos dizer da pessoa entende?”, caracterizando que mesmo não sendo o termo mais adequado, quer ter a certeza de que o interlocutor o compreendeu, caracterizando uma não-coincidência entre as palavras e as coisas.

Considerações finais Observou-se que a metaenuciatividade no texto falado representa uma

atividade de qualificação discursiva, mas também atua como atividade profilática na resolução de problemas de compreensão e no monitoramente dos sentidos e da compreensão por parte dos interlocutores.

É possível observar pelos excertos analisados que, na manifestação de Authier-Revuz, referindo-se ao “locutor” (o falante), “sua figura normal de usuário das palavras é desdobrada, momentaneamente, em uma outra figura, a do observador das palavras utilizadas” (2004, p.13). Por isso, nessa manifestação metadiscursiva se

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explicita a natureza heterogênea dos textos e, por isso, da linguagem. (HILGERT, 2006, p.164)

As análises apresentadas neste trabalho têm caráter inicial e serão aprofundadas a partir dos elementos teóricos apontados durante estudos posteriores da autora em seu doutoramento.

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