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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALFENAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA Isis Daiane Bueno de Jesus RELAÇÕES DE GÊNERO E CLASSE NA INGLATERRA VITORIANA A PARTIR DO ROMANCE NORTE E SUL, DE ELIZABETH GASKELL.

TCC Gêneros e Literatura no Sec XVIII por Isis Bueno

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALFENASINSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E LETRAS

DEPARTAMENTO DE HISTRIAIsis Daiane Bueno de Jesus

RELAES DE GNERO E CLASSE NA INGLATERRA VITORIANA A PARTIR DO ROMANCE NORTE E SUL, DE ELIZABETH GASKELL.ALFENAS2014

UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALFENASINSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E LETRAS

DEPARTAMENTO DE HISTRIAIsis Daiane Bueno de JesusRELAES DE GNERO E CLASSE NA INGLATERRA VITORIANA A PARTIR DO ROMANCE NORTE E SUL, DE ELIZABETH GASKELL.Trabalho de concluso de curso apresentado como parte dos requisitos para a obteno de Licenciatura em Histria pela Universidade Federal de Alfenas, sob a orientao da Profa. Dra Marta Gouveia de Oliveira Rovai.

ALFENAS2014UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALFENASINSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E LETRAS

DEPARTAMENTO DE HISTRIAIsis Daiane Bueno de JesusRELAES DE GNERO E CLASSE NA INGLATERRA VITORIANA A PARTIR DO ROMANCE NORTE E SUL, DE ELIZABETH GASKELL.

A Banca examinadora abaixo-assinada aprova o trabalho de concluso de curso, apresentado como parte dos requisitos para obteno de Licenciatura em Histria pela Universidade Federal de Alfenas.

Aprovada em:

__________________________________________Profa. Dra.Marta Gouveia de Oliveira RovaiInstituio: Universidade Federal de Alfenas UNIFAL-MG

____________________________________________Profa. Dra. Fernanda Ribeiro

Instituio: Universidade Federal de Alfenas UNIFAL-MG ____________________________________________

Prof. Marcelo Hornos SteffensInstituio: Universidade Federal de Alfenas UNIFAL-MG

AGRADECIMENTOS

Agradeo especialmente a minha orientadora, professora Marta Gouveia de Oliveira Rovai, pela dedicao e pacincia ao me ajudar a desenvolver minha pesquisa e por todo o aprendizado, no s acadmico, que me proporcionou, mesmo que em to pouco tempo.

A todos os professores da Unifal-MG que de alguma maneira contriburam para minha formao.

A meu pai Darly e minha irm Jaqueline, que mesmo em meio a dificuldades sempre me apoiaram nesta jornada. Assim como meus colegas de curso com os quais tive o privilgio de conviver ao longo destes quatro anos, especialmente Ana Flvia, Carolina, Cristal e Natalia, as quais se tornaram grandes amigas que levarei para a vida toda.

E agora, castigada at mesmo pelo que o mundo chamava de sua boa sorte, ela encantou a tia relutante para concordar com a sua vontade. Assim Margaret ganhou o reconhecimento do seu direito de seguir suas prprias ideias de dever.

Elizabeth Gaskell, Norte e Sul.

RESUMO

Resumo: O perodo que vai de 1837 a 1901 e que corresponde, na Inglaterra, ao reinado da Rainha Vitria, comumente conhecido como Era Vitoriana, trata-se de uma poca de intensa movimentao poltica, social e cultural. Este cenrio constantemente retratado na literatura do perodo, que nos proporciona uma representao do real. Este trabalho se desenvolve a partir da histria de gnero, uma vez que a fonte utilizada, a obra literria Norte e Sul (1855), um romance escrito por uma mulher, Elizabeth Gaskell, num perodo em que autoras encontravam incontveis dificuldades para publicao, no cenrio vitoriano. A personagem principal de sua obra tambm feminina, e no se encaixava exatamente nos padres vitorianos de submisso e no modelo convencional de mulher burguesa, entre outras coisas pelo fato de a vida da protagonista apresentar rupturas e descontinuidades, muito semelhantes ao tpico perfil masculino europeu moderno, enquanto mulher cabia uma vida pacata, domstica, familiar e sem grandes surpresas. Como a autora, atravs de suas personagens, subverte a viso do senso comum sobre a mulher e o homem na poca, tornou-se um dos objetivos centrais desta pesquisa entender como as relaes de gnero afetaram a produo do livro, assim como refletir sobre os significados culturais de resistncia que a obra revela.Palavras-chave: Era Vitoriana, Gnero, Literatura.

Abstract

The period from 1837 to 1901 that corresponds, in England, to the reign of Queen Victoria, commonly known as the Victorian period, it is a time of intense political, social and cultural movement. This scenario is constantly pictured in the literature of the period, which gives us an approximation of the reality. This work develops from the history of gender, since the source used, the novel North and South (1855), is a book written by a woman, Elizabeth Gaskell, on a period in which women authors found countless difficulties for publication, on Victorian setting. The main character of his work is also feminine, and does not fit exactly in Victorian standards of subjection and the conventional model of bourgeois woman, among other things because the life of the protagonist present disruptions and discontinuities, much more like the typical "modern" european male profile while the woman was up a quiet life, home, family and without major surprises. As the author, through his characters, subverts the common vision of women and men of her time, became one of the central objectives of this research to understand how gender relations affect the production of the book, as well as reflect on the cultural meanings of resistance that the work reveals.

Key words: Victorian Period, Gender, Literature.Sumrio

8Introduo

12Captulo 1 - Relaes de classe e gnero na sociedade vitoriana

121.1- O conceito de gnero

171.2- Sociedade inglesa do sculo XIX.

231.3-Vida e obra de Elizabeth Gaskell

31Captulo 2 - Consideraes sobre a literatura como fonte para a Histria

312.1- Histria e Literatura: uma relao fecunda

352.2 - Literatura feminina no sculo XIX

39Captulo 3 - Gnero e classe no romance Norte e Sul

393.1 - As relaes de gnero na Inglaterra e publicao da obra de Elizabeth Gaskell

403.2 - As relaes de classe pelo olhar de Gaskell

423.3 - Margaret: a mulher como observadora, sujeito e mediadora social

52Consideraes Finais

54Referncias Bibliogrficas

Introduo

O perodo que vai de 1837 a 1901 e que corresponde, na Inglaterra, ao reinado da Rainha Vitria, comumente conhecido como Era Vitoriana, trata de uma poca de intensa movimentao poltica, social e cultural. Corresponde ao apogeu da poltica industrial e colonialista inglesa, da ascenso da burguesia monopolista. Uma era de grandes contrastes, na qual aconteceram vrias inovaes nas artes, na literatura, na poltica, religio, msica. Todas essas mudanas culturais, polticas e econmicas traziam o choque do novo a uma sociedade que ainda era extremamente puritana em alguns aspectos, pois havia uma moralidade muito rgida e a vida na famlia nuclear e patriarcal possua um carter sagrado.

Este cenrio de contrastes na Inglaterra do sculo XIX, especificamente a cidade de Manchester, abordado pelo romance Norte e Sul (1855), de Elizabeth Gaskell, permitindo uma aproximao com o imaginrio das pessoas do perodo. Mais do que os fatos, segundo Sandra J. Pesavento, o imaginrio se apresenta como a:

Atividade do esprito que extrapola as percepes sensveis da realidade concreta, definindo e qualificando espaos, temporalidades, prticas e atores, o imaginrio representa tambm o abstrato, o no-visto e no-experimentado. elemento organizador do mundo, que d coerncia, legitimidade e identidade. sistema de identificao, classificao e valorizao do real, pautando condutas e inspirando aes. , podemos dizer, um real mais real que o real concreto...(PESAVENTO, 2006, p.2). Este imaginrio apresentado na literatura revela um sistema de representaes do mundo real e pode ser analisado como tal. As personagens podem no ter existido de fato, mas existem enquanto possibilidades, como um smbolo da sociedade em que estavam inseridas, levando consigo os valores e caractersticas do tempo em que o livro foi escrito.

O romance Norte e Sul foi inicialmente publicado de forma seriada na revista literria, editada por Charles Dickens, Household Words, de setembro de 1854 a janeiro de 1855, em 22 partes semanais, tendo sua primeira publicao em formato de livro em 1855 e, como explica a autora no incio da obra, Para corrigir de alguma forma este bvio defeito, (a impossibilidade de desenvolver a histria do modo desejado e a necessidade de avanar os acontecimentos por conta da publicao seriada) vrias passagens curtas foram inseridas e muitos captulos novos adicionados (GASKELL, 2008, p.05). Durante este mesmo perodo Dickens estava publicando seu prprio romance industrial, Hard Times, o que segundo alguns autores, como Rosemarie Bodenheimer e Shirley Foster, influenciou a mudana do ttulo da obra de Gaskell, de Margaret Hale para North and South, com o qual foi efetivamente publicado.

A autora incorporava em seus livros valores da sociedade na qual vivia, mesmo fazendo crticas a ela, sendo reconhecida como exemplo convenes vitorianas, e por muito tempo ficou conhecida como Mrs. Gaskell, ressaltando o fato de que ela era casada e possua uma famlia, como era esperado de uma mulher considerada de respeito em meados do sculo XIX.

Mrs. Gaskell nasceu numa pequena cidade nos arredores de Londres e viveu durante toda sua vida de casada, de 1832 at sua morte em 1865, na cidade industrial de Manchester, um grande centro da produo de tecidos durante a Revoluo Industrial, o que lhe proporcionou um contato com as indstrias e trabalhadores.

Seu livro no apresenta apenas as diferenas entre o campo e a cidade industrial, mas a relao das pessoas com estes ambientes e as diferentes classes sociais. Alm disso, cuida tambm da questo de gnero, uma vez que escreve um livro num momento em que os autores eram predominantemente homens, com uma personagem principal feminina que no se encaixa exatamente nos padres vitorianos mais tradicionais de submisso, e que de certa maneira subverte alguns aspectos da viso mais comum sobre a mulher na poca. A literatura nos ajuda, assim, a analisar as representaes sobre determinada sociedade, o peso que o contexto histrico e social tm naquele ambiente de produo intelectual. Neste caso, como sua obra revela uma noo de mulher diferente do que se entendia como a ideal, j que Gaskell pertencia chamada classe mdia, era esposa de um ministro da Igreja Unitarista e morava em uma das maiores cidades industriais da Inglaterra do sculo XIX, numa poca em que os escritos femininos comeavam a despontar, mas ainda enfrentavam muitas dificuldades para serem publicados e publicizados.

Neste trabalho contarei com duas linhas de anlise para abordar a obra da autora inglesa: uma delas diz respeito s relaes de classe - tendo em vista que a obra Norte e Sul mostra as relaes entre o dono da fbrica e seus trabalhadores e as relaes entre um burgus que veio da pobreza com a filha de um ex-clrigo; de forma mais enftica a discusso terica diz respeito s relaes de gnero na obra, que uma preocupao constante da autora em seus romances. A partir da obra especfica algumas questes foram levantadas para compreender a importncia de uma produo feminina e com temtica de gnero num momento histrico de rigor moral, como o contexto vitoriano. Dessa forma, como a autora trata as relaes de classe e de gnero, uma vez que a mulher estava duplamente excluda da sociedade, do ponto de vista financeiro e sexual? O que significa, cultural e historicamente, uma mulher escrever um livro em que sua personagem principal, em muitos sentidos, se ope ao que se espera dela em meados do sculo XIX? E quais as relaes da autora com o editor da revista em que seu romance foi originalmente publicado em srie? Dificilmente ser possvel saber sobre a recepo de sua obra na sociedade inglesa e, especialmente, pelas meninas e senhoras da sociedade aristocrtica ou pelos homens. Quem seriam seus leitores? Diante dessa dificuldade, importa entender o livro em sua estrutura discursiva e histrica, como um dilogo talvez vazio, mas pretensioso sobre as problemticas que se apresentavam naquele momento: a condio dos operrios nas fbricas, o desenvolvimento tecnolgico e imperialista da Inglaterra e a condio feminina diante de uma legislao que a oprimia. Que temticas so relevantes em sua obra e que discusses Gaskell consegue apontar para o seu tempo?

Estas so perguntas que buscarei responder ao longo do trabalho, dividido em trs captulos: No primeiro, intitulado Relaes de classe e gnero na sociedade Vitoriana, abordo o debate terico em torno do conceito de gnero e suas contribuies para a anlise historiogrfica, e apresento a condio histrica da mulher na sociedade capitalista inglesa, em meados do sculo XIX. Para desenvolv-lo, trato da historiografia referente Inglaterra vitoriana histria das mulheres, dando nfase s questes de gnero e classe, por meio de autores como Peter Gay, Raymond Williams e Michelle Perrot. Alm disso, versarei sobre a vida de Elizabeth Gaskell e o ambiente em que estava inserida, fazendo uso de textos biogrficos e de anlise literria como de Rosemarie Bodenheimer e o de Linda K. Hughes e Michael Lund.

No segundo captulo, Consideraes sobre a literatura como fonte para a histria, apresento consideraes sobre as relaes entre histria e literatura e as especificidades do trabalho com fonte ficcional. A literatura no tem o compromisso com a verdade histrica que o texto historiogrfico possui - o que no quer dizer que ele seja desprovido de historicidade. A literatura nos proporciona uma viso mais sensvel do perodo escrito na qual o autor, o pblico alvo e intencionalidades iro, junto da narrativa, ajudar a compreender melhor o imaginrio das pessoas da poca.

Finalmente, no terceiro, cuja temtica Gnero e classe no romance Norte e Sul, dedico a anlise s relaes de gnero e de classe no romance Norte e Sul, a fonte e o objeto da pesquisa aqui desenvolvida. Nesse livro, a autora apresenta uma personagem feminina que sofre vrias mudanas ao longo da histria, relacionada questo do deslocamento do campo para uma cidade industrial, na observao e tentativa de compreenso das relaes de classe nas fbricas e, principalmente, a perspectiva da mulher sobre o mundo de desigualdades e suas possibilidades de alterao. A protagonista, Margaret, mantm contato com a classe trabalhadora, os operrios das fbricas de tecidos e com a burguesia, com o dono de uma destas fbricas, e pode ser vista como uma mediadora, entre as classes sociais, o urbano e o rural, o tradicional e o moderno, o homem e a mulher. Seu comportamento aponta para a tenso entre diferentes relaes, prprias de uma sociedade em transformao, inclusive na famlia.Captulo 1 - Relaes de classe e gnero na sociedade vitoriana

1.1- O conceito de gnero

Este trabalho se desenvolveu a partir da histria de gnero, uma vez que a fonte utilizada, a obra literria Norte e Sul (1855), um romance escrito por uma mulher, Elizabeth Gaskell, no sculo XIX, perodo em que autoras encontravam incontveis dificuldades para publicao, no cenrio vitoriano. A personagem principal de sua obra tambm feminina, o que no se encaixava exatamente nos padres vitorianos de submisso e no modelo convencional de mulher burguesa, entre outras coisas pelo fato de a vida da protagonista apresentar rupturas e descontinuidades, muito semelhante ao tpico perfil masculino europeu moderno, enquanto mulher cabia uma vida pacata, domstica, familiar e sem grandes surpresas. Como a autora, atravs de suas personagens, subverte a viso comum da mulher e do homem na poca, tornou-se um dos objetivos centrais desta pesquisa entender como as relaes de gnero afetaram a produo do livro, assim como refletir sobre os significados culturais de resistncia que a obra revela.

Antes mesmo de se desenvolver o debate sobre o conceito de gnero, no entanto, a histria das mulheres ganhou fora a partir da dcada de 1970, influenciada pelas mudanas que aconteciam na historiografia, inauguradas pela Escola dos Annales, em 1929, como a pluralizao de fontes, objetos da histria e a nfase em novos temas, tais como famlia, cotidiano, infncia, sexualidade e grupos excludos, como as mulheres, a quem as produes acadmicas relegaram a invisibilidade, durante muito tempo. Os movimentos sociais e polticos de carter feministas, nas dcadas de 1960 e 1970 afetaram a Academia e colaboraram para a insero das mulheres como sujeitos e objetos da Histria. O desenvolvimento de campos como a Histria Cultural, apoiada em outras disciplinas, especialmente a Literatura, a Lingustica, a Psicologia e a Antropologia, intensificou a abordagem do feminino destacando as diversas faces deste objeto/sujeito. De acordo com Louise Tilly:

Um aspecto da histria das mulheres que a distingue particularmente das outras o fato de ter sido uma histria a um movimento social: por um longo perodo, ela foi escrita a partir de convices feministas. Certamente toda histria herdeira de um contexto poltico, mas relativamente poucas histrias tm uma ligao to forte com um programa de transformao e de ao como a histria das mulheres. (TILLY, 1994, p. 31).

Outras autoras dissertaram sobre este tema, tais como Rachel Sohiet (1997), que apontou para o fato de que solicitar a presena das mulheres na histria equivalia a afirmar o carter incompleto da disciplina e o domnio parcial dos historiadores at ento. Os historiadores sociais, por exemplo, supunham as mulheres como uma categoria homognea, pessoas cuja essncia feminina no se alterava e estava atrelada biologicamente ao sexo. Em sentido contrrio, o surgimento da histria das mulheres foi fundamental para desmistificao das correntes historiogrficas herdeiras do Iluminismo ou do marxismo que generalizavam a conduta social e cultural feminina ou que as colocavam em segundo plano, deixando-as margem da histria, uma vez que valorizavam as atuaes pblicas e polticas, ignorando o espao domstico e separando as instncias do privado e o pblico por gnero, de forma contnua e permanente.

Sobre essa postura de alguns historiadores, reveladora de uma tendncia a excluir as mulheres das aes sociais, Carla Pinsky afirmou que Questionar a prpria Histria importante porque as representaes, os retratos que faz do passado contribuem para a construo de gnero no presente; as polticas da Histria fazem parte de relaes de poder. (PINSKY, 2009, p.172).

Joan Scott (1990) foi uma das primeiras historiadoras a pensar uma nova categoria, capaz de romper com a figura homognea da Mulher, entendida como marcada por elementos essenciais e a-histricos. Enquanto a histria das mulheres mostrava sua posio poltica ao afirmar a legitimidade das mulheres como sujeitos histricos, o gnero as inclua sem as nomear, ou seja, a utilizao do novo termo procurou legitimar os estudos feministas dos anos 1980, abrindo espao para um conceito mais diverso e conflituoso sobre as aes femininas. Segundo a autora, o gnero indicaria construes sociais e culturais em torno das prticas e dos papis de homens e mulheres. Assim sendo, seria preciso rejeitar o carter fixo e a permanente oposio binria entre eles: falar delas representaria referir-se a eles, sem necessariamente estar ligado ao sexo. Scott define gnero como "um elemento constitutivo de relaes sociais baseado nas diferenas percebidas entre os sexos, e o gnero uma forma primeira de significar as relaes de poder." (SCOTT, 1990, p.16).

Nesse sentido, pretendeu-se desenvolver a anlise da obra de Gaskell, entendida no como um romance qualquer, mas um campo de conflitos culturais e de rompimento de valores morais presentes na sociedade vitoriana do sculo XIX, na Inglaterra. A autora e sua protagonista colocavam em xeque o padro fixo e binrio determinado culturalmente para homens e mulheres, demonstrando que seu livro era fruto de uma instabilidade presente em uma sociedade s na aparncia homognea. Gaskell parecia colocar, por meio de sua obra, o dedo na ferida das relaes de gnero e tambm de classe revelando o questionamento sobre o poder que as atravessava.

Sobre isso, Michelle Perrot (1988) argumentou que entre as mulheres tambm h relaes de poder, pois o prprio termo poder tem carter polissmico. No singular o mesmo possuiria uma conotao poltica, ideolgica, dotado de uma figura central, comumente masculina, enquanto que no plural ele apresenta mltiplos fragmentos que dizem respeito s influncias e prticas difusas e perifricas nas quais as mulheres se apresentam. Essas representaes femininas, segundo ela, so antigas e numerosas. Durante o sculo XIX, por exemplo, elas estariam confinadas ao privado e os homens ao pblico; as primeiras puxam fiozinhos dos bastidores enquanto os homens como marionetes se mexem na cena pblica.

Entretanto, as mulheres de todos os tempos no foram somente vtimas ou sujeitos passivos nos bastidores, utilizando os espaos e as tarefas para as quais estavam designadas. Elas tambm conseguiram subverter seus papis aparentes questionando as relaes de poder, a partir de prticas consideradas invisveis e irrelevantes diante de olhos mais estruturantes. Segundo Perrot,

Os dominados podem sempre esquivar-se, desviar as proibies, preencher os vazios do poder, as lacunas da Histria. Imagina-se, sabe-se que as mulheres no deixaram de faz-lo. Frequentemente, tambm, elas fizeram de seu silncio uma arma. (PERROT, 2005, p. 10). Registros mais ntimos como dirios, por exemplo, tornaram-se fontes reveladoras de prticas de subverso nas relaes de gnero. Pesquisa de Marina Maluf, por exemplo, em seu livro Rudos da Memria (1993), mostrou a importncia da memria feminina como portadora de valores e comportamentos que fugiriam aos padres determinados por uma sociedade machista, como o Brasil no incio do sculo XX. A literatura tambm uma das formas que as mulheres encontraram para se desviar das proibies e exibir suas opinies e crticas sociedade, mesmo que por vezes elas apaream no texto de maneira sutil. o caso de personagens criados por Gaskell, como Margaret Hale, de Norte e Sul, uma mulher da classe mdia que ao longo do romance pe em cheque valores da sociedade vitoriana, tais como a submisso, a ausncia de opinio prpria, quando esta recusa duas vezes casamentos considerados vantajosos, ou quando questiona as relaes entre as classes trabalhadora e burguesa.

Alm disso, Gaskell conseguiu atribuir uma autonomia sua protagonista que raramente as mulheres do XIX conseguiriam. O foco principal do livro, por meio de Margaret, mostra a perspectiva da posio e atuao da mulher, como ela pode por vezes negociar sua posio e questionar situaes cotidianas de submisso.

O sculo XIX acentuou o teor racional e naturalizado da diviso sexual apoiado nas descobertas da Medicina e da Biologia, por meio de um discurso naturalista que insiste na existncia de duas espcies com qualidades e habilidades distintas. Os homens representariam, ento, o crebro, a inteligncia e a razo, e as mulheres seriam o corao e a sensibilidade. Os dois seriam dotados de qualidades diferentes, destacados por Michele Perrot:

Os homens esto do lado da razo e da inteligncia que fundam a cultura; a eles cabe a deciso, a ao e, consequentemente, a esfera pblica. As mulheres se enrazam na Natureza; elas tm o corao, a sensibilidade, a fraqueza tambm. A sombra da casa lhes pertence. (PERROT, 2005, p. 269).

Segundo Perrot (2005), a partir do sculo XVIII, com o desenvolvimento da Medicina e da Biologia houve uma sexualizao do gnero, ou seja, homens e mulheres passaram a ser identificados a partir do seu sexo. Essa biologizao da diferena dos sexos trouxe implicaes polticas e tericas, trazendo a cada um novas percepes de si e conferindo um fundamento naturalista teoria das esferas, uma vez que elas passavam a ser prisioneiras de seus corpos e da funo domstica e familiar. Isso significava fornecer uma base biolgica ao discurso simultneo da utilidade social, que tratava de utilizar harmoniosamente as competncias dos dois sexos em beneficio da sociedade.

A historiadora chamou a ateno, no entanto, para o fato de que essa diviso entre as esferas pblica e privada nem sempre foi ou verdadeira, pois nem tudo o que pblico masculino e nem tudo o que privado pode ser considerado feminino; nem tudo o que poltico revela-se pblico e nem tudo o que diz respeito ao pblico masculino. Historicamente, persistiria ainda uma forte presena das mulheres nas ruas, cercando espaos mistos, reinventando-se e constituindo seus prprios espaos. O sculo XIX reforou o duplo discurso da incompetncia pblica e poltica das mulheres e de sua vocao natural famlia, reforados por dois tipos de argumentos: o argumento da natureza e o da utilidade social.

Esse movimento de retraimento das mulheres no espao pblico e de sua constituio no espao restrito familiar traaram as grandes zonas de poderes e ao feminina no sculo XIX. Como nem todo o privado era feminino, o poder principal da famlia continuou a ser masculino, coexistindo na casa os lugares de representao (o salo burgus) do trabalho e da atuao masculina. Da mesma forma, como a fronteira entre pblico e privado varivel, sinuosa e atravessa at mesmo o micro espao domstico, a mulher tambm desenvolveu suas formas de exercer um poder ao qual o homem no atingiu. A ela coube certa reserva de memria da famlia, o cuidado com os valores morais e a organizao do espao domstico, que tambm atingiam o pblico e afetavam a atuao dos homens (PERROT, 1988).

A prpria vida da autora, Elizabeth Gaskell, cuja obra analisada neste trabalho, nos mostra essa indefinio entre o pblico e o privado, desconstruindo a viso binria e determinista de gnero. Ela mantinha uma vida domstica, com marido e quatro filhas, mas tambm atuava na esfera pblica, tendo que negociar com editores e tomar conta de suas publicaes, que com frequncia eram julgadas de acordo com sua vida privada, como ser melhor explicado posteriormente.

Em colaborao com o entendimento sobre a complexidade das relaes de gnero, Joan Scott (1990) aponta para a existncia de algumas teorias a partir do sculo XVIII, que colaboraram na construo da lgica binria a partir da oposio masculino/feminino, ou que reconheceram uma questo feminina, mas o gnero como produto e produtor de sistemas culturais entre os sexos e as preocupaes tericas relativas sua anlise surgiram somente no final do sculo XX. Como o gnero se realiza nas relaes sociais humanas e d sentido percepo do conhecimento e da conscincia histrica, alguns dos elementos relacionados a ele e que devem ser levados em conta so os smbolos culturais, que evocam as mltiplas representaes simblicas e as suas modalidades em contexto.

Assim, a histria de gnero possibilita pensar essas representaes e mudanas dentro dos processos histricos, compreendendo seus significados de acordo com os momentos, os grupos sociais e os lugares, levando em conta as transformaes histricas, analisando a historicidade das concepes de masculino e feminino e incorporando na pesquisa e na anlise seus entrecruzamentos com etnia, raa, classe, grupo etrio, nao entre outros.

Nesse sentido, levando em conta o que Joan Scott e Michelle Perrot discutiram sobre a histria das mulheres e o gnero, a anlise da obra de Gaskell representa pensar este ltimo como um conceito que reorientou a histria das mulheres. Debater a ao da autora, como escritora, me e esposa, e entender a histria de sua personagem, Margaret Hale, na obra Norte e Sul interrogar-se sobre as possveis transformaes histricas nas relaes entre o feminino e o masculino, compreendidos em todos os nveis, desde a mentalidade, as maneiras de dizer at as prticas.

Desta forma, esta pesquisa procurou refletir sobre termos de fronteiras, de partilhas, de equilbrio, tambm de conflitos e de concesses, de deslocamentos, de poderes e contra poderes, na sociedade vitoriana do sculo XIX. Concordando com Joan Scott, e sendo mais radical do que Perrot, considera-se que o uso do gnero deve substituir o conceito de mulheres, uma vez que deve-se rejeitar a validade interpretativa que considera as esferas separadas, uma vez que pensar assim perpetuar o mito de que a experincia de um sexo, tem muito pouco ou nada a ver com o outro (SCOTT, 1990). Todas as dimenses devem ser pensadas como construes culturais e a literatura de Gaskell nos demonstra isso.

1.2- Sociedade inglesa do sculo XIX.

O perodo do sculo XIX na Inglaterra corresponde ao reinado da Rainha Vitria e ficou popularmente conhecido como era vitoriana. Mais do que isso, porm, o termo vitoriano surge dois anos aps a ascenso da rainha Vitria ao trono e passou ao longo da dcada de 1870 a representar uma poca de moralismo e severidade que encontrou na figura da monarca seu maior cone. Segundo Peter Gay, ela seria um cone domstico benigno e melanclico, estimada pela sua reputao impecvel, sua felicidade domstica exemplar abalada pela morte prematura do prncipe Albert, e sua dor incessante e lamentvel. (GAY, 1998, p. 29).

As virtudes dessa sociedade na Inglaterra do sculo XIX estavam vinculadas postura moral, disciplina, seriedade e castidade, o que fez com que o vitorianismo se tornasse mais do que s a designao de um perodo, mas sinnimo de puritanismo e moralismo exacerbado. De acordo com Gay esse conjunto de virtudes j era encontrado anos antes da ascenso da monarca inglesa:

Podemos dizer que j havia vitorianos dcadas antes de Vitria, moralistas do final do sculo XVIII e incio do sculo XIX, to severos, to celebradores da vida domstica quanto untuosos, iguais a qualquer um que a metade do sculo viria a presentar. (GAY, 1998, p. 31).

Tratava-se de uma sociedade especialmente burguesa, de domnio dos impulsos, de vontades reguladas, essenciais para a formao do carter e distino social, criando uma identidade de classe prpria da mentalidade e da cultura da elite industrial. Para Flvia Moraes esse autocontrole mostrava uma sociedade pautada nas aparncias e na busca de status:

Os vitorianos, embalados por afirmaes deste tipo, escondiam suas reais convices, gostos e inclinaes; de fato, pretendiam ser melhores do que verdadeiramente eram. Afirmavam-se portadores de uma piedade e moral inabalveis, fechavam seus olhos para tudo o que pudesse ser indigno, feio, sujo, fingindo que tudo isso no existia. Lendo-se os clssicos romances de Jane Austen, vemos com total clareza o descompasso entre o discurso moralista e os comportamentos hipcritas da sociedade vitoriana (MORAES, 1999, p.31).Desta forma, as camadas populares, o proletariado, se libertavam dos impulsos enquanto que os bons burgueses treinavam para resistir s presses do desejo, esforando-se mais para manter o sofrimento longe do que para buscar o prazer (GAY,1990).

Essa diferena de comportamentos sobre o que seria permitido a uma pessoa da classe trabalhadora e da burguesia pode ser observado no romance Norte e Sul quando da morte da me de Margaret, ela insiste em ir funerria junto com seu pai:

-No pea a Mr. Thornton, papai. Deixe-me ir com voc- disse Margaret, impetuosamente.

- Voc! Minha querida, as mulheres geralmente no vo.

-No, porque elas no podem se controlar. As mulheres de nossa classe no vo porque elas no tm nenhum poder sobre as suas emoes, e ainda ficam envergonhadas de mostr-las. As mulheres mais pobres vo, e no se preocupam se so vistas arrasadas pelo sofrimento. Mas eu prometo papai, que se o senhor me deixar ir, eu no criarei problemas. No v com um estranho, e me deixe de lado. Querido papai! (GASKELL, 2011, p. 211). Percebe-se neste trecho uma crtica implcita aos modos de conteno das emoes caractersticas da alta burguesia. Na viso de Margaret no h problema nas mulheres serem vistas tomadas pela emoo, pois o controle emocional seria uma conveno de classe, que poderia ser to ruim quanto seu oposto de demonstrao excessiva de emoes.

A mulher burguesa pertencia ao privado podendo at manter um determinado controle da famlia, como uma potncia civilizadora da me, mas seu poder ficava restrito, em grande parte, ao meio particular. A chefia da famlia ainda era um papel masculino: assim como os filhos, a mulher tambm era subordinada ao homem. Mesmo o papel domstico no poderia lhe ser entregue sem controles. Como aponta Michele Perrot:O desenvolvimento industrial, porm possibilita a mulher se consolidar em outras reas alm da maternidade, ele abre a possibilidade da mulher trabalhar, de possuir uma vida alm da domstica, e, entretanto essa mulher proletria no possui uma preocupao to grande com as aparncias como a mulher burguesa, as mulheres do povo tem outros saberes e poderes (PERROT,1988,p.181)O conflito de classes uma marca profunda do sculo XIX na Inglaterra, marcado pelo desenvolvimento da Segunda Revoluo Industrial, o que promoveu a urbanizao desordenada e a migrao de trabalhadores para as cidades, tendo como consequncia o crescimento demogrfico e a desigualdade social. Quando a rainha Vitria iniciava seu reinado, a burguesia j havia se definido como uma classe distinta e privilegiada.

Segundo Raymond Williams (1990), o radicalismo industrial e a conscincia de classe estavam diretamente relacionados com a urbanizao. E justamente a representao de uma das cidades mais industrializadas do perodo o cenrio para o romance analisado neste trabalho. Williams afirma que Gaskell a nica romancista de meados do sculo XIX a captar tantos detalhes e paradoxos da experincia urbana quanto Dickens. Sua obra se difere, no entanto, por tratar da cidade de Manchester, grande polo industrial do perodo e centro dos conflitos:

Gaskell escreve numa cidade em que a produo industrial e um mercado dominante constituem os fatores determinantes, e na qual, de um modo bem diferente do que se d em Londres, aparece a nova linguagem spera do conflito entre classes. (WILLIAMS, 1990, p.296)A Inglaterra em meados do sculo XIX se encontrava em plena revoluo industrial, tratando-se, portanto, de uma poca de inquietaes e mudanas, tanto nas estruturas fsicas e econmicas advindas do desenvolvimento industrial, com o processo de urbanizao, a criao de fbricas, modernizao da produo e o intenso xodo rural, quanto das estruturas sociais e psicolgicas com o surgimento da burguesia e o conflito de classes.

Segundo Williams, medida em que a sociedade sofria todas essas modificaes ela agravava a desigualdade, mantendo uma hierarquia na qual no topo se encontrava a aristocracia e a alta burguesia que valorizava caractersticas como a disciplina, o puritanismo, retido de carter e o autodomnio; uma classe mdia ampla e desigual que abrangia desde a Middle Middle Class, com pequenos burgueses, negociantes, fabricantes ricos, advogados, mdicos, professores e burocratas de nvel mdio at a Lower Middle Class com lojistas, profissionais liberais, empregados subalternos, existindo uma pequena hierarquia entre elas; e na base desta sociedade se encontrava a Working Class, o proletariado, operrios e camponeses.

O choque do novo se tornou uma marca do perodo e mexeu com as relaes psicolgicas das pessoas, Freud apontava que toda a mudana traumtica, at mesmo a mudana para a melhor, deste modo o progresso neste perodo era visto de modo contraditrio, existia uma tenso entre o desejo da modernidade e o medo provocado por ela, e essa tenso em muitos momentos retratada pela literatura (GAY, 1998, p. 19). No livro Norte e Sul essa tenso entre o desejo de modernidade e o medo por ela provocado fica evidente no contraste apresentado entre as duas cidades nas quais a histria se passa: no sul, o pequeno vilarejo de Helstone, onde o romance se inicia e que segundo a descrio de Margaret, a personagem principal, H uma igreja e algumas casas prximas, no campo chals, em sua maioria- com roseiras crescendo por toda a parte (...) como uma aldeia em algum dos poemas de Tennyson. (GASKELL, 2011, p.12). Em contraposio, havia na regio norte industrializada a cidade de Milton North, na qual a maioria dos eventos acontecia, e que seria uma representao da cidade de Manchester, onde vivia a autora da obra Elizabeth Gaskell. No livro, a todo o momento, existem discusses acerca das diferenas entre a cidade rural do sul e a industrializada do norte; discusses no apenas sobre a questo esttica das cidades, mas sobre as pessoas e a sociedade tambm. Quando Mrs. Hale, me de Margaret, recebe a notcia de que ela e sua famlia devem deixar o vilarejo de Helstone para morar em Milton North, sua reao cidade grande no nada agradvel:

No pode achar que o ar enfumaado de uma cidade industrial, suja e cheia de chamins como Milton Norte, seja melhor que este ar, que puro e doce, embora seja suave demais. Imagine-se vivendo no meio das fbricas e dos operrios! claro que, se seu pai deixar a Igreja, no seremos admitidos na sociedade em lugar nenhum. Ser uma grande desgraa para ns. (GASKELL, 2011, p. 38).Alm disso, outra marca desta contradio entre modernidade e tradio pode ser observada no final do romance, quando Margaret, apesar de conseguir uma autonomia financeira que poucas mulheres da poca conseguiriam e de se encontrar num patamar social e econmico superior ao de Mr. Thornton, sente-se inferior, dizendo no ser boa o bastante para seu companheiro, porm s poderia ser completamente feliz com a forma tradicional de unio entre os personagens principais, afirmando a noo de que a mulher s pode ser completamente feliz ao lado de um homem.

Podem ser identificados, no sculo XIX dois grandes grupos de excludos na histria: os proletrios e as mulheres. A elas, em especial, era praticamente negado o acesso vida pblica e aos estudos, cabendo- lhe a qualidade de guardis do lar e da moral, como aponta Maria Conceio Monteiro (1998). Existia ainda a diferenciao entre as mulheres de classes sociais distintas e sua relao com o trabalho, segundo a autora:

preciso salientar que as condies de trabalho para as mulheres solteiras eram precrias e desvantajosas. As mulheres sem instruo, pertencentes s classes menos favorecidas, podiam se engajar em certos trabalhos braais, tidos como inferiores. J para as mulheres instrudas, a nica oportunidade de trabalhar era como preceptora. (MONTEIRO, 1998,p. 63)Segundo Wendy Parkins (2004) o romance no representa apenas a transio da sociedade tradicional para a moderna, representadas pelo rural e o urbano, mas mostra as mudanas nos padres da sociedade e a identidade de gnero ligada a essas localidades. Enquanto a mulher burguesa, de classe mdia estava em processo de obteno de uma maior autonomia, elas ainda no estavam livres da desaprovao social que vinha com sua inconformidade com os papis femininos tradicionais, e a mobilidade continuava sendo vista como impropriedade sexual. Assim, por mais que Margaret, uma mulher de classe mdia e bem educada, questionasse e se libertasse em alguns pontos e consiguisse certa autonomia, , isso no quer dizer que a sociedade sua volta visse isso com naturalidade.

Neste sentido, o romance Norte e Sul nos d vrios exemplos de mulheres diferentes: a operria, Bessy Higgins; a me burguesa representada por Mrs. Thornton e pela tia de Margaret, Mrs. Shaw; a preceptora Dixon; as jovens de classe mdia Miss Thornton e Edith; e a personagem principal, Margaret Hale, filha de um ex-clrigo refinado e fracassado, mas que questiona valores, como a autonomia da mulher naquele perodo.

A autora do romance, assim como sua personagem, possua relao muito prxima com a religio: Gaskell era esposa de um ministro da igreja Unitarista e era um membro ativo da comunidade unitarista de Manchester e, de acordo com Patsy Stoneman (2007), a aproximao com o Unitarismo facilitava a educao feminina - que era normalmente muito restrita- j que os unitaristas acreditavam que as mulheres, assim como os homens, precisavam ser bem educadas. Nesse sentido, elas recebiam mais do que s a educao de casa. Acreditava-se que todas as almas, homens ou mulheres eram iguais perante Deus; assim as diferenas entre as pessoas no eram inatas, mas sim de educao. Deste modo, estavam mais inclinados a diminuir, at certo ponto, as diferenas de gnero possibilitando uma maior liberdade s mulheres, segundo Stoneman:

to be born a woman in the Victorian was to enter a world of social and cultural deprivation unknown to a man. But to be born a woman and a Unitarian was to be released from much of the prejudice and oppression enjoined upon other women.

A adeso ao unitarismo possibilitou a Gaskell uma melhor educao que a maioria das mulheres do perodo e uma viso mais ampla e questionadora sobre as diferenas de gnero e os males sociais. Essa religio, porm no libertava as mulheres das amarras do perodo: as unitaristas eram inteligentes, ativas e de mentalidade forte, contudo a maioria delas ainda acreditava que os maridos deveriam assumir a liderana no casamento. (CHAPPLE, 2007). O Unitarismo, deste modo, no tratou de um fator totalmente definidor da literatura de Gaskell, j que mesmo dentro dos crculos unitaristas ela sofreu crticas e at mesmo teve exemplares de seu livro Ruth queimados na parquia de seu marido William Gaskell, o que serve de exemplo de como at mesmo para os unitaristas sua escrita era inovadora e ousada.1.3-Vida e obra de Elizabeth Gaskell

Elizabeth Gaskell nasceu numa pequena cidade nos arredores de Londres e viveu em Manchester, de 1832 at sua morte em 1865. Autora de sete romances, quatro novelas, publicou mais de 40 trabalhos menores entre contos, ensaios, livros de viagens e biografias. Seus contos e novelas mostram uma grande variedade de narrativas e tipos; j seus romances enfocam principalmente o gnero da famlia da metade da era vitoriana. Estes ltimos retratam a vida provincial no contexto de mudana das estruturas sociais provocadas pelo capitalismo e as relaes de classe, revelando ainda uma noo de mulher diferente do que se entendia socialmente como a ideal.

Gaskell pertencia classe mdia, era me de quatro filhas, esposa de um clrigo e membro ativo da comunidade Unitarista de Manchester, uma das maiores cidades industriais da Inglaterra do sculo XIX. Diferentemente de algumas escritoras do mesmo perodo, que se dedicavam exclusivamente escrita, a autora possua uma vida multifacetada conciliando seu casamento, filhos e vida social com a escrita. Segundo Matus:

Stoneman sees in Gaskells busy life a blurring of private and public roles: in addition to running a busy household, and caring for and teaching her daughters, there were countless duties that can be understood as social work (teaching in Sunday schools and helping out in times of economic privation) or cultural work (finding publishers for her work, and socializing with prominent cultural thinkers who visited Manchester). (MATUS, 2007,p.7)Mesmo com algumas diferenas em sua vida domstica, a complexa imbricao entre a experincia pessoal e sua escrita aproximou a autora de outras escritoras do perodo com problemas parecidos, colocando-a como o que Margaret Oliphant chamou de sisterhood of female novelists (Apud. FORSTER, Shirley, 2002) ou Irmandade de romancistas mulheres. Essa amizade com mulheres do mesmo ofcio ajudou-a a desenvolver sua escrita num perodo complicado e de gradual mudana nos papis de gnero, no qual as questes da produo literria comearam a ganhar destaque.

Foi durante a poca vitoriana que ocorreu um aumento da produo literria feminina, e apesar de muitos artigos hoje sobre esse fenmeno tenderem a fazer generalizaes sobre as escritoras obscurecendo suas particularidades, eles ajudam a mostrar a comunidade cultural dessas mulheres. Ao mesmo tempo, essa entrada no mundo das publicaes, durante o sculo XIX, causou desconforto em alguns crculos masculinos por quebrar com a ordem tradicional feminina exclusivamente dedicada a casa e filhos. Mesmo assim, era possvel encontrar mulheres ocupadas somente escrita, como era o caso de Jane Austen, Charlote Bront e George Eliot; e escritoras que mantinham uma vida dupla, como Shirley Foster aponta the conflict for a woman artist between engagement with the world of the imagination and the calls of home duty.

Na poca, elas sofriam severas crticas e tinham seu trabalho julgado no pela qualidade como escritoras, mas sim pelo gnero. Por conta disso, a maioria delas publicava seus textos anonimamente ou utilizando pseudnimos. No caso de Gaskell, suas trs primeiras histrias foram publicadas sob o pseudnimo de Cotton Mather Mills Esq, e a maioria de seus outros trabalhos foram publicados inicialmente sem seu nome, continuando a escrever anonimamente at mesmo quando sua identidade j era conhecida. O nico trabalho em que logo na primeira publicao seu nome apareceu foi a biografia de Charlotte Bront.

Durante sua vida a autora chegou a ganhar certo respeito como escritora. A crtica a ela, porm, foi muito empenhada em discutir a sua posio entre os grandes romancistas vitorianos, e encontrar razes para a queda e o subsequente aumento de seu renome entre os escritores j durante o sculo XX. Ela incorporava em seus livros valores da sociedade na qual vivia, mesmo fazendo crticas quela sociedade, foi reconhecida como um exemplo convenes vitorianas, e por muito tempo ficou conhecida como Mrs. Gaskell, ressaltando o fato de que ela era casada e possua uma famlia nuclear, o que era considerado uma qualidade da mulher em meados do sculo XIX.

Segundo Patsy Stoneman (2007), esta designao de Mrs ou Senhora, sob o qual seus romances posteriores foram publicados, foi a sua forma usual de referncia at muito recentemente, durante grande parte do sculo XIX e incio do sculo XX. A utilizao do termo dava nfase vida de casada da autora, a seu status domstico: a Senhora Gaskell, a esposa do Senhor Gaskell, de certa maneira dependente dele, subjugada ao espao privado da casa, no simplesmente a mulher Elizabeth Gaskell, com uma vida alm da casa, dos filhos e do marido.

Somente com a crtica feminista no final do sculo XX ela pde finalmente se concretizar como Elizabeth Gaskell, deixando de lado o seu carter privado e domstico e chamando mais ateno a sua vida pblica e as suas caractersticas como autora. Existiu por muito tempo uma tenso no que diz respeito anlise de suaas obras por conta da confuso entre sua vida pblica e privada, haveria um desequilbrio entre sua escrita e sua vida de casada, j que grande parte das escritoras do perodo se dedicava somente ao trabalho.

Em contraste com as Bronts ou George Eliot, a Senhora Gaskell era evidentemente uma esposa e tambm me de quatro filhas. Por mais de um sculo, o ttulo que significa seu status domstico influenciou as respostas a seu trabalho, especialmente aps as crticas de Lord David Cecil, que a comparava com autoras que, segundo ele, no eram mulheres comuns, e a diminua com relao a essas escritoras, que se dedicavam exclusivamente literatura. Por se tratar de uma mulher comum, com famlia e filhos, que tinha que conciliar a vida domstica com sua escrita ela seria, segundo ele, que, de alguma forma, era inferior a suas companheiras de profisso. Em suas palavras:

Ugly, dynamic, childless, independent, contemptuous of the notion that women should be confined to that small area of family and social interests which was commonly regarded as the only proper province of their sex; fiercely resentful of the conventions that kept them within it at every turn they flout the standards which were set up before the women of their day. In the placid dovecotes of Victorian womanhood, they were eagles. But we only have to look at a portrait of Mrs. Gaskell, soft-eyed, beneath her charming veil, to see that she was a dove (CECIL, 1934, p. 97 apud STONEMAN, 2007, p.132).

De acordo com Mattus (2007) e Hugghes e Lund (1999) quando o nome de Gaskell surgiu no trabalho de Lord David Cecil, Early Victorian Novelists (1934), foi como uma romancista menor e com ligeiro talento. Classificando-a como um gnero fraco, Cecil define a opinio crtica posterior sobre Mrs. Gaskell, destacando o que viu como suas caractersticas essencialmente femininas. Segundo ele Ela foi tudo o que se espera de uma mulher; suave, domstica, discreta, no intelectual, propensa s lgrimas, facilmente chocada.. Essa viso estereotipada sobre Mrs. Gaskell obscureceu elementos chave de suas realizaes para muitos crticos do sculo XIX.

A crtica a ela entrou numa nova fase em 1950, quando Raymond Williams e outros crticos marxistas, leram com interesse seus romances sobre a vida industrial, Mary Barton (1848) e Norte e do Sul (1855). Mas mesmo aqui, embora ela tenha ganhado elogios por abordar a condio das classes trabalhadoras, recebeu crticas por destacar o pessoal, os conflitos psicolgicos de gnero, ao invs de oferecer solues para o conflito de classes. Para Patsy Stoneman (2007), os crticos marxistas como Raymond Williams, Arnold Kettle e John Lucas, acreditaram que ela teria sido ingnua ao adotar uma postura novelstica em seu tema social, utilizando as relaes pessoais como centro de seu trabalho.

Mais recentemente, porm, sua obra foi resignificada luz da teoria feminista, por estudiosas como Patsy Stoneman, que revisaram a avaliao sobre Gaskell, considerada como socialmente conservadora, chamando a ateno para sua crtica das relaes de poder e as estruturas familiares tradicionais, segundo Stoneman (2007). Ela no uma feminista clara, mas os problemas de gnero so centrais em sua viso social.

Tomando como referncia as crticas mais recentes que levam em conta o imaginrio sobre a mulher em sua obra, buscarei ao longo do trabalho, analisar as sutis subverses do iderio vitoriano utilizando como fonte principal o romance Norte e Sul, seu livro mais difundido no Brasil. O destaque dessa obra especfica na atualidade se deu por conta da adaptao da obra para uma minissrie na rede de televiso britnica BBC, em 2004. Alm disso, outros trabalhos da autora contam com traduo para o portugus, como o caso de Cranford, traduzido por Raquel de Queiroz e publicado em 1946.

De acordo com crticos como Shirley Foster (2002), Rosemarie Bodenheimer (1979), Deirdre DAlbertis(2007) e Michael Wheeler (2013), a obra Norte e Sul no seria sua obra prima, uma vez que a prpria autora se mostra insatisfeita com o final apressado do romance. Entretanto, ele introduz discusses importantes sobre os papis de gnero e os conflitos sociais por meio de personagens bem construdas e dilogos que indicam de maneira sutil possveis transgresses do imaginrio feminino e masculino do perodo, como ser indicado posteriormente, na anlise da obra.

No discutirei o impacto da circulao da obra, apesar de considerar essa discusso muito importante, pois minha preocupao central ser na produo e no contexto histrico do texto de Gaskell. Mesmo que a verso da histria utilizada neste trabalho seja a do livro publicado posteriormente com o acrscimo de alguns captulos e passagens curtas que no estavam na verso seriada, as dificuldades de produo da primeira verso e das relaes da autora com seu primeiro editor, Charles Dickens, so fundamentais para compreenso de seu contexto de produo.

Sua relao com Dickens se mostrou mais difcil do que o esperado. Apesar disso, a autora compreendia a importncia de sua ajuda no meio literrio, especialmente seu pedido para ela escrever em sua revista literria Household Words. Os desentendimentos nos negcios se davam principalmente por conta das interferncias de Dickens em seu trabalho, numa relao de insistncia e negociao que marcou quase toda a relao dos dois, e que se mostra mais acirrada com a edio de Norte e Sul. A escolha do ttulo sugerido pelo editor evidencia a sobreposio das ideias de Dickens s de Gaskell, pois ele evidenciava um contraste, aguando as distines entre o mundo pastoral e industrial, tema tratado em seu prprio romance, de carter industrial, que estava sendo publicado na revista enquanto ele recebia os captulos da histria da escritora. Segundo Bodenheimer (1979) parece provvel que ele tenha inventado um ttulo que ligaria o novo romance com sua prpria histria, entretanto o ttulo original, Margaret Hale, deixava claro que no era uma preocupao da autora conceber a obra como essencialmente documental, embora ela interligasse tramas ficcionais e temas sociais. Alm disso, o ttulo anterior atribua importncia mulher, chamando a ateno para uma personagem feminina e colocando em segundo plano a questo das diferenas regionais, ao contrrio do que Dickens desejava.A principal causa de divergncias entre o editor da revista e a escritora eram as diferenas de mtodos de composio de ambos e a quantidade de espao destinado sua publicao na revista semanal. A mais sria discordncia se deu com a serializao de Norte e Sul que, segundo Shirley Foster (2002), era um romance que absolutamente no deveria ter sido serializado. Esse desentendimento acerca do texto marcou o comeo de uma mudana na relao dos dois, quando Gaskell deixou de ser apenas uma colaboradora e se consolidou como escritora competente e que relutou em aceitar todas as mudanas propostas por seu editor.

In Dickens's view this work slowed sales of the journal and necessitated frequent editorial change. According to most scholars, Gaskell failed to understand the demands of parts publication and was repeatedly unable to provide the proper climactic ending for each weekly installment, often running over her allotted space with rambling narrative manuscript. (HUGHES; LUND, 1999. p.96).

Essa passagem revela traos das prprias relaes de gnero e suas tenses em meados do sculo XIX. Segundo Hughes e Lund (1999), porm, as interpretaes do fracasso de Gaskell e do sucesso de Dickens na escrita seriada, foram guiadas por questes de gnero: tradicionalmente conceitos machistas de enredo teriam determinado as compreenses crticas do formato seriado em si, deixando de lado aspectos de suma importncia na obra da escritora inglesa.

A prpria autora percebeu as dificuldades de serializar seu trabalho, especialmente o final, cuja escrita teve que apressar em relao aos eventos. Como aponta Foster (2002), Gaskell trabalhava de maneira menos metdica que o padro de serializao de Dickens; sua forma de escrita seria mais meditativa na abordagem, com mais efeitos de situaes cumulativos do que instantneos. Dickens queria que a regularidade de estrutura episdica se aproximasse da dele. Gaskell, contudo, trabalhou de forma menos metdica e no poderia subdividir mecanicamente sua criatividade.

Apesar dos desentendimentos, Dickens sabia da importncia de manter Gaskell em sua revista e, por isso continuaram trabalhando juntos at o comeo da dcada de 1860. Ela valia muito em termos comerciais, mesmo que ele a achasse irritante s vezes, como mostra sua fala irnica Mrs Gaskell, fearful fearful. If I were Mr G. O Heaven how I would beat her!. No incio de 1860, porm, ela passou a escrever para outros peridicos especialmente Cornhill, editado por George Smith e William Thackeray. Essa revista era bem diferente da Household words em estilo, contando somente com escritores j consolidados, buscando um pblico mais erudito e dando maior liberdade a seus colaboradores tambm, o que fez com que Gaskell e George Smith se aproximassem mais, mantendo uma relao mais harmoniosa.

Em sua carreira a autora encontrou vacant spaces ou espaos vazios na ideologia da sociedade vitoriana, em que ela pode sugerir certas subverses de valores tradicionais, indicaes da possibilidade de mudana do iderio vitoriano (HUGHES; LUND, 1999). Os maiores desafios se colocavam porque ela era do sexo feminino e mulheres autoras eram vistas de formas fixas por editores e leitores. Entretanto, Gaskell aprendeu a lidar com o mundo literrio, ditando seus termos e firmando suas escolhas, por vezes colocando seu marido, William Gaskell, para intervir por ela nas negociaes com editores, no por que no fosse capaz de negociar por si mesma, mas por que sabia que um homem tinha maior aceitao. De acordo com Stoneman (2007), durante sua vida a escritora se envolveu repetidamente com as mudanas trazidas pela industrializao, como a evoluo das relaes comerciais e assuntos financeiros, os avanos cientficos e a tecnologia. Nesse processo, manteve-se o tempo todo observando de perto a mudana de papis sociais, e de gnero, inclusive dentre as prprias mulheres, a partir de mundos sociais separados, temas constantes em suas obras. Ela percebia onde os espaos no reclamados na indstria literria estavam e, alm disso, sabia como usar sua prpria voz distinta para atingir determinados pblicos.

Jill Matus (2007) argumenta que essa capacidade de Gaskell para representar ambos os lados de um argumento, considerado em conjunto com a queixa de que no sabia onde a autora se situava no espectro poltico, levou leitores e crticos a supor que ela era inconsistente. Entretanto, guiada por princpios Unitaristas e humanitrios, a autora valorizava a mentalidade aberta e a capacidade de explorar um problema a partir de diferentes pontos de vista. Suas atitudes consideradas inconsistentes por setores mais conservadores da sociedade inglesa revelam, em uma inspeo mais prxima, uma compreenso das complexidades das relaes de classe e de gnero, caractersticas do contexto de produo de suas obras e os problemas dele advindos, o que tema de anlise desta monografia.

Neste sentido, os romances de Gaskell parecem no s astutos e perspicazes para sua poca, como tambm na vanguarda das preocupaes vitorianas sobre controle social. Deste modo, sua viso subverte, mas tambm cria pontes: ao mesmo tempo em que segue a forma literria do romance do perodo, ela o inovou ao deixar de lado o romantismo melodramtico considerado caracterstico dos escritos femininos, criando uma histria em que o romance no o fator central e que contm personagens que representam situaes econmicas diferentes e que questionam as relaes de gnero da era vitoriana.

Captulo 2 - Consideraes sobre a literatura como fonte para a Histria

2.1- Histria e Literatura: uma relao fecunda

Alguns autores como Sandra Jatahy Pesavento(2003), Roger Chartier(1999), Ligia Chiappini(1999) e Antnio Celso Ferreira(2003) se dedicaram ao debate sobre a interdisciplinaridade entre literatura e histria. Esta relao s se tornou possvel, a partir da introduo de novos temas e objetos, principalmente com o desenvolvimento da histria cultural. At o incio do sculo XX a historiografia ainda tinha como preocupao central o encadeamento cronolgico dos fatos. A Escola Metdica Francesa se encarregava de estabelecer os parmetros de crtica das fontes com o objetivo de assegurar a autenticidade documental pelo distanciamento do pesquisador e pela compilao dos documentos. Dessa forma, fontes especficas, principalmente registros oficiais do Estado, ganharam status de documentos verdadeiros possuidores da verdade, restando quase nada interpretao do historiador.

Nesta perspectiva a literatura no se encaixaria como uma fonte segura para a cincia histrica. A insero de outros tipos de fontes, assim como a literatura e as artes, se iniciou a partir de 1929, com o movimento de renovao historiogrfica iniciado pelos historiadores ligados revista Annales dHistoire conomique et Sociale, que se contrapunha Escola Metdica, ampliou o conceito de fonte histrica e passou a dar nfase a processos sociais. Nesse sentido, tudo o que dizia respeito aos feitos humanos passou a ser considerado objeto de estudo e, portanto, qualquer tipo de registro - imagtico, musical, literrio, artstico - que se referisse sociedade deveria ser considerado como documento. Especialmente a Histria das Mentalidades abriu espao para a anlise de textos literrios como fonte para a histria, sendo seu precursor o historiador francs Lucien Fevre. (FERREIRA, 2003).A partir da dcada de 1970 com a chamada Nova Histria, os historiadores inseriram novos problemas e objetos aos estudos, passando a abranger temticas como o inconsciente, o cotidiano, a lngua, a literatura, a infncia, a memria, a juventude e as mulheres. O trabalho com fontes literrias foi desenvolvido nesse perodo por pesquisadores ingleses, marxistas revisionistas, que dedicaram sua ateno cultura para compreenso das relaes sociais. Raymond Williams foi um dos seus principais representantes, com obras muito importantes na rea tais como Literatura e Marxismo e O campo e a cidade na histria e na literatura. (FERREIRA, 2003). Deste modo, conforme salientam Sebrian e Kukul o conceito de Histria assim como o de Literatura, construdo historicamente e a discusso sobre o sentido e a funo do conhecimento histrico realiza-se em tenso com as geraes e com a transformao social e cultural. (SEBRIAN; KUKUL, 2010, p. 64).Para analisar a relao entre a histria e literatura preciso compreender as particularidades dessa expresso escrita. No possvel encontrar uma definio cannica para literatura, mas a pesquisa histrica contribui para a compreenso de seus modos de produo e sobre como ela foi particularizada e apropriada por diferentes grupos sociais nas diversas pocas e sociedades. Os romnticos do sculo XIX acrescentaram a noo de que alm de a obra literria ser uma representao ou uma imitao do mundo real, o artista tambm criaria universos imaginados. No sculo XX os defensores da arte engajada apontaram que a representao literria deveria envolver uma tomada de posio crtica quanto realidade do autor. Os estudos lingusticos acrescentaram ainda outras especificidades criao literria, tais como as formas de linguagem utilizadas, ou a literariedade, segundo a qual a literatura se difere das outras linguagens escritas por utilizar metforas que representam a realidade, semelhana de todo o signo, mas representam-na deformadamente (MOISS, Massaud. Apud FERREIRA, 2003, p.66). Antnio Candido apresenta a literatura da seguinte forma:

Ela uma construo de objetos autnomos com estrutura e significado; ela uma forma de expresso, isto , manifesta emoes e a viso do mundo dos indivduos e dos grupos; ela uma forma de conhecimento, inclusive como incorporao difusa e inconsciente. (CANDIDO, Antnio. Apud. FERREIRA. 2003, p. 67). Deste modo a literatura capaz de transmitir um conhecimento atravs da transfigurao da realidade, contudo toda a fico est ligada a uma sociedade e determinada pelas condies de espao, tempo, cultura e relaes sociais do autor. A verdade do texto literrio no se encontra na existncia real de personagens e fatos, mas na possibilidade num determinado contexto: o texto literrio revela e insinua as verdades da representao ou do simblico atravs de fatos criados pela fico. (PESAVENTO, 2006,p.9) A relao entre essas duas reas do conhecimento nortear todo este trabalho, pois os estudos de histria e literatura aproximam-se primeiramente pelo seu modo de apresentao, seu desenvolvimento atravs da escrita. As narrativas, sejam histricas ou literrias, constroem uma representao da realidade, de modo que a linguagem e o ato de ler so inseparveis e esto expressas no texto, que o que une o escritor ao leitor e far a comunicao atravs das representaes. Como aponta Pesavento, literatura e histria so narrativas que tm o real como referente, para confirm-lo ou neg-lo, construindo sobre ele outra verso, ou ainda para ultrapass-lo. Como narrativas, so representaes que se referem vida e que a explicam (PESAVENTO, 2006, p.3).

A literatura como documento para a histria se trata de uma fonte privilegiada que d acesso a elementos do passado que outras fontes no proporcionam, como a subjetividade do autor e os valores sociais expressos ou implcitos na linguagem literria. preciso, porm, no confundir o modo de produo da escrita histrica com a escrita ficcional. Ambas tm intencionalidades diferentes: da fico no se espera um compromisso com a verdade dos fatos como se espera da produo historiogrfica; a especificidade da Histria est na busca de resgatar formas de ao, mudanas e representaes no passado, o que vale ao historiador a problematizao sobre o processo histrico, pois sua relao com o real diferente, assim como o mtodo empregado. De acordo com Chartier:Essa historicizao da especificidade da "literatura" tem por corolrio a interrogao sobre as relaes que as obras mantm com o mundo social. Mantendo distncia da tentao (que, infelizmente, foi grande entre os historiadores) de reduzir os textos a um mero estatuto documental, deve-se trabalhar as variaes. Variaes entre as representaes literrias e as realidades sociais que elas representam deslocando-as sobre o registro da fico e da fbula. (CHARTIER, 1999, p.259)

O texto literrio tem uma linguagem especfica, trabalha com metforas, aluses e smbolos. Os historiadores buscam testemunhos de fatos na literatura, mas tambm vestgios de fatos menos palpveis, captados mais pela sensibilidade das metforas do que pelos conceitos, no como reflexo de sua poca, mas um acesso a formas de sentir e expressar o mundo implicando no s em mimeses, mas em distoro, transformao, criao ou oposio ao real. preciso ler na forma literria sua historicidade, compreendendo como as histrias so discursos construdos por indivduos inseridos em relaes sociais, incluindo negociaes e interesses de gnero, de classe e de mercado editorial. (CHIAPINNI, 2000).A narrativa histrica e a literria guardam com a realidade distintos nveis de aproximao, mas se relacionam entre si. O contexto social, momento histrico de produo da obra literria, no caso de Norte e Sul a Inglaterra vitoriana, trata de um elemento estruturante do romance, no um fator externo. As personagens existiram enquanto possibilidade encarnando virtudes e defeitos do ser humano, da moral. So reais no aspecto simblico; j o historiador no cria os personagens nem os fatos, embora ele interprete e selecione aquilo que considere ter relevncia, tirando-os da invisibilidade, como por exemplo, relacionados s mulheres, s quais por muito tempo foi negado o reconhecimento histrico e a investigao, embora estivessem presentes nas relaes sociais de maneira to relevante quanto os homens. (PESAVENTO, 2003). Neste sentido Margaret, a personagem principal de Norte e Sul, existiu enquanto possibilidade, ela possua valores e caractersticas especficas do seu tempo e ambiente de criao, mesmo que por vezes se colocasse em desacordo com alguns preceitos vitorianos; ela se opunha a eles da maneira sutil, ainda inserida na realidade opressora e moralista do sculo XIX, ou seja, suas formas de resistncia s amarras daquele perodo lhe eram possveis naquela realidade, revelando assim estratgias contestao feminina.

preciso ainda levar em conta a relao da literatura com os aspectos polticos, econmicos, sociais e culturais do perodo e lugar de sua produo. Sua relao com a tradio literria e com a literatura do tempo e a relao com o assunto que trata, alm do pblico a que se destina direta ou indiretamente. As mulheres, autoras no sculo XIX, escreviam sobre o seu cotidiano. Dentre elas, Gaskell escreveu sobre a Manchester industrial na qual ela vivia, relatou as relaes entre as distintas classes sociais que eram notadas a partir de seu ponto de vista como uma mulher e esposa de um ministro unitarista, e que conciliava sua escrita com a vida domstica.

Segundo Lgia Chiapinni (2000) os textos literrios so utilizados no como registro de fatos, mas como uma espcie de registro de afetos, proporcionando uma aproximao com as sensibilidades, o que Pesavento chama de imaginrio:

A literatura , pois, uma fonte para o historiador, mas privilegiada, porque lhe dar acesso especial ao imaginrio, permitindo-lhe enxergar traos e pistas que outras fontes no lhe dariam. Fonte especialssima, porque lhe d a ver, de forma por vezes cifrada, as imagens sensveis do mundo. A literatura narrativa que, de modo ancestral, pelo mito, pela poesia ou pela prosa romanesca fala do mundo de forma indireta, metafrica e alegrica. Por vezes, a coerncia de sentido que o texto literrio apresenta o suporte necessrio para que o olhar do historiador se oriente para outras tantas fontes e nelas consiga enxergar aquilo que ainda no viu. (PESAVENTO, 2006,p.9)

Deste modo a literatura pode ser utilizada pela histria para compreender determinado universo cultural, os valores sociais e as subjetividades das relaes entre homens e mulheres no tempo, pois ela possibilita uma anlise mais sensvel de como as pessoas agiam, o que pensavam, o que temiam, o que desejavam, como eram as suas relaes conjugais e afetivas.

2.2 - Literatura feminina no sculo XIX

A escrita feminina encontrava infindveis dificuldades at final do sculo XVIII, quando comeou a se desenvolver mais abertamente. Num mundo essencialmente masculino, poucas mulheres escreviam e as que o faziam deparavam-se com uma dificuldade maior ainda, a publicao. Ao escrever, as mulheres estariam adentrando um territrio at ento exclusivamente masculino, mesmo no sculo XIX, depois que aquelas de classe mdia comearam a escrever com maior intensidade e at ganhar dinheiro com sua escrita. Escrever no era uma das profisses mais honrveis e indicadas a elas, ainda mais as com maior instruo; a estas a principal sada era o trabalho de preceptora Elas eram veementemente desencorajadas a faz-lo, tanto pela famlia, quanto pelos intelectuais da poca, segundo os quais as mulheres no teriam nada de importante a dizer, ou melhor, nada que no pudesse ser melhor dito por um homem, uma vez que somente a eles estava reservado o espao pblico.

Por muito tempo as mulheres foram vistas em comparao ao sexo masculino, com um estatuto inferior. Sempre acabavam diminudas e julgadas, no pela qualidade de seus trabalhos, mas pelo gnero que acaba por refletir no julgamento de suas obras. As crticas as analisavam de maneira homogeneizante, reduzindo-as a uma essncia feminina, sem levar em conta as particularidades de cada autora e sua construo social. Quando elogiadas, tinham destacadas as caractersticas femininas como mistrio e sensibilidade. O livro era comparado gestao, como se fosse um filho da escritora, recebendo adjetivos masculinos como virilidade, fora e dureza. De acordo com Constncia Lima Duarte existia ainda:

o constrangimento em apreciar textos escritos por mulheres; a recomendao de formas literrias mais adequadas a sensibilidade feminina, como os romances sentimentais e os de confisso psicolgica; a surpresa diante da representao da figura masculina em determinados textos, em tudo diferente do esteretipo do homem viril, forte e superior dos escritos de autoria masculina; e a denuncia de uma certa tendncia das mulheres em confundir vida pessoal com literatura, que levou, inclusive, alguns crticos a afirmar que as escritoras pareciam incapazes de se afastar da experincia vivida para entrar no ponto de vista, na psicologia e na linguagem do outro. (DUARTE, 1997, p.91)

Uma das dificuldades encontradas pelas autoras seria a falta de um lugar adequado para escrever, a no ser que fossem de famlias extremamente ricas. Possuir um quarto s seu estava fora de questo; assim escreviam nas salas de uso comum, em meio a constantes interrupes.

As dificuldades materiais para a publicao eram muitas e ocorriam principalmente pela falta de autonomia financeira destas mulheres. Um problema enfrentado, na Inglaterra, por elas era o fato de editores comprarem os direitos sobre o livro e depois venderem edies sem mencionar a autora e sem pagar por isso, fato que aconteceu com Gaskell, que teve edies posteriores de seu primeiro romance Mary Barton, publicadas sem referncias a ela ou pagamento.(FOSTER, 2002).

Assim autoras que obtinham certo sucesso, como Gaskell, tendiam a se aproximar e se apoiar. Ela prpria tinha um interesse especial por mulheres escritoras e ao longo de sua carreira manteve amizade com vrias delas, especialmente Charlote Bront, sobre a qual escreveu uma biografia aps sua morte, mas seu crculo de amizades inclua tambm Geraldine Jewsbury, Harriet Martineau, Anna Jameson, Harriet Beecher Stowe, Elizabeth Barrett Browning e Caroline Clive, escritoras com quem trocava experincias e opinies. Ela ajudou e indicou vrias novas autoras no mundo literrio, mostrando essa necessidade de ajuda em frente s vrias dificuldades da publicao, sendo a principal delas o problema financeiro, tratando-se de um perodo em que dificilmente mulheres possuam uma renda prpria.

Quando nos voltamos, porm para as dificuldades imateriais, percebemos que estas eram ainda maiores, Virginia Woolf tratou destas dificuldades em seu ensaio Um teto todo seu, no qual ela discutiu, dentre outras coisas, os percalos impostos escrita feminina:

A indiferena do mundo, que Keats e Flaubert e outros homens de gnio tiveram tanta dificuldade de suportar, no era, no caso da mulher, indiferena, mas, sim, hostilidade. O mundo no lhe dizia, como a eles: "Escreva, se quiser; no faz nenhuma diferena para mim". O mundo dizia numa gargalhada: "Escrever? E que h de bom no fato de voc escrever?" (WOOLF, p. 65-66).Mesmo as que possuam uma educao slida e o incentivo da famlia, ainda tinham que enfrentar o pblico e a crtica pouco receptivos. A histria da literatura inglesa do sculo XIX deixa entrever o efeito daquele contexto sobre sua prpria constituio. Uma das alternativas encontradas pelas escritoras, naquele momento, , foi ento esconder sua identidade utilizando um pseudnimo, evitando assim represlias, pois como a publicao era uma ocupao pblica ela entrava em choque com o papel domstico atribudo a elas . Com a escrita de obras como a de Gaskell, os valores mais apreciados como a modstia e a castidade eram colocados em dvida e isso colocava em risco a ordem social e de gnero. Segundo Michele Perrot:

A mulher autora, esta pretensa literata detestada, atrai para si todos os sarcasmos. Uma mulher que escreve, e sobretudo que publica, uma mulher desnaturada que prefere abrigar-se sob um pseudnimo masculino. Seu sucesso provoca escndalo: ele depreciado. (PERROT, 2005, p.271)

A exploso do romance da literatura inglesa do sculo XIX e a emergncia da participao feminina se deram em meio s transformaes polticas e sociais da poca que possibilitaram a ascenso da classe burguesa e, mais tarde, o prprio movimento feminino das sufragistas inglesas. A pioneira na participao das mulheres neste gnero Fanny Burney, (1752-1840) que assume um romantismo melodramtico seguindo as convenes da poca para um texto escrito por uma mulher. O puritanismo era uma caracterstica marcante na sociedade vitoriana e aparecia com frequncia na literatura, de modo que muitos romances eram produzidos para servirem de exemplos de disciplina e moralismo, uma vez que era costume a leitura familiar em voz alta. As novels, gnero de grande sucesso no perodo, que refletiam e tinham certa funo didtica de educar as mulheres por meio de exemplos de suas personagens e que raramente iam contra as convenes vitorianas, eram publicadas em fascculos semanais. Influenciadas pelas preferncias dos leitores servindo como entretenimento e ensinamento moral, tenham seus contedos controlados e reprimidos pelos editores. (MORAES, 1999; WANDERLEY, 2010)

O romance trouxe a possibilidade das mulheres expressarem suas angstias e crticas sociedade, porm grande parte delas no o fazia, escrevendo histrias romnticas mais adequadas s mulheres e caindo no esquecimento posterior. Dificilmente essas escritoras ganhavam destaque no mundo literrio, mesmo atingindo um sucesso considervel e tendo seus nomes conhecidos e estudados at hoje, assim como Jane Austen, as irms Bront, George Eliot e a prpria Elizabeth Gaskell, poucas conseguiam manter-se somente com a renda de sua escrita. Dentre leas, a prpria Jane Austen, grande nome da literatura vitoriana, foi sustentada por seu irmo a vida toda.

Captulo 3 - Gnero e classe no romance Norte e Sul3.1 - As relaes de gnero na Inglaterra e publicao da obra de Elizabeth Gaskell

O propsito deste captulo a anlise das relaes de gnero e de classe na produo do romance Norte e Sul e na narrativa da obra em si. O primeiro ponto a ser analisado na formao do romance e que tem influncia na obra a relao entre a autora, Elizabeth Gaskell e Charles Dickens, o editor da revista Household Words, na qual a histria foi primeiramente publicada. Havia uma preocupao da revista em conquistar o pblico e criar uma conscincia sobre as questes sociais do perodo, misturadas ao entretenimento. (FOSTER, 2002)

O ttulo da obra mostra o desentendimento entre os dois, pois Gaskell havia originalmente chamado seu romance de Margaret Hale, quando Dickens o rejeitava e propunha Norte e Sul, o qual a autora tentou contra argumentar em favor de Death and Variations, ttulo que fazia sentido, levando em conta o papel central das diversas mortes de pessoas prximas personagem principal. Entretanto, o que permanece o sugerido pelo editor e que refora o carter industrial do texto, tirando o destaque da personagem feminina e o aproximando do romance Hard Times que o prprio Dickens estava publicando na revista. A preocupao da autora, porm, no era com uma obra essencialmente documental, embora ela tratasse do conflito de classes, do espao das fbricas e do relacionamento dos trabalhadores com o sindicato. Mais importante em sua obra eram as relaes da personagem principal com esses temas e como ela se modificava ao longo do romance numa narrativa inserida na sociedade industrial.

A autora j possua um romance industrial, Mary Barton (outro romance cujo ttulo d destaque figura feminina), com algumas caractersticas semelhantes, que ela explorou melhor em Norte e Sul, tais como a relao entre os donos de fbrica e os empregados. O chefe da fbrica tem mais espao em Norte e Sul do que em Mary Barton, principalmente por meio da figura de Mr. Thornton, dono da fbrica Marlborough.

Norte e sul melhor desenvolvido do que Mary Barton quanto a explorar o conflito de classes e as relaes da classe trabalhadora com os sindicatos. Embora a narrativa seja essencialmente de classe mdia, escrita por uma mulher desta classe e que faz a representao especialmente do ponto de vista de uma mulher de classe mdia tambm, os inquritos ingnuos de Margaret elucidam no s as injustias da sociedade, mas tambm a sua pretenso em oferecer algum tipo de ajuda, onde ningum mais parece ver necessidade. Essas relaes dos empregados da fbrica e sua ligao com a greve e os sindicatos, so representadas principalmente por trs personagens: Nicholas Higgins, um homem inteligente, esperto e um dos membros do comit de greve; John Boucher, um homem fraco de esprito com uma esposa doente e oito filhos - nenhum em idade de trabalhar na fbrica - que acaba no aguentando a presso da greve e tira a prpria vida; e Bessy Higgins, filha de Nicholas e que j no trabalha mais, pois adquiriu uma sria doena nos pulmes por conta do trabalho constante cardando o algodo, quando Gaskell mostra a presena feminina durante a greve, tirando as operrias de sua invisibilidade.3.2 - As relaes de classe pelo olhar de Gaskell

Diferentemente de Charles Dickens, a autora no trabalha com categorias estigmatizadas, como o industrial demonizado, o trabalhador injustiado, o mau pai e os filhos oprimidos. Gaskell apresenta personagens mais complexos e multifacetados, possibilitando que pessoas de classes diferentes expliquem seu ponto de vista dentro do romance. Nos dilogos entre Margaret e Mr. Thornton, e Mr. Thornton e Higgins, o industrial no somente um demnio opressor sem escrpulos. Mesmo o operrio no o v desta maneira, como fica claro na fala do trabalhador Nicholas Higgins, quando se refere a um homem com quem vale a pena lutar. To srio quanto uma tranca de porta, um camarada obstinado em cada centmetro- um velho buldogue! (GASKELL, 2011, p. 108). No se trata, ento, de algum que se deve temer, uma pessoa difcil de lidar, mas que vale a pena negociao. Ao longo do romance, Mr. Thornton se aproxima do operariado a ponto de fazer melhorias na fbrica sugeridas por um dos trabalhadores.

O operrio no representado s por uma figura manipulvel. Higgins mostra-se capaz de debater as questes de classe de forma convincente e sensata, mostrando como no era impossvel classe trabalhadora possuir homens com conscincia de classe e to inteligentes como ele:

Os Sindicatos surgiram naqueles dias de dolorosa opresso: era uma necessidade. E ainda uma necessidade, na minha opinio. uma resistncia injustia passada, presente, ou um crime ainda maior deixar como est. Nossa nica chance unir os homens em torno de um interesse comum. E se alguns so covardes e alguns so tolos, eles tm que vir se juntar grande marcha, porque nossa nica fora sermos muitos.

-Oh! disse Margaret suspirando- Seu Sindicato, em si mesmo, seria bonito, glorioso- seria o prprio cristianismo- se no fosse para uma finalidade que afeta o bem de todos, em vez de somente afetar uma classe que se ope a outra. (GASKELL, p.185)A autora apresenta uma personagem principal feminina que sofre vrias mudanas ao longo da histria, elas relacionadas ao seu deslocamento do campo para a cidade industrial e, ao final do romance, para Londres; ou na observao e interao com a alta burguesia e com o proletariado agindo como uma mediadora e propondo alteraes nas relaes dessas duas classes. Gaskell mostra os conflitos e dificuldades scios econmicos tambm atravs das resolues da personagem principal, que gradualmente deixa de ver sua cidade natal, como uma aldeia de algum dos poemas de Tannyson e percebe tambm as dificuldades da cidade rural, nas palavras de Margaret:

- Eles sofrem muito l tambm, h tristeza por toda a parte. H muito trabalho manual a ser feito, e pouca comida para dar foras (...) s vezes a chuva forte, outras o frio enregelante. Uma pessoa jovem pode suportar, mas um homem velho atacado pelo reumatismo, e fica curvado e encolhido antes do tempo. Assim mesmo ele precisa trabalhar, ou ento vai para um asilo. (GASKELL, 2011, p.106)

Margaret deixa de ver a industrializao de maneira to negativa, no mais como se os comerciantes fossem somente oportunistas com os quais no vale a pena ter contato para compreender as dificuldades dos donos de fbricas e descobrir uma nova classe com a qual at ento ela no tivera contato: os operrios. Os quais num primeiro momento lhes parecem hostis:

Os operrios andavam apressados, os rostos audaciosos e destemidos, rindo e gracejando alto, especialmente com aqueles que pareciam estar acima deles em nvel ou posio social. No incio Margaret se sentia um pouco assustada com o tom alto e descontrolado de suas vozes, e com seu desprezo por todas as regras comuns de urbanidade. As moas, com sua liberdade rude, mas no inamistosa, comentavam sobre suas roupas, at mesmo tocavam seu vestido ou o xale para se certificarem de que material era feito. (...) Ela no se importava de encontrar uma poro de moas, por mais agitadas e falantes que fossem. Mas s vezes temia, s vezes se exaltava contra os homens, que faziam comentrios no mesmo modo fraco e destemido no sobre as suas roupas- mas sobre a sua aparncia. (GASKELL, p.57).

Essa viso da classe operria se modifica ao longo da trama aps um maior contato com a famlia Higgins, passando ento a conviver e compreender mais suas dificuldades e apreenses. Margaret vista no apenas como uma mediadora das rupturas e deslocamentos entre diferentes classes sociais; ela vive essas rupturas representadas especialmente por sua mobilidade, sua mudana de perspectiva ao longo do romance. Seu deslocamento levanta o problema do ponto de vista a partir do qual os problemas da modernidade e das relaes sociais modernas podem ser resolvidos. Em um dos dilogos com Mr. Thornton ela diz que:

Na realidade vejo duas classes dependentes uma da outra de todas as maneiras possveis, e ainda assim cada uma olha os interesses da outra como opostos de seus prprios. Nunca vivi em um lugar em que houvesse dois grupos de pessoas sempre criticando um ao outro. (GASKELL, 2011, p.95)

Segundo Wendy Perkins (2004) no se trata apenas um romance industrial, mas uma narrativa de modernidade onde a mulher burguesa apresentada com o papel central. A autora apresenta uma narrativa de modernidade sob a perspectiva de uma mulher da classe mdia, na qual ela produz uma representao complexa da experincia de modernidade das mulheres. 3.3 - Margaret: a mulher como observadora, sujeito e mediadora social

Norte e Sul apresenta a modernidade como um processo com participao feminina e considera como a situao das mulheres com a modernidade pode oferecer diferentes possibilidades de atuao, especialmente atravs da interveno tica e o dilogo para lidar com alguns dos deslocamentos. interessante chamar a ateno para o fato de que Margareth pertence classe mdia, mas ela, uma mulher, supostamente ignorante e alienada politicamente, que consegue perceber as condies dos trabalhadores e question-los. Michele Perrot (1998) aponta para o fato de que a mulher era um ser presumivelmente frgil, com rgos delicados e sujeitos a indisposies peridicas, seu lugar se restringia ao privado, submissa s convenes. Existia ainda uma crena mdica de que a mulher estava mais propensa loucura por conta da instabilidade de seu sistema nervoso, fato que era utilizado para negar-lhes direitos polticos e mant-las sob controle masculino.

Margaret rompe, em certa medida, com esse imaginrio social, apontado por Michele Perrot, e isso coloca a obra de Gaskell como reveladora de conflitos de gnero e de intencionalidades femininas que seriam silenciados em outros documentos. Sua personagem principal no se mostra muito apegada s convenes sociais, alis, ela se sente obrigada a se colocar contra elas em alguns momentos, quando, por exemplo, desde sua mudana para Milton ela vinha ajudando Dixon, a criada, com as tarefas domsticas:

No me importo de engomar, ou fazer qualquer outro tipo de trabalho para a senhora (Mrs. Hale) e o papai. Continuo sendo uma dama de nascimento e criao, mesmo que precise esfregar o cho ou lavar os pratos. Estou um pouco cansada agora, mas por pouco tempo. Dentro de meia hora estarei pronta para fazer tudo de novo. E quanto a Mr. Thornton ser um negociante, no se pode evitar, pobre coitado! No creio que sua educao o prepare para muito mais do que isso. (GASKELL, 2011, p. 61).

No era comum filha solteira de uma famlia que mantinham empregados fazer trabalhos domsticos. Para isso existia a figura da preceptora, que combinava as caractersticas da nobreza, pela educao, com as de classe operria, pela autonomia ao executar tarefas domsticas por dinheiro. A essa jovem solteira, mulher de classe mdia, era reservado o tempo para aprimoramento de suas habilidades femininas, tais como o bordado e o desenho, atividades essas s quais Margaret no se dedica.

Em diversos momentos no romance Margaret colocada em situaes em que tem que tomar o comando, quando seu pai Mr. Hale, um homem apresentado como frgil e sem pulso (outra ousadia de Gaskell quanto aos valores masculinos) passa a ter dvidas com relao Igreja, de modo que sua conscincia no o permitiria continuar a ser um proco. Devido a isso, sua famlia deveria deixar a adorada Helstone no sul e mudar-se para a cidade industrial de Milton North onde Mr. Hale, por indicao de seu velho amigo Mr. Bell, trabalharia como professor particular. Caberia a Margaret a tarefa de contar sua me os desejos de seu pai, que no conseguiria causar mais dor a algum, especialmente sua esposa. Sentiu que no importava o quanto ela tivesse errado em seu descontentamento e aflio, fora uma falta do pai deixar que a esposa soubesse da sua mudana de opinio e da sua mudana de vida- atravs da filha mais bem informada do que ela. (GASKELL, p.37).

importante lembrar, tambm, a desigualdade de gnero representada pela viso de Bessy que, alm de ter enfrentado por toda a sua vida a disciplina da fbrica e as limitaes de uma mulher operria, mesmo com toda a explorao, percebe que os homens so mais livres, e que ela ainda mais oprimida:

Sei que eu fui e comprei um po de quatro libras na loja de outro padeiro, em um desses dias, s porque eu estava enjoada de ver sempre a mesma coisa, ouvir o mesmo som nos meus ouvidos e o mesmo gosto na minha boca e o mesmo pensamento (ou nenhum pensamento, at) na minha cabea, dia aps dia, para sempre. Queria tanto ser um homem para poder ir me divertir, mesmo que fosse apenas um vagabundo andando para algum lugar em busca de trabalho. E o pai - e todos os homens sentem isso com mais fora ainda do que eu; ficam cansados da mesmice, e de trabalhar para sempre. (...) Mas veja- e agora sua voz assumiu um tom triste e lamentoso- em tempo de greve h muitas coisas para abater um homem, pois comeam to esperanosos, e onde encontram consolo? (GASKELL, 2011, p.109).A literatura, por meio de Bessy, denuncia a dupla opresso sobre as operrias, alm de desconstruir a imagem de uma mulher ignorante e alheia ao social. Como pensou Joan Scotr, sobre as relaes de gnero no serem essncias, mas construes, Gaskell se atreve a demonstrar que, apesar das limitaes do conhecimento de uma mulher sobre economia e poltica, haveria a possibilidade de mulheres pensarem por si. Especialmente nos dilogos entre Mr. Thornton e Margaret, eventualmente com a participao de Mr. Hale; Mr. Thornton e Higgins; e Higgins e Margaret, isso tambm fica claro. Em uma das conversas com Mr. Thornton, quando Mr. Hale lhe pergunta se h a necessidade de chamar a relao entre o trabalhador e os donos de fbricas de uma batalha entre duas classes ele lhe diz que:

uma das grandes belezas do nosso sistema: que um trabalhador possa elevar-se ao poder e posio de patro pelos seus prprios esforos e atitudes; que, de fato, qualquer um que paute o seu comportamento pela decncia e a sobriedade de conduta que cumpra as suas obrigaes, pode entrar no nosso meio. No precisa sempre ser como patro, mas como supervisor, caixa, guarda-livros, escriturrio, ou algum do lado da autoridade e da ordem. (GASKELL, 2011, p. 67.).Seu atrevimento tambm se coloca ao introduzir no livro uma greve dos trabalhadores, expressando suas motivaes e anseios nas falas dos