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Studium Theologicum de Curitiba STUDIUM REVISTA TEOLÓGICA

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Studium Theologicum de Curitiba

STUDIUMREVISTA TEOLÓGICA

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Studium: revista teológica/ Studium Theologicum de Curitiba - Ano 10 n. 18 - 2016.

Semestral

ISSN 1981-3155

1. Teologia – Periódicos. I. Studium Theologicum de Curitiba.

CDU: 2

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SUMÁRIO

Editorial – DEUS NA CIDADE DOS hOmENS ..................................................... 5

BLOCO TEMÁTICO:

Uma cidade para Abel. Ângulos de uma teologia da cidade........................ 11Luiz Carlos Susin

Deus vive na cidade dos homens .......................................................................... 45Hélcion Ribeiro

Deus vive na cidade................................................................................................................ 71Mario Jorge card. Bergoglio

A cidade como horizonte cultural........................................................................... 83Agenor Brighenti

Articulações entre o mundo urbano e a evangelização hoje........................ 97Flávio Fernando de Souza

BLOCO DE TEMAS DIVERSOS:

A laicidade do crente. A relação com o mundo no evangelho de Jesus e de Paulo................................................................................................................................... 111Giuseppe Barbaglio

“Aproximava-se a festa dos judeus, a festa das Tendas” (Jo 7,2). A festa das Tendas no IV Evangelho.................................................................................................... 131Rivaldave Paz Torquato, O. Carm

A mãe de Deus na iconografia bizantina ............................................................. 149Neomir Doopiat Gasperin

As fontes cristãs sobre Jesus...................................................................................... 169José Maria Melero Martínez

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STUDIUM Revista Teológica

Ano 10 – 2016Nº 18

Revista semestral de Teologia do Studium Theologicum de CuritibaISNN 1981-3155

EDITor-ChEfEhélcion Ribeiro – Studium Theologicum, Curitiba, PR.

ConSElho EDITorIalAlceu Luis Orso - Studium Theologicum, Curitiba, PR.Jaime Sánchez Bosch – Studium Theologicum, Curitiba, PR.marcio Luiz Fernandes – Studium Theologicum, Curitiba, PR.Teodoro hanicz – Faculdade S. Basílio magno, Curitiba, PR.Valdinei de Jesus Ribeiro – Studium Theologicum, Curitiba, PR. ConSElho ConSUlTIvoAgenor Brighenti – PUC, Curitiba, PR.Angelo Carlesso – Studium Theologicum, Curitiba, PR. Cesar Kusman – PUC, Rio de Janeiro, RJ. Diego Irarrazaval – Univ. Católica Silva henriquez, Santiago, Chile.Ricardo hoepers – Rio Grande, PR. Sávio Scopinho – CLARETIANO, Rio Claro, SP. Vitor P. Calixto dos Santos – CLARETIANO, Campinas, SP.

Abstract: Joachim Andrade Diagramação : Luis Antônio Guimarães Toloi

aDMInISTraÇÃo E rEDaÇÃoContato e assinatura

Studium Revista TeológicaAv. Getúlio Vargas, 119380.250-180 Curitiba, PR.Tel. (41)33077754 - Tel. 33077759e-mail: [email protected]

Solicita-se permuta/ Exchange requested/Se pide cambio/ On prie l’échange

nota: os autores das contribuições desta publicação assumem a responsabilidade das idéias e teses defendidas nos seus textos.

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DEUS NA CIDADE DOS hOmENS

“Ïde evangelizar” é o mandado do Senhor Ressuscitado. Cumprir essa ordem é o permanente desafio dos seguidores de Jesus. muito se discute sobre “o que é e como evangelizar”. Talvez a história possa responder melhor o que os cristãos entendem (entenderam) como a processualidade do evangelho. No universo católico, sobretudo a partir do significativo e estruturante Concílio de Trento, a Igreja priorizou a vida cristã cotidiana através dos sacramentos. A evangelização era, essencialmente, uma ação missionária na terra de pagãos. mesmo com a “descoberta” das Américas, com o expansionismo para a África e, ao mesmo tempo, com a ida para o Oriente, a Igreja (da Europa) não só levou um projeto para a conversão de outros povos, com prioridade sacramental – desde a organização paroquial –, mas também a cultura europeia.

A paróquia foi um modelo que deu certo, nos pagos, durante séculos. Todavia, o mundo modificou-se muito ao ponto de, hoje, menos de 35% das pessoas viverem no meio rural.

Intelectuais da Igreja e teólogos insistem em dizer que os processos da urbanização, da globalização, das ciências modernas, da cibertecnologia, entre outras inovações, exigem novas atitudes, novos métodos para evangelizar homens e mulheres na atualidade.

Os habitantes do meio urbano tornaram-se não apenas um desafio à evangelização, já que criaram um novo modo de ser e de viver, onde sempre mais estão menos condicionados ao controle social (inclusive paroquial e diocesano), pois se tornaram cidadãos adultos, portadores de liberdade, de autonomia e com direitos à privacidade (valores urbanos). A cidade não é um espaço linear, mesmo que haja nela muita ambivalência e ambiguidade.

Editorial

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Desde muito se insiste no desafio de renovar a comunidade paroquial. muitos percebem nisso algo restrito ao renovar para conservar. Cristãos que vivem na cidade querem viver a fé de modo adulto, com horizontes maiores capazes de propiciar-lhes significado de vida – mesmos aqueles muitos analfabetos na própria fé. Para acompanhar essa inquietação, não são mais suficientes as pastorais na cidade. Elas pedem uma perspectiva de pastoral urbana ou pastoral da cidade, o que inclui outros (novos) instrumentos que tenham em conta, por exemplo, a mobilidade urbana, os novos meios de comunicação, as novas realidades da família e do trabalho etc. Pedem que se supere a autoridade e o espaço circunscritos em favor de liderança e espaços abertos.

A vida em Cristo – o viver no seguimento de Jesus – demanda não um novo evangelho, mas a perspectiva nova, em que vale, como dizia Paulo VI na Evangelii Nutiandi, mais o testemunho do que as estruturações.

Evangelizar a cidade – diferentemente de evangelizar na cidade – é o desafio que muitas igrejas particulares vêm enfrentando outra vez. Na segunda metade do século XX, essa questão se tornou preocupação inclusive em dioceses presentes em cidades pequenas e médias. A falta de capacitação e de diálogo interdisciplinar levou a resultados praticamente pífios. Entrementes, a questão permanece. Parece que a questão está voltando. Ventos sopram sobre cinzas e o tema é redescoberto. Assim, em algumas cidades (ou megacidades), como Bogotá (leia-se Celam), Buenos Aires, méxico, montreal etc., o tema permanece e desenvolve-se. Outras cidades retomam a preocupação, como São Paulo e Rio de Janeiro (que têm em seus programas para esse ano seminários e simpósios), madrid, Barcelona, Turim, Paris, entre tantas outras.

Refletir teologicamente a cidade é descobrir, também, conforme a Conferência de Aparecida (n. 509 – 519), a presença de Deus vivendo nas cidades. Refletir pastoralmente é uma decorrência da reflexão teológica – mesmo que, alguma vez, isso não aconteça, pois tanto Deus quanto seus mistérios são elementos não só dados, como também presunçosamente validados. Independentemente dos livros e dos arrazoados, Deus vive na cidade. Quem tem a perspectiva da história da salvação constata que a própria cidade é não apenas querida por Deus como ela faz parte da progressão da história salvífica. Assim, o Deus, o criador permanente e providente, acompanha os homens e mulheres desta nova realidade cultural. Ao mesmo tempo, Ele desafia os seus mais fiéis

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seguidores – cristãos leigos e clérigos – a assumirem novas posturas, como dizia o cardeal Bergoglio, como processo novo global, existencial, acima do particular, do local, do teórico.

Desde a leitura destes sinais dos tempos, com ares do Concílio Vaticano II, nossa Revista de Teologia STUDIUM visa contribuir para a retomada do tema, incentivando os cultores de teologia e de pastoral. A cidade impõe-se à teologia e à pastoral, pois Deus vive nela e é urgente descobri-lo a fim de que o evangelho seja anunciado com novo vigor. Isso já urgia a Conferência de Aparecida, que tornou já clássica a expressão “Deus vive na cidade”.

Aliás, na América Latina, já se conhece esse dito desde um encontro, do Celam 1988, quando Pablo Galemberti usou a expressão “Deus na cidade”. Aparecida assumiu-a no magistério Latino Americano depois de muitos teólogos usarem essa expressão como referência. Em Aparecida, ela apareceu na quarta e definitiva Comissão dedicada às prioridades pastorais. Dessa comissão, participavam o Cardeal Odilo Scherer (São Paulo) e os bispos Leopoldo Gonzales (méxico), Jorge Ferreira da Costa Ortega (Portugal) e Pe. Lourenço Vargas Salazar (República Dominicana). Entre os números 509 – 513, projeta-se um olhar sobre a história da Igreja nas cidades e os desafios da evangelização. Entre os números 514 – 516, faz-se emergir um discernimento iluminado pela fé que descobre o mistério de Deus na cidade. Os números 517 – 518, sintetizando muitas orientações pastorais para evangelizar a cidade, ou melhor, seus habitantes, apontam caminhos para a nova pastoral urbana – preocupação, aliás, que, mesmo pouco ouvida, já era dada pelo bispo de Paris Guilherme de D’Auvergne no século XIII: a cidade são seus habitantes.

Nossa proposta é um convite a uma nova pastoralidade, pois vive Deus na vida dos homens da cidade. É preciso não só descobri-lo em meio à multiculturalidade, não isenta de contrastes, inclusive de exclusão e inclusão.

O bloco temático deste número da Studium possui como estímulo ao desenvolvimento teológico e pastoral alguns olhares que fazem uma leitura da história das cidades e uma teologização. Depois, os textos refletem desde a teologia narrativa e pastoral à presença do Deus vivente na cidade. Amarrando a proposta da revista, surgem dois textos com pertinência pastoral. Poder-se-ia quase incluir o texto sobre a “laicidade” ou “mundaneidade” dos crentes, mas preferiu-se situá-los no bloco dos temas gerais.

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Uma cidade para Abel: ângulos de uma teologia da cidade é um texto em que Luis Carlos Susin faz, primeiramente, um percurso histórico e geral sobre as cidades, para, depois, deter-se numa teologia da cidade. O autor caracteriza, inicialmente, a história das realidades para apontar a vocação escatológica das cidades. O percurso básico passa pelas cidades bíblicas. Ao encaminhar-se para o final do texto, o autor aponta vários detalhes simbólicos que sugerem uma presença e até uma prática da evangelização. E conclui ressaltando o sonho de Deus, que conta com a evolução da cidade de Caim até Abel, do Êxodo ao Sábado (definitivo). Este texto já teve uma publicação anterior, inclusive em espanhol, mas, dada a importância para pastoralistas, aqui é reproduzido novamente.

Deus vive na cidade dos homens é a reflexão que Hélcion Ribeiro propõe, partindo da antropologia religiosa urbana para chegar a uma teologia narrativa sobre a presença real de Deus na cidade. Essa presença, sempre misteriosa, está nas contradições das cidades, desde Babilônia e Jerusalém, até hoje. mas a presença de Jesus expôs, de modo lúcido, o que o cristão pode fazer para tornar ainda mais explícita essa presença numa realidade que é ecumênica e secular.

Sob o olhar e perspectiva de pastor, o então cardeal Mario Jorge Bergoglio, ao participar do 1º Congresso Regional da Pastoral Urbana em Buenos Aires, pouco antes de ser eleito bispo de Roma, pronunciou uma riquíssima reflexão, que inclusive explicita e amplia o significado da afirmação de Aparecida (514) “Deus vive na cidade”. Não pode faltar o olhar da fé para compreender a cidade, inclusive um olhar de amizade que não discrimina nem exclui: antes inclui e se torna criativo. Uma fé aberta ao transcendente leva a Igreja a uma atitude de saída de sua autorreferencialidade para uma aproximação sobretudo dos excluídos, porque ela é (deve ser) sinal de misericórdia.

Em A cidade como um horizonte cultural, o teólogo pastoralista Agenor Brighenti faz uma reflexão que aborda esse horizonte cultural, capaz de alterar, com profundidade, as relações entre as pessoas, Deus e a natureza. Para evangelizar na cidade, é fundamental ter em conta a encarnação do Evangelho no mundo urbano, tão diferente do rural. A pastoral na realidade urbana vai se caracterizar, afirma o autor, por desafios, estilo de vida, linguagem, símbolos e imagens próprias.

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Flavio Fernando de Souza propõe-se a analisar Articulações entre o mundo urbano e a evangelização hoje. há uma complexidade de relações entre globalização, urbanização e mundo informacional nesses tempos de constantes mutações, que trazem muitas consequências para o âmbito da religião. Entre as ferramentas para quem evangeliza, estão assumir tais e profundas possibilidades de mudanças, considerar a maneira como se veem os desafios e como se responde e se reage diante deles, além de consolidar outro modelo de evangelização. Não sem razão, deve-se assumir uma evangelização urbanamente inculturada.

O Bloco de TEMAS DIVERSOS apresenta quatro estudos interessantes. O primeiro, um texto póstumo de Giuseppe Barbaglio, A laicidade do crente: a relação com o mundo no evangelho de Jesus e de Paulo, apresenta o significado bíblico de experiências dos cristãos das comunidades de Paulo. O autor afronta determinadas questões difíceis, mas que exigem uma compreensão para além da letra. O autor afirma que certas leituras dirigidas ocultaram significados importantes sobre o mundo, presença dos cristãos como criaturas novas, morte, solidariedade, sacrifícios rituais e outras situações.

O professor de Bíblia do Studium Theologicum Rivaldave Paz Torquato, a partir das festas judaicas, desvela o desenvolvimento do Evangelho de João. Com o texto Aproximava-se a festa do judeus, a festa das tendas (Jo 9,2), o autor desenvolve a pesquisa sobre uma das três das peregrinações da lei mosaica: a festa das tendas. O esquema joanino, ao se servir do tema das seis festas judaicas, enfatiza a realidade de nova proposta por Cristo Jesus. A festa das tendas é tomada por uma alegria nova em vista do ressuscitado e é transformada na festa dominical dos cristãos – mesmo que provisória ainda no caminho rumo à parusia.

O texto A Mãe de Deus na iconografia bizantina, de Leomir Doopiat Gasperin, aqui apresentado enriquece nossa publicação anterior1. O autor faz comentários teológico-iconográficos sobre aquela que é venerada, na liturgia e teologia bizantinas, como corredentora da salvação. Os ícones marianos exprimem tanto o harmonioso nexo entre as naturezas do Verbo e da Theotokos quanto ajudam a rezar o mistério transfigurado e divinizado.

1 motivado pela presença constante de alunos ucraínos, o Studium Theologicum tem sempre prestigiado as questões da teologia ortodoxa. O número anterior da nossa Revista de Teologia STUDIUM abordou o tema de maria como “Mãe da misericórdia”. Foi, praticamente, uma abordagem latina. O presente texto, em certo sentido, completa o número anterior com esta perspectiva bizantina.

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O pesquisador José Maria Melero Martinez desenvolveu uma extensiva pesquisa sobre As fontes cristãs sobre Jesus, desde os quatro evangelhos, da fonte Q, de fragmentos dos evangelhos com material sinótico e/ou joanino, dos evangelhos judaico-cristãos e de outras fontes livres sobre Jesus. O estudo torna-se uma importante síntese desses textos, bem como sua localização histórica. É um texto informativo que reúne, num só escrito, muitas informações normalmente dispersas.

Ensejamos que nossa Revista de Teologia STUDIUM continue sendo um serviço prestado às comunidades acadêmicas, às comunidades religiosas e a todos que se interessam pelos temas teológicos. Bom proveito!

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UmA CIDADE PARA ABELÂngulos de uma teologia da cidade

A CITY FOR ABEL. Angles of a theology of the city

Luiz Carlos Susin *

RESUMO: O texto se detém inicialmente em alguns traços históricos muito gerais, uma biografia epocal da cidade – que passa pela polis grega, urbe romana, cidades de Constantino, da época medieval e barroca, e, sobretudo, pela cidade moderna e a cibercidade - para depois buscar uma teologia da cidade. Faz o caminho desde a história até uma teologia bíblica e cristã da cidade, para descobrir vestígios dos passos de Deus e sinais de sua morada. Tal percurso exige levar em conta a tensão entre vocação escatológica e realidade histórica. As cidades são essencialmente diferentes por suas histórias. As almas de Babilônia e de Jerusalém são prototípicas para um discernimento teológico. Elas são paradigmáticas para a compreensão das ambiguidades e ambivalências, do simbólico e também do diabólico, do fascinante e do repugnante da cidade. A cidade à luz do sonho de Deus - passando pelas cidades de Caim e Abel, chegando a Jerusalém celeste, - é a que agrada a Deus como oferenda perfeita, que privilegia o cuidado pelos mais vulneráveis e estabelece relações de reconhecimento e justiça.

PALAVRAS CHAVE: Cidade; Ambiguidade; história; Símbolo; Deus.

SUMMARY: The text initially holds itself in some of the general historical traits, an epochal biography of the city - which passes through the polis of Greece, Roman urbe, cities of Constantine, of the medieval times and Baroque, and, especially, the modern city and the cyber city – and then to search for a theology of the city. Walks the path from the historical times till the Biblical and Christian Theology of the city, in order to discover traces of steps and the signs of the presence of God. Such journey requires taking into account the tension between eschatological vocation and historical reality. The cities are essentially different for their stories. The souls of Babylon and Jerusalem are prototypical for a theological discernment. They are paradigmatic for the understanding of the ambiguity and ambivalence, of the symbolic and the diabolic, the fascinating and disgusting of the city. The city in the light of God's dream-passing through the cities of Cain and Abel, and reaching the heavenly Jerusalem, it is that pleases God as perfect offering, which privileges the care of the most vulnerable and establishes relationships of recognition and justice.

KEY WORDS: City; Ambiguity; Story; Symbol; God.

Artigos

* Luiz Carlos Susin, frade capuchinho, graduado em filosofia e teologia. Professor na Faculdade de Teologia da PUC de Porto Alegre e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (ESTEF/POA). Cofundaddor e expresidente da Sociedade de teologia e Ciências da Religião do Brasil. membro da equipe de redação da revista internacional de teologia Concilium. Secretário geral do Fórum mundial de Teologia e Libertação (WFTL), membro da Equipe interdisicplinar de Assessoria da CRB. ministra frequentemente cursos intensivos na área de teologia sistemática, tanto no Brasil como em outros países. Autor de mais de 20 livros, entre eles: A criação de Deus e Jesus, filho de Deus e filho de Maria, Teologia para outro mundo possível. há dezoito anos marca presença pastoral na Vila maria da Conceição, bairro popular de Porto Alegre.

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A cidade contemporânea só pode ser vista e compreendida, mesmo teologicamente, por ângulos. Até mesmo para uma fotografia, a cidade de hoje – a megalópolis – dificilmente consegue oferecer uma visão panorâmica fotogênica ou monumental. Necessitamos de sociologia, história, economia, arquitetura, informática, enfim recurso à interdisciplinaridade para compreender a cidade. A teologia, que busca decifrar os vestígios da presença de Deus ou ao menos os sinais de uma “alma” da cidade, também precisa de recursos interdisciplinares e deve se esforçar por buscar o que julga o mais justo e o mais oportuno entre os possíveis ângulos teológicos da cidade.

Quando o peregrino vislumbrava a cidade santa de Sião, as muralhas e as torres do templo de Jerusalém brilhando ao sol, podia exultar com um salmo nos lábios: “Alegrei-me quando me disseram: ‘Vamos à casa de Iahweh!’ Nossos passos já se detêm às tuas portas, Jerusalém!”(Sl 122, 1-2). Ou mesmo longe, no exílio, na memória saudosa da pátria, o profeta convidava o povo à esperança: “Alegrai-vos com Jerusalém, exultai nela, todos que a amais (...), pois sereis amamentados e saciados pelo seu seio consolador (...), sim, em Jerusalém sereis consolados”(Is 66, 10a; 11a;13b). No entanto, quem olha para a cidade, hoje, parece ver apenas produtos humanos, fruto da engenharia humana. A cidade fascina pelo brilho de sua modernidade, exaltando a capacidade de progresso e prometendo concretamente tudo o que a modernidade veio prometendo idealmente. De fato, há uma unidade entre o tempo da modernidade e o espaço da cidade moderna, radicalmente terrena e antropocêntrica. Teria Deus se exilado da cidade dos homens? mesmo em tempos recentes, pré-modernos – coloniais, no caso da América Latina – a presença de Deus parecia mais evidente na cidade, pois o templo organizava o espaço urbano em torno de si e as festas religiosas organizavam os tempos e os ritmos da cidade. As mediações pareciam mais legíveis e mais compreensíveis.

As mediações da presença de Deus, porém, nunca se deram sem ambigüidades. O templo e a cidade foram duramente desmascarados pelos profetas e pelo próprio Jesus, os sinos anunciaram guerras contra gente inocente, e Te Deum’s foram cantados para celebrar a vitória dos mais fortes. Afirmar que, em outros tempos, Deus morava na cidade com seu povo e agora é um exilado, talvez não seja justo nem para Deus e nem para a cidade contemporânea.

Talvez devamos conservar o discernimento profético diante das ambigüidades que continuam, e que só a Cidade Nova, emoldurada por uma Terra Nova e um Céu Novo, anunciada com grande expressão poética no Apocalipse, cidade em sua plena manifestação, onde Deus habita em plena glória, pode

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ajudar a superar. mas o horizonte escatológico e a linguagem apocalíptica em que se manifesta a Cidade Nova do Apocalipse não é dada em um tempo de relógio, não se dará em um futuro cronológico. Ela permanece no “horizonte” da cidade terrena. “horizonte – no dizer de Paul Ricoeur – é a metáfora daquilo que se aproxima sem jamais se tornar objeto possuído”1. A cidade, portanto, se situa entre um “ainda não” e um “já agora”, entre o horizonte escatológico que a anima e que é seu segredo, do qual pode ganhar inspiração e energia, e o seu lugar histórico, em que consegue projetar e edificar com algum sucesso a inspiração que a guia.

Por isso, para uma análise bíblica e teológica da cidade, e para discernir nela os passos e a morada de Deus, é necessário, desde o começo, levar em conta esta tensão entre vocação escatológica e realidade histórica. É na realidade histórica que encontramos as ambigüidades, as ambivalências, o simbólico e também o diabólico, o fascinante e o repugnante, da cidade.

Ao contrário da paisagem rural – embora tenha também suas ambivalências, seu lado simbólico e seu lado diabólico, sobretudo sua beleza pagã - é a cidade o lugar das conversões e das perversões mais surpreendentes. Claro, na arqueologia humana, o deserto, a floresta, o rural, aquilo que serve de dual dialético em relação com a cidade, serve-lhe freqüentemente de contra-ponto, de moldura, de entre-tempo e passagem, inclusive para a experiência de Deus. Pode-se bater em retirada da cidade para encontrar a Deus na solidão do deserto, na exuberância da floresta, na sublimidade da montanha, ou simplesmente na paisagem bucólica do campo, mas tudo isso está “ao redor”, na moldura da cidade. No centro da paisagem humana está sempre a cidade. Conseqüentemente, é na cidade que se estabelece a morada mais estável de Deus conosco, mesmo que isso tenha um momento dialético fora e além da cidade.

Uma cidade, como seus habitantes, tem alma: a alma dos que a habitam, inclusive dos seus mortos. Bergson, olhando para a cidade moderna, reclamava a urgência de um “suplemento de alma” para a cidade. mas não há cidade sem alma. Para encontrar essa alma, é necessário encontrar a biografia dos que vieram fazendo sua história, não simplesmente a biografia individual de alguns habitantes notáveis. A biografia coletiva da cidade, a “alma comum”, quem a guarda e a desvela, com tudo o que a compõe humanamente, é o cotidiano dos seus habitantes. É sobre esta biografia da cidade que se pode também falar com acerto de “teologia da cidade”, expressão da presença e da biografia de Deus na cidade.

1 RICOEUR P. De l’interprétation. Essai sur Freud. Paris: Seuil, 1965, p505.

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Vamos nos deter, em primeiro lugar, em alguns traços históricos muito gerais, uma biografia epocal da cidade, sobretudo da cidade moderna, para depois buscar uma teologia da cidade. Seria necessário que esta auscultação fosse cuidadosamente empreendida para cada cidade, sem permanecer em generalizações, o que não me é permitido nesta conferência. Passar da história a uma teologia bíblica e cristã da cidade, para descobrir nela a pérola do Reino de Deus, para contemplar a cidade como lugar místico, onde a experiência de Deus não é somente possível, mas até privilegiada, onde há vestígios dos passos de Deus e sinais de sua morada, exige recurso ao comentário bíblica, que, a respeito de cidades, contém boa literatura, embora não seja muito abundante2.

1. DIFEREnTES FORMAS HISTóRICAS REVELAM DIFEREnTES “ALMAS” DE CIDADES

há cidades essencialmente comerciais e há cidades militares. há metrópoles e cidades coloniais, cidades imperiais, portuárias, etc. Cada uma tem sua “alma”, que lhe dá organicidade, que a unifica, que lhe dá sentido de ser e explica as suas relações, inclusive metafísicas - seus deuses. há cidades santas, centradas no espaço sagrado dos templos e das relíquias de santos. mas toda cidade, no seu centro, tem a expressão sagrada de sua alma. Não necessariamente um templo com torres encimadas por uma cruz. Pode ser um templo militar, com torres e muralhas de defesa e com praça de armas. Ou um templo do comércio: a praça da alfândega, o mercado cercado pelos nichos dos deuses que o abençoam e garantem a sua prodigalidade, ou o shopping center com os terminais de bancos, os cinemas, a praça de alimentação, uma “miniatura do mundo” como convém aos templos em época de consumo para glória e graça divina e confirmação humana. As cidades são essencialmente diferentes por suas histórias, que revelam suas almas diferentes.

1.1. A polis grega: cidade dos “melhores”

A cidade não é uma invenção grega, mas quando os ocidentais modernos pensam na categoria ou tocam no imaginário da cidade, pesa muito a experiência ou a forma grega da cidade, donde procede o sentido moderno da “política”. O sucesso da cidade grega permitiu Aristóteles definir o ser humano como um “animal político”, essencialmente social e cidadão.

2 Utilizarei, como fio condutor, o clássico livro de José Comblin Théologie de la ville, Paris: Editions Universitaires, 1968. Em espanhol há um texto condensado, que foi traduzido do espanhol para português como: Teologia da cidade. São Paulo: Paulus, 1991. Outras referências bibliográficas serão indicadas no decorrer do texto.

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A cidade grega resplandeceu no século de Péricles, quando as principais cidades tiveram a audácia de uma modernidade inaugural para a história do Ocidente, a inauguração do logos que marcaria tão profundamente o Ocidente, a razão humana abstrata e senhora do espaço e do tempo. Para isso, foi necessário, em primeiro lugar, o recuo dos deuses para o Olimpo, com a interposição dos sacrifícios e jogos olímpicos, para que, bem cultuados em seu monte sagrado, os deuses não interferissem na vida da cidade, espaço entregue à administração humanosa3.

A polis, literalmente um espaço organizado para muitos, na verdade era a polis de uma aristocracia, o poder e o governo “dos melhores”. A cidade, para o grego ilustrado, é o lugar próprio das elites, não de todos os seres humanos. Uma aristocracia de guerreiros, de navegadores, de artistas, de atletas, de sábios e filósofos, com uma política e uma paidéia apropriadas para a glória da aristocracia, nisso poderíamos resumir os grandes traços da alma da polis grega. Sua democracia tinha os limites da aristocracia, da elite. Seus mitos e seus deuses são aristocráticos, necessariamente excludentes de todos os não eruditos – os “balbuciadores” ou “bárbaros”, massa de escravos, de estrangeiros, onde inclusive as mulheres gregas eram cidadãs pela metade, sempre referidas aos homens.

Paulo tentou valorizar a teologia dos poetas gregos, em Atenas, mas os sábios aristocratas se escandalizaram de uma divindade comprometida com a carne humana e, pior ainda, mortal. Sua experiência de Deus passava pela “theoria” tanto quanto pela posição de elite. Na teoria, a verdadeira cidade seria a “República” de Platão, a cidade dos melhores por excelência, e que fracassou exatamente por seu idealismo. A melhor espiritualidade que produziu foi o estoicismo, nascido na stoá, a porta da cidade. Trata-se de uma espiritualidade aristocrática, de elite intelectual e de refinamento narcisista da cultura. O que interessa aqui é perguntar o quanto perdura, no atual imaginário da cidade, desta estruturação e desta espiritualidade, desta “alma” que se chama aristocracia, elite, o privilégio “dos melhores”. Onde a cidade se estrutura em torno dos “melhores”, os rudes devem mimetizar os cultos, venerá-los como mediadores sacerdotais dos valores mais sagrados, enfim de Deus mesmo.

3 henrique Lima Vaz, um dos melhores filósofos do Brasil, ao estudar a gênese da modernidade, situa-a em três momentos: o primeiro na cidade grega e no nascimento da filosofia, o segundo no século XIII, modernidade religiosa caracterizada pela catedral e pela universidade, e o terceiro, que ele chamou de “modernidade moderna”, os últimos séculos, a que normalmente chamamos especificamente de modernidade. Para cada modernidade há uma cidade que lhe corresponde.

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Por isso, se por um lado o cristianismo se ambientaria nas cidades, encontrando nelas a abertura e a flexibilidade para a novidade que o campo não tem, por outro lado, o cristianismo encontrou hospitalidade entre os trabalhadores manuais, artesãos, servos, gente simples do povo que lutava diariamente com a vulnerabilidade cotidiana da carne. É exemplar o caso de Corinto.

1.2. A Urbe romana: Urbs et Orbis terrarum

Roma é a grande experiência da cidade “imperial” que está no imaginário ocidental, um modelo para a Paris de Napoleão, para mussolini, para New York com seu World Trade Center, para os impérios que desejam ser centro mundial numa “Roma rediviva”, numa “Roma eterna”, capaz de renascer como fênix das cinzas. É a cidade imperial que incorpora, que “catoliciza”, que globaliza, que rege a diversidade de povos, de valores e de deuses, que sincretiza com a condição de submissão ao seu poder e aos seus deuses. Ela renova ritualmente sua fundação em todas as regiões conquistadas e representa seus deuses em seu centro de poder. Basta percorrer as ruínas do Foro Imperial de Roma e contemplar, ao longo da “Via Sacra” que leva ao Capitólio e ao templo de Júpiter capitolino, os templos das divindades romanas e suas histórias para compreender que se trata de deuses da fusão entre Direito e poder, parceiros do poder imperial invicto. Roma, com o seu Senado, seus tribunos, seus oficiais de exército, seu Direito, é a cidade sob medida, edificada sobre a medida jurídica. O jus romano estrutura o poder imperial da cidade. Sua alma respira poder, conspira poder, deseja poder. Entende sua missão, seu exército, seus oficiais como portadores da civilização, do Direito e da Pax romana, e nisso entende também os seus deuses máximos, seus ritos e seus sumos sacerdotes.

mas Roma também globaliza em seu próprio ventre os inimigos, os estrangeiros. É uma cidade imperial com lances de guerrilha e não só de guerras, com atentados, terrorismo e revoltas intestinas É geradora de vítimas expiatórias, mais do que qualquer outra cidade, para manter seu equilíbrio.

A cidade imperial, com a espiritualidade do Direito e do poder, com as instituições do poder, com os conchavos dos poderosos, perdura na literatura e no imaginário até nossos dias. O poder e a liturgia do poder, regidos pelo Direito, pelo rito e pela solenidade, pela recitação dos mitos fundantes e sacralizantes, reclamam-se mutuamente. Fortalecem-se mutuamente os poderes dos homens e dos deuses.

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1.3. O castelo e a abadia: duas cidades e dois amores

Com a “vitória” do cristianismo e a criação do mito constantiniano, começa o complicado casamento entre cidade e Igreja, duas cidades e dois amores, trono e altar. Os bispos vão se tornando governadores e príncipes, e os imperadores vão se tornando prelados e figuras do Pantocrator. A “cidade de Deus”, conforme Agostinho, é como trigo em meio ao joio na cidade dos homens, e no mundo se vive a tensão de dois amores, o profano amor à cidade terrena, mas, também o místico amor à cidade celeste.

Com a perda dos caminhos que conduziam a Roma, sinal de perda da alma imperial, num mundo fragmentado, fortificam-se os “castelos” feudais, e depois as “abadias” como alternativa aos castelos, que exerceram certas funções da cidade.

A espiritualidade cristã seria marcada por esta experiência em que o bispo e, em certos casos, o abade, passa a ser também figura de governo, como príncipe, não mais na forma de pessoa jurídica como nos primeiros tempos ainda sob o Direito romano, mas a título pessoal, como pessoa física. Quando o Direito germânico se mescla ao Direito romano, o bispo-príncipe, de fato, passa a ser como que o “dono” da diocese, um senhor feudal em que a diocese é uma espécie de “fazenda”. No espaço feudal, com a verticalidade e servidão das relações, que marcaram até hoje a verticalidade da liturgia e toda a simbologia religiosa cristã, joga-se uma grande ambigüidade sobre a experiência cristã mediada pela convivência urbana: Deus é um Senhor, ora em cumplicidade com o senhor feudal, ora um senhor mais poderoso, mais “dono”, acima do senhor feudal, que o submete e o julga.

1.4. Os municípios ou “comunas” medievais: renascimento sob medida

É na “comuna” ou município medieval que, segundo Comblin, se situa uma das melhores experiências de cidade do Ocidente cristão. O município se organizou com métodos cada vez mais inclusivos, a partir de serviços. Exigiu ou ao menos inspirou formas de democracia e de expressão religiosa e evangélica diferentes do feudalismo já enrijecido. Tal experiência foi tão marcante que até hoje confundimos freqüentemente “cidade” com sede de “município”, ou seja, centro de “munus”, de ministérios, de serviços. Nesse sentido, “a democracia ocidental é muito mais medieval que grega”4.

4 FRANCO JUNIOR hilário, A idade média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1992 (4a.ed), p174.

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O surgimento da praça comunal, da Casa de Conselho (Rathaus) ou Casa Comunal, que administrava a vida comum dos cidadãos, além do surgimento de associações de mútuo auxílio, de pactos de produção econômica entre as classes e entre cidades vizinhas, tudo isso criou uma vitalidade e uma espiritualidade mais humanística. Por isso os municípios ou comunas não foram bem vistas pelos senhores feudais e por bispos príncipes, que endemonizaram as cidades. A vocação de casamento da Igreja cristã local com a cidade, já ensaiada no interior do império, com “um bispo, um presbitério, um povo” ativamente participante, poderia ter encontrado na comuna medieval as condições de uma excelente experiência. Apesar disso, a persistência do exercício feudal do poder e da propriedade, e a estruturação rural das paróquias, não permitiram à Igreja um casamento mais feliz com a alma da cidade-município. Entre a cidade e a Igreja, foram as Fraternidades, as Ordens, sobretudo as Ordens mendicantes, e os Cabidos, os que conseguiram fazer pontes, entender os novos anseios e valores dos moradores das cidades medievais. É então que Cristo desce do hieratismo vertical das abóbadas e dos tronos de pantocrator para ser o irmão de face humana, o “noivo da alma” (São Bernardo), o “irmão humilde” (São Francisco), um Cristo convidando à vida comum, à fraternidade evangélica, ao apostolado itinerante dirigido às cidades.

No entanto, junto com a modernização que representou o século XIII, com a instalação de universidades, com o progresso na agricultura, nas artes, na arquitetura, representada monumentalmente pela catedral, fruto das energias somadas da cidade, também a recriação econômica do dinheiro e a incrementação da usura, traindo a ambição da burguesia para se tornar nobre como a classe feudal através da produção de riqueza e dinheiro, já que a burguesia não era nobre por sangue e por herança, tudo isso colocou as Ordens religiosas em clima de pregação apocalíptica sobre a cidade e até contra a cidade. Deus não estava contente com a cidade, e acenderam-se fogueiras5. O caso de Savonarola, com seu programa de reforma da cidade de Florença, seu conflito com os novos poderes e o do Papa, e finalmente sua execução, ilustram bem a crise em que mergulhou a cidade e a dificuldade de experiência de Deus nela. mas a grande lição da comuna ou município medieval está no imaginário da cidade até hoje, cidade encimada pela torre da Igreja, por seu relógio de sol e por seus sinos convocando ao ato litúrgico em que se representava a cidade inteira.

5 Sobre a dissociação entre a espiritualidade e a cidade no século XVI, cf. DELUmEAU Jean, História do medo no Ocidente – 1300-1800. São Paulo: Companhia das letras, 1989, p219ss.

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1.5. A cidade entre “honestos prazeres” e piedade barroca popular

O Renascimento significou volta às fontes cristãs e reforma da espiritualidade em muitos ambientes da Europa central. mas foi também um movimento helenizante e “elitizante”, sobretudo na Itália: um empoderamento de clãs familiares, uma estetização do poder, um renascimento mais helênico do que bíblico. Ainda hoje se pode encontrar nas muretas dos jardins do palácio de verão dos Papas, na Villa Giulia, o elogio aos “honestos prazeres”, a volta à “vida boa” da ética grega e à combinação de carne e espiritualidade no sensualismo neoplatônico.

Em conseqüência, o povo ficou do lado de fora da cidade renascentista, que brilhava nos jardins e nos palácios das famílias poderosas. O povo e as reformas e novas fundações religiosas buscaram abrigo no paradoxo de uma espiritualidade que seria chamada depois “barroca”: do sofrimento à glória, do peso à leveza, do escuro ao claro, do mundo das vaidades e das ilusões à verdadeira realidade que está além ou acima, nas abóbadas. Enquanto os palácios, os jardins, as colunas e fontes das áreas urbanas renascentistas se alinhavam com formalidade clássica, nos fundos dessas fachadas sem dores e sem cruz, no meio popular, entre os servos dos palácios, se expressou a contradição, o realismo distorcido e o ilusionismo consolador. Finalmente, os reis do Ancien Regime concentraram poder retirando-o em grande medida das elites, e o povo ficou ainda mais esmagado sob a servidão e os tributos. Nesse período se acentuam os traços do Senhor dos Passos, o Bom Jesus da paixão, que persevera esmagado pela cruz acompanhado pela compaixão da Dolorosa.

Esta espiritualidade barroca chegou e se adaptou perfeitamente à condição colonial das cidades latino-americanas sob as botas dos capitães e das metrópoles. Aqui a expressão barroca ibérica ganharia os corações de índios e negros, mas receberia destes alguns acentos ainda mais contrastantes e um sincretismo ainda mais tenso. A espiritualidade barroca é, de fato, a alma colonial e a herança que marca as principais cidades latino-americanas. Para entender como se suporta tanto contraste, e para entender a “matriz” da religiosidade urbana dos mais antigos centros urbanos ainda persistentes da América Latina, sua facilidade de reunir contrastes, de suportar e absorver os poderes que lhe são impostos, de se sincretizar em religião universalista através das formas aparentemente contraditórias, em formas de procissões penitenciais com ares de compunção e, simultaneamente, de carnavais catárticos e alegres, é necessário entender bem a marca cristológica e santeira do barroco, marca de ferro em brasa na alma e na

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memória das cidades latino-americanas6. Trata-se de uma matriz que abrigava um pouco de município, muito de feudalismo militar – com o governo de capitães e coronéis – sacramentado pelo feudalismo conventual das Ordens religiosas que marcavam os espaços urbanos em regime colonialista de aliança trono e altar, com caricatura vice-reinos, com autos públicos de fé misturados com a vida dura e o sofrimento popular, com as festas de catarse, ingredientes para os contrastes da cidade barroca.

mesmo quando chegam da Europa, já no século XX, os novos valores da cidade moderna, ilustrada, anticlerical, industrial, esses novos ingredientes incrementam o sincretismo barroco da espiritualidade urbana do continente.

2. A ALMA DA CIDADE MODERnA E COnTEMPORânEA: UMA nOVA JERUSALéM, MAS “TERRESTRE”

Por ser o que nos toca viver epocalmente, mesmo que seja um ideal inalcançável como a “Cidade Ideal” de incompreendido Leonardo da Vinci ou a Utopia do martirizado Thomas morus, ou a Cidade do Sol do herege Campanella, a cidade moderna precisa ocupar nossa atenção por seu estrato teológico. Ela é uma revolução contínua por efeito de uma promessa cada vez mais secularizada que exige a análise do tempo, do espaço, da liberdade, da igualdade, do pluralismo e das tensões que abrem, ao menos pelas frestas, novos convites para o encontro com Deus.

2.1. Os novos valores da cidade moderna

A modernidade é uma aventura espiritual e uma “ousadia histórica” cujos traços se expressam concretamente na cidade. A quarta dimensão do espaço, que tinha sido um espaço em mosaico bidimensional e puramente relacional na expressão bizantina e gótica e que ganhou perspectiva tridimensional no Renascimento, como uma “janela” para um mundo físico, agora se tornou a dimensão principal do espaço: o tempo. O espaço da cidade moderna está marcado por esta quarta dimensão, pelo tempo, de forma cada vez mais vertiginosa através da velocidade e da aceleração7.

6 No caso específico do Brasil, para examinar a “matriz” da religiosidade brasileira, sincrética e universalista, tecida de um universalismo de comunhão tribal, de caráter mágico, xamanístico, cf. BONFATTI Paulo, A expressão popular do sagrado. São Paulo: Paulinas, 2000. AmARAL Leila, Carnaval da alma, Petrópolis: Vozes, 2000. (Ambos prêmio Jabuti 2001 na categoria religião).

7 Cf. WERThEIm margaret Uma história do espaço: de Dante à Internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

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É através da projeção em direção ao futuro, e não da tradição que a manteria presa às raízes, que a cidade moderna se contrapõe decididamente a tudo o que é diverso de seu projeto. A modernidade, como demonstrou bem habermas8, é uma secularização e uma intra-historização do horizonte escatológico, um esforço prometéico e fáustico de trazer o céu para a terra, de realizar, através do progresso, com a confiança na “mão invisível” do “espírito do tempo”, os valores esperados no além, os novíssimos. É onde “o invento substitui o advento”, onde o humano, em suas características sociais, políticas, intelectuais, através de um enorme esforço coletivo, através de uma série de revoluções sem precedentes, decide colocar o fundamento em si mesmo, imanentizando e historizando a metafísica, secularizando e absorvendo a espiritualidade e o messianismo na invenção, na criatividade e na tecnologia.

Nessa revolução da modernidade, que assume com garras de águia o tempo que escorre, tentando administrá-lo, é necessário uma nova colocação do poder, do saber, do ter: O poder vem do povo, não emana de um poder superior divino; a riqueza é produção, ação e trabalho, não uma herança ou simples acúmulo de afortunados; o saber é o exercício metódico da racionalidade. A ciência ganhou o privilégio de “filha primogênita” da cidade moderna por sua capacidade de se transformar em tecnologia, e não uma revelação de autoridade transcendente.

O relógio se desloca da liturgia das horas, das torres e dos sinos, para a fábrica e para o pulso de cada cidadão. O tempo faz parte do projeto, da administração, da economia – time is money. O futuro, imanentizado, é desdobramento do projeto do presente que se lança para o futuro, às expensas do passado. Este, o passado e o antigo, pode ser revisto, criticado, eventualmente reciclado, mas sobretudo destruído em vista do novo que deverá ser construído. O tempo não é o tempo longo da espera e menos ainda da paciência, é velocidade, aceleração, pressão, stress9.

Esta “auto-fundação”, eminentemente ligada ao tempo, se delineou espacialmente, no paradigma fisicalista, mecanicista e industrial, na geografia em que a natureza cede ante a construção, com centros industriais, plantas e canteiros de obras inteiramente planejados, fábricas cercadas de bairros de operários, ruas do comércio e centros comerciais, racionalização das transações, do trânsito, das instituições, dos serviços, da burocracia, e inclusive, como analisa Foucault, “disciplina dos corpos” para que sejam corpos funcionais e produtivos.

8 hABERmAS Jürgen, O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990, p13ss.9 Para aprofundar a fenomenologia das cidades modernas: BERmAN marshall, Tudo o que é sólido

se desmancha no ar. São Paulo: companhia das Letras, 1982.

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Já a informática e os atuais materiais sintéticos de construção e imateriais de comunicação, a atual organização telemática, cibernética, comprimindo o espaço e o tempo na aldeia global através da aceleração da comunicação e do tempo, dando-nos a entender que “tempo real” é “simultaneidade”, é uma nova e mais vertiginosa onda de modernização, uma “hiper” ou “ultra” modernidade, não propriamente uma pós-modernidade. Por trás de tal cenário urbano está a cibernetização das relações humanas e da cidade. Voltaremos a esta situação mais adiante.

Por dentro desta racionalização cada vez mais refinada estão os ideais mais espirituais da modernidade com transfundo cristão: a liberdade e a igualdade. E estes dois valores humanos e cristãos fundamentais se tornam mais visíveis na cidade moderna. Desde os porões do feudalismo hierarquizado em vertical, desde os ensaios das comunas medievais, se suspeitou e se verificou que “o ar da cidade cria liberdade”. A modernização luta, acelera, se estressa, para conquistar-se como espaço de liberdade: de autonomia, de auto-gestão, de auto-certificação. O “ar de liberdade” da cidade começa na emancipação em relação à natureza e seus ciclos de dia e noite, de chuva e sol, de estações e seus condicionamentos. Contrapõe ou ao menos distingue entre cultura e natureza, entre trabalhos manuais e trabalhos liberais, enfim, entre submissão e autonomia. mas não pára na relação com a natureza, volta-se para as instituições sociais.

Embora o Estado democrático e a Escola pública tenham sido bandeiras de emancipação, de liberdade e igualdade, há uma segunda fase em que mesmo estas instituições entram em colisão com a aceleração da modernidade. Que lutou desde os inícios, conforme a bem humorada expressão de Comblin, contra as autoridades patriarcais dos diversos “p”s: príncipes, papas, padres, papais, e depois também professores e políticos, e até a polícia. Ou seja: o Estado, na sua forma absolutista ou paternalista, as Igrejas históricas, a Família tradicional, a Escola, toda instituição que se pretenda “instituição total”, instituição disciplinadora que pretenda ser autoridade sobre a totalidade da vida do indivíduo, torna-se alvo da luta emancipatória. E a cidade moderna é o campo de batalha e a testemunha desta luta.

O messianismo religioso, mediado pela Igreja ou por alguma hierarquia religiosa, seculariza-se no “sujeito histórico” moderno, os sujeitos empreendedores e empresários do capitalismo ou a classe revolucionária e o Estado do socialismo. A autonomia, a liberdade e a igualdade se realizam, em última análise, no indivíduo, na subjetividade. A modernidade é “afirmação da subjetividade” (heidegger), e a cidade moderna é o espaço do respeito ao indivíduo, à vida privada. Por isso

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a igualdade tem mais dificuldade de se expressar do que a liberdade, e o sujeito comunista, tendo o Estado como mediação, fracassou antes do sujeito capitalista que, apesar da tensão e do desgaste entre patrão e operário, se realiza através do próprio capital e de sua sofisticação atual.

É que igualdade, no espaço da cidade moderna, não pode ser a de escravos, mas de cidadãos livres, participantes com as mesmas oportunidades da racionalidade disponível para todos, desde os serviços da cidade até a moral autônoma. Este ideal de igualdade e o seu exercício derrubam a rígida linha vertical das hierarquias e coloca os cidadãos em horizontal, com os mesmos direitos e deveres sem exceção e sem privilégios. Na sua conjugação com a liberdade, é uma igualdade na pluralidade e uma pluralidade na igualdade, o que se pode observar de forma curiosa no vestuário: uma primeira onda desqualificou os vestuários que indicavam diferenças hierárquicas e uniformizou todos no fraque, no paletó, no jeans. Num segundo momento, estoura a couraça do paletó único, para deixar campo à liberdade individual afirmar diferenças sem que isso signifique de novo hierarquia. Os valores da liberdade e da igualdade se apimentam com o pluralismo, com a criatividade da moda. A cidade é o lugar do pluralismo e da moda10

É claro que isso acabaria por influenciar também a prática da religião, as expressões da fé. A liberdade religiosa, a religião do indivíduo, o pluralismo religioso, a igualdade de religiões, os meios modernos de invenção e comunicação, de mercado e de moda acabaram encontrando na religião um potencial virtualmente infinito. É o que estamos vivendo com exuberância nas cidades.

2.2. A cidade moderna como promessa

A moda é um “sinal” do que está por vir, um sintoma de modernização. mas é apenas um sinal carregado de promessa – fascínio e promessa de uma chegada que pode inaugurar o paraíso! mas, quando se realiza no presente, se esvai, deixa de ser moda. A sua fugacidade é sua condição de criatividade, de nascividade e de liberdade ou disposição para mais novidade, contanto que seja continuamente fugaz. Não se estabilizar, não se levar a sério institucionalmente, renunciar-se continuamente, aceitar-se em sua efemeridade e frivolidade, é condição para estar sempre “na crista” do novo, do eterno que vem e que não se estabelece nunca. Assim, na metáfora e na experiência da moda, a modernidade continua a ter um caráter escatológico: está na cidade como uma promessa, como uma felicidade ou realização humana que está próxima de acontecer, mas continua sempre no futuro, mesmo que a aceleração e o stress se exacerbem.

10 Cf LIPOVETSKI Gilles, O império do efêmero. São Paulo: Companhia das letras, 1986.

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Jamais fomos modernos é o título de um livro de Bruno Latour11 que demonstra, em uma de suas teses internas, como a modernidade é uma relação com o futuro que se aproxima, mas está sempre mais adiante, num lugar de referência maior e mais abstrato – para a aldeia, está na cidade, para a cidade está na metrópole, para um país está em outro mais moderno, e finalmente está apenas idealmente, mas não realmente, nas grandes metrópoles do mundo. O sonho da cidade moderna separa-nos do mundo real, faz pontes artificiais em busca da realização do que está no horizonte escatológico, a Jerusalém Celeste, às expensas do cotidiano real.

Com o êxodo rural jamais antes visto, sobretudo em países de “terceiro mundo”, já que aqui a única esperança de participar das promessas da cidade seria aproximar-se fisicamente dela, aconteceu uma hipertrofia urbana ou macroencefalia e o começo de degradação, de fragmentação, de bolsões e cinturões de miséria urbana nunca antes visto. A contínua “favelização” das cidades do sul do mundo, a degradação que mergulha as possibilidades das cidades no caos faz com que todas as cidades fiquem cada vez mais parecidas entre si, onde todas as favelas têm as mesmas feições caóticas, almas decaídas em corpos destroçados e sem identidade12. mas ninguém volta atrás: na cidade se está mais perto de tudo, mesmo que esta proximidade humilhe e violente por sua real inacessibilidade. Na cidade se está mais perto da escola para os filhos, mais perto de encontrar um trabalho, mais perto do socorro médico e do hospital, mais perto dos parentes através dos meios públicos de transporte, enfim mais perto de todos os recursos, até das vitrines, mesmo que presentemente não se possa gozar do consumo. Pode-se até tentar, por esta experiência, uma definição de modernidade e de cidade moderna: É o que está mais próximo!

Próximo, mas nunca chega: a velocidade e a aceleração visam aproximar, tentar trazer o mais rápido possível para o presente. Por isso a velocidade e a aceleração até ao stress passam também a ser sintomas de modernidade, compõem o ritmo da cidade moderna. É junto aos grandes “corredores” do tráfego que prosperam bares para jovens, shopings e igrejas. Corre-se cada vez mais, em busca da realização da promessa, que brilha ou sussurra mas não se realiza nunca inteiramente e freqüentemente é perdida no meio da corrida - os valores-fins se perdem e são substituídos pelos valores-meios, conforme a crítica de Roger Garaudy, ficando a aceleração como em um autódromo: cada vez mais veloz,

11 Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.12 Este é o relato de um celebrado fotógrafo brasileiro, Sebastião Salgado, ao se dedicar à fotografia

das grandes catástrofes e das áreas de miséria.

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mas não levando a lugar nenhum13. Finalmente o “lugar”, que sempre teve sua excelência na “morada”, ou seja, no lar, no sítio, na residência, se torna simulacro nos “não-lugares”, espaços da cidade em que nunca se está com as mesmas pessoas: aeroportos, shoppings, praças de alimentação, corredores que passam a ser substitutos de residências.

Assim, a cidade moderna promete sempre passar os recursos do futuro para o presente, da escatologia para a história. Não passa agora, mas é o lugar das oportunidades para passar logo mais: se está sempre próximo, mesmo que nunca se verifique! Vive-se desta mistura de engajamento e de esperança, de “já” e “ainda-não”. mesmo que seja nas ambivalências dolorosas de outra mistura, a de joio e trigo, de riquezas e misérias, de convivência e violência, até o ponto de arriscar se perder todo ideal, todo valor-fim. O que seria o cinismo da cidade já sem alma. É nesse ponto que há necessidade urgente de um “suplemento de alma” para a cidade moderna.

2.3. A cidade e os “olhos dos pobres”

Baudelaire, na modernização de Paris sob Napoleão III, na metade do século XIX, narra seu passeio pela recém-inaugurada e deslumbrante Avenida de Champs-Elysées, com suas calçadas amplas, com seus cafés e suas luzes fascinantes. Sentados junto a uma grande vidraça, ele e a namorada deparam com os olhos de pobres do outro lado da vitrine do café. Olhos de adultos de roupas remendadas, que olham eletrizados para as formas internas da sala de café, olhos de crianças de cabelo desalinhado que olham embevecidas para o café fumegante sobre a mesa dos namorados. São os pobres, sobrantes da modernização, deslocados e expulsos de suas pobres casas pela implacável construção da avenida, e que agora perambulam por um espaço que não é mais seu, em que se tornaram estranhos. Esta estranheza de olhos grandes provoca a reação de desconforto na namorada, que pede para chamar urgentemente o garçom: que retire de cima aqueles olhos enormes de pobres. Olhos que provocam em Baudelaire a ternura dolorosa pela alma dos pobres. Uma experiência espiritual fulminante. E ele termina dizendo: “Os olhos dos pobres acabaram nos separando!”.

13 O arquiteto e pensador francês Paul Virilio, que previu em 1993, dentro de uma lógica arquitetônica da modernidade em aceleração, o choque e a queda do World Trade Center, fundou em sua instituição a disciplina de Dromologia, o estudo do movimento, da velocidade, da corrida em aceleração, para prever os tipos de desastres que acompanham necessariamente as instituições modernas ao provocarem acelerações. É nessa linha que prevê colapsos fantásticos na “cibernética”, no “mundo virtual” do qual agora dependemos cada vez mais.

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Nos países modernizados, a superação da pobreza - e da violência que se desencadeia como os ventos que causam turbulência entre áreas de calor e frio, a violência do contato entre pobres e abastados, não da pobreza em si mesma, mas do desequilíbrio no contato que se dá justamente na cidade - foi vista como uma questão de prazo e desenvolvimento, ou seja, de mais modernização. E os pobres ficariam reduzidos cada vez mais à exceção. mas, sobretudo entre nós, países que passaram mal pela industrialização e pela urbanização, esta tensão se tornou fator de fragmentação e desagregação, de violência urbana e de desespero: depois da decepção, não há mais para onde ir nem no espaço e nem no tempo da cidade moderna, nem para o campo tornado cada vez mais agronegócio, e nem para o passado e para a tradição. Os pobres precisam marchar de roldão para frente, precisam migrar para algum bom ou mau apocalipse, como que estressados entre o mar e os carros do faraó.

É nas fraturas, nos bolsões de vazios urbanos, no pluralismo de indivíduos largados ao seu arbítrio e impossibilitados de participar dos valores e bens da cidade, povo órfão de instituições perambulando como estranhos pela cidade, que nasce outra face da cidade, a cidade precária ou informal, sem a racionalidade e a tecnocracia que foram os meios propulsores da cidade moderna, mas orientada por sentimentos mais primordiais e mais cotidianos, onde se pode esperar, no entanto, algum “suplemento de alma” resistente, um “resto”, um “remendo de alma”, um “remédio” juntado a restos de recursos tradicionais e até ancestrais. Precisamos voltar ao barroco e à ancestralidade nos continentes do sul.

Os recursos tradicionais e ancestrais têm muito a ver com uma cosmovisão religiosa, sacra, que recobre também a visão da cidade, numa relação quase “mágica”. Se tomarmos aqui a palavra “magia” em sentido largo, podemos até admitir, como bem observa Comblin, que a tecnologia moderna é uma das formas da magia, e aparece de forma sincretizada com a magia tradicional aos olhos dos pobres: os computadores, os aviões, os televisores, têm um poder ex opere operato e uma força mágica de realizarem aquilo para que estão preparados, e seus magos são os seus operadores. A relação do povo com a tecnologia é uma relação mágica, nos adverte Comblin. Ora, isso permite um salto para a magia tradicional, para a sabedoria ancestral, para a religião dos rituais e dos xamãs¸ para a “tecnologia espiritual” que retoma força nas periferias das cidades modernas.

Aquilo que é chamado de “pós-modernidade” pelos analistas da crise e do esgotamento da modernidade, tem seu epicentro nas cidades metropolitanas das regiões ricas do mundo. Nelas se verifica de modo próprio que “tudo o que é sólido se desmancha no ar”, inclusive o World Trade Center. há, de fato,

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uma crise da consciência forte – cartesiana e mecanisista, racionalidade crítica e instrumentalizada - com perda dos valores da modernidade em função da hipertrofia dos meios tecnológicos – a funcionalidade, a produtividade, a capacidade de consumo, etc. E assim, a um movimento de hipertrofia ou de “supermodernização”, de superaquecimento, de aceleração até ao stress, o que se tem é uma explosão ou implosão, um “esvaziamento”, uma queda na des-substancialização, tanto da razão como da ação, do trabalho, da consciência, das instituições modernas como o Estado, a democracia representativa, a Escola e a ciência eticamente neutra e objetivante etc. É o momento da “depressão” da cidade, do seu esvaziamento. E finalmente, no “vazio pós-moderno”, na depressão, no espaço vazio não só dos valores tradicionais mas também dos valores modernos, entram os ventos esotéricos tipo New Age, e suas magias espirituais em vista de um novo sentido, uma nova plataforma, uma nova promessa. O sentido é experimentado não mais desde a razão, mas desde o sentimento, é rigorosamente aquilo que é “sentido” e que se torna referência de sentido espiritual. É também certa “ressurreição da carne”, redescoberta do corpo e das emoções como sentido, em que “a profundidade está na pele”14. A cidade, que já deslocara o sentido da homilia para o comício, depois para o esporte e para a academia, desloca também para novos espaços religiosos, novas magias e novas formas de religião. mas essa análise só tem sustentação adequada para cidades pós-industriais abastadas. Entre nós, cidades do “terceiro mundo”, há uma complexidade mais rica.

De fato, na condição periférica da cidade moderna, a religiosidade ganha um sincretismo de duas magias, a moderna, pela qual se pode inclusive trocar de religião como vestuários de moda, com a recuperação de uma magia mais antiga, a sacralidade que emerge das profundezas das emoções e das palavras inflamadas dos pregadores, dos missionários, dos libertadores e sanadores, portanto o entusiasmo espiritual, que toma conta e re-funda a vida dos pobres na cidade, e, de certa forma, re-funda a cidade para os pobres, fazendo uma hermenêutica de toda a cidade centrada nessa experiência espiritual. Não se pode chamar a isso, adequadamente, de pós-modernidade, mas nem de pré-modernidade, como se

14 “Numa sociedade em que a melhoria contínua das condições de vida materiais praticamente ascendeu ao estatuto de religião, viver melhor tornou-se uma paixão coletiva, o objetivo supremo das sociedades democráticas, um ideal nunca por demais exaltado. Entramos assim numa nova fase do capitalismo: a sociedade do hiperconsumo. Eis que nasce um terceiro tipo de Homo consumericus, voraz, móvel, flexível, liberto da antiga cultura de classe, imprevisível nos seus gostos e nas suas compras e sedento de experiências emocionais e de (mais) bem-estar, de marcas, de autenticidade, de imediatidade, de comunicação. Tudo se passa como se, doravante, o consumo funcionasse como um império sem tempos mortos cujos contornos são infinitos. mas estes prazeres privados originam uma felicidade paradoxal: nunca o indivíduo contemporâneo atingiu um tal grau de abandono”(LIPOVETSKY Gilles, A Felicidade Paradoxal. Ensaio sobre a Sociedade do hiperconsumo. Edições 70, 2007.

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fosse simples persistência do pré-moderno na cidade moderna. Basta lembrar que no pré-modernidade religião tem o status de lei imutável: “nesta lei nasci e nesta lei quero morrer!” A situação, hoje, tem muito a ver com o pentecostalismo quando atinge o catolicismo popular, criando com a cidade uma nova relação. É o que pretendo indicar na segunda parte desta conferência. mas Pentecostes é apenas um novo ponto de fundação, uma re-fundação de caráter religioso. mesmo nos Atos dos Apóstolos, há um percurso muito complexo da comunidade pentecostal cristão em relação às cidade, desde Jerusalém até Roma passando por distintas cidades da ecumêne.

hoje, nas periferias das cidades, a relação entre a “experiência religiosa” e a cidade – relação vivida pentecostalmente pelo catolicismo popular, mesmo dos “ex-católicos” e agora membros de comunidades cristãs autônomas - ganha uma tensão dialética e leva a conseqüências notáveis, inclusive na observação de cientistas sociais, antropólogos e políticos.

De fato, nas periferias informais da cidade, avolumando-se e complexificando-se numa teia com certa formalização criativa, está um grande fenômeno da cidade real em países como os latino-americanos e africanos. Nessas periferias vão se atuando de forma bastante surpreendente os valores da modernidade já assassinados pela tecnocracia na cidade formal, que perdeu os valores-fins e se assegura em valores-meios como fins. Na periferia se pode experimentar uma condição de igualdade do tipo communitas da antropologia de Victor Turner15, uma igualdade e uma solidariedade baseadas exatamente na precária condição comum e sem defesas individualistas, condição partilhada de pobreza e vulnerabilidade, de despojamento e abertura a outros ainda que seja de forma bastante forçada. A communitas dos grupos religiosos das periferias recupera o sentido de pertença, de lugar próprio, de habitação, de segurança. É lugar de recriação no meio do caos, ainda que juntando fractais e restos de realidades em estilhaços. Tem a sua forma própria de exercício da liberdade, uma liberdade em relação ao sistema, à burocracia e à tecnocracia. Ou seja, os valores últimos da modernidade, valores escatológicos que combinam comunhão e liberdade, pluralismo e sentido de pertença, na cidade real de hoje são mais atuados nas periferias informais do que na cidade formal.

Nessas circunstâncias, a experiência de Deus, experiência que sincretiza tradições xamanísticas, rituais mágicos, memória cristã, catolicismo popular – no caso das grandes cidades latino-americanas em geral – com a condição “pós-moderna” dos sentidos, da emoção, da corporeidade, da dimensão lúdica e

15 cf TURNER Victor, O processo ritual. Estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1978.

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mística ao mesmo tempo - “carnaval da alma” - tornou-se, de fato, uma plataforma agregadora, com devolução da auto-estima, capacidade de resistência e de paciência ao mesmo tempo, conservação do mínimo de dignidade humana e de senso moral, de ordem num ambiente desordenado que pode deslizar facilmente para o caos, ou seja, a violência. Tudo isso está documentado por pesquisas e conclusões de teses universitárias na área de antropologia da religião, área que, sintomaticamente, cresceu muito16.

Em termos cristãos, esta condição urbana contemporânea como possibilidade de experiência de Deus ganha muito se tiver a ajuda de um discernimento com critérios evangélicos, bíblicos. E se tiver uma Igreja que assuma como sinal de Deus esta experiência espiritual e pentecostal da cidade desde a sua periferia informal. E se a Igreja se constituir em “Igreja local”, Igreja “da cidade”. Para tanto, não basta superar a territorialidade das paróquias como aldeias contíguas, mas é necessária a liberdade criativa a partir das culturas locais e dos seus sujeitos locais.

2.4. A cibercidade: Da cidade física à “AlphaWorld”

O realismo científico que desbotou a visão simbólica dos espaços introduziu um sentido cruamente fisicalista, sem poesia e sem qualidade, tanto na terra como no céu: um infinito quantitativo e frio, homogêneo e vazio, sobre nossas cabeças. O espaço da nova ciência que combina realidade quântica com as leis da relatividade se complexificou em mais de quatro dimensões, em possivelmente onze dimensões. A aventura humana se tornou uma “jornada nas estrelas” onde muita coisa é possível, mas sem rumo. É estranho que tanta ciência e tantas dimensões nos tenham levado ao mesmo tempo a múltiplas possibilidades e ao vazio. O vazio aterrissou na cidade e na cultura pós-moderna. mas a revolução da informática introduziu uma nova realidade imaterial, com traços espirituais, e está em plena fase inflacionária depois do seu próprio “big-bang”, como sugere margaret Wertheim em seu ensaio Uma história do espaço: de Dante à Internet17.

A novidade é que um número crescente de pessoas está migrando para o novo espaço e fundando verdadeiras cidades virtuais, onde a arquitetura virtual constrói habitações, centros de lazer, etc. Verdadeiramente fantásticos. E o mais importante: cada um pode desenhar seu corpo virtual, seu “avatar” mais perfeito do que o corpo físico, praticamente imortal com a idade desejada e com as relações escolhidas. É a “Second Life”, tão virtual e ao mesmo tempo tão realista em sua

16 Cf. Ari Pedro Oro; Carlos Alberto Steil. (Org.). Globalização e religião. Petrópolis: Vozes, 1997.17 Opus cit.

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capacidade de modelar o humano a ponto de empresas de serviços e negócios já estarem montando suas lojas de atendimento nesse mundo hipertópico, platônico e tecnológico ao mesmo tempo.

É certo que a rede de comunicação global se tornou um paradigma, que veio para ficar e que pode ajudar imensamente a modelar uma cidade nova com uma rede de relações não só mais eficientes, mas também de grande qualidade humana. A Internet está sendo habitada pela solidariedade e pelos crimes humanos. mas deixar para trás nossos corpos físicos para habitar um mundo idealizado e construído virtualmente é uma tentativa que não tem parentesco com o que há de genuíno na antropologia bíblica e cristã. Numa cidade de carne e osso somos convidados a conviver com pessoas que nos são dadas, não nos reduzindo apenas com quem escolhemos, e com pessoas vulneráveis à doença, ao envelhecimento e à morte por seus corpos de carne. Só nesse mundo corporal e mortal podemos ter abraços calorosos, o que provocava inveja nos deuses do Olimpo. mas a cibercidade é um fenômeno ainda a ser mais bem compreendido. Nessa cidade criada sem matéria por seres humanos que desejam se transportar para além da matéria poderia ser uma “morada de Deus conosco”? há algo de místico no ar, mas como saída da realidade histórica como conhecemos até hoje. Parece ser a tentativa humana mais radical de sair da miséria do real para se elevar ao hiperreal ou simplesmente ao virtual sem riscos de degradação e sem as ambivalências das cidades terrenas.

3. A AMBIVALênCIA DA CIDADE à LUz DAS ESCRITURAS: BABILônIA E JERUSALéM

Em termos de história real, parece mesmo que “tudo começa na mística e termina na política”, começa com boa intenção, com intuição fervorosa, com vigor espiritual, e termina na burocracia da instituição que luta contra o princípio de entropia, de arruinamento, de decadência. A cidade pode ser vista assim: tem uma fundação heróica em seus mitos fundadores e respira com mitos escatológicos que incrementam seus sonhos. mas parece terminar sacrificialista com mitos fundantes e escatológicos que justificam sua condição sacrifical para se manter. A Escritura conserva com rigor, entre o simbólico e o diabólico, apesar da ambivalência extrema, a esperança na cidade na sua regeneração e na realização de sua vocação: ser o lugar de habitação de Deus com seu povo18.

18 cf mORIN A. La ciudad en la Biblia. In: Medellin, Bogotá: Celam, n.63 (set/1990).

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3.1. A cidade como descendência de Caim: Babel, Babilônia, Besta

A Escritura, tendo sob os olhos a cidade real, parte da condição sacrifical da cidade: o primeiro fundador de cidades foi Caim. Essas cidades “cainescas” são decorrências do assassinato e do desencadear da violência. A vida nômade, exposta, cheia de perigos, era o castigo de Caim, mas sua busca de segurança contra seus inimigos reais ou potenciais, que se multiplicam na sombra inclusive da imaginação de sua descendência, leva Caim e seus descendentes a fundarem obsessivamente cidades fortificadas, com muralhas e torres. A Caim, passando por Cam, filho despudorado de Noé, estão ligadas as fundações das cidades cananéias, suas muralhas e sua hostilidade. Caim é pai dos que trabalham com o ferro, pai da técnica, um Prometeu que a Bíblia não deixa chegar ao estatuto de herói. As construções cainescas acabam se tornando não um lugar de glória mas de cólera, destinadas à defesa quando o outro é visto como inimigo e ameaçador. É, assim, o lugar desde onde acontece o esmagamento dos mais fracos sob o mais forte. Tornam-se “potência de cólera”.

Nimrod, o “filho impuro” na descendência de Caim, é assaltante e conquistador de cidades, um Édipo bíblico, também fundador de cidades fortificadas e potências de opressão. Perpetua a cidade fundada a partir do assassinato.

O próprio Davi não escapou desta ambigüidade em Sião, e por isso foi impedido de erguer um templo ao verdadeiro Deus. mais tarde, já no tempo do Novo Testamento, herodes, o Grande, reproduz a saga construtora de Caim na paranóia produzida pela sua própria violência.

As cidades míticas de Sodoma e Gomorra também portam o crime de Caim. Nelas o abuso sexual é a linguagem de um crime mais profundo: o ferimento à hospitalidade, a incapacidade de acolher e ser guardião daqueles que se aproximam com vulnerabilidade. Esta violência inóspita acontece diante de Jesus nas cidades de Cafarnaum, Corozaim, Betsaida, e inclusive Jerusalém – piores que Sodoma e Gomorra. Para Jesus, Tiro e Sidônia, as cidades dos pagãos, dos outros, de outra religião, e até Sodoma e Gomorra, teriam acolhido melhor o enviado de Deus, enquanto as novas Sodomas e Gomorras seguiriam o curso desencadeado por sua violência e seriam logicamente destruídas pela própria violência.

A cidade de Nínive, porém, se torna uma lição de remissão: era a “cidade sangrenta”, máquina de guerra, potência imperialista, hipertrofiada por seu próprio gigantismo, perdendo-se em si mesma. mereceu repetidas maldições por parte dos violentados. mas, uma vez entrada em sua violência endógena, mastodôntica, Deus se lembra dela, de seus habitantes, e não a rejeita definitivamente, de tal

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forma que lhe providencia um profeta para salvá-la apesar da relutância de Jonas, seu “agente de pastoral”.

Babilônia é a síntese de toda cidade cainesca. Sobre ela, sobre a experiência diabólica que dela faz Israel, está calcada a narrativa do episódio, tão denso embora curto, da cidade de Babel. Ela é o símbolo da cidade perversa, baseada teologicamente em duas afirmações que revelam um projeto: “Construamos uma cidade e uma torre cujo ápice penetre nos céus! Façamo-nos um nome” (Gn 11,3). metáfora da hibris prometéica, misto de orgulho, de auto-suficiência e rebelião. Por isso Babilônia – Babel – é a cidade da idolatria, matriz de toda idolatria levada ao paroxismo. Sua etimologia se aproxima muito das palavras “Abel” e “Eva”, ambas significando “vazio” num sentido diferente, neutro e positivo, respectivamente. mas Babel é vazia num sentido negativo, e mascara seu vazio com a couraça da religião: o ídolo não tem vida, é vazio, mas adquire apotência da hibris projetada nele.

Israel já tinha conhecido esta capacidade diabólica nas cidades cananéias, todas organizadas por uma arquitetura que os textos desmascaram: elevadas sobre uma colina – tel – brilham com fascínio religioso, com poderio militar, com troca de favores entre a divindade protetora nos cultos litúrgico-econômicos e os que administram as necessidades de fertilidade, de segurança, entre o medo e a culpa. As cidades conjugadas com o binômio templo-torre militar, sacerdotes-exército, deus-rei, altar-trono, tornam-se verdadeiro “buraco negro” que absorve, tritura e não devolve cadáver. As cidades nunca foram tão opressoras como quando oprimiram com sedução religiosa. No entanto, de toda opressão sempre subiu um clamor. No Egito como e na Babilônia, como sabemos da Escritura, o Deus vivo e verdadeiro se revela libertador dos oprimidos da cidade. Assim como afogou o faraó com seus exércitos, carros e cavalos, também deixou cair Babilônia como uma estátua imensa, aparentemente sólida, mas com pés de barro, com uma fundação que lhe traria violência intestina e decadência. Um ídolo, inclusive a cidade constituída com a sacralidade do ídolo, é uma mentira, uma produção fascinante sem base sólida na realidade.

Assim, concluímos provisoriamente com um trágico realismo: a face diabólica da cidade leva de roldão as “civilizações”. Começadas com a alegria da realização de um sonho, as cidades se tornam Babel como que por sua inércia, e acabam revelando algo mais secreto que se torna pesadelo: imposição de desejos e ambições desmedidas, desequilíbrio de relações superpostas, perda de uma linguagem comum a todos, centros geradores de opressão e espoliação, violência e desumanidade. Babel é o modelo da anti-cidade, da anti-urbanidade, a cidade embrutecida, exatamente o oposto do que deve ser uma verdadeira cidade. Babel

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é uma acusação teológica a todos os centros de poder. No Novo Testamento, é uma acusação sobre a perversidade de Jerusalém e sobre o imperialismo da Roma de César. mas Lutero acusa também a Roma dos Papas como sendo a mesma Babilônia.

3.2. Jerusalém: a cidade santa e pecadora

Se é verdade que “a cidade natal é o umbigo do mundo”, Jerusalém é um umbigo teológico: “Eis a Filistéia, Tiro e Etiópia, onde tal homem nasceu. mas de Sião será dito: todo homem ali nasceu. Javé inscreve os povos no registro: Este homem ali nasceu, tanto os príncipes como os filhos, todos têm sua morada em ti”(Sl 87, 4-7). O que Jerusalém tem que as outras cidades não têm? Não era Roma também umbilicus mundi?

3.2.1. A Primeira Jerusalém: habitação da Aliança e sede da justiça

Jerusalém era uma cidade de Jebuseus. Davi não foi um fundador de cidade, pois ela já era uma realidade. mas, trazendo para ela a Arca da Aliança, Davi organizou-a e tornou-a “sede da justiça”. O privilégio de Jerusalém está em sediar a Arca da Aliança e se tornar assim a sede da justiça. É a Aliança que a torna teologicamente relevante, pólo do mundo, sacramento da bênção e das promessas, lugar da Shekináh, habitação de Deus com seu povo, ainda antes da existência de um templo.

Quando Davi, uma vez estabelecido em Jerusalém o seu trono e sua sede militar, quis também construir um templo para a Arca da Aliança, correndo o risco das cidades idólatras que absorvem e manipulam Deus, foi Deus mesmo, lembrando que é o Criador dos céus e da terra, quem inverteu a intenção de Davi: “Acaso aquele que acompanhou seu povo no deserto precisa casa? Eu te edificarei uma casa”(2Sm 7,5ss). Portanto, Jerusalém, que é sede da justiça e guardiã da Aliança, é edificação de uma “casa-para-o-humano”. Torna-se, segundo a Bíblia, o “tipo” primordial da cidade que deve ser verdadeiramente humana, inspiração de muitos sonhos, de poemas, de cânticos político-religiosos, os salmos de Sião, e finalmente a base do sonho da cidade utópica, a Nova Jerusalém.

3.2.2. Jerusalém homicida e prostituta

Jerusalém, no entanto, na dura realidade, tem as mesmas contradições de todas as outras cidades, inclusive a idolatria. merece dos profetas as mesmas

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críticas do Egito, de Babilônia, de Sodoma, enfim de Babel. Com um agravante: por ser originalmente a cidade testemunha da Aliança, constituída como sede da justiça, e por ter o compromisso de praticar o Código da Aliança além de se tornar lugar de opressão, a sangrenta, idólatra e devassa, Jerusalém se torna a “prostituta”, a amada que se entregou a outros maridos e se desfigurou. É, na realidade, uma cidade manchada de sangue inocente, misturando o sacrifício dos pobres com os sacrifícios no templo ao Deus verdadeiro, numa perfeita monstruosidade, pervertendo o que poderia haver de mais santo e mais humanizante, o Deus vivo da Aliança. Daqui decorre a dureza dos profetas que amam Jerusalém e conhecem sua vocação. Tornam-se eles mesmos vítimas esmagadas pela idolatria que já não é de deuses de mentira mas, pior que isso, da deformação do Deus vivo. Nesse contexto se entende o “ataque contra o templo” de Jeremias 7, em que o profeta acusa a cidade e o templo de abominação, colocando a nu seus os sacrifícios de crianças. O discurso de Jeremias contra o templo e a cidade é retomado nada menos que por Jesus.

A perversão de Jerusalém é tão velha como a cidade: Salomão edificou o templo, engrandeceu Jerusalém e construiu cidades sobre o pesado tributo das tribos. Roboão aumentou a construção e o imposto, provocando o escândalo da divisão de Israel. há reis construtores que começam bem, como Asa e Josafat, “piedosos e pacíficos”, mas acabam mal: a dinâmica mesma da potência em que vai se desdobrando a cidade acaba transformando quem pretende transformá-la. Até herodes, o Grande, que ao mesmo tempo engrandeceu o templo e esmagou inocentes, que fez os discípulos de Jesus admirarem as paredes resplandescentes do templo, mas, na memória de mateus após a derrocada da cidade e do templo, mereceu a ironia profética de Jesus: não iria sobrar pedra sobre pedra. (Cf. mt 24, 2).

3.2.3. Jesus “viu a cidade e chorou sobre ela” (Lc 19,41)

Sobre o monte das Oliveiras, para o peregrino que chega desde Betfagé e Betânia, ao se descortinar Jerusalém, se encontra uma inscrição: Hic Dominus flevit – Aqui o Senhor chorou! Trata-se da lamentação profética sobre a cidade, lamentação de mãe que quer reunir os filhos como a galinha que quer aconchegar em vão os pintinhos. Ao contrário, Jerusalém mata os profetas, apedreja em nome de Deus os próprios enviados de Deus, uma “luta de deuses”, a imagem de Deus petrificada e mumificada no templo contra o Deus vivo e amante de Jerusalém. O choro profético é uma revelação, uma extrema advertência e um último chamado na iminência da catástrofe provocada pela violência intestina da cidade. Apesar

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disso, segundo Lucas, resta uma esperança: “Eis que vossa casa ficará abandonada. Sim, eu vos digo, não me vereis até o dia em que direis: Bendito aquele que vem em nome do Senhor” (Lc 13,35).

Conforme mateus, Jesus não teve ilusões quanto à cidade, pois cresceu marcado pela opressão e pela vontade de matar. Jesus, qual novo moisés, mal escapa da matança dos inocentes perpetrada por herodes. Desta forma, herodes é o novo faraó e o Nabucodonosor doméstico, que faz repetir a lamentação sobre os inocentes em Jerusalém, conforme a citação que mateus faz de Jeremias 31. Para Lucas, com uma pregação mais universalista, por capricho da potência imperial de Roma, Jesus nasce “fora”, sem lugar na cidade. No início da pregação do Reino de Deus, Jesus tomou atitudes que rompiam com as leis que organizavam a convivência legal da cidade às expensas de excluídos: tocou no impuro, devendo então ficar “fora” das cidades (mc 1,45). Ao profetizar a destruição de Jerusalém, Jesus perturbou mais uma vez e se chocou com a “alma perversa da cidade”. Jerusalém organizou, então, o homicídio sob o manto de sacrifício – “que um só homem morra pelo povo e não pereça a nação toda” (Jô 11, 50). Reuniu todas as energias para aniquilar Jesus. Jesus morreu no confronto entre a verdadeira vocação e a potência diabólica da cidade.

3.2.4. Páscoa e Pentecostes: nova aliança e nova fundação da cidade

Embora Jesus tenha ficado “com um pé fora” da cidade, no deserto, na montanha, retirando-se simbolicamente mas também estrategicamente, não abandonou a cidade, como fizeram os essênios. Perambulou para levar a Palavra às cidades, e enviou os discípulos às cidades. O selo de triunfo dos que o executaram não permaneceu sobre a rocha que fechou seu sepulcro expulso da cidade. Através da Páscoa, Jesus reúne de novo os seus no Cenáculo de Jerusalém, conforme a teologia de Lucas: Jerusalém é a cidade em que o amor de Deus é mais forte do que a perdição da amada, e é nela que se realiza o amor esponsal da Páscoa.

O Cenáculo, a comunidade em torna à mesa, passa a ser o novo templo, a nova Sião. Nele se derrama o Espírito Santo, e Jerusalém se torna o lugar de Pentecostes, tudo o que é oposto a Babel: a biodiversidade humana, simbolizada pela multiplicidade de línguas, não é maldição nem confusão nem dispersão, mas é testemunha das maravilhas da criação, todos compreendendo a boa notícia e louvando a Deus em suas próprias línguas. Em Jerusalém começa um povo novo, que supera os muros da inimizade, reunindo judeus e pagãos, fazendo do “nós e

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vós” um só povo e assim instaurando o mais precioso dom da convivência cidadã, a paz (cf Ef 2,14). Jerusalém se renova, se resgata, nessa novidade que inaugura uma Nova Jerusalém. O Cenáculo, a Paz do Ressuscitado, a vinda do Espírito sobre as diferentes línguas, talvez sejam os sinais mais altos de Deus à cidade, a mística cristã da cidade por excelência.

3.3. A nova Jerusalém, cidade celeste

Desde Jerusalém, o evangelho se expande para outras cidades, mesmo em meio a perseguições. Depois do contraste do evangelho com o pensamento elitista de Atenas, Paulo chega em Corinto com tremor, mas escuta em sonho: “Não temas e continua a falar porque eu estou contigo (...) pois tenho um povo numeroso nesta cidade” (Atos 18,9-10). De Jerusalém a Roma, cria-se uma ecumêne que iria fazer os cristãos estar em casa e em sua cidade estando em qualquer lugar, embora também peregrinos “da cidade que está para vir”, entre um “já” que valoriza e abraça todo lugar, e um “ainda não” que espera vislumbrando no horizonte a Cidade Nova que lhe dá energia e sentido19.

Os “pagãos”, mais difíceis de abraçar a boa novidade são os que estão nos campos, fora da cidade. É que, antropologicamente, a cidade é o lugar disponível

19 há uma descrição da condição cidadã dos primeiros cristãos que vale a pena ler inteira na Carta a Diogneto, em torno do ano 150: “Os cristãos não são diferentes dos outros homens nem pelo território, nem pela língua, nem pelo modo de viver. Eles não moram numa cidade exclusivamente sua, não usam uma língua própria, nem levam um gênero de vida especial. A sua doutrina não é conquista do pensamento e do esforço dos homens estudiosos, nem professam, como fazem alguns, um sistema filosófico humano. moram em cidades gregas ou bárbaras, como coube em sorte a cada um, e, adaptando-se aos costumes de vestir, de comer e em todo o resto de vida, dão exemplo de uma forma de vida social maravilhosa que, segundo todos confessam, é inacreditável. habitam na respectiva pátria, mas como estrangeiros; participam em todas as honras como cidadãos e suportam tudo como estrangeiros. (...) Todas as terras estrangeiras são uma pátria para eles e todas as pátrias são terras estrangeiras... Vivem da carne, mas não são segundo a carne. moram na terra, mas são cidadãos do céu. Obedecem às leis estabelecidas, mas através do seu teor de vida superam as leis. Amam a todos e por todos são perseguidos. Não os conhecem e condenam-nos; dão-lhes a morte e eles recebem a vida. São mendigos e enriquecem a muitos; encontram-se privados de tudo e tudo têm em abundância. São desprezados e no desprezo encontram glória; difamam-nos e é reconhecida a sua inocência. São injuriados e abençoam; são tratados de modo insolente e eles tratam com reverência. Fazem o bem e são punidos como malfeitores; e, embora punidos, alegram-se quase como se lhes dessem a vida. mas os que odeiam não sabem dizer o motivo do seu ódio. Numa palavra, os cristãos são no mundo o que a alma é no corpo. (Carta a Diogneto 5, 1-17;6,1).

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para a novidade e as mudanças, e não o campo, com seu ritmo sempre igual e resistente. O cristianismo, ao menos nos primeiros séculos, se sentiu mais à vontade na cidade, e encontrou na cidade as abertura de que necessitava para assentar sua novidade. Carregando-se porém, com as ambigüidades da cidade e do império. Foi a sua vocação à encarnação e à inculturação, frente à inelutável ambigüidade histórica, que fez se levantar o horizonte da Cidade Celestial.

Jacques Ellul, tomando a sério o princípio da sola gratia de sua tradição calvinista, insistiu no conflito entre o campo e a cidade que estaria por trás dos textos bíblicos20. A Bíblia seria um conjunto de textos de resistência, de utopias e de lutas dos pobres dos campos, pastores, lavradores, expoliados e marginalizados pela cidade, que olham criticamente para a cidade e suas produções. A verdadeira cidade, como a graça e a salvação, “vem dos céus”, é um dom de Deus, não uma obra humana. mesmo em relação ao Novo Testamento, reconhecendo que as comunidades cristãs crescem nas cidades, que não só as “potências dos ares” mas também as potências perversas da política, da cidade, estão sendo virtualmente vencidas, que o Espírito abre caminho para preparar um povo vivendo na cidade, que o Espírito forma comunidades vivas na cidade, fica-lhe a pergunta: A cidade mesma, com suas estruturas, é resgatável? Ou as comunidades devem apenas viver “na cidade” mas “não ser da cidade”? A própria atitude pastoral é muito diferente dependendo da resposta. Em caso de concordância com a exegese de Ellul, a pastoral realista é a que se dedica ao povo “na cidade” mas não gasta energia com uma “pastoral da cidade”, ou seja, preocupada com a cidade e suas estruturas de convivência cidadã.

Ellul tem uma visão pessimista: a cidade, em si mesma, é sempre potência “humana”, cuja inércia é criação de sistemas cada vez mais complexos, totalizantes e opressores. O homem não consegue, por isso “acabar” sua intenção, sua construção, sua cidade, e entra em contradições insuportáveis, produzindo violência e decadência sem conseguir transcender seu próprio enredamento histórico.

20 cf ELLUL Jacques Sans feu ni lieu. Signification biblique de la grande ville. A análise de Ellul o aproxima da sociologia de corte funcionalista da Escola de Chicago, que fez a contraposição de cidade e campo, urbano e rural, um paradigma de análise, embora os sociólogos de Chicago tenham seguido o caminho inverso, o desprezo pelo rural e pelo natural em favor de uma modernidade cultural construída na cidade. É contra esta esquizofrenia irreal e anti-ecológica, mas também contra um ecologismo contra a técnica, que Bruno Latour afirma sua tese de que Jamais fomos modernos (op.cit) e de que a verdade é uma “hibridação”, uma sintonia cada vez mais fina entre a natureza e a cultura.

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O Apocalipse, segundo Ellul, lembra a experiência dolorosa da cidade, a maldição que pesa sobre ela desde Caim, e o seu colapso final, a derrota de Babilônia. Deus interviria mas “rompendo” com a obra humana e criando ele mesmo, outorgando “do alto”, como já mencionamos, a Cidade Nova. A cidade se torna, assim, a questão cristã entre as obras e a graça.

Não só a sensibilidade católica, representada pela reação mais esperançosa de Comblin, mas mesmo alguém como harvey Cox discorda inteiramente de Ellul21. O paradigma do antagonismo “cidade e campo” corre o risco de reforçar hoje um maniqueismo fundamentalista e simplificador, sobretudo diante da realidade muito mais misturada e complexa de nossa condição urbana. A própria experiência de Jerusalém, lugar da santidade de Deus e também da perversidade, permite fazer leituras mais adequadas sobre o que a Palavra de Deus tem a dizer para a cidade. A perversão significa um modo de ser desviado de um desígnio que “na origem não era assim”. A denúncia, em dialética com o anúncio do desígnio original, tem força para resgatar. O desígnio de Deus é mais verdadeiro, e pelas brechas da mentira e da idolatria da cidade “Deus escreve direito por linhas tortas”. Assim Israel interpretou o próprio Nabucodonosor e Ciro: acabaram por ser instrumentos dos desígnios de Deus.

O desígnio escatológico sobre a cidade histórica faz mover o “princípio-esperança” nas lutas históricas por uma cidade mais próxima da vontade de Deus e do seu Reino. Por isso Deus não salva desprezando a obra humana, mas salva exatamente a obra humana de sua degradação. A cidade Nova do Apocalipse é coroação de uma história que será transfigurada e não desprezada. Por isso seu nome - “Nova Jerusalém” - conserva identidade com a Jerusalém terrestre, tão ambivalente como as cidades pagãs em sua violência e santidade misturadas.

A relação da Nova Cidade com a história está na figura do Cordeiro, aquele que, apesar de ter sido esmagado pela cidade que deveria ter sido sua glória, refunda a cidade quando é reconhecido no seu centro. O simbolismo é claro: aquele que foi executado tragicamente pela cidade mas foi reerguido por Deus se tornou aquele que valoriza os esforços históricos na construção de uma cidade melhor, mais justa e já sem sacrifícios. É necessário estar disposto a dar a vida pela cidade, mesmo por aquela que mata, para resgatá-la.

As primeiras comunidades não apenas se localizaram em cidades axiais do império, mas eram gente dessas cidades, lugares de choques de civilização, de escambos e comércio sofisticado, tráfico de idéias, experimentação e renovação de estilos de vida. Aplicaram nelas o método de Jesus: se localizaram nas cidades

21 COX harvey The secular City. Londres: SCm, 1968. (Cf tb The secular City revisited, 1972)

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desde o lado dos trabalhadores e gente de pouca importância (Cf. 1Cor 1), abordando as estruturas da cidade desde comunidades “alternativas”, desde ensaios de cenáculos e comunidades de partilha, “no meio de uma geração má e pervertida, no seio da qual brilhais como astros no mundo, mensageiros da Palavra de vida”(Fl 2, 15-16).

Os cristão têm um pé na Cidade Escatológica, sabendo que “não temos aqui cidade permanente mas buscamos a que há de vir”, como exorta bem no final o autor da carta aos hebreus saudosistas da velha Jerusalém (hb 13,14), mas a exortação está no final, como está no final de um grande processo histórico a visão e a esperança da Nova Jerusalém. A dialética entre a dura realidade da cidade presente e a certeza do triunfo da Cidade Escatológica não acomoda mas dá capacidade de compromisso sereno e de luta inconformada, tornando a comunidade cristã corresponsável com o Espírito pela criação de sinais concretos da Cidade Nova. Para orientar tal luta com a mística do “já e ainda não”, pode-se descrever a Nova Jerusalém a partir da narrativa dos primeiros cristãos.

3.4. A figura orientadora da nova Jerusalém

“A Bíblia começa com uma cidade idolátrica e opressora que quer chegar até o céu; termina com um cidade transcendente que desce do céu até a terra”22. Em ambas as narrativas se está em clima de “moldura mítico-simbólica para pensar a história, com o espaço e o tempo”23. Nos mitos do Gênesis, se compreende os desígnios de Deus e a perversão desses desígnios. Nos mitos do Apocalipse se antecipa o final dos desígnios de Deus no meio do caminho carregado de ameaças, se dá um salto para frente e se olha panoramicamente a história desde o final que a fé crê: a última palavra é o desígnio de Deus inteiramente realizado, o face-a-face esponsal de céu e terra, de espiritual e corporal, de pluralidade e reunião. A cidade é o centro e a culminância desta paisagem escatológica.

A primeira reunião ou esponsal apocalíptico é a do céu com a terra, a moldura para a descida do trono de Deus, que vem morar na cidade que será o centro do quadro da criação. Deus habitará, então, “assim na terra como no céu”. Na Criação inicial, do Gênesis, há céus e terra, mas não há ainda cidade. A cidade representa a Criação chegada à sua plenitude escatológica.

As grandes cidades históricas tiveram normalmente seus mitos fundantes, suas sagrações com festas, sua circunscrição sacralizante através de sinais que separam o profano do sagrado, como portais, muralhas encimadas por símbolos,

22 RIChAR Pablo, Apocalipse, reconstrução da esperança. Petrópolis: vozes, 1996, p273.23 Ibidem.

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etc. Jerusalém, sobretudo desde o exílio, desde o terceiro Isaías e também na segunda parte de Jeremias, se caracteriza pela configuração escatológica, não pelas fundações nas origens. É uma cidade voltada para o futuro, uma “cidade teologicamente moderna”.

A memória da primeira Jerusalém, neste caso, não é nem saudosista e nem dolorista, mas apenas um sinal, uma memória profética, que ajuda na composição da “maquete” da Cidade Nova, escatológica. Esta sim serve de modelo, de “cânone” que orienta a mística e a pastoral da cidade. As narrativas míticas valem pela qualidade que oferecem à interpretação. E, como dizia reiteradamente Paul Ricoeur, essas narrativas têm qualidade quando inspiram o pensamento, a ação e a esperança, quando dão o que pensar, dão o que fazer e o que esperar24 Por isso vale a pena entrar em alguns de seus detalhes simbólicos que sugerem uma presença mística e até uma prática evangelizadora25:

a) Suas muralhas estão fundadas na Palavra apostólica, reunindo a totalidade da cidade sobre os doze alicerces e dentro das doze portas com os nomes do Novo Israel, novo povo de Deus, mas também resgatando o antigo. Pela Palavra apostólica no alicerce temos não uma sacralização do lugar mas um fundamento “kerigmático” da cidade, o alicerce da Palavra, do Evangelho. A cidade santa se funda na Palavra, na comunicação que cria relações.

b) “O anjo media com medida humana”(Ap 21,17), de tal forma que comprimento, largura, altura, são iguais em quadrado perfeito e imenso, portanto inclusivo e igualitário. É a dimensão antropológica, a “medida humana”, justa e fraternal, da cidade.

c) Tudo é precioso e bem feito, recamado de pedras preciosas diversas, de alto a baixo. há uma rica e enriquecedora diversidade que não atenta contra a igualdade mas concorre para a beleza. E a beleza está especialmente nas muralhas, que já não são de defesa, mas joias de hospitalidade. Suas portas, de fato, estarão sempre abertas, sem separação de sagrado e profano, pois elas representam as boas vindas e a hospitalidade aos povos que entrarão por elas. É o pluralismo, a biodiversidade humana da cidade.

d) há um destaque muito especial para a praça, lugar de aberto e de todos, de reunião e assembléias. Nela o ouro é chão, não é ídolo: sobre ele se engrandecem os que nela se reúnem, na transparência, na dignidade,

24 Cf. RICOEUR Paul, O Mal, um desafio à filosofia e à teologia. Campinas, Papirus, 1983.25 Cf Ibidem 270-284. Comblin op.cit. 93-118.

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todos à luz do dia, que é o próprio Deus. É o lugar de ver Deus face a face, o que era a aspiração máxima do salmista, que nem Abraão ou moisés chegaram a ver plenamente. É a dimensão inclusiva, comunitária, eclesial, da cidade.

e) Não há templo: isso é o que há de mais revolucionário na “religiosidade” da cidade santa, pois não vai precisar de mediações sagradas que portam a forma deste tempo que passa (cf. LG 7, 48). Vive-se na imediatez de Deus, luz que se irradia por toda parte. Ele habita pessoalmente na cidade inteira, sendo sua luz. Novamente, um aceno ao fim da separação entre sagrado e profano. De certa forma, Deus é o templo da cidade e a cidade é o templo de Deus. Ou melhor, “casa”, pois se trata de cidade-noiva e seu esposo. É a dimensão esponsalmente teológica da cidade.

f ) A luz não é de sol ou lua, nem fabricação humana, porque Deus mesmo é a luz, na lâmpada que é o Cordeiro, aquele que deu a vida e está vivo. A glória de Deus brilha assim na cidade, e faz ver todas as coisas por meio de quem deu a vida – o Cordeiro que está centro da praça e da cidade. É o ângulo cristológico da cidade.

g) A cidade reúne diferentes nações e todas terão guarida em suas portas sempre abertas. Tudo será oferta, hospitalidade, acolhimento do “outro”, com a sinceridade das portas abertas, com direito a vir e vir. É o ângulo pacíficador, ético e ecumênico, da cidade.

h) A cidade lembra de forma o paraíso original. Integra, de forma mais abundante, os dons da natureza e da sabedoria, pois desde o centro da praça, de junto do Cordeiro, há um rio ladeado por árvores de vida que frutificam sempre, nos doze meses do ano, e cujas folhas servem para remédio, garantindo a vida. É a dimensão ecológica da cidade, em que supera as esquizofrenias e contraposições cultura-natureza, cidade-campo.

i) O culto será “visão da face” e não mais rituais, O nome mesmo do Cordeiro – o que dá vida – estará na fronte de todos, dando identidade e dignidade, e abolindo assim a tentação babelesca de “dar-se um nome”. Não haverá também noite, pois a luz e a lâmpada – Deus e o Cordeiro – brilharão sem cessar, e não haverá nem lágrimas, nem morte, nem luto. É a comunhão dos santos, a vida sabática, da cidade.

Esta maquete mítica é um sonho mas não uma mentira. É como um sol que se levanta no horizonte da história e envia seus raios. Dá energia e inspiração, pode ser antecipada no “já” dos sinais.

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Como horizonte, é sempre “ainda não”. Sua realização não pode ser marcada no calendário. Um dos erros repetidos historicamente foi a datação e a localização para acontecer a Cidade Nova. É uma forma de milenarismo, e todo milenarismo acaba provocando o contrário do que pretende. Não se pode lançar um projeto de edificação da Cidade de Deus num fanatismo que desconhece os limites e a paciência histórica.Não se espera, porém, passivamente. Sem os sinais, a escatologia seria uma mentira, uma ideologia ingênua ou perigosa por seu poder de mascarar a verdade. Enfim, a Utopia, a Cidade Nova, não cabe na história mas produz algo de si na história, não é a-topia.

COnCLUSãO: A CIDADE à LUz DE DEUS: DE CAIM A ABEL, DO êxODO AO SÁBADO

O que tem a ver a “Nova Jerusalém” com as nossas complexas e contraditórias cidades modernizadas? há uma sugestão na narrativa mítico-apocalíptica: “à sua luz caminharão as nações”(Ap 21,24). A abominação e a mentira – os sacrifícios de inocentes com pretextos sagrados - serão superadas, continua o relato, lembrando os horrores evocados por Jeremias 7. Ou seja, a cidade real, histórica, contraditória, que produz mentiras e lágrimas, cidade de Caim, pode e deve ser colocada e lida à luz deste sonho de Deus, para que ela se transforme em cidade para Abel, o inocente esmagado sem descendência, através daqueles que crêem e lutam por este sonho, justamente os que cumprem a missão que Caim não cumpriu, a de ser cuidador de seu irmão frágil, o “vazio” que o nome Abel sugere.

A cidade para Abel, que agrada a Deus como oferenda perfeita, é a que privilegia o cuidado pelos mais vulneráveis e estabelece relações de reconhecimento e justiça. Caim ainda pode ser redimido e voltar à sua missão. Tem “auxílio divino”, como reconheceu sua mãe, para cumprir sua missão e construir uma cidade para seu irmão que jaz sem descendência como um “morador de rua”, fantasma a assombrar as cidades fortificadas de Caim. Cristo transformou a cidade de Jerusalém, que traiu o Deus vivo e se prostitui tornando-se idólatra e sanguinária, e a tornou cidade do cenáculo e do Espírito. Ele é o Novo Abel, esmagado pela descendência de Caim e sua violência, mas não devolveu violência. Por isso é também o verdadeiro Caim, que tem força divina para construir uma cidade para todos os que são Abel esmagados das nossas cidades cainescas.

A fé bíblica e cristã acredita nos sinais de Deus na cidade. O trabalho, o esforço por construir uma cidade justa, uma cidade para Abel, é como andar em êxodo à luz de Deus. O paradigma do êxodo pode ser colocado para o “ainda

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não” da cidade, para a necessidade de peregrinar, de continuar a luta, enfrentar as dores, em direção ao futuro contado com a sombra protetora da shekinah, da presença do Deus compassivo e próximo dos que na cidade sustentam fadigas. É a dimensão de esperança que move as decisões, os esforços, os movimentos.

mas há um paradigma tão ou mais importante, sobretudo nesse tempo de crise da racionalidade moderna que acabou estressando a cidade, que é o paradigma do Sábado: o eis-odos sabático, a entrada e o repouso num tempo de puro prazer de viver, a convivência lúdica e desarmada em que cessam as funções com suas distinções funcionais e hierárquicas para todos se sentirem mais próximos e dispostos uns para os outros, em que cessa o trabalho para todos se olharem de cabeça erguida, contemplativamente e face a face, cessa a preocupação e o andar solitário de quem se apressa ao trabalho para se transformar num passear calmo e desacelerado, olhando a todos amistosamente, por puro gosto de se estar em uma cidade humana. Cessa a discursividade do falar funcional para se elevar o coro das palavras gratuitas, das canções e das danças. No lugar do fast food e dos lanches apressados em pé, se põe a mesa com o vinho num happy hour sem relógio.

À experiência sabática – ou “dominical” – da cidade corresponde a experiência eucarística da cidade em duplo sentido: a participação de todos à mesa pública de seus espaços, de seus produtos, de suas festas, de suas calçadas, sem a parede que separa os condomínios fechados defendendo-se contra os olhos dos pobres. O sangue de Abel que clama pode e deve ainda ser redimido, como redimido precisa ser Caim ao abrir a cidade para Abel. A possibilidade de estar juntos na praça pública, sem os brasões de gala que separam, mas apenas revestidos com as roupas das flores nos jardins, participando das mesmas músicas e jogos, de concertos, museus e monumentos públicos, do mesmo ar e das mesmas árvores, isso fará a cidade ser a residência do verdadeiro Caim, cujo juízo cabe a Abel e à sua possibilidade de ter nela descendência. Será o lugar por excelência da eucaristia, da gratuidade dominical, da contemplação da obra da semana, das construções e da cultura edificada na conjunção de graça e obras, na forma eucarística de gozo, da ação de graças em grande família, família virtualmente aberta à inclusão de todos. Assim como hegel, criticando a universalidade abstrata de Kant, buscou em Jesus como Cristo e Filho de Deus um universal “concreto”, a cidade se torna “universal concreto” se passar pelo teste da concretude de Abel, se ela tiver um lugar privilegiado para Abel. Assim também Caim será resgatado. Então se pode saborear a cidade como o corpo enfeitado da noiva, na qual Deus mesmo encontrará graça. O que pode ser a liturgia se não a

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celebração profética, antecipada desta shekináh e desta intimidade esponsal de Deus conosco?

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DEUS VIVE NA CIDADE DOS hOmENS

GOD LIVES In CITY OF MEn

helcion Ribeiro *

RESUMO: O texto faz um caminho desde a antropologia religiosa urbana até a teologia narrativa. A cidade tornou-se uma realidade secularizada. Não existem mais espaços para cidades teocráticas. Ao mesmo tempo, as religiões e os “homens do sagrado” têm perdido hegemonias tradicionais, desde a modernidade. Parece que Deus se tornou ausente da vida das cidades. Contudo, Deus vive na cidade. Está presente e atuante na cidade como pedagogo, guardião e criador de sentido de vida. As cidades bíblicas de Babilônia e Jerusalém evidenciam o cuidado de Deus por sua obra, mesmo quando a ação do homem nem sempre siga a mesma perspectiva divina. Já a experiência urbana de Jesus ajuda a descobrir o que Deus faz pelos habitantes da cidade. No tempo atual, homens e mulheres – crentes ou não - ajudam a manifestar que a luta pelo bem comum e pela justiça evidenciam a presença de Deus. Contudo, a presença dos excluídos e marginalizados sociais também evidencia a mesma presença de Deus crucificado na cidade.

PALAVRAS CHAVE: Presença; Justiça; Deus; homem; Cidade; marginalizados.

ABSTRACT: The text makes a way from the urban religious anthropology to the narrative theology. The city has become a secular reality. There are no more spaces for theocratic cities. At the same time, religions and the "holy men" have lost their traditional hegemony, since modernity. It seems that God is absent in the life of cities. however, God lives in the city. he is present and active in the city as educator, guardian and creator of meaning of life. The biblical cities of Babylon and Jerusalem show the care of God for his work, even when the action of man does not always follow the same divine perspective. The urban experience of Jesus already helps to discover what God does for the city's inhabitants. Thus, men and women – believers or not- help to manifest that the fight for the common good and for justice are evidences of the presence of God. however, the presence of excluded and socially marginalized people in the cities highlight the similar presence of crucified God.

KEYWORDS: Presence; Justice; God; man; City; marginalized.

Artigos

* Hélcion Ribeiro é doutor em missiologia, com pós doutorado, bacharel em teologia, licenciado em filosofia e pedagogia Especialista em Supervisão Escolar e metodologia da Pesquisa Científica É autor de mais de oito livros, entre eles: Ensaio de Antropologia cristã, Quem somos, donde viemos e para onde vamos?, Identidade do brasileiro. Capado, sangrado e festeiro. É editor da Revista de Teologia STUDIUm.

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A “cidade onde hoje moram os homens” é um complexo de relações sócio-políticas, eivadas de tecnologia, ciência, comunicação, saberes, normas, mandos/desmandos, transformações; enfim, cheia de vida e morte, liberdade e escravização, de anonimato e de conquistas, de ganhos e perdas. Tudo isso se com-põe, dis-põe e se contra-põe de modo simultâneo, dividido e/ou somado. Tudo isso envolve o processo de urbanização secular, que constrói “a cidade onde moram os homens”.

Nosso texto quer refletir – desde a teologia - sobre o lugar de Deus na construção da cidade dos homens, mas partindo inicialmente da antropologia religiosa urbana. A reflexão nada tem a cotejar a célebre Cidade de Deus, contra os pagãos, de Sto. Agostinho. As propostas do santo são inauditas e fizeram história. Tomada inicialmente como fonte referencial para os cristãos, a Cidade de Deus, ajudou (ajuda) muitos homens e mulheres a perceberem os limites da cidade humana e os suspiros pela cidade de Deus. Todavia, a validade do texto agostiniano só permanece no contraponto ontologizante e teológico que o autor se propusera. (RATZINGER: 1978, 279)

O texto não tem, pois, em conta as ideias de Agostinho. Tão pouco esta reflexão quer se envolver em discussões sobre “o que é a cidade?”, sobre o significado diferenciado de cidade e metrópole ou megalópoles, ou sobre a pastoralidade da(s) igreja(s) na e da cidade. Nossa proposta é prévia à questão pastoral. Propõe-se a uma reflexão teológica sobre o lugar de Deus na cidade.

1. O JOGO DA CIDADE:LIBERDADE, AUTOnOMIA E PRIVACIDADE

A fé, no mundo secular tem, hoje, outros vieses, tipicamente urbanos, apesar da expectativa dos clérigos. Não existem mais cidades “teocráticas”. As cidades são complexas e dinâmicas. A mobilidade urbana produz uma cidade em movimento. homens e mulheres da cidade contraem suas relações segundo seus interesses e não mais conforme o local de residência, trabalho lazer, etc. Por causa da mobilidade urbana os contatos e as relações se intensificam a partir de escolhas e possibilidades. As pessoas não estão mais condicionadas a locais de proximidade. Alguém pode ser casado e viver num bairro, trabalhar noutro, recrear-se num terceiro e conviver com o seu grupo primário (familiares e/ou parentes e amigos) em outro.

De modo igual, acontece com a frequência à religião. Curiosamente, alguém pode ser evangélico e rezar numa igreja católica ou ir ao centro espírita, quando

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não frequentar ainda uma escola muçulmana. A dimensão religiosa tornou-se poliédrica, sem vínculos maiores ou exclusivista. Por isso é mais subjetivo o modo atual de viver a fé. A tradição e a herança religiosa familiar não tem mais relevância. Antes, o que vale – para além da visão pragmática – é o empenho e a adesão pessoais.

A cidade tem suas graças e seus pecados. Entre as graças estão, sobretudo a liberdade, a autonomia, a privacidade1 (enquanto valor urbano). Entre os pecados estão as gritantes injustiças, como corrupção, desemprego, falta de moradia, fome, violência, a presunção machista, a invisibilidade, etc.

mas, a cidade é o espaço maior de oportunidades, diferente do meio rural. Ela é a oportunidade de interação social livre. Enquanto os territórios rurais são demarcados psicossocialmente, os da cidade se constroem por interesses e oportunidades. Nela, é possível mudar tanto o status quanto o papel social. A cidade é ocasião de oportunidades e fonte de libertação social – mesmo tendo um preço a pagar. Não só nas tribos urbanas, jovens de diversos grupos sociais, de escolarização diversificada, podem estar lado a lado. Também, em grupos adultos, a interação pode acontecer a partir de interesses pré-fixados, como o lazer, a cultura, o esporte. Isto não significa a existência de espaços que se tornam exclusivos, como a frequência a determinadas escolas, clubes, lugares de lazer, favelas, periferias e outros controlados pelo poder sócio- econômico.

há uma autonomia para pensar e agir, trabalhar e, até, viver a política, a religiosidade e a fé. As pessoas descobrem seu valor próprio, as circunstâncias da verdade, a bondade das coisas e as ordens específicas, independentemente do controle religioso (cf. GS 36). A mobilidade social (ascensional) pode passar pelo estudo, pelo trabalho, pelos carismas pessoais e até pela “sorte” – não só pela aplicação e empenho em qualificação socioprofissional. As oportunidades são bem mais democráticas e menos preconceituosas. Ninguém será constrangido a permanecer na mesma posição social. Não existem forças sociais ocultas – santas ou maléficas – que limitem a pessoa urbana à permanência social estratificada.

Pode-se viver feliz na cidade ao se assegurar para si e sua família um isolamento que leva à privacidade urbana. Esse valor (privacidade) conferido pela cidade, representa para muitos um fenômeno libertador das ameaças do mundo rural. Ele, inclusive, ajuda a preservar a individualidade e a intimidade essencial à vida humana – o que é diferente dos papeis sociais. Na cidade, tem-se o direito à privacidade e à escolha das pessoas com quem se quer ter proximidade. A

1 harvey Cox, sociólogo da religião, propôs como valor, no mesmo sentido que se empregará neste texto, o conceito de anonimato”. (COX: 1968, pg. 50)

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proximidade física (vizinhança urbana, por exemplo), que não exige a identidade da(s) pessoa(s); Prevê apenas o compromisso com o que é comum (p.ex.: condomínio) ou com a prestação de serviços de solidariedade (p. ex. o socorro emergencial). As chamadas relações primárias (tipo eu-tu) são eletivas. E isso só a privacidade garante na vida de vizinhança. (cf. COX: 1968: pg. 57 ss.).

Sem dúvida tal valor também tem uma face cruel: a invisibilidade – especialmente dos pobres – está ligada à privacidade urbanA. Porque os pobres não têm nome deixam também de ter rosto. Sem nome e sem rosto se tornam invisíveis, na cidade. mesmo que os excluídos sejam expressivamente significativos e “mal-cheirosos”, a cidade também é deles e constituída por ele. Eles amargam dificuldades e sobras das benesses urbanas, pois em geral chegaram desterrados e sem recursos. Chegaram, em geral, de mãos vazias e sem qualificação profissional. Viram-se obrigados a ajeitar-se nos entornos da cidade, distante dos recursos de saúde e outros benesses. Viram-se obrigados a acatar escola, saúde e lazer de categorias inferiores. Aí podem crescer graves comportamentos antissociais porque a luta pelo status urbano é muito mais feroz. A infraestrutura urbana aí é bem mais precária. Aliás, toda a vida aí é precarizada, salvo no que se possa ter de humanidade (humanismo), como solidariedade, disponibilidade, colaboração. Enfim, se a exclusão os alija, a pobreza cria – entre eles- valores que outros cidadãos não experimentam e nem conhecem.

A cidade não só é complexa. É simultaneamente ambígua e contraditória – e isso, antes de ser necessariamente algo ruim, pode ser uma riqueza para um processo de discernimento crítico e para a interação social.

2. A CIDADE E SUA ECUMEnICIDADE RELIGIOSA

As cidades pelo mundo afora, sob o ponto de vista do sagrado, vão se tornando “ecumênicas”. há muitas torres, centros, casas de oração, mesquitas, igrejas e templos. Quase se poderia afirmar: existem muitos deuses na cidade. Isto recorda o encontro de Paulo com os atenienses (cf. At 17,15-34). Em geral, também sobrevive a democracia do sagrado, do religioso. Só em países teocráticos é que há espaço para o hegemonismo religioso. Nos países onde tenha predominado o monopólio de alguma religião - que se apresentava como única e verdadeira - todas as demais eram mal vistas. Quem não acompanhava a hegemônica, tanto se sentia deslocado quanto era marginalizado. mas, os tempos mudaram. A cidade tornou-se aberta a todos os deuses e credos, desde que não causem distúrbio social. Os estados, as cidades vão se tornando secularizados e laicos. Aceitam-se

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todos os grupos religiosos, desde que eles sejam capazes de respeitar as regras de convivialidade social.

mesmo que perdure uma cultura cristã, no ocidente, a cidade democratiza as religiões e seus poderes. Cada vez mais, as religiões são tratadas pelas autoridades públicas com direitos iguais. Apesar de que entre elas, não poucas vezes, surgem querelas e ataques, elas também desenvolvem, crescentemente, programas comuns a favor das causas humanas que emergem na cidade.

Normalmente, as religiões na cidade se respeitam e conseguem delimitar, sem rigidez, seu território social. Isto faz com que apareçam, como já disse acima, a ecumenicidade das torres dos cruzeiros, das meia-luas, dos centros e dos templos religiosos. As religiões que se fazem presentes na cidade têm seus deuses/Deus, sacerdotes, pastores, pais/mãe de santos, emulá, rabinos e outros homens/mulheres do sagrado. Têm seus espaços sagrados, suas doutrinas, cultos, batismos, reuniões, festas e até carnavais sagrados. Também têm, como próprios, códigos de conduta e de moral. Por vezes, têm vestes e objetos sagrados – usados não só em seus espaços próprios, mas também nas ruas – como vestidos colares, hábitos, clergymans, cruzes, etc. Não é incomum ver grupos religiosos em ação, nas praças e/ou diante de templos em suas manifestações, como a marcha de Jesus, procissões e cultos públicos.

mais do que os sinais físicos do sagrado presentes no espaço urbano, é bem maior a voz das religiões através dos meios de comunicação social. Não só durante o dia, mas, sobretudo, à noite, programas religiosos ocupam intensamente emissoras de rádio e televisão. mesmo que de criação recente, os sites, as redes sociais, chats e canais da internet, tornam intensamente presentes a (s) religião(ões), no meio urbano.

A presença do sagrado nas cidades vai além do espaço geográfico (físico), dos espaços midiáticos e tecnológicos. Ela acontece também no tempo cíclico (fixo e repetitivo): o domingo, dia sagrado entre ocidentais, o sábado judeu e a sexta-feira dos muçulmanos. O dia sagrado ou o “dia do sagrado” (tempo sagrado) se manifesta em missas, cultos, reuniões e concentrações religiosas, etc. Na evolução social, o dia sagrado vai se unificando. muçulmanos e judeus vão celebrando sua fé também aos domingos. O “dia de folga”, que tinha origem sociorreligiosa, vai acontecendo a qualquer dia da semana. Ou então o domingo perde sua sacralidade para os “weekends”. Em síntese, o sagrado está manifesto no espaço físico, tecnológico, e no tempo fixo. Ele está nas coisas, nos objetos e nas culturas. Porém, isto pode dizer nada ou quase nada além, de ser elementos da visibilização do sagrado, no espaço secular da cidade. Todavia, não é aí que exclusivamente se encontra Deus na cidade.

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3. EnCOnTRO E DESEnCOnTRO COM DEUS(ES)

O encontro entre Deus e o ser humano só acontece porque ambos são pessoas, capazes de um diálogo, apesar das diferenças óbvias. A religião (o religioso ou o sagrado) pode levar a(os) deus(es), sem dúvida. Todavia, convém recordar, Deus encontra o homem não porque as religiões o apresentam. mas porque ele mesmo é Deus. O ”Eu sou aquele que sou”, não depende do homem e nem das religiões para ser Deus. Ele não é propriedade de alguém ou de algum grupo. São os homens – com suas religiões e objetos sagrados – que pertencem a Ele. Por natureza própria, os detentores do sagrado, em geral, se apropriam de Deus (deuses) e, em seu nome, exercem um poder sagrado. Tais detentores, ao transcendentalizarem seu sagrado, podem também exercer poderes que lhes conferem controle sobre seus “fiéis”. Esse poder pode passar, pastoralmente, tanto pelo controle das consciências quanto da vida social, política e econômica. Nem é necessário recordar apenas fatos históricos de governos teocráticos do passado. Também através de meios de comunicação e técnicas de convencimento, são bem evidentes, a força da influência do religioso ou do sagrado sobre pessoas e grupos.

O poder pastoral – que é diferente do poder político (cf. RUIZ, 2016) – pode manter em estado religioso infantil ou dependente os membros ou comunidades inteiras que se reúnem em centros, terreiros e casas de oração, e, até mesmo comunidades inteiras, como paróquias. O homem urbano é mais livre e autônomo; porem pode ser controlado e mantido “dependente” religiosamente, mesmo quando tem ilustração universitária (3º grau). O agente pastoral, ao querer suprir e preencher as necessidades de seus comandados, pode mantê-los em estado infantil. O pastor se adona das ovelhas, pensando ou se autoconvencendo de que só age em nome do(s) seu(s) deus(es), quando na verdade, faz proselitismo em favor de sua instituição e/ou defende seu ganha pão.

Quem, pois, controla Deus, especialmente na cidade? - Ninguém! Deus, na cidade e/ou em qualquer outra situação, é Deus e não homem, nem super-homem ou herói. É simplesmente Deus que vem ao encontro do homem2. Agentes do sagrado têm tendência de aprisionar, controlar e por os deus(es) a seu serviço. Isto é a ilusão e a falácia do sagrado!

Deus está e vive na cidade. É ele quem encontra os homens e as mulheres. É ele que oportuniza aos homens e mulheres O encontrarem. Pode ele servir-se das

2 É isso que ensina o tratado teológico dos cristãos que fala do Deus econômico em contraposição a Deus imanente, ou seja, Deus que age na história e Deus em si.

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religiões, do sagrado. Ele, que é maior que tudo e acima de tudo, é livre para se manifestar e se deixar ver e/ou possuir. As religiões tanto podem facilitar quanto dificultar o encontro (com significado) com ele/s. De modo similar os encontros do humano com o divino, por meio das religiões – e até independentemente delas - têm níveis existenciais diferentes.

A afirmação da liberdade de Deus – frente ao religioso ou sagrado dos homens – não é nem quer ser a negação da validade das religiões nem a hegemonia ou preferência de uma delas como facilitação do acesso a Ele. Elas têm o papel explícito, insubstituível de agregar pessoas em torno da transcendência – mesmo que tal transcendência tenha se tornado idolátrica. Porém, é preciso lembrar uma afirmação do papa Francisco: “para quem crê, a sua religião é verdadeira”.3

houve na história, situações tais que homens construíram cidades sagradas ou cidade para o(s) deus(es)4 Todavia, Deus, o que constrói a cidade (cf. Sl 127), nunca construiu, nem para si nem para os humanos, uma cidade terrena sagrada. Construir as cidades, segundo a bíblia judaico-cristã, é uma ação de homens que se põem à escuta de seu(s) Deus(es). Ele(s) está(ão) presente(s) aos seres humanos, con-vive(m) com eles e se faz(em) notar através dos homens ou de algo que os envolvem.

4. O DEUS JUDEU-CRISTãO E DUAS CIDADES BÍBLICAS

mesmo que as cidades bíblicas não se assemelhem às cidades atuais, há entre elas dois símbolos bem expressivos de cidade. Babilônia e Jerusalém. O modo de vida urbana (desde e na bíblia), tem um valor referencial, ainda que ambíguo. Babilônia é prioritariamente expressão do mal, mesmo que ocasionalmente Deus se sirva dela para realizar seus desígnios. Jerusalém (histórica) é lugar que Deus escolheu para morar (cf. Sl 98, 68 ss; 132,13-18). Para lá sobem peregrinos de toda parte, pois ela detém um papel de primeira linha na fé e na esperança de Israel. mas, isso não lhe garante o status nem o papel de cidade sempre santa. Que o digam os profetas e mais tarde o próprio Jesus!

Babel (Babilônia) é a cidade da soberba humana, por sua torre (cf. Gn 11,1-9) e arrogância idolátrica. mas Deus também se serve dela para ser um flagelo contra

3 Aqui quero evidenciar três observações: a) esse texto não visa aprofundar a sincera relação do homem com Deus(es), através das instituições sagradas ou das religiões; b) o significado peculiar da relação cristã entre Deus e o homem não está em questão; c) quer-se apenas afirmar mais profunda-mente, que Deus está e vive na cidade, sem precisar da autorização de quem ou do quer que seja

4 Aqui convém não esquecer o “Vale do Amanhecer”, em Brasília.

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Nínive (Na 2, 2-3,19), Israel e reinos vizinhos subjugados por Nabucodonosor (Jer 29, 1-28, 17). Ela é o martelo de Deus para triturar a terra toda (Jr 50,23; 51,20 ss). É o lugar do exilio do resto de Israel (Jr 29, 1-20). É lugar das lágrimas dos hebreus (Sl 137). Pois ela multiplicou seus crimes: magia (Is 47,12), idolatria (Is 46,1; Jr 51,44-52), todo tipo de crueldade... É lugar de malícia (Zc 5,5-m), “cidade do mal (Is 24,10). Ela experimentará o julgamento divino (Is 21,1-10), o Dia de Javé” contra si (Is 13,6 ss.) e a vingança de Javé contra seus deuses (Jr 51,44-57). Será arrasada. Não ficará nela pedra sobre pedra (Is 24,7-18;25,1-5). mesmo que continue a viver na memória dos judeus como a cidade pagã, com um rei tirano e sacrílego, Nabucodonosor, (Dt 2-4; Jdt 1, 1-12. Babilônia é a prostituta, assentada sobre a “besta escarlate, ébria do sangue dos santos”(Ap 18,1 – 19,10). É terrível o juízo dos profetas de Deus sobre elas!

Babilônia e Jerusalém, duas cidades que se confrontam. Jerusalém, cidade santa, é o símbolo da unidade nacional, mas experimenta alternadamente a graça e a ira de Deus. É a “cidade da justiça” e “cidade fiel” (Is 1,26 ss.), “esposa de Javé” (Is 54,4-10), “morada de Deus” (Jer 31,6-12), cujo nome significa ”Javé lá está” (Ez 48,35). Ela teve o privilégio de se constituir como suporte e prefiguração da nova Aliança, onde se encontra com Deus, o conhecimento de Deus, a fé em Deus e a fidelidade a Deus. São realidades, que em último caso, são vividas em comum.

Jerusalém é a cidade onde Deus habita; a cidade amada por Deus, da qual Ele se compadece e a qual levanta do abatimento e da humilhação. É a cidade que tudo deve a Javé. A cidade onde reside a glória divina, onde se estabelece a aliança. A cidade fecunda que merece ser chamada de “a esposa de Deus”. É verdade que todos esses títulos se referem à Jerusalém celeste. (COmBLIN: 1968, pg. 66).

Todavia, por longo tempo seus muros permanecerão em ruínas (cf. Sl 51,20; 102,14-18). E ela, a “fortaleza de Torá”, há de ficar isolada das influências estrangeiras (cf. Ne 13) e perderá a influência e o papel político.

Jerusalém e Babilônia, dois protótipos de cidades bíblicas, que conviveram na ambiguidade, entre Deus e sua ausência. mas, ao mesmo tempo, se tornaram símbolos escatológicos. Nenhuma delas era e nem será o lugar da morada definitiva de Deus.

Deus habita definitivamente apenas uma cidade: a escatológica Jerusalém celeste( cf. hb 11, 9-10.16). Aí não haverá tristeza, dor, infidelidade, nem carências (cf. Ap. 21,4), pois aí Deus será fiel (cf. 2Cor 1,18) e oferecerá o banquete eterno para seus filhos (Ap. 19,17). Nenhuma outra cidade a substituirá. A nova Jerusalém,

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a do alto, na verdade é o próprio Deus. E os homens morarão em Deus, e com Ele eternamente. Tudo o mais, além de limitado, é provisório.

Deus se faz perceber em Babilônia e em Jerusalém, como Senhor, como juiz, e, também, como construtor. O Deus do AT vive na ambiguidade das cidades dos homens. Vive nelas, como salvador e pedagogo, mesmo recusado e/ou odiado. Ele faz-se perceber na palavra e na atitude de milhares de homens e mulheres – crentes ou não. hoje, através deles, vê-se que Deus está presente para abençoar, inspirar ou reprovar atitudes. mas, sua presença – e isto parece paradoxal – transluz mesmo quando não se sente sua presença ou parece que ele está ausente. O Deus da cidade está aí para ajudar a construí-las no empenho da solidariedade e na prática da justiça dos homens.

5. AS ExPêRIEnCIAS URBAnAS DE JESUS

Todavia, a grande questão, aqui, não é a Jerusalém celeste, cidade de Deus. Antes, a questão é a presença de Deus na cidade terrena, onde nós vivemos. – Qual é o lugar dele em nossas cidades? - Convém voltar à bíblia, mais exatamente aos evangelhos e colher alguns significados da presença de Jesus nas cidades, para facilitar a percepção da presença de Deus na cidade, hoje.

Antes da vida pública, Jesus experimentou a vida urbana, por meio do trabalho e pregação. mas não se pode criar uma superioridade para Jesus. Ele foi um homem simples, de hábitos simples, saído do meio do povo. Foi um “artesão da construção” (tekton, cf mc 6,3; mt 13,35), como o fora seu pai. Certamente, com José, terá trabalhado em sua Galileia. E como muitos pesquisadores indicam – teria trabalhado em Séforis. Séforis foi mandada construir por herodes Antípas, nos tempos de Jesus. Ela estava a uns seis quilômetros de Nazaré. Consequentemente não é difícil imaginar Jesus trabalhando ao lado de tantos outros operários para prover seu sustento e de sua família. Tornou-se também operário, recebendo salário.

Como trabalhador ganhou seu pão. Nem por isso pode-se vê-lo como um “líder sindical” ou um promotor de levantes. O que-fazer profissional dele, antes da vida pública, exigiu-lhe dedicação intensa ao trabalho, cujos detalhes não se conhece; antes, pouco se pode dizer deste período. Tem-se deduzido muito sobre o assunto por causa dos inúmeros estudos histórico-arqueológicos atuais sobre aquele tempo. mas, todos eles não passam do que são: deduções. Não pode ignorar que ele nasceu na Galileia, em Nazaré – que era uma região rural. Como

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tekton ganhou o pão com seu suor, não a partir da terra (agricultura), nem a partir do campo (pecuária), nem do mar (pescador); mas de uma atividade urbana: a construção (civil). Isto não o impediu de entender e fazer parábolas, onde o ensino tivesse como pano de fundo também a agricultura, a pesca e a pecuária, além da vida urbana. Por outro lado, mesmo vivendo numa pequena vila rural, nada o impediu de ter contato com o trabalho em Séforis e Tiberíades – grandes cidades. Falava o aramaico, sua língua materna, mas também lia em hebraico (cf. PIKAZA: 2013, pag. 92-97; PUIG: 2006, pg. 18-38). E se andou por aquelas cidades, grandes centros de comércio e negócios, devia entender (falar?!) grego também – ao menos é o que se insinuam dois textos joaninos: 7,35 e 12,20-27.

Seu trabalho artesanal exigia-lhe mobilidade constante, não compatível com o que exigem a agricultura, a pecuária ou a pesca. Essa mobilidade só poderia acontecer de cidade em cidade, mesmo que por vezes o fosse pelas aldeias rurais. Todavia, mais que o trabalho, valeu-lhe a experiência de vida, tanto assim que comenta bem o teólogo espanhol Xabier Pikaza: durante sua vida oculta (cf. Lc 3,23)

aprendeu a ser homem, escutando a Deus através da voz dos outros (cf. hb 5.8). Durante trinta anos, antes de iniciar sua própria obra, ele trabalhou com os pobres de seu povo, aprendendo na dura escola da vida, para escutar por ela a voz de Deus, vinculando-se (dialogando) quiçá com outros grupos ( essênios, proto-fariseus). Só depois, iniciou nas zonas rurais, um movimento social e religioso que pode estender-se a todos os extratos da população, começando pela periferia das cidades do Império Romano. Ele não se opôs às cidades por atavismo rural, mas por protesto contra sua imposição... Primeiro amadureceu como (tekton) artesão, compreendendo e conhecendo a tarefa da vida pela experiência do trabalho e luz sagrada. Depois, abandonou seu trabalho e família, não por negação, mas por chamado de Deus e assim começou a percorrer um caminho distinto, que ninguém até então havia explorado, desde João Batista. (PIKAZA: 2013, pg. 97).

Jesus passava pelas cidades e aldeias da Samaria, Galileia e da Judéia. Em nenhuma delas se instalou de modo definitivo. Aliás, nenhum homem é definitivo em sua cidade. Ele é um peregrinante e hóspede e não teve nelas sequer uma residência.

Os discursos e os relatos de Jesus estão cheios de imagens de construção e das demandas econômicas da cidade, com suas necessidades maiores: armazenamento de alimentos (Lc 12,18), exigências de cálculo dos projetos de

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construção (Lc 14,18); edificação de torres (Lc 13,14) e casas (mt 7,26), salários e venalidade dos coletores de impostos urbanos (DAVEY: 2003, pg. 104).

Nada consta sobre Jesus empenhado em atividades rurais. mesmo sem excluir ou diminuir o significado do homem do campo, Jesus criou relações caracterizadas tanto pelo urbanismo quanto pela vida secular. Atuou ora aqui, ora ali. Jesus esteva à mesa com fariseus, publicanos e pecadores. Estar ali era ocasião de democratizar relações, fazendo com que os excluídos pudessem também chegar à mesa (vide a samaritana e outros curados nessas ocasiões). Os almoços e jantares, para os quais ele era convidado, transformavam-se em encontros fugazes com grupos e pessoas que, todavia, se tornavam significativos para o Reino. Refeições com os simples e com os de boa posição social se tornaram tão marcantes a ponto de serem recordações deixadas por Jesus e marcadas como traço de seu ministério. (cf. CASTILLO: 2010², pg.219 ss., especialmente cap. 9: Jesús y la comida.)

Jesus entrou nas cidades para encontrar homens e mulheres, a fim de pregar-lhes, por palavras e obras, a chegada do Reino de Deus, o caminho novo da humanização dos homens e mulheres e a partilha do bem comum. Livrou a muitos de doenças, aleijões. Sanou as feridas da alma. Perdoou pecadores. Defendeu a dignidade dos excluídos. Exortou os corruptos à conversão. Preocupou-se com a fome do povo. Desautorizou os sacerdotes e fariseus, hipócritas, além de outras autoridades que governavam o povo visando seus interesses. Combateu a exploração no e do templo. Chamou para segui-lo funcionários públicos, filhos de empresários da pesca, gente da oposição. Aceitou, no seu círculo, mulheres de boa e má fama. Inclusive esposas de altos funcionários públicos integravam-se ao seu grupo, financiando-o. Querelou com autoridades evidenciando o significado do ser servidor público (governante). Atendeu e dialogou com multidões. Supriu necessidades de doentes. Teve compaixão dos pobres e das viúvas. Defendeu as crianças e excluídos.

Na religião da cidade, ao seu tempo, Jesus viu uma instituição que se caracterizava pela exploração, através de taxas, esmolas, dízimo, leis e normas. Não era uma religião de liberdade. Antes era ocasião de manter as gentes infantilizadas, cheias de temores e regras a cumprir. Jesus aboliu para os seus, tais comportamentos a ponto de radicalizar: “dias virão em que os verdadeiros adoradores, adorarão em espírito e verdade, nem em Jerusalém, nem em Guarazin” (cf. Jo 4,20-25). Depois resumiu toda a Lei em: amar a Deus de todo o coração e ao próximo como a si mesmo (cf. Lc 10,27). Veio libertar da Lei e da religião. Ele veio humanizar o homem. I. é: para que o ser humano tenha vida plena, já nesta história.

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Enfim, Jesus, o homem que é Deus e Deus que é homem, atravessou as cidades, fazendo o bem (At 10,38). Atuou nela, principalmente junto aos excluídos. Envolveu-se com a prática da justiça. Defendeu o bem comum. mesmo que não tenha se envolvido diretamente com as estruturas, poderes e empenhos da cidade, atuou missionariamente nelas. Presente nelas - não como agente político, econômico, militar ou religioso - não exerceu nenhuma influência no seu funcionamento global. Atuou junto às pessoas percebendo necessidades básicas, discriminações socioeconomicas e morais, questões de justiça social e bem comum. Fez ver que tudo deve estar em função do homem e do bem comum; e não o contrário (cf. mt 12,5)

Atento à estrutura social, permeada de injustiça, Jesus fez críticas capazes de inquietar as autoridades que não estavam a favor daqueles a quem Jesus apontava – pobres, excluídos, indigentes. Os grandes, porém, se apegavam ainda mais aos seus poderes (cf. mt 19,16-28). Jesus, crítico social, ajudou os pobres a compreenderem a realidade que os convertia em marginalizados na cidade e no campo. Sua crítica ao templo (símbolo dos poderes cívicos, econômicos, urbanos e religiosos) atinge tanto o sistema cúltico-religioso, quanto o comercial. Certamente evidenciou esquema de propinas entre dirigentes e mercadores, entre fariseu e sacerdotes.

As idas de Jesus a Jerusalém e ao templo, certamente, o levaram a perceber a multiculturalidade da cidade. Basta recordar que quando da descida do Espírito, na festa de pentecostes, poucos dias depois de sua morte, estavam ali “partos, medos, elamitas, habitantes da mesopotânia, da Judéia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frigia e da Panfilia, do Egito e das regiões da Líbia, próximas de Cirene, romanos que aqui residem, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes” (Atos, 2,9-11). Esta dinâmica de peregrinação (e turismo) que levava povos tão diversos à Jerusalém também terá sido percebida por Jesus. Essa realidade multicultural, em Jerusalém e outras cidades, não terá passado em branco para o Galileu de Nazaré. Jesus terá percebido também a maldade de outras tantas cidades – Tiro, Sidônia, Corazin, Betsaida, Cafarnaum, Ele lastimou sua delas (cf. mt 11, 20-24).

Ele não julgou ser humilhante pôr entre parênteses sua divindade, quando esteve entre nós (Fil 2,4). Todavia, permanece Deus, na possibilidade divina do ser humano total. Esteve entre nós. Foi o Verbo encarnado que morou entre nós, (cf. João 1,1-14), “ habitou entre nós” (Jo 1,10).

Em resumo: “Era o Verbo que veio morar entre os seus” (Jo 1,14). Trabalhou entre os homens, com suas mãos humanas (cf. GS 22 b). Experimentou as alegrias e

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as esperanças, as tristezas e dificuldades dos homens. Entendeu que a experiência de fé – que não dispensa a concretude do cotidiano, perpassa o coração humano, em qualquer lugar, circunstância ou tempo.

É a experiência de Deus que fundamenta a afirmação da Conferência do CELAm, em Aparecida: ”Deus vive na cidade”. Ele está onde estão todos os seus irmãos, pois que todos são filhos e filhas de Deus - crentes ou não, “religiosos” ou não. Deus mora na cidade dos homens, ou melhor, mora com os homens nas cidades.

Os comentários acima, indicando a influência ou a presença das questões humanas, por causa do urbano, vividas por Jesus, são elementos referenciais para se perceber a continuidade da presença de Deus em nossas cidades. Se Jesus ocupou aqueles espaços existenciais, deve-se crer que Deus se ocupa também hoje de circunstancias análogas. Isto faz com que a longa digressão sobre Jesus na cidade, crie outros princípios, também de teologia narrativa para a percepção de Deus na cidade hoje. A partir daquela Cristologia deve-se apontar princípios teológicos, também narrativos, para ver Deus vivente nas cidades. Sob este subtítulo quer-se, a seguir, elencar alguns destes princípios.

6. O SEnTIDO DA PRESEnÇA DE DEUS nA CIDADE DOS HOMEnS

A experiência humana de Jesus, Deus feito homem, vivendo entre os homens, foi enriquecida pelo anúncio da chegada do Reino de Deus. Tudo quanto se disse acima sobre a impacto que Jesus viveu na cidade dos homens, pode ser resumido em sua luta pela justiça de Deus. Do Pai, ele anunciava a vontade divina. E esta é a vontade: que todos os homens pudessem chegar a Deus, o Pai. (Os ortodoxos falam disto como deificação; os protestantes e evangélicos, em justificação; na tradição católica, em santificação. muitos cristãos se referem, hoje, à plenitude humana ou humanização plena.) mas também Jesus entendia que entre eles “seja feita a vontade de Deus”, i.é, a sua justiça. A justiça de Deus – que não é justiça dos homens - envolve a dignidade de todos os filhos e filhas de Deus – pois todos são irmãos/ãs.

Assim a presença de Jesus, com sua pregação, milagres, curas, etc., não foi senão a luta pela justiça, justiça que implica igual dignidade de todos. Dignidade que envolve o compromisso de todos com todos. Tal compromisso não é mera questão horizontal, humanística. É, antes, feita sob a compreensão do que só se torna verdadeiramente humano, aquele que reflete e se reflete no homem

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verdadeiro: Jesus. Isto vale também para os que não “são” de Cristo ou que não o conhecem5.

A verdade de Jesus – acima de qualquer pensamento, poder ou doutrina humana – transcende cada momento e a história toda. Isto só se pode compreender quando se deixa Deus ser Deus e o homem, homem. Deus e os homens são referidos entre si, sem nenhum espaço para uma presunta afirmação de exclusivismo de um ou outro, de uma religião sobre outras, de um grupo sobre outros. A relação Deus-homem cria uma relação paterno-filial. Por isso, ela torna empenhativa a relação fraterna entre os homens.

Os homens são todos filhos do Pai eterno por meio de Jesus, o Filho único. Por conseguinte, todos são irmãos, mesmo que o desconheçam ou neguem essa realidade. Não há outra paternidade nem outra fraternidade - o que inclui a rica de diversidade entre todos. Noutro sentido, existem, na cidade – mais que no meio rural –, situações abertas à liberdade e oportunidades maiores. Aí, todos são chamados a uma convivência – sempre maior, na pedagogia divina – em fraternidade e solidariedade. Desde o olhar de Deus, a cidade oportuniza tais valores, em meio as alegrias, esperanças, tristezas, dores e sofrimentos. Contudo, ninguém deixará de perceber que na cidade, além da fraternidade e da solidariedade, há violência, pobreza, exclusão, fome e miséria.

Assim, a presença de Deus na cidade implica na história da salvação. Ou seja, como no passado Deus esteve presente em Jerusalém e Babilônia; esteve presente também nos passos de Jesus, Ele continua presente agora não só entre os homens de boa vontade, mas entre todos os seres humanos. Daí, a vida construída na cidade é um passo na evolução da humanidade, por causa do encontro e socialização humana (saída dos isolamentos primitivos e tribais até hoje). Pertence a Deus fazer-se presente aí como Deus salvador. A salvação que ele oferece para o homem é exatamente a possibilidade de o homem crescer sempre mais, de personalizar-se através das oportunidades que a cidade oferece.

Deus, o criador, sabe de que barro somos feitos. Ele sabe que os homens e as mulheres e as nossas cidades ainda nem são e nem podem ser já a realização final de seu plano salvífico. Ele sabe quem somos. Conhece as contradições e ambiguidades em que existimos. Por estar presente, como salvador acompanha nosso crescimento desde as cidades onde Ele e nós estamos.

5 A questão aqui não é a dos “cristãos anônimos”. É, antes, a dos filhos e filhas de Deus. O arcebispo Desmond Tutu lembrava sempre e escandalosamente que Deus não é anglicano, nem católico, nem judeu ou muçulmano. Deus é Deus. E é assim que ele ama e chama seus filhos e filhas no Filho amado.

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Sua presença salvadora nunca é visível, apesar de ser sensivelmente existencial. Deus não oferece nem se faz ver como um homem. Ele não é um homem. É Deus. Também não é um enigma que os conhecimentos humanos podem e precisam desvendar. É antes uma presença misteriosa que se manifesta para as pessoas da e na cidade. Todavia, a ele não se experimenta nem se resolve senão existencialmente no abandono e confiança. O homem acessa a Deus, ou melhor, Deus se torna acessível ao homem para dar sentido salvífico à sua vida, inclusive coletivamente. Contudo a cidade não vê o Deus invisível, primeiramente, por causa de sua misteriosidade e, segundamente, porque a manifestação existencial do divino, acontece - mais que nas “coisas”, “objetos” e “profissionais” do sagrado – através das pessoas.

Se por um lado, a cidade é, simultaneamente, um todo plural em movimento, uma totalidade diferenciada; por outro lado, os habitantes das cidades vivem também de modo diverso em conjuntos, como bairros, periferias, condomínios, profissionais de todos os tipos, ilustrados e/ou com pouco estudo; crianças, jovens, idosos e pessoas maduras; ricos, classe média e pobres; familiares, vizinhos, parentes; trabalhos e escolas, etc. mas, sobretudo, de pessoas.

O Documento de Aparecida indica esse fenômeno da multiculturalidade presente na cidade (42) e continua:

Na cidade convivem diferentes categorias sociais como as elites econômicas, sociais e políticas. Nelas coexistem binômios que desafiam cotidianamente: tradição/ modernidade, globalidade/particularidade, inclusão/exclusão, personalização/ desper-sonalização, linguagem secular/linguagem religiosa, homogeneidade/pluralidade, cultura urbana/ pluriculturalismo. (512).

Isso tudo, como diz Comblin, acontece porque a experiência urbana é uma etapa da formação do homem no plano de Deus.

7. DEUS, UM GUARDIãO E PEDAGOGO nA CIDADE

Só se percebe a presença/ausência de Deus, ao olhar a cidade através das pessoas. E as pessoas – mais que os símbolos e sinais sagrados, o que se acenou no início deste texto – são sinais de vida e lutas, de esperança e angústia, de luxo e de miséria, de acolhida ou discriminação, de solidariedade e egocentrismo, de anonimato e socialização, de sonhos e realizações, de buscas e procuras, de liberdade e escravidão, enfim de humanização e desumanização.

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É nesse nível da vida humana que se percebe a presença/ausência de Deus na cidade. No contraditório da vida urbana, pode se descobrir tanto a presença quanto a ausência dele. Ao mesmo tempo, é possível descobrir uma pedagogia de Deus que conduz a história da salvação na cidade, apesar de que os tempos da revelação/compromissos (dos grupos e dos indivíduos) não sejam uniformes. As contradições existenciais, os limites pessoais, entremisturados com a violência e solidariedade, indicam que os homens vivem estágios espirituais diferentes, apesar de estarem numa única cidade, ao mesmo tempo, e na mesma caminhada de salvação. Entretanto, o kairós se sobrepõe ao chronos.

E porque a cidade é dos homens e não de Deus, é que os homens, sobretudo os crentes (cristãos, muçulmanos, espíritas, etc.), precisam descobrir que seus corações inquietos só haverão de repousar em Deus. Na história, eles descobrem a Deus, não por dogmas ou leis ensinadas, mas pelo testemunho dos outros, pela sensibilidade e experiência do sagrado – especialmente através dos irmãos, fundamentalmente dos pobres. Na verdade, os que negam a Deus, certamente estarão negando o deus do sagrado, do religioso, que é mal compreendido, ou mal apresentado ou, ainda, temido. Enquanto que os indiferentes o são porque – ocupados com seus que-fazeres horizontais – não se propuseram perguntas mais verticalizadas, ou finalmente não veem e nem se convencem com o testemunho dos outros, ou ainda não estão maduros para essa experiência radical.

Deus, na cidade, é seu pedagogo e seu guardião. Guardião, porque se suportou a arrogância e o antropocentrismo babilônico e a pretensão de Jerusalém, não só não as destruiu, antes facilitou a conversão delas em meio às ambiguidades. É pedagogo porque abre caminhos inesperados, em que o ser humano, sentindo-se criador, inventor ou descobridor, dá passos significativos na continuidade da criação do mundo. A obra criacional de Deus não depende do homem. mas o homem ao produzir e colaborar no desenvolvimento técnico e científico – consciente ou inconscientemente – torna-se co-criador com Deus. Deus o torna parceiro na criação em benefício dele próprio e de toda obra criada. Deus é guardião da cidade porque orienta e vela pelo progresso e desenvolvimento que os homens devem proporcionar e repartir entre si. É pedagogo na cidade porque, com paciência, aproveita acertos e erros humanos, para que a fraternidade cresça entre todos. Ao mesmo tempo, educa historicamente o homem urbano para a progressiva defesa da dignidade de todos, superando preconceitos e injustiças, incentivando o bem comum, a democratização de todas as relações e a paz.

Deus absconditus atrai para si o homem e todos os homens. Ele os cativa, não pela ciência ou técnica, nem pelas torres urbanas e conquistas midiáticas. Por

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ele ser Deus, cativa existencialmente pelo amor, na profundidade da experiência humana. E aí ele abre para os homens, na cidade, inúmeros caminhos- que podem parecer antagônicos. mas, sempre os leva à “verdade” e a “vida”, em plenitude de eternidade.

Deus está ali com os homens e mulheres que constroem a cidade terrena. Ele se serve, inclusive, das ambiguidades da humanidade a caminho. Acompanha tudo o que acontece com o homem. É Deus imanente, presente na história. Na verdade, não só presente, mas se antecede ao ser humano em tudo e sempre o acompanhará, no desenrolar da história, porque é ele quem constrói a evolução humana.

Em sua encíclica missionária, “Redemptoris missio”, o papa João Paulo II afirmava que o Espírito Santo precede o missionário na terra da missão (cf. especialmente nºs 28-29). muito tempo antes já se fazia esse ensino na Faculdade de missiologia da Pontifícia Universidade Gregoriana, que o enriquecia afirmando: Deus está lá, não só à espera do missionário, mas agindo como Deus entre aqueles que poderão receber a Boa Nova de Jesus.

De fato, Deus precede o homem para leva-los não só ao encontro, ao diálogo histórico terrenal, mas para acompanhá-lo como “caminho que leva à verdade e a vida em plenitude (cf. Jo 14,6). Está ali com os homens e mulheres que constroem cidade terrena. Ele se serve, inclusive, das ambiguidades da humanidade a caminho. Acompanha tudo o que acontece com os homens. Ele é o Deus imanente, presente na história. Na verdade, Deus antecede o homem em tudo e sempre o acompanhará.

Como ele é paciente e fiel, é capaz de dar tempo ao tempo do homem, para que eles possam ir descobrindo e otimizando a vida. Assim é a história é a situação onde Ele educa o ser humano na progressiva eliminação das guerras, na superação de epidemias e pandemias, do analfabetismo, da justiça de talião, da superioridade de raças, das culturas e religiões, do trabalho escravo, das escravidões, da miséria, da falta de respeito pela criação e assim por diante.

Aparentemente todo o progresso humano parece ser resultado do trabalho humano. Todavia, o conjunto de tais fatores – essencialmente presente na cultura urbana – faz parte da história de Deus, o condutor da humanidade. Esse progresso não é retilíneo e nem sempre ascendente, porque essa história também pertence ao ser humano. É preciso reconhecer que o diálogo humano/divino é cheio de percalços. Tais acidentes envolvem o crescimento humano e a paciência perspicaz de Deus, como por exemplo, quando usou a arrogante Babilônia para purificar os hebreus. Ou quando o Pai evidenciou que a ressurreição de Jesus é sua palavra

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definitiva, onde nem a cruz e a morte podem ter a palavra final. O turbulento progresso humano só é ascensional, porque Deus acompanha o homem e dirige a história para a Jerusalém celeste.

A pedagogia divina convoca o homem urbano, mais intensamente, para o bem comum e convivência fraterna. Aqui se pode aplicar os quatro princípios do cardeal Bergoglio - apesar de terem sido propostos num outro contexto =: Deus tem em conta que o tempo é superior ao espaço; a unidade é superior ao conflito; a realidade é superior à ideia; o todo é superior à parte (BERGOGLIO: 2011, pg. 59-69).

Uma leitura teológica da presença de Deus, evidencia que a cidade de-monstra que o tempo, a unidade, a realidade e o todo existem sempre em função desenvolvimento superior e humanizante, sobre o espaço (fixista), sobre conflito (desagregador), sobre a ideia e sobre a parte. Deus conduz, através de séculos, o homem que se tornou urbano para ser sempre mais justo, fraterno e mais huma-no a fim de que possa chegar à cidade santa.

8. DEUS AGE nA CIDADE POR MEIO DE SEUS CARISMA E DOnS

Retomemos uma afirmação cristológica acima: Jesus - que percorria os lugares onde habitavam os homens e mulheres de seu tempo - não se envolveu nem com a estrutura física, econômica e mobilidade urbana. Ele ali esteve presente – como Deus/homem presente e morando com os homens – para humanizar relações interpessoais (amai-vos uns aos outros como eu vos amei) (Lc 10,27) e estabelecer a justiça de Deus (recuperar a vista aos cegos, curar os paralíticos, restituir a liberdade, proclamar a libertação dos cativos, proclamar o ano da graça, etc. (cf. Lc 4,18,19). A primeira semana pública de Jesus, segundo o evangelista marcos, sintetiza bem a sua ação, pois Deus estava com ele cf. Jo 10,38). Deixou claro o seu objetivo (o Reino) (mc1,14-15). Reuniu pessoas (1, 16-20). Fez o povo criar consciência (1,21-23). Combateu e expulsou o mal (1, 23-24). Restaurou e salvou a vida do povo (1, 29-31). Serviu ao povo (1, 32-34). Permaneceu unido ao Pai(1,35). Consciente de seu papel, não se fechou sobre os resultados (1, 36-39). Acolheu, libertou e reintegrou os marginalizados (1, 40-45). Esta boa notícia, assim encarnada, provocou tomada de posição (cf. mC 2, 1-13) a seu favor ou contra. Enfim, não foi com as estruturas, mas com as pessoas que Jesus se importou.

A seu tempo e com sua presença, ele sintetizou o significado kairológico de sua estada entre os homens: Deus continua seu ministério de modo invisível de Pai,

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criador, pedagogo e guardião da cidade, através de pessoas que se humanizam, humanizam os outros e tornam mais justa a cidade. E é ele quem dota de graças os homens para continuarem o trabalho de seu Filho. Isto decorre da afirmação paulina sobre os carismas (cf. 1Cor 12,4ss).6.

hoje, no espaço urbano e crescentemente secular, os carismas continuam vindos de Deus em favor dos homens. Continuam sendo carismas dados para o interno de todas as comunidades religiosas (não só cristãos). mas também na cultura urbana e secular, os dons e carismas de Deus se multiplicam sem parar. Deus concede tais carismas e acompanha (mistério da criação contínua) os homens e mulheres – mesmo secularizados ou sem a percepção que tais dons vêm dEle, para que todos possam cresce conjuntamente

Assim, na cidade, graças aos efeitos do global sobre o local, os cientistas pesquisadores se empenham e investigam para continuar a criação de Deus; em seu universo micro ou macro. Pela leitura de seus saberes e de suas ciências, eles descobrem e inventam as possibilidades infinitas da natureza cósmica, biológica e técnica. O carisma da pesquisa científica leva, por vezes, ao confronto com o carisma de lideranças religiosas. mas, Deus vela para que, no tempo oportuno, a verdade se sobreponha sobre as querelas.

É evidente que a pesquisa também pode levar imediatamente à exploração dos pobres e à produção de instrumentos bélicos (instrumentos para matar). O carisma dos intelectuais e cientistas cria uma ferramenta para a tomada de consciência de que o fomento da solidariedade e da harmonia criadora entre os membros da família humana, é guiado pelo sonho de construir a cidade com cunho de fraternidade universal. O conhecimento, em suma, dá sentido à vida e representa algo brilhante e punjante da vocação dos cientistas.7

Aqui é preciso recordar que, em geral, falta aos líderes religiosos a compreensão e conhecimento das ciências e da história das ciências; bem como, aos intelectuais e homens das ciências o conhecimento e a compreensão das diversas e/ ou respectivas fés. Tanto há analfabetismo científico como analfabetismo religioso entre as partes.

O dom (carisma) da política – não se ignora aqui o pecado da malversação deste dom e nem mesmo da corrupção que pode nele medrar - é fundamental na

6 Os cristãos em suas igrejas, normalmente interpretam esses textos apenas como dons auferidos para o interno de seus grupos, inclusive porque a linguagem paulina parece favorecer a isso. Todavia, a lista dos carismas, segundo Paulo, é, sobretudo, exemplificativa de uma sociedade essencialmente religiosa

7 Cf. BLANCO, Carlos. “El conocimiento como vocación humana” , in Blog: Sobre Carlos Blanco, 02/06/2016

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gestão da cidade. Nos tempos bíblicos, as pessoas e comunidades eram chamadas a estarem atentas sobre seus governantes, inclusive com suas orações. Na cidade, hoje o acompanhamento é mais secular – o que não isenta de Deus fazer criar consciência cidadã para que o bem comum seja o objetivo permanente. Nisso há uma referência escatológica: a salvação de toda a humanidade por obra e graça de Jesus, o crucificado ressuscitado, passa pela cidade bem gerida publicamente, pois ela se encaminha para a Jerusalém celeste.

O carisma dos que dirigem e governam, estão a serviço, na cidade, para o bem comum. Cresce a consciência de que, por serem membros da cidade, os portadores de tais carismas, não podem adonar-se do poder. Devem periodicamente, serem submetidos à vontade do povo. Nenhum deles trará a salvação definitiva, como também nenhum deles é o senhor da salvação plena. Nenhum deles é o senhor que reina absoluto sobre os demais. O carisma da ação pública não elimina nem a fraternidade nem a justiça. Deus, o que vive na cidade dos homens, assegura isso pela inspiração de leis justas e dignas para todos. Tais leis evoluíram na história – dos homens e de Deus- desde os inícios da humanidade, passando pelas tribos, aldeias, até a atualidade secularizada. (COX: 1968, especialmente pg. 19-28)

Um outro carisma secular - dom de Deus, apesar de pouco discutido – é o da promoção da felicidade humana. Com frequência grupos religiosos tendem a remeter ao futuro e aos céus a realidade da felicidade, como se Deus não quisesse que seus filhos e filhas fossem felizes também nessa história. A dimensão da felicidade é fundamental para as pessoas que não vivem mais “degredadas, como filhos de Eva, gemendo e chorando, num vale de lágrimas”. Existem instituições e pessoas que promovem o lazer e o prazer humanos. há pessoas e instituições capazes de promover – para além das situações difíceis da vida, a alegria, a paz, a harmonia. Enfim, promovem o que constitui a felicidade humana – bem mais além das situações psicoterapêuticas – atingindo a própria vida humana. Aqui entram questões pessoais e coletivas de projetos de vida, de sonhos e esperanças, de sentimentos que temos para com o próximo, da capacidade de cuidar e consolar. Promover a felicidade é superar tendências atuais do nihilismo, do individualismo, de depressão e falta de sentido de vida. O carisma de algumas pessoas para a promoção da felicidade das outras não é algo basicamente secularista. Porém, é algo que se necessita desde as profundezas do ser humano. Julgar tal carisma como mero secularismo é quase a mesma coisa que evidenciar uma analfabetismo das coisas de Deus na cidade.

Entre tantos outros carismas, estão pessoas que Deus enriquece com dons para que possa, atender as necessidades da cultura e gestão urbanas. Estão os que

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são vocacionados à educação e magistério, às artes e engenharias, às questões de saúde pessoal e pública. Em todos os profissionais que conseguiram sê-lo por vocação ou mesmo por necessidade, estão presentes os dons de Deus para o bem de todos. Assim foi que D. helder Câmara expressou a grandeza do carisma do varredor de rua: “Varredor, tu varres o mundo de Deus”. O mesmo serve para todos os outros profissionais, como àquele que perguntado o que fazia, respondeu ser sapateiro. A ele se recomendou: “em nome de Deus, faça bons sapatos e os venda pelo preço justo”. As profissões são dons de Deus que vocaciona os homens para cooperarem entre si na construção da cidade.

9. AInDA A PRESEnÇA LAICAL E SECULAR DE DEUS

A cidade é um todo composto de fragmentos. E aí está a possibilidade de ver, não algo negativo, mas uma riqueza da diversidade. E para afirmar a diversidade, a cidade conta com a colaboração diferenciada mas solidária. Ela, em seus fragmentos, encontra o sentido de totalidade e de finalidade na transcendência. O que suporia a eventual ou necessária crença em Deus. mas não é assim na cidade, onde por vezes, até parece existir o contrário. Todavia isso não exclui a presença misteriosa de Deus. Esta – como já se afirmou – pode ser manifestada pelas religiões ou circunstâncias do “sagrado”, mas também pode independer e ser encontrada naqueles que lutam pela justiça, pela dignidade, pela paz. Fundamentalmente, a presença de Deus na cidade, além de pedagógica, criadora e guardiã, é sempre alavancadora do bem comum. A alavanca nunca é o centro da operação. Sem ela, entretanto, o movimento não se realiza.

Através de todos aqueles que fazem o bem, que criam comunhão, que espalham a justiça, que são solidários, Deus se faz presente – mesmo que invisível, ignorado ou rejeitado. No trabalho de cada um há uma contribuição para construir a cidade para todos. A construção pertence a todos os que empenham suas forças e, ao mesmo tempo, sentem a interdependência de todos. Nisso está uma das riquezas humanas e, portanto, dons de Deus para o bem comum. Deus participa naquilo que os seres humanos fazem de bem, na cidade, propiciando, inclusive, a oportunidade de vencer o mal, a desconfiança e a exploração do próximo. À medida que o bem vence o mal (cf. Rom. 12,21), pela ação colaborativa, Deus revela outras e novas riquezas insondáveis de Cristo (cf. Ef. 3, 8). Isso se manifesta mais ainda nas ações gratuitas e voluntárias, que tantos evidenciam, pois elas impõem limites à perversidade de alguns (GALLI: 2014, pg. 148). E também possibilitam, como dizia, João Paulo II, vencer o enigma do mal.

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A solidariedade dos homens entre si, no espaço urbano, revela a solidariedade (comunhão) trinitária de Deus, em vista do crescimento conduzido pelo próprio Deus. Nela, a cidade não só encontra outros dons divinos, mas também com o próprio Deus, ainda que invisível. É aí, que – para além das estruturas urbanas – o homem vence seu isolamento urbano. Torna-se capaz de produzir, organizar e ressignificar a vida. É aí que se reconduz o homem ao seu lugar, à sua transcendência, com a possibilidade de interagir com Deus ou em lugar, até mesmo independentemente das “ações religiosas” ou “sagradas”.

Deus está na cidade para salvar o homem, não para substituí-lo nas tarefas de cooperação. Só o vê quem o experimenta existencialmente. Ou o que gradualmente vai compreendendo que o tempo, a unidade, a realidade e o todo, transcendem sempre ao espaço, ao conflito, à ideia e à parte. Para quem crê, Deus vive na cidade através da colaboração de uns para com os outros, através de seus carismas profissionais, carismas familiares, carismas de diálogo, compreensão e empenho pelo outro (próximo).

Quem conhece Jesus, é capaz de perceber que ele continua presente na cidade para incitar e valorizar o Reino de Deus, que se vai implantando. E se vê e se sente isso mais que em atos religiosos ou do sagrado, na prática da justiça, na cooperação e solidariedade de todos os que constroem a cidade.

Todavia, no poliedro que é a cidade, onde mora Deus, também há muito de sofrimento, de angústia, de carências, injustiças e exclusões. Nas periferias reais e existenciais, há muita dor e fome. Como não identificar aí a presença de Deus, com face sub speciae contrarii.

10. VI MEU FILHO SOFRER CRUCIFICADO

Deus - que tanto amou o mundo (cf. Jo 3, 16) e que deu seu Filho para vir morar entre nós (cf Jo 1,14), desde dentro de si mesmo – é o Deus da comunhão, da solidariedade e da partilha. No seu mistério se diferencia como pessoa para enriquecer Um ao Outro. mas, para nós lado, como Verbo encarnado, ele se revela irmãos dos homens, de quem ele é o irmão maior. Revela que todos somos filhos do Pai eterno. É fato, todavia, que a humanidade, como um todo e em sua vida na cidade, ainda não consegue viver essa fraternidade universal. Essa é um desejo profundo do próprio coração humano, que faz celebrar, ao menos uma vez por ano – na passagem de ano do calendário ocidental. Celebra-se o que ainda não se vive. mas, a esperança mostra que o desejo se realiza em processo. A fraternidade

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universal não é uma utopia – algo se jamais vai se realizar ou que não se realiza em lugar algum, como pensavam os gregos. Ela É uma esperança cristã plantada no coração do homem que caminha sempre rumo à Cidade definitiva.

Todavia, vê-se, nos cinturões da cidade e em suas ruas centrais, os que passam fome. Vê-se os que vestem andrajos. Os que dormem nas calçadas e sob as marquises. Os doentes, os drogados, bêbados e prostituídos/as. Nas prisões, estão, sobretudo, jovens pobres e negros. A questão dos sem-teto é uma situação que constrange os moradores da cidade. No que alguns chamam de escória social”, estão homens e mulheres que são pais, mães, filhos, esposos, irmãos. São todos eles discriminados e maltrados. Parecem (ou são) pessoas de segunda categoria nas repartições públicas onde pretendem socorrer-se em suas necessidades. Causam tristeza vê-los nas filas de INSS, de postos de saúde e hospitais. Estão aí os pivetes, os usuários de droga e assaltantes. Enfim, Deus está presente e crucificado neles todos – culpados ou não.

Foi o próprio Jesus quem disse na parábola do juízo final (mt 25, 31-46); estive com fome, com sede, nu, doente, preso, estrangeiro e tu não me foste ver nem atender... Em cada em destes que se deixou de ser solidário, foi a Deus mesmo que se negou a dignidade. Neles, Deus esteve nu, com fome e sede, doente, rejeitado, crucificado. Neles, Deus continua vendo o seu Filho único pregado na cruz. E impotente, diante da raiva humana, Deus pode exclamar: “Vi meu filho sofrer crucificado!, Vi sua miséria Ouvi seu clamor. Conheço suas angústias”.

O grito dos pobres parece não chegar aos ouvidos dos irmãos da mesma cidade. Entretanto, ele sobe até Deus, que continua vendo a aflição de seu povo, como em Israel (cf. Ex 3,7). O grito dos excluídos – que só têm a justiça de Deus para confiar – grita pela sua dignidade. A rejeição deles na cidade é a rejeição do próprio Deus. A crítica social que é presença deles lembra aos outros moradores da cidade que não pode adorar o bezerro de ouro (cf Ex. 32, 1-5) como se fosse Deus, o Pai de todos.

Os excluídos e marginalizadas na cidade são a expressão crucificada de Deus excluído e marginalizado na cidade dos homens. Isso é um atestado ensanguentado de que a fraternidade humana ainda está longe de ser uma realidade. Contudo, a esperança - de que algo pode e deve ser mudado - deve permanecer. mas, o Deus crucificado nos pobres e marginalizados é capaz de perdoar os que “não sabem o que fazem” (cf mt 23, 34). É capaz de dar-lhes u’a mãe e um filho: “Eis ai tua mãe! Eis aí teu filho!” (cf Jo 19,25-27). É capaz de garantir-lhes sua última esperança: estar no paraíso com Jesus (cf mt. 23, 43). Todavia, a força que vem do alto, vem da cidade também. Pois junto à cruz destes homens e

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mulheres crucificados, não estão apenas as forças de repressão (soldados romanos e seus chefes). Estão também, além da mãe de Jesus, outras mulheres (cf Jo 19, 23) – os discípulos não estavam ali, salvo o discípulo amado – que se tornam a encarnação da compaixão e solidariedade de Deus. Na cidade, em nome de Deus e por Deus, há muitos – que como elas – continuam socorrendo estes caídos entre Jerusalém e Jericó (Lc.33-37), mesmo fora dos quadros institucionais do sagrado ou das religiões.

11. DEUS EnCAMInHA TUDO PARA O FIM

Grandes valores humanos na cidade, como a liberdade, a autonomia, a privacidade (que preserva a identidade), humanização, etc. são iluminados pela caridade (amor), pedagogia e cuidado de Deus, no processo da história. O que exige do homem urbano (e secular) é o compromisso da promoção com a justiça para todos, especialmente para os excluídos. Os grupos do sagrado e das religiões não podem se omitir – em meio a todas as forças da cidade – de promover a humanização de todos, sem exclusão, sob pena de eles mesmos negarem o significado de sua dignidade e, a consequente, presença (invisível) do Santo na vida da cidade. Os homens e mulheres, à medida em que se empenham – desde sua autonomia – através de suas ações secularizadas, também participam da construção do Reino de Deus. Esse empenho é verdadeiro, mesmo que Deus lhes seja desconhecido. Com todos eles (crentes e secularizados), Deus encaminha a história da salvação no sentido teleológico, rumo à cidade celeste prometida.

A presença de Deus na cidade é um fato. O reconhecimento de sua presença, contudo, não é um fato dado. Ela só reconhecida à luz da fé ou das diversas fés. Quando homens da cidade não conhecem a Deus e nem têm intimidade com ele, sua presença não é identificável, mesmo que alguns percebam que há algo ou alguém para além dos projetos humanos, a fim que a vida tenha sentido. Entre os que creem não há um discurso mínimo comum. É daí que surgem muitos deuses. Todavia, para os que creem a partir da experiência em Jesus Cristo, Deus é seu Pai e Pai de todos. Deus, para os cristãos, é a amorosa presença, o criador contínuo e providente. É o que tem cuidado pela sua criação, em especial pelo ser humano e, em sua justiça. É o defensor dos pobres. Deus se revela, não como propriedade ou controlado por quem quer que seja.

Em seu mistério trinitário, Deus é capaz de fazer-se próximo da humanidade e viver na cidade dos homens. Jesus é a expressão maior desse amor feito homem, sem deixar de ser Deus. A vida de Jesus nas cidades de seu tempo tornou-

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se paradigmática para compreender os interesses de justiça, solidariedade e liberdade dos homens nas cidades de hoje. Jesus está presente hoje pelos valores do Reino, vivenciados por milhares de homens que são seguidores dele. A sociedade e o próprio Deus esperam que esses crentes cristãos, superando um muito disseminado infantilismo da fé, se tornem cristãos adultos. Os cristãos adultos deverão ser capazes de caminhar autonomamente para agir na economia, política, educação, lazer e na pesquisa científica. Todavia, não poderão, em nome do Pai de Jesus, ignorar os filhos e filhas de Deus crucificados da vida urbana. Jesus lembra sempre que os bem-aventurados de Deus são os que têm espírito de pobre, são mansos e pacíficos, promotores da misericórdia, e da paz, mesmo se perseguidos por causa da justiça, da qual têm fome e sede (cf mt. 5,1-10). Jesus espera de seus seguidores, como o Pai eterno, homens e mulheres renascidos pela água e pelo Espírito (cf. Jo 3,5), sejam sal da terra e luz do mundo (mt. 5, 13-14), a fim de que o “sábado” não se sobreponha ao humano, que o culto seja superado pela justiça de Deus para a cidade.

Enfim, o Deus, Pai de Jesus, que é de todos para todos, presente na cidade encaminha a humanidade, presente nas cidades, para o fim último: a vida plana começada na história.

REFERênCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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* Texto cedido a STUDIUm, pela Cúria Arquiepiscopal de Buenos Aires.** Card. Mario Jorge Bergoglio, hoje Papa Francisco, graduou-se em Filosofia em 1960, na

Universidade Católica de Buenos Aires. Entre os anos 1964 e 1966, ensinou Literatura e Psicologia, no Colégio Imaculada, na Província de Santa Fé, e no Colégio do Salvador, em Buenos Aires. Graduou-se em Teologia, No período de 1980 a 1986 foi reitor da Faculdade de Filosofia e Teologia de San miguel. Após seu doutorado na Alemanha, antes de ser eleito papa, escreveu mais de 19 livros, editados na Argentina e traduzidos em diversas línguas..

ArtigosDEUS VIVE NA CIDADE*

GOD LIVES In THE CITY

mario Jorge card. Bergoglio **

RESUMO: O autor, visando o aprofundamento da fé situa-se como pastor diante da cidade que é portadora de diversos imaginários sociais,. O olhar transcendente da fé leva ao respeito e ao amor ao próximo, ajuda a "eleger" ser cidadão concreto e por em prática atitudes e comportamentos que criam cidadania. Ao entrar em contato com o Senhor, os cidadãos se enchem de vida plena e esta vida cresce integralmente, melhorando a vida da cidade. Para ver a realidade da cidade não pode fazer falta um olhar de fé aberta ao transcendente , um olhar crente. O pastor, que olha a sua cidade com a luz da fé, dá fruto ao sair cada dia e sempre mais ao encontro do próximo. O olhar do pastor não discrimina nem relativiza; antes é criativo, que inclui e nunca exclui. Tem um olhar de amizade, renova a esperança, alimenta a proximidade e não tolera a distância. Só a fé nos liberta das generalizações e abstrações de um olhar ilustrado.. O documento da Conferência de Aparecida, que o cardeal assume em seu olhar de pastor, ajuda a olhar a cidade. Pois, há olhares que iluminam e que limitam a avidez do olhar dominador na cidade e , mas também olhares que a obscurecem.

PALAVRAS CHAVE: Olhar transcendente; Inclusão; Fé; Cidadão; Pastoral.

ABSTRAT: The author, aims at deepening of faith, situates himself as a pastor in the city that is the bearer of various social imaginaries. The transcendental look of faith leads to respect and to love others, helps to "elect" to become concrete citizen and put into practice attitudes and behaviors that create citizenship. having got in touch with God, the citizens filled with life of fullness and this life grows integrally, improving the life of the city. To see the reality of the city, one should not lack a look of faith opened to the transcendent, a look of a believer. The pastor, who looks at his city with the light of faith, bears fruit to go out every day and always to reach out to the other. The look of the pastor does not discriminate nor relativize, it is creative, that includes and never excludes. The pastor has a look of friendship, renews hope, fosters the proximity and does not tolerate the distance. Only the faith frees us of generalizations and abstractions of an illustrated look. In the document of Aparecida Conference, where the Cardinal assumes the look of a shepherd, helps to look at the city. As we know that there are looks which illuminate and others which limit the eagerness of the dominance in the city, but also those looks which make the city obscure.

KEY WORDS: Transcendental look; Inclusion; Faith; Citizen; Pastoral care.

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1. COM OLHAR DE CREnTE E DE PASTOR

Quando rezo pela cidade de Buenos Aires, agradeço o fato de que seja a cidade em que nasci. O carinho que brota de tal familiariedade ajuda a encarnar a universalidade da fé que abraça a todos os homens de toda cidade. Ser cidadão de uma grande cidade é algo muito complexo hoje em dia, já que os vínculos de raça, história e cultura não são homogêneos e os direitos civis tampouco são plenamente partilhados por todos os habitantes. Na cidade há muitíssimos “não-cidadãos”, “cidadãos a medias” e “sobrantes”: O porque não têm plenos direitos - os excluídos, os estrangeiros, as pessoas indocumentadas, as crianças não escolarizadas, os anciãos e enfermos sem cobertura social -; o porque não cumprem com seus deveres. Neste sentido o olhar transcendente da fé que leva ao respeito e ao amor ao próximo, ajuda a “eleger” ser cidadão de uma cidade concretas e por em prática atitudes e comportamentos que criam cidadania.

O olhar que quero partilhar com vocês é o de um pastor que busca aprofundar em sua experiência de crente, de homem que crê que “Deus vive em sua cidade”1. Em sua “homilia aos pastores”, Santo Agostinho distinguia duas coisas distintas:

A primeira –dizia - é que somos cristãos e a segunda, que somos bispos. Ao situamos ante a cidade moderna, com seus imaginários sociais tão diversos, pode ajudar este exercício de distinguir olhares. Não para deixar de olhar como pastor ao rebanho que nos foi recomendado senão para aprofundar olhar de fé simples que tanto agradava encontrar o Senhor sem que lhe importassem raça, cultura ou religião. Porque o olhar de fé descobre e cria cidade.

2. JESUS nA CIDADE

As imagens do evangelho que mais me agradam são as que mostram o que suscita Jesus na gente quando se encontra com ela na rua. A imagem de Zaqueu que, ao inteirar-se da entrada de Jesus em sua cidade, sente desperta o desejo de vê-lo e corre subindo na árvore. A fé fará com que Zaqueu deixe de ser um interesseiro em causa própria e do império e passe a ser cidadão de Jericó, estabelecendo relações de justiça e solidariedade com seus concidadãos. Gosto da imagem de Bartimeu que, quando o Senhor lhe concede a graça que deseja -”Senhor, que eu veja”-, o segue pelo caminho. Pela fé, Bartimeu deixa de ser um marginal posto à margem do caminho e se converte em protagonista de sua própria história, caminhando com Jesus e o

1 Aparecida, 514

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povo que o seguia. A imagem da hemorroíssa, que toca seu manto em meio a uma multidão que pressiona o Senhor por todos os lados e atrai seu olhar respeitoso e cheio de carinho. Pela fé, a hemorroissa se inclui em uma sociedade que discriminava as pessoas portadoras de certas enfermidades consideradas impuras.

São imagens de encontros fecundas. O Senhor simplesmente “passa fazendo o bem”. E se maravilha ao ver o que há no coração de tantas pessoas que, excluídas pela sociedade e ignoradas por muitos. Ao entrar em contato com o Senhor se enchem de vida plena e esta vida cresce integralmente, melhorando a vida da cidade.

Em sintonia com o evangelho, a afirmação feliz de Aparecida que diz “A fé nos ensina que Deus vive na cidade” é uma resposta de fé diante o desafio imenso que representam as cidades atuais. Nos leva a querer “recomeçar desde o encontro com Cristo” 2 e não desde posturas eticistas ou ilustradas.

Como dizia eu em “El sacerdote y la ciudad” 3, Aparecida constata uma mudança de paradigma na relação entre o sujeito cristão e as culturas que se elaboram nesses grandes laboratórios que são as megalópoles modernas: “O cristão de hoje não se encontra mais na primeira linha da produção cultural, mas que recebe sua influência e seus impactos” 4. As tensões que a análise das ciências nos põe ante os olhos podem causar medo e sentimentos de impotência pastoral. Sem dúvida, a certeza de que Deus vive na cidade nos enche de confiança, e a esperança da cidade santa que desce do céu5 nos infunde coragem apostólica. Como para Zaqueu, a boa noticia de que o Senhor entrou na cidade, nos dinamiza e nos faz sair às ruas.

3. O TOM DE APARECIDA PARA OLHAR “A PASTORAL URBAnA”

O destaque sobre “a pastoral urbana” é um bom exemplo do esforço de Aparecida por encontrar o tom evangélico para olhar a realidade. Se alguém relê os cinco primeiros pontos vai notar uma tentativa de olhar mais sociológico, por assim dizer.

Ressoam primeiro a mudança de paradigma e a complexidade da cultura plural (509), as novas linguagens (510), as complexas transformações socioeconómicas, culturais, políticas e religiosas (511), as diferenças sociais, as tensões desafiadoras: tradição-modernidade, globalidade -particularidade, inclusão- exclusão... etc. (512). 2 Cf. Aparecida 123 Cf. J. M. Bergoglio s.j., El sacerdote en la ciudad a la luz del Documento de Aparecida, San Isidro,

18.05.10.4 Aparecida 5095 Aparecida 515

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Porém sucede algo curioso: o desenvolvimento desta linguagem tem um ponto de inflexão no parágrafo seguinte. É como se se tratara de tomar fôlego diante de tanta complexidade: valoriza-se, então, o passado (“a Igreja em seus inícios se constituiu nas grandes cidades de seu tempo e se serviu delas para expandir-se”) e assinalam-se experiências de renovação. Porém, a impressão é que estas são “pouca coisa” ante a magnitude das mudanças descritas anteriormente. O texto quer convidar à alegria e à valentia, porém surge a palavra “medo à pastoral urbana’: tendências a fechar-se, a estar na defensiva, sentimentos de impotência ante as grandes dificuldades das cidades” (513).

Vêm então os três pontos seguintes onde o tom da linguagem muda notavelmente. O ponto 514 é um pequeno hino de fé, uma espécie de Salmo onde a cidade brilha como lugar de encontro. Escutemos como soa:

A fé nos ensina que Deus vive na cidade,

em meio às suas alegrias, anseios e esperanças,

como também em suas dores e sofrimentos.

As sombras que marcam o cotidiano das cidades,

a violência, a pobreza, o individualismo e a exclusão,

não podem impedir-nos de buscarmos

e contemplarmos o Deus da vida

também nos ambientes urbanos.

As cidades são lugares de liberdade e oportunidade...

nelas, as pessoas têm a possibilidade de conhecer

mais pessoas,

de interagir e conviver com elas...

nas cidades é possível experimentar

vínculos de fraternidade, solidariedade e universalidade.

nelas o ser humano está chamado a caminhar

sempre mais ao encontro do outro,

conviver com o diferente,

aceitá-lo e ser aceito por ele.

O tom mudou. E exige que mude o olhar. Ressoa aqui a pergunta que se fazia e nos fez o Papa em seu discurso inaugural: “Que é a realidade sem Deus?”6.

6 Bento XVI, Discurso Inaugural

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A mesma pergunta nós a podemos fazer em relação à cidade: Que é a cidade sem Deus? Sem um ponto de referencia fundante e absoluto (ao menos buscado) a realidade da cidade se fragmenta e se dilui em mil particularidades sem história e sem identidade. Em que termina um olhar sobre a cidade se não se centra em uma fé aberta ao transcendente? Para ver a realidade faz falta um olhar de fé, um olhar crente. Senão, a realidade se fragmenta.

Aparecida assumiu este desafio ao privilegiar um “olhar de discípulos missionários sobre a realidade” (I parte, Cap. 1, n.º. 19-32) que centraliza todos os demais olhares: “Necessitamos, ao mesmo tempo, que nos consuma o zelo missionário para levar ao coração da cultura de nosso tempo (e a cultura late e se elabora nas cidades), aquele sentido unitário e completo da vida humana que nem a ciência, nem a política, nem a economia nem os meios de comunicação poderão proporcionar-lhes. Em Cristo Palavra, Sabedoria de Deus (cfr. 1 Cor 1,30), a cultura (e cada cidade) pode voltar a encontrar seu centro e sua profundidade, desde onde se pode olhar a realidade no conjunto de todos seus fatores, discernindo-os à luz do evangelho e dando a cada um seu lugar e sua dimensão adequada” (Ap 41).

O parágrafo seguinte é um canto à esperança. O olhar posto na cidade santa que desce do céu instala a ideia de proximidade e de acompanhamento. Nosso Deus é um Deus que pôs sua tenda de campanha entre nós (515).

O último paragrafo é um esboço de hino à caridade, onde o serviço da Igreja é fermento que transforma e realiza a cidade Santa na cidade atual (516).

Desta maneira, os pontos 517-518, que são uma longa lista de concreções pastorais se transformam numa linguagem de tom propositivo e de recomendação. Explicitamente mudou-se o tom já que na primeira redação se dizia “optamos por” uma pastoral urbana que... e na redação final ficou: “a conferência «propõe e recomenda» uma nova pastoral urbana que... saia ao encontro, acompanhe, seja fermento”.

4. MAGInÁRIO TEOLóGICO CRISTãO PARA A CIDADE

Neste tom de consolação surgiram as categorias de encontro, acompanhamento e fermento que Aparecida nos propõe para sair às ruas da cidade atual. As consequências pastorais ad extra destas atitudes e de outras surgirão nas distintas colocações deste congresso. Contudo, quisera agora dar um passo para dentro - numa espécie de retomada existencial e espiritual- para aprofundar no efeito que estas atitudes produzem em nosso olhar, em nosso imaginário teológico. Se é verdade que se passou de um sujeito cristão cujo olhar estava “por cima” da

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cidade, modelando-a, a um sujeito que está imerso no conjunto da hibridação cultural e sofre suas influencias e impactos, é necessário que reconectemos com o “específico cristão” para poder dialogar com todas as culturas: com uma cultura cristã, inspirada na fé, cuja estrutura de valores nos faz sentir como em casa; com uma cultura pagã, cujos valores se podem discernir com certa claridade; e com uma cultura híbrida e múltipla como a que se gesta agora, que requer mais discernimento.

Ser povo e construir cidade vão de mãos dadas. E ser povo de Deus é habitar na cidade de Deus, também. Neste sentido o imaginário teológico pode ser a fermentação para todo o imaginário social.

Já no Êxodo, no povo peregrino e em formação, cada acampada tem em si o gérmen de uma cidade; e a promessa da terra onde mano leite e mel se concretiza no Apocalipse, escatologicamente, na cidade santa, a Jerusalém celeste que desce de céu.

As imagens reveladas da cidade prometida (a terra prometida) e da cidade doada (que desce do céu como uma noiva) respondem e dinamizam os anseios que estão sempre operantes no todo imaginário social humano, operante na construção da cidade.

Também as imagens do sonho truncado de Babel - a cidade autossuficiente que chega ao céu - e da anticidade consolidada que se estende na terra – Babilônia - expressam (e se um quer ajudam a exorcizar) os medos e angústias do homem ao sentir que participa da construção da anticidade que o devora.

As imagens mais fecundas que o imaginário evangélico oferece a todo imaginário social são as imagens do Reino dos Céus. Seus cidadãos não o defendem com armas (como diz Jesus a Pilatos); ao vivê-lo como puro dom (como tesouro no meio de um campo) partilham com todos seus benefícios (os ramos da árvore que foi um pequeno grão de mostarda o cobiçam todos os pássaros do céu e o convite ao banquete de bodas se faz extensiva aos pobres e excluídos); o trabalho na vinha dignifica a todos por igual e as relações de perdão das dívidas e de produzir cada um o melhor de si (parábola dos talentos) fecundam os anseios cidadãos mais profundos.

Neste ponto estou convencido de que aprofundar no imaginário evangélico da cidade, para propô-lo em toda sua riqueza à cidade atual, é um serviço que fazemos e que pode plenificar a esperança comum que partilhamos com todos os que habitam nossa cidade e motivar um agir comum presidido pela caridade.

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5. OLHARES qUE ILUMInAM E OLHARES qUE OBSCURECEM nA CIDADE

Como se vê, já desde o ponto de partida se concebe “o específico cristão” como “fermento que já está levedando a massa”.

E isto é o mesmo que sentimos “premiados” por um Deus que já está vivendo na cidade, misturado vitalmente com todos e com tudo. É uma reflexão que nos surpreende sempre já com as mãos na massa, comprometidos com a situação do homem concreto tal como se dá involucrados com todos os homens em uma única história de salvação.

Nada, portanto, de propostas ilustradas, rupturistas, assépticas, que partem de zero, que tomam distancia para “pensar” como teria que fazer para que Deus vivesse numa cidade sem deus. Deus já vive em nossa cidade e nos urge - enquanto pensamos- sair a seu encontro, para descobri-lo, para construir relações de proximidade para acompanhá-lo em seu crescimento e encarnar o fermento de sua palavra em obras concretas. O olhar de fé cresce cada vez que pomos em prática a palavra. A contemplação se torna melhor em meio à ação. Agir como bons cidadãos - em qualquer cidade - melhora a fé. Paulo recomendava desde o começo “ser bons cidadãos” (cf. Rm 13,1). É a intuição do valor da inculturação: viver a fundo o humano, em qualquer cultura, em qualquer cidade, torna melhor cristão e fecunda a cidade (ganha seu coração).

O pastor que olha a sua cidade com a luz da fé combate a tentação do “não olhar”, do “não ver”. O não ver, que o Senhor reprova com tanta insistência no evangelho, tem muitas formas: a da cegueira pertinaz dos escribas e fariseus, a do brilho intenso não só “das luzes do centro”, como diz o tango7, mas também da mesma revelação com a que se tentam os apóstolos “sob a aparência de bem” 8; também está ou no olhar dos que “passam de largo”... porém há um nível mais básico disto «no olhar”. É difícil de categorizar; porém, se pode descrever. Em alguns discursos se entrevê que a perspectiva brota de uma espécie de “nivelação de olhares”, se se me permite falar assim. O olhar de fé não se valoriza existencialmente como dom de Deus ao homem que se situa na fronteira da existência para ser visto e olhar ao Deus vivo, mas antes que se considera o olhar de fé enquanto “resultado”, por assim dizer de alguma maneira, enquanto “o que já foi dito sobre algum tema em algum documento”. Este olhar de fé se põe ao lado dos olhares da ciência ou dos meios de comunicação e quase imediatamente se

7 Un dia lejano / se fue mi esperanza! / las luces del centro, / imán de locuras, / llevaram sus ansias por mil desventuras! / Tal vez una noche detenga su marcha / el tren de las once, e vuelva mi amor! (El tren das once).

8 Pedro desafiando ao Senhor, depois de tê-lo confessado como Messias; os irmãos filhos do trovão querendo que chova fogo sobre a cidade que não recebe o Senhor...

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cataloga de “antiquado” ou “não na moda” diante do olhar de alguma ciência que mostra coisas novidadeiras. Neste olhar o que fala ou escreve se situa a si mesmo numa espécie de lugar privilegiado desde onde “objetiva” a postura tradicional e o novo paradigma.

É verdade que todo olhar e reflexão tem um carácter comparativo, porém o ponto chave é se há uma vontade de “ruptura” ou como diz Bento XVI falando das interpretações do Concilio Vaticano II, vontade de “renovação na continuidade de um único sujeito que cresce e se desenvolve permanecendo sempre o mesmo” 9.

Em termos de vida poderíamos dizer que o “não olhar” é o de um sujeito “abstrato” (não vivo) que olha coisas abstratas desde paradigmas abstratos. Em troca o olhar de fé é o de um sujeito vivo - o povo de Deus em caminho, como diz o Papa -, que olha eclesialmente as realidades existentes em meio ‘as quais Deus vive também.

O que quero dizer é que os «não- olhares” são de “não-sujeitos” e a cidade, ao igual que a Igreja, necessita olhar de sujeitos (eclesiais e cidadãos, conforme o caso).

Como podemos estar seguros de que o olhar de fé não incide no mesmo que criticamos? Creio que este olhar não se pode valorizar a priori, pois só se justifica por seus frutos. Carece do impacto mediático das hermenêuticas rupturistas, porém, dá fruto a longo prazo. Que frutos?

Em primeiro lugar, os atos de fé acrescentam e melhoram a própria fé. Ao mesmo tempo ajudam a discernir e rechaçar várias tentações.

Pode-se dizer que o olhar de fé nos leva a sair cada dia e sempre mais ao encontro do próximo que habita na cidade. Leva-nos a sair ao encontro porque este olhar se alimenta na proximidade. Não tolera a distância, pois sente que a distância embaça o que se deseja ver; e a fé quer ver para servir e amar, não para constatar

9 “Tudo depende da justa interpretação do Concilio - ou como diríamos hoje - de sua justa hermenêutica, da justa chave da leitura e da aplicação. Os problemas da recepção nasceram do fato de que duas hermenêuticas contrarias se encontraram, confrontaram-se e litigaram entre si. Uma causou confusão, a outra, silenciosamente, porém sempre mais visivelmente, deu frutos. Por um lado, existe uma interpretação que quisera chamar «hermenêutica da descontinuidade ou ruptura»; ela não raramente é avaliada com simpatia pelos mass-midia e também por uma parte da teologia moderna. Por outro lado está a «hermenêutica da reforma», da renovação da continuidade do único sujeito da Igreja, que o Senhor nos deu; é um sujeito que cresce no tempo e se desenvolve permanecendo sem dúvida sempre o mesmo, único sujeito do povo de Deus em caminho”. Como diz Scola, o Papa não opõe “descontinuidade - continuidade “ ou “ruptura-continuidade “, mas que fala de “descontinuidade e ruptura vs hermenêutica da reforma” ou renovação na continuidade do único sujeito-Igreja, especificado como “ povo de Deus a caminho”. A. Scola, “Credo Ecclesiam”, in Communio, ed. argentina, n° 1 outono 2011, págs. 5 ss.

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ou dominar. Ao sair à rua, a fé limita a avidez do olhar dominador e cada próximo concreto ao qual se olha com vontade de servir o ajuda a focalizar melhor seu “objeto próprio e amado”, que é Jesus Cristo vendo em carne. Aquele que diz que crê em Deus e “não vê” a seu irmão, se engana.

As melhorias na fé nesse Deus, que vive na cidade, renovam a esperança de novos encontros. A esperança nos livra dessa força centrípeta que leva ao cidadão atual a viver isolado dentro da grande cidade, esperando o delivery e conectado só virtualmente. O crente que olha com a luz da esperança combate a tentação de não olhar que acontece ou por viver amurallado nos bastiones da própria nostalgia ou pela sede de curiosear. Assim já não é o olhar ávido do «ver o que aconteceu hoje» dos noticiários. O olhar esperançado é como o do Pai misericordioso que sobe todas as manhãs e todas as tardes ao terraço de sua casa para ver se regressa seu filho pródigo e, apenas o vê de longe, corre a seu encontro e o abraça. Neste sentido, o olhar de fé, às vezes que se alimenta de proximidade e não tolera a distancia, tampouco se sacia com o momentâneo e conjuntural, e por isso, para ver bem, se esconde nos processos que são próprios de todo o vital. O olhar de fé, ao se fechar, age como fermento. E, como os processos vitais requerem tempo, acompanha. E nos salva assim da tentação de viver nesse tempo “particular” próprio da postmodemidade.

Se partimos da constatação de que a anticidade cresce com a não-olhar, que a maior exclusão consiste em não se querer “ver” o excluído - o que dorme na rua não se vê como pessoa, mas como parte da sujeira e abandono da paisagem urbana, da cultura do descarte, do “lixo”-, a cidade humana cresce com a olhar que “vê” ao outro como concidadão. Neste sentido, o olhar de fé é fermento para um olhar cidadão. Por isso podemos falar de um “serviço da fé”: de um serviço existencial, testemunhal, pastoral.

6. OLHAR qUE InCLUI SEM RELATIVIzAR.

Estou dizendo que a fé, por si só, melhora cidade? Sim, no sentido de que só a fé nos liberta das generalizações e abstrações de um olhar ilustrado que só dá como frutos mais ilustrações. A proximidade , o “fechamento” e o sentir como o fermento faz crescer a massa, levam à fé a desejar melhorar como próprio, o específico cristão: para poder ver indivise et inconfuse o outro, o próximo, a fé deseja “ver Jesus”. É um olhar que, para incluir, se limita e se clarifica si mesmo.

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Se nos situamos no universo da caridade, podemos dizer que este olhar nos salva de ter que relativizar a verdade para poder incluir.

A cidade atual é relativista: tudo é válido, e pode ser que caiamos na tentação de que para não discriminar, para incluir a todos, às vezes sintamos que é necessário “relativizar” a verdade. Não é assim o Deus nosso que vive na cidade e se envolve em sua vida cotidiana, não discrimina nem relativiza. Sua verdade é a do encontro que descobre rostos e cada rosto é único. Incluir pessoas com rosto e nome próprios não implica relativizar valores nem justificar antivalores; mas antes não discriminar e não relativizar implica ter fortaleza para acompanhar os processos e a paciência do fermento que ajuda a crescer. A verdade do que acompanha é a de mostrar caminhos para seguir adiante mais que julgar acontecimentos passados.

O olhar do amor não discrimina nem relativiza porque é misericordioso. E a misericórdia cria maior aproximação, que é a dos rostos, e como quer ajudar de verdade busca a verdade que mais dói - a do pecado -, porém para encontrar o remédio verdadeiro. Este olhar é pessoal e comunitário. E se traduz na agenda, marca tempos mais lentos que as das coisas (aproximar-se a um enfermo requer tempo), e cria estruturas acolhedoras e não excludentes, coisa que requer também tempo.

O olhar de amor não discrimina nem relativiza porque é olhar de amizade. E aos amigos se aceita como são e se lhes diz a verdade. É também um olhar comunitário. Chega a acompanhar, a somar, a ser um a mais ao lado dos outros cidadãos. Este olhar é a base da amizade social, do respeito às diferenças, não só econômicas, mas também à ideológicas. É também a base de todo o trabalho do voluntariado. Não se pode ajudar ao que está excluído se não se criam comunidade inclusivas.

O olhar do amor no discrimina nem relativiza porque é criativo. O amor gratuito é fermento que dinamiza tudo o que é bom e o melhora, e transforma o mal em bem, os problemas em oportunidades. O pastor que olha com olhar de ágape descobre as potencialidades que estão ativas na cidade e cria empatia com elas, fermentando-as com o evangelho.

Estas três propriedades do olhar e do agir do pastor não são fruto de uma descrição piedosa, mas antes de um discernimento que provém do “objeto” (se se nos permitem falar assim, já que o Senhor ressuscitado é muito mais que um objeto) que contemplamos e da pessoa a quem servimos. Um Deus vivo em meio à cidade requer aprofundar no caminho deste olhar que propomos.

Não é um olhar ao próprio umbigo como o é o “olhar como olhamos”. Porque a cidade, como os desertos, produz espejismos. E com a melhor intenção pode ser que nos enganemos. A fé sempre se vê desafiada a superar espejismos. Temo-nos

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desenganado (alguns talvez demasiado) do espejismo das ideologias políticas, de olhar não só as cidades, mas também todo o Continente desde ideologias que propunham caminhos rápidos para obter a justiça.

O preço foi à violência e uma desvalorização da política que só recentemente está começando a reverter-se.

hoje há outras visões. Talvez por contraposição temporal pode-se discernir sua raiz. Se as visões políticas exigiam uma passagem rápida à ação, as visões ilustradas, porém “retardam”. O ponto aqui é se a teoria se torna tão complicada, que ao invés de suscitar “saídas apostólicas” suscita “discussões sobre planos apostólicos”.

COnCLUSãO

Deus vive na cidade e a Igreja vive na cidade. A missão não se opõe a ter que aprender da cidade - de suas culturas e de suas mudanças - ao mesmo tempo em que saímos a pregar-lhe o evangelho. E isto é fruto do evangelho mesmo, que interaja com o terreno onde não cai como semente. Não só a cidade moderna é um desafio, mas que ou foi, ou é e ou será toda cidade, toda cultura, toda mentalidade e todo coração humano.

A contemplação da Encarnação, que Santo Inácio apresenta nos exercícios Espirituais, é um bom exemplo do olhar que aqui se propõe10. Um olhar que não se fica atolada nesse dualismo que vai e volta constantemente dos diagnósticos ao planejamento, mas que se involucra dramaticamente na realidade da cidade e se compromete com ela na ação. O evangelho é um kerygma aceito e que impulsa a transmiti-lo. As mediações vão sendo elaboradas enquanto vamos vivendo e convivendo.

Na contemplação da Encarnação, Santo Inácio nos faz “olhar como olha” o mundo a Santíssima Trindade. O olhar que propõe Inácio não é a que ascende do tempo à eternidade em busca da visão beatífica definitiva para depois “deduzir” uma ordem temporal ideal. Inácio propõe um olhar que permita ao Senhor “encarnar-se

10 “O primeiro ponto é ver as pessoas, umas às outras; e primeiro as da face da terra com tanta diversidade, assim de trajes como em gestos, uns brancos e outros negros, uns em paz e outros em guerra, uns chorando e outros rindo, uno sadios e outros enfermos, uns nascendo e outros morrendo, etc. 2o Ver e considerar as três pessoas divinas, como no seu sólio real ou trono da sua divina majestade, como olham toda a face e redondeza da terra e todas as gentes em tanta cegueira, e como morrem e descem ao inferno. 3a ver Nossa Senhora e o anjo que a saúda, e refletio para tirar proveito da tal visita” (EE. 106).

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novamente” (EE109) no mundo tal como está. O olhar das três pessoas é um olhar “que se involucra”. A Trinidade vê tudo: “toda a planície ou redondeza do mundo e todos os homens”, e faz seu diagnóstico e seu plano pastoral. “Vendo” como os homens se perdem na Vida plena (“descem ao inferno”), “se determina em sua eternidade (Inácio penetra no desejo mais íntimo e definitivo do coração de Deus, a vontade salvífica de que todos os homens vivam e se salvem) que a segunda pessoa se faça homem para salvar ao gênero humano” (EE 102). Este olhar universal se torna concreto imediatamente. Inácio nos faz olhar “particularmente a casa e aposentos de Nossa Senhora, na cidade de Nazaré, na província de Galileia” (EE 103).

A dinâmica é a mesma de João no lava-pés: a consciência lúcida e oniabarcante do Senhor (sabendo que o Pai tinha posto tudo em suas mãos) o leva a cingir-se com a toalha e lavar os pés de seus discípulos. A visão mais profunda e mais alta não leva às novas visões, mas, à ação mais humilde, situada e concreta.

Tendo em conta estas reflexões, e para concluir, podemos dizer que o olhar do crente sobre a cidade se resolve em três atitudes concretas:

O sair de si ao encontro do outro se resolve na aproximação, em atitudes de proximidade. Nosso olhar sempre tem que ser de saída e aproximação. Não autorreferencial, mas transcendente.

O fermento e a semente da fé se resolvem no testemunho (sabendo-se que estas coisas postas em prática, nos farão felizes). Dimensão martirial da fé.

E o acompanhamento se resolve na paciência, na hypomoné, que acompanha os processos sem maltratar os limites.

Buenos Aires, 25 de agosto de 2011

Traduziu: hR

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A CIDADE COmO Um hORIZONTE CULTURAL

THE CITY AS A CULTURAL HORIzOn

Agenor Brighenti *

SUMÁRIO: A cidade é um todo complexo e diversificado. mais do que um espaço físico é, sobretudo, um horizonte cultural, que altera as relações entre as pessoas, Deus e a natureza. A gênese e o desenvolvimento da cidade mostram de que se trata de uma realidade em constante metamorfose. Um olhar analítico sobre o fenômeno, colado ao saber experiencial, é condição para um processo de evangelização, que leve a uma encarnação do Evangelho no mundo urbano. A cidade é território ocupado, vida midiatizada, espaço de afirmação da subjetividade e da autonomia, bem como lugar de novas formas de socialização, mas também de exclusão. Em consequência, pastoral urbana não é simplesmente fazer pastoral na cidade. Trata-se, antes, de uma ação pastoral encarnada na realidade urbana, caracterizada por desafios, estilo de vida, linguagem, símbolos e imaginários próprios.

PALAVRAS CHAVE: Cidade; Urbanização; Cultura; Evangelização; Inculturação.

ABSTRACR: The city is a diverse and complex whole. more than a physical space it is above all a cultural horizon, which alters the relations between the people, God and nature. The genesis and the development of the city show that it is a reality in constant metamorphosis. An analytical look about the phenomenon, linked to the experiential wisdom is the condition for the process of evangelization, which leads to an incarnation of the Gospel in the urban world. The city is an occupied territory, place of immediacy, affirming space of subjectivity and of autonomy, as well as the place of new forms of socialization, but also of exclusion. As a result, urban pastoral work is not simply to do pastoral care in the city. It is, rather, a pastoral work of action incarnated in the urban reality, characterized by challenges, lifestyle, language, symbols and individual imaginaries.

KEY WORDS: City; Urbanization; Culture; Evangelization; Inculturation.

Artigos

* Doutor em Ciências Teológicas e Religiosas pela Universidade Católica da Louvain/Bélgica. Atualmente, é professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica de Curitiba (PUCPR), Brasil; Presidente do Instituto Nacional de Pastoral (INP) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); professor-visitante na Universidade Pontifícia do méxico (UPm) e no Centro Bíblico-Teológico-Pastoral para a América Latina (CEBITEPAL/CELAm); membro da Equipe de Reflexão Teológico-Pastoral do CELAm.

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A cidade não é simplesmente um espaço físico, mas, sobretudo um horizonte cultural, que cria um estilo de ser, um modo de viver e conviver, em última instância, uma nova cultura. Nela, há uma alteração das relações entre os seres humanos, Deus e a natureza, particularmente por uma maior valorização e efetivação da liberdade e da autonomia dos indivíduos, com profundas consequências para a missão evangelizadora da Igreja.

Para os que creem e buscam impregnar a cultura atual dos valores evangélicos e da utopia do Reino de Deus, a primeira atitude é buscar entender o mundo de hoje, no qual a Igreja precisa ser “fermento na massa”, particularmente, o mundo urbano. O fenômeno da urbanização não é tão antigo comparado ao vertiginoso processo de êxodo rural, na última metade do século XX. Em geral, na América Latina, de quase 80% da população que até a década de 1960 viviam na área rural, hoje, é o contrário, mais de 80% vivem na cidade.

Para entender o fenômeno urbano, não basta um olhar amador e empírico. Além do imprescindível saber popular, que não é saber anticientífico, pois também é dotado de um logos crítico, é preciso recorrer a uma análise científica, sem esperar, entretanto, que as ciências sejam capazes de explicar tudo o que se passa nas cidades. Aliás, as tradicionais categorias econômico-sociais de análise tornaram-se paradigmas curtos para dar conta da complexidade do mundo urbano atual. Escutar os cientistas, entretanto, não é algo cômodo, pois, do diálogo entre teologia e ciência, inevitavelmente, vão irromper interpelações pastorais para uma evangelização inculturada no mundo urbano, que implicarão em mudanças na consciência, nas práticas, na organização e nas estruturas eclesiais.

Para situarmo-nos diante da realidade urbana hoje e de seus consequentes desafios pastorais para uma evangelização inculturada, convém ter em mente dois elementos: primeiro, ter presente os principais traços do itinerário histórico da cidade, seguidos de alguns dados estatísticos; segundo, conceber a cidade como um todo complexo e diversificado, o que desautoriza uma mera abordagem ligeira e empírica do fenômeno urbano.

1. GênESE E DESEnVOLVIMEnTO DA CIDADE

O fenômeno urbano se deu há uns dez mil anos, terminada a era glacial. A cidade foi produto da revolução do neolítico, filha da religião, do espírito gregário do ser humano e da agricultura. Sua gênese, em torno a estes três fatores, foi um processo laborioso, fruto da combinação, portanto, do social, do político e do religioso.

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1.1. na origem, a unidade entre o social e o religioso

Concretamente, a cidade nasceu da federação das tribos, cada uma com seus próprios deuses e cultos e, consequentemente, da aceitação por todas as tribos de um deus comum. A unidade social e religiosa foram duas condições básicas para a criação das cidades.

Estudos a partir de rastros arqueológicos deduzem que uma vez determinado o lugar da cidade pelos adivinhos, seus fundadores levantavam um altar e acendiam o fogo. E, desde este centro – o lugar do templo, de deuses e sacerdotes – “santuário” comum das tribos, sagrado e inviolável, construíam a urbs. A urbs, primeiro “aldeia”, depois “cidade”, não tinha espaço livre da influência dos deuses. Sua administração exigiu governo, incluído o religioso, e corpus jurídico (mENDOZA mORALES, 2003: 2).

A cidade já nasceu dura, compacta, de pedra, amuralhada, isolada do campo, onde vivia a maioria dos habitantes. Com o crescimento vertiginoso da população, o número delas aumentou, fruto da rápida emigração da espécie humana por todo o planeta. Na realidade, o processo de globalização começou quando os primeiros bípedes saíram de seu berço africano. habitaram cavernas e precários ranchos. Passaram para a Ásia e A Europa. Depois, para a Oceania, Austrália e América, instando-se em todas as regiões do mundo. Infelizmente, junto com a globalização do planeta pela multiplicação das cidades, também foi se globalizando a justiça, a guerra, a miséria e a fome, a corrupção, processo que tende ultrapassar nossos dias.

1.2. As diferentes configurações da urbe

historicamente, a cidade passou por diferentes configurações (D’ASSUNÇÃO BARROS: 2007, p. 52-53). As primeiras cidades de que se tem vestígios apareceram há uns 8 mil anos, quando o mundo contava com 1,5 milhão de habitantes. Primeiro ela foi a eópolis, cidade do alvorecer; entre elas estão Jericó na Palestina, mohenjo Daro na Índia, El Obeid y Eridu na mesopotâmia e, mais tarde, no Egito e na América. Depois, apareceu a polis, cidade/estado, a típica Atenas, seguida por Roma, que deu origem à metrópolis, cidade mãe, urbe imperial. Numa época em que o planeta estava com 300 milhões de habitantes, Roma contava com um milhão de citadinos.

mais tarde, na era industrial, apareceriam as megalópolis, com até 20 milhões ou mais de habitantes, num planeta que já conta com 6 bilhões e 700 milhões de habitantes. As megalópoles, unidas com outras cidades, deram

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origem à cosmópolis, como a da costa oriental dos EE.UU – Filadélfia, Baltimore e Washington - e, na Alemanha – Dusseldorf, Duisburgo, Solingen e Essen – (mENDOZA mORALES, 2003: 3).

1.3. Alguns dados estatísticos

Em 1950, Nova York era a única cidade que contava com mais de 10 milhões de habitantes. Em 2015, as megalópoles serão 21. Estima-se que, das sete, na década de 1990, teremos 37 cidades, com população entre 5 e 10 milhões. O crescimento de cidades se dará principalmente na Ásia e na África, que contam hoje ainda com 75%da população vivendo no meio rural e apenas 25% nas cidades. Em 2015, nestes continentes, 50% da população já estará vivendo na cidade. O processo de urbanização avança num ritmo galopante: a cada semana, a população urbana aumenta em um milhão de pessoas.

hoje, cinco cidades aparecem como as maiores do planeta: Tóquio, méxico, São Paulo, Nova York e Bombaim. mas, são também megalópoles: Shangai, Calcutá, Bangkok, hyderabad e Bombaim na Ásia; Laos, na África; e Los Ângeles, nos EE.UU. A Índia tem 32 cidades com mais de um milhão de habitantes, o que leva a estimar que as megalópoles tendem a produzir-se, cada vez mais, sobretudo nos países industrializados.

Outros dados estatísticos: no início do século XX, o planeta terra tinha um bilhão de habitantes e apenas 9% moravam na cidade (91% moravam no campo). hoje, temos 6 bilhões e 700 milhões de habitantes e mais de 50% já moram na cidade. Na América Latina, em 1880, somente 2,5% da população vivia nas cidades; em 1950, já eram 29%; em 1975, somavam 41%; atualmente, chegam a quase 80%. Das 15 maiores cidades do mundo, 13 estão na América Latina. A América Latina, de um continente rural, passou a ser o continente mais urbanizado do mundo (mENDOZA mORALES, 2003: 3).

2. A CIDADE COMO UM TODO COMPLExO E DIVERSIFICADO

Para uma ação eclesial não simplesmente na cidade, mas segundo o modo urbano, o primeiro passo é conceber a cidade, sempre um todo complexo e diversificado (D’ASSUNÇÃO BARROS: 2007, p. 49-52). O todo é muito mais do que a mera soma das partes. Quando a parte é considerada dentro de um todo, deixa de ser parte para tornar-se “porção”. A porção contém o todo, a parte não.

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2.1. Para além de um conhecimento empírico

É muito comum os agentes de pastoral na cidade, conhecer dela fragmentos, partes, ter uma visão da cidade, a partir da paróquia ou do próprio local de moradia ou trabalho. Como a cidade forma um todo, uma ação pastoral que incida sobre o conjunto da cidade, começa com um conhecimento global e diversificado da mesma.

Para uma pastoral urbana, o primeiro passo consiste em conhecê-la em todos os seus aspectos e âmbitos, com a maior profundidade e seriedade possíveis. Para isso, dada a complexidade da realidade urbana, não basta um olhar empírico, espiritualista, pragmático, amador.

Além de convocar teólogos e pastoralistas, é preciso recorrer também a outros especialistas como:

– sociólogos e economistas, para conhecê-la em sua lógica econômica, em suas estruturas sociais, em sua dinâmica própria, com seus desafios permanentes e emergentes;

– cientistas políticos, para nos fazer ver as relações entre os grupos, seus esforços para firmar-se e afirmar-se no espaço urbano, suas lutas pelo poder nas várias esferas e nos vários níveis; antropólogos culturais, para nos ajudar a perceber as distintas identidades e as diversas mentalidades que existem e interagem no espaço urbano, onde convivem ‘mundos’ culturais vários;

– estudiosos de sociologia da religião, com suas várias tendências;

– enfim, especialistas em ética social, para fornecer-nos critérios de discernimento moral dos processos e projetos que dão sentido às ações, grandes e pequenas, e decidem as atitudes que os cidadãos tomam no espaço urbano.

2.2. Conhecer para encarnar o Evangelho

Evangelizar é, antes de tudo, não ignorar (Pedro Casaldáliga). Para uma pastoral de encarnação, assumir é condição para redimir. Por isso, insistiu Medellín que toda ação evangelizadora começa com o discernimento da realidade. A metodologia ver-julgar-agir, resgatada por Aparecida, nos coloca nesta perspectiva. O melhor ponto de partida é sempre aquele onde a gente está. E, segundo lugar, para conhecer o mundo urbano, é preciso considerar a cidade como um todo e na pluralidade de suas partes (D’ASSUNÇÃO BARROS: 2007, p. 49-52). Trata-se de uma atitude importante, pois a paróquia viciou nosso olhar a visualizar tudo de maneira fragmentada, a ver a realidade artificialmente separada do todo, em retalhos incapazes de exprimir “o todo no fragmento” (h. Urs von Balthasar).

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A paróquia não é um todo – nem teologicamente e nem sociologicamente – mas, geralmente, vive a falsa consciência de sê-lo. Teologicamente, o resultado é um agir como “ecclesiola” –ligada às demais paróquias e à Diocese, só juridicamente. Sociologicamente, o agregado paroquial toma dimensões de mundo e o mundo se transforma em entorno insignificante, olhando-o ora com desinteresse, ora com desdém, nunca como o todo que dá significado às suas partes.

Para uma pastoral urbana, a paróquia na cidade precisa se autocompreender como porção da cidade, não parte; a parte é apenas parte, já a porção contém o todo. Trata-se de aprender a ver o local no seio do global, pois não é a Igreja que contém o mundo, mas é o mundo que contém a Igreja.

3. COMPOnEnTES DO MUnDO URBAnO

São muitas as realidades que compõem o mundo urbano. Limitemo-nos a caracterizar brevemente quatro delas. Elas são as principais portas de entrada, para conhecer a complexidade do mundo urbano.

3.1. A cidade como território ocupado

Uma destas portas de entrada na complexidade da realidade urbana é situar-se em relação ao seu território. O uso do território é a condição da existência. Somos seres inevitavelmente situados. mas, o território não é algo meramente físico. Enquanto espaço humano, o espaço geográfico é espaço social, território usado ou praticado. Infelizmente, nem sempre de maneira equitativa por todos.

Do ponto de vista geográfico, o todo da cidade tem bairros, cada um com sua história, vida social, cultural e configuração própria. Geralmente estão diferen-ciados por classes sociais, que vão desde as regiões da cidade dos condomínios fechados, às vezes, com todos os serviços disponíveis internamente, até às áreas suburbanas, sempre super-povoadas, com alto índice de densidade demográfica. Em Nairobi, por exemplo, da população total de um milhão e meio de habitantes, 50% dela ocupa 95% do espaço urbano e, por sua vez, os outros 50% da popu-lação, portanto, 750 mil habitantes, vivem na maior favela da África, a favela de Kibera, ocupando apenas 5% do solo urbano.

Além de bairros, do ponto de vista territorial, a cidade tem regiões, umas residenciais, outras são comerciais, outras industriais. O centro da cidade, outrora residencial, em geral, hoje, é totalmente comercial. Igrejas, situadas nesta região, costumam não ter frequentadores residentes em suas imediações. Na cidade, há

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também os lugares de encontro das pessoas, seja em torno ao lazer e ao esporte, seja em torno à cultura ou à convivência, que vão desde as praças de alimentação e cinemas nos shopings centers, às academias de ginástica e praças esportivas, aos bares e casas noturnas. Em torno ao lazer, nas cidades e em torno a elas, estão as ilhas-paraíso no campo, as praias, os lugares turísticos, os parques ecológicos e de diversões, etc.

Trata-se de uma realidade que incide diretamente sobre a evangelização no mundo urbano, sobretudo quando a Igreja se propõe propiciar espaços de fraternidade e solidariedade, em torno a comunidades eclesiais de tamanho humano. Ter presente onde as pessoas estão e onde costumam se encontrar, pode ser importante diante da ruptura dos laços de vizinhança entre os moradores da cidade.

3.2. A cidade como midiatização

Uma outra porta de entrada na complexidade da realidade urbana é situar-se em relação ao mundo das comunicações. Nas cidades, no campo das comunicações, estão as TVs, as rádios, os jornais, meios de comunicação de massa que atingem o grande público, influindo preponderantemente na opinião pública. Nas últimas décadas, mudaram hábitos e atitudes a internet, que entra diretamente em todos os espaços, até na intimidade do lar, assim como o telefone celular, só para citar dois dos inúmeros recursos das novas tecnologias da comunicação.

Em torno à midiatização, sobretudo da vida urbana, estão também as entidades culturais - as academias e centros literários, as organizações de espetáculos, as companhias de cinema e teatro, as bandas musicais, os teatros, os centros de convenções e os centros culturais, os centros de artesanato e as galerias de arte, as salas de exposição, as feiras de arte, as bibliotecas, livrarias, etc.

Tendo presente este mundo das comunicações, quando pensamos a presença e atuação da Igreja na cidade, não se pode perder de vista o profundo impacto da “sociedade da imagem”, em nosso caso como Igreja, sobre a linguagem simbólica da religião e sobre a cultura oral. Só é o que é visualisável. A realidade das imagens – a realidade virtual – parece substituir o real da realidade. Não se respeita a dimensão “interior” ou o oculto ou ausente, como a realidade de Deus, que só pode ser evocada mediante o símbolo (VIETMEIR: 2002, p. 85-91). A imagem devora o símbolo, desvaloriza a cultura oral e a tradição transmitida “ex auditu”. Com isso, ao lado de seus inúmeros benefícios, a mídia contribui para a banalização da religião, não só reduzindo-a à esfera privada, como a um

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espetáculo para entreter o público. Trata-se de uma “estetização presentista”, que substitui a religião, através de sensações “in-transcendentes”, espelho das imagens da imanência. Também a religião passa a ser consumista, centrada no indivíduo e em sua degustação do sagrado.

Em contrapartida, a crise da racionalidade epistêmica, fria, que desconhece as razões do coração, trouxe de volta a linguagem simbólica, ritual, narrativa, estética e poética. Ora, isso tem tudo a ver com Igreja, pois o que a religião oferece são basicamente bens simbólicos, que se remetem ao sagrado, que sempre transcende. O simbólico dá a verdadeira dimensão do mistério. Entretanto, na religião hoje, incluída a Igreja católica, ao lado do estético, desta “estetização presentista”, urge colocar o ético, sob o risco do simbólico se transformar em esotérico, em algo mágico. É o que podemos constatar em meio a tanto milagrismo, providencialismo e mesmo demonização ou satanização da realidade. A tendência a desresponsabilizar as pessoas diante de situações adversas à mensagem cristã, só reforça a justa crítica dos “mestres da suspeita” e dos “filósofos da práxis” da religião como alienação.

3.3. A cidade como espaço da subjetividade e da autonomia

Uma terceira possível porta de entrada na complexidade da realidade urbana é situar-se em relação às pessoas e suas relações interpessoais. Começamos nossa reflexão dizendo que a cidade muda substancialmente o modo de relação entre as pessoas. Como bem constata J. Comblin, no antigo modus vivendi rural, a cultura era homogênea, cuja alma e centro era a religião, católica. A família e a vizinhança se encarregava de introduzir os filhos na cultura e na religião dos pais. Entra-se na Igreja, quase inconscientemente: a família se encarregava de introduzir os filhos nos padrões de comportamento aceitos na sociedade rural, bem como de levar as novas gerações para os sacramentos e as festas religiosas. Já na cidade, os pais não têm a garantia de transmitir seus padrões culturais e sua religião para os filhos; primeiro porque as novas gerações já não aceitam simplesmente o modo de viver, de pensar e de agir dos pais; segundo porque na cidade existe várias ofertas religiosas e se acha que se pode escolher. Fator agravante, na cidade, é a falta de espaço e de tempo na família para o convívio de pais e filhos. A televisão e a internet tiraram muito do tempo para a conversa, na qual os pais podem explicar aos filhos seus valores. Inclusive, eles mesmos duvidam de seus próprios valores diante do bombardeio de outros que a vida urbana exalta e, simplesmente, intimidados, deixam que os filhos sigam seu caminho (COmBLIN: 1980, p. 34).

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Na antiga cultura rural, as pessoas estão determinadas pelo ambiente, as tradições e as limitações materiais. Sabe-se que, na melhor das hipóteses, viver significa reproduzir a vida de seus pais. As pessoas se sentem vigiadas, fiscalizadas, julgadas permanentemente pela família e pela vizinhança. A satisfação dos desejos esbarra no limite do dinheiro, às vezes, circunscrita a uma economia de subsistência. Já o fascínio pela cidade tem muito a ver com possibilidade de fazer sua própria vida, livremente. Indo para a cidade, se rompe com esta dependência, pois lá se pode alimentar e satisfazer desejos pessoais. Ali, as pessoas não se importam muito com o que pensa a vizinhança e vice-versa. Podem escolher religião, namorado, partido político, time de futebol, sua roupa, seu jeito de viver. Inclusive nas favelas, apesar das duras condições de vida, se é mais livre na cidade. Ainda que os desejos nem sempre podem ser realizados, sempre se pode sonhar visitando um shopping center ou frequentando alguma tribo cultural (COmBLIN: 1980, p. 35).

Na antiga cultura rural, os comportamentos culturais e religiosos já estão determinados; qualquer transigência esbarra no constrangimento da família ou da vizinhança. Não há ofertas de outros padrões culturais e outras religiões. Já na cidade, abre-se um leque de novos padrões de comportamento e de ofertas religiosas, numa espécie de grande mercado, onde cada um se sente no direito de escolher o que mais lhe apraz. No espaço urbano, há liberdade religiosa, sem que as tradições do passado continuem exercendo um peso social.

Na antiga cultura rural, o mundo é parado, nada muda e nem se sente necessidade de mudar. A Igreja é parada, repete as mesmas coisas, nunca oferece coisas novas. Já na cidade, todos querem progredir, mudar, melhorar a casa, o salário, mudar a alimentação, o vestuário seguindo a moda, o visual pela adesão aos cosméticos e para quem pode cirurgias plásticas. O consumo de certos produtos (vestuários, alimentos, bebidas, moto, carro) aparece como conquista da personalidade e afirmação pessoal, inclusive o consumo de drogas. A cidade vive de novidades; é preciso mudar sempre, por isso, está sempre em obras. Um bom administrador público é aquele que enche a cidade de obras. Os cidadãos detestam a repetição das mesmas coisas: os mesmos espetáculos, as mesmas festas, as mesmas músicas. Querem novas figuras, novos artistas.

A cidade como grande laboratório da cultural atual, é o cenário do imperativo da inovação constante. hoje, sabemos que o acúmulo dos ganhos da produção, não são distribuídos, mas aplicados na criação de novas tecnologias. A última invenção sai com seus dias contados. É o mundo do provisório, do passageiro, do descartável e do efêmero. há um encolhimento da utopia no

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momentâneo. A velocidade das mudanças cria a sensação de que estamos diante da novidade inesgotável das coisas e da possibilidade de afogar a insatisfação, pela degustação inacabável de novidades, a usar e descartar (mARDONES: 2003, p. 2). Tudo fenece rapidamente, obrigando a recomeçar desde o início: a vida aparece como um projeto transitório, com o qual se pode romper a qualquer momento. O compromisso, em longo prazo, é uma carga insuportável, levando a fugir de todo compromisso. há uma cultura que favorece mais as sensações que a reflexão, a visualização ou percepção sensitiva ou emocional. Dado que o passado perdeu relevância e o futuro é incerto, o corpo como referência da realidade presente, deixando-se levar pelas sensações. A “sociedade das sensações” rouba a capacidade de reflexão e de distância, condição para um posicionamento crítico, o discernimento e assimilação personalizada.

Frente a isso, está a exigência de um tipo de pessoa flexível, onde valem menos os conhecimentos armazenados do que a capacidade de aprendizagem e a adaptação contínua (mARDONES: 2003, p. 9). Não basta mudança de mentalidade, é preciso uma mentalidade de mudança. É o encolhimento da utopia no momentâneo a revisão da concepção da utopia como dilatação indeterminada do futuro: as pessoas querem ser felizes hoje, no presente. Urge integrar o momentâneo e a gratuidade (dimensão sabática da existência).

Tudo isso leva a uma crise das instituições e passagem da sociedade à multidão. Sombra de nosso tempo são as instituições, atreladas ao mercado, deixando as pessoas órfãs de sociedade. Entretanto, as pessoas tomaram distância delas, internalizando as decisões na esfera da subjetividade, esvaziando-as. Cada um se sente no direito de fazer de sua vida pessoal o que bem entender, sem o controle das instituições. Numa sociedade plural, as tradições já não se apresentam como uma necessidade que se impõe, perdendo sua força orientadora e normativa. Em contrapartida, dá-se a passagem do social ao cultural, ou seja, a passagem da sociedade à multidão, entendida esta como os sujeitos, autônomos e dispersos, mas não isolados, constituindo como que “comunidades invisíveis”, sem dúvida, um grande desafio para a experiência comunitária cristã (COmBLIN: 2002, p. 21).

3.4. A cidade como lugar de novas formas de sociabilidade e exclusão

Uma quarta possível porta de entrada na complexidade da realidade urbana é situar-se em relação às formas de sociabilidade. Sociabilidade e exclusão em nossas cidades, em grande medida, têm a ver com economia. A economia está no centro da vida, das preocupações, dos valores e das atividades das cidades

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atuais. É tão forte que, como diz J. Comblin, o lado espetacular da cidade é a publicidade, que por sua vez, move a economia, fundada no vender e comprar. As empresas não têm ética, se regem pelo mercado e pelo lucro, pois elas não dependem de seus dirigentes, que são prisioneiros do sistema. há empresas financeiras, industriais, comerciais, empresas de transporte, que ocupa milhares e milhares de empregados, apesar de todo desemprego. Ao lado destas empresas, está o setor informal, que nem sempre é espaço de desempregados. mas, quase a metade da população vive da economia informal, da criatividade, de biscates. Depois, há os milhares de desempregados que vivem sustentados pelos pais ou pela aposentadoria dos mais velhos (COmBLIN: 1980, p. 45-46).

Fruto de um modo de organização do trabalho e da produção, hoje, 20% da humanidade detém 80% dos recursos do planeta e os outros 80% só têm acesso a 20% dos recursos. Como dizia Josué de Castro: “metade da humanidade dorme com fome e a outra metade dorme com medo daqueles que tem fome”. Os grandes anúncios parecem oferecer oportunidades a todos, entretanto, elas são para poucos. Surgem novos rostos da pobreza: como “supérfluos e descartáveis” (DAp 65). A liberdade é instrumentalizada para o consumismo, em que o supérfluo se faz conveniente, o conveniente necessário e, o necessário, em indispensável.

Como se situam as pessoas da cidade frente a realidades como esta? Na antiga cultura rural, não havia necessidade de organizações cidadãs, bastam as autoridades, que respondem pelos diferentes serviços, sejam da sociedade civil ou da esfera religiosa. Já na cidade, para viver e interagir, os habitantes da cidade sentem-se na necessidade de formar associações de fins econômicos, políticos, sociais, culturais, ecológicos, referentes à saúde, segurança, etc. Nas cidades, as milhares de associações constituem o tecido da sociedade civil organizada, consciente, reivindicativa.

Entretanto, hoje, há o desencanto e a desconfiança do povo nos políticos, nas instituições públicas e nos três poderes do Estado, com o consequente enfraquecimento da política. Constata-se a falência da democracia representativa: os partidos políticos são máquinas eleitorais, cujo objetivo é ganhar a eleição. Poderíamos dizer que, na sociedade de hoje, especialmente na cultura urbana, de um lado, está o triunfo do indivíduo solitário: nunca o ser humano foi tão livre, mas também tão só; só e condenado a salvar-se sozinho, em meio a milhões de concorrentes. há a emergência, do indivíduo hiper-narcisista, hiper-individualista e hiper-consumista. Em grande medida, isso é resultado da dinâmica do mercado, que absolutiza a eficiência e a produtividade como valores reguladores de todas as relações humanas. há uma mercantilização das relações

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pessoais, sociais e religiosas; tudo é medido pela lógica custo-benefício. Das grandes utopias da modernidade, restou o gosto amargo do presente, amenizado pela utopia de ser um pequeno burguês, no pragmatismo do cotidiano (SPOZATI: 2009, p. 303-312).

Em contrapartida, há um deslocamento da militância política para a cidadania. Em contraposição à falência da democracia representativa, há crescimento da sociedade civil, com o surgimento de muitas organizações alternativas não governamentais e movimentos sociais, sem vinculação partidária. há a emergência de uma sociedade civil mundial, em torno à busca de “outro mundo possível”, urgente, porque necessário (FSm). A interligação mundial fez surgir um novo poder político: o dos consumidores e suas associações, fruto da consciência de que comprar é sempre um ato moral. As bases de um novo sistema econômico são buscadas no fortalecimento de micro- iniciativas como a economia solidária, a agroecologia, a agricultura familiar...

4. A modo de conclusão: evangelização e inculturação no mundo urbano

Pastoral urbana não é simplesmente fazer pastoral na cidade. Trata-se, antes, de uma ação pastoral encarnada na realidade urbana, caracterizada por desafios, estilo de vida, linguagem, símbolos e imaginários próprios. Do contrário, ainda que atuando na cidade, pode-se estar transportando para o urbano, a milenar pastoral marcada pelos parâmetros da quase extinta cultura rural, típica do período da cristandade. Neste caso, em lugar de inculturar o Evangelho na cidade, se está evangelizando, como diz Paulo VI em Evangelii Nuntiandi, “de maneira decorativa, como que aplicando um verniz superficial”, e não “de maneira vital, em profundidade, indo até às raízes da cultura” (EN 21). Talvez seja esta uma das razões pela qual, hoje, apesar da Igreja estar majoritariamente evangelizando na cidade, haver pouca pastoral urbana e a consequente dificuldade em responder aos anseios mais profundos, daqueles que ela abriga ou acorrem a ela. A consequência é a sangria silenciosa dos católicos da paróquia, em grande medida, ainda tradicional, atrelada à “pastoral de conservação”, o modelo típico da cristandade rural e pré-moderna.

Como vimos, para uma evangelização inculturada no mundo urbano, o primeiro requisito é conhecer a cidade, que como diz Aparecida, “é laboratório da cultura contemporânea, complexa e plural” (DAp 509), com “uma nova linguagem e uma nova simbologia, que se difunde também no mundo rural” (DAp 510). “O anúncio do Evangelho não pode prescindir da cultura atual”, que “deve ser conhecida, avaliada e em certo sentido assumida pela Igreja” (DAp 480).

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São muitos os desafios para uma evangelização inculturada no mundo urbano. Começam pela exigência da já tardia passagem de uma “pastoral de conservação, baseada numa sacramentalização com pouca ênfase na evangelização” (Med 6,1), para uma pastoral “decididamente missionária” (DAp 370). Consequência deste atraso, entre outros fatores, está aí a massa de católicos não evangelizados, “sem conversão pessoal e experiência pessoal com Jesus Cristo”, “de fraca identidade cristã e pouca pertença eclesial” (DAp 226a). Isso leva a outra consequência: com a radicalização do processo de secularização, o denominado “substrato católico” (DP 1,7,412) do período de cristandade, tende a ser substituído por uma religiosidade eclética e difusa, numa espécie de neopaganismo imanentista.

Com a Encarnação, “o Verbo de se fez cultura” (Bento XVI, DI, Aparecida) em Jesus de Nazaré, mas, em nossos países do “novo mundo colonial”, a evangelização, longe de inculturar o Evangelho, implantou uma Igreja exógena à alma de nossos povos (COmBLIN, 2002, p. 33-36). A sangria de católicos de nossas comunidades, sobretudo, para movimentos religiosos autônomos, além de fatores próprios de nosso tempo, tem muito a ver com isso. Como humildemente reconheceu Aparecida, os católicos que deixam nossas comunidades e vão para outras denominações religiosas, não estão querendo deixar a Igreja, antes estão buscando sinceramente a Deus (DAp 225). Soma-se a isso, de um lado, o acelerado processo de urbanização em nosso continente e, do outro, uma Igreja em grande medida circunscrita em categorias do mundo e da cultura rural, hoje, praticamente inexistentes. Passar de uma pastoral na cidade a uma pastoral urbana, é o grande desafio para uma evangelização inculturada na urbe, hoje.

REFERênCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ARTICULAÇÕES ENTRE O mUNDO URBANO E A EVANGELIZAÇÃO hOJE

ARTICULATIOnS BETWEEn THE URBAn WORLD AnD THE EVAnGELIzATIOn TODAY

Flávio Fernando de Souza *

RESUMO: Pertinente ao desenvolvimento de trabalho de tese sobre evangelização urbana, para o doutoramento em Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), o presente artigo constitui estudo teórico em que propõe enfrentar o desafio de refletir sobre a pastoral urbana, considerando as articulações entre o mundo urbano e a evangelização hoje. A questão que se coloca e que orienta este debate, por conseguinte, está relacionada ao esforço de compreender este contexto, suas articulações e consequências e em como agir diante disso. Inicia-se lançando um olhar para a complexidade das relações entre globalização e urbanização, e as consequentes mutações na vida das sociedades e das pessoas nas cidades, com foco nas relações dos sujeitos com a religião nesse contexto, para daí depreender algumas implicações para a ação evangelizadora no momento atual. Conclui-se destacando-se a necessidade de consolidar um novo paradigma para a pastoral urbana, de uma evangelização urbanamente inculturada, o que implica ler, compreender e dialogar com a cidade, assim como de desenvolver e sustentar uma visão capaz de integrar um olhar para os problemas e as tarefas pastorais específicas com um olhar para o conjunto, que possibilite abranger, ao mesmo tempo e de forma complementar, a complexidade da cidade e da cultura urbana e a tarefa evangelizadora como um todo articulado.

PALAVRAS CHAVE: Evangelização; Pastoral urbana; mundo urbano; Cidade.

ABSTRACT: Pertinent to the development of the thesis on urban evangelism for the PhD in Theology at the Pontifical Catholic University of Paraná (PUCPR) this article is a theoretical study in which is proposed to reflect the challenge on Urban ministry, considering the articulations between the urban world and the evangelization today. The question that drives this debate, therefore, is related to the effort to understand this context, their articulations, consequences and how to act face to it. The article begins looking the complexity relationship between globalization and urbanization, and the resulting changes in the life of societies and people in the cities, focusing on the relations of the subject with the religion in this context, to finally understand some implications to the evangelization activity at the present time. It is concluded highlighting the need to consolidate a new paradigm for the Urban ministry, an urbanely enculturated evangelization, which implies read, understand and dialogue with the city. Just like to develop and sustain a vision capable of integrating a view of the problems and pastoral tasks with a

Artigos

* Doutorando em Teologia pela PUCPR, linha - Bíblia e Evangelização, área de Teologia Pastoral, com estágio de pesquisa (sanduíche) na Université Laval, Quebec – CA. Bolsista CAPES. Pesquisa sobre: Pedagogia de Evangelização para a Cidade hoje. mestre em Educação pela Universidade Tuiuti do Paraná - UTP, linha: Práticas Pedagógicas - elementos articuladores; bolsista CNPq; com pesquisa sobre Indisciplina Escolar e Currículo Praticado no Ensino Fundamental. Graduado em Filosofia - Licenciatura Plena pela Universidade São Francisco. Estudos de Teologia, música e Organização do Trabalho Pedagógico, com mBA em Gestão de Instituições de Educação Básica.

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specific look at the set, which makes it possible to cover, at the same time and in a complementary manner, the complexity of the city, the urban culture and the evangelizing task as an articulated whole.

KEY WORDS: Evangelization; Urban ministry; Urban world; City.

1. InTRODUÇãO

A sociedade globalizada – a civilização planetária – é algo novo na história e transforma nossas compreensões e representações sobre espaço, tempo, relações, culturas... hoje, vivemos no mundo como “comunidade de seres humanos”1 em que as fronteiras espaço-territoriais são relativizadas e substituídas pelas fronteiras de cunho cultural, marcadas pela diferença e por incessantes fluxos e câmbios culturais entre o global e o local que se complementam.

Tal contexto enseja mudanças significativas nos modos de vida do ser humano, em suas formas de agir e interagir e de como entende e assume seu papel no mundo. Contudo, não se trata apenas da questão de habitar um espaço geográfico, a cidade, uma vez que de fato vivemos não apenas em cidades, mas “vivemos numa civilização urbana”2. Trata-se, sim, de compreender uma nova cultura que ultrapassa o geográfico, o territorial, e que se denomina de cultura urbana. Diante do que se faz necessário “distinguir o que é próprio da cidade e o que é da nova cultural ocidental, pós-moderna, capitalista, globalizada”.3

Enquanto o termo cidade refere-se, sobretudo, às “estruturas físicas, sociais e políticas que podem estar mais próximas ou mais distantes do fenômeno urbano”4, o fenômeno da urbanização refere-se a certo “modo de ser, de conhecer a vida, estabelecendo uma específica hierarquia de valores, modo este que pode ou não estar presente tanto nas cidades como também no que costumamos chamar de rural”5.

1 FRANÇA mIRANDA, mário de. Igreja e sociedade. São Paulo: 2009, p. 27.2 BERKENBROCK, Volnei. Perspectivas e desafios para a evangelização na América Latina:

constatações a partir do outro lado. In: PIVA, Elói Dionísio. (Org.). Evangelização: legado e perspectivas na América Latina e no Caribe. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 218.

3 COmBLIN, José. Os desafios da cidade no século XXI. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2011, p. 12.4 AmADO, Joel Portella. Jesus Cristo e o diálogo com as culturas urbanas na América Latina. In:

PIVA, Elói Dionísio. (Org.). Evangelização: legado e perspectivas na América Latina e no Caribe. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 254.

5 AmADO, Joel Portella. Jesus Cristo e o diálogo com as culturas urbanas na América Latina. In: PIVA, Elói Dionísio. (Org.). Evangelização: legado e perspectivas na América Latina e no Caribe. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 254.

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Neste sentido, compreende-se a cidade, em especial a metrópole, como “processo de estruturação socioespacial e como nova forma de produzir, organizar e significar a vida”6, a partir do qual se expande e se sedimenta a chamada cultura urbana num processo que tem como resultado a instauração da “cidade onipresente em todos os recônditos do planeta, impondo seus modos de consumir e de pensar a realidade, do ponto de vida de sua dinâmica diária”7, cuja marca traduz-se pela contradição, pela ambivalência.

Articulando essa questão à Pastoral Urbana, objeto deste debate, tal distinção pode ser tomada enquanto condição de possibilidade para, de um lado, se superar uma postura reducionista de identificação que restringe o urbano ao geográfico e circunscreve os desafios pastorais às regiões ditas urbanas em detrimento dos espaços rurais; e, por outro, permite que se entenda a necessidade de a ação evangelizadora responder de forma consequente com os desafios postos pela cultura urbana, que são diferentes dos desafios colocados pela cidade.

Por conseguinte, têm-se como pressupostos para este estudo as ressonâncias deste cenário na constituição de novas interpelações advindas do mundo urbano, da cultura urbana e de seus sujeitos, diante das quais percebe-se, por um lado, o esgotamento de alguns modelos de pastoral ainda em prática e inconsequentes com o momento atual e, por outro, a necessidade de gestar novas mediações capazes de gerar novas práticas pastorais enquanto respostas novas às tais interpelações, que estariam sinalizando para a constituição de um novo paradigma de evangelização.

Neste sentido, sabendo-se que “há desafios que procedem da nova cultura e outros que são próprios da cidade”8, destaca-se que cada um deles precisa de respostas adequadas, uma vez que dependendo de como se compreende a articulação entre estas duas realidades – cidade e cultura urbana –, que se imbricam, mas não se identificam, e a evangelização, se têm consequências distintas para os modos de entender e realizar a ação evangelizadora neste contexto.

A questão que se coloca e que orienta este debate, por conseguinte, está relacionada ao esforço de compreender este contexto, suas diferenças e articulações e em como agir diante disso. Condizente a isso, aqui se propõe enfrentar o desafio de refletir sobre Pastoral Urbana considerando as articulações entre o mundo urbano e a evangelização hoje.

6 SANChEZ, Wagner Lopes. Teologia da cidade: relendo a Gaudium et Spes. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2013, p. 10.

7 SOARES, Afonso maria Ligorio; PASSOS, João Décio. (Orgs.). A fé na metrópole: desafios e olhares múltiplos. São Paulo: Paulinas, EDUC, 2009, p. 8.

8 COmBLIN, José. Os desafios da cidade no século XXI. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2011, p. 12.

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Inicia-se lançando um olhar para a complexidade das relações entre globalização, urbanização e informação nas sociedades atuais e as consequentes mutações que produzem na vida das sociedades e das pessoas nas cidades, enfocando de modo particular as consequências deste contexto nas relações dos sujeitos com a religião, para daí depreender algumas implicações para a ação evangelizadora no momento atual.

2. SITUAnDO A qUESTãO: UM MUnDO GLOBAL, URBAnO E InFORMACIOnAL

há expressões diversas para designar o momento atual, cada qual expressando um modo de ver e reagir às intensas e profundas mutações que estão reconfigurando os modos de vida e as relações de todas as sociedades na contemporaneidade, podendo ser descrito como crise, avanço ou superação da modernidade, e que constitui, de maneira geral, “o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do final do século XIX”9.

Pode-se dizer, no entanto, que tal cenário é especialmente marcado pelos fenômenos da globalização, da urbanização e da informação, que sintetizam as grandes mutações porque passa o mundo e que se caracteriza, por um lado, pela mudança, pelo desencantamento, pelo dissenso e pelo eclipse das metanarrativas modernas, mas por outro, pela afirmação do sujeito individual e do pluralismo.

Contudo, neste cenário complexo, amplo e ambíguo que aqui se toma na perspectiva de modernidade-tardia, antes de sugerir uma nova época, estaria apontando para “um período em que as consequências da modernidade estariam se tornando mais radicalizadas e universalizadas que antes”10.

Tais decorrências, assim, representariam um conjunto de situações consequentes às profundas e dramáticas transformações produzidas em todos os modos de vida pela modernidade, atingidos em tempos, formas e com intensidades diversas, alterando de forma significativa “os mecanismos tradicionais de socialização e integração social, a inserção no mundo trabalhista, a família, a vizinhança e as instituições educativas”11.

9 LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 10. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, p. xv.

10 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991, p. 13.11 ZAFFARONI, Cecília. Processos de empobrecimento na América Latina. In: SOTER; AmERÍNDIA.

(Orgs.). Caminhos da igreja na América Latina e no Caribe: novos desafios. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 70.

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2.1. Um mundo em constante mutação

Consequente a esta radicalização das consequências da modernidade, entende-se a modernidade-tardia como um contexto histórico-social, globalizado, urbano e informacional, marcado por um acelerado ritmo de mudanças que se mundializa penetrando todas as sociedades e suas instituições, bem como as rotinas das pessoas e provocando um esvaziamento de tempo e de espaço, a perda de raízes, a desterritorialização, a perda de referências culturais e uma sensação paradoxal que se globaliza de não pertencimento a lugar nenhum, mas ao mesmo tempo de estar conectado a todos de qualquer lugar.

Este esvaziamento, característico desta condição de modernidade-tardia, globalizada, urbana e informacional, possibilita uma espécie de desencaixe, ou seja, um “deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço”12, potencializadas que são por meio das novas formas de comunicação informacionais do momento atual.

Por conseguinte, tais mecanismos implicam em reestruturações das relações sociais entre as pessoas nas cidades atuais, tornando tudo sujeito à impermanência, à fragilidade e flexibilidade dos laços entre as pessoas e destas com as instituições sociais tradicionais, como o caso da religião, a vida comunitária, os laços de vizinhança. Por outro lado, aparecem nestes cenários novas formas de conectar-se com o outro, especialmente por meio de relacionamentos em redes sociais virtuais, com base não na proximidade geográfica, mas na coincidência de interesses comuns.

Neste sentido, os deslocamentos de cenários relacionais locais para contextos culturais e informacionais globalizados produzem efeitos ambivalentes ao propiciar novas formas de interação e reencaixe, tornando possível, por exemplo, alguém estar conectado através das redes sociais com uma pessoa do outro lado do mundo, ao mesmo tempo em que sequer conhece as pessoas que estão ao seu lado nas salas de espera de um aeroporto, ou num café, ou seus vizinhos num grande condomínio urbano.

Estas novas condições de vida, cujos relacionamentos se firmam por meio de redes de comunicação informacionais, intensificam-se e alongam-se num processo que desconhece fronteiras territoriais e culturais e se dissemina globalmente, e que se caracteriza ainda por inserir a todos em “cenários culturais e de informação globalizados”13, e pela “intensificação das relações sociais em escala

12 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991, p. 31.13 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991, p. 154.

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mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorridos a muitas milhas de distância e vice-versa”14.

Neste mundo em constantes mutações, outra importante característica da influência destes fenômenos sobre as pessoas e as sociedades e seus estilos e formas de vida, pode ser denominado de a passagem “do perene ou eterno para o momentâneo ou passageiro”15. Ou, para trazer à cena a expressão já consagrada, a passagem para um tempo de relações líquidas16, de laços débeis.

Nesse sentido, a título de ilustração apenas, podem-se citar os exemplos da fragilização da temporalidade dos laços matrimoniais tradicionais e o enfraquecimento da pertença religiosa. Em ambas as situações podem-se ver delineando-se outras características deste fenômeno, quais sejam, a da emergência do sujeito individual, autônomo, da pluralidade e da mobilidade. O transitório, o fluido e o móvel trazem à cena o sujeito que busca, que escolhe, que refaz sua escolha indefinidamente, em um mundo do plural e da diferença.

O mundo já não é mais feito do uno e do comum. Das cinzas do domínio do “grupal sobre o individual, do institucional e do tradicional sobre as escolhas pessoais, do unificado sobre o diversificado”17, surgem e afirmam-se o individual e o plural, o sujeito capaz de escolhas, capaz do múltiplo, autônomo a ponto de se desvencilhar do vínculo institucional e das escolhas coletivas.

Está-se, portanto, diante de um novo modo de existir, onde as possibilidades de ser se ampliam e onde cada indivíduo é interpelado a “fazer suas escolhas e a compor seu quadro de existência, sem o forte compromisso de seguir a mesma tendência de seus antepassados, sem aderir às tradições e instituições transmissoras e garantidoras desse passado”18.

2.2. Consequências para o âmbito da religião

Isto tem consequências profundas para o âmbito da religião e da relação que os indivíduos mantêm com ela, e também desta com aqueles. Os impactos desta cultura urbana sobre a religião, e sobre a relação entre os sujeitos e as religiões, pode ser constatado em sua diversidade de formas e intensidades

14 Ibid., p. 76.15 AmADO, Joel Portela. A Igreja num mundo em mudança. CONGRESSO DE ANImAÇÃO BÍBLICA

DA PASTORAL, I, Goiânia, 2011, p. 3.16 BAUmAN, Zigmut. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 8.17 AmADO, Joel Portela. A Igreja num mundo em mudança. CONGRESSO DE ANImAÇÃO BÍBLICA

DA PASTORAL, I, Goiânia, 2011, p. 3.18 Ibid., p. 4.

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em diferentes contextos. Por exemplo, na Europa, o fenômeno da secularização produz o indiferentismo religioso. Contudo, em outras partes do mundo assiste-se a uma explosão de religiões novas, assim como ao ressurgimento de algumas religiões tradicionais.

Na América Latina, por sua vez, percebe-se o impacto tanto no sentido do abalo e do questionamento às religiões tradicionais, hierarquizadas, quanto da explosão de novas religiões, especialmente as de cunho neopentecostal. De modo geral, estas novas religiões acabam por traduzir a busca por sentido dos sujeitos das cidades atuais em instituições não convencionais, pouco hierarquizadas, que satisfaçam a interesses imediatistas e de conveniência promovidos pela nova cultura urbana. Isto porque “a nova cultura não exclui a religião – muito pelo contrário -, mas exclui uma religião hierarquizada, em que tudo depende de uma casta que se reproduz por si mesma, sem nenhuma interferência do povo”19.

Este sujeito autônomo pode mover-se livremente dentro da cidade por entre suas instituições de forma praticamente anônima e plural, pois o centro de suas buscas e escolhas é o seu próprio interesse20. O interesse dos sujeitos, inclusive, passa a ser o mote de possibilidades para novos reagrupamentos, reencaixes, em forma de novas comunidades em que se partilham dos mesmos interesses.

Tais reagrupamentos são possibilitados justamente pela pluralidade de ofertas, escolhas e opções que estão a seu dispor e pela oportunidade de proximidade, identificação e reconhecimento que permitem, uma vez que se estruturam com base na coincidência dos interesses e dos valores que se buscam e pela volatilidade com se sustentam. Cada opção, no quadro do plural, o é tão somente enquanto possibilidade, enquanto permanecer cambiável, dependendo da situação em que os indivíduos se encontram, e enquanto possiblidades de “o indivíduo assumir (ou escolher) possibilidades diversas, dependendo de sua vontade, das ofertas que se lhe apresentam e do momento ou da situação”21.

A adesão a uma religião, portanto, passa a ser uma decisão pessoal, que tem como critério decisivo dessa escolha a experiência, a vivencia religiosa. Diante da multiplicidade de ofertas, cada religião se torna “uma província de sentido”22, que

19 COmBLIN, José. Os desafios da cidade no século XXI. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2011, p. 17.20 BERKENBROCK, Volnei. Perspectivas e desafios para a evangelização na América Latina:

constatações a partir do outro lado. In: PIVA, Elói Dionísio. (Org.). Evangelização: legado e perspectivas na América Latina e no Caribe. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 219.

21 BERKENBROCK, Volnei. Perspectivas e desafios para a evangelização na América Latina: constatações a partir do outro lado. In: PIVA, Elói Dionísio. (Org.). Evangelização: legado e perspectivas na América Latina e no Caribe. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 225. (Grifos do autor).

22 Ibid., p. 239.

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precisa continuamente ser oferecida, proposta, enquanto oportunidade para ser experimentada, devendo sair ao encontro e conquistas os seus membros, ofere-cendo-lhes sempre coisas novas.

3. ARTICULAÇõES EnTRE O MUnDO URBAnO E A EVAnGELIzAÇãO HOJE

Tendo-se por base o quadro contextual apresentado, considerando os nexos mutuamente implicados, simbióticos e ambíguos entre a cidade, a cultura urbana e as diferentes formas de religiosidade que expressam seus sujeitos, nesta seção se buscará articular a cultura urbana com a questão da evangelização de modo a depreender algumas implicações para a ação evangelizadora no momento atual.

Como se pode ver, tem-se um horizonte desafiador à tarefa de evangelização. Contudo, não se está frente a um caminho sem perspectivas, ou sem saídas, mas sim diante de uma encruzilhada, em que múltiplas oportunidades de escolhas se apresentam e diante das quais há que se pensar em “qual delas seria a mais condizente com os novos sinais dos tempos e os novos dinamismos da história”23, tomando-se, por conseguinte, o ser humano e sua realidade como pontos de partida para um processo de evangelização inculturada no mundo urbano hoje.

O esforço de situar a presença e ação da Igreja nesse contexto e pensar uma evangelização inculturada no mundo urbano, e consequente com o momento atual, implica assumir como condição a exigência de perscrutar as relações de reciprocidade entre a cidade e o campo religioso, uma vez que, “uma ação eclesial não simplesmente na cidade, mas no modo urbano, que incida sobre o conjunto da cidade, começa com um conhecimento global e diversificado da mesma”24.

Neste sentido, pressupõe-se que tal compreensão possa permitir resignificar a presença da Igreja enquanto fermento na massa, ou seja, enquanto se busca “impregnar a cultural atual dos valores evangélicos e da utopia do reino de Deus”25. Contudo, tal abordagem implica assumir a cidade e seus sujeitos enquanto interlocutores, identificando as interpelações pastorais que se apresentam neste contexto e a partir dele, de tal modo a engendrar uma pastoral urbana enquanto mediação para a Igreja e os agentes de pastoral se conectarem com “o modo de ser, pensar e viver dos habitantes da cidade”26.

23 BRIGhENTI, Agenor. A Igreja do futuro e o futuro da Igreja: perspectivas para a evangelização na autora do terceiro milênio. São Paulo: Paulus, 2001, p. 5.

24 BRIGhENTI, Agenor. (Org.). Pastoral Urbana: categorias de análise e interpelações pastorais. Brasília: Edições CNBB, 2010, p. 15.

25 Ibid., p. 10.26 COmBLIN, José. Os desafios da cidade no século xxI. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2011, p. 8.

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Assim, tomando-se em conta os nexos mutuamente implicados, simbióticos entre a cidade e a cultura urbana, compreende-se que o entendimento da relação destes sujeitos urbanos com a religião deve ser buscado “juntamente com a compreensão da própria cidade, [enquanto] duas lógicas que se reproduzem mutuamente”27.

Desta compreensão se pode depreender as implicações desta realidade sobre a construção dos limites e das possibilidades de uma evangelização inculturada no mundo urbano hoje, e ao mesmo tempo, apresentar teologicamente os “parâmetros para se pensar a experiência eclesial [com destaque para a evangelização] nos ambientes urbanos de nossos dias”28.

3.1. Parâmetros para uma evangelização urbanamente inculturada

Um primeiro destes parâmetros para se fomentar um processo de evangelização urbanamente inculturado, aponta para a necessidade de se assumir este tempo de mudanças profundas como possibilidade, enquanto tempo fecundo para a conversão e renovação de métodos, formas e conteúdo da ação evangelizadora, capaz de inculturar-se no mundo urbano no momento atual e daí encontrar os fios necessários para estabelecer um diálogo com seus interlocutores, a cidade e seus habitantes.

Não se trata, entretanto, de simplesmente adaptar estruturas, métodos e linguagens, de forma superficial e aligeirada, apenas incorporando as tendências do marketing religioso29 e do pentecostalismo, mas sim de evangelizar assumindo a realidade humana em toda a sua complexidade, situada na cidade, tributária de uma cultura urbana fragmentada30, incessantemente móvel e desterritorializada31, transformando-se desde dentro32 e das culturas em que se encarna, convertendo suas estruturas, seus métodos, conteúdo e linguagens como meios para ir ao encontro e acolher os habitantes da cidade, constituindo-se enquanto uma Igreja

27 PASSOS, João Décio. A religião e as contradições da metrópole: lógica e projeto. In: SOARES, Afonso maria Ligorio; PASSOS, João Décio. (Orgs.). A fé na metrópole: desafios e olhares múltiplos. São Paulo: Paulinas, EDUC, 2009, p. 21.

28 AmADO, Joel Portella. Cidade, território e evangelização: o desafio de gerar comunidades em ambientes de mobilidade, individualidade e adesão seletiva. In: BRIGhENTI, Agenor. (Org.). Pastoral Urbana: categorias de análise e interpelações pastorais. Brasília: Edições CNBB, 2010, p. 68. (Grifos meus).

29 COmBLIN, José. Os desafios da cidade no século XXI. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2011.30 FRANÇA mIRANDA, mário de. A Igreja numa sociedade fragmentada: escritos eclesiológicos. São

Paulo: Loyola, 2006.31 AmADO, op. cit., p. 69-70.32 IRARRAZAVAL, Diego. De baixo e de dentro: crenças latino-americanas. São Bernardo do Campo:

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em saída e samaritana33, capaz de inculturar-se e estabelecer diálogo com seus interlocutores.

Desse modo, engendrar um processo de evangelização urbana consequente com o momento atual implica ainda um segundo parâmetro de ação: considerar a maneira como se enxergam os desafios e como se responde e age diante deles. Segundo Comblin, há duas maneiras de enxergar os desafios da Igreja na atualidade, cada qual respondendo a um projeto histórico social, eclesial e pastoral:

Pode-se contemplar o desafio do evangelho, mediante o questionamento de como, onde, quando se pode anunciá-lo na nova situação cultural, numa sociedade conduzida por um novo sistema de valores que está substituindo a cristandade. mas pode-se também partir de outro desafio: já que a Igreja perdeu espaço na nova cultura, como pode reconquistar esse espaço, recuperar o prestígio perdido e a audiência que teve durante tantos séculos? Tratar-se-ia de refazer uma nova cristandade com base nas religiões atuais.34

Por conseguinte, à Igreja católica em sua caminhada na história, cabe o desafio sempre atual de pensar em como “interagir com o mundo contemporâneo de maneira criativa, sem aferrar-se nem ao passado nem à modernidade e à pós-modernidade”35, demandando superar um dinamismo evangelizador centrípeto e autorreferencial, cujas intenções seriam a de implantar a Igreja ou de conquistar adeptos apenas, para o esforço de encarnar o Evangelho, num dinamismo centrífugo, que se doa gratuitamente, missionário e de promoção de mais vida, “transformando a humanidade a partir de dentro”, segundo a ótica da Evangelii nuntiandi36.

Entretanto, a pastoral urbana da Igreja não é capaz hoje de atingir a cidade porque, além de esconder-se dela, a ignora, tendo dificuldade de sair ao encontro dos apelos da cidade e de seus habitantes, presa ainda que está no modelo de paróquia territorial, fixista, tributário de uma cristandade à beira da extinção, incapaz de seduzir as novas gerações, especialmente porque “continua tratando os habitantes da cidade como se fossem os camponeses de outrora”37.

33 BRIGhENTI, Agenor. Perfil pastoral da Igreja que o Papa Francisco sonha. In: SILVA, José maria da. (Org.). Papa Francisco: perspectivas e expectativas de um papado. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 13-25.

34 COmBLIN, José. Os desafios da cidade no século XXI. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2011, p. 36.35 BRIGhENTI, Agenor. A ação pastoral em tempos de mudança: modelos obsoletos e balizas de

um novo paradigma. Vida Pastoral, São Paulo, n. 302, p. 23-34, mar./abr. 2015, p. 23,36 PAULO VI. Evangelii Nuntiandi. 22. ed. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 24.37 COmBLIN, José. Os desafios da cidade no século XXI. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2011, p. 8-9.

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Neste sentido, um terceiro parâmetro aponta para a necessidade de consolidar outro modelo de ação evangelizadora, capaz de resignificar a presença da Igreja na cidade. Isto implica que, em lugar de continuar ou tentar reafirmar anacronicamente o modelo de evangelização centrado na paróquia, de característica centrípeta, estática, fixista e de conservação, há que se assumir o risco de pensar em novos modelos que apontem para a capilarização em novas e pequenas comunidades de vida cristã, em contextos urbanos, nos quais estes novos sujeitos urbanos possam situar-se e reunir-se, com novas possibilidades de vínculos e intercâmbios, que acolham suas novas formas de ser e crer nestes contextos hoje.

Responder de maneira consequente aos desafios do momento atual, portanto, implica assumir uma nova consciência de eclesialidade e de catolicidade, capaz de respeito e acolhida do outro, às suas idiossincrasias e diferenças, de modo que se torna imprescindível assumir um processo de conversão pastoral e de conversão estrutural em que se complementam “mudanças na consciência, nas práticas, na organização e nas estruturas eclesiais”38.

3.2. Por uma evangelização urbanamente inculturada

Consequente a estes parâmetros, portanto, coloca-se como desafio iminente a necessidade de assumir um desafio, pendente em grande parte ainda hoje, de buscar os caminhos para realizar uma evangelização urbanamente inculturada, o que implica assumir como exigência uma nova compreensão sobre o que seria evangelização nesse contexto a partir de um novo paradigma eclesial e pastoral, não mais de conservação, tributário da cristandade, mas “decisivamente missionária”39, segundo aponta a Igreja da América Latina reunida em Aparecida.

Deste modo, no espírito da Gaudium et spes, que nos coloca frente à exigência de perscrutar à luz do Evangelho os novos sinais dos tempos40, presentes no atual momento histórico, na cidade e na cultura urbana e em seus sujeitos, eclesialmente nos provoca a assumir uma “nova relação entre a Igreja católica e o mundo, não como duas realidades separadas, completas em si mesmas, Igreja ‘e’ mundo, mas Igreja ‘no’ mundo, reconhecendo-se a si mesma como realidade inserida na história”41.

38 BRIGhENTI, Agenor. (Org.). Pastoral Urbana: categorias de análise e interpelações pastorais. Brasília: Edições CNBB, 2010, p. 11.

39 CELAm. Documento de Aparecida: texto conclusivo da V conferência geral do episcopado latino-americano e do caribe. 2. ed. Brasília: Edições CNBB; São Paulo: Paulus: Paulinas, 2007, n. 370.

40 LOPES, Geraldo. Gaudium et Spes: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2011. 41 BRIGhENTI, Agenor. A epistemologia e o método da teologia da libertação no pensamento de

Clodovis Boff. Horizonte, Belo horizonte, v. 11, n. 32, p. 1403-1435, out./dez. 2013, p. 1432.

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Assumir esta nova consciência de eclesialidade e de catolicidade no mundo, hoje, implica também uma nova atitude pastoral de acolhida e de busca por compreensão destes novos valores emergentes do urbano, da chamada cultura urbana, em suas múltiplas implicações na vida das pessoas, nas suas formas de comunicar-se e relacionar-se, nos seus modos de situar-se, deslocar-se e de reunir-se neste contexto, assim como nas decorrências desse quadro de características na dimensão da sua vivência de fé, na sua relação com a religião, num mundo urbano marcado pelo pluralismo, pela diversidade, pela necessidade de desconstruir e descobrir novas formas de diálogo e convivência com as diferenças.

Deste modo, há que se tomar em conta que uma evangelização urbana precisa colocar-se como prioridades as tarefas ainda pendentes de compreender a cidade e assumir seus habitantes enquanto interlocutores, com especial atenção para suas novas possibilidades de intercâmbios e vínculos, assim como para as diferentes configurações de suas novas formas de ser e crer nestes contextos.

Neste sentido, torna-se necessário assumir e buscar compreender essa relação íntima e complexa entre a fé e a cultura, desde dentro, de lá de onde brota um consequente modo de evangelizar, enquanto inculturação, como processo por meio do qual “a evangelização se faz a partir de dentro da cultura do grupo humano que se quer evangelizar e não como algo extrínseco e estranho a ela”42.

Inculturar significa, assim, assumir uma atitude de abertura e acolhimento ao novo que se instaura a partir da cidade e da cultura urbana enquanto realidades históricas, mutantes, cuja condição e jeito de ser afetam as pessoas, as instituições, os discursos e as práticas, e desafiam a uma constante atualização de conteúdo, métodos e formas de evangelização, capaz de sentido para seus interlocutores e consequente com suas realidades.

Neste sentido, se por um lado se pode afirmar que “teologicamente o conteúdo do anúncio permanece o mesmo”43, contudo, por outro, pastoralmente esta prática assume distintas conotações em função dos diversos contextos em que se realiza, reivindicando variações tanto no nível pedagógico e metodológico, quanto no nível teológico enquanto consequências da exigência evangélica da encarnação: “assumindo o que nelas existe de evangélico e interpelando o que nelas fere os valores do reino de Deus”44.

42 AZEVEDO, marcello de Carvalho. Viver a fé cristã nas diferentes culturas. São Paulo: Loyola, 2001, p. 29.

43 AmADO, Joel Portella. Jesus Cristo e o diálogo com as culturas urbanas na América Latina. In: PIVA, Elói Dionísio. (Org.). Evangelização: legado e perspectivas na América Latina e no Caribe. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 255.

44 AmADO, Joel Portella. Jesus Cristo e o diálogo com as culturas urbanas na América Latina. In: PIVA, Elói Dionísio. (Org.). Evangelização: legado e perspectivas na América Latina e no Caribe. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 255.

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Um processo de evangelização urbana, ou de inculturação/encarnação do Evangelho no mundo urbano, portanto, há que se realizar tomando-se em conta três elementos essenciais – o encontro entre o Evangelho e a outra cultura, o diálogo e a síntese cultural. Cada um destes elementos, indicam, por sua vez, um passo do processo e suas exigências ou implicações intrínsecas:

Primeiramente, a presença e o encontro com outra cultura, que exige nova linguagem, gestos e símbolos para ser significativa; em seguida vem a difícil fase do diálogo, na qual se examina que elementos culturais podem ou não ser assumidos e valorizados pela fé cristã; finalmente chega-se a uma síntese cultural, que não só enriquece a cultural local e a Igreja local, mas ainda contribui para a catolicidade da Igreja.45

Neste sentido, trata-se de evangelizar a cidade, a partir de dentro, numa postura de diálogo e serviço, “como um encontro de culturas, um diálogo intercultural”46, tendo os habitantes da cidade não como destinatários de uma transmissão, mas sim interlocutores para a construção de um novo programa de vida, a partir da experiência de fé humana de Deus que precisa ser assumida para que possa ser transfigurada, assumindo o humano em sua contingência e precariedade na história para chegar juntos à sua plenitude, à vida em abundância.

4. COnSIDERAÇõES FInAIS

Na perspectiva de instaurar um processo de evangelização inculturada no mundo urbano hoje, coloca-se como principal desafio pastoral assumir o risco de buscar novas formas para responder à questão de como viver e anunciar o Evangelho na cultura urbana atual a partir de um novo sistema de valores, capaz de pensar as interfaces entre o Evangelho e a vida cotidiana nestes novos cenários e a partir daqueles que aí vivem.

Deste modo, aponta-se para a construção de “comunidades com rostos próprios e culturalmente novas”47, encarnadas na cultura dos povos latino-americanos, comprometidas com a sua libertação e, por isso, signatárias de denúncia profética para a transformação daquelas situações que negam o Reino.

45 FRANÇA mIRANDA, mário de. Inculturação da fé: uma abordagem teológica. São Paulo: Loyola, 2001, p. 38.

46 AZEVEDO, marcello de Carvalho. Viver a fé cristã nas diferentes culturas. São Paulo: Loyola, 2001, p. 29.

47 BRIGhENTI, Agenor. A missão evangelizadora no contexto atual: realidade e desafios a partir da América Latina. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 41.

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Para isto, é preciso fermentar as ações e estruturas pastorais com um novo paradigma pastoral, que viabilize e medie uma aproximação respeitosa diante da alteridade, de interação e diálogo com o mundo contemporâneo de modo próprio, com o jeito, as linguagens, as representações dos sujeitos e da cultura urbana atual.

Aponta-se, portanto, para a constituição de um novo paradigma de pastoral urbana que engendre e sustente um processo de evangelização urbanamente inculturada, consequente com o momento atual e capaz de integrar um olhar para os problemas e as tarefas pastorais específicas com um olhar para o conjunto, abarcando, ao mesmo tempo e de forma complementar, a complexidade da cidade, da cultura urbana e da tarefa evangelizadora como um todo articulado, de tal modo que se possa, no encontro, na interação e no diálogo recíproco entre estes elementos, responder pastoralmente de forma mais adequada.

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* Texto póstumo publicado e autorizado pela Associazione Culturale "don G. Giacomini, promotora de Incontri di "Fine Settimana"percorsi su fede e cultura Anno 35º - 2013/2014

** Giuseppe Barbaglio:presbítero, teólogo e biblista italiano,.doutor em teologia (Pontificia Università Gregoriana), licenciado em Ciencias bíblicas (Pontificio Istituto Biblico, Roma), doutor em filosofia (Università di Urbino). Lecionou Sagrada Escritura no Seminario di Lodi e na Facoltà Teologica da Italia Setentrional, Desenvolveu pesquisas bíblicas sobre o ambiente histórico do Novo Testamento, sobre a origem da Igreja, sobre o tema do "Jesus histórico". Faleceu em Roma, em 2007.

ArtigosA LAICIDADE DO CRENTE. A relação com o mundo no

evangelho de Jesus e de Paulo*

THE SECULARITY OF THE BELIEVER. The relationship with the world the Gospel of Jesus and of Paul

Giuseppe Barbaglio**

RESUMO: Os cristãos vivem no “mundo”, com todos os outros homens. Por causa de sua fé, fazem uma experiência peculiar de “mundaneidade. O autor faz exegese teológica de vários textos – bem difíceis, como diz ele - em que S. Paulo examina a questão da presença deles no mundo, ou seja na política e na sociedade. Situa inicialmente a comunidade dos crentes dentro da historia “e do mundo, chamando a atenção para o significado especial desse presença como criaturas novas e livres em Cristo - livres do mundo idolátrico e da lei de mosaica. Ao mesmo tempo, morrem com Cristo para a vida egocêntrica e passam a uma solidariedade entre crentes e mundo. O novo culto que prestam a Deus não depende mais de sacrificios rituais, ao mesmo tempo o autor explora o significado da morte de Cristo como sacrificio. E por fim conclui que o cristianismo que vai bem além do aspecto confessional.

PALAVRAS CHAVE: “mundaneidade”; Liberdade; Lei; morte; Sacrifício.

ABSTRACT: Christians live in the “world”, with all the other men. Because of their faith, they go through a peculiar experience. The author makes theological exegesis of several texts – indeed difficult texts - -in which St. Paul examines the issue of their presence in the world, namely the presence in politics and in society. Initially he situates the issue of presence of believers within the story. highlights the new world created in Christ, where he dies for the ego-centered life. Shows how Paul understands the new freedom in Christ, solidarity among believers and the world, and the new worship that pleases God. Recognizes the limits of sin, of which Christ frees us. Finally, the author emphasizes, as Paul points to one Christianity that goes well beyond the confessional aspect.

KEY WORDS: Freedom; Identity; Sin; Solidarity;

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Eu escrevi há vinte anos um livrinho sobre a cidade do crente. Se hoje tivesse que retornar ao tema, evitaría o termo “cidade”, muito polissêmico e ambíguo, substituindo-o com um termo mais em sintonia com os testemunhos bíblicos, aquele de “mundaneidade”.  A experiência dos crentes, dos cristãos no mundo, é uma experiência “mundana”. O termo “mundaneidade”, mais que aquele de “laicidade”, está em sintonia com os testemunhos bíblicos.  Os textos de Paulo sobre este tema, são bastante difíceis, mas se lidos um pouco atentamente, se tornam estimulantes também para nós.

1. O “MUnDO” PARA PAULO

Antes de tudo, Paulo para “mundo” usa dois vocábulos que derivam do judaísmo grego, não da tradição hebraica mais antiga - que fala de mundo como criação de Deus. Sobretudo “kosmos”: o mundo como realidade bela e ordenada e depois “aion”, isto é: “o mundo em sua duração”. Nós diríamos :”as gerações do mundo que se sucedem”. 

Especialmente em Jesus e Paulo, o problema do mundo não é tanto saber que coisa é o mundo, que coisa é o tempo; mas, o relação entre nós e mundo. Ou, em outra perspectiva, que coisa querem dizer o tempo e o mundo para nós.  Eu escolhi dois textos um pouco difíceis e também à primeira vista ambíguos em Paulo, para conseguir dizer alguma coisa a respeito deste argumento assim complexo: a inclinação dos crentes no mundo, isto é a presença dos crentes na politica e na sociedade . São textos difíceis, mas que é preciso ter a coragem de afrontar, porque são também muito importantes. Certo, Paulo não é o único, mas é uma presença bastante significativa das Escrituras cristãs .

2. 1 CORÍnTIOS OS 5,9-11: A COMUnIDADE DOS CREnTES DEnTRO DA HISTORIA

“Eu vos escrevi na minha carta que não vos misturásseis com os devassos, mas não pretendia em todo caso referir-me aos devassos deste mundo ou aos avarentos, ladrões, idólatras. Pois de outro modo deveríeis sair do mundo. Eu vos escrevi pelo contrário, para não vos associardes com quem portando o nome de irmão é devasso ou avarento ou idólatra ou maledicente ou bêbado ou ladrão: não comais nem mesmo junto com tal pessoa.”

A primeira Carta aos Corintos foi enviada para a igreja que Paulo tinha fundado em Corinto. Corinto era uma cidade portuária, e à época muito importante. A Corinto grega tinha sido destruída pelos Romanos pelo ano 150

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aproximadamente antes de Cristo, mas depois do ano de 49 Júlio Cesar a refundou como colônia romana. Corinto representava o encontro de duas culturas, a grega e a romana. Para ali, confluíam vários grupos sociais. Enquanto Atenas, que naquele período estava em crise, Corinto era a grande cidade, onde se faziam também os jogos panelênicosi (não só em Olimpia!). Naquele mundo cultural muito vivo e diversificado assistíamos ao primeiro encontro, ou desencontro em alguns aspectos, de uma comunidade cristã no mundo, numa cidade a cultura metropolitana. 

Numa primeira carta, que estava perdida, para a comunidade de Corinto - Paulo a tinha fundado pelo ano 50 - continha esta surpreendente exortação: “ vós deveis evitar o encontro com os pornoi”. Os pornoi  eram os devassos. Porém a palavra pornos não quer dizer só o devasso sexual, mas também, segundo a polêmica judaica, o idólatra. Os hebreus chamavam de “imorais” aos pagãos que adoravam as divindades. Pois que em Corinto - que era também uma cidade eticamente muito corrompida - o significado desta palavra variava entre “idolatria” e “licenciosidade ético-moral, sexual”. 

Então os crentes de Corinto tinham respondido a Paulo, perguntando-lhe como seria possível para eles - que eram um pequeno grupo de 40-50 pessoas ao máximo numa cidade que podia ter trezentos/quatrocentos mil habitantes - evitar o encontro com os idólatras, com os devassos, com os pagãos. E Paulo, na resposta retorna sobre a sua exortação precedente. Ele esclarece que houve um equivoco, uma incompreensão, afirmando que não se referia aos devassos deste mundo, mas aos devassos que são os irmãos, que pertencem à comunidade. Se os crentes, de fato, não devessem misturar-se com a sociedade, deveriam sair do mundo. Ele afirma portanto claramente que a existência da comunidade cristã é uma existência “na “ sociedade, “no” mundo. É uma experiência de quem “faz parte” desta sociedade, desta cidade, do mundo. A existência cristã não é uma existência que se deve viver num espaço separado, acima da sociedade, mas dentro da sociedade, assumindo a rede de relações, assumindo a mestiçagem.

3. A CARTA AOS GÁLATAS: LIVRES DO MUnDO IDOLÁTRICO E DA LEI DE MOSAICA

O segundo texto muito mais empenhativo e problemático compreende varias passagens da carta aos Gálatas. Trata-se de uma carta encíclica, porque enviada a diversas comunidade da Galácia. A região gálata estava habitada desde o ano 200 a.C. pelos Gálicos, pelos Celtas, que, vindos da França, se fixaram no centro da penísula da Anatolia, dando vida a um reino. No ano 25,

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com a morte do último rei dos Gálatas, Aminta, o reino passou aos Romanos, com os quais tinham depois constituído com as regiões mais vizinhas a famosa província de Galácia, com capital Ancira, a atual Ankara. Paulo tinha fundado algumas comunidades nesta região , comunidades que depois receberam a visita de missionários judeu-cristãos tradicionalistas, ou melhor reacionários. Estes missionários afirmavam que o evangelho da liberdade de Paulo era um evangelho insonso, apresentado assim para ter mais facilmente a adesão dos Gálatas, enquanto o evangelho verdadeiro de Jesus Cristo exigia também a circuncisão (se voltavam para os pagãos) e portanto a observância da lei mosaica. 

Paulo escreve a estes Gálatas, que gozavam da liberdade de cristãos, procurando detê-los em sua recaída na religião mosaica, onde Cristo era somente um complemento. Cristo, nesta concepção, vinha inserido dentro de um esquema que reservava a salvação exclusivamente aos que tinham a circuncisão, isto é, que observavam a lei mosaica.

No início deste texto muito difícil, e também ambíguo, diz: “Eu Paulo ... às igrejas da Galácia. Graças a vós e paz de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo, o qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados ...” (Gal 1,4) 

Nesta afirmação aparece uma fé cristã “prepaulina”, própria dos judeu-cristãos convencidos de que os sacrifícios de expiação do templo de Jerusalém não eram mais o sacramento do perdão, porque substituídos pela morte de Jesus, o novo sacramento do perdão. Os tradicionalistas judeu-cristãos retinham porém que Jesus devia ser compreendido desde a religião mosaica, enquanto Paulo proibia nesta compreensão uma diminuição da força salvifica de Cristo. Para Paulo a salvação não está no perdão dos pecados, não depende da conversão; mas é algo muito mais radical. De fato, o perdão dos pecados só resolve a situação no momento. E então Paulo, iniciando a sua carta, para persuadir os seus ouvintes sobre a fidelidade à tradição, apesar de toda a sua radicalidade, retorna antes de tudo à fórmula tradicional protocristã da morte de Cristo como sacramento do perdão dos pecados no lugar dos sacrifícios do templo, mas para dizer logo depois onde está exatamente a ação de Cristo: “a fim de que ele nos resgate deste mundo mau”. 

A salvação portanto não está tanto no perdão dos pecados mas em um evento de libertação e de resgate “deste mundo mau”. A expressão “este mundo” é bastante ambígua em Paulo. Em geral tem valor negativo, pejorativo. Não indica o mundo na sua fisicidade, mas na sua relação com os homens e portanto se refere à história, à sociedade. Que este mundo seja mau, Paulo o precisará no

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capitulo quarto da carta: este mundo é uma realidade negativa sobretudo porque é um mundo idolátrico. 

As pequenas comunidades cristãs como aquela de Corinto ou como aquelas presentes no império romano estavam em contato com uma humanidade idolátrica, uma humanidade que dobrava os joelhos diante da realidade criada, como se fosse Deus. Então em Gálatas 4, referindo-se a estes crentes da Galácia, que se tinham convertidos à sua pregação, Paulo afirma: “Um tempo vós que não conhecíeis (aqui conhecer significa reconhecer, não é um ato de conhecimento intelectual ) o Deus criador, éreis escravos dos que não são tais para natureza” (Gal 4,8) 

O ambiente em que Paulo se comunica com as suas comunidade é idolátrico, é um mundo escravo destas divindades, que na realidade são uns “zé ninguém”, e que tinham consistência somente para aqueles que as reconhecessem. 

Temos um texto paralelo em 1Coríntios, 8, 5-6, em que Paulo diz: “ se bem que existam aqueles que são considerados deuses seja no céu seja na terra - como de fato existe uma quantidade de senhores -, para nós ao contrário existe um só Deus, o Pai... e existe um só Senhor, Jesus Cristo”. 

Existem muitos deuses e muitos senhores reconhecidos, adorados , venerados, a quem se serve, mas nós crentes em Cristo reconhecemos um só Deus, o Pai, e um só Senhor, Jesus Cristo. Então os deuses eram os chefes das nações, os imperadores, os senhores, que tinham o poder de vida e de morte sobre todos.  “Ele nos resgatou, libertou deste mundo mau” quer dizer então que Cristo nos libertou de um mundo enquanto expressão idolátrica, enquanto ambiente onde se dobram os joelhos diante da realidade humana, criada como se fosse deuses, de um mundo escravizado. 

hoje o mundo idolátrico se manifesta em novas formas, por exemplo no grande fetiche do mercado. Fala-se das “leis do mercado”, do “livre mercado” como se fossem o decálogo! É um mundo idolátrico, onde se adora o mundo, onde as pessoas são sacrificadas ao mundo, onde as pessoas se ajoelham diante das leis do mundo. E Paulo nos diz: “Cristo nos resgatou deste mundo idolátrico” esta é a primeira característica. 

Uma segunda característica diz respeito à circuncisão e à lei mosaica. Paulo escreve aos crentes de Galácia, que queriam fazer-se circuncidar, porque os pregadores judeu-cristãos adversários de Paulo, diziam que se não se fizessem circuncidar, eles não poderia receber a salvação. Cristo não basta, deve-se observar também a lei mosaica.

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 Paulo põe uma equivalência entre a idolatria do mundo pagão (“aqueles que não conhecem Deus porque são escravos de divindades que não são realmente tais”) e a adoração da lei própria do mundo judaico. A lei mosaica é que é considerada não na sua derivação divina, mas enquanto elemento que constitui o centro da existência das pessoas. Os pregadores judeu-cristãos de fato sustentavam que sem a circuncisão, isto é sem a assunção da lei mosaica, não existe salvação. Deste modo, a lei, e portanto a religião mosaica, foi criada por Deus neste mundo (os homens se definem em relação à posse ou à privação da lei mosaica). 

A lei mosaica, a circuncisão, era por sua natureza um fator de discriminação, porque aqueles que tinham a lei e a observavam, eram acolhidos por Deus, estavam no caminho da salvação, enquanto aqueles que não tinham a lei mosaica, os gentios, os pagãos, eram ipso facto considerados pecadores. O próprio Paulo diz isso em Gálatas 2, quando se dirige a Pedro, após a cisão da comunidade de Antioquia. Antioquia era uma comunidade mista, onde as regras da dietética e da tradição hebraica não eram observadas, e todos os crentes comiam juntos na liberdade cristã. Depois que chegaram alguns de Jerusalém, mandados por Tiago, irmão do Senhor Jesus , que sustentavam que não se devia comer juntos porque existiam regras a serem respeitadas. Pedro tinha cedido e se colocava ao lado daqueles judeu-cristãos circuncidados que comiam segundo tais regras, deixando sós os pobres pagãos convertidos, causando assim uma cisão na comunidade. Paulo afirma ter desafiado Pedro de peito aberto, porque o seu comportamento era merecedor de condenação e fonte de escândalo. Assim reprova a Pedro:  “Nós somos judeus por natureza e não somos pecadores provenientes do mundo dos gentios.” (Gal 2,15) 

Enquanto os gentios estavam na situação de serem pecadores (não porque tivessem cometido pecados, também os judeus não os cometeram), os judeus, no interior do sistema mosaico, tinham os meios para obter o perdão através do arrependimento e dos sacrifícios expiatórios. 

Podemos assim compreender agora plenamente o: “Ele nos libertou deste mundo mau”: Cristo nos libertou deste mundo idolátrico, onde impera a idolatria, a adoração das coisas, das pessoas, dos chefes, das criaturas. Cristo nos libertou deste mundo onde vale a lei da discriminação produzida pela lei mosaica, deste mundo onde se adora a religião. 

Para além da religião civil, Paulo diz que Jesus nos resgatou deste mundo onde a religião mosaica, (aliança sinaítica, ritos de expiação) foi discriminante nos confrontos com aqueles que eram por condição excluídos. 

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O evento libertador de Cristo é portanto um evento que liberta do mundo da idolatria e do mundo das religiões (também da religião católica!), entendendo por religiões um conjunto de crenças, um conjunto de ritos, de expressões sociais que separam, que excluem. 

Na realidade, o mundo judaico tinha um respiro universalista, que implicava porém na assimilação dos diversos povos. Os judeus não sustentavam que o seu Deus salvaria somente a eles. A salvação dizia respeito a todos, também aos gentios, sob a condição que os gentios se fizessem hebreus; isto é, aceitassem a circuncisão, como diziam os adversários de Paulo, perdendo assim a própria identidade cultural e tornando-se diferentes.

Paulo representa um universalismo qualitativo, e isto é: um universalismo que admite sobre o próprio plano uns e outros, os hebreus que tinham uma tradição monoteística, a lei, a aliança, a circuncisão, o templo, o culto, e os gentios que não a tinham. Diante do Deus de Jesus Cristo, o homem das religiões e o homem que não tivesse nenhuma religião, estão purificados.

4. GÁLATAS 3,27-28: LIVRES EM CRISTO DAS DIVERSAS IDEnTIDADES

Em Gálatas 3, 27-28, temos aquele texto extraordinário de Paulo, que necessitaria que fosse pronunciado cada dia, sobretudo hoje: “Sim, quando fostes batizados em Cristo, vós fostes revestidos de Cristo. Não há judeu, nem grego, não há mais escravo nem livre, não há mais homem nem mulher, porque todos vós sois um só ser em Cristo Jesus.” 3,27: “Sim, quando fostes batizados em Cristo, fostes revestidos de Cristo...” 

A imagem do vestido era uma imagem tradicional utilizada também nos mistérios gregos onde se vestia um habito novo, como sinal de uma novidade da vida: fecha-se uma porta às costas, ao passado e se abre outra para o futuro, sobre a novidade. 

“Não há mais judeu nem grego” (era a grande divisão do mundo de então, monoteístas - politeístas), “não há mais escravo nem livre” (era a grande fratura de tipo social, de tipo politico: nas assembleias das cidade gregas ali onde se decidia a res pubblica, não podiam tomar parte todos que que habitavam na cidade, mas somente os que tinham o direito de cidadania. As minorias étnicas, por exemplo, estavam privadas deste direito), “não há mais homem ou mulher” (nNão existe diferença, “pois que todos vós sois um só ser em Cristo Jesus “, recebestes uma nova identidade) . 

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Se nós tivéssemos perguntado a Paulo quem foi ele, antes de Damasco, teria respondido com muito orgulho de ser um hebreu, um monoteísta, um circunciso, no interior da aliança de Deus e da sua lei. Se lhe tivéssemos perguntado depois, teria respondido: “Um ser em Cristo”. Paulo é um místico, não é um moralista. Ser cristão, para Paulo, é ser envolvido pelo Ressuscitado. O Ressuscitado é o Espírito de Deus, é Jesus de Nazaré transformado, Jesus de Nazaré que viveu uma metamorfose na ressurreição , tornando-se Espírito que dá a vida.  

A identidade cristã coloca-se dentro este espaço novo de vida - que é o senhorio de Cristo e que é o Espírito de Deus .  Então quando Paulo diz que não existe judeu, grego, escravo, livre, homem, mulher, certamente não quer dizer que esta diversidade não existe mais; mas que esta diversidade não é mais identitária, isto é não constitui mais a identidade da pessoa. A pessoa não se define mais em relação a Cristo como hebreu ou gentio, escravo, livre, homem e mulher: define-se como alguém que existe em Cristo, que está dentro este espaço das novas forças da vida de Cristo. 

Nós vivemos hoje um forte retorno às afirmações das identidade depois da queda do império soviético Temos assistido a uma multiplicação de estados na Europa, Também de pequenos estados: a Tchecoslovaquia dividiu-se em dois estados, e depois a Iugoslávia se dividiu com a Bosnia, etc. Existe uma corrida de identificação nacional ou local: no norte da Itália, a identidade paduana. Cristo nos libertou das identidade culturais, das identidade religiosas, das identidade sociais, das identidade de gêneros... 

Para Paulo, portanto, Cristo nos libertou do mundo enquanto idolátrico e dum mundo das religiões enquanto variáveis de separação e discriminação. Cristo nos libertou das diversidades identitárias. As diversidades permanecem, mas não são mais a identidade verdadeira; são apenas variantes culturais, religiosas, morais, etc. porque a identidade é uma outra.

5. GÁLATAS 5,1-2;13:CHAMADOS à LIBERDADE

A libertação deste mundo idolátrico e das religiões discriminantes e identitárias, é o evangelho, a boa novidade. “Cristo vos libertou”: o cristianismo não é um apelo à autolibertação, mas é um evento de libertação, um evento de graça.  Porém, este evento de libertação, que é um dom, é também um tarefa, confiado à nossa responsabilidade. O evento de libertação não é uma situação dada uma vez para sempre, mas solicita o nosso empenho responsável. 

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Temos dois textos, sempre em Gálatas, que repetem a mesma ideia: “Cristo nos libertou para uma vida de liberdade”. (Gal 5,1) e “somos libertos para a liberdade”, Paulo exorta: “estais firmes portanto”. Eis a responsabilidade: a firmeza na liberdade. Estar firmes quer dizer “não vos submetais de novo ao jogo da escravidão”   (Gal 5,1), que sabemos ser a escravidão ao mundo idolátrico e ao mundo das religiões que desagregam.. 

E em Gálatas 5, 13 Paulo repete:  “ vós de fato, irmãos, fostes chamados para a liberdade” . Isto é: vós fostes chamados (por Deus ) a construir a vossa vida sobre a liberdade,  “somente que depois esta liberdade não se torne um ‘aformèn’, uma base de lançamento para a carne.” Neste caso, “carne” em Paulo significa uma existência dominada por um dinamismo egocêntrico, do ego.  “Mas, ao contrario, mediante o ágape, mediante o amor, sede escravos uns dos outros”. mediante o ágape, o amor, que é fruto do Espírito do Ressuscitado, sejamos chamados e tornemo-nos capazes de cuidar uns dos outros , de tornar-nos escravos uns dos outros. A liberdade cristã é uma liberdade responsável, solidária, do cuidado reciproco. É uma liberdade que consiste numa escravidão reciproca.  Paulo nestes textos emerge como a apostolo de um cristianismo radical, de um cristianismo de confim, de um cristianismo místico, de um cristianismo da liberdade dum mundo idolátrico, do mundo das religiões descriminantes e identitárias.

6. GÁLATAS 6, 11.14-15: UM MUnDO nOVO

Em Gálatas, 6, 11-15, na conclusão da epistola, Paulo fala em primeira pessoa, escrevendo com seu próprio punho, afirma:  “Vede com que grandes caracteres eu escrevo com minha mão” e entre as coisas belíssimas que diz, afirma o v. 14: “Para que eu não venha jamais de me vangloriar” (por vangloriar-se não se entende o vangloriar-se diante dos homens mas o vangloriar-se diante de Deus, isto: apropriar-se dos direitos, dos interesses, nos confrontos de Deus),  “Eu só posso vangloriar-me de uma coisa: da cruz do Senhor nosso Jesus Cristo”. 

A cruz para Paulo não é só a morte, mas é morte e ressurreição. A cruz é um símbolo que exprime para alguém o verdadeiro lado trágico e isto é a morte terrível do crucificado, a tortura reservada aos escravos e aos traidores. O servile supplicium de quem fala Sêneca. Por outro lado a cruz é o símbolo da ressurreição dos mortos. 

Deus ressuscitou não um homem santo, mas o crucificado, isto é: o maldito,  “maldito aquele que pende do lenho”  (Dt 21, 23). Paulo se refere a esta maldição em Gálatas 3, transformando-a: o maldito é a fonte de benção para todas as gentes. 

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Paulo disse “glorio-me somente da cruz de Cristo”. Eu diria: eu me glorio somente de Deus que ressuscitou o crucificado. Este é o símbolo da cruz.  Diz: “Por meio desta cruz, deste evento de Deus que ressuscitou o crucificado, o mundo está crucifixado para mim e eu estou morto para o mundo”. 

O mundo do qual fala é sempre o mundo idolátrico, o mundo das religiões discriminantes, o da adoração dos ídolos. Paulo neste texto não diz que o mundo idolátrico - das religiões discriminantes, das identidade que separam - está morto; que não conta mais; mas que nós somos livres. Não, para Paulo o mundo idolátrico e o mundo das religiões que separam não têm mais influência alguma sobre mim. 

Deste belíssimo texto se consegue também fazer-nos entender exatamente em que sentido Paulo diz: por meio de Cristo somos resgatados deste mundo. Aquilo que é resgatado é a relação, é a dependência: não somos mais dependentes deste mundo idolátrico, deste mundo das religiões discriminantes. 

O versículo 15 diz: “De fato nem a circuncisão, nem a incircuncisão, que eram os dois mundos, vale coisa alguma”.  Paulo reconhece que há pessoas que são circuncidadas , mas isto não tem mais valor. Isso não é mais a identidade das pessoas, pois aquilo que vale é um mundo novo; há uma nova criação. 

A nova criação é um mundo onde não existe mais a dependência das pessoas da idolatria e da discriminação. Lá onde as pessoas se libertam da escravidão dos ídolos se libertam também das religiões discriminantes. Ali nasce o novo mundo. O profeta Isaías tinha falado de “novos céus e nova terra”, nós diremos: uma nova sociedade. Nós estamos no mundo, diz Paulo, mas não sucumbimos ao mundo idolátrico e ao mundo das religiões discriminantes.

7. 2 CORÍnTIOS 5,14-15: MORRER COM CRISTO PARA A VIDA EGOCênTRICA

Na segunda carta aos Coríntios, 5,14 Paulo afirma que nós somos movidos pelo amor de Cristo, isto é, o amor que Cristo tem para conosco nos move na vida.   “O ágape de Cristo nos compele, nos desafia, nos impulsiona a nós que julgamos este fato: um só é morreu em favor de todos.” 

Na liturgia eucarística temos uma tradução que a meu ver é não só infeliz, mas é um pouco desconfortante. O texto original é:  “Este é o meu corpo,  (quer dizer: este sou eu), “uper umon” está no texto bíblico. Na missa se diz: “este é o meu corpo dado em sacrifício por vós”. O significado grego é: este sou eu que me dou em vosso favor, para o vosso bem. 

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A inserção subserviente da palavra “sacrifício” valoriza a visão tradicional católica da missa, da ceia do Senhor, como sacrifício. Ora Paulo é contrario à concepção sacrifical e expiatória da morte na cruz de Jesus - concepção que transparece só em Rom 3, 24-25, e depois em 1Cor 5, 7.  Ele, algumas vezes para dirigir-se aos seus ouvintes, repete algumas expressões tradicionais, para depois porém corrigi-las. A morte de Jesus não é um sacrifício expiatório, mas um ato de amor por nós: Jesus morreu em nosso favor, para o nosso bem. 

Depois ele continua :  “um só morreu por todos, portanto todos estão mortos”.  Esta sequencialidade nos desconcerta, porque nós teríamos dito mais logicamente que depois que um morreu por todos, nós todos obtemos a vida por meio de sua morte, e não que “morto um, mortos todos!” Na base do versículo existe a concepção mística de Paulo, onde a experiência cristã é a experiência de quem está inserido em Cristo Ressuscitado, de quem entra em comunhão com Cristo Ressuscitado. A mística de Paulo não é teocêntrica, mas cristocentrica, isto é: refere-se a união com Cristo Ressuscitado. Então, se um morreu por todos, todos aqueles que estão em Cristo estão envolvidos no evento de sua morte. Este é o sentido. 

Cristo não é um individuo isolado, mas é um valor representativo, que nos envolve. Aquilo que acontece com Ele acontece com os crentes, porque os crentes estão inseridos n`Ele e o evento seu torna-se evento nosso, dos crentes. Ele morre em favor de todos, portanto todos estão mortos. Em que sentido estão mortos? Naturalmente o versículo 15 diz:: “E ele morreu por todos, afim de que aqueles que vivem, os viventes, os homens, não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que morreu e ressuscitou para eles”. 

A morte de que se fala é a morte do ego: não vive mais para si mesmo, mas vive para Cristo e para os outros. A consequência é:  “assim como nós de agora em diante não conhecemos mais ninguém segundo um juízo humano, carnal - e, se também nós primeiro tivéssemos conhecido Cristo em modo carnal - doravante não o conhecemos mais assim”, 

A relação com Ele é uma nova relação. “Em consequência se um está em Cristo, está dentro Cristo, é envolvido por seu evento (esta é a mística cristocentrica de Paulo), constitui a célula do novo mundo criado”. 

É interessante o paralelismo entre a pessoa crente, que entra no espaço criado por Cristo e por seu Espírito e o mundo. “O velho se foi, eis que surge o novo”.  A novidade trazida por Cristo é exatamente esta: não viver mais centrado no

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ego (introflexão), mas viver para aquele que morreu e ressuscitou para nós (extroflexão). 

Paulo partiu da morte de extroflexão de Cristo: Cristo morreu em favor de todos, a favor de nós, não a favor de si próprio. E na sua morte a favor de nós, Ele envolve a nós que morremos ao viver para nós mesmos, de modo da viver para Ele. Portanto, existe esta participação do crente na vida de oblatividade do Cristo. A novidade não está no aspecto físico do mundo, nas instituições; mas a novidade se refere à existência, à relação.

8. ROM 8,18-25: SOLIDARIEDADE EnTRE CREnTES E MUnDO

Em Rom 8, 18-25, Paulo nos coloca em paralelo com o mundo criado: de um lado nós crentes que temos a primazia do Espírito - cujo fruto é o ágape e a força que nos torna escravos uns dos outros - e de outro lado o mundo criado, com toda probabilidade inanimado. Paulo - depois ter dito que o crente foi resgatado deste mundo mau, que está morto com Cristo em sua vida egocêntrica e portanto recebeu esta vida de altruísmo e de amor, que é livre, etc. - afirma finalmente a semelhança de condição entre nós e o mundo. Nós gememos e o mundo geme, nós esperamos e o mundo espera. “Nós” e o mundo, a totalidade, estamos unidos na espera e entre gemido. O gemido indica as dores de parto, os sofrimentos que preparam o novo nascimento, não os rumores da morte. A comunidade dos crentes não está fora do gemido do mundo, do gemido que é sofrimento e também tormento, mas que aponta a um novo nascimento. “Não só: nós gememos na espera do resgate do nosso corpo”. 

Para Paulo nós não temos um corpo, mas somos um corpo, somos corporeidade. E corporeidade significa relacionalidade. O homem é por essência relacionalidade: relacionalidade com Deus, a criatura que reconhece o criador e portanto não adora as criaturas; relacionalidade nos confrontos com os outros, nesta escravidão de amor reciproco; relacionalidade verdadeira com o mundo, isto é: nós somos seres essencialmente mundanos, para quem a sorte dos crentes, dos homens, é a sorte do mundo. Então, o mundo geme na esperança de ser libertado da vacuidade do ser.

Quando leio este texto me vem à mente a vacuidade de muitas expressões da nossa vida, a inconsistência, a estupidez, o não ser enfim. O mundo liberto da vacuidade é o homem livre na sua relacionalidade essencial com Deus, com os outros e com o mundo. Gememos nós, geme o mundo criado e geme o Espírito, com gemidos, diz, inenarráveis. O Espírito de Deus, que para Paulo habita nos crentes,

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está presente no mundo, e está presente como principio de transformação, de libertação. E Ele próprio geme na esperança. Isso é extraordinário! 

A comunidade dos crentes não está acima, não está numa condição diversa a respeito dos outros, isto é: aos crentes não é economizado nada que não seja economizado para os outros. A existência dos crentes é uma existência no gemido, no sofrimento, próprio de quem não chegou ainda de um caminho fatigoso.

Num texto da segunda Coríntios Paulo diz: “eu carrego sempre (Paulo era um missionário) a necrose de Jesus”, a morte de Jesus. Paulo fala sempre de sua missão de apóstolo, mas também daquela junto a todos os crentes, é um processo atingido pela morte. Para ele, a morte não é aquela que chega no fim. A morte é um processo que torna a vida do homem caduca, ameaçada, precária, sofredora, dolorosa. Então, para os crentes não é economizado nada que não seja economizado para os outros. Os crentes que vivem neste mundo, foram libertados por Cristo do mundo idolátrico, do mundo das religiões discriminantes.

9. ROMAnOS 12,1-2: O CULTO DOS CREnTES

Paulo, depois ter exposto o seu evangelho aos Romanos nos primeiros onze capítulos, conclui com uma exortação: “eu vos exorto”. Ele, via de regra, não determina, mas exorta. O exortar é a atitude do pai nos confrontos com os filhos, não de um pai patrão. Paulo solicita, fala, exorta, como um pai exorta os filhos. “ Peço-vos portanto, irmãos”  (adelfòi, neste caso ficaria bem traduzir por “irmãos” e “irmãs”). Aliás, Paulo não diz jamais “filhos meus”, ou quase jamais. Usa “filhos meus” só em dois-três textos, onde diz: eu sou pai enquanto vos gerei através do evangelho. Portanto, o evangelho é o elemento gerador. Paulo se apresenta como um irmão. Portanto, a comunidade cristã para ele é uma fraternidade No mundo grego, o amor entre irmãos era em geral muito considerado; muito mais que o amor entre marido e mulher. 

Não é paulina a concepção da igreja como “povo de Deus “, introduzida pelo concilio por solicitação sobretudo de Congar e da escola francesa dos dominicanos de Saulchoir, que justamente queriam ressaltar que a comunidade dos crentes está a caminho na história.  Para Paulo a comunidade é uma fraternidade, uma família. Uma família não no seu aspecto de paternidade e filiação, mas de fraternidade. A coisa é de tal modo interessante, que quando se passa às cartas pastorais, isto é: às cartas de Tito e de Timóteo, que são da tradição paulina, também ali se encontra a afirmação que a igreja é família de

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Deus. Porém, a família de Deus de que se fala é constituída pelos pais e pelos filhos, onde o pai é o grande chefe da família. Tanto isso é verdadeiro que o autor destas cartas pastorais sustenta que o presbítero deve saber comandar, ter sob controle os filhos e as mulheres... A mesma metáfora da família é usada não só em modo diverso, mas frequentemente contraposto. 

Eu vos exorto, pois, irmãos e irmãs, mediante os gestos de misericórdia de Deus. E ainda mais fielmente para as vísceras maternais de Deus. O que solicita aos crentes são as vísceras maternais de Deus, e Paulo é o comunicador destes gestos de “visceralidade”, de “amor visceral” de Deus . Eu vos exorto a colocar diante do altar, não as ofertas sacrificais, mas a vossa existência mundana qual vítima sacrificial. Ainda uma vez, Paulo utiliza de modo não ritual conceitos cultuais. Aquilo que agrada a Deus como oferta viva e santa, como dom, é a existência mundana dos crentes, é a sua mundaneidade, a sua corporeidade. E este é o culto intelectual. A oferta que os homens fazem a Deus deve ser uma oferta adequada à sua natureza de seres inteligentes, de seres lógicos, que tenham o logos, a mente, a inteligênca, o pensamento. As ofertas animais, de seres que não tenham a inteligência, não são adequadas para a natureza humana. 

“Não sejais conformistas nos confrontos com este mundo (to aiòni)”,  com este mundo idolátrico, com este mundo que adora as religiões discriminantes. Não sejais conformistas, mas deveis operar a metamorfose que torne nova a vossa mente, o vosso modo de ver as coisas, de modo que vós possais distinguir e conhecer aquilo que é a vontade de Deus, aquilo que é o bem, aquilo que agrada a Ele e é perfeito. 

Eis um texto muito empenhativo. Ser inconformista quer dizer transformar o modo de olhar o mundo para que corresponda ao querer de Deus. Paulo não diz que devemos seguir a vontade de Deus comunicada a nós por qualquer um que se creia conhece-la com perfeição em nosso lugar, mas que “nós” devemos transformar o nosso modo de ver, devemos renovar à luz da nossa mente de modo a corresponder aquilo que Deus quer de nós.

10. DEBATE: PAULO, JESUS E OS nãO CREnTES

Paulo fala só dos crentes e provavelmente nunca se pôs problema dos não crentes. há um espaço vazio em relação a este tema. Ele jamais levou em conta isso. Perguntemos a ele somente pelo que ele se interessa.

A segunda observação a fazer é que Paulo quando diz “o crente em Cristo”, o Cristo de quem fala é o Ressuscitado. Eis porque Paulo não dá nenhuna atenção

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a Jesus de Nazaré, ao Jesus biográfico. Jesus Ressuscitado é o Jesus de Nazaré,. Não é um outro. Pelo Jesus histórico, porém, não se interessa minimamente.

Tanto é verdade que de todas as palavras ditas por Jesus, segundo a tradição, ele cita expressamente somente duas, que não têm grande peso: “Aqueles que são ministros do anúncio devem viver do anúncio”; e depois a palavra de Jesus sobre a indissolubilidade matrimonial. Toda a teologia de Paulo gira em torno da morte e ressurreição de Jesus. O resto não lhe interessa. Provavelmente o apóstolo negligenciou tudo aquilo que Jesus disse e fez, porque o Jesus das palavras e dos fatos estava imanipulado pelos seus adversários, que o tinham colocado dentro do sistema mosaico, como aquele que apoiava a observância da lei mosaica. há qualquer coisa de verdadeiro nisto. 

Porém, o verdadeiro problema para Paulo é a libertação do mundo idolátrico, para os quais os gestos e as palavras de Jesus não são eficazes. Paulo entende que o coração do homem não muda substancialmente com os bons exemplos, com as boas palavras. A escravidão do mundo idolátrico, do mundo das religiões discriminantes, é qualquer coisa assim profunda que não pode ser vencida por palavras e por exemplos. É necessário o grande gesto libertador de Cristo, do Cristo Ressuscitado. O Cristo Ressuscitado é muito mais potente do que Jesus de Nazaré, que tinha disposição para influenciar só as suas palavras e o seu exemplo. Nada mais. Pelo contrario, o Cristo Ressuscitado tem nas mãos a potencia do Espírito, o Espírito de Deus, o Espírito criador. 

Estar em Cristo Ressuscitado é estar no Espírito. Em Paulo há este paralelismo: nós estamos em Cristo e nós estamos no Espírito de Cristo, no Espírito de Deus. Se as coisas são assim, nós poderemos dizer então que para Paulo os crentes não são aqueles que conhecem Jesus de Nazaré, as suas palavras, os seus exemplos; mas, aqueles que estão no Espírito, aqueles que são animados pelo Espírito. E o Espírito é o Cristo Ressuscitado Não são uma presença local, mas universal. Jesus de Nazaré podia influenciar com as palavras e com o exemplo somente àqueles que o encontravam na Palestina; enquanto que para Paulo o Cristo Ressuscitado e o Espírito podem influenciar sobre a totalidade universal dos homens. Jesus de Nazaré é uma grandeza particular culturalmente situada. Ao invés, o Cristo Ressuscitado que de qualquer modo se identifica com o Espírito, é uma grandeza universal, é uma grandeza que pode influir sobre todos. Então, é necessário distinguir entre aquilo que quer dizer “estar em Cristo” e a confissão cristã, a crença cristã, os sacramentos, a vida cristã associada. O estar em Cristo não equivale à vida cristã associada. Eis porque Paulo é radical. Anuncia um cristianismo de fronteira, um cristianismo que é possível também para aqueles que não estão dentro da Igreja. 

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Assim Paulo, que jamais se pôs o problema dos não crentes com a sua concepção do estar no Cristo Ressuscitado, no Espírito, propugna um cristianismo que vai bem além do aspecto confessional.

11. PAULO E A TEOLOGIA DO SACRIFÍCIO ExPIATóRIO

Se nós entendemos por sacrifício aquela oblatividade pela qual alguém dá a sua vida por amor do outro, não existem problemas. mas, na teologia do sacrifício, o sacrifício é um ato religioso, ou seja, um ato que envolve Deus. Enquanto nós dizemos que se Deus deu a sua vida em nosso favor por um ato de amor extremo para nós, estamos de acordo. mas, se usamos a palavra sacrifício para dizer que Jesus oferece a sua vida para o perdão dos nossos pecados, fazemos referência à concepção arcaica de um Deus que tem necessidade de sangue, da vítima sacrificial.

Quero dizer que a Eucaristia, como a morte de Jesus, segundo Paulo, está fora deste esquema vitimário, das vítimas e dos sacrificadores, dos sacrifícios no sentido religioso.

Na carta aos Romanos, Paulo exorta a oferecer as nossas existências como sacrifício vivo, e não a oferecer vítimas sacrificais.

A nossa vida no mundo é o que Deus quer de nós, e não as vitimas. Se há vítimas, há também sacrificadores, os sacrificadores providenciais. Sei que é uma batalha perdida, porém... talvez, graças a um concílio, se possa traduzir literalmente a frase proferida durante a Ceia do Senhor: “Isto sou eu que dou a minha vida por vosso amor”. Esta é a tradução correta. Eis porque digo que aquela tradução (“oferecido em sacrifício por vós”) por um lado não é exata e por outro lado é um pouco capciosa enquanto insere a visão sacrifical dentro do texto.

A crítica ao culto sacrifical já está presente na linha profética. Em Isaías se diz: “Quando vós vindes ao templo e pisais nos meus pavimentos, eu viro a face para o outro lado. Ide embora, aquilo que eu quero é justiça”. Existe semelhança com os textos de Amós. Aqui a crítica é à dissociação entre culto e vida. Paulo introduz um novo elemento: não critica a dissociação, mas quer uma substituição. A única oferta que agrada a Deus é a vida mundana, isto é, um culto não ritual. Por culto entendemos um dom, um ato de benevolência verdadeiro para com Deus, e então este ato de benevolência não é mais constituído por ritos, mas é constituído pela vida mundana, pela vida profana. Na carta aos Romanos, Paulo exorta a oferecer as nossas existências como sacrifício vivo, e não a oferecer vítimas sacrificais.

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12. AS RELIGIõES DISCRIMInADORAS E Fé UnIVERSAL

Paulo polemiza contra a religião mosaica, porque é discriminadora. Ela discrimina entre aqueles que estão dentro e aqueles que estão fora, entre os incluídos e os excluídos. Quando ele afirma que devemos sair da religião mosaica é porque a lei, a circuncisão, etc., são discriminantes, não quer renunciar ao hebraísmo e aderir a uma outra religião. Ele afirma que se deva voltar para trás, além de moises, porque a verdadeira identidade hebraica a ser mantida é aquela de Abraão, aquela de uma figura universal: “em ti serão benditas todas as tribos da terra”. 

No tempo de Jesus o judaísmo tinha “moseisado” Abraão, sustentando que ele havia observado a lei antes mesmo que ela que fosse promulgada (existem dois textos muito claros sobre deste ponto de vista), inserindo portanto o abraamismo dentro o mosaísmo. Paulo tira Abraão do mosaísmo, fazendo voltar à sua origem, à figura abraâmica, que é figura universal. Por isso as promessas abraamiticas, patriarcais, segundo Paulo, mantêm seu valor, não só para os descendentes carnais, os hebreus , mas para todos, como era originariamente. A lei não pode abrogar a promessa. 

A imagem que Paulo tem de Deus não é aquela do Deus legislador (aquele do Sinai), e portanto do Deus legislador, que sanciona o bem e o mal com o premio e o castigo, mas aquela do Deus prometente, do Deus que promete. E a promessa, diz Paulo, é como um testamento, que é de todo gratuito: é o pai que doa ao filho uma herança. Então, o Deus que Paulo viveu, sob a luz de Cristo naturalmente, (grande convergência neste caso entre Jesus e Paulo ) é o Deus da promessa, da promessa unilateral, da promessa incondicional, da promessa a todos, aos hebreus e aos gentios, aos escravos e aos livres, aos homens e às mulheres, aos homossexuais e aos heterossexuais, aos islâmicos e aos católicos... 

Aqui está a atualidade de Paulo, que realizou uma batalha extrema contra uma religião que discriminava com a lei e com a circuncisão. hoje as religiões discriminalizam por outros fatores. A luta de Paulo pela libertação da religião mosaica é uma luta de libertação da todas as religiões, enquanto e à medida em quem são discriminantes. Aqui permanece a atualidade da distinção entre fé e religião: Abraão é o pai dos crentes, não dos religiosos. E a fé, diferente da lei, é uma grandeza transcultural, isto é, potencialmente aberta a todos. A todos que se mantêm diferentes porque o judeu crente permanece judeu, o gentil crente permanece gentil, o homem homem e a mulher mulher, etc., no lugar de Deus legislador e sancionador e das religiões discriminantes o Deus abraâmico da promessa.

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13. A MORTE, O úLTIMO InIMIGO

Paulo considera a morte não como um fato físico, mas como o último inimigo de Cristo e do homem. Alguns podem acusar Paulo de ser um homem que não sabe aceitar a morte, de ter uma atitude um pouco infantil de rebelião frente a um fato inelutável. Para ele, a morte não é a morte feliz de São Francisco, a morte de quem quer reunir-se com o seu Senhor e portanto a irmã morte. Nem mesmo é o destino nu e cru do homem que não pode infantilmente renegá-la. Para Paulo, a morte é uma violência contra o homem. A morte, para ele, não o último instante da vida, mas o que mortifica a nossa vida.  

há este espinho dentro da existência humana, exposta cada dia diante da morte: nós carregamos sempre a norte de Jesus, isto é: este processo progressivo que afeta a vida do crente e do não-crente, para quem - Paulo diz - que a morte é o Senhor do mundo. Este Senhor do mundo deve ser destronado, enquanto entra em choque com o senhorio de Cristo. É um motivo cristológico. Cristo venceu a morte em si; mas, se não a vence em nós, ele não é mais o nosso Senhor, pois o nosso senhor será a morte. De fato em 1Cor 15 Paulo retoma a afirmação dos salmos “até que ele tenha posto todos os seus inimigos sob os seus pés”. O ultimo inimigo, o mais tremendo, o mais apavorante, é a morte. 

Paulo tem uma concepção alta da vida e do Deus da vida. Este Deus da vida deve dizer a última palavra sobre os viventes, e não a morte. A ressurreição quer dizer exatamente isto. Não por nada no cap. 15 de 1Cor Paulo termina com duas citações do Antigo Testamento: Onde está o morte o teu aguilhão? Onde está, ó morte, a tua vitória? A morte foi tragada pela vitória de Cristo. 

Paulo em Romanos 5 afirma: “Mediante um só homem, o pecado entrou no mundo e através do pecado a morte...” . Nós devemos ser resgatados do pecado e da morte, que são os dois senhores que entraram no mundo. O resgate do pecado, do mal obscuro, que é a idolatria, vem através da morte e da ressurreição de Cristo. mas a libertação do pecado não é ainda a libertação da morte.

Paulo ligou pecado e morte. Todos os dois entraram no mundo; mas na libertação, no estado atual, nós estamos livres só do pecado - desta potência condicionante a quem podemos resistir; mas não ainda da morte. A ação libertadora de Cristo foi distinguida por Paulo em duas fases: a libertação da pecado e a libertação da morte. Do ponto de vista antropológico alguém pode acusar Paulo de um sonho infantil, não tanto de não morrer, mas de entender que toda a vida está sob o sinal tenebroso da morte. A morte ameaça e extenua a vida no sofrimento, nas dificuldades; mas a esperança é a vitória sobre a morte

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porque o que Paulo leva a serio é a ressurreição de Cristo e a nossa solidariedade com ele. Não basta a vitória de Jesus sobre a sua morte. Pois, é necessária a vitória de Jesus sobre a nossa morte, se nós estamos identificados com Ele. É a mistica cristocentrica paulina.

FInALIzAnDO...

Depois de analisar, em doze pequenos textos, a questão da presença dos cristãos no mundo, segundo Paulo, convém recordar que os cristãos estão no mundo para formarem a comunidade de Jesus, que não tem uma mensagem é fechada em si mesma e só para os crentes. mesmo que Paulo não estivesse preo-cupado com os não crentes, ele sabe do valor universal da mensagem do Cruci-ficado/ressuscitado: ela vale para todos os homens, de modo universal. Por esta-rem livres de processos identitários culturais e nacionais, os cristãos são homens livres das religiões discriminalizadoras, das idolatrias e da própria lei mosaica. Eles se constituem em nova identidade, chamados para um mundo novo, capazes de emprestar uma nova solidariedade ao mundo e, ao mesmo tempo, oferecer um novo culto a Deus o culto de si mesmos, não o de sacrifícios rituais). Enquanto isso, por meio do grande vencedor, vão caminhando até a libertação do último inimigo: a morte.

Traduziu: hR

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* mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, doutor em Sagrada Escritura pela Westfälische Wilhelms-Universität de münster (WWU) – Alemanha, Pós-Doc. pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) de Belo horizonte e professor do Studium Theologicum de Curitiba.

Artigos“APROXImAVA-SE A FESTA DOS JUDEUS, A FESTA DAS TENDAS” (Jo 7,2). A festa das Tendas no IV

Evangelho. "THE FEAST OF THE JEWS WAS APPROACHInG, FEAST OF THE

TEnTS" (JO 7.2). The feast of the tents in the Fourth Gospel.

Rivaldave Paz Torquato , O. Carm *

RESUMO: As festas judaicas caracterizam o desenvolvimento do Evangelho de João. O evangelista serve-se delas para esclarecer a vida e o ministério de Jesus. O presente artigo aborda a presença da festa das Tendas neste evangelho e como ela encontra sua plenitude em Jesus. Ele realiza a meta que esta se propunha.

PALAVRAS CHAVES: Festa(s); Alegria; Festa das Tendas; Sukkot; IV Evangelho.

ABSTRACT: The Jewish feasts characterize the development of the Gospel of John. The evangelist serves them to clarify the life and ministry of Jesus. This article discusses the presence of feast of the Tents in this Gospel, and how finds its fullness in Jesus. It accomplishes the goal that proposed by the gospel.

KEYWORDS: Feast(s), Joy, Feast of Tents, Sukkot, IV Gospel.

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1. InTRODUÇãO

No evangelho joanino encontramos uma afirmação de Jesus que diz: “Eu vos digo isso para que a minha alegria esteja em vós e vossa alegria seja plena” (Jo 15,11). Esta frase é apenas a ponta do iceberg de um tema precioso na obra de João: a alegria.1 Em outro verso bastante conhecido Jesus diz: “Eu vim para que tenham a vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). A expressão ter vida (eterna) é também outra constante neste evangelho.2 Nesta penúltima ocorrência, porém, Jesus acrescenta a expressão adverbial em abundância (10,10b). Ora, a abundância de vida e a alegria são justamente duas colunas fundamentais da festa. Ambas as dimensões tornaram-se realidade plena em Jesus. Isto ajuda entender a paixão de João pelas festas no IV Evangelho. São mencionadas seis festas judaicas no Evangelho joanino.3 Elas caracterizam o desenvolvimento do evangelho, pontuam momentos relevantes da vida e ministério do mestre. Já o primeiro sinal de Jesus, praticamente na abertura do evangelho, acontece durante uma festa de núpcias, a festa humana por excelência. Ali se dá a abundância de vinho, isto é, de alegria.4 Neste pequeno trabalho nos limitaremos a examinar a festa judaica das Tendas (ou Tabernáculos), as suas raízes, traços característicos e sua presença no IV Evangelho.

2. AS FESTAS JUDAICAS

As festas judaicas celebram os eventos salvíficos de Deus na caminhada de seu povo. Elas requerem um tempo e um espaço particular e reservado para o encontro com o Senhor. São ocasiões solenes de encontro de Israel com seu Deus, ocasiões queridas e desejadas de ambas as partes. Afinal “tudo tem seu tempo” (Ecle 3,1). Nas festas, o Senhor é o centro, a solenidade é para Ele e por isso o homem não trabalha. Nesta ocasião o ser humano renuncia sua co-participação na criação respeitando o primado absoluto de Deus. Na festa, a pessoa deixa-se inebriar pela alegria divina que revitaliza: “a alegria do Senhor é vossa força” (Ne 8,10).5

1 O termo hará (= alegria, júbilo) aparece 9x (3,29.29; 15,11.11; 16,20.21.22.24; 17,13), seu correspondente verbo haírō (= alegrar-se; regozijar-se) aparece outras 9x (3,29; 4,36; 8,56; 11,15; 14,28; 16,20.22; 19,3; 20,20). O verbo agalliaō (= exultar, regozijar-se, estar cheio de alegria) aparece mais 2x (5,35; 8,56).

2 Cf. 3,15.16.36; 5,24.26.26; 5,39.40; 6,40.47.53.54; 20,31. Ainda dar a vida: 6,33; 10,28; 17,2.3 Primeira festa de Páscoa em Jerusalém (2,13.23); outra festa em Jerusalém (5,1); Páscoa na

Galileia (6,4); festa das Tendas (7,2); festa da Dedicação (10,22); a Páscoa da crucificação (11,55-19,42 [referências mais exatas: 11,55; 12,1; 13,1; 18,28; 19,14.31]) e ressurreição (20).

4 Cf. Sl 104,15; Eclo 31,27; Zc 10,7.5 Cf. A.-C. AVRIL – D. mAISONNEUVE. As Festas Judaicas, p. 9; A. C. COELhO. Encontros marcados

com Deus, pp. 27-9.

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Algumas festas são de instituição mosaica, isto é, são mencionadas na Lei de moisés e, por conseguinte, são preceitos divinos. São elas: a) o sábado; b) o início da lunação, neomênia (Rosh Hodesh); c) as festas de peregrinação: Páscoa (Pessah); Pentecostes (Shavuot); Tendas (Hag ha-Sukkot);6 d) as festas chamadas “austeras”, realizadas no outono: ano novo (Rosh ha-Shanah) e dia do perdão (Yom Kippur). Para estas festas existe um calendário.7 Existem ainda outras festas de instituição rabínica, também chamadas de festas menores ou pós-bíblicas. Nasceram de costumes populares e foram legitimadas pelos sábios.8 Ora, a festa das Tendas (ou Tabernáculos) é uma das três festas de peregrinação e, portanto, de instituição mosaica.

3. A FESTA DAS TEnDAS

3.1. A festa

A festa das Tendas (Hag ha-Sukkot)9 é um preceito divino10 e a ordem de Deus é categórica: “Habitareis sete dias em tendas” (Lv 23,42). Sua celebração começa no dia 15 de Tishri (cf. Lv 23,34.39),11 4 dias após a celebração do Yom

6 Conforme o Êxodo: “Três vezes no ano me celebrarás festa. [...] Três vezes no ano, todo varão comparecerá perante o Senhor Deus” (Ex 23,14.17). O Deuteronômio especifica um pouco mais: “Três vezes por ano todo varão deverá comparecer diante do Senhor teu Deus, no lugar que ele houver escolhido: na festa dos Ázimos [Páscoa], na festa das Semanas [Pentecostes] e na festa das Tendas” (Dt 16,16).

7 Cf. Ex 23,14-19; 34,18-23; Lv 23; Dt 16,1-17.8 É o caso da festa da Dedicação (Hanukkah) cf. I mc 4,59; Ano Novo das Árvores (Tu bi-Shevat);

festa das Sortes (Purim) cf. Est 9,24-26; comemoração da destruição do Templo (9 Av) (cf. A.-C. AVRIL – D. mAISONNEUVE. Ibid, p. 9).

9 O termo Sukkot é o plural de Sukkah = tenda. A festa é também chamada hag ha-’Asif (= festa da colheita cf. Ex 23,16; 34,22) ou simplesmente he-hag (= a festa, isto é, a festa por excelência, cf. I Rs 8,2.65; II Cr 7,8; Ez 45,25). Em grego ela é chamada de Skēnopēgía, do termo Skēnē = tenda + pēgnymi = erigir, construir, plantar (cf. hb 8,2), portanto, erigir/armar uma tenda, estabelecer morada. O termo Sukkah, no contexto da festa das tendas, é traduzido pela LXX com o termo Skēnē em Lv 23,34.42.42.42.43; Dt 16,13; II Cr 8,13; Esd 3,4; Ne 8,14.15.16.17.17. Fora do contexto da festa, aparece ainda em Gn 33,17.17.17; Jó 36,29; Sl 27,5; 31,21; 60,8; Is 1,8; Am 9,11; Jn 4,5; etc. Com o termo Skēnopēgía (= festa das tendas) a LXX traduz o hebraico Hag ha-Sukkot (= festa das tendas) em Dt 16,16; 31,10; Zc 14,16.18.19. O mesmo termo aparece ainda na LXX para designar a mesma festa em I mc 10,21; II mc 1,9.18; III Esd 5,50 [apócrifo conservado na LXX como I Esd]. No NT, Skēnopēgía designa explicitamente esta festa em Jo 7,2. Cf. ainda Flávio Josefo. Ant. Jud. 13,8.

10 Cf. Lv 23,42-43; Dt 16,13-15.11 Cf. ainda Nm 29,12; Ez 45,25. É o sétimo mês, compreende a segunda metade de setembro e a

primeira de outubro do nosso calendário. Seria em Israel a passagem do outono para o inverno. Ocasião em que até mesmo o deserto é florido e colorido aumentando o clima de alegria da festa.

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Kippur.12 A festa dura 7 dias (plenitude) + 1, isto é, encerra no oitavo dia,13 chamado Shemini ‘Atseret.14 Liturgicamente a festa recebe o nome de Zeman simhatenu (= tempo de nossa alegria cf. Dt 16,14).15 O Levítico diz: “regozijareis durante sete dias na presença do Senhor, vosso Deus” (Lv 23,40). E aí está um dos principais traços da festa: a alegria. Aliás é a festa mais alegre entre os dias festivos bíblicos.16 Ela era originariamente uma festa agrícola: celebrava a colheita no fim do outono, ou seja, a última colheita do ano antes do inverno e das chuvas.17 Os indícios disso aparecem nos textos do Pentateuco.18 Tinha, portanto, um caráter de ação de graças. mais tarde deu-se a ela (ou acentuou-se) um sentido mais religioso ao inserir um evento da história da salvação, a saber, a caminhada pelo deserto por 40 anos após a saída da casa da escravidão do Egito (cf. Lv 23,43). Tempo em que Israel habitou em tendas provisórias sob a providência de seu Deus.19 Tempo de sofrimento, instabilidade e fragilidade, mas sobretudo de alegria pela libertação da escravidão.20 Uma síntese do sentido da festa é feita por Ephraïm:

“Entre as três festas de peregrinação, Sukot é a mais popular. É a festa por excelência, tempo de alegria e exultação espiritual, quando o ser purificado se reconcilia com Deus e pula de alegria pela abundância da colheita, frutas e vindima. Ao permanecer sete dias nas cabanas, ou tendas de onde se podia entrever as estrelas, Israel comemora alegremente a proteção milagrosa da majestade divina que o acompanhava durante a marcha no deserto, após a saída do Egito. Num abrigo precário, com o inverno a chegar, os filhos de Israel se lembram de sua total dependência de Deus, que deles fez um povo sacerdotal. A suká é o símbolo da permanência do povo judeu garantida pela Providência divina. [...] É também lembrança da travessia do deserto, onde não há morada permanente, tendo apenas Deus como guia e protetor. [...] Ao entrar na tenda, o judeu entra na alegria e reatualiza o tempo em que, no deserto, o povo fazia a experiência dos milagres e das maravilhas de Deus. [...] É a festa da libertação do cativeiro, porque Sukot foi o nome dado ao primeiro acampamento dos hebreus depois

12 O Yom Kippur (= dia do perdão/expiação) é celebrado no dia 10 (cf. Lv 23,27).13 Na Diáspora + 2 dias, isto é, dura 9 dias e não oito. O oitavo dia é prescrito em Lv 23,36.39b; Nm

29,35. Seria antecipação da plenitude escatológica.14 A expressão significa assembléia, convocação, reunião do oitavo dia.15 Uma descrição para cada dia da festa encontra-se em Nm 29,12-39.16 Cf. J. J. PETUChOWSKI. Feiertage des Herrn, p. 53.17 Esta origem agrícola sugere que a festa passou a ser celebrada quando Israel já estava em Canaã

vivendo sedentário e como agricultor. Da mesma forma, os sacrifícios prescritos para a festa em Nm 29,12-39 pressupõem a liturgia do templo e não a vida nômade.

18 Cf. por ex.: Ex 23,16; Lv 23,39; Dt 16,13-15.19 Para a tenda como símbolo da proteção do Senhor cf. Sl 27,5; 31,21.20 Sobre estas informações veja por exemplo: A.-C. AVRIL – D. mAISONNEUVE. Ibid, p. 62; J.

hANNOVER. Gelebter Glaube, p. 53ss.

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que saíram do Egito, naquela que foi a primeira noite feliz dos ex-escravos, que então puderam dormir ‘à sombra do Poderoso’ (Sl 91,1)”.21

A importância e popularidade desta festa no séc. I d.C. podem ser vistas no fato que os motivos da festa (lulav, ethrog e talvez a libação) foram estampados em moedas cunhadas durante as rebeliões judaicas dos anos 66-70 e 132-135 d.C.22

3.2. A celebração

A celebração23 começa com a confecção da tenda.24 O material para isso é descrito em Neemias.25 Não só recorda o deserto, serve para lembrar também que estamos de passagem e a única proteção segura é o Senhor (cf. hb 11,13-16).

Outro elemento importante e vinculado à tenda é a confecção do ramalhete ou rito do lulav,26 conhecido como o feixe das quatro espécies (’arba’at ha-minim) de plantas. Três delas vão juntas no feixe: lulav (palmeira), hadassah (mirto ou murta ou mirra) e ’aravah (salgueiro). Uma quarta é levada separada: o ethrog (cidra de cidreira ou outra fruta cítrica).27 O feixe é sinal da unidade na diversidade dos filhos de Israel. Uma explicação simbólica proveniente da antiga pregação rabínica atribui a cada ramo uma espécie de filho de Israel que juntos formam o inteiro povo:

“Assim como o ethrog tem sabor e perfume, também em Israel há pessoas que têm saber e praticam boas ações simultaneamente. Assim como o lulav tem sabor mas não tem perfume, também em Israel há pessoas que têm saber mas não praticam boas ações. Assim como o hadassah tem

21 Cf. Jesus. Um judeu praticante, pp. 368-90.22 Cf. R. VICENT. La festa ebraica delle capanne, p. 217.23 Não se trata aqui de reproduzir o inteiro ritual da festa em seus pormenores, mas de destacar os

elementos que permitam ver a presença da festa no IV Evangelho. Este é nosso foco.24 A tenda, biblicamente deveria ser habitável, pois segundo o preceito o israelita deveria habitar

nela por 7 dias (cf. Lv 23,42-43; Os 12,10). A prática moderna, todavia, é outra coisa.25 Segundo ele, os chefes de família, os sacerdotes e os levitas juntamente com o escriba Esdras:

“Encontraram escrito, na Lei que o Senhor havia prescrito por intermédio de moisés, que os filhos de Israel deveriam morar em tendas durante a festa do sétimo mês e anunciar e mandar publicar em todas as suas cidades e em Jerusalém: ‘Ide à região montanhosa e trazei ramos de oliveira, pinheiro, murta, palmeira e de outras árvores frondosas, para fazer tendas, como está prescrito’” (Ne 8,14-15). Estes ramos são citados em Lv 23,40, mas não se especifica que seja para a confecção da tenda.

26 O Lulav é a folha maior da palmeira que dá, por sua vez, o nome ao inteiro feixe de ramos.27 Os ramos devem remontar à festa de ação de graças pelas colheitas do outono e eram usados

em procissão ao redor do altar do templo de Jerusalém antes de sua destruição e depois em torno do púlpito na sinagoga (cf. J. J. PETUChOWSKI. Ibid, p. 55). Quanto à ação de graças pela colheita cf. ainda J. hANNOVER. Ibid, p. 57.

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perfume mas não tem sabor, também em Israel há pessoas que praticam boas ações mas não têm saber. Assim como o salgueiro não tem perfume nem sabor, também em Israel há pessoas que nem têm saber nem praticam boas ações. Que faz então o Santo, bendito seja? Ele diz: Ata-os todos em um feixe, expiarão uns pelos outros” (cf. Wayyiqra Rabba 30).28

No tempo dos macabeus já se sugere uma procissão com estes ramos (cf. II mc 10,6-7).

Um terceiro elemento relevante da festa são as leituras bíblicas. Além da leitura dos preceitos da festa na Torá, a haftará (leitura profética) do primeiro dia é Zc 14 (b Meg 31a). O profeta volta-se para o futuro, quando as nações subirão para adorar o Rei-Senhor e para celebrar a festa das Tendas.

“Acontecerá que todos os sobreviventes de todas as nações que marcharam contra Jerusalém subirão, ano após ano, para prostrar-se diante do rei Senhor dos Exércitos e para celebrar a festa das Tendas. E acontecerá que aquele das famílias da terra que não subir a Jerusalém para prostrar-se diante do rei, Senhor dos Exércitos, para ele não haverá chuva. E se a família do Egito não subir e não vier, haverá contra ela a praga para as nações que não subirem para celebrar a festa das Tendas. Tal será o castigo do Egito e o castigo de todas as nações que não subirem para celebrar a festa das Tendas” (Zc 14,16-19).

O profeta universaliza a festa. A salvação messiânica, que a festa prefigura, é para toda a humanidade. O rolo da festa é o Qohélet (Ecle) vinculado ao tema da alegria. Recita-se ainda o Hallel egípcio (Sl 113-118). Nele louva-se o Senhor que fez subir Israel da casa da escravidão do Egito e que, no final dos tempos messiânicos, libertará Israel de todo domínio estrangeiro oposto ao Reino divino.29 Esperava-se que o messias iria chegar solenemente no encerramento desta festa.

A recitação da aclamação conclusiva do hallel, o hoshi’a-na, isto é, salva-nos!30 Na verdade são vários hashannot (pl. de hosha-na). Os dois últimos pedem

28 Texto citado por J. J. PETUChOWSKI. Ibid, pp. 56-7 e A.-C. AVRIL – D. mAISONNEUVE. Ibid, p. 67. Estes últimos oferecem outras explicações simbólicas: As 4 plantas podem significar os 4 patriarcas (Abraão, Isaac, Jacó e José) ou as 4 matriarcas (Sara, Rebeca, Raquel e Lia). Eles e elas são fundamentos, pilares do povo que sustentam sua história (Ibid). Segundo o midraxe Raba de Lv 30, as 4 espécies podem significar ainda o corpo humano (palma = ossos, ou melhor, como ramo central do lulav = a coluna vertebral; cidra = coração; mirto = olho; salgueiro = boca). Assim todas as partes do nosso corpo têm um significado no serviço de Deus (citado por J. hANNOVER. Ibid, p. 61 ou EPhRAÏm. Ibid, pp. 275-6).

29 Cf. A.-C. AVRIL – D. mAISONNEUVE. Ibid, pp. 68-9.30 A expressão vem do Sl 118,25a: ’ānnāh Yhwh hōshi’ā-nā’ = “Ah! Senhor, dá-nos a salvação!”. Daí

vem nosso hosana na aclamação do Santo na conclusão do prefácio eucarístico.

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chuva fecunda que faz renascer a vida (no oitavo dia). A relação da festa com a chuva é feito pelo profeta Zacarias, como vimos acima.

A libação da água e a luz. A partir da segunda noite, se buscava água na fonte de Siloé e transportavam em procissão para fazer libações no altar do templo. Esta libação tinha por base o texto de Isaías: “Com alegria tirareis água das fontes da salvação. Erguei alegres gritos, exultai, ó habitantes de Sião, porque grande é o Santo de Israel no meio de ti” (Is 12,3.6).31 E também Ez 47,1-2. A água era o símbolo do Espírito que tudo fecunda e renova (cf. Is 32,15-18). A procissão era acentuadamente festiva e luminosa.32

O oitavo dia (Shemini ‘Atseret) 33 é o encerramento, o último dia, dia de grande solenidade (cf. Nm 29,35). É também – como já foi dito – o dia da prece da chuva. O oitavo dia é parte da festa, mas ao mesmo tempo tem autonomia como se fosse uma própria festa.34 O dia tornou-se a festa da alegria da Torá (Simchat Torá).35 É uma festa especial onde se exprime a alegria e o amor pelo dom da Lei.36 A festa abre-se para o mundo que há de vir, o ser humano almeja e abre-se para a felicidade em sua plenitude.

Foi ainda no oitavo dia da festa que Salomão fez a Dedicação do primeiro Templo (cf. I Rs 8,2.63-66). Após o retorno do exílio, ainda nesta festa se restaurou o altar do Templo (cf. Esd 3,1-4), destruído pelos babilônicos.

31 Cf. F. RIENECKER (ed.). Art. Laubhüttenfest: Lexikon Zur Bibel (1961) 829.32 Segundo A.-C. AVRIL – D. mAISONNEUVE: “No Templo, no recinto das mulheres, acendiam-se

candelabros que iluminavam toda Jerusalém” (cf. Ibid, p. 75). Sobre isso veja ainda: F. RIENECKER. Ibid, 830; J. J. PETUChOWSKI. Ibid, pp. 57-9; R. SChNACKENBURG. Ibid, p. 240. A Mishnah Sukkah 5,1.3 diz numa referência à festa: “Não havia em Jerusalém uma única praça que não fosse iluminada pela luz da casa da fonte”. Segundo J. KONINGS era “um espetáculo de água e luz” (cf. O Evangelho segundo João, p. 172).

33 ‘Atseret significa também reunião, reter, deter-se e esperar. Os sábios justificavam a solenidade deste oitavo dia – este reter, deter-se ou esperar – com a seguinte narrativa: “Deus é como um rei que convidou todos os seus filhos para uma festa de um determinado número de dias. Ao chegar o dia da despedida, ele lhes diz: ‘meus filhos, quero perdir-lhes algo: fiquem mais um dia, é-me difícil separar-me de vocês” (cf. J. hANNOVER. Gelebter Glaube, p. 62).

34 Cf. A.-C. AVRIL – D. mAISONNEUVE. Ibid, pp. 79-84. Veja ainda mishnah Sukkah 4,9; 5,1-4. Lembramos que fora de Israel são dois dias.

35 Conclui-se o ciclo litúrgico da leitura da Torá com a leitura do último texto do Deuteronômio e se retoma o ciclo com o primeiro texto do Gênesis (cf. J. hANNOVER. Ibid, pp. 62-3).

36 Neste dia já não se usa o lulav ou ethrog, nem bênção referida a Sukkot e nem se come mais dentro da tenda. É um dia exclusivo para a alegria da Torá. Realiza-se, porém, o Hakkafot, isto é, procissões dos membros da comunidade com os rolos da Torá (Sifrei Torá) ao redor do púlpito (Bimah) no meio da sinagoga na liturgia matutina e vespertina. Em algumas comunidades formam-se um círculo na sinagoga com danças entre uma procissão e outra além de muitos cânticos (cf. J. hANNOVER. Ibid, p. 63). Dança-se com a Torá como se ela fosse a noiva, abraçam-na com a ternura e paixão com que se tem com a amada, com uma intimidade como se só existissem os dois. Assim se exprime o amor da Aliança que une Israel e a Torá para sempre: um matrimônio perfeito (cf. A. C. COELhO. Ibid, pp. 87-8).

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Em síntese, os elementos que emergem desta festa são: a confecção da tenda e habitação nela, o lulav (a procissão com os ramos), a leitura de Zc 14 e o hallel com o hoshiana, a tríade água-Siloé-luz, a chegada do messias (a chegada esperada do tempo salvífico) e a alegria.

Enfim, a festa das Tendas é certamente a festa mais popular e viva entre os judeus ainda hoje. Flávio Josefo a define como “a mais santa e maior festa dos hebreus” (cf. Ant. VIII, 4,1).

4. A FESTA DAS TEnDAS nO IV EVAnGELHO

Como já mencionamos no início, é notório o interesse de João pelas festas. Não se trata de um interesse pelas festas em si, mas enquanto elas ajudam na sua reflexão sobre Jesus, enquanto elas servem para esclarecer o ministério (e mistério) do mestre. Dentre as festas, o evangelista oferece também alguns indícios claros a respeito da festa das tendas. mas não para nos indícios, ele apresenta a única referência explícita desta festa em todo o NT.37 Esta ocorrência explícita ilumina e confirma as demais. Aborda-las-emos a seguir.

4.1. Jo 7: a festa e a água

Na abertura deste capítulo o evangelista diz: “era próxima a festa dos judeus, a Skēnopēgía” (7,2). O termo Skēnopēgía, aqui em aposição ao termo festa, é o termo que a LXX usa algumas vezes para traduzir Hag ha-Sukkot, isto é, festa das Tendas (cf. acima). Portanto, temos aqui uma referência explícita à festa. A estrutura do inteiro capítulo é determinada pelo andamento da festa: antes da festa (vv. 1-13), durante a festa (vv. 14-36) e o último dia (vv. 37-52).38

a) antes da festa (vv. 1-13). João diz que Jesus “não podia circular pela Judéia, porque os judeus queriam matá-lo” (v. 1) e em seguida toma distância da festa, é “a festa dos judeus” (v. 2). Depois Jesus diz a seus irmãos: “Subi, vós, à festa. Eu não subo para essa festa, porque meu tempo ainda não se completou” (v. 8). E “ninguém falava dele abertamente, por medo dos judeus” (vv. 13). Por um lado João usa 5 vezes o termo festa em apenas 13 versos.39 Por outro, associa a rejeição do messias justamente com a festa na qual se acreditava que o messias se manifestaria.40 A 37 Cf. R. VICENT. La festa ebraica delle capanne, p. 217.38 Cf. F. PORSCh. Johannes-Evangelium, p. 76; R. VICENT. Ibid, p. 220.39 Cf. vv. 2.8.8.10.11.40 O verbo matar (apokteinō) aparece 12x no IV Evangelho, das quais 7x estão nestes dois capítulos

referidos a Jesus (7,1.19.20.25; 8,22.37.40). Ainda referidos a ele: 5,18; 11,53. Os restantes são:

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rejeição do messias por uma parte do judaísmo vinculada às festas é um traço joanino. A festa não é a dele. Nela, apenas se escala a trama que culminará na própria festa, a sua páscoa.

b) durante a festa (vv. 14-36). “Quando a festa estava pelo meio, Jesus subiu ao Templo e começou a ensinar” (v. 14). Não fala em participação na liturgia, mas ensino.41 É a primeira vez que ele ensina no Templo.42 O foco não é o conteúdo do ensino, mas a controvérsia. E neste contexto lança a pergunta: “Por que procurais matar-me?” (v. 19). Até aqui não aparecem pormenores litúrgicos, o foco é a pessoa, missão de Jesus e sua rejeição.

c) o último dia da festa (vv. 37-52). “No último dia da festa, o mais importante [lit. o grande]...” (v. 37a). Provavelmente trata-se do 7º dia uma vez que no 8º dia, isto é, no último dia não havia mais libações de água no altar dos sacrifícios nem se realizava qualquer rito festivo particular.43 Jesus põe-se de pé – posição de profeta – e grita:

“Se alguém tem sede, que ele venha a mim e que ele beba, aquele que crê em mim!” Conforme a palavra da Escritura: “De seu seio jorrarão rios de água viva” (vv. 37b-38).44

12,10, 16,2; 18,31. Soma-se a isto o verbo prender (piazō). João o usa 8x sendo 4x nestes dois capítulos aplicados a Jesus (7,30.32.44; 8,20). Além disso, uma tentativa de apedrejamento (8,59). Isto revela a tensão que vai ocupando o espaço da alegria da festa.

41 Cf. ainda vv. 28.35; 8,2.20; 18,20.42 Ensinou uma outra vez, mas na sinagoga de Cafarnaum (6,59). Tratava-se do ensino da Lei

“reservado aos escribas e doutores, porque ninguém podia exercer esta função sem ter sido discípulo numa escola que lhe houvesse transmitido” (cf. X. LÉON-DUFOUR. Leitura do Evangelho segundo João, p. 158). É o caso de Paulo (cf. At 22,3). Por isso o espanto dos ouvintes no v. 15. mas João reserva esta atividade apenas para Jesus, para o Pai (8,28) e para o Espírito (14,26). Uma exceção ocorre numa pergunta retórica dos judeus dirigida ao cego (9,34).

43 Cf. S. SChULZ. Das Evangelium nach Johannes, p. 121; R. SChNACKENBURG. El Evangelio según San Juan, p. 214. mas J. mATEOS – J. BARRETO entendem que a expressão “no último dia” tenha um duplo sentido, a saber, cronológico e teológico. O sentido teológico é dado pelo autor no v. 39 referindo-se ao futuro: a água será dada na manifestação da glória, isto é, na morte (19,34) e será o dia mais solene da festa, porque nele se inaugurará o novo santuário (2,21) onde se manifestará a glória de Deus (cf. 17,1) (cf. O Evangelho de São João, pp. 372-3).

44 há uma discussão na exegese se o manancial de água viva é o crente ou Jesus. Alguns entendem – numa analogia incerta com o texto da mulher samaritana (4,14) – que a água doada por Jesus jorra no crente, ele é a fonte (cf. Pr 18,4; 20,5; Is 58,11). A maioria dos estudiosos, porém, entende que o texto faça referência a Jesus como a fonte da qual bebe os crentes, isto é, recebem dele o dom do Espírito (cf. v. 39). O critério que prevalece é o contexto. Sobre a questão veja, por exemplo, R. SChNACKENBURG. Ibid, pp. 214-7; J. KONINGS. Ibid, p. 178; X. LÉON-DUFOUR. Ibid, pp. 169-71. Quanto ao texto enquanto citação escriturística exata não aparece em lugar nenhum, embora muitas passagens se aproximem da mesma – como: Ex 17,6; Is 12,3; 43,19-20; 44,3; 55,1-2; 58,11; Zc 14,8; Jr 2,13; 17,13; Pr 18,4. Talvez resulte de um midrash (Ibid). De qualquer modo, a libação é o único aspecto de Sukkot que João interpreta recorrendo à Escritura (cf. R. VICENT. Ibid, p. 218). Sobre estas questões veja ainda L. DEVILLERS. A Saga de Siloé, pp. 69-76.

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Esta proclamação de Jesus ocupa o auge da festa. Ele doa, como messias, a água da vida, a água verdadeira.45 A promessa ou oferta é universal: “se alguém tem sede”, “aquele que crê”, ou seja não se restringe aos judeus. João interpreta a água como o Espírito Santo que receberão aqueles que creem em Jesus por ocasião de sua glória (v. 39; cf. Jl 2,28; Ez 39,29). mesmo a Sinagoga já interpretava a libação da água como o recebimento do Espírito e início do tempo salvífico messiânico. Assim Jesus coloca um fim escatológico ao culto judaico.46 Ele faz uma revelação pública – como se lhe exigiam (7,4), manifesta a sua identidade. Portanto, a “água viva que sai de Jerusalém” (cf. Zc 14,8) é equiparada ao dom do Espírito que seria derramado (cf. Ez 39,29) e ambos saem agora do próprio Jesus para aquele que crê (cf. Jo 7,37-39). O messias e a salvação esperado por ocasião da festa já está presente nele e a práxis do dom da água de Sukkot está superada.47

O evangelista, partindo da festa e particularmente do elemento da libação do altar, focaliza nesta manifestação pública o aspecto do beber (cf. Ex 17,6) e se amplia: fontes, rios que partem de Jerusalém (cf. Ez 47,1-2; Zc 13,1; 14,8), isto é, a dimensão da abundância. Desta forma entre a menção da festa (v. 2) e a manifestação pública (v. 37-38) emoldura o sentido da pessoa e missão de Jesus.

4.2. Jo 8: a luz e a alegria de Abraão

Em Jo 8,12 Jesus faz outra autoproclamação: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas mas terá a luz da vida”. Para X. Léon-Dufour “a metáfora da luz aplicada a Jesus dá o tom ao capítulo”.48 Com esta proclamação Jesus afirma que em si se cumpre a promessa da luz definitiva (cf. Is 9,1) e não só para Israel, mas para “quem me segue”, ou seja, é universal (cf. Is 42,6; 49,6). Ora, esta proclamação evoca outro elemento da festa das Tendas, a luz (cf. Sukkah 5,2-4). mas enquanto a luz da festa iluminava a cidade de Jerusalém (cf. Sukkah v, 3b), Jesus se apresenta como luz do mundo.49 A luz da festa, à luz de Zc 14,6-7 referindo-se ao Dia do Senhor, tinha uma conotação messiânica.

45 Ele é rocha da qual mana água (Sl 78,16), é a fonte aberta de Jerusalém (Zc 13,1) que sai água viva (Zc 14,8). Do mesmo contexto deste profeta (Zc 12,10) estabelece-se um vínculo com Jo 19,33-34.37, isto é, a água viva vem do lado traspassado do Cristo.

46 Cf. S. SChULZ. Ibid, p. 121.47 Cf. S. BERGLER. “Jesus, Bar Kochba und das messianische Laubhüttenfest”, pp. 169-70.

Este autor ainda acrescenta: “Para ele [João] o próprio Jesus substitui Sukkot e em geral torna o culto do templo supérfluo pelo fato que ele liga o dom da água viva à sua pessoa, fala do templo do seu corpo (2,21), ou seja, pela promessa do Espírito dá por extinta a peregrinação para Jerusalém” (Ibid, p. 174), tradução nossa.

48 Cf. Ibid, p. 187.49 Cf. 1,9; 3,19; 12,46.

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J. Beutler fala da história da adúltera (Jo 7,53-8,11) como uma interpolação no texto joanino. Em seguida comenta:

“Não é totalmente claro a que situação pertence o discurso subsequente de Jesus, que começa em 8,12 e que, através de diversas interlocuções, se prolonga até 8,59. Quando se considera que a história da adúltera foi acrescentada ao Evangelho segundo João, o discurso de 8,12 seria a continuação daquele que começou em 7,37s. Pertenceria então ao discurso de Jesus no último dia da festa das Tendas. O fato de Jesus, em 8,12 usar o simbolismo da luz corrobora a impressão de que o discurso pertence à festa das Tendas”.50

De qualquer modo, são duas declarações messiânicas, inspiradas no rito da festa: a água viva (Jo 7,37-38; cf. Zc 14,8) e a luz (8,12; cf. Zc 14,7).51 São promessas universais que ultrapassam o judaísmo.52 Jesus se inspira em ambos os casos no rito, mas ao mesmo tempo se sobrepõe ao rito no sentido que não é mais um mero instrumento ritual, mas uma pessoa. Ele não é um candelabro aceso, ele é a luz. Não transporta a água numa procissão para fazer libação no altar, ele é a água que sacia. Revela sua pessoa e missão em confronto com a liderança judaica.

No v. 56 do mesmo capítulo, após a controvérsia com a liderança dos judeus, Jesus diz: “Abraão, vosso pai, exultou por ver o meu dia. Ele viu e encheu-se de alegria”. Ora, o patriarca Abraão aparece com frequência na tradição judaica como modelo de fé ao crente. Nesta perspectiva é apresentado como fundador da festa das Tendas.53 Jesus estabelece aqui outro vínculo com a festa que é o tema da alegria. A alegria de Abraão não aparece explicitamente na Escritura,54 vai aparecer sim no Livro dos Jubileus (Jub 16,19-20). Curiosamente o evangelista – assim como

50 Cf. Evangelho segundo João, p. 209.51 Cf. J. mATEOS – J. BARRETO. Ibid, p. 346. Segundo J. KONINGS: “No lugar central [7,37-52; 8,12-20]

estão, portanto, os dois símbolos da festa das Tendas, água (7,37) e luz (8,12). A festa das Tendas comportava o traslado diário da água de Siloé (piscina em que desembocava a fonte do Templo, o Gion) e culminava numa procissão solene com luzes e fachos” (cf. Ibid, p. 171). Ainda X. LÉON-DUFOUR estabelece o elo entre os dois capítulos: “mesmo que o capítulo 8 não inclua novas indicações de tempo, é certo que os acontecimentos referidos se passam ainda no ambiente desta festa da água (cf. 7,37) e, segundo certas tradições, da luz (cf. 3,12)” (cf. Ibid, p. 148; veja ainda p. 187). Por um lado, a festa das Tendas já viveu seu último e grande dia (cf. 7,37a), mas por outro lado não se menciona uma nova festa, Jesus continua sua atividade no Templo, a saber, ensinando (v. 20) e o tema se vincula àquele da festa (cf. R. SChNACKENBURG. Ibid, p. 237). Ainda segundo este autor, o lugar de onde Jesus fala – a câmara do Tesouro (cf. v. 20) – ficava no pátio das mulheres, que por sua vez, estava relacionado com a celebração da luz (cf. Ibid, pp. 240.247).

52 Ambas apresentam a mesma estrutura, mas esta acrescenta a expressão “Eu Sou” (com metáfora) alcançando a forma plena de uma sentença de revelação soteriológica (cf. R. SChNACKENBURG. Ibid, p. 239).

53 Cf. R. SChNACKENBURG. Ibid, p. 240. Abraão teria sido o primeiro a celebrá-la (cf. Jub 16,21).54 Em Gn 17,17 fala-se do seu riso. mas o contexto não permite ver ali uma expressão de alegria

confiante.

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o autor de Jubileus – vincula a alegria de Abraão não com o passado, mas com o futuro. Ver o dia messiânico, isto é, a fé e consequente observância do patriarca lhe permitiram ver a realização da promessa. Assim João faz de Abraão testemunha crente e alegre da vinda de Jesus. Desta forma o evangelista contrapõe a alegria do patriarca com a tristeza e incredulidade da liderança judaica para com Jesus, mesmo se dizendo “filhos de Abraão”.55 Sua conduta nega sua descendência. Para Jesus, a filiação não é uma questão apenas de raça, mas sobretudo de atitudes.

4.3. Jo 9,5-7: a cura do cego em Siloé

No capítulo anterior, Jesus se declarara como “luz do mundo”, aqui ele retoma esta declaração e a realiza devolvendo a luz dos olhos a um cego que passa a ver.56 Ele diz: “Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo” (v. 5). Em seguida vem a demonstração vinculada à declaração:

“Tendo dito isso, cuspiu na terra, fez lama com a saliva, aplicou-a sobre os olhos do cego e lhe disse: ‘Vai lavar-te na piscina de Siloé – que quer dizer enviado’. O cego foi, lavou-se e voltou vendo” (vv. 6-7).

Como observa X. Léon-Dufour, “Siloé é o único lugar que recebe nome no relato”.57 O evangelista oferece também o seu significado ‘enviado’ (do verbo apostellō). Ora, ‘enviado’ é um tema caro a João aplicado a Jesus.58 O Pai o envia. Ainda segundo Léon-Dufour, “ao dar a ordem de ir a Siloé, isto é, ao Enviado que é ele mesmo, Jesus manifesta que sua missão é libertar das trevas”.59 Assim explicita o que é ser luz do mundo. Lá em Siloé, ao executar a palavra imperativa de Jesus lavando-se, o cego volta vendo. As bênçãos que asseguravam as águas de Siloé chegam agora através do único Enviado.60 A recuperação da vista aos cegos

55 Sobre este v. 56 nos servimos do trabalho de R. VICENT. Ibid, pp. 221-3.56 Também do ponto de vista literário, a conjunção kai (= e), no início do relato, faz deste episódio

um prolongamento da festa das Tendas (cf. X. LÉON-DUFOUR. Ibid, p. 229).57 O autor acrescenta: “A piscina de Siloé, situada a sudoeste da cidade velha, encontrava-se

no fim de um túnel construído por Ezequias (em torno de 740 a.C. [cf. II Rs 20,20; II Cr 32,30; Eclo 48,17]) para levar a Jerusalém as águas do Guihon” (cf. Ibid, p. 233). Ainda sobre isso: R. SChNACKENBURG. Ibid, p. 306. Segundo R. VICENT, “é significativo que na época do NT Siloé fosse considerada como fonte (‘água viva’, em referência a Jo 7,38c) e não uma simples cisterna” (cf. Ibid, p. 223), tradução nossa. J. mATEOS – J. BARRETO alertam para não confundir a piscina de Siloé com a fonte do mesmo nome (Ibid, p. 427). Ao nosso entender, no contexto, o evangelista não está preocupado com a distinção, está antes fazendo um jogo de palavras.

58 Cf. com o verbo apostellō: 3,17.34; 5,36.38; 6,29.57; 7,29; 8,42; 10,36; 11,42; 17,3.8.18.21.23.25; 20,21. Ainda com o verbo pempō: 4,34; 5,23.24.30.37; 6,38.39.44; 7,16.18.28b.33; 8,16.18.26.29; 9,4; etc.

59 Cf. Ibid, p. 233.60 Cf. R. VICENT. Ibid, p. 224.

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era sinal da chegada do messias.61 Ora, como negar a relação desta sequência de elementos com a festa das Tendas? Como negar que João tenha feito aqui um jogo literário com os ingredientes da festa: água – luz – Siloé – enviado – messias? J. Konings exprime esta idéia dizendo: “Jesus manda o homem a Siloé, o reservatório das águas salvíficas, de onde pouco antes tinha saído a procissão de luz e água da festa das Tendas”.62 Segundo L. Devillers, “ao longo de seu Evangelho, e especialmente da seção da festa das Tendas, [João] quer mostrar em Jesus o verdedeiro Siloé, de onde flui a água viva (cf. Jo 7,38)”.63

No conjunto do capítulo, o conflito com os opositores de Jesus se escala e Jesus revela a cegueira deles (cf. 9,39-41). A atitude deles contrasta radicalmente com a do cego. Realiza-se para estes as palavras de Isaías: “este povo rejeitou as águas de Siloé que correm mansamente...” (Is 8,6).

4.4. Jo 12,12-15: a entrada solene de Jesus em Jerusalém

A cena da entrada triunfal de Jesus é relatada pelos 4 Evangelhos.64 Cada um, a seu modo, retoma elementos da festa das Tendas. Para nosso propósito seguiremos o texto joanino:

“No dia seguinte, a grande multidão que viera para a festa, sabendo que Jesus vinha a Jerusalém, tomou ramos de palmeira e saiu ao seu encontro, clamando:

‘Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor e o rei de Israel!’

Jesus, encontrando um jumentinho, montou nele, como está escrito:

‘Não temas, filha de Sião! Eis que vem o teu rei montado num jumentinho!’” (Jo 12,12-15).

O primeiro elemento que desponta são os ramos de palmeira que evoca o lulav agitado na festa.65 A aclamação é tirada do Sl 118,25a.26a: ‘Hoshi’a-na! [= dá-nos a salvação] ‘Bendito o que vem em nome do Senhor’.66 Trata-se do próprio hoshana usado na liturgia da festa, originariamente uma súplica, passa a ser um grito de salvação e aclamação. Este grito vem seguido da bênção que se proclamava sobre

61 Cf. mt 11,5 e //; Is 29,18; 35,5; 42,7; veja ainda 61,1 na versão grega.62 Cf. Ibid, p. 198.63 Cf. A Saga de Siloé, p. 158.64 Cf. mt 21,1-19[.12-16]; mc 11,1-10[.15-18]; Lc 19,28-38[.45-46]. Os ramos de palmeira indicam

vitória (cf. I mc 13,51; II mc 10,7; 14,4).65 Enquanto mt 21,8 fala em “estender as vestes e cortar ramos das árvores”, João fala em “ramos de

palmeira”. Isto torna mais aderente ao lulav da festa. 66 O Sl 118 é o último do hallel usado tanto em Sukkot como nas demais festas. Se usava na oração

pela chuva.

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os romeiros que chegavam para a festa.67 A frase era aplicada a qualquer romeiro, aqui se aplica clara e exclusivamente a Jesus – como messias.68 O acréscimo ‘rei de Israel’ enfatiza a esperança do messias que devia vir. O jumentinho, segundo Zc 9,9, é também uma referência ao rei messiânico que chegaria durante a festa, rei da paz e não da guerra. Rei da paz não era exatamente esta a expectativa. O rei sobre um jumentinho era um imaginário insólito, mas justamente aí estava a particularidade do reino de Jesus. O rei da paz é o que descreve Zc 9,10.69 O mais interessante, porém, é que João usa todos estes elementos para introduzir a Páscoa de Jesus, a festa por excelência.

4.5. Jo 10,22: a festa da Dedicação

Entre as referências à festa das Tendas nos capítulos 7-9 e 12,12-15 João insere a festa da Dedicação (= hanukkah),70 também conhecida como festa das Luzes.

“houve então a festa da Dedicação, em Jerusalém. Era inverno. Jesus andava pelo Templo, sob o pórtico de Salomão” (Jo 10,22-23).

Esta festa, celebrada de 25 do mês de Kislev ou Casleu a 2 de Tevet (novembro-dezembro), durava 8 dias (cf. II mc 1,18). Nela se celebrava a rededicação do Templo por Judas macabeu em 165 a.C., após a profanação grega liderada pelo sírio selêucida Antíoco IV Epífanes (175-163). Com a rededicação restaurava-se o culto judaico. O livro dos macabeus chama esta festa de “dias das Tendas do mês de Kisleu/Casleu” (II mc 1,9) e em seguida recomenda: “...vós a celebreis a modo da festa das Tendas” (v. 18). Certamente pelo fato que Salomão havia dedicado o primeiro templo por ocasião da festa das Tendas (cf. I Rs 8,2.63-66). O mesmo ocorre com a dedicação do altar do segundo templo no período da reconstrução pós-exílica (cf. Esd 3,3-4).71 Além disso, ambas as festas apresentam um forte elemento comum que é a luz. Talvez isto explique a interpolação desta festa entre as referências

67 Cf. J. KONINGS. Ibid, p. 238. Enquanto R. SChNACKENBURG fala de “uma liturgia de ação de graças que um coro de peregrinos cantava ao entrar no templo” (Ibid, p. 464).

68 Para S. SChULZ a frase era originariamente pensada para o rei político de Israel, libertador do povo do jugo do domínio estrangeiro, que estabeleceria Israel em seu messiânico-escatológico domínio mundial. mas aqui – corrigido pela perspectiva de Zc 9,9 – deixa-se fora a idéia de um rei político-ativo. Apresenta-se um príncipe da paz que eliminará as guerras e estabelecerá um reino messiânico de paz (cf. Ibid, p. 165).

69 Cf. F. PORSCh. Ibid, p. 130.70 Hanukkah da raiz hanak = dedicar, consagrar.71 Sobre esta festa: A.-C. AVRIL – D. mAISONNEUVE. Ibid, pp. 141-3; J. hANNOVER. Ibid, pp. 80-8; J. J.

PETUChOWSKI. Ibid, pp. 107-21; A. C. COELhO. Ibid, pp. 107-15.

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da festa das Tendas.72 Todavia, a festa da Dedicação é uma festa autônoma. Embora parece claro que João não esteja preocupado com a coerência literária, cronológica ou ritual das festas, quer antes mostrar que elas atingem suas metas em Jesus.

4.6. Jo 2,13-16; 1,14: a purificação do templo e a habitação do verbo

O profeta Zacarias, olhando para o futuro, fala de uma festa das Tendas celebrada por todas as nações (cf. Zc 14,16-19) e na sequência diz: Não haverá mais vendedor na casa do Senhor dos Exércitos, naquele dia” (v. 21b). Ora, esta frase parece estar na base da atitude de Jesus ao purificar o templo em Jo 2,13-16. mas o evangelista situa claramente o episódio no contexto da festa da Páscoa e não das Tendas (cf. Jo 2,13). Todavia, nesta ocasião Jesus desloca o foco da instituição, o Templo, para sua pessoa (2,19-21). Ele é o Templo. Isto é importante para o que segue.

Outra possível alusão à festa das Tendas encontra-se na abertura do evangelho quando o evangelista afirma:

“E o Verbo se fez carne,

e habitou entre nós;

e nós vimos a sua glória...” (1,14).

Na frase “habitou entre nós”, o grego usa o verbo skēnoō, literalmente significa “armou tenda entre nós” (de skēnē = tenda).73 Poderia sugerir a passagem provisória ou passageira do Verbo na história. Armar ou confeccionar a tenda era parte da celebração da festa.74 Jesus, porém, não veio apenas para celebrar a festa, ele é a festa. Ele arma a tenda que ele é.75 E isso o faz para que a alegria (da festa) seja plena (cf. Jo 15,11). O foco vai mais longe, evoca a Tenda do Encontro, lugar da inabitação de Deus entre os israelitas (Ex 33,7-11).76 É o lugar onde Ele manifestava sua glória:

72 Para X. LÉON-DUFOUR, trata-se de uma única festa, as Tendas, da qual a festa da Dedicação é uma espécie de desdobramento (cf. Leitura do Evangelho segundo João I, p. 34).

73 Cf. J.-A. BÜhNER. Art. Skēnoō, 1431-2; Art. Skēnē. Ibid, 1426-9. No NT, o verbo skēnoō aparece ainda no Ap 7,15; 12,12; 13,6; 21,3.

74 A sabedoria também arma sua tenda. Em seguida atribui esta ação a seu criador (cf. Eclo 24,3.8.10). Em João estamos diante da sabedoria incriada. Esta realiza o que aquela prefigurava através de sua própria carne.

75 Armar a tenda, segundo EPhRAÏm, explica a primeira parte da frase “o Verbo se fez carne” (cf. Ibid, p. 370).

76 Cf. ainda Ex 27,21; 28,43; 29,4.10.11; Nm 7,89; 17,19; II Sm 7,6; etc..

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“A nuvem cobriu a Tenda da Reunião e a glória do Senhor encheu a Habitação. moisés não pôde entrar na Tenda da Reunião porque a nuvem permanecia sobre ela, e a glória do Senhor enchia a Habitação” (Ex 40,34-35).

O hebraico usa aqui para tenda o termo ’ōhæl (e não sukkah) e para habi-tação (ou para tabernáculo) o termo miškān (da raiz škn = habitar, acampar). A LXX, porém, traduz os dois termos com a mesma palavra skēnē = tenda. Da raiz hebraica škn vem o termo rabínico shekiná = morada, presença. Na tenda, na ha-bitação, Deus manifesta a sua presença, a sua glória, acompanhando o povo em sua marcha pelo deserto. Ora, João tem isso presente quando acrescenta: “vimos a sua glória”. Não está mais vinculada a um lugar, mas a uma pessoa.77 É um novo modo de manifestar-se.

Esta Tenda do Encontro no deserto vai dar lugar ao templo em Jerusalém.78 Agora, como se exprimem J. mateos e J. Barreto:

“Aquela presença de Deus é substituída por esta: a tenda de Deus, o lugar onde ele habita no meio dos homens, é um homem, uma ‘carne’. [...] A alusão à nova tenda anuncia já a substituição do templo. O corpo de Jesus, sua humanidade, será o novo santuário (2,19.21)”.79

Em Jesus todos podem ver Deus face a face80 como outrora podia moisés na Tenda (cf. Ex 33,11). A festa está superada, isto é, alcançou sua plena realização. Ora, o prólogo do evangelho oferece a chave para entender a perspectiva da festa na obra.

5. COnCLUSãO

O desenvolvimento da obra joanina é praticamente determinado pelas festas. O evangelista dá à obra uma perspectiva festiva, celebrativa, litúrgica. Ele retoma as fontes e tradições a respeito de Jesus, as sistematiza em torno das festas judaicas e, a partir daí, constrói sua teologia explicitando a pessoa e ministério do mestre. A obra deixa aos poucos transparecer que as instituições e o culto antigo vão dando lugar a uma realidade nova, aquela do Cristo Jesus. Nele as festas litúrgicas de então encontram seu cume. Nele se realiza aquilo que

77 João exprime de outro modo o pensamento mateano do “Emanuel, Deus conosco” (cf. mt 1,23). 78 Cf. II Sm 7,1-13; I Rs 5,15-19; 6,1ss.79 Cf. Ibid, pp. 60.61.80 Cf. 12,45; 14,7.9.

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elas anunciavam. Neste novo templo, Jesus (cf. Jo 2,21), as festas alcançam sua plenitude. O evangelista – como já antecipamos – fala em 6 festas, um número imperfeito. Elas preparam e convergem para a perfeição, a sétima, o Cristo ressuscitado, Verbo eterno do Pai, expressão de sua glória. Ora, a festa das Tendas, festa messiânica por excelência, exemplifica isso.81 Segundo A. Nicacci:

“A festa dos Tabernáculos [ou Tendas], durante a qual Jesus cura o cego de nascença (7,2; 9,1s), lembrava a vida dos judeus no deserto sob as tendas, quando Deus morava no meio deles, manifestava-se na nuvem de fogo, dava-lhes água da rocha e os guiava como o pastor guia o seu rebanho. A festa dominical cristã era tudo isto, mas de modo superior. Era a presença do Filho de Deus ressuscitado entre os seus (1,14), como luz do mundo (8,12; 9,5), como fonte de água viva (7,37-39), como o bom Pastor que conhece e guia as suas ovelhas (10,11-18). [...] O dia festivo do cristão é a nova Páscoa que substitui todas as festas judaicas, porque lembra o maior ato salvífico da história, fruto do amor sem medida de Cristo (13,1). Nela se congregam simbolicamente todas as lembranças das festas judaicas e encontra realização o imperfeito culto material que os judeus haviam rendido a Deus, na espera do verdadeiro templo e do Cordeiro que deveria tirar o pecado do mundo”.82

Diante disso e considerando que a festa das Tendas era e é a festa da alegria por excelência, resta a pergunta: onde está o transbordar de alegria de nossas liturgias e de nossa vida cristã?

O Papa Francisco percebe que está faltando alegria, tanto é que na Exortação Apostólica Evangelii gaudium afirma: “há cristãos que parecem ter escolhido viver uma Quaresma sem Páscoa” (EG 6). E na mesma Exortação diz: “Um evangelizador não deveria ter constantemente uma cara de funeral”. Em seguida faz o apelo: “Recuperemos e aumentemos o fervor de espírito, «a suave e reconfortante alegria de evangelizar, mesmo quando for preciso semear com lágrimas! (...) E que o mundo do nosso tempo, que procura ora na angústia ora com esperança, possa receber a Boa Nova dos lábios, não de evangelizadores tristes e desacorçoados, impacientes ou ansiosos, mas sim de ministros do Evangelho cuja vida irradie fervor, pois foram quem recebeu primeiro em si a alegria de Cristo».” (EG 10). Oxalá

81 Conforme L. DEVILLERS: “Com uma simbologia toda própria, a festa das Tendas representa para João o momento oportuno para revelar pouco a pouco a identidade profunda de Jesus, messias enviado pelo Pai. [...] a festa consistirá para ele [Jesus] na oportunidade de fazer sua afirmações mais incisivas. É aqui, com efeito, que ele proclama do modo mais solene o famoso ‘Eu, eu sou’ (Jo 8,24.28.58; ver também 13,19). É aqui também que ele se apresenta como a Fonte de ‘água viva’ (Jo 7,37-38) e ‘a Luz do mundo’ (Jo 8,12; 9,5). E, por fim, é aqui que ele enfatiza sua condição de enviado do Pai” (cf. Ibid, pp. 43.47-48).

82 Cf. Comentário ao Evangelho de São João, pp. 24.25.

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que a mensagem da Festa das Tendas ajude os cristãos a redescobrirem a Alegria do Evangelho e adicionem mais alegria nas celebrações e na vida, como sugere o Papa.

Por outro lado, a sukkah lembra-nos ainda que não temos aqui morada permanente, somos “estrangeiros e peregrinos nesta terra... à procura de uma pátria” (hb 11,13b.14b) que há de vir. A sukkah é apenas a primeira tenda (hb 9,2-3; II Pd 1,13).

6. BIBLIOGRAFIA

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A mÃE DE DEUS NA ICONOGRAFIA BIZANTINA

THE MOHTER OF GOD In BYzAnTInE ICOnOGRAPHY

Neomir Doopiat Gasperin *

RESUMO: A existência e veneração dos ícones na Igreja Bizantina, expressa uma rica e bela compreensão teológica que o Oriente Cristão comunga sobre a economia da salvação operada por Jesus Cristo, dedicando nesta, um relevante espaço a Santíssima Virgem maria, venerada como corredentora da salvação – pensamento teológico, intensamente rezado na liturgia: “Santíssima mãe de Deus – Salvai-nos!” A mariologia oriental não é autônoma, mas inserida na cristologia, eclesiologia e escatologia. O consentimento da Theotokos foi condição indispensável para a Encarnação, para que Deus se fizesse visível e representável na pessoa de Jesus Cristo. Toda a excelência atribuída aos ícones da mãe de Deus deve-se a sua participação nos mistérios de Jesus Cristo, por isso, os templos sagrados, a liturgia, hinologia e a espiritualidade dos fiéis são influenciadas pela iconografia. Os ícones marianos conseguem exprimir harmoniosamente o indizível nexo das naturezas do Verbo que se vislumbram na Theotokos. São imagens que nos ajudam a rezar, que assumem a economia divina, que convidam à transfiguração e à divinização – meta da vida humana

PALAVRAS CHAVE: Tradição Oriental; iconografia; Virgem maria; liturgia. ABSTRACT**: The existence and veneration of Icons in the Byzantine Church demonstrate a very rich Theological comprehension which is placed on the One Economy of Salvation realized by Jesus Christ. The Byzantine Iconography reserves a very relevant place for the Blessed mother of God. She is venerated as a co-redemptress in the plans of Salvation which is a Theological Dogma and intensely remembered during Liturgies: “Blessed mother of God – save us!” The Oriental mariology is not self-sufficient; but rather a part of the Christology, Ecclesiology and Escathology. The Blessed mother’s FIAT was essential in the Incarnation Plans so that God would be made visible and represented in the person of Jesus Christ.. mary’s participation in the mysteries of Christ is always depicted in Iconography; thus, temples and churches, the Liturgy, hymns and Spirituality are influenced by the Icons. The marian Icons harmoniously display the undivided links in both Natures of the Word of God which are discerned indistinctly in the Theotokos. They are images that help us pray better, play a part in the Economy of Salvation, invite all to the Transfiguration and deification - the goal of human life. 

KEY WORDS: Oriental Tradition; Iconography; Blessed mother of God; Liturgy.

* neomir Doopiat Gasperin é mestrando em Direito Canônico pela Faculdade de Direito Canônico São Paulo Apóstolo – PUC Ipiranga, São Paulo; e sacerdote do clero diocesano da metropolia Greco Católica Ucraniana São João Batista em Curitiba, Paraná.

** O abstract foi preparado pelo Pe. Januário Lucavei, OSBm – residente em New York State (EUA).

Artigos

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InTRODUÇãO

Observaremos neste artigo que a Virgem maria está explícita e implicitamente presente na história da Encarnação e salvação da humanidade operada por Jesus Cristo. A primeira vista, poderá parecer estranho a nós cristãos formados pela cultura, teologia e tradição ocidental; acostumados a entender a mariologia separadamente da cristologia e assim, compreender que a liturgia oriental reza: Santíssima Mãe de Deus – Salvai-nos! Para a tradição bizantina, a Theotokos faz parte deste evento salvífico, por isso, a teologia proclama-a: corredentora da salvação .

De acordo com Servera, a teologia mariana no oriente nunca foi autônoma, é parte da cristologia e da eclesiologia1. Alguns autores como Palamás e Cabasilas também inserem-na como parte da escatologia.

Para o oriente cristão, não há separação rigorosa e sistemática que aloca Jesus Cristo em um plano e a Virgem maria em outro. A veneração à mãe de Deus está estreitamente ligada a sua maternidade divina e à união com a pessoa e obra do Filho, por isso pode-se dizer que a iconografia mariana é também cristológica2. O título Theotokos, segundo Spidlik, já indica a dupla origem de Cristo: de Deus e de maria3.

A mãe de Deus está dentro de um plano cristológico e salvífico, o qual pretendemos apresentar neste artigo através da teologia e representação iconográfica. Veremos também como se da à presença da Santíssima Virgem nos templos bizantinos e na iconografia; o papel do ícone na liturgia e sua veneração; a teologia iconográfica e o lugar da Virgem maria na economia da salvação.

1. A MãE DO VERBO EnCARnADO é qUE POSSIBILITA O ÍCOnE DO SEU FILHO

Segundo Sáenz, o instrumento pelo qual o invisível se fez visível, não é outro senão a Virgem maria. “É ela que deu a abreviação ao Verbo. São Teodoro Studita, maravilhado diz: Se é ilimitado aquele que procede do Pai ilimitado, será por certo limitado quem procede de uma mãe limitada”4. Se a consubstancialidade

1 cf. CERVERA, Jesús Castellano. El mistério de María en la Iglesia ortodoxa: Doctrina y testimonio de Pablo Evdokimov.(artigo) Revista de espiritualidade, 1977, p. 259.

2 KNIAZEFF, Alexis. La Madre di Dio nella Chiesa ortodossa. milano: San Paolo, 1993. p. 23.3 cf. SPIDLÍK, Tomás. Alle Fonti dell’Europa: in principio era l’arte. Roma: Lipa, 2006, p. 195.4 SÁENZ, Alfredo. El Icono: Splendor de lo Sagrado. Buenos Aires: Glaudius, 1991, pp. 77-78.

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com o Pai o faz ilimitado, a consubstancialidade com sua mãe o envolve de limitação.

A Encarnação do Verbo é o dogma fundamental do cristianismo. A admissão desse mistério é incompleto se não se professa a Virgem maria como verdadeira mãe de Deus. O culto do ícone de Jesus Cristo presume o papel da Theotokos, cujo consentimento foi condição indispensável para a Encarnação, para que Deus se fizesse visível e representável. Segundo os Padres da Igreja, o que permite que o Verbo Encarnado seja representado em um ícone é a humanidade herdada de sua mãe, pois, se não pudesse ser representado significaria que nasceu somente do Pai e não se encarnou. Isto seria contrário a toda o plano da salvação5.

Desta forma, a Theotokos se apresenta envolvida no grande mistério cristológico, constituindo a resposta viva contra os iconoclastas, pois, se o Verbo de Deus se revestiu da carne da Santíssima Virgem, então nada podia negar o direito de representá-lo em imagens e ícones. Em Jesus não faltava nada do que havia na natureza de sua mãe. Se negasse a sua representação no ícone, automaticamente se estava, mesmo que de forma implícita, afirmando que seu corpo não vinha da Virgem maria, mas de algum outro, talvez de um corpo celeste. mas, se assim o fosse, Jesus Cristo não teria sido visto e nem tocado, não teria morrido. Então como se desenvolveria a economia da salvação?

A Theotokos ocupa um lugar de proeminência na Igreja bizantina: na liturgia, na teologia, na espiritualidade, na hinologia e, sem duvida alguma na iconografia, onde sua expressão é bastante visível. Poucos são os ícones em que a mãe de Deus aparece sozinha. A maioria a traz acompanhada de seu Filho. A Liturgia canta: “Aquele que era ilimitável no seio do Pai, está agora sentado, limitado, em teu seio, ó Puríssima, revestido de teu aspecto”6. Essa relevância da Virgem é visível em todos os âmbitos da Igreja bizantina.

2. A VIRGEM MARIA nO TEMPLO BIzAnTInO

A espiritualidade oriental oferece uma interpretação especialmente simbólica dos seus espaços sagrados. O templo sagrado é simultaneamente uma representação divina, uma imagem do mundo ideal, uma representação do homem e um símbolo do seu profundo estado de espírito.

5 cf. SÁENZ, Alfredo, op.cit. pp. 172-173.6 hino da 7 ode do cânon tom 6. in SAENS, Alfredo. op.cit. p. 79.

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De acordo com Sáenz, no âmbito bizantino as igrejas se caracterizam por um definido caráter sacramental, reproduzindo em forma sensível, uma experiência que escapa à percepção experimental. As igrejas aparecem como lugar inteiramente reservado para Deus. O ritual de consagração reporta-se a um determinado terreno escolhido, o qual é separado do espaço profano (de uso comum) e purificado através das invocações epicléticas, ou seja, invoca-se a descida do Espírito Santo para que o transforme em um recinto sagrado7. Evdokimov classifica a consagração desse espaço como “um lugar exato da teofania, a montanha santa, um centro cósmico, símbolo do céu (...)”8.

De acordo com hanicz:

A representação arquitetônica é construída a partir do simbolismo cósmico. “A igreja é concebida como imitação da Jerusalém Celeste, reproduzindo o paraíso e o mundo celeste”. A “Igreja é imago e axis mundi”. “É um arquétipo celestial”, a forma, as medidas e o modelo refletem o domínio sagrado. É uma presença imanente–transcendente, na qual o culto à divindade é atualizado9.

Para os Santos Padres, a Igreja é o novo céu, a antecipação, prefiguração do céu; porém, também é a nova terra, o mundo transfigurado, a serenidade futura, onde todas as criaturas se reúnem hierarquicamente em torno a seu Criador10. Segundo morozowich, esta relação da Igreja com o céu, a tradição bizantina expressa de forma mais clara na iconografia, procurando ajudar os orantes a entender o fato maravilhoso da união com Deus no céu durante a oração. Descobrindo diante de nós este dom inestimável, somos convidados a acender espiritualmente, lembrando-nos que somos parte do corpo de Cristo11.

O que mais chama a atenção na igreja bizantina é o seu iconostáse (parede de ícones) que separa a nave dos fiéis do Santo dos Santos. Os ícones na iconostáse representam a presença invisível de Jesus Cristo e dos santos. No iconostáse há três portas: a central, chamada de porta real, régia ou santa, conduz diretamente

7 EVDOKImOV, Pavel. Teologia della Bellezza: L’arte dell’icona. Roma, 1981, pp. 154-155; SÁENZ, Alfredo,op.cit. pp. 255 e 262. vide para melhor compreender a consagração dos Espaços Sagrados, a obra: ELIADE, mircea. O Sagrado e o Profano. Lisboa: Edição livros do Brasil, coleção vida e cultura, sd. p. 40 ss.

8 EVDOKImOV, Pavel, 1981, op.cit. p. 154.9 ELIADE, mircea. apud. hANICZ, Teodoro. Último andar. Caderno de pesquisa em ciências da

religião. São Paulo: EDUC, 1998, p. 86.10 SÁENZ, Alfredo, op.cit. p. 263.11 mOROZOWICh, mark. O Ofício Divino como fonte da formação litúrgica e espiritual das pessoas

consagradas. in. VIDA CONSAGRADA NA IGREJA GRECO-CATÓLICA UCRANIANA: Material da V sessão do Sobor Patriarcal. Prudentópolis: 2011, p. 237.

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ao altar e por meio dela o celebrante comunica-se com a assembleia. Nas laterais há as portas norte e sul, também chamadas de diaconais. Estas portas simbolizam o vinculo entre o céu e a terra. Na porta real encontra-se o ícone da Anunciação e dos quatro evangelistas. Nas portas laterais estão os ícones de arcanjos ou diáconos. Esses ícones representam o fato de que a Boa Nova sobre a vinda do messias foi dirigida em primeiro lugar à virgem maria e que o seu assentimento à maternidade divina abriu as portas do paraíso, antes fechadas pelo pecado. Os ícones dos evangelistas na porta real e o ícone da última ceia acima deles, indicam que entramos no Reino de Deus pelo acolhimento da mensagem evangélica e participando da santa Eucaristia12.

3. A CEnTRALIDADE DA VIRGEM MARIA nA ICOnOGRAFIA

A porta santa ou real é ladeada por dois grandes ícones. O primeiro lugar de honra, localizado a direita é ocupado pelo ícone de Cristo Pantocrator, o Todo Poderoso, vestido com túnica e manto, segurando na mão esquerda um globo terrestre e com a mão direita abençoando. O ícone Pantocrator, às vezes é substituído pelo Cristo mestre que em vez de um globo, segura o livro dos evangelhos. O segundo lugar de honra e realce está à esquerda da porta santa e é dedicado a mãe de Deus, representada na maioria das vezes segundo o modelo iconográfico da Odiguitria (a Guia). Nesse ícone, a Theotokos com uma das mãos segura o menino Jesus e com a outra aponta para Ele como se estivesse indicando o caminho da salvação13. Em seguida vêm os ícones dos apóstolos, profetas, santos e mártires, todos circundando Jesus Cristo e a Virgem maria, transmitindo a ideia de como deve ser a morada de Deus e de seus anjos e santos.

Em conjunto, os ícones de Jesus Cristo e da Virgem maria, de ambos os lados da porta real ou santa do iconostáse, propagam todo o plano da salvação: o Filho de Deus tornou-se homem (o Cristo vestido na túnica púrpura, coberta do manto azul) para tornar a nós, homens, representados pela mãe de Deus, partícipes de sua Divindade. A Theotokos está vestida com uma túnica azul, coberta com uma capa de cor púrpura. A cor púrpura simboliza a divindade e o azul a humanidade14.

12 ,op.cit. p. 190, n. 600-602. vide esquema de iconostáse em: 2003, стор. 62. Tradução e transliteração da referência: hOhOLh, Nicolau. Reflexão sobre a Divina Liturgia. Lviv: Svitchado, 2003, p. 92.

13 ,op.cit. p. 191, n. 604 e ARBEX, Pedro. Teologia Orante na Liturgia do Oriente. São Paulo: Ave maria, 1998, p. 18.

14 , op.cit. p. 191, n. 604.

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Os ícones marianos, querem, portanto explicitar que a natureza humana da Theotokos fora revestida da graça plena de Deus.

Segundo Arbex, a Virgem maria foi sempre o motivo predileto dos pintores bizantinos, por causa de seu papel eminente na economia da salvação e também como réplica às heresias cristológicas cuja consequência era negar a sua mater-nidade divina. Os iconógrafos se esforçavam para dar à mãe de Deus os traços mais perfeitos e sugestivos, eliminando a menor possibilidade de diminuir sua dignidade e o respeito que lhe é devido. Jamais encontraremos um ícone com traços sensuais, ao contrário, a Virgem é representada como uma dama nobre, uma rainha poderosa, mas, ao mesmo tempo, majestosa e modesta15.

4. O ÍCOnE nA LITURGIA

Segundo Evdokimov, as formas arquitetônicas do templo bizantino, os afrescos, os objetos de culto e os ícones, não estão juntos simplesmente como elementos de um museu, mas, como componentes de um corpo que vivem de uma mesma vida mistérica, estão integrados no mistério litúrgico. Portanto, não se pode compreender um ícone fora desta integração16.

A função do ícone na liturgia é auxiliar na contemplação orante. Um fiel ao entrar na igreja, se inclina diante do ícone, se persigna, beija-o; primeiramente o de Jesus Cristo, depois da mãe de Deus e da festa do período litúrgico que se celebra ou aquele a quem a Igreja foi dedicada. Junto com os ícones geralmente há velas acesas, que os fieis acendem como expressão externa de sua invocação interior.

Para Evdokimov, “a função litúrgica do ícone é ser simbiose dos sentidos e da presença, consagrar os tempos e lugares; de uma habitação neutra fazer uma igreja doméstica da vida de um fiel, uma vida orante, liturgia interiorizada e continuada”17.

Quando se celebra um ofício, os textos litúrgicos se estruturam em torno ao acontecimento celebrado e os comentam. O mistério litúrgico se faz presente e transmite esse conteúdo vivo ao ícone da festa litúrgica. Praticamente, sem os ícones, os ritos litúrgicos bizantinos não são celebrados adequadamente, a

15 ARBEX, Pedro, 1998, op.cit. pp. 60-61.16 cf. EVDOKImOV, Pavel, 1981, op.cit. p. 179.17 id.

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proclamação do mistério celebrado pela Igreja mediante os textos litúrgicos lidos e cantados, ficaria truncada. Não se trata de uma simples adição como se adicionássemos a imagem à palavra, e sim de uma presença enriquecedora da Palavra de Deus. Daí o costume do incensamento não só dos livros sagrados e fiéis presentes, mas também sobre os ícones, como se fosse destacada a unidade da Igreja terrestre, concretizada nos fiéis que ali se encontram, com a Igreja celeste, figurada nos diversos ícones.

De acordo com Sáenz, “convém honrar sempre as imagens na oração e durante as vigílias (...) confessando as faltas e pedindo perdão dos pecados”18. No hino aos Querubins: “Representando misticamente os Querubins, e cantando o hino de louvor à Santíssima e vivificante Trindade, afastemos de nós todas as preocupações deste mundo”19, expressa-se a nossa participação misteriosa na liturgia eterna celebrada por Jesus Cristo.

De acordo com Evdokimov, no ícone da liturgia eterna a assembléia de anjos circunda o Cristo Sacerdote. Os fiéis representam misteriosamente os anjos, são ícones vivos, angelofanias, lugar humano do mistério angélico de adoração e oração. Nessa grandiosa sinfonia, o fiel que contempla os ícones, vê neles os seus companheiros maiores: patriarcas, apóstolos, mártires e santos, como seres bem presentes e com eles participa no mistério20. Um hino aos anjos canta: “Em teus santos ícones, contemplamos os tabernáculos celestes e exultamos de uma puríssima alegria”21.

Os ícones não estão para a decoração dos templos ou igrejas, mas para a oração. O oriente considera-os como um de seus sacramentais. Todo ícone passa por um ritual de consagração antes de exercer sua função litúrgica na Igreja e ser revestido do seu mistério teofânico. O que o evangelho nos comunica com as palavras, o ícone nos anuncia através de suas cores e traços. Às vezes em uma cena iconográfica é possível averiguar certa sinopse do Antigo e Novo Testamento no que se refere às ideias principais.

João Damasceno assim confessa:

Quando meus pensamentos me atormentam e me impedem de saborear a leitura, vou à Igreja... minha vista é cativada e incita minha alma a louvar a Deus. Considerando a valentia do mártir... seu ardor me abrasa... Caio por terra e me volto ao

18 cf. SÁENZ, Alfredo, op.cit.p. 298.19 mISSAL BIZANTINO. Divina Liturgia de São João Crisóstomo. Curitiba: 1999, p. 47.20 cf. EVDOKImOV, Pavel, 1981, op.cit. p. 180.21 vide,original: Nelle Tue sante ícone noi contempliamo i tabernacoli celesti ed esultiamo di una

gioia puríssima (...). id.p. 180.

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céu para adorar e rogar a Deus mediante a intercessão de um mártir22.

A teologia litúrgica da presença, afirmada no ritual de consagração é que distingue o ícone de um quadro de tema religioso. É uma imagem sacra, cujo lugar próprio é o culto. À semelhança da palavra, o ícone é parte integrante da liturgia.

Segundo Sáenz, o ícone se integra na liturgia e esta se condensa na Palavra e na Eucaristia. “O evangelho, a Eucaristia e o ícone são as três principais vias pelas quais Deus chega até nós e nós chegamos até Deus”23. . O ícone apóia-se na palavra e ambos aproximam os fiéis ao espaço e tempo a ser comemorado e os fazem contemporâneos de Cristo e de seus mistérios. O ícone vem ser para a Igreja do Oriente, uma poderosa forma de predicação e expressão dos dogmas e está submetido às regras transcendentes da visão eclesial.

Na liturgia os ícones não contém uma significação meramente didática, mas principalmente mistérica, ou seja, mistagógica; introduzem o fiel nos mistérios de Cristo, principalmente no da Encarnação. O ícone é o espelho no qual se reflete o pensamento, o louvor e o dogma da Igreja.

Particularmente, o culto e os ícones da mãe de Deus se expandiram após o Concílio de Éfeso (431), o qual proclamou o dogma da maternidade divina da Virgem maria. Desde então, as Igrejas orientais bizantinas, ortodoxas ou católicas multiplicam suas representações marianas: na arquitetura dos templos, na arte, na teologia, nos hinos e, principalmente na liturgia24.

4.1. A Veneração do ícone da Mãe de Deus na Liturgia Bizantina

Sabe-se que desde a infância e, principalmente, durante a Paixão e morte de Jesus Cristo, a Virgem maria sempre esteve ao lado do Filho amado. Suportou tudo calada. É também, por este lugar relevante que a Santíssima Virgem ocupou na vida de Jesus25, que a liturgia oferece-lhe um lugar de relevo. Arbex concorda com Kniazeff e defende que, se a celebração da Divina Liturgia faz memória do sofrimento de Jesus no Calvário e sua mãe esteve presente nele de forma

22 vide original: Quando i miei pensieri mi torturano e m’impediscono di gustare la lettura, vado in chiesa... La mia vista è atratta e porta la mia anima a lodare Dio. Contemplo il coraggio del martire... il suo ardore m’infiamma... Cado a terra per adorare e pregare Dio per l’intercessione del martire. DAmASCENO, João, apud. EVDOKImOV, Pavel, 1981, op.cit. pp.182-183.

23 SÁENZ, Alfredo, op.cit.p. 305.24 cf. DUARTE, Adélio Damasceno, op. cit. pp. 201-203.25 KNIAZEFF, Alexis. La Madre di Dio nella Chiesa ortodossa. milano: San Paolo, 1993. p. 32.

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explicita, então convém que ela ocupe na Liturgia um lugar protuberante igual àquele que foi o lugar dela ao pé da Cruz26. Por isso encontramos nos iconostáses das igrejas, a Virgem maria ocupando o lado esquerdo da porta central e Cristo, o lado direito. Toda a excelência atribuída à mãe de Deus deve-se a sua participação nos mistérios de Jesus Cristo.

Em todos os ofícios litúrgicos bizantinos a Virgem maria é venerada como a Theotokos – mãe de Deus. Ela é a cheia de graça antes e após a aparição e anunciação do anjo. maria é a toda santa27. Para expressar esta ideia da plena santificação da mãe de Deus, a Igreja bizantina utiliza a palavra grega panaghia, cuja etimologia significa: pan (todo) e aghia (santa) que resulta no título: Toda Santa.

Segundo Cervera, na liturgia ortodoxa, a Virgem maria está presente tanto nas orações da liturgia das horas quanto na celebração eucarística e nas festas do ano litúrgico. Presença que se reveste de uma riqueza teológica e uma harmonia doutrinal, mesmo que muitas vezes careça de uma sistematização esclarecedora28.

O calendário litúrgico bizantino também é marcado pela forte presença mariana. O calendário inicia e conclui com uma festa dedicada à mãe de Deus. Inicia com a festa da Natividade da Virgem maria (08 de setembro) e termina com a festa da Dormição29 (15 de agosto). Ao todo são doze festas presentes no calendário bizantino, todas com seus significados teológicos manifestos nos ícones. Destas festas, cinco são marianas30. Além das festas do calendário geral, as festas marianas mais conhecidas são aquelas em que se veneram determinados ícones, que podem ser locais ou mesmo conhecidos em toda a Igreja. Geralmente estão ligados a aparições ou milagres alcançados pelo povo pela intercessão da Virgem31.

Os hinos litúrgicos também são influenciados pela iconografia. Neles, a Virgem Santíssima é venerada com altos graus de dignidade.

Na verdade é justo proclamar-vos bem-aventurada, ó gloriosa e puríssima mãe de Deus. Nós vos aclamamos porque a vossa dignidade excede à dos Querubins e a vossa glória é incomparavelmente maior que a dos Serafins. Porque Vós, Imaculada, gerastes o Verbo e sois verdadeiramente a mãe de Deus32.

26 cf.ARBEX, Pedro, 1998, op.cit. p. 34.27 cf. KNIAZEFF, Alexis, op.cit. p. 104 ss.28 CERVERA CASTELLANO, Jesús. El mistério de María en la Iglesia ortodoxa: Doctrina y testimonio

de Pablo Evdokimov.(artigo) Revista de espiritualidade, 1977, p. 264.29 Na tradição ocidental, denomina-se Assunção.30 KNIAZEFF, Alexis, op.cit. p. 25.31 ibid. p. 26.32 mISSAL BIZANTINO. Divina Liturgia de São João Crisóstomo. Curitiba: 1999, p. 65.

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Para os cristãos orientais, a fé na soberania da Virgem maria é absoluta sobre os seres humanos, o universo e demais seres celestes. Na liturgia, o hino à Theotokos proclama: vossa dignidade excede a dos Querubins, ou seja, é mais venerada que os querubins. Isto é mencionado por celebrar a santidade da Virgem maria, a sua maternidade divina, seu parto virginal e a sua exaltação no reino da glória. Toda a igreja reunida canta este hino em louvor as perenes intercessões da Santíssima Virgem diante de Deus em beneficio dos cristãos33. Esta onipresença da mãe de Deus, assim como a sua glorificação por parte da Igreja, que supera muito aquela glorificação que a Igreja atribui aos santos e anjos, deve ser considerada pela mariologia oriental como um fato dogmático34.

mesmo na hinologia, a iconografia exerce sua influência, pois nada pode ser entendido individualmente, mas tudo em intima relação; sem o ícone ficaria truncada a proclamação do mistério comemorado pela Igreja. Entenda-se, que, de certa forma, os ícones também compõem os hinos litúrgicos. O ícone está para o canto, assim como o canto está para o ícone.

Segundo Kniazeff, a liturgia mariana bizantina utiliza-se muito da rica iconografia poética do salmo 44 (45). A Igreja oriental se serve de versos e imagens isoladas deste salmo para falar do posto da Virgem maria no reino da glória, da sua obediência à palavra de Deus, da sua veneração por todas as gerações que lhe proclamam bem aventurada35.

O ícone é mais do que uma imagem religiosa, é verdadeiramente arte sagrada, que tem um lugar bem determinado no culto litúrgico e na devoção privada. É uma confissão de verdades religiosas e não apenas uma arte que ilustra a Sagrada Escritura. É uma linguagem equivalente àquela que corresponde à pregação evangélica, assim como os textos litúrgicos36.

O conteúdo da Sagrada Escritura é transmitido ao ícone não sob a forma de um ensino teórico, mas de maneira litúrgica, isto é, de modo vivo, dirigindo-se a todas as faculdades do homem. A verdade contida na Escritura nos é transmitida à luz de toda a experiência espiritual da Igreja e da sua Tradição37.

De acordo com Donadeo, a iconografia é uma forma de expressão fácil e mais direta, que nos sensibiliza, podendo mostrar de maneira concisa todo o conjunto da liturgia de uma festa ou fixar a atenção sobre o conjunto de um mistério38.

33 op.cit. p. 62.34 KNIAZEFF, Alexis, op.cit. p. 27.35 cf. KNIAZEFF, Alexis,op.cit. p. 167.36 cf. DONADEO, maria. Ícones da mãe de Deus. São Paulo: Paulinas, 1997. pp. 11-12.37 OUSPENSKY, L. apud. DONADEO, maria, 1997, op.cit. p. 12.38 id. p. 12.

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Os ícones marianos são de uma beleza esplendida. Conseguem exprimir harmoniosamente o indizível nexo das naturezas do Verbo que se vislumbram na Theotokos. São imagens que nos ajudam a rezar, que assumem a economia divina, que convidam à transfiguração, até mesmo à divinização, meta da vida humana que a teologia oriental recorda com insistência39.

Os ícones da Virgem maria são especiais para todos os fieis que rezam diante dela, louvando-a pelos seus esplendorosos privilégios, e suplicando-a em todas as necessidades, confiantes da sua eficaz mediação junto ao único mediador – seu Filho Jesus Cristo.

5. A TEOLOGIA ICOnOGRÁFICA MARIAnA

A teologia oriental parte sempre de uma antropologia cristã: o homem é imagem de Deus; a santidade é o processo que tende a converter a imagem em absoluta semelhança. Se o cristão é semelhante a Deus e os santos lhe são muito mais semelhantes, a mãe de Deus o é acima de todos. Desde os primórdios da antropologia cristã, a Virgem maria aparece como o esplendor da natureza humana e o arquétipo feminino: virgem, mãe e esposa40.

Para Cervera, a liturgia identifica a Virgem como o lugar da Sabedoria de Deus e glorifica nela o objeto mesmo da criação divina. maria se converte na figura arquetipica do feminino com sua função especifica na história humana e no processo de salvação como órgão receptivo espiritual da natureza humana. Na Virgem conflui o mistério da receptividade da salvação. Revestida de sol, é figura da Igreja e da Jerusalém celeste. É a mulher que dá sua própria carne e sangue para engendrar o Filho de Deus41. Expressa ainda a absoluta liberdade que a humanidade pode ter com Deus: dizer sim ou não. Cervera cita que Evdokimov inspirando-se em Bulgakov articula que é Deus quem pergunta à humanidade se tem sede de salvação. Em nome de todos, a Virgem consente e diz seu sim, condição objetiva indispensável para o mistério da Encarnação que Deus realiza sem forçar a liberdade humana. A Virgem é o modelo e a expressão cabal da santidade humana e feminina. Cervera observa que, se o Espírito é a expressão da santidade divina, a Theotokos, receptáculo da sua presença é a síntese da santidade humana42.

39 ibid. p. 14.40 EVDOKImOV, Pablo. apud. CERVERA, Jesús Castellano, op.cit.p. 255.41 CERVERA, Jesús Castellano, op.cit.pp. 255-256.42 ibid. pp. 256-257.

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Quando tratamos da teologia mariana oriental, a grande dificuldade é a falta de sistematização semelhante à que se tem na mariologia ocidental. A teologia oriental despreza a excessiva curiosidade e explicação. No entanto não se pode negar que há uma sobriedade dogmática a respeito do mistério da Virgem na teologia dos Padres da Igreja e na liturgia. Segundo Cervera, a falta de uma precisão dogmática está compensada pela tradição patrística e litúrgica que chama a atenção pela riqueza extraordinária da doxologia mariana:

A veneração litúrgica da mãe de Deus destaca o aspecto íntimo, misterioso, escondido. A escassez de referências da Escritura explica sua ausência na pregação apostólica. A origem “apócrifa” da Apresentação no templo e da Assunção é análoga à iconografia que por cima do naturalismo histórico, designa o mistério que só a contemplação apostólica é capaz de descobrir43.

Como já foi observado, há uma conexão entre a teologia e a iconografia. Para Evdokimov, a teologia é refletida na iconografia. A ortodoxia plasma em seus ícones a figura da mãe de Deus sempre acompanhada de seu Filho. Para Evdokimov, só o título Theotokos já contém toda a economia da salvação44. De acordo com este autor, a Virgem maria é o modelo da Igreja: “O ícone da Theotokos é uma expressão do mistério da Igreja, da comunhão entre Deus e o homem, do divino com o humano”45.

Segundo Spidlik, o culto aos ícones marianos na tradição das Igrejas Orientais é um fato que não precisa de provas. Na Rússia, antes da revolução, eram venerados cerca de 1000 ícones marianos. Ao menos 230 dias no ano eram oficialmente consagrados ao seu culto por todo o vasto território. Aproximadamente um terço destes ícones eram considerados milagrosos46.

De acordo com Koren, o próprio nome dado aos ícones já revela a teologia existente que o oriente atribui, ou seja, o pensamento teológico manifesto no sentimento religioso do povo. Alguns títulos: Novo Céu; Doadora de Deus; Sarça Ardente; muro Indestrutível, Fonte Restauradora e Vivificante, etc47.

Do ponto de vista teológico, para Spidlik, duas questões se apresentam fortemente ao culto mariano: a intensidade do culto e a justificação do culto aos

43 ibid. p. 259.44 cf. EVDOKImOV, Paul. Panagion et Panagia. (Art) in:Coletânea de artigos: mariologia Oriental. (sc),

1970, p. 66; também CERVERA, Jesús Castellano, op. cit. p. 260.45 id.46 SPIDLÍK, Tomás, op.cit. p. 186.47 KOREN, Antonio. apud. SPIDLIK, Tomas; GUAITA, Giovanni; CAmPATELLI, maria. Testi mariani del

Secondo millennio: Autori dell’area russa, secc XI-XX. Roma: Città Nuova, 2000, p. 529.

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ícones milagrosos, pois para Spídlik há uma incógnita: é compreensível que uma determinada imagem, por razões psicológicas, seja mais cara a um grupo de fé, facilite mais a devoção, mas, por outro lado, segundo o autor, poder-se-ia perceber como forçar uma ilusão, atribuir a uma imagem particular uma força milagrosa superior àquela de outra imagem48. Este seria um problema que traz uma duvida precisamente pelo motivo de os ícones serem produzidos praticamente do mesmo material e haver distinções entre eles, um ser mais eficaz que o outro, poder-se-ia dizer. No entanto, posiciona-se Spidlik, precisamos afrontar com serenidade este problema para entender como se formou esta concepção na longa tradição da Igreja Oriental. Nisto notaremos que o que está por detrás é a necessidade de ver a divina humanidade de Cristo na sua plena dimensão cósmica. É o que vai resultar no caractere escatológico do ícone49. De acordo com Spidlik, como na pessoa humana a imagem de Deus não é perfeita e conserva sempre uma abertura escatológica, a mesma coisa acontece no ícone, pintado sobre a madeira, não pode mais ser considerado como feito, (acabado). Seu ser é dinâmico, deve continuamente crescer50.

A arte iconográfica é uma atividade natural do homem, corresponde a sua vocação cósmica. O homem é chamado a conduzir o mundo a sua perfeição. Criado pela palavra criadora do Verbo, o mundo, na sua parusia deverá exprimi-la em um modo todo explícito, deverá falar, anunciar claramente o seu sinal divino. Em todas as formas visíveis deverá aparecer envolto de Cristo51.

Para Florenskij, “a iconografia é uma imagem do mundo futuro, pois permite ao homem saltar sobre o tempo e ver, embora hesitante, as imagens como um enigma no espelho do mundo futuro”52. Eleva a mente do homem a Deus; um trânsito humano para a realidade divina, ou seja, possuem um caráter dinâmico. O que santifica ou faz um ícone ser milagroso é a oração que o povo e o iconógrafo lhe atribuem. O ícone está para ajudar o povo sobre tudo na difícil passagem, do conteúdo visível e inteligível à autêntica visão espiritual, isto é, ao contato com Deus53.

48 SPIDLÍK, Tomás,op.cit. p.187.49 ibid. p. 188.50 vide,original: Come la persona umana l’immagine di Dio non è mai perfetta e conserva sempre

un’apertura escatologica, così anche l’icona, dipinta sul legno, non può essere considerata come “fatta”. Il suo essere è dinamico, deve continuamente “crescere”. SPIDLÍK, Tomás, op.cit. pp. 188-189.

51 id. p. 189.52 vide,original: L’icona è un’immagine del mondo venturo; essa... consente di saltare sopra il tempo

e di vedere, sia pur vacillanti, le immagini – come in enigmi nello specchio – del mondo venturo. FLORENSKIJ, Pavel. Le porte regali: Saggio sull’icona. milano, Adelphi,1981, p. 129.

53 SPIDLÍK, Tomás, op.cit. pp.190-191.

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Para Spidlik, a força da oração faz com que a madeira pintada torne-se um órgão vivo, um lugar de encontro entre Deus e os homens. A força milagrosa do ícone depende da intensidade deste encontro e da oração da Igreja, portanto, os ícones são santificados por meio do culto54. A função do ícone é no senso espiritual, restituir aos cegos à capacidade de ver, isto é, o deve oferecer aos olhos a visão espiritual por meio de suas formas visíveis55.

A principal função do ícone da mãe de Deus é conduzir o cristão ao conhecimento do Filho de Deus. A Theotokos é a Virgem da Revelação, o protótipo da Igreja que gera e mostra a todos o Cristo que veio ao mundo para nos trazer a salvação56.

6. O PAPEL DA VIRGEM MARIA nA ECOnOMIA DA SALVAÇãO

mencionamos anteriormente que para Evdokimov: “só o nome Theotokos, já contém em si toda a economia da salvação”57. De acordo com Cervera: “sua proteção [da Virgem] que cobria o menino Jesus, cobre agora todo o universo e todos os homens”58. Também já aludimos que os ícones marianos estão sempre subordinados aos temas cristológicos e que a iconografia da Virgem maria depende dos ícones de Jesus Cristo. Por isso, ao referir-se à participação da mãe de Deus na economia da salvação, quer-se expressar sua participação pela carne doada ao Filho. Jesus Cristo assim como carregava consigo a natureza divina, simultaneamente carregava a natureza humana herdada da Virgem maria. Neste sentido entendemos a sua participação na obra salvífica de Cristo. maria participa na medida em que se torna a Theotokos, por isso é concebida como “corredentora”.

Segundo Damasceno, a incondicional centralidade de Jesus Cristo na economia da salvação e a total dependência da mãe de Deus em relação a Ele, são princípios teológicos inequivocamente professados pela Igreja indivisa desde as primeiras horas do cristianismo59. Quando, em Éfeso, os padres conciliares estavam reunidos para definir contra Nestório que na única pessoa de Jesus Cristo, subsistem em perfeita harmonia, sem se confundirem e sem se anularem, as duas naturezas de Cristo, definiram também a maternidade divina da Virgem maria60. De acordo com Duarte, a recepção da decisão do Concílio de Éfeso e da 54 ibid. p. 192.55 ibid. p. 198.56 DUARTE DAmASCENO, Adélio. Ícones. Belo horizonte: FUmARC, 2003. p. 205.57 CERVERA, Jesús Castellano, op.cit. p. 260.58 id.59 cf. DUARTE, Adélio Damasceno, op.cit. p. 200.60 ibid. p. 201.

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declaração da Virgem como Theotokos foi de muito júbilo por parte dos fieis: “Ergueram-se gritos de alegria. Os padres foram acompanhados às suas casas à luz de tochas, através das ruas faiscantes de luzes. A cidade de Diana Efésia se tornava agora a cidade de maria”61. Para a teologia e a piedade popular bizantina, estes privilégios da Theotokos fazem-na ocupar um lugar de relevo na economia da salvação. Damasceno ressalta que, na introdução da Encíclica Redemptoris Mater, sobre a Bem-Aventurada Virgem maria na vida Igreja que está a caminho, evoca a Constituição Dogmática Lumem Gentium 52, para justificar o lugar especial que a mãe de Deus ocupa na história da salvação:

A mãe do Redentor tem um lugar bem preciso no plano da salvação, porque, ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido duma mulher, nascido sob a Lei. A fim de resgatar os que estavam sujeitos à Lei e para que nós recebêssemos a adoção de filhos. E porque vós sóis filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abbá! Pai! (Gl 4, 4-6)62.

De modo peculiar, a iconografia mariana procura explicitar este lugar que a mãe de Deus ocupa no projeto de Deus para a salvação da humanidade, inscrevendo em cada ícone o título – Theotokos. A participação da Virgem maria na economia da salvação não é somente atestada pelos autores orientais. O próprio Concílio Vaticano II na Constituição Dogmática Lumen Gentium 56, confirma que tanto o Antigo quanto o Novo Testamento e a venerada Tradição mostram o múnus da mãe do Salvador no projeto salvífico de Deus e a apresentam como digna de nossa consideração:

[...] Por isso é com razão que os Santos Padres julgam que Deus não se serviu de maria como de instrumento meramente passivo, mas julgam-na cooperando para a salvação humana com livre fé e obediência. Pois ela, como diz Santo Irineu, obedecendo, se fez causa de salvação tanto para si como para todo o gênero humano63.

O lugar que a Virgem maria ocupa imediatamente após Jesus Cristo, traduz coerentemente a relação existente entre o Senhor e a Senhora acima de todos os santos e sua qualidade de superbendita e gloriosa sobre todas as criaturas, mesmo as angélicas. A missão da mãe de Deus na economia da salvação é

61 ibid. p. 202.62 JOÃO PAULO II. Redemptoris Mater. Carta Encíclica sobre a Bem Aventurada Virgem maria na vida

da Igreja que está a caminho (25/03/1987). São Paulo: Paulinas, 1987.63 PAULO VI. Lumen Gentium: Constituição Dogmática sobre a luz dos Povos (21/11/1964). in.

COmPÊNDIO DO VATICANO II. Petrópolis: Vozes, 1983, pp. 105-106.

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manifesto no hino Akáthistos 09: “Salve, Senhora do mundo; Salve maria a nós todos; Salve, ó única imaculada e bela entre as mulheres (...)”64.Na verdade, se pode dizer que todo o hino Akáthistos não é outra coisa se não um louvor a maria mãe do Salvador: “Salve tu, pela qual resplandece a glória, Salve tu, pela qual cessa a maldição; Salve ó reabilitação do Adão decaído; Salve ó redenção das lagrimas de Eva (...)”65.

Segundo Spiteris, a mariologia bizantina é parte orgânica da cristologia e da soteriologia. A salvação na sua globalidade, não é concebível na tradição oriental sem a contribuição pessoal da Virgem maria. Esta é vista sempre, inseparavelmente ligada com o Verbo encarnado da qual foi à mãe. Eis porque, nos Padres da Igreja, na liturgia e na teologia, o tema de maria colaboradora na salvação (corredentora) se confunde com o título Theotokos. A Virgem maria é depois do mediador (Jesus Cristo) a mediadora de todo o mundo66.

O papel essencial que a mãe de Deus ocupa na obra da salvação deriva do significado que a tradição oriental confere ao termo salvação. O axioma último do destino do homem, da sua vida espiritual, da sua relação com Deus não está no prêmio do merecimento, mas no fato que Deus torna-se homem para que o homem se torne deus. O homem torna-se deus porque Deus se fez homem. Neste tornar-se é que se põe a mediação ontológica da mãe de Deus. É a Virgem maria que introduz Deus na humanidade. A Theotokos é a mediadora de comunhão do homem com Deus67.

Na festa da Anunciação, a liturgia bizantina canta: “hoje teve início a nossa salvação, e a manifestação do eterno no mistério: o Filho de Deus torna-se Filho da Virgem e Gabriel anuncia a graça. Com ele aclamamos a mãe de Deus: Ave cheia de graça, o Senhor está contigo”68. Em outra ocasião, a liturgia canta: “Ó mãe de Deus que gerou na carne o Filho e Verbo de Deus, e o tornou conhecido. Por isso, ó mãe de Deus, nós somos divinizados por tua intercessão, nós te aclamamos : Salve o esperança dos cristãos”69.

A grandeza de maria, segundo Spiteris, não incide no fato dela ter exercido todas as virtudes, mas, sobretudo na sua colaboração com Deus. O seu consentimento à Encarnação do Verbo foi determinante para que este evento

64 vide, original: Gioisci, Sovrana del mondo; gioisci, maria, Signora di noi tutti; gioisci, o unica immacolata e bella tra le donne (...). cf. hINO AKÁThISTOS, Ode 09. ARTIOLI, maria Benedetta (Trad.), op.cit. p. 1484.

65 cf. Todo o hino Akathistos. ARTIOLI, maria Benedetta (Trad.), op.cit. p. 1476 ss.66 SPITERIS, Yannis. Salvezza e Peccato nella tradizione orientale. Bologna: Dehoniane, 2006, p. 200.67 ibid. pp. 200-201.68 DONADEO, maria. Preghiere bizantina ala Madre di Dio. Brescia: morceliana, 1980, p. 58.69 SPITERIS, Yannis, op. cit. p. 201.

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pudesse acontecer70. De acordo com Cabasilas, a Virgem é justiça de Deus realizada. A justificação é própria de Cristo, mas maria está totalmente unida a ele. O que se pode aplicar à Theotokos é o que se afirma de Jesus Cristo71. Cabasilas sintetiza sua reflexão teológica sobre o posto da Virgem maria na economia da salvação, ressaltando Jesus Cristo como causa e sua mãe co-causa da nossa salvação72.

Para Palamás, a mãe de Deus, junto com seu Filho, representa o escopo final dos desígnios de Deus, porque, aquilo que Jesus Cristo é por natureza, a Virgem maria é por graça73. Segundo Spiteris, para Palamás como para Cabasilas, Jesus Cristo é o salvador de todos os criados visíveis e invisíveis. Tudo deriva dele na ordem de ser e da santificação, isto é, na comunhão transfigurante com Deus74.

A Virgem maria é inseparável do Filho, porque, o que se alude a Cristo se aplica a sua mãe. maria é totalmente cristificada por se tornar uma só coisa com o Filho Jesus.

COnCLUSãO

O presente artigo buscou apresentar aos leitores e estudantes da teologia a concepção cristã oriental acerca da Santíssima Virgem maria e seu papel na economia da salvação representado em uma das suas expressões mais bela e visível: a iconografia. Os ícones revelam para nós a teologia que se esconde por trás de suas cores, símbolos e traços.

A mariologia oriental não é autônoma, mas profundamente cristológicaa, eclesiológica e escatológica. O “sim” da Theotokos foi condição indispensável para a Encarnação, para que Deus armasse sua tenda e habitasse no meio de nós. Desde os primórdios deste evento salvífico, o coração dos primeiros cristãos já fora tomado pelo desejo de expressar, representar o tamanho mistério que os envolvia e enchia de temor. No Oriente cristão, uma das formas de expressão deste temor a Deus, manifestou-se pelos sagrados ícones.

A função do ícone é auxiliar na contemplação orante, santificar os fiéis pela vista, ajudá-los a fixarem visivelmente o conteúdo manifesto verbalmente nos textos litúrgicos. Os ícones não foram objetivados para a decoração dos templos ou igrejas, mas para a oração.

70 ibid.p. 208.71 ibid. p. 210.72 ibid. pp. 212.73 ibid.pp. 216-218.74 ibid. p.221.

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A honra atribuída aos ícones da mãe de Deus deve-se a sua participação nos mistérios de Jesus Cristo, por isso, os templos sagrados, a liturgia, a hinologia e a espiritualidade dos fiéis são influenciadas pela iconografia. Os ícones ajudam os fiéis a rezar.

Quando se fala da participação da mãe de Deus na economia da salvação, quer-se expressar sua participação pela carne doada ao Filho. Jesus Cristo assim como carregava consigo a natureza divina, também carregava a natureza humana herdada da Virgem maria. Neste sentido que a teologia oriental entende a participação da Virgem maria na obra salvífica de Cristo; participa na medida em que se torna a Theotokos, por isso é concebida como “corredentora da salvação”.

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Fontes Cirílicas

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AS FONTES CRISTÃS SOBRE JESUS*

THE CHRISTIAn SOURCES ABOUT JESUS

José maria melero martínez **

RESUMO: O artigo é uma apresentação das fontes históricas sobre Jesus de Nazaré: fontes sinóticas, fonte Q, fontes afins à gnose, fragmentos de evangelho com material sinótico ou joanino, evangelhos judeu-cristãos e outras fontes.

PALAVRAS-CHAVE: Fontes sinóticas; Fonte Q; Evangelhos Judeu Cristãos.

ABSTRACT: The article is a apresentation of the históric sources about Jesus of Nazareth. The sinoptic Gospels, the fonte Q, sources akin to gnose and fragments of the Gospel with sinoptic and johannines materials. The Jewish–Christian Gospels and other sources.

KEY WORDS: Sinoptic Gospels; Fonte Q; Gnose and Jewish–Christian Gospels.

* Este artigo foi possível graças à Bolsa de Pesquisa, concedida pela Igreja nacional espanhola de Santiago e montserrat

** José Maria Melero Martínez é professor pesquisador na Facultade de Educação de Albacete, da Universidade de Castilla–La mancha.

Artigos

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InTRODUÇãO

Para valorizar as fontes históricas sobre Jesus de Nazaré tem-se que considerar dois aspectos: sua proximidade ao Jesus histórico e sua independência.

O papel da literatura extracanonica para investigar a história do cristianismo primitivo e a história de Jesus tem sido e continua sendo discutido. Três posturas enfrentadas: 1) os escritos extracanonicos não podem fazer nenhum aporte considerável à investigação dos inicios (J. Gnilka e R. Schnackenburg1), 2) busca de ditos desconhecidos como complemento à imagem sinótica de Jesus (J. Jeremias2), 3) equiparação, em princípio, de fontes canônicas e extracanonicas na investigação sobre Jesus (J. m. Robinson, h. Köster, J. D. Crossan3)

Este artigo é uma breve apresentação das principais fontes e seu valor para pesquisa do Jesus histórico4 .

1. FOnTES SInóTICAS

a) o evangelho de marcos5.

1. O texto.

O Evmc é o evangelho mais antigo que se conserva, e vem a ser a fonte de mt e Lc. Teve presumivelmente varias edições.

2. Lugar e tempo de composição.

Escrito em Roma, a partir do ensino oral de Pedro por seu interprete João marcos (cf. 1 Pe 5, 13: marcos e Pedro em Roma). Encontramos no Evmc umas

1 GNILKA, J., Jesus de Nazarth . herder, Barcelona 1995; SChNACKENBURG, R., a persona di Gesù Cristo nei quattro Vangeli, Paideia, Brescia 1995.

2 JEREmIAS, J., Palabras desconhecidas de Jesús, Sígueme, Salamanca 1996 (5 ed.).3 ROBINSON, J. m., Gesù secondo il testimone più antico, Paideia, Brescia 2007; CROSSAN, J. D., Jesus:

vida de um campesino judío, herder, Barcelona 1994.4 4 ThEISEN, G–mERZ, A., El Jesus histórico, Sígueme, Salamanca 1999, especialmente as pp. 35–

81; SEGALLA, G., Sulle tracce di Gesù. a “Terza ricerca”, Cittadella Editrice, Assisi, 2006; PENNA, R., Le origini do cristianesimo, Carocci, Roma 2004, pp. 71–93; PENNA, R., Ambiente histórico–cultural de los orígenes del cristianismo, DDB, Bilbao 1994; PESCE, m., Le parole dimenticate di Gesù, Fondazione Lorenzo Valla–Arnoldo mondadori E ditore, milano 2006 (7 ed.); VAN VOORST, R. E, Gesù nelle fonti extrabiblique. Le antiche testimonianza sul mestre di Galilea, San Paolo, Roma 2004.

5 GNILKA, J. El evangelio según san Marcos, 2 vol. Sígueme, Salamanca 1988, 3ed; TAILOR, V., El evangelio según san Marcos, cristiandad, madrid 1980; mATEOS, J‐CAmAChO, F., EL evangelio de Marcos. Análisis lingüístico e comentario exegético, Ed. o Almendro‐Fundação É psilon, Córdoba‐madrid 1993.

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tradições palestinas de evidente colorido local junto a tradições prepaulinas helenísticas.

Esta combinação é compreensível em Antioquia. mc apareceu pelo ano 70, porque a guerra judeu–romana (66–74 d. C.) aconteceu no primeiro século.

3. fontes subjacentes.

O Evmc é um recompilador, porque reúne materiais da tradição escrita e oral com uma clara diversidade formal e teológica: uma história da paixão, antologias de relatos de milagres orais o escritos, tradições apocalípticas (mc 13), disputas , diálogos escolares (parábolas e ditos mc 4).

4. Modelação teológica.

O Evmc é um teólogo modelador. Cria um evangelho que se poderia definir como um relato da paixão com uma ampla introdução biográfica. à pessoa de Jesus. É um mistério que se vai desvelando progressivamente.

b) Fonte Q dos logia (ditos) 6.

1. O texto.

A denominada fonte Q dos logia (sigla Q, do alemão Quelle, fonte) é um documento cuja existência se introduziu para análise. É, portanto uma “hipótese literária aceita majoritariamente”, porque é facilmente compreensível e resolve muitos problemas literários sem criar outros novos. mt e Lc oferecem, junto ao material de mc, numerosos textos comuns, sobretudo sentenças, que ambos recolhem com independência entre si e que se encontrariam na fonte Q. com toda probabilidade, estava escrita em grego. Somente as passagens comuns de mt e Lc podem ser assinaladas com alguma segurança a Q, cuja ordem original aparece presumivelmente melhor conservada mais no segundo que no primeiro.

6 ROBINSON, J. m–hOFFmANN, P–KLOPPENBORG, J. S., El documiento Q,, Sígueme–Peeters Publishers, Salamanca-Leuven 2002; GUIJARRO, S., Ditos primitivos de Jesús. Una introdución al “proto-evangelio de ditos Q”, Sígume, Salamanca 2004; VIDAL, S., a fonte Q, Sal Terrae, Santander 2010.

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2. Tradições recolhidas, gênero literário e contexto vital.

Q contem quase unicamente ditos de Jesus: sapienciais, proféticos e apocalípticos, ditos legais e normas comunitárias, também parábolas. Algumas procedem sem dúvida de logia arameus e se remontam portanto aos inicios da Tradição. Falta no Q o relato da paixão. É uma recopilação de sentenças que continha ensinos de Jesus. Os que as recolheram e difundiram foram carismáticos itinerantes do cristianismo primitivo, continuadores do estilo de vida e da predicação de Jesus. O núcleo da mensagem era a chamada ao seguimento de Jesus diante da chegada do reino de Deus. Jesus, o Filho de Deus, é o mestre autorizado que ensina a vontade de Deus e é esperado em seu retorno como Filho do homem e juiz escatológico. Q interpreta a morte de Jesus como o destino de um profeta, um dos muitos mensageiros da Sabedoria que foram rechaçados.

3. Tempo e lugar de aparição.

Antes da guerra judaica e da destruição do templo, porque espera a vinda do Filho do homem em ambiente de paz e recolhe a ameaça de que Deus abandone o templo. Têm claras referencias à crise de Calígula já superada (39/40 d. C.). A imagem dos fariseus como perseguidores dos cristãos pode ter sido escrito historicamente entre os anos 40 e princípios dos 50. Q apareceu provavelmente na Palestina. Está formado por coleções menores.

4. A fonte dos logia e o Jesus histórico.

Q é sem dúvida a fonte mais importante para a reconstrução dos ensinos de Jesus. Porém, as tradições autenticas de Jesus se encontram também nas palavras de gerações posteriores. Por isso as tradições Q permitem reconstruir imagens díspares de Jesus. Algum autor o considera um filósofo cínico galileu, outro um pregador apocalíptico.

c) O evangelho de mateus7.

1. O texto.

O Evmt se conserva a partir do ano 200 em papiros e em citações de Padres da Igreja. A integridade do texto redigido em grego não se questiona apesar da opinião de Papias e Irineu de que mt foi escrito originariamente em aramaico (ou hebraico).7 LUZ, U., El evangelio según san Mateo, 4 vol., Sígueme, Salamanca 1993‐2005.

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2. fontes e estrutura.

mt pressupõe mc, a fonte dos logia e material heterogêneo. mt segue sobretudo a mc, porém dentro de mc 1–3 fez algumas reagrupações por temas (reunião da atividade de Jesus em mt 8–9); mt inserir cinco grandes discursos: sermão da montanha (5–7), discurso da missão (9, 35–10, 42), discurso parabólico (13), discurso comunitário (18) e discurso escatológico (23–25).

3. Tempo e lugar de aparição.

El Evmt pressupõe como um fato passado a destruição do templo. O mais provável é a aparição nos anos 80 o a mais tardar nos anos 90 como data mais tardia.

Pode aparecer em território de Damasco o a Decápole.

4. Contexto vital.

A forte polêmica de Jesus contra às autoridades judaicas reflete o contato real do autor com o judaísmo.

5. A imagem mateana de Jesus e o Jesus histórico.

mt destaca a grandeza de Jesus mais que mc. Apresenta sua vida como plenitude da lei e dos profetas. A vida e a conduta de Jesus como cumprimento dos vaticínios proféticos. Jesus observa a torá em sua conduta, sobretudo sua interpretação autêntica. mt apresenta Jesus como mestre que ensina a vontade de Deus em alguns discursos menores e especialmente nos cinco discursos maiores. mt interpretou para seu tempo as palavras de Jesus contidas nos discursos, transpondo-as a um novo contexto e submetendo- as a uma elaboração redacional.

d) O evangelho de Lucas8.

1. Texto, fontes e estrutura.

Lucas utiliza como fonte além de mc e Q, um abundante material especial que abarca quase a metade do evangelho.

A longa viagem (9, 51–19, 27) se baseia claramente no capítulo 10 de mc.

8 BOVON, F., El evangelio según Lucas, 3 vol. Sígueme, Salamanca 1995‐2004; SABOURIN, L., El evangelio de Lucas, Edicep, Valencia 2000.

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2. o autor.

Lucas médico e companheiro de viagem de Paulo apresentado em Fm 24; Col 4, 14; Tim 4, 11, escreveu, segundo a tradição eclesial, o evangelho que leva seu nome e os Atos dos Apóstolos. Frente a esta opinião defendida ainda hoje por alguns, muitos autores assinalam numerosos contrastes entre a exposição de Atos e as cartas paulinas e por isso concluem que é indubitável que o desconhecido autor da obra lucana não foi companheiro de Paulo.

3. Tempo e lugar de aparição.

Entre o ano 70 d. C. e o 140/150 d. C. sua independência do Evmt sugere a primeira metade deste espaço de tempo. Lugar uma grande cidade ao oeste de Palestina.

4. O evangelho de Lucas e o Jesus histórico.

Lc apresenta a Jesus como o salvador ungido pelo Espírito que em nome de Deus acolhe os excluídos e lhes anuncia a salvação. Atenção aos pobres, aos coletores, pecadores, às mulheres, aos samaritanos. Lc utilizou as tradições seletivamente e as moldou ao seu próprio esquema.

2. FOnTES AFInS à GnOSE.

a) O evangelho de João9.

1. O texto e sua integridade.

O EvJo está muito bem documentado por vários papiros do século II. O texto sempre circulou na versão atual.

2. Fontes e tradições elaboradas.

O autor difere dos sinópticos na articulação da atividade de Jesus, costuma formar conjuntos narrativos amplos, adapta a forma evangélica, e isto faz pensar que conhecia ao menos um evangelho sinóptico.

Pode se detectar as seguintes fontes escritas: uma tradição da paixão e da páscoa independente dos sinópticos, uma antologia que enfatiza o fator religioso

9 SChNACKENBURG, R., El evangelio de Juan, 4 vol, herder, Barcelona 1980‐1988

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mais que os sinópticos, a denominada fonte dos semeia (signos) que contem sete milagres narrados em Jo 1–11 e outros materiais narrativos.

Permanece sem solucionar a questão dos antecedentes das grandes composições de discursos e diálogos.

3. Autor, tempo e lugar.

Os editores do evangelho mencionaram em 21, 24 ao discípulo amado como autor do evangelho e parecem estar interessados em seu anonimato literário. Um discípulo de Jesus, presumivelmente não demasiado conhecido, que sobreviveu em muito tempo a Pedro. A tradição da Igreja antiga encontra em João Zebedeu ao autor do evangelho (Irineu, Eusébio).

Tempo de aparição ao final do século I d. C., presumivelmente no ano 98.

Lugar. Os testemunhos mais antigos apontam para o Egito, a recepção dos inícios e significativa da Ásia menor situa em Éfeso o nascimento; outros sugerem a aparição na Síria.

4. A imagem joanina de Jesus e o Jesus histórico.

O EvJo oferece a figura mais estilizada de Jesus sobre a base das premissas teológicas: fala e age como Revelador que é consciente de sua preexistência, porém que só pode ser conhecido e invocado como tal depois da Páscoa por obra do Espírito. Não carece de valor histórico; transmite em algumas passagens certos dados em contraste com os sinópticos que podem remontar-se a tradições antigas como: Pedro, André e Felipe que procedem de Betsaida (1, 44), processo judaico contra Jesus,(18, 19ss.); a morte de Jesus antes da Páscoa (18, 29; 19, 31).

b) O evangelho de Tomás (EvT)10

1. Texto.

hipólito (235) e Orígenes contam que grupos heterodoxos usavam “o evangelho segundo Tomás”. Este evangelho foi redescoberto em 1945 entre os manuscritos da biblioteca de Nag hammadi. Três papiros encontrados já no final do século XIX em Oxirrinco (POx1, 654 e 655) foram identificados posteriormente como fragmentos gregos do EvT.

2. Conteúdo e estrutura.10 ALCALÁ, m., El evangelio copto de Tomás, Sígueme, Salamanca 1989.

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O EvT contém 114 logia de Jesus, porém nenhum material narrativo e nenhuma referência a fatos de Jesus dentro da tradição das sentenças. Por gêneros literários inclui frases sapienciais, parábolas, textos legais, diálogos breves e palavras proféticas. A metade dos logia aproximadamente encontra paralelismo com os evangelhos canônicos.

3. Antiguidade e lugar de aparição

Tempo provável de aparição como mais tardio é o ano 140. A redação final parece ser posterior à destruição do templo 70 d. C. e se discute se o evangelho apareceu ainda no século I.

Relativo consenso ao lugar: Síria como sugere o nome do suposto autor, João Dídimo Tomás que figura somente em escritos de origem siro-oriental.

4. Antiguidade e independência das tradições do EvT.

Este escrito é, de todos os evangelhos extracanônicos, o que oferece mais vislumbres de probabilidade no que se refere à autonomia (independência dos evangelhos canônicos) e antiguidade de suas tradições. Os defensores da independência aduzem como argumentos o gênero literário, ou a ordem sucessiva dos logia e certas observações sobre a história da tradição de algumas sentenças.

Como antologia de ditos, o EvT é exponente de um dos gêneros literários mais antigos que transmitiram material jesuânico. Outras recopilações dos primeiros tempos (Q e a antologia que subjaza mc 4) se incorporaram aos evangelhos sinóticos e ficaram dissolvidas neles.

O EvT é o contraponto oriental à fonte ocidental dos logia, Q.

A sequencia dos logia do EvT é totalmente independente dos evangelhos sinóticos, o qual constitui um forte indicio de que os logia comuns não foram tomados deles. Os ditos que contem o EvT são em geral uma versão mais antiga, dentro da história das tradições, que as dos sinóticos.

5. Traços teológicos.

Jesus como Revelador: Jesus, o Vivente; uma antropologia dualista onde o mundo É desvalorizado, escatologia de apresente (o Reino do Pai ou dos céus) é uma realidade supratemporal, origem e fim do ser humano que se conhece a si

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mesmo; o seguimento como distanciamento do mundo; o EvT reflete uma gnose em estado nascente.

6. O EvT e o Jesus histórico.

Salta aos olhos uma grande relevância histórica das tradições que abarca que se Remontam à épocas das origens dos ditos cristãos primitivos.

Permite aclarar a préhistoria do material das sentencias.

Diversas investigações intentam descobrir ditos autênticos de Jesus entre os logia. Outros veem que o processo de transmissão dos ditos do EvT a partir de Jesus, processo independente dos sinóticos, deve ser comparado globalmente com o processo sinótico. Seu começo: a pregação de Jesus.

c) Os evangelhos gnósticos dialogais11.

Constituem um desenvolvimento ulterior das recopilações de ditos cristãos primitivos, interpretam e adaptam material bastante antigo. São entre outros estes:

1. a carta de Santiago. Do princípios do s. II, é uma doutrina secreta que São Tiago e Pedro afirmam ter recebido do Senhor em forma de diálogo. Logia em sentido gnóstico, e frases que dão especial releve à paixão de Jesus e ao seguimento dos discípulos pelo caminho da cruz. Contém parábolas desconhecidas de outras fontes.

2. Diálogos do Redentor é uma conversação do Soter com seus discípulos e discípulas, aparecida no s. II, que assimila material de várias fontes.

3. O evangelho dos egípcios (EvEG). Próximo à gnose, Jesus ensina a sua interlocutora Salomé uma sotereologia encratita (baseada na ascese sexual): somente quando as mulheres deixaram de alumbrar e o masculino e o feminino voltem a unificar-se, perderá a morte seu poder e será possível o conhecimento.

11 VIELhAUER, P., história de la literatura cristiana primitiva, Sígueme, Salamanca 1991, pp. 691‐694.

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3. FRAGMEnTOS DE EVAnGELHO COM MATERIAL SInóTICO OU JOânICO.

a) Papiro Egerton 2 (Evangelho de Egerton)12.

1. O texto

Duas folhas e meia fortemente danificadas, de um código desconhecido, fora, publicados pela primeira vez em 1935. Datados em torno do ano 200. Era um evangelho aglutinado de tradições fragmentarias e heterogêneas que concluia com um relato da paixão.

2. Conteúdo.

Um debate de Jesus com letrados e dirigentes. Oferece um claro perfil joanino e finaliza com a anotação sobre uma tentativa de apedrejar Jesus.

3. Discute-se a relação com os evangelhos canônicos e a antiguidade das tradições reelaboradas pelo papiro Egerton.

As posturas são: a) dependência de todos os evangelhos canônicos (J. Jeremias e outros), b) independência dos evangelhos canônicos (G. maieda, h. Köster e outro s), c) dependência literária do evangelho de Jo (C. h. Dodd).

4. Antiguidade e lugar de aparição.

Não se pode o fixar o tempo de redação.

O texto não surgiu em Palestina já que não mostra um conhecimento próximo das circunstancias.

b) O evangelho secreto de Marcos (Smc)13.

1. Texto.

Utilizado como leitura litúrgica em Alexandria. Promove uma gnose para cristãos benestantes.

12 Ibíd., pp. 691‐694.13 Ibid., pp. 669‐675.

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2. Conteúdo e estrutura.

Clemente cita uma só passagem completa do Smc: o relato da ressurreição de umjovem enterrado em um sepulcro em Betânia. Jesus lhe ensina o secreto do reino de Deus.

3. Podemos estabelecer como provável que os carpacratianos utilizavam em Alexandria (pelo ano 125–170) um Evmc “secreto” bastante extenso.

4. Relação deste SMc com o EvMc canônico é difícil de precisar, duas opiniões: a) Smc como uma expansão inicial de Evmc, b) uma reelaboração gnóstica de Evmc canônico, aparecida em o s. II. Assim indica a ênfase no caráter “secreto”.

5. Tampouco cabe obter de Smc novos conhecimentos sobre Jesus.

c) O evangelho de Pedro (EvPe).

1. O fragmento do evangelho de Pedro.

Era conhecido por referencias patrísticas, especialmente por uma carta do bispo Serapião de Antioquia (Eusébio, HistEccle 6, 12, 2–6). Algumas passagens dão margem à interpretações docetistas. Difundido na Síria pelo ano 200 d. C.

2. Conteúdo.

Relato da paixão de Jesus, desde o lava-mãos de Pilatos, a sepultura e a guarda no sepulcro, a ressurreição diante dos testemunhas, o encontro do sepulcro vazio pelas mulheres, o regresso dos discípulos a Galileia. Oferece um diálogo entre o narrador em primeira pessoa, Pedro e Jesus, que é a fim com mt 10, 16 e 2 Clem 5, 2–4.

3. Antiguidade e lugar de origem.

O mais provável é a primeira metade do s. II d. C.

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4. Antiguidade independência das tradições do EvPe.

Alguns autores falam de uma independência básica (A. von harnack) e outro s (T. Zahn), de uma total dependência.

muitos exegetas, seguindo m. Dibelius consideram demostrado que o EvPe pressupõe os quatro evangelhos canônicos, reproduz seu legado de memória e com ele o material oral e, sobretudo, se rege pelas tradições hermenêuticas do Antigo Testamento.

5. Informações sobre Jesus.

O valor histórico do EvPe é pequeno, mesmo que reconhecendo que se inspire nas tradições da paixão e ressurreição independentes dos evangelhos canônicos.

d) o papiro Oxirrinco 84014.

1. o texto.

O POx 840, achalado em 1950 em Oxirrinco é uma folha de pergaminho. Evangelho de tipo gnóstico.

2. Conteúdo.

A folha de 45 linhas que contem perícopes parciais, porém, conexas, localizadas em Jerusalém. A conclusão é um discurso de Jesus a seus discípulos.

3. Antiguidade e relevância.

Demonstra uma certa familiaridade com o ritual do templo de Jerusalém, e isto sugere uma possível procedência do s. I.

4. EVAnGELHOS JUDEU-CRISTãOS15.

Junto a os evangelhos sinópticos e os evangelhos afins à gnose, os evangelhos judeucristãos formam um grupo envolvido pelo ambiente histórico–religioso similar.

14 Ibíd., pp. 667‐668.15 Ibíd., pp. 678‐694.

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Os evangelhos judeucristãos (EJ) foram perdidos em boa parte, só restam fragmentos nas citações de Padres da Igreja.

1. O evangelho dos nazarenos (EvNaz). Nazarenos ou nazareus judeucristãos da Berea (Aleppo) de Celessíria (Coelesiria) afím com o Evmt porém redigido em língua aramaica ou siríaca. Os Padres não o consideravam herético, e parece datar do princípio do s. II, porque já era conhecido por hegesipo ( pelo 180). Conservam-se 36 fragmentos. Não oferece de modo algum o evangelho original de mt em hebreu como alguns autores afirmam; deve-se definí-lo como uma “reprodução targúmica do mt canônico”.

2. O evangelho dos ebionitas (EvEb).

Atestado por Irineu (180) sete fragmentos são conservados no Panarion de Epifânio de Salamina (capítulo 30). É um evangelho redigido em grego por um judeu cristão para os ebioneus/ebionitas assentados na Jordânia oriental. Parece uma elaboração do Evmt porém contando com o material de Lc e mt.

Teologia do grupo: a) recusa do nascimento virginal (omite os relatos da infância), b) vegetarianismo (severa ascese na alimentação, recusando também a atividade sexual), c) hostilidade frente o culto do templo.

3. O evangelho dos hebreus (EvHeb).

Provavelmente da primeira metade do s. II, escrito judeu cristão com elementos mítico–gnósticos. Este evangelho nos é conhecido por as citas de Clemente de Alexandria e Orígenes o que indica que foi utilizado por judeu cristãos em Egito. Sua afinidade com a gnose é fácil de conciliar com origem nesta região.

A origem judeucristão, círculo de usuários, os “hebreus” pode designar os judeus da diáspora de fala grega. A ideia de que o Espírito Santo é uma figura feminina tem um transfundo na língua semítica “De pronto o Espírito Santo, minha mãe, me tomou pelo cabelo e me transportou ao grande monte Tabor”.

A aproximação com as gnoses.

“Não descansará do que busca até que encontre; o que for encontrado se surpreenderá; o que se surpreende alcançará o reinado; e o que alcança o reinado descansará”.

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5. OUTRAS FOnTES: TRADIÇõES LIVRES SOBRE JESUS16.

a) ditos de Jesus no Novo Testamento fora dos evangelhos17.

1. “há mais alegria em dar que em receber” hech 20, 35, cf. Did 1, 5).

2. Paulo poucas vezes fala expressamente de ditos de Jesus: 1 Cor 9, 14; 1 Cor 11, 24s; Rom 14, 14; 1 Tes 4, 15–17. Podem ser ditos de Jesus, porém também se podem entender como mensagem comunicado a ele por uma revelação.

3. Fora dos evangelhos, os escritos do NT recolhem por vezes tradições anônimas que outras fontes põem na boca de Jesus.

A carta de São Tiago e a 1 carta de Pedro contem numerosas tradições parenéticas.

1 Cor 1–4 recolhe referencias a ditos sapienciais que tem paralelos em Q, mc iEvT, 1 Cor 2, 9 em EvT 17 muito similares.

O empenho em descobrir uma antologia primitiva de ditos sapienciais de Jesus não passa de ser hipotético.

b) Adições tardias a manuscritos do NT.

Alguns fragmentos das tradições livres sobre Jesus foram sendo agregados aos evangelhos no curso da transmissão escrita.

c) Papias e os padres apostólicos.

muitos evangelhos “apócrifos” e outras tradições livres sobre Jesus foram recolhidos e transmitidos nas comunidades em forma oral e escrita. Nesta época surgiu um grupo de escritos ao que mais tarde se daria a denominação global de “padres apostólicos”.

1. Papias bispo de hierápolis, na Ásia menor, a principio do s. II, se propos recolher as tradições orais sobre Jesus, que se tinham perdido, salvo em citações (pouco confiáveis), sobretudo de Irineu e de Eusébio.

16 ThEISEN G.‐mERZ, A., El Jesús histórico, Sígueme, Salamanca 1999, pp. 73‐77.17 JEREmIAS, J., Palabras desconhecidas de Jesús, Sígueme, Salamanca 1996 (5 ed.), pp. 84–87, 67.

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2. A Carta de Clemente é um sumário catequético da doutrina de Jesus em sete logia que é muito afim ao sermão da montanha, porém que não pode depender diretamente nem de mt/Lc nem de Q. Presumivelmente remonta a um original anterior a eles.

3. As cartas de Inácio se situam igualmente junto aos sinóticos em meio de processo vivo de formação e transmissão do legado “sinótico”.

4. A 2 Carta de Clemente tem citações (mistas) de mt e Lc (ou de uma recopilação de logia dependente deles) junto a palavras de tradição jesuânica livre, presumivelmente de um evangelho perdido.

5. Os padres apostólicos citam, às vezes normas comunitárias, sentenças e frases litúrgicas, atribuídas a Jesus, mesmo que os sinóticos as consignem como palavras suas.

d) outros “ágrafos” e narrações sobre Jesus.

Existem “palavras soltas do Senhor” e tradições narrativas sobre Jesus de crescente caráter legendário nos Padres da Igreja, em liturgias paleocristãs e em ordenações eclesiais, em atos e cartas dos apóstolos pseudoepigráficos e em muitos outros escritos.

Traduziu: hR

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