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Socioeducação. Estrutura e Funcionamento Da Comunidade Educativa

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  • Presidncia da RepblicaSecretaria Especial dos Direitos Humanos

    Socioeducao

    Estrutura e Funcionamento da Comunidade Educativa

    Braslia2006

  • FICHA TCNICAEsplanada dos Ministrios, Bloco T, Edifcio Sede, 4 andar, sala 42270064-900 - Braslia-DFFones: 61-3429-3142Fax: 61-3226-7980E-mail: [email protected] page: http://www.presidencia.gov.br/sedhEsta publicao resultado do projeto de cooperao entre o Fundo de Populao das Naes Unidas e a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, no mbito do Projeto BRA/02/P51.

    permitida reproduo total e ou parcial da publicao, desde que cite meno expressa da fonte de referncia.Os conceitos e opinies nesta obra so de exclusiva responsabilidade dos autores.Distribuio gratuitaImpresso no Brasil / Printed in Brazil

    Coordenao tcnicaAntnio Carlos Gomes da Costa

    Reviso geralTnia Loureiro Peixoto

    Criao, Planejamento grfico e IlustraesDiagramao, Editorao eletrnicaTDA Desenho e Arte LTDA

    NormalizaoMinistrio da Justia

    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca do Ministrio da Justia

    Socioeducao : Estrutura e Funcionamento da Comunidade Educativa / Coordenao tcnica Antonio Carlos Gomes da Costa. -- Braslia : Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2006.

    156 p.

    1. Delinqncia juvenil, Brasil. 2. Medida socioeducativa, Brasil. 3. Direitos humanos, Brasil. . I. Costa, Antonio Carlos Gomes da, coord.

    CDD 341.5915

  • O importante no o que fizeram de ns, mas o que ns prprios faremos com aquilo que fizeram de ns.

    Jean Paul Sartre

  • Presidente da RepblicaPresidente Luiz Incio Lula da Silva

    Secretrio Especial dos Direitos Humanos/PRPaulo de Tarso Vannuchi

    Secretrio AdjuntoRogrio Sottili

    Subsecretria de Promoo dos Direitos da Criana e do Adolescente

    Carmen Silveira de Oliveira

  • APRESENTAo

    A Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidncia da Repbli-ca, por meio da Subsecretaria de Promoo dos Direitos da Criana e do Adolescente SPDCA, apresenta uma coleo de guias elaborados pelo consultor Professor Antonio Carlos Gomes da Costa objetivando contribuir para a formao de operadores e gestores do sistema socio-educativo no Brasil. O que se busca com tais publicaes o fortale-cimento da garantia dos direitos fundamentais dos adolescentes em conflito com a lei, com destaque aos que se encontram privados de liberdade nas unidades de internao, uma vez que ainda se observa a dicotomia entre os novos marcos legais conceituais que propugnam pela socioeducao e as velhas prticas tutelares e repressoras.

    Ressalvamos que no perodo de elaborao desse material estava em cons-truo o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - SINASE e o projeto de lei de execuo das medidas socioeducativas. Neste pro-cesso de discusso da nova poltica na rea muitos argumentos aqui expostos pelo autor foram objeto de reflexo pelo grupo de trabalho responsvel pela elaborao daqueles documentos. Algumas idias ganharam outros contornos ou nomenclaturas, como o caso do ter-mo SINAPSE utilizado pelo Professor Antonio Carlos, referindo-se a um Sistema Nacional cuja denominao no foi adotada pelos for-muladores da nova proposta, chancelada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos e pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criana e do Adolecente CONANDA.

    No entanto, este material didtico tem inequvoca atualidade e conso-nncia com o SINASE, aprovado pelo CONANDA em junho de 2006. Por isto, pode se constituir em instrumento que favorea o necess-rio alinhamento conceitual, estratgico e operacional dos programas de atendimento socioeducativo a este novo marco na poltica pblica brasileira.

    A primeira publicao, Por uma Poltica Nacional de Execuo das Medidas Socioeducativas Conceitos e Princpios Nor-teadores, problematiza o delito juvenil na sociedade contempornea e os itinerrios de excluso a que esto expostos os adolescentes em conflito com a lei. Traz uma abordagem histrica do sistema de justia juvenil no pas, delineando as novas perspectivas com base no garan-tismo jurdico.

  • O segundo guia, As Bases ticas da Ao Socioeducativa, apre-senta a normativa internacional dos direitos da criana e do adoles-cente e aponta dez princpios tico-pedaggicos em que devem ser estruturados os programas socioeducativos.

    A seguir, os Regimes de Atendimento no Estatuto da Crian-a e do Adolescente, um guia destinado, principalmente, aos dirigentes e tcnicos que desenvolvem suas atividades nos rgos de aplicao e execuo das medidas socioeducativas. Partindo da espe-cificidade dos regimes de atendimento em meio aberto e fechado, se discute como deve funcionar cada um deles e o que precisa ser feito na transio da inteno realidade, como enfatiza o autor.

    A quarta publicao, Scio-Educao Estrutura e Funciona-mento da Comunidade Educativa, objetiva delinear as bases para a ao socioeducativa em unidades de internao, incluindo as-pectos organizacionais e de gesto.

    Por ltimo, Parmetros para a formao do scio-educador, traz a reflexo sobre as competncias tcnicas e relacionais dos ope-radores do sistema de administrao da justia juvenil, englobando a rea jurdica, de execuo das medidas socioeducativas e da seguran-a pblica. O autor enfatiza a conexo de saberes na socioeducao como estratgia fundamental para contemplar a interdimensionalida-de nos programas de atendimento.

    Em sntese, estes guias apresentam uma riqueza de abordagens resul-tante da experincia de um educador e escritor de dezenas de livros e artigos no campo do desenvolvimento social e da socioeducao, com atuao destacada na construo de polticas pblicas voltadas para a promoo e defesa dos direitos da criana e do adolescente.

    Com essa coleo, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos no apenas preenche parte da lacuna no que se refere a construo de pa-rmetros pedaggicos para o atendimento ao adolescente em conflito com a lei, como visa suscitar nos dirigentes, tcnicos e socioeducado-res o compromisso tico, a vontade poltica e a competncia tcnica para desenvolverem em si mesmo e em suas equipes as habilidades bsicas, especficas e de gesto necessrias para materializar o SINASE no pas.

    Carmen Silveira de oliveira

    Subsecretria de Promoo dos Direitos da Criana e do Adolescente Vice-presidente do Conanda

  • SuMRIo

    APRESENTAo 5

    SuMRIo 7

    INTRoDuo 10

    PARTE 1 - A Ao SoCIoEDuCATIVA 11

    1. SITuAo IRREgulAR x PRoTEo INTEgRAl 12

    1.1. A DOUTRINA DA SITUAO IRREGULAR 12

    1.2. A DOUTRINA DA PROTEO INTEGRAL 17

    1.3. O PARADIGMA DA AMBIGIDADE 27

    2. A MEDIDA SoCIoEDuCATIVA DE INTERNAo 30

    2.1. ART. 121 DO ECA, COMENTADO 31

    2.2. ART. 122 DO ECA, COMENTADO 33

    2.3. ART. 123 DO ECA, COMENTADO 35

    2.4. ART. 124 DO ECA, COMENTADO 37

    2.5. ART. 125 DO ECA, COMENTADO 39

    3. BASES PARA ESTRuTuRAo DA Ao SoCIoEDuCATIVA NA uNIDADE DE INTERNAo 42

    3.1. BASES TICAS 43

    3.2. BASES PEDAGGICAS 45

    3.3. BASES ORGANIZACIONAIS 49

    4. o FERRAMENTAl TERICo-PRTICo DA SoCIoEDuCAo 55

    4.1. A DIMENSO PESSOAL 58

  • 4.1.1 O CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO PESSOAL E SOCIAL 59

    4.1.2 A PEDAGOGIA DA PRESENA 62

    4.1.3 A RELAO DE AJUDA 72

    4.1.4 A RESILINCIA 77

    4.2. A DIMENSO CIDAD 82

    4.2.1 A NOSSA JUVENTUDE 86

    4.2.2 PROTAGONISMO JUVENIL 87

    4.2.3 A ESCADA DA PARTICIPAO DO JOVEM: DA MANIPULAO AUTONOMIA 89

    4.3. A DIMENSO PRODUTIVA 90

    4.3.1 ITINERRIO ENTRE O MUNDO DA EDUCAO E O MUNDO DO TRABALHO 91

    4.3.2 OS PILARES DA EDUCAO 92

    4.3.3 OS CDIGOS DA MODERNIDADE 95

    4.3.4 VALORES, PROTAGONISMO E TRABALHABILIDADE: UMA RELAO DE CONVERGNCIA E COMPLEMENTARIDADE 99

    5. CoNTENo, SEguRANA E AS MEDIDAS PARA A PREVENo E o ENFRENTAMENTo DE SITuAES-lIMITE 101

    5.1. A PREVENO 103

    5.2. O ENFRENTAMENTO 109

    PARTE 2 - A gESTo DA CoMuNIDADE EDuCATIVA 113

    6. CoNCEIToS E RoTEIRoS BSICoS DE ADMINISTRAo 114

    6.1. ADMINISTRAO 114

    6.2. A DEFINIO DOS OBJETIVOS 114

    6.3. EFICCIA 114

    6.4. RECURSOS 115

    6.5. EFICINCIA 115

    6.6. DIVISO DE TRABALHO 115

  • 6.7. SUBSTITUIO DE RECURSOS 115

    6.8. CONVERGNCIA DE TRABALHO 115

    6.9. ESTRUTURA E FUNO 116

    6.10. DELEGAO 116

    6.11. SELETIVIDADE DAS INFORMAES 116

    6.12. O CAMINHO MAIS CURTO PARA A TOMADA DE DECISES 116

    6.13. FUNES DA ADMINISTRAO 117

    6.14. DECISO 118

    6.15. A FUNO DE PLANIFICAR 118

    6.16. ROTEIRO DECISRIO DA PLANIFICAO 118

    6.16.1 DECISES RELATIVAS AOS OBJETIVOS 118

    6.16.2 DECISES RELATIVAS S ATIVIDADES 119

    6.16.3 DECISES RELATIVAS AOS RECURSOS 119

    6.17. A FUNO DE IMPLANTAR 119

    6.18. ROTEIRO DECISRIO DA IMPLANTAO 120

    6.19. A FUNO DE AVALIAR 121

    7. A ADMINISTRAo DE uM CENTRo SCIo-EDuCATIVo 123

    8. o CENTRo SCIo-EDuCATIVo E SEu CoNTExTo SoCIoINSTITuCIoNAl 126

    9. o EDuCADoR, A PEDRA ANgulAR 129

    10. o DIRIgENTE CoMo EDuCADoR 132

    CoNCluSES 137

    gloSSRIo 138

    oBSERVAES / REFERNCIAS BIBlIogRFICAS 155

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    Esta obra pioneira em nosso pas. Ela pretende ser um guia seguro para a ao de todos os que atuam no campo da implementao da medida socioe-ducativa de internao. Com a iniciativa de public-la, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos vem preencher uma lacuna de dcadas em uma rea que todos reconhecemos como crtica no cenrio dos Direitos Humanos em nosso pas: o trabalho social e educativo dirigido aos adolescentes em confli-to com a lei em razo do cometimento de ato infracional.

    O destinatrio preferencial deste trabalho a equipe dirigente e tcnica das unidades de internao. No se trata, pois, de um trabalho sobre a questo do ato infracional, mas uma ferramenta terico-prtica a ser colocada nas mos dos homens e mulheres que, bem ou mal, fazem o sistema funcionar no dia-a-dia. Estamos, assim, diante de um instrumento para a ao.

    Apesar das limitaes comuns a toda obra pioneira, o objetivo deste livro dotar o pessoal dirigente e tcnico de compromisso tico, vontade poltica e competncia tcnica para desenvolver em si mesmos e nas equipes de base as competncias e habilidades bsicas, especficas e de gesto necessrias para atuar neste campo.

    Em nossa viso, ao lado da educao bsica e profissional, o Brasil deve desenvolver a socioeducao, modalidade de ao educativa destinada a preparar os adolescentes para o convvio social no marco da legalidade e da moralidade socialmente aceitas, como forma de assegurar sua efetiva e plena socializao.

    Os nossos objetivos so claros:

    1. O respeito integridade fsica, psicolgica e moral dos adolescentes priva-dos de liberdade;

    2. O desenvolvimento de uma ao socioeducativa de qualidade, visando for-mar o adolescente como pessoa, cidado e futuro profissional;

    3. A segurana dos cidados, pela efetiva reduo dos atos infracionais come-tidos por adolescentes.

    Agradecemos Secretaria Especial dos Direitos Humanos a confiaa de-monstrada em nosso trabalho, ao solicitar-nos a elaborao deste livro.

    Belo Horizonte, fevereiro de 2006.

    Antonio Carlos Gomes da Costa

    Pedagogo e Diretor-Presidente da Modus Faciendi - Desenvolvimento Social e Ao Educativa.

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    1.1. A DouTRINA DA SITuAo IRREgulAR

    Na rea do direito da infncia e da juventude, coexistem hoje na Amrica Latina duas doutrinas:

    1. A Doutrina da Situao Irregular que, ao longo de quase todo o sculo XX, foi a base de todos os cdigos de menores da regio;

    2. A Doutrina da Proteo Integral das Naes unidas, con-cepo sustentadora da Conveno Internacional dos Direitos da Criana, um conjunto de normas internacionais voltadas para a promoo e a defesa dos direitos da populao infanto-juvenil.

    Se quisermos compreender o significado e as implicaes dessas duas grandes concepes nas polticas para a infncia e adolescncia, o recurso idia de paradigma poder ser-nos de grande utilidade.

    O contedo do referido conceito, no mbito da expresso choque de paradigmas, vem de um historiador da cincia chamado Tho-mas Kuhn, autor de um livro muito importante: A Teoria das Revolu-es Cientficas.

    Joel Baker, um consultor organizacional americano, tomou as idias bsicas de Kuhn e aplicou-as a um universo mais amplo de temas e questes. Para ele, um paradigma serve para delimitar um campo de pensamento e ao, ou seja, define as fronteiras de uma determinada rea e, em seguida, fornece-nos as regras de como agir corretamente, de como sermos bem-sucedidos ao atuar no interior desse campo.

    1. SITuAo IRREgulAR x PRoTEo INTEgRAl:O Choque dos Paradigmas

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    Nesse sentido, um paradigma uma maneira de ver, de entender e de agir em um determinado domnio da atividade humana. De fato, ele informa nossa percepo, condiciona o nosso entendimento e determina a nossa maneira de atuar em relao a certos aspectos da realidade.

    Quando nos defrontamos com um paradoxo, isto , com alguma coisa que o nosso paradigma atual no consegue explicar, estamos, segundo Kuhn, aproximando-nos da hora de mudar de paradig-ma. ele quem nos diz textualmente:

    Na manufatura, como na cincia, a produo de novos instrumentos uma extravagncia reservada para os momentos de crise. O significado das crises consiste, exatamente, no fato

    de que indicam que chegou a ocasio de renovar os instrumentos.

    (Kuhn, 1994)

    Na rea do direito da criana e do adolescente, como veremos, as coisas acontecem da mesma forma. A crise ou esgotamento de um modelo de compreenso e ao vem dar lugar a outro. A transio, porm, entre o velho e o novo freqentemente no se d de maneira especfica. Os defensores da velha ordem costumam reagir de todas as formas ao seu alcance para impedir o novo paradigma de se afir-mar, de ser hegemnico, de vigorar de modo pleno.

    No nosso caso, o velho paradigma representado pela Doutrina da Situao Irregular que, a partir do Cdigo de Menores do Uruguai, de 1927, expandiu-se por toda a Amrica Latina servindo de base para a quase totalidade da legislao menorista produzida na regio.

    Como, no entanto, poderemos caracterizar a crise das leis de meno-res com base na Doutrina da Situao Irregular?

    Isso ocorreu, de fato, quando pessoas e grupos comprometidos com o ponto de vista e os interesses da populao infanto-juvenil comea-ram a dar-se conta das imensas contradies existentes entre o dis-curso protecionista do chamado direito tutelar de menores e as pr-ticas assistencialistas e correcionais, magistralmente caracterizadas por Emlio Garcia Mendez no binmio compaixo-represso.

    De fato, a Doutrina da Situao Irregular no se dirigia ao conjunto da populao infanto-juvenil. Limitava-se, porm, aos menores em si-tuao irregular, categoria constituda por quatro tipos de menores:

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    1. Carentes - menores em perigo moral em razo da manifesta in-capacidade dos pais para mant-los;

    2. Abandonados - menores privados de representao legal pela falta ou ausncia dos pais ou responsveis;

    3. Inadaptados - menores com grave desajuste familiar ou comu-nitrio;

    4. Infratores - menores autores de infrao penal.

    Observando as quatro situaes elencadas, vemos que duas delas re-querem, para sua resoluo, o exerccio da funo judicante: os casos de abandono e os de infrao. Ningum pode destituir uma famlia do ptrio poder e colocar seus filhos em famlia substituta guarda, tutela ou adoo a no ser a Justia. Ningum pode julgar um adolescente pelo cometimento de um delito e aplicar-lhe medi-da, visando corrigir sua conduta, a no ser a Justia. Vemos, ento, que, nesses dois casos, existe um conflito de natureza jurdica a ser resolvido.

    Porm, quando analisamos as outras duas situaes carentes e inadaptados , percebemos logo que a no existem conflitos a serem resolvidos com base na lei. Na verdade, estamos diante, no primeiro caso, de uma situao econmica e, no segundo, de um fenmeno de natureza psicopedaggica.

    Por que a essas quatro situaes foi dado um nico e mes-mo destino, o Juizado de Menores?

    Acontece que no perodo em que os primeiros Cdigos de Menores da Amrica Latina foram elaborados no havia, na regio, Estados com seu ramo social devidamente estruturado. Assim, a soluo que ocorreu aos legisladores foi remeter todas as crianas e adolescentes em situao de risco justia de menores, exigisse ou no a situao o exerccio da funo judicante.

    Foi assim que problemas de natureza social e psicopedaggica passa-ram a ser encaminhados aos tribunais de menores. Como no havia nessas situaes espao para o exerccio da funo judicante por par-te do juiz, limitando-se o papel do magistrado recepo, estudo e encaminhamento de casos, a atuao da justia de menores passou a desenvolver-se sob o signo do chamado direito tutelar do menor, uma forma de no-direito, a qual, ao invs de julgar, a funo do juiz passou a ser a de atuar como um bom pai de famlia.(1)

    (1) A expresso de Emlio Garca Mndez.

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    A relao de tutela pressupe a incapacidade, de um lado, e a pro-teo, do outro. Isso quer dizer, na prtica, que o preo a ser pago pela ao protetiva do tutor a incapacitao do tutelado. Em outras palavras, a criana e o adolescente, em lugar de serem considerados detentores de direitos exigveis com base na lei, tornam-se objetos de interveno jurdico-social do Estado.

    Dessa forma, carentes, abandonados, inadaptados e infratores vieram a ser encaminhados justia de menores, que passou a atuar como um pndulo, oscilando com regularidade entre a compaixo pela carncia e o abandono e a represso sistemtica inadaptao e ao delito.

    O lado mais perverso de tudo isso reside no fato de que os mecanis-mos normalmente utilizados para o controle social do delito (polcia, justia, redes de internao) passaram a ser utilizados em estratgias voltadas para o controle social da pobreza e das dificuldades pessoais e sociais de crianas e adolescentes problemticos, mas que no che-garam a cometer nenhum delito.

    Assim, para as crianas e adolescentes em situao de risco pessoal e social, fossem ou no autores de infraes penais, a aplicao das leis baseadas na Doutrina da Situao Irregular significava, de acordo com a legislao vigente nos anos 80 em todos os pases da Amrica Latina, uma nica e mesma realidade: o ciclo perverso da instituciona-lizao compulsria - apreenso, triagem, rotulao, deportao e confinamento.

    1. APREENSO: Qualquer criana ou adolescente encontrado nas ruas em situao considerada de risco pessoal e social, independente-mente de estar infringindo a lei, poderia e deveria ser apreendido e conduzido presena da autoridade responsvel, ou seja, do juiz de menores;

    2. TRIAGEM: A conduta do magistrado, nesse caso, era encaminhar o menor a um centro de triagem (observao), a fim de que ali se procedesse ao competente estudo social do caso, ao exame mdico e elaborao do laudo psicopedaggico;

    3. ROTULAO: Esses estudos terminavam, invariavelmente, com o enquadramento da criana ou do adolescente em uma das subcate-gorias da situao irregular (carente, abandonado, inadaptado ou infrator), ou seja, na sua rotulao;

    4. DEPORTAO: A deciso do juiz, tanto para infratores como para no-infratores, consistia em escolher, num mesmo conjunto de me-

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    didas, a que melhor lhe parecesse adequada ao caso. Sua opo por esta ou aquela medida no se prendia a nenhum critrio obje-tivo, nem comportava direito de defesa. Tratava-se de uma deciso baseada no prudente arbtrio de um bom pai de famlia. Como a famlia, na maioria dos estudos de caso, aparece como frgil e vulnervel em termos socioeconmicos e morais, a deciso mais comum era o afastamento do menor para longe do continente afe-tivo de seu ncleo familiar e das vinculaes socioculturais com o seu meio de origem;

    5. CONFINAMENTO: A medida de internao era aplicada indistinta-mente a menores carentes, abandonados, inadaptados e infratores. A nica diferena que estes ltimos cumpriam sua medida em estabelecimentos especializados, ou seja, dotados de maiores ndi-ces de conteno e segurana. No mais, as unidades de internao eram muito parecidas no cumprimento de seu papel de segregao consciente de uma parte da infanto-adolescncia do convvio so-cial cotidiano. Para quem conhece a rede de instituies totais para crianas e adolescentes na regio sabe que, mais do que privar de liberdade, elas freqentemente privam os internos do respeito, da dignidade, da identidade e da integridade fsica, psicolgica e mo-ral.

    O ciclo perverso da institucionalizao compulsria, alm dos danos causados ao desenvolvimento pessoal e social das crianas e adoles-centes, era antijurdico em sua essncia, uma vez que agredia fron-talmente os mais elementares princpios do direito, ao privar pessoas de liberdade sem a garantia do devido processo.

    Com esta constatao, estavam dadas as condies para uma mudan-a de paradigma. A Doutrina da Situao Irregular entrava em sua fase de caducidade histrica e, atravs da atuao tico-poltica soli-dria e construtiva de pessoas, grupos e organizaes do movimento social do mundo jurdico e das polticas pblicas comeavam a gestar um novo Direito da Infncia e da Juventude.

    Estvamos na primeira metade dos anos 80 e o Brasil, depois de um longo perodo de eclipse das instituies democrticas, comeava a entrar nos trilhos do estado de direito.

    A convocao de uma Assemblia Nacional Constituinte e o incio do processo de eliminao do entulho autoritrio de nosso panorama legal abriam uma possibilidade indita de lutar pelo direito da criana e do adolescente no campo do direito.

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    Quando pessoas e grupos comprometidos com os pontos de vista e os interesses da populao infanto-juvenil, principalmente crianas e adolescentes encontrados em circunstncias especialmente difceis, comearam a questionar a arbitrariedade e a violncia de tais prti-cas, a verdade se revelou em toda a sua crueza e brutalidade. Todos os procedimentos do ciclo perverso da institucionalizao(2) compul-sria estavam rigorosamente dentro da lei, ou seja, no se tratava de uma boa lei mal-implementada, mas de uma lei intrinsecamente m e muito bem-implementada.

    1.2. A DOUTRINA DA PROTEO INTEGRAL

    Duas dinmicas vo marcar a construo do novo Direito da Infncia e da Juventude no Brasil e nos demais pases da Amrica Latina: uma interna e outra externa regio.

    A dinmica interna consistiu no avano do processo de democrati-zao e na institucionalizao do estado democrtico de direito em quase todos os pases do continente latino. As liberdades pblicas e a abertura de espaos de participao poltica engendravam um novo cenrio, no interior do qual a crtica s polticas pblicas para a infncia e a adolescncia j podia ultrapassar os estreitos limites da crtica em ato, caracterstica da fase anterior.

    A dinmica externa regio est relacionada ao processo de irrup-o da pessoa humana na superfcie do direito internacional, com a srie de anos internacionais promovidos pelas Naes Unidas: Ano Internacional da Mulher, Ano Internacional da Criana, Ano Interna-cional da Juventude e assim por diante.

    Esse dinamismo em torno dos direitos humanos teve conseqncias importantes na regio, mesmo antes do fim dos regimes autoritrios em muitos pases.

    Isso ocorreu na medida em que esses eventos envolviam etapas pre-paratrias, com a participao dos governos e das organizaes so-ciais. Os problemas eram debatidos, as contradies, divergncias e antagonismos ficavam expostos. As delegaes nacionais, alm do setor pblico, incluam tambm representantes da sociedade civil or-ganizada. Durante o evento, alm da exposio e debate dos gran-des temas, um grande nmero de articulaes (parcerias e alianas) passava a ocorrer entre os diversos atores sociais, governamentais ou no, envolvidos com as questes em pauta.

    (2) Leia-se privao de liberdade.

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    Os produtos desse processo foram: (i) avanos na normativa internacio-nal e (ii) iniciativas conjuntas dos diversos rgos das Naes Unidas, visando tirar do papel os avanos conquistados no plano do direito.

    No plano interno de cada pas, os avanos em termos de direitos transfor-mavam-se em bandeiras de movimentos sociais e as iniciativas interna-cionais ensejavam espaos de interlocuo e, em alguns casos, de parce-rias estratgicas entre o governo e as organizaes no-governamentais.

    Enquanto os avanos da normativa internacional forneciam parmetros para o aprimoramento da legislao interna de cada pas, ou mudanas radicais na mesma, as iniciativas, traduzidas em planos de ao, abriam espaos para revises na estrutura e no funcionamento das organizaes ligadas s polticas pblicas e ao prprio movimento social.

    Foi precisamente isso que ocorreu na rea da promoo e defesa dos direitos da criana e do adolescente a partir do Ano Internacional da Criana (1979) e do Ano Internacional da Juventude (1985).

    O Ano Internacional da Criana iria ter como produto a deciso de se fazer a Conveno Internacional dos Direitos da Criana, instrumento que levaria dez anos para ser construdo e envolveria um grande deba-te na sua elaborao.

    O Ano Internacional da Juventude, por sua vez, desencadeou a produ-o de um importante conjunto de instrumentos da normativa inter-nacional, que, junto com a Conveno, passou a constituir o corpo de dispositivos configuradores da Doutrina das Naes Unidas para a Pro-teo Integral da Criana e do Adolescente. Esses instrumentos so:

    1. As Regras Mnimas das Naes Unidas para a Administrao da Jus-tia Juvenil (Regras de Beijing);

    2. As Diretrizes de Riad para a Preveno do Delito Juvenil;

    3. As Regras Mnimas das Naes Unidas para os Jovens Privados de Liberdade.

    Em 20 de novembro de 1989, a Assemblia-Geral da ONU aprovou, por unanimidade, o texto da Conveno Internacional dos Direitos da Criana. O processo de ratificao aconteceu com uma celeridade in-dita em termos de instrumentos dessa abrangncia e complexidade. Praticamente todos os pases da regio aderiram ao novo Direito da Infncia e da Juventude.

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    a partir dessa ratificao que, segundo Emilio Garca Mndez, a Am-rica Latina passou a viver no que se refere aos direitos da criana e do adolescente uma verdadeira situao de esquizofrenia jurdica.

    Isso veio a ocorrer na medida em que a ratificao da Conveno Interna-cional dos Direitos da Criana implica uma adeso Doutrina da Prote-o Integral, enquanto que a totalidade dos pases da regio continuava a manter em sua ordem jurdica interna legislaes de menores baseadas na agora, ela prpria, irregular Doutrina da Situao Irregular.

    A Doutrina da Situao Irregular a expresso jurdica do modelo lati-no-americano de apartao social, modelo este que, ao longo de nossa evoluo histrica, acabou gerando duas infncias: (i) a infncia esco-la-famlia-comunidade e (ii) a infncia trabalho-rua-delito.

    Para a primeira, as polticas sociais bsicas: sade, educao, esporte, cultura e lazer, como proposta, se no real, pelo menos, ideal de aten-dimento. Para a segunda, uma legislao de menores caracterizada pelo emprego sistemtico dos dispositivos tpicos do controle social do delito (polcia, justia e institutos de internao), para o controle social da infanto-adolescncia empobrecida.

    A Doutrina da Situao Irregular no se dirige ao conjunto da popula-o infanto-juvenil, mas apenas a um de seus segmentos: os menores em situao irregular. So menores em situao irregular: os caren-tes, os abandonados, os inadaptados e os infratores. A esses menores o juiz deve no com base em processo judicial, mas num procedimento subjetivo e sumrio no qual o magistrado atua como um bom pai de famlia aplicar indistintamente um mesmo conjunto de medidas: ad-vertncia, liberdade assistida, semiliberdade e internao.

    A grande perversidade da Doutrina da Situao Irregular reside, por um lado, na indistino de tratamento dos casos sociais daqueles que envolvem conflito de natureza jurdica e, por outro, na conduo arbi-trria (sem garantias processuais) dos casos que envolvem adolescen-tes em conflito com a lei.

    J a Doutrina da Proteo Integral no se dirige a um determi-nado segmento da populao infanto-juvenil, mas a todas as crianas e adolescentes, sem exceo alguma. Enquanto a Doutrina da Situao Irregular s se preocupa com a proteo para os carentes e abando-nados e a vigilncia para os inadaptados e infratores , a Doutrina da Proteo Integral visa assegurar todos os direitos todas as crian-as, sem exceo alguma.

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    Para os adolescentes em conflito com a lei, a Doutrina da Proteo Integral no prev nenhuma forma de assistencialismo paternalista e muito menos de arbtrio. Para esses casos, o que se estabelece um sistema de responsabilizao penal alicerado nas garantias proces-suais do estado democrtico de direito.

    Com a finalidade de analisar o contedo da Conveno, apenas por motivos de natureza didtica, ou seja, para facilitar a exposio, uti-lizar-se- aqui o texto do Art. 227 da Constituio Federal do Brasil que, segundo o professor Alessandro Barata, uma sntese muito feliz da Conveno Internacional dos Direitos da Criana.

    dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito vida, sade, alimentao, educao,

    ao lazer, profi ssionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de coloc-los a salvo de toda forma de

    negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso.

    Vamos analisar esse texto termo a termo, pois ele nos permite visu-alizar, de maneira muito clara, a letra e o esprito da Doutrina da Proteo Integral.

    dever: Temos a o fundamento de uma nova tica. Tudo que direito da criana dever das geraes adultas.

    da famlia, da sociedade e do Estado:As geraes adultas esto representadas em trs nveis: famlia, sociedade e Estado, nessa ordem e nessa hierarquia.

    assegurar:Assegurar significa garantir. Garantir tornar alguma coisa exig-vel com base na lei.

    com absoluta prioridade:Esta expresso corresponde ao princpio do interesse superior da criana inserido na Conveno.

    os direitos:No se trata, aqui, de satisfazer necessidades, mas de assegurar direitos exigveis com base na lei.

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    vida, sade e alimentao:Este elenco de direitos constitui o primeiro dos trs grandes eixos de direitos assegurados pela Conveno, o eixo da SOBREVIVNCIA.

    educao, cultura, ao lazer e profissionalizao:Este elenco de direitos constitui o segundo dos trs grandes eixos de direitos consagrados na Conveno, o eixo do DESENVOLVIMENTO PESSOAL E SOCIAL.

    liberdade, ao respeito, dignidade e convivncia fami-liar e comunitria:Este elenco de direitos integra o terceiro eixo dos direitos estabeleci-dos na Conveno, o eixo da INTEGRIDADE FSICA, PSICOLGICA E MORAL.

    alm de coloc-los a salvo:Esta expresso deixa claro que, alm de promover o benefcio, a Conven-o manda prevenir e combater o malefcio perpetrado contra a criana e o adolescente. Esse malefcio se configura num conjunto de circuns-tncias especialmente difceis ou situaes de risco pessoal e social em relao s quais a criana e o adolescente devem ser colocados a salvo.

    de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso:Aqui temos o elenco amplo das situaes de risco pessoal e social. Quando tais situaes se configuram, a Conveno determina a ado-o de medidas especiais de proteo, ou seja, do desenvolvimento de uma poltica de proteo especial.

    Por uma srie de circunstncias, que no vale a pena mencionar neste estudo, o Brasil se adiantou ao conjunto da regio no processo de ade-quao substantiva da legislao nacional letra e ao esprito da Con-veno Internacional dos Direitos da Criana. O estudo e a anlise do caso brasileiro, no entanto, vieram a servir de inspirao para a adoo de processos de contedo e natureza semelhantes em outros pases-ir-mos da Amrica Latina.

    A estratgia adotada no Brasil foi de iniciativa do movimento social em favor da criana, movimento este fortemente comprometido com a cau-sa da promoo e defesa dos direitos dos meninos de rua. O Movimento Nacional Meninos e Meninas de Rua e a Pastoral do Menor so dois exemplos de atuao nessa linha.

    Os representantes da sociedade civil, no entanto, logo perceberam que, sozinhos, no seriam capazes de dar conta de um processo de tamanha

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    complexidade, amplitude e profundidade. Adequar substantivamen-te a legislao nacional Conveno exigia o concurso de pessoas do mundo jurdico e das polticas pbicas. Sem o conhecimento e a competncia desses setores muito difcil construir-se um bom orde-namento jurdico.

    Assim, o processo de reordenamento institucional envolveu trs cate-gorias de atores sociais:

    1. Representantes do movimento social em favor da criana;

    2. Representantes do mundo jurdico (juzes, promotores, advogados e professores de direito);

    3. Representantes das polticas pblicas, ou seja, dirigentes e tcnicos com experincia na rea.

    Ao optar por uma aliana com setores das polticas pblicas e do mundo jurdico para atuar na transformao do panorama legal, o movimento social em favor da criana, que tinha como ncleo os segmentos historicamente ligados ao enfoque meninos e meninas de rua, d um passo decisivo no sentido de romper com a tica e a forma de ao que, at ento, os havia caracterizado: (i) uma tica que no passava pela perspectiva jurdica e (ii) uma forma de ao limitada s alternativas comunitrias de atendimento.

    A substituio das aes alternativas por um formato alterativo (produtor de alteraes, de transformaes) j o primeiro passo na superao do enfoque (viso + ao), que caracterizou o movimento social em favor das crianas e adolescentes na primeira etapa de sua evoluo. Agora j no mais possvel lidar com essas crianas e adolescentes ignorando a sua condio jurdica e atuando de costas para as polticas pblicas.

    Agora, com o advento da Doutrina da Proteo Integral, o olhar pas-sa necessariamente pela perspectiva do direito e a ao chamada a confrontar-se com o desafio de atuar sobre as polticas pblicas no sentido de ampliar-lhes a cobertura e melhorar-lhes a qualidade, de modo a torn-las realmente capazes de incluir o conjunto da popula-o infanto-juvenil.

    Para que isso ocorra, j no basta limitar a postura alterativa s mu-danas no panorama legal. necessrio ir mais longe. necessrio atuar tambm no sentido de promover um amplo e profundo reorde-

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    namento institucional da rea de ateno infncia e uma substan-cial melhoria das formas de ateno direta, mudando as maneiras de entender e agir de todos os que atuam com as crianas e adolescentes no dia-a-dia.

    Faamos, pois, um quadro comparativo entre a Doutrina da Situao Irregular e a Doutrina da Proteo Integral, tendo como base o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), o velho Cdigo de Menores e a sua irm siamesa, a Poltica Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM).

    CDIGO DE MENORES E PNBEMDoutrina da Situao Irregular

    ESTATUTO DA CRIANA E DO ADOLESCENTEDoutrina da Proteo Integral

    Destina-se apenas aos menores em situao irregular: carentes, abandonados, inadaptados e infratores.

    Trata apenas da proteo (carentes e abandonados) e da vigilncia (inadaptados e infratores).

    Usa o sistema de administrao da justia para fazer o controle social da pobreza.

    V o menor como objeto de interveno jurdico-social do Estado.

    centralizador e autoritrio.

    Foi elaborado no mundo jurdico, sem audincia da sociedade.

    Segrega e discrimina os menores em situao irregular.

    No distingue os casos sociais (pobreza) daqueles com implicao de natureza jurdica (delito).

    Dirige-se a todas as crianas e adolescentes, sem exceo alguma.

    Trata da proteo integral, isto , da sobrevivncia, do desenvolvimento e da integridade de todas as crianas e adolescentes.

    Usa o sistema de justia para o controle social do delito e cria mecanismos de exigibilidade para os direitos individuais e coletivos da populao infanto-juvenil.

    V a criana e o adolescente como sujeitos de direitos exigveis com base na lei.

    descentralizador e aberto participao da cidadania por meio de conselhos deliberativos e paritrios.

    Foi elaborado de forma tripartite: movimentos sociais, mundo jurdico e polticas pblicas.

    Resgata direitos, responsabiliza e integra adolescentes em conflito com a lei.

    Estabelece uma clara distino entre os casos sociais e aqueles com implicaes de natureza jurdica, destinando os primeiros aos Conselhos Tutelares e os ltimos somente Justia da Infncia e da Juventude.

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    A POLTICA DE ATENDIMENTO NO MARCO DA DOU-TRINA DA PROTEO INTEGRAL

    Se observarmos as estratgias de ateno necessrias ao pleno desenvolvimento da proteo integral s crianas e adolescentes, no marco da Conveno Internacional dos Direitos da Criana, da Constituio Federal e do ECA, veremos que as polticas de ateno direta podem ser divididas em quatro grandes grupos:

    1. Polticas Sociais Bsicas: So aquelas cujos bens e servios repassados so considerados

    direito de todos e dever do Estado. Devem ter, portanto, uma cobertura universal (Ex.: educao e sade);

    2. Polticas de Assistncia Social: No so consideradas direito de todos e dever do Estado, no

    sendo, portanto, universais. As polticas de assistncia social dirigem-se a pessoas, grupos ou comunidades que se encon-trem em estado de necessidade, ou seja, incapacitados, temporria ou permanentemente, de prover por si mesmos as suas necessidades bsicas (Ex.: renda mnima, cesta bsica, al-bergues etc).

    3. Polticas de Proteo Especial: As polticas de proteo especial destinam-se s pessoas ou gru-

    pos que estejam em situao de risco pessoal ou social, ou seja, que esto ameaadas em sua integridade fsica, psicolgica ou moral em razo de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade ou opresso (Ex.: programas de atendi-mento a crianas vitimizadas, dependentes de drogas, adoles-centes prostitudos, adolescentes infratores).

    4. Polticas de Garantias: As polticas de garantias de direitos so constitudas pelos con-

    juntos de mecanismos jurdicos e institucionais desti-nados a pr para funcionar as conquistas do estado democrtico em favor das pessoas e grupos ameaados ou violados em seus direitos (Ex.: Conselho Tutelar, Ministrio Pblico, Centro de Defesa de Direitos).

    So categorias de crianas e adolescentes credores de medidas es-peciais de proteo (proteo especial), no marco da Conveno, as que estiverem ameaadas ou violadas em sua integridade fsica, psicolgica ou moral. Alguns exemplos:

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    a) Crianas vtimas de abandono e trfico;

    b) Crianas vtimas de abuso, negligncia e maus-tratos, na famlia ou nas instituies;

    c) Crianas vtimas de trabalho precoce, abusivo e explorador;

    d) Crianas e adolescentes que fazem das ruas seu espao de luta pela sobrevivncia e, at mesmo, de moradia;

    e) Crianas e adolescentes vtimas de prostituio e outras formas de explorao sexual;

    f) Crianas e adolescentes envolvidos no uso e trfico de drogas;

    g) Adolescentes em conflito com a lei.

    Nessa perspectiva, proteo integral assegurar a todas as crianas e adolescentes, sem exceo alguma, a sobrevivncia, o desenvol-vimento pessoal e social e a integridade fsica, psicolgica e moral, alm de prover medidas especiais de proteo aos que se encontrem em circunstncias particularmente difceis. Para isso, fazem-se neces-srias a complementaridade e a convergncia das aes nas polticas sociais bsicas, na assistncia social, na proteo especial e nas pol-ticas de garantias de direitos.

    O adolescente autor de ato infracional encontra-se em circunstncias especialmente difceis, ou seja, em situao de risco pessoal e social. Por isso, os programas que implementam as medidas socioeducativas so considerados programas de proteo especial.

    No campo do atendimento ao adolescente autor de ato infracional, o grande avano da Doutrina da Proteo Integral, em relao Dou-trina da Situao Irregular, foi introduzir na Justia da Infncia e da Juventude os princpios universais do direito. Segundo Emlio Garca Mndez, isso equivaleria a dizer que a Revoluo Francesa chegou rea da infncia com duzentos anos de atraso.

    No quadro que se segue, de autoria de Rita Maxera, podemos vi-sualizar a localizao dos dispositivos que introduzem esses princ-pios na Conveno Internacional dos Direitos da Criana, nas Regras Mnimas das Naes Unidas para Administrao da Justia Juvenil (Regras de Beijing) e no ECA (Lei 8.069/90) trs instrumentos fun-damentais da Doutrina da Proteo Integral.

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    PRINCPIOS UNIVERSAIS DO DIREITO NA CONVENO INTERNACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANA, NAS REGRAS DE BEIJING E NO ESTATUTO DA CRIANA E DO ADOLESCENTE

    PRINCPIOS JURDICOS BSICOS CONVENO INTERNACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANA

    REGRAS DE BEIJING

    ESTATUTO DA CRIANA E DO ADOLESCENTE

    1. Princpio da Humanidade: Baseia-se no princpio da responsabilidade social do Estado e na obrigao de assistncia para o pleno processo de ressocializao do detento. Deriva, daqui, a proibio de castigos cruis, desumanos e degradantes.

    Art. 37Incisos: a e c

    Art. 11.4.

    Art. 111 - IIIArt. 124III - 206

    2. Princpio da Legalidade: Traduz-se na proibio de existncia de delito e pena sem prvia existncia de lei anterior que o tipifique.

    Art. 37Inciso bArt. 40Inciso 2

    Art. 22.2. bArt. 171b

    Arts. 198-137

    3. Princpio da Jurisdicionalidade: Pressupe existncia dos requisitos essenciais da jurisdio: juiz natural, independncia e imparcialidade do rgo.

    Art. 37Inciso dArt. 40Inciso 2

    Art. 14Inciso 14.1

    Art. 110

    4. Princpio do Contraditrio: Pressupe uma definio dos papis processuais (juiz, defensor, ministrio pblico).

    Art. 40Inciso 2b

    Art. 7Inciso 7.1

    Art. 143

    5. Princpio da Inviolabilidade da Defesa: Pressupe a presena de um defensor tcnico em todos os atos processuais, desde o momento da imputao at a sentena final.

    Art. 37Inciso dArt. 40Inciso 3

    Art. 7Inciso 7.1Art. 15Inciso 15.1

    Arts. 15 - 16- 17

    6. Princpio da Impugnao: Pressupe possibilidade de recurso instncia superior.

    Art. 37Inciso dArt. 40Inciso 2b e V

    Art. 7Inciso 7,1

    Arts. 110-116

    7. Princpio da Legalidade do Procedimento: O procedimento processual deve estar fixado por lei, e no dependente da descricionalidade do rgo jurisdicional.

    Art. 40Inciso 2 b III

    Art. 17Inciso 17.4

    Art. 111

    8. Princpio da Publicidade do Processo: Refere-se possibilidade dos sujeitos processuais de terem acesso s atas do processo. Refere-se tambm proteo da identidade das crianas e adolescentes para evitar-se o estigma.

    Artigo 40Inciso 2b VII

    Artigo 88.2

    Arts. 110-111

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    1.3. O PARADIGMA DA AMBIGIDADE

    As formas pouco desenvolvidas de relao sociedade-estado ainda vigentes no Brasil costumam suscitar nesse campo atitudes que pare-cem inspiradas por algum tipo de pensamento mgico. Um exemplo disso ocorreu no incio da chamada Nova Repblica, quando a pala-vra j extrapolou o contexto da luta por eleies diretas e passou a fazer-se presente em todo e qualquer tipo de manifestao.

    Assim, naquele perodo de efervescncia democrtica, era comum ver esse advrbio associado aos mais variados pleitos: Reforma Agrria J, Redistribuio de Renda J, Educao de Qualidade J, Sade J e assim por adiante. Na prtica, o que ocorreu foi que o advrbio da Nova Repblica rapidamente banalizou-se e hoje ningum mais o emprega na construo de lemas ou palavras de ordem, no campo das lutas poltico-sociais.

    Relembro esses fatos para refletir sobre alguns traos da nossa cultu-ra que, a meu ver, esto na raiz do surgimento do que eu chamo de o terceiro paradigma ou paradigma da ambigidade. Esses traos so o imediatismo e uma certa tendncia a empreender mudanas apenas no campo semntico e pensar que, com isso, a realidade est sendo, de fato, mudada. o que o Dr. Oriz de Oliveira, um grande estudioso, lutador pelo novo direito da infncia e da juventude do Brasil costu-ma chamar de nominalismo boboca.

    Quando o Estatuto foi sancionado, eu costumava dizer em minhas palestras e continuo fazendo-o at hoje que a sua implantao no uma corrida de cem metros rasos mas sim uma longa, exigente e conturbada maratona. Ela no depende apenas das mudanas no panorama legal. Esse um processo que, para efetivar-se de forma plena, requer um corajoso e amplo reordenamento institucional e uma melhoria efetiva nas formas de ateno direta, a partir de seus fundamentos.

    Edson Sda, o nosso maior e mais competente implantador do ECA, divulgando-o de maneira sistemtica por todo o Brasil e tambm pe-los pases-irmos da Amrica Latina, quando algum indaga sobre como seria o day after, o dia seguinte entrada em vigor da nova lei, foi muito claro a esse respeito. Ele disse, com todas as letras, que no estvamos diante de um day after, mas de uma dcada after. No deveramos pensar no dia seguinte, mas na dcada seguinte, pois quase tudo ainda estava por fazer.

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    O terceiro paradigma ou paradigma da ambigidade foi a expresso que eu criei para designar a posio das pessoas que, de-cepcionadas pelo fato de o Estatuto no ter transfigurado de um dia para outro a realidade da populao infanto-juvenil brasileira, caem na frustrao e, diante de seus detratores, em vez de defend-lo, co-meam a cair no velho ardil da adaptao da lei realidade, passan-do a interpret-la de uma forma que eu chamaria no de neoliberal, como moda nomear a tudo e a todos nestes tempos de grandes mudanas e de grandes perplexidades, mas de neocnica.

    Chamo essa tendncia de neocnica porque seus defensores se di-zem favorveis ao Estatuto e Conveno Internacional dos Direitos da Criana, no discurso. Mas, no andamento efetivo dos aconteci-mentos, abrem as portas ao retorno das prticas e mentalidades ca-ractersticas da doutrina da situao irregular. So posies do tipo 2+2=4, mas....

    Os defensores do paradigma da ambigidade so contra o trabalho infantil, mas compreendem que as famlias precisam do trabalho da criana e, por isso, em nome do realismo, propem a sua humaniza-o, isto , a eliminao apenas das formas de explorao da mo-de-obra da criana consideradas intolerveis.

    Em relao s crianas e adolescentes que fazem das ruas seu espao de luta pela vida e at mesmo de moradia, os defensores do para-digma da ambigidade continuam a defender um trabalho desen-volvido de costas para a escola e olhando a famlia pelo retrovisor, em nome de uma proteo pretensamente baseada no Estatuto e na Conveno.

    Outra prtica comum dos defensores do terceiro paradigma , em nome da salvao moral e social das crianas pobres, promover o fomento das medidas de guarda, tutela e adoo (famlia substituta), como resposta social situao das crianas em situao de risco, sem perceber que, antes de fazer isso, preciso esgotar todas as al-ternativas na rea da orientao e do apoio sociofamiliar.

    O fomento a programas alternativos, e no a programas complemen-tares escola, outra prtica comum entre os defensores do no-pro-clamado paradigma da ambigidade. Para eles, diante das dificulda-des de a escola trabalhar com as crianas e adolescentes em situao de risco pessoal e social, no se deve persistir na luta pela melhoria da escola e, sim, criar escolas especiais ou alternativas escola para esses meninos e meninas.

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    Diante das dificuldades polticas e tcnicas dos conselhos de direitos e dos conselhos tutelares, os defensores do paradigma da ambigida-de apressam-se em decretar-lhes a falncia e a inutilidade, ignorando os vcios de nossas culturas poltica (clientelismo e fisiologia), ad-ministrativa (burocracia e corporativismo), tcnica (auto-suficincia e formalismo) e cidad (passividade e conformismo), que impedem que essas leis, efetivamente, saiam do papel.

    No que se refere ao adolescente autor de ato infracional, o paradig-ma da ambigidade repugna a idia da sua responsabilizao penal e, com isso, acaba respaldando a viso dos defensores do velho pa-radigma de que o menor no pode ser julgado e de que as medidas socioeducativas no constituem uma forma de resposta social peda-gogicamente punitiva de um delito juvenil.

    Esse tipo de interpretao leva a confuso no senso comum, como ve-remos mais tarde, entre imputabilidade penal e impunidade, fazendo com que o Estatuto seja visto como uma lei facilitadora e promotora do cometimento de delitos por parte dos adolescentes.

    Como se v, tendo como aliados os defensores do paradigma da ambigidade, o Estatuto praticamente no precisa ter inimigos. In-felizmente, os ambguos no proclamam essa condio. Essa postura facilita o seu trabalho e dificulta aos defensores da Doutrina da Pro-teo Integral identific-los e combat-los, pois, teoricamente, eles se julgam amigos e at mesmo defensores do ECA.

    Essas pessoas costumam considerar a questo das garantias proces-suais e da nfase nas polticas pblicas um jurisdicismo desprovido de eficcia real. Tal convico leva-as a assumir uma postura prag-mtico-utilitria diante do novo direito, ao ignorar o vnculo entre a condio jurdica e a condio material da criana e do adolescente.

    Enquanto os que defendemos o Estatuto empenhamo-nos no comba-te aos defensores da Doutrina da Situao Irregular, como que intro-duzidos por um Cavalo de Tria, os defensores do terceiro paradigma desembarcam no interior de nossas muralhas, falando em nome do Estatuto e agindo contra ele, na prtica.

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    Todos os profissionais que trabalham em unidades de internao so responsveis por cumprir e fazer cumprir a lei. Sem excees. Todos esses profissionais devem ser preparados para atuar como educado-res independentemente de suas funes especficas e para incor-porar no seu dia-a-dia a dimenso jurdica do trabalho educativo.

    No custa reafirmar: a medida socioeducativa tem contedo predo-minantemente pedaggico, mas sua natureza sancionatria. Ela uma medida imposta, uma medida coercitiva quanto ao delito prati-cado por adolescente, e decorre de uma deciso judicial. Uma medi-da que deve ser aplicada e cumprida com o estrito respeito s leis.

    Todas as medidas socioeducativas, da mais branda (advertncia) mais severa (internao), tm essa natureza sancionatria e esse contedo pedaggico. E todos os educadores de uma comunidade socioeducativa devem estar preparados para o enfrentamento dessas duas dimenses do seu trabalho. Um primeiro passo para isso uma formao legalista bsica: conhecer os dispositivos legais e sua apli-cao. Mas preciso ir alm: o educador precisa ser formado para, diante do trabalho de controle social do delito, atuar para garantir os direitos fundamentais do adolescente autor de ato infracional e a segurana do cidado. preciso formar educadores com uma atitude legalista e com o conhecimento da circunstncia e da relevncia so-cial de sua atuao.

    Um primeiro passo nessa formao legalista bsica o conhecimento da lei, das suas determinaes e dos seus fundamentos. O que diz a lei quando trata da aplicao e do cumprimento da medida socioedu-cativa de internao?

    2. A MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAO:O que determina a Lei

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    2.1. ART. 121 DO ECA, COMENTADO

    Art. 121 - A internao constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princpios de brevidade, excepcionalidade e respeito condio peculiar de pessoa em desenvolvimento. Pargrafo 1- Ser permitida a realizao de atividades externas, a critrio da equipe tcnica da entidade, salvo expressa determina-o judicial em contrrio.Pargrafo 2- A medida no comporta prazo determinado, deven-do sua manuteno ser reavaliada, mediante deciso fundamenta-da, no mximo a cada seis meses.Pargrafo 3- Em nenhuma hiptese o perodo mximo de inter-nao exceder a trs anos.Pargrafo 4- Atingido o limite estabelecido no pargrafo anterior, o adolescente dever ser liberado, colocado em regime de semili-berdade ou de liberdade assistida.Pargrafo 5- A liberao ser compulsria aos vinte e um anos de idade.Pargrafo 6- Em qualquer hiptese a desinternao ser precedi-da de autorizao judicial, ouvido o Ministrio Pblico.

    Pontos fundamentais do Art. 121 do ECA devem ser clareados, com-preendidos e aplicados com rigor:

    A internao constitui medida privativa de liberdade.

    O que privar de liberdade? privar do direito de ir e vir e subme-ter o adolescente autor de ato infracional s regras de uma unida-de de internao, que devem estar dentro dos limites fixados pela lei. Isso um grande avano no Brasil, que convive com situaes absurdas e ilegais: a internao privando o adolescente no apenas da liberdade, mas do respeito, da dignidade, da identidade, da privacidade e de muitos dos seus direitos fundamentais.

    A internao est sujeita aos princpios de brevidade, ex-cepcionalidade e respeito condio peculiar de pessoa em desenvolvimento.

    preciso ateno com esses princpios que condicionam e orientam a aplicao da medida privativa de liberdade.

    O princpio de brevidade: o limite cronolgico. O trabalho socioeducativo competente deve abreviar o tempo de privao de liberdade. Deve buscar gerar resultados capazes de tornar o tempo de internao breve, possibilitando ao adolescente com sua par-

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    ticipao e esforo condies de progresso para outra medida socioeducativa menos severa e institucionalizante;

    O princpio de excepcionalidade: o limite lgico no proces-so decisrio acerca da aplicao da medida socioeducativa de in-ternao, que deve ser imposta em ltimo caso e diante de circuns-tncias efetivamente graves, seja para a segurana e a educao do adolescente autor de ato infracional, seja para a segurana social;

    O princpio do respeito condio peculiar de pessoa em desenvolvimento: o limite ontolgico. A medida socio-educativa uma sano que foi aplicada a uma pessoa, a um ser humano em desenvolvimento. Uma pessoa que vive a travessia da infncia para a vida adulta e busca construir sua identidade pesso-al e social e o seu projeto de vida. preciso ver o adolescente que, diante de circunstncias de sua vida, cometeu um ato infracional. No se trata de olhar o infrator que, circunstancialmente, um adolescente.

    A internao com e sem atividades externas.

    A permisso para que o adolescente privado de liberdade realize atividades externas, salvo expressa determinao judicial em con-trrio, a concretizao do princpio da incompletude institucio-nal no internato, que busca torn-lo mais arejado e permevel s contribuies externas e tem o sentido de contrabalanar e impe-dir a institucionalizao total do educando.

    As atividades externas a critrio da equipe tcnica da unidade de internao devem ser adequadas ao desenvolvimento pessoal e so-cial do adolescente, planejadas e realizadas com o acompanhamen-to e apoio de educadores ou pessoas designadas para esse trabalho.

    Na hiptese de internao sem atividades externas, vale a pena destacar aqui o comentrio do Dr. Joo Batista Costa Saraiva, no seu livro Adolescente e Ato Infracional Garantias Processuais e Me-didas Socioeducativas:

    ... a submisso a atendimento do adolescente privado de liberdade apenas no interior da unidade de internamento sem atividades externas supe que na sentena judicial que determinou o

    internamento tenha o Juiz prolator da deciso expressamente determinado, de forma justifi cada e motivada, a impossibilidade de o jovem privado de liberdade exercer estas atividades externas.

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    A internao sem prazo determinado e reavaliado perio-dicamente.

    A medida socioeducativa de internao no comporta prazo de-terminado, com observncia de sua durao mxima de 03 (trs) anos e o limite de 21 (vinte e um) anos de idade do jovem, quando a desinternao ser compulsria.

    A reavaliao da medida de internao obrigatria e deve ocorrer no mximo a cada seis meses (e no a cada seis meses, no mnimo) . O importante destacar que, diante do desenvolvimento do proces-so educativo de cada educando, a medida pode ser reavaliada aps dois, trs ou quatro meses. Seis meses o prazo mximo, o limite.

    A inexistncia de prazo predeterminado e a reavaliao trazem para o processo socioeducativo o mecanismo da reciprocida-de, fazendo com que a brevidade da internao tenha uma relao direta com a gravidade da infrao cometida, com a conduta do educando e com a capacidade demonstrada por ele, no dia-a-dia, de responder satisfatoriamente abordagem socioeducativa, com nfase nos dois ltimos pontos.

    Em qualquer hiptese, a desinternao ser precedida de autorizao judicial, ouvido o Ministrio Pblico.

    Educadores tcnicos, dirigentes de unidades, supervisores no tm o poder de desinternar. A formao legalista bsica d ao educador uma capacidade maior de trabalho socioeducativo, com discernimento da dimenso jurdica na ao educativa. Isso, con-tudo, no o autoriza a extrapolar suas competncias e colidir com a lei.

    2.2. ART. 122 DO ECA, COMENTADO

    Art. 122 - A medida de internao s poder ser aplicada quando: I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaa ou violncia pessoa;II - por reiterao no cometimento de outras infraes graves;III - por descumprimento reiterado e injustificvel da medida an-teriormente imposta.Pargrafo 1- O prazo de internao na hiptese do inciso III deste artigo no poder ser superior a trs meses.Pargrafo 2- Em nenhuma hiptese ser aplicada a internao, havendo outra medida adequada.

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    Um dos maiores avanos introduzidos pelo ECA no panorama legal brasileiro e na poltica de ateno infncia e juventude foi a de-finio da internao como privao de liberdade e como uma me-dida socioeducativa aplicvel exclusivamente ao adolescente autor de ato infracional.

    Antes do ECA, na vigncia do antigo Cdigo de Menores e da Po-ltica Nacional do Bem-Estar do Menor, quase a totalidade das determinaes judiciais para encaminhamento dos menores s FEBEMs terminava com uma frase bastante ilustrativa da menta-lidade predominante naquela poca: interne-se, at comple-tar dezoito anos. A internao era medida de aplicao ampla, geral e irrestrita, que alcanava todas as crianas e adolescen-tes considerados em situao irregular: carentes, abandonados, inadaptados e infratores.

    Hoje, o quadro totalmente diferente e o Art. 122 do ECA define os critrios legais para aplicao da medida de internao.

    No caso de ato infracional cometido mediante grave ameaa ou violncia pessoa:

    Vale repetir: grave ameaa ou violncia contra a Pessoa. Ou seja: a internao uma medida excepcional e reservada para casos especficos e bem caracterizados. A modalidade de ato infracio-nal que requer sua aplicao est definida, ficando as demais modalidades de atos infracionais sujeitas aplicao das outras medidas socioeducativas previstas na lei.

    No caso de reiterao no cometimento de outras infra-es graves:

    Tambm no custa destacar novamente: reiterao, repetio do cometimento de outras infraes graves.

    O que est caracterizado, aqui, o caso do adolescente que no se mostra dissuadido da prtica de atos infracionais mais graves, que persiste no cometimento de tais atos.

    Novamente, o Dr. Joo Batista Costa Saraiva, no seu j citado livro, lana luzes sobre o assunto em pauta:

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    A respeito da reiterao, faz-se oportuno destacar que este conceito no se confunde com o de reincidncia, que supe a realizao de novo ato infracional aps o trnsito em julgado de deciso anterior. Por este entendimento se extrai que reiterao se revela um conceito jurdico de maior abrangncia que o de reincidncia, alcanando aqueles casos

    que a doutrina penal defi ne em relao ao imputvel como tecnicamente primrio.

    No caso de descumprimento reiterado e injustificvel da medida anteriormente imposta:

    Aqui, a aplicao da medida de internao dirigida ao adoles-cente que se mostra incapaz de cumprir uma outra medida socio-educativa que lhe foi anteriormente imposta. Sem justificativa e de maneira repetida, ele descumpre uma deciso judicial. A inter-nao surge, ento, como uma sano, uma regresso de medida mais branda para medida mais severa, com o objetivo de levar o adolescente a retomar as metas e as regras da medida anterior-mente imposta e descumprida. Nesse caso, conforme previsto no pargrafo 10 do Art. 122 do ECA, o prazo de internao no pode-r ser superior a trs meses.

    O princpio da excepcionalidade reafirmado:

    O Pargrafo 20 do Art. 122 do ECA reafirma o princpio da excep-cionalidade a aplicao da medida de internao somente diante de casos efetivamente graves e como ltima alternativa. Importan-te, aqui, destacar o bvio. A medida socioeducativa de internao no nica e no o centro de tudo. Ela integra um conjunto de medidas socioeducativas, que deve ser estruturado da melhor ma-neira possvel e funcionar articuladamente e com a precedncia da aplicao das demais medidas socioeducativas em relao inter-nao, sempre que essa for a soluo mais adequada.

    2.3. ART. 123 DO ECA, COMENTADO

    Art. 123 - A internao dever ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separao por critrios de idade, compleio fsica e gravidade da infrao. Pargrafo nico - Durante o perodo de internao, inclusive pro-visria, sero obrigatrias atividades pedaggicas.

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    Entidade exclusiva para adolescentes:

    A internao do adolescente, pessoa em condio peculiar de de-senvolvimento, deve, obrigatoriamente, acontecer em estabeleci-mento distinto do destinado privao de liberdade de adultos.

    Em local distinto daquele destinado ao abrigo:

    Internao medida socioeducativa, implica a privao de liber-dade e a adoo de medidas adequadas de conteno e seguran-a. Abrigo medida protetiva, provisria e excepcional, utilizvel como forma de transio para a colocao em famlia substituta, no implicando privao de liberdade. Nada mais correto que os adolescentes aos quais se aplicam essas duas medidas to distin-tas (em natureza e funcionamento) permaneam em estabeleci-mentos distintos.

    Obedecida rigorosa separao por critrios de idade, compleio e gravidade da infrao:

    Na estruturao de um sistema de atendimento ao adolescen-te autor de ato infracional, este um grande desafio: evitar a promiscuidade e garantir atendimentos adequados para ado-lescentes com trajetrias, idades, atos infracionais e estruturas fsicas distintas. A lei determina rigorosa separao, que deve repercutir no nmero de unidades de atendimento, no tamanho dessas unidades, nas suas estruturas de dormitrios e postos de trabalho. Ou seja, em toda a dinmica de aplicao da medida de internao.

    Durante a internao, inclusive a provisria, as ativida-des pedaggicas so obrigatrias:

    Afirma-se aqui, mais uma vez, o contedo prevalentemente peda-ggico das medidas socioeducativas. Todo atendimento ao ado-lescente autor de ato infracional sem perder de vista seu car-ter sancionatrio e as medidas de segurana e conteno deve, obrigatoriamente, ter a marca da educao e contribuir para o desenvolvimento pessoal e social do adolescente.

    Pessoa em condio peculiar de desenvolvimento, o adolescente autor de ato infracional credor, em relao ao Estado, de con-dies de atendimento que lhe permitam retomar a trilha normal do seu crescimento como pessoa, cidado e futuro trabalhador.

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    2.4. ART. 124 DO ECA, COMENTADO

    Art. 124 - So direitos do adolescente privado de liberdade, entre outros, os seguintes: I - entrevistar-se pessoalmente com o representante do Ministrio Pblico;II - peticionar diretamente a qualquer autoridade;III - avistar-se reservadamente com seu defensor;IV - ser informado de sua situao processual, sempre que solicitada;V - ser tratado com respeito e dignidade;VI - permanecer internado na mesma localidade ou naquela mais prxima ao domiclio de seus pais ou responsvel;VII - receber visitas, ao menos semanalmente;VIII - corresponder-se com seus familiares e amigos;IX - ter acesso aos objetos necessrios higiene e asseio pessoal;X - habitar alojamento em condies adequadas de higiene e sa-lubridade;XI - receber escolarizao e profissionalizao;XII - realizar atividades culturais, esportivas e de lazer;XIII - ter acesso aos meios de comunicao social;XIV - receber assistncia religiosa, segundo a sua crena, e desde que assim o deseje;XV - manter a posse de seus objetos pessoais e dispor de local segu-ro para guard-los, recebendo comprovante daqueles porventura depositados em poder da entidade;XVI - receber, quando de sua desinternao, os documentos pesso-ais indispensveis vida em sociedade.Pargrafo 1- Em nenhum caso haver incomunicabilidade.Pargrafo 2- A autoridade judiciria poder suspender tempo-rariamente a visita, inclusive de pais ou responsvel, se existirem motivos srios e fundados de sua prejudicialidade aos interesses do adolescente.

    Emilio Garca Mndez, jurista argentino, estudioso e especialista do direito da criana e do adolescente, costuma afirmar que, com o Estatuto da Criana e do Adolescente, as conquistas da Revoluo Francesa, com duzentos anos de atraso, chegaram aos adolescentes privados de liberdade. Direitos que, h muito tempo, eram assegura-dos aos adultos privados de liberdade s agora alcanaram os adoles-centes nessa mesma situao.

    O adolescente autor de ato infracional um sujeito de direitos. O Art. 124 do ECA estabelece os direitos do adolescente privado de liberda-de, que podem ser divididos em trs grupos:

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    Primeiro Grupo - so os direitos do adolescente diante da Justia da Infncia e da Juventude:

    Entrevistar-se pessoalmente com o representante do Ministrio Pblico.

    Peticionar diretamente a qualquer autoridade.

    Avistar-se reservadamente com seu defensor.

    Ser informado de sua situao processual sempre que solicitar.

    As garantias processuais asseguradas no Art. 111 do ECA acompanham o adolescente na internao e devem ser garantidas pela equipe da uni-dade de atendimento.

    Segundo Grupo - so os direitos do adolescente perante a direo e a equipe da unidade de internao, no dia-a-dia do atendimento socioeducativo:

    Ser tratado com respeito e dignidade.

    Ter acesso aos objetos necessrios higiene e ao asseio pessoal.

    Habitar alojamento em condies adequadas de higiene e salubridade.

    Receber escolarizao e profissionalizao.

    Receber assistncia religiosa, segundo sua crena, e desde que assim o deseje.

    Realizar atividades culturais, esportivas e de lazer.

    Manter a posse de seus objetos pessoais e dispor de local seguro para guard-los.

    Receber, quando da desinternao, os documentos pessoais indispen-sveis vida em sociedade.

    No interior da unidade de internao, os direitos ao respeito e digni-dade, ao desenvolvimento pessoal e social, sobrevivncia, integri-dade, individualidade devem ser garantidos pelos educadores e por todos os membros da comunidade socioeducativa.

    Terceiro Grupo - so os direitos do adolescente em relao aos seus vnculos com a famlia e a comunidade:

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    Permanecer internado na mesma localidade ou naquela mais prxi-ma ao domiclio de seus pais ou responsveis.

    Receber visitas, ao menos, semanalmente.

    Corresponder-se com seus familiares e amigos.

    Ter acesso aos meios de comunicao social.

    Dois pontos devem ser destacados diante desse elenco de direitos: (i) o adolescente, em nenhum caso, poder ficar incomunicvel. A au-toridade judiciria poder, temporariamente, suspender o direito de visitas, inclusive dos pais ou responsvel, se existirem motivos srios e fundados que atestem o prejuzo das visitas para o inte-resse superior do adolescente: segurana, desenvolvimento pessoal e social, integridade fsica, psicolgica e moral; (ii) o equilbrio da postura do legislador, que, ao trazer as regras do estado democrti-co de direito para o mbito do atendimento ao adolescente privado (proibio da incomunicabilidade), estabelece, ao mesmo tempo, a possibilidade de restrio do direito de visitas. Trata-se, pois, de com-patibilizar o mximo de garantia com aquela dose de contenso e se-gurana indispensvel ao funcionamento do sistema socioeducativo.

    2.5. ART. 125 DO ECA, COMENTADO

    Art. 125 - dever do Estado zelar pela integridade fsica e mental dos internos, cabendo-lhe adotar as medidas adequadas de conten-o e segurana.

    dever do Estado zelar pela integridade fsica e mental dos internos:

    A integridade fsica, psicolgica e moral do adolescente autor de ato infracional um direito constitucional. um dever inarredvel do Estado e dos seus agentes responsveis pela implementao da medida socioeducativa de internao.

    Adotar medidas adequadas de conteno e segurana:

    A adoo de medidas de conteno e segurana um trabalho vital para assegurar direitos fundamentais do adolescente autor de ato infracional e tambm para garantir segurana a todos os cidados. preciso olhar a aplicao dessas medidas sob essas duas pticas.

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    Com ateno para a garantia de integridade fsica e mental dos internos, trs nveis de cuidados devem ser observados:

    1. O relacionamento do adolescente com a equipe (pessoal dirigen-te, tcnico e operativo) de educadores da unidade. O despreparo dos educadores, a falta de regulamentos claros, as tenses do dia-a-dia do atendimento e outras limitaes histricas podem gerar situaes de ameaa ou violao da integridade fsica e mental do adolescente. preciso superar essas dificuldades e garantir quali-dade no atendimento. Regulamentos claros e precisos, no que diz respeito s medidas de conteno e segurana, equipe treinada e motivada, e superviso so passos fundamentais para acabar com os descaminhos dos que confundem segurana e conteno com agresso, violncia e desrespeito.

    2. O relacionamento entre os adolescentes no dia-a-dia da comunida-de socioeducativa. Sem a garantia da rigorosa separao por crit-rios de idade, compleio fsica e gravidade da infrao, os riscos se multiplicam: bandos rivais, trfico, abuso sexual, lideranas ma-nipuladoras e agressivas, brigas e confrontos.

    Aqui, alm de estruturar um sistema capaz de cumprir o que deter-mina a lei (Art. 123 do ECA), fundamental implatar regulamento de funcionamento da unidade e regras (direitos e deveres) para os adolescentes, alm de evitar a ociosidade e criar um ambiente propcio cooperao e ao respeito mtuo.

    3. O relacionamento com a realidade externa: as ameaas que vm de fora ou atingem os adolescentes que participam de atividades externas. Bandos de adolescentes rivais, bandidos adultos, maus policiais: h uma srie de atores sociais que oferecem riscos ao adolescente. Como agir? Preparando bem o adolescente para as atividades externas, inclusive com orientaes sobre segurana, e acompanhando-o nessas atividades. Outro ponto importante: acio-nar as autoridades sempre que ameaas segurana dos adoles-centes forem identificadas, fora da unidade ou como possibilida-de de invaso dos seus limites. Policiamento externo e diuturno tambm uma medida essencial para a garantia de segurana de todos, educandos e educadores.

    Este captulo uma introduo ao que determina a lei sobre a apli-cao da medida socioeducativa de internao. Pontos centrais da lei foram destacados e abordados com o objetivo de contribuir para que o educador fique atento, tenha discernimento e incorpore no seu dia-

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    a-dia a dimenso jurdica do trabalho educativo. No entanto, im-portante alertar: a lei tem nuanas e complexidades maiores do que o que foi apresentado aqui. imprescindvel que o educador procure informar-se continuamente, estude, leia mais e busque, sempre que necessrio, o apoio dos profissionais (advogados, promotores, juzes) que tm maior conhecimento e intimidade com a legislao vigente e sua aplicao.

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    3. BASES PARA ESTRUTURAO DA AO SOCIOEDUCATIVA NA UNIDADE DE INTERNAO

    Uma unidade de atendimento socioeducativo voltada para a aplica-o da medida de internao deve estar estruturada em trs dimen-ses convergentes e complementares:

    1. Respeito aos direitos fundamentais do adolescente: ga-rantia da sua integridade fsica, psicolgica e moral;

    2. Ao socioducativa: educao para o convvio social e para o desenvolvimento pessoal e social do adolescente;

    3. Segurana-cidad: medidas de conteno e segurana.

    Toda a equipe da unidade de internao deve compreender essas trs dimenses da estruturao da unidade e do seu trabalho socioducati-vo, assim como trabalhar cotidianamente para o melhor desenvolvi-mento de cada uma delas. Educao para o convvio social no pode ser vista como coisa de pedagogo, psiclogo e assistente social. Segurana no pode ser vista como coisa de monitores e agentes de segurana. Respeito aos direitos fundamentais no podem ser vistos como coisa de advogados, de defensores. Todos os educado-res (pessoal dirigente, tcnico e operacional) so responsveis pelo atendimento integral ao adolescente autor de ato infracional, isto , ao educando, que personagem central nas trs dimenses que organizam a vida da comunidade socioeducativa.

    No captulo anterior, as bases jurdicas para a estruturao de uma unidade de internao foram destacadas. Agora, avanando na com-preenso da complexidade do trabalho socioeducativo, importante o conhecimento de novas bases para sua estruturao:

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    bases ticas.

    bases pedaggicas;

    bases organizacionais.

    3.1. BASES TICAS

    3.1.1

    O adolescente autor de ato infracional uma pessoa, um ser huma-no em condio peculiar de desenvolvimento. Assim como todos os demais membros da sociedade, ele sujeito de direitos e deveres. Respeit-lo prioridade absoluta;

    3.1.2

    Para os educadores, a unidade de internao local de trabalho. A organizao da unidade vista por eles, prioritariamente, com olhos de quem analisa suas condies de trabalho. Para os educan-dos adolescentes privados de liberdade e em processo de educao para o convvio social a organizao da unidade de internao sinnimo de condies de vida, de possibilidades de desenvolvimen-to pessoal e social;

    3.1.3

    Privar de liberdade implica suspenso, por tempo determinado, do direito de o adolescente ir e vir livremente, de acordo com sua von-tade. Essa privao no implica, contudo, a supresso, para o ado-lescente, dos seus direitos ao respeito, dignidade, privacidade, integridade fsica, psicolgica e moral, e ao desenvolvimento pessoa e social. Ele continua titular desses direitos;

    3.1.4

    A medida socioeducativa de internao a ltima das medidas. Ela deve ser aplicada excepcionalmente, em ltimo caso, quando no h outra melhor soluo. fundamental que, uma vez privado de liber-dade, o adolescente seja cercado de cuidados e condies que lhe permitam habilitar-se a sair dessa situao, com a progresso para uma medida menos severa ou com a volta, sem pendncias com a Justia, para o seu convvio familiar e comunitrio;

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    3.1.5

    O germe do crime , como dizem alguns, no est no sangue do adolescente autor de ato infracional. A infrao no parte do seu ser. Ou seja, na unidade de internao, os educadores no esto diante de um infrator que, por acaso, um adolescente. Esto dian-te de um adolescente que, por circunstncias da vida, cometeu um ato infracional e est sendo legalmente responsabilizado por isso;

    3.1.6

    O cumprimento rigoroso das leis e dos regulamentos imprescind-vel para todos os educadores que trabalham na unidade de privao de liberdade. Isso obrigao. No entanto, preciso ir alm. A aber-tura, a aceitao, a compreenso e a disposio para compartilhar conhecimentos, sentimentos e vivncias e para fazer-se presente na vida do educando so fundamentais. A presena educativa o ca-minho para mover o adolescente da indiferena e envolv-lo com o processo socioeducativo;

    3.1.7

    Ser exigente com o adolescente sinal de respeito, reconhec-lo como sujeito e com potencial para superar suas limitaes. A exi-gncia sinal de esperana dos educadores em relao aos educan-dos. Antes da exigncia, contudo, deve vir sempre a compreenso. O educador deve fazer exigncias que o adolescente se sinta capaz de realizar. Precisa, assim, conhecer o potencial de cada educando e compreender sua circunstncia, seu estgio de crescimento pes-soal e social;

    3.1.8

    O exemplo no a melhor maneira para se educar. a nica! Edu-car particularmente, crianas e adolescentes ensinar o que se . O educador, com sua conduta, com seus exemplos, deve ser uma referncia segura para o adolescente;

    3.1.9

    Garantir para o adolescente autor de ato infracional um atendimen-to que garanta sua integridade fsica, psicolgica e moral e que lhe oferea uma educao de qualidade , literalmente, cumprir a lei. Essas so obrigaes bsicas do Estado e dos educadores que traba-

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    lham na unidade de internao. O desafio maior conquistar para esse mesmo adolescente um espao na conscincia e na sensibilida-de dos cidados;

    3.1.10

    Ao escolher este ou aquele mtodo de trabalho, esta ou aque-la conduta no convvio com os educandos, o educador faz uma escolha de si mesmo. A ele se define como educador, como pessoa humana e como cidado. A se define sua postura tica diante da vida.

    3.2. BASES PEDAGGICAS

    3.2.1

    Educar criar espaos para que o educando, situado organicamen-te no mundo, empreenda, ele prprio, a construo do seu ser em termos individuais e sociais;

    3.2.2

    O educador um criador de espaos. Criar espaos, nesse sentido, no apenas a escolha e estruturao do lugar em que as atividades educativas vo se desenvolver. Criar espaos criar acontecimentos. articular o espao, o tempo, as coisas e as pessoas para produzir momentos que possibilitem ao educando ir, cada vez mais, assumin-do-se como sujeito do seu processo de desenvolvimento pessoal;

    3.2.3

    Nesse trabalho de criao de espaos educativos, todos os que atu-am na unidade de internao (pessoal dirigente, tcnico e operacio-nal) so educadores. essa condio que, independentemente da funo especfica de cada um, deve articular e orientar a todos;

    3.2.4

    Criar e preencher os espaos educativos com atividades estruturadas e estruturantes no tarefa exclusiva e solitria dos educadores. Os adolescentes devem fazer parte desse processo. Numa unidade de internao, todos os adolescentes sero educandos: sujeitos ativos e participantes da sua educao para o convvio social;

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    O educador-coletivo o motor da comunidade socioeducativa. A unidade de internao, para empreender a educao para o convvio social, deve estar organizada em dois nveis centrais: a organizao das bases materiais do processo educativo e a organizao das re-laes no interior desse processo;

    3.2.6

    O espao fsico, as edificaes, os materiais e os equipamentos utiliza-dos no processo educativo so a inteno materializada (a estrutu-ra objetiva do educador-coletivo) da vontade que preside a criao de acontecimentos no interior da comunidade socioeducativa;

    3.2.7

    A organizao das pessoas, a convocao de vontades e a articulao de esforos de todos os educadores e educandos para o empreendi-mento conjunto da ao socioeducativa correspondem estrutura subjetiva do educador-coletivo;

    3.2.8

    A educao do adolescente autor de ato infracional deve ser estruturada sobre estas bases: utilizao criteriosa e plena da base fsica e material do processo educativo; desenvolvimento contnuo da relao educador-educando; criao conjunta de espaos de participao; coeso da co-munidade educativa em torno de objetivos e metas de carter coletivo.

    3.2.9

    Um conjunto articulado de aes: essa a orientao estratgica para a criao e o bom desenvolvimento do trabalho socioeducativo. As con-cepes sustentadoras, os mtodos e as tcnicas, os xitos e as dificul-dades das aes desenvolvidas no mbito da comunidade educativa, em relao aos educandos, devem ser, de forma sistemtica, compartilhados com os demais atores que se articulam para a responsabilizao do ado-lescente autor de ato infracional: Polcia Militar, Polcia Civil, Defensoria Pblica, Ministrio Pblico e Justia da Infncia e da Juventude;

    3.2.10

    A educao escolar deve, obrigatoriamente, ser assegurada a todos os educandos, fora ou dentro da comunidade socioeducativa. Para os casos

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    bastante comuns em que existe uma grande defasagem idade/srie, as autoridades responsveis pela poltica de educao devem oferecer oportunidades informais e aceleradas de ensino. Devem tambm asse-gurar a certificao para o educando e criar mecanismos que lhe permi-tam o retorno ao ensino regular ou supletivo aps a desinternao;

    3.2.11

    Assim como a educao escolar, a educao profissional um direito do adolescente autor de ato infracional, devendo ser-lhe garantida, fora e dentro da comunidade socioeducativa, com quatro requisitos bsicos:

    Se associada educao pelo trabalho (exerccio de atividade pro-dutiva), deve ser organizada como trabalho educativo (Art. 68 do ECA);

    Vnculo com a educao formal bsica;

    Foco no mercado;

    Desenvolvimento da trabalhabilidade;

    3.2.12

    Alm de desenvolver habilidades especficas, o educando deve desen-volver habilidades bsicas e de gesto. Ele deve ser preparado para o trabalho e no apenas para um emprego especfico. preciso que ele adquira competncias mnimas para ingressar, permanecer e ter suces-so no mundo do trabalho;

    3.2.13

    Sempre facultativas e de acordo com as crenas dos educandos, as atividades religiosas e espirituais so importantes para o encontro com o lado transcendente da vida, com os mistrios da existncia humana, oferecendo-lhes referenciais de vida;

    3.2.14

    Na criao de espaos e oportunidades educativas, o educando deve ser visto como fonte de iniciativa, liberdade e compromisso. Ele deve ser parte das solues construdas na comunidade socioeducativa. Os educadores devem incentivar e valorizar o protagonismo individual e coletivo dos educandos, assim como criar oportunidades para que isso ocorra;

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    3.2.15

    O processo educativo precisa ter diretividade. A comunidade educa-tiva no deve jamais estruturar-se num clima de laissez-faire (deixar fazer), sem um fio condutor claro e sem dirigentes ntidos da ao socioeducativa. No entanto, preciso diferenciar diretividade de di-tadura, que a imposio de um nico ponto de vista. A comunidade educativa requer uma diretividade democrtica. Os educadores devem ser os responsveis pelo direcionamento das aes, abrindo, ao mesmo tempo, espaos claros para a participao dos educandos. Dilogo e compartilhamento so fundamentais para, no mbito do educador-coletivo, se processar a diretividade democrtica;

    3.2.16

    O educando deve, com clareza e preciso, conhecer as regras de fun-cionamento da comunidade socioeducativa. Desde o momento da sua admisso at a sua desinternao, os regulamentos, as atividades de vida diria e as regras de convivncia tm que ser claros, pbli-cos e comunicados com antecedncia. O Guia do Educando deve ser produzido pela equipe da unidade de internao e entregue ao edu-cando no momento de seu ingresso na comunidade educativa, sendo explicado a ele na seqncia de sua permanncia na unidade;

    3.2.17

    A relao educador-educando tem como fundamento a presena educativa, a capacidade de o educador fazer-se presente na vida do educando. Essa presena uma necessidade vital do educando, tanto quanto o ar, a alimentao e a sade;

    3.2.18

    Educar um trabalho exigente. Os educadores de uma comunidade socioeducativa precisam estar em contnua formao e aperfeioa-mento, enriquecendo-se na sua capacidade de educar. necessrio implantar e manter na comunidade um trabalho de educao perma-nente, com jornadas pedaggicas, reunies formativas, treinamentos dentro e fora da unidade, autodidatismo e estudos de casos;

    3.2.19

    O administrativo deve ficar subordinado ao pedaggico como cri-trio de deciso e ao , de modo a no se permitir que a lgica dos

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    meios se sobreponha atividade-fim da comunidade socioeducativa. Todo