Suely Rolnik - Guerra Dos Gêneros & Guerra Aos Gêneros

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Suely Rolnik - Guerra dos gêneros & guerra aos gêneros

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  • Guerra dos gneros & guerra aos gneros*

    Suely Rolnik

    No visvel, o bvio: uma guerra entre identidades sexuais, lutando por seus

    interesses; especialmente o assim chamado gnero feminino oprimido em luta contra

    o assim chamado gnero masculino, seu opressor. Mas s aqui d para captar algo

    desta ordem, j que neste plano os personagens so feitos de figuras atravs das

    quais eles se representam, assim como ns os representamos; tais figuras so

    efetivamente classificveis em identidades ou gneros e funcionam segundo uma

    lgica binria de oposies e contradies, cujo atrito pode transformar-se em

    conflito.

    J no invisvel a coisa se complica, impossvel aqui registrar algo da ordem

    do gnero, com sua lgica binria e suas oposies. E mais: neste plano o que se

    capta a produo do que justamente acaba por desestabilizar as figuras e, junto

    com isso, o quadro classificatrio dos gneros, sejam eles sexuais, raciais, tnicos ou

    outros quaisquer. So movimentos de foras/fluxos desenhando certas composies

    e desfazendo outras; aglutinaes de novas composies produzindo diferenas,

    origem de pequenos abalos ssmicos nas figuras vigentes; acumulaes progressivas

    de diferenas/abalos provocando terremotos. Figuras se desmancham, outras se

    esboam; gneros e identidades se embaralham, outros se delineam - e a paisagem

    vai mudando de relvo. Uma lgica das multiplicidades e dos devires rege a

    simultaneidade dos movimentos que compem este plano. Estamos longe dos

    binarismos.

    Entre os planos, portanto, uma disparidade inelutvel; nada a ver com

    oposio. No invisvel, a infinitude do processo de produo de diferenas; no

    visvel, a finitude das figuras nas quais os personagens se reconhecem, com suas

    identidades e seus gneros. notrio o mal-estar que tal disparidade mobiliza: h

    sempre um ou mais personagens tomados por um estranho estado de

    desterritorializao, como que perdidos numa terra desconhecida sem no entanto

    sequer ter sado do lugar. So os momentos em que os personagens mais se apegam

    ao gnero, como numa espcie de tbua de salvao; passam a reivindic-lo em altos

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    brados e, raivosamente, atribuem ao gnero oposto a origem de seu desassossego.

    Este estado por vezes os leva a agrupar-se e o tumulto ento se avoluma.

    Isto o que registrariam radares caso pudessem rastrear a guerra dos gneros

    tal como vem se travando nas ltimas dcadas.

    No campo da subjetividade, pode-se distinguir culturas e pocas tomando

    como referncia quanto e como se transita entre os planos visvel e invisvel;

    quanto e como se lida com a disparidade entre a finitude das figuras e a infinitude da

    produo de diferenas; quanto e como se encara o mal-estar que tal disparidade

    mobiliza. Muitas so as modalidades praticadas.

    No contemporneo, por exemplo: se amplissemos o espectro de nossos

    radares de modo a rastrear o ambiente em que eclode a guerra dos gneros, os

    sensores sem dvida registrariam a predominncia de uma modalidade de

    subjetivao em que pouco se transita entre os planos. O que exatamente veramos?

    Personagens que tendem a viver confinados no plano da representao, como

    se s existisse o que o olho alcana, insensveis s foras e, consequentemente, s

    diferenas que suas composies engendram. Quase nada se registra no ambiente

    que parea acolher o estranhamento que a disparidade entre os planos provoca; pelo

    contrrio, quase tudo leva a crer que possvel instalar-se vitalcio numa

    determinada figura sem que jamais tremam seus contornos; a impressso de que se

    acredita que tremores so pura expresso de fraqueza e que os fortes no tem isso.

    H uma glamourizao destas supostas figuras estveis e donas de si, especialmente

    insuflada pela mdia, e que produz miragens de eternos vencedores. No reluzente

    espelho de tais miragens, grande a chance de, em algum momento, os personagens

    enxergarem-se como fracassados: a cada vez que um deles abalado pela

    disparidade entre os planos, a reao mais comum tomar o mal-estar que este abalo

    mobiliza como sinal de alarme anunciando perigo de desagregao; um verdadeiro

    calvrio.

    Quando diferenas irrompem em cena, convulsionando as figuras

    estabelecidas, no se observa qualquer esboo de movimento de construo de

    modos de existncia que as corporifiquem; o que cai na trama do espectro so

    personagens correndo esbaforidos de um lado para o outro, feito baratas tontas.

    Atordoados, eles parecem estar cata de figuras idealizadas para identificar-se, de

    modo a reconstituir-se o mais rapidamente possvel e encontrar seu lugar neste

    magma homogeinizado de subjetividades. Quando conseguem, alimentam sua iluso

    de estabilidade e parecem apaziguar-se; mas o pro que pagam ver a vida

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    enquanto potncia de diferenciao, escapando de suas mos. ntida sua

    desvitalizao.

    Mas certamente no seria apenas isto o que detectariam radares, se

    implantados nesta virada de sculo. Um espantoso avano das tecnologias de

    informao e de comunicao de massa, faria aparecer na trama de seu espectro um

    fato curioso: a maioria dos personagens, independentemente de onde estejam,

    encontram-se habitados pelo planeta inteiro ao mesmo tempo; uma imensa riqueza

    de foras/fluxos e, por consequncia, de mestiagens virtuais, aumenta

    indubitavelmente a potencialidade de engendramento de diferenas e de criao de

    mundos. Paradoxalmente, evidente a limitao destes personagens para processar

    tamanha abundncia; intolerantes desestabilizao, eles no se deixam facilmente

    afetar pelos efeitos das misturas em sua subjetividade. gritante o contraste que se

    observa entre a exuberncia de mundos virtuais e a mesmice das figuras em torno

    das quais se organizam.

    Prognstico: o quadro pede uma mudana na poltica de subjetivao vigente.

    Parece que se h uma guerra a ser travada ela teria como um de seus principais alvos

    a libertao do confinamento no visvel. Para isso seria preciso criar condies para

    que a experincia do mal-estar provocado pela disparidade fosse menos traumtica e

    mais produtiva. Seno, corre-se o risco de a riqueza da paisagem contempornea

    transformar-se em inferno: quando as figuras estabelecidas so tomadas como

    identidades e seu abalo traumaticamente interpretado como ameaa de

    desagregao, para manter-se no mesmo lugar, se capaz de fazer qualquer coisa,

    inclusive matar. A guerra dos gneros um exemplo disto, sem dvida dos mais

    amenos se pensarmos no que se tem feito em nome de identidades nacionais,

    religiosas, tnicas e raciais.

    Mas esta viso da guerra dos gneros no contradiz o sentido emancipador

    que se costuma atribuir-lhe?

    Sim e no: verdade que esta guerra de certo modo indispensvel para que

    personagens do gnero oprimido, desqualificados socialmente, conquistem direitos

    civis e dignidade; mas no menos verdade que ela os mantm confinados numa

    identidade, invertendo apenas seu valor, que de negativo se transforma em positivo.

    E o mais curioso que esta simples inverso, alm de manter tais personagens no

    mesmo lugar, s vezes at os refora em seu modo de subjetivao identitrio: fica

    adiado o confronto com a finitude e o trabalho que se faz necessrio para dar vaso

    s diferenas emergentes. que este trabalho implica a criao de contornos

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    subjetivos singulares e efmeros - e portanto no generalizveis -, j que singulares e

    efmeras so as misturas de foras/fluxos de que feita cada diferena que vai se

    produzindo ao longo da existncia.

    Caso de fato existissem radares apropriados para rastrear este tipo de guerra,

    o que eles implacavelmente nos mostrariam que enquanto gneros se degladiam no

    plano visvel por uma causa politicamente correta - a luta por uma igualdade de

    direitos, que alis no Brasil so especialmente desiguais -, no plano invisvel, h

    uma proliferao de diferenas produzidas por uma hibridao cada vez maior de

    foras/fluxos, que no conseguem encontrar canais para sua existencializao. E

    quanto mais se degladiam os gneros, mais se afirmam as identidades e menos

    canais se abrem para as diferenas; reciprocamente, quanto mais proliferam

    diferenas e mais aumenta sua presso, mais apavoradas ficam as subjetividades

    com suas supostas identidades e mais defensivamente as enrijecem na tentativa de

    manter a iluso de sua eternidade e proteger-se do terror que a finitude provoca.

    Avaliar esta situao fazendo um esforo para nos deslocar de uma lgica da

    representao em direo a uma lgica das multiplicidades e dos devires, prpria da

    dinmica entre os planos, nos deixa um tanto perplexos. Explorada desta

    perspectiva, a guerra entre gneros revela sua faceta de guerra a favor da

    perpetuao de gneros e contra a processualidade da vida enquanto produo de

    diferenas. Concluso: se quisermos evitar que a guerra politicamente correta dos e

    pelos gneros se transforme numa guerra politicamente nefasta para a vida, ser

    preciso travar simultaneamente uma guerra contra a reduo das subjetividades a

    gneros, a favor da vida e suas misturas.

    Neste ponto, o Brasil me parece ter algo a dizer na questo dos gneros.

    Trazemos a marca de uma certa facilidade para nos desfazer das figuras vigentes, e

    com elas das identidades e gneros, sempre que necessrio. Nossa fundao e nossa

    histria pontuada por mestiagens. Habituados a nascer e renascer das misturas,

    somos constitutivamente hbridos; borram-se em ns desde o incio as fronteiras

    entre figuras.

    Um dos movimentos do Modernismo brasileiro colheu esta marca de nossa

    cultura e decidiu afirm-la positivamente, chamando-a de "Antropofagia".

    Estendendo esta idia, hoje, para o campo do desejo, diramos que antropofgico o

    prprio processo de composio e hibridao das foras/fluxos, o qual acaba sempre

    devorando as figuras da realidade objetiva e subjetiva e, virtualmente, engendrando

    outras.

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    O grau de abertura para a antropofagia das foras/fluxos pode ser um critrio

    para distinguir diferentes modos de subjetivao. Por este critrio, diramos que um

    modo de subjetivao antropofgico quando tende a se constituir como

    existencializao das virtualidades engendradas na mestiagem das foras/fluxos e

    no como resistncia contra a finitude. Em outras palavras, um modo antropofgico

    de subjetivao se reconheceria pela presena de um grau considervel de abertura,

    o que implica numa certa fluidez: encarnar o mais possvel a antropofagia das

    foras, deixando-se desterritorializar, ao invs de se anestesiar de pavor; dispor do

    maior jogo de cintura possvel para improvisar novos mundos toda vez que isso se

    faz necessrio, ao invs de bater o p no mesmo lugar por medo de ficar sem cho.

    A antropofagia seria o princpio organizador deste modo de subjetivao. Um

    princpio radicalmente ateu, imanente produo da realidade, cuja referncia a

    processualidade: as diferenas emergentes a partir das quais se traar novos

    territrios e, indissociavelmente, suas cartografias. Opera-se aqui um deslocamento

    do princpio que tem por referncia uma representao de si e do mundo tomada a

    priori, seja ela qual for, mesmo que em nome de uma causa politicamente correta.

    Se o Brasil tem algum know how a oferecer para a guerra dos gneros seria

    mais na direo de uma guerra contra a perpetuao dos gneros. Isto passa pelo

    rastreamento de dispositivos que permitam desmobilizar o terror que a antropofagia

    nos causa, condio indispensvel para incorpor-la como princpio organizador de

    nossos processos de subjetivao.

    A importncia deste tipo de know how extrapola a guerra dos gneros. A

    miscigenao contempornea requer que mudemos o princpio que rege nossos

    processos de subjetivao, depurando-o dos resqucios do modelo que reduz a

    subjetividade representao, se quisermos ampliar nossas chances de processar a

    riqueza que temos em mos.

    Ao lado da guerra de gneros preciso cada vez mais levar uma guerra dos

    habitantes dos devires contra os adictos dos gneros, inclusive e antes de mais nada,

    na arena de nossa prpria subjetividade. Uma guerra de hbridos, mestios,

    antropofgicos.

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    Resumo

    Primeira opo:

    A guerra dos gneros abordada no sentido macro e micropoltico. A macropoltica

    concerne a realidade individual e coletiva enquanto representao, cujas figuras

    definem identidades e suas classificaes dualistas - por exemplo, a classificao em

    gneros. A micropoltica concerne a mesma realidade, mas enquanto multiplicidade

    de fluxos, cujas composies engendram as transformaes de suas figuras e,

    portanto, de identidades e gneros. Se a guerra dos gneros, do ponto de vista

    macropoltico, condio para que o gnero oprimido conquiste igualdade de

    direitos e dignidade, j do ponto de vista micropoltico ela implica o risco de uma

    reduo das subjetividades ao gnero, o que pode brecar os processos de mudana.

    sugerido que ao lado da guerra macropoltica dos gneros seja travada uma guerra

    micropoltica contra tal tendncia redutora. A marca da antropofagia virtualmente

    presente nas subjetividades brasileiras as tornaria potencialmente aptas para levar

    este segundo tipo de guerra.

    Segunda opo:

    A guerra dos gneros abordada no sentido macro e micropoltico. Se do ponto de

    vista macropoltico esta guerra condio para que o gnero oprimido conquiste

    igualdade de direitos e dignidade, j do ponto de vista micropoltico ela implica o

    risco de uma reduo das subjetividades ao gnero, o que pode brecar os processos

    de mudana. sugerido que ao lado da guerra macropoltica dos gneros seja

    travada uma guerra micropoltica contra tal tendncia redutora. A marca da

    antropofagia virtualmente presente nas subjetividades brasileiras as tornaria

    potencialmente aptas para levar este segundo tipo de guerra.

    *Ensaio escrito sob encomenda de TRANS. Arts. Cultures. Media (Nova York, Passim,

    inc.), para a abertura da seo Genders War no no 3 da revista (1996, no prelo).

    ** A presente escritura foi roubada do territrio Caosmose.net. Para conhecer outras

    narrativas caosmticas de Suely Rolnik e outras aventuras, acesse:

    http://caosmose.net/suelyrolnik