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2014 Curitiba Coleção CONPEDI/UNICURITIBA Organizadores PROF. DR. ORIDES MEZZAROBA PROF. DR. RAYMUNDO JULIANO REGO FEITOSA PROF. DR. VLADMIR OLIVEIRA DA SILVEIRA PROFª. DRª. VIVIANE COÊLHO DE SÉLLOS-KNOERR Vol. 37 TEORIA DO ESTADO E DA CONSTITUIÇÃO Coordenadores PROF. DR. ROGÉRIO DULTRA DOS SANTOS PROF. DR. EMERSON GABARDO PROFª. DRª. JANAINA RIGO SANTIN 2014 Curitiba

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2014 Curitiba

Coleção CONPEDI/UNICURITIBA

Organizadores

Prof. Dr. oriDes Mezzaroba

Prof. Dr. rayMunDo Juliano rego feitosa

Prof. Dr. VlaDMir oliVeira Da silVeira

Profª. Drª. ViViane Coêlho De séllos-Knoerr

Vol. 37

TEORIA DO ESTADO E DA CONSTITUIÇÃO

Coordenadores

Prof. Dr. rogério Dultra Dos santos

Prof. Dr. eMerson gaBarDo

Profª. Drª. Janaina rigo santin

2014 Curitiba

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Nossos Contatos

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Editora Responsável: Verônica GottgtroyCapa: Editora Clássica

Equipe Editorial

EDITORA CLÁSSICA

Allessandra Neves FerreiraAlexandre Walmott Borges Daniel Ferreira Elizabeth Accioly Everton Gonçalves Fernando Knoerr Francisco Cardozo de Oliveira Francisval Mendes Ilton Garcia da Costa Ivan Motta Ivo Dantas Jonathan Barros VitaJosé Edmilson Lima Juliana Cristina Busnardo de Araujo Lafayete PozzoliLeonardo Rabelo Lívia Gaigher Bósio Campello Lucimeiry Galvão

Luiz Eduardo GuntherLuisa Moura Mara Darcanchy Massako Shirai Mateus Eduardo Nunes Bertoncini Nilson Araújo de Souza Norma Padilha Paulo Ricardo Opuszka Roberto Genofre Salim Reis Valesca Raizer Borges Moschen Vanessa Caporlingua Viviane Coelho de Séllos-Knoerr Vladmir Silveira Wagner Ginotti Wagner Menezes Willians Franklin Lira dos Santos

Conselho Editorial

S964Teoria do Estado e a Constituição

Coleção Conpedi/Unicuritiba.Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira / Viviane Coêlho Séllos-Knoerr.Coordenadores : Rogério Dultra dos Santos/Emerson Gabardo/ Janaina Rigo Santin.Título independente - Curitiba - PR . : vol.37 - 1ª ed. Clássica Editora, 2014.622p. :

ISBN 978-85-8433-025-6

1. Novo paradigma. 2. Direito fundamental. I. Título. CDD 341.201

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MEMBROS DA DIRETORIA Vladmir Oliveira da Silveira

Presidente Cesar Augusto de Castro Fiuza

Vice-Presidente Aires José Rover

Secretário Executivo Gina Vidal Marcílio Pompeu

Secretário-Adjunto

Conselho Fiscal Valesca Borges Raizer Moschen

Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa João Marcelo Assafim

Antonio Carlos Diniz Murta (suplente) Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente)

Representante Discente Ilton Norberto Robl Filho (titular)

Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente)

Colaboradores

Elisangela Pruencio Graduanda em Administração - Faculdade Decisão

Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira Graduada em Administração - UFSC

Rafaela Goulart de Andrade Graduanda em Ciências da Computação – UFSC

DiagramadorMarcus Souza Rodrigues

XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBACentro Universitário Curitiba / Curitiba – PR

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Sumário

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................

A LEGITIMIDADE DO ESTADO DE DIREITO NAS RAIAS DA DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL (Vinícius Silva Bonfim) ................................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

O DIREITO COMO UM ELEMENTO CONSTITUTIVO DE SEU TEMPO ......................................................

HABERMAS E A DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL: O USO COMPLEMENTAR DA TESE DO PATRIOTISMO CONSTITUCIONAL COMO FUNDAMENTO DE LEGITIMIDADE DO ESTADO DE DIREITO

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

NEOLIBERALISMO E CRISE DO WELFARE STATE: A RECONFIGURAÇÃO DO PAPEL DO ESTADO NA ECONOMIA GLOBALIZADA (Julia Lafayette Pereira) ................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

A CRISE DO ESTADO DO BEM-ESTAR SOCIAL NA ECONOMIA GLOBALIZADA .......................................

A RECONFIGURAÇÃO DO PAPEL DO ESTADO NA ECONOMIA GLOBALIZADA .......................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

REFLEXÕES SOBRE A CRISE FINANCEIRA INTERNACIONAL E O ESTADO DE BEM-ESTAR (Paulo Márcio Cruz) ...............................................................................................................................................

PARA COMEÇAR: NOTAS DE INTRODUÇÃO .............................................................................................

PARA DESENVOLVER: O ESTADO DE BEM ESTAR E ALGUMAS ABORDAGENS IMPORTANTES ...............

PARA TERMINAR: EM DIREÇÃO À DEFINIÇÃO DE UM NOVO MODELO DE ESTADO NA EUROPA. LIMITES E PRÉ-CONDIÇÕES ......................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

O ESTADO DE EXCEÇÃO E A GARANTIA DA DEMOCRACIA (Francisco de Albuquerque Nogueira Júnior) ...

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

DO ESTADO DE EXCEÇÃO EM CARL SCHMITT ..........................................................................................

DO ESTADO DE EXCEÇÃO EM GIORGIO AGAMBEN .................................................................................

DO ESTADO DE EXCEÇÃO SEGUNDO KARL MARX ...................................................................................

DO ESTADO DE EXCEÇÃO NA DEMOCRACIA BRASILEIRA .......................................................................

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CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

BREVES NOTAS POR UMA RESSIGNIFICAÇÃO DA TEORIA GERAL DO ESTADO A PARTIR DOS DIREITOS HUMANOS E DO HUMANISMO JURÍDICO: HERMENÊUTICA E RACIONALIDADE NO ESTADO HUMANISTA (Gisela Maria Bester e Eliseu Raphael Venturi) ......................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

TEORIA GERAL DO ESTADO E FILOSOFIA POLÍTICA: PROBLEMÁTICAS DO ESTADO E INFLUÊNCIAS NA CONSTITUIÇÃO DO HUMANISMO JURÍDICO ....................................................................................

O ESTADO HUMANISTA E A HERMENÊUTICA JURÍDICA: RACIONALIDADE PRÓPRIA E VISÃO DE MUNDO .....................................................................................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

A LIBERTAÇÃO COMO OBJETIVO CENTRAL DO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO: OS CAMIMNHOS PARA UM CONSTITUCIONALISMO DA LIBERTAÇÃO (Adriano Corrêa de Sousa) .........................................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO NO CONTEXTO REGIONAL ...............................

DEPENDÊNCIA E LIBERTAÇÃO NA AMÉRICA LATINA ..............................................................................

O OPRIMIDO E OS CAMINHOS PARA UM CONSTITUCIONALISMO DA LIBERTAÇÃO ...............................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

A NOÇÃO DE JUSTIÇA SOCIAL EM NANCY FRASER E O ESTADO PLURINACIONAL: DA REIFICAÇÃO CULTURAL PELA IDENTIDADE NACIONAL AO RECONHECIMENTO PARITÁRIO DO OUTRO (Heleno Florindo da Silva e Daury César Fabriz) .......................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

A CONCEPÇÃO BIDIMENSIONAL DE JUSTIÇA SOCIAL EM NANCY FRASER: APOLÍTICA DO RECONHECIMENTO E OS PROBLEMAS DO ESTADO MODERNO NACIONAL EM QUE VIVEMOS ...........

A ESPERANÇA QUE NASCE NA AMÉRICA DO SUL: DE COMO O MODELO PLURINACIONAL DE ESTADO RESPONDE AOS PROBLEMAS DO ESTADO MODERNO NACIONAL APONTADOS POR NANCY FRASER

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................................................................

O PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO E A INFLUÊNCIA DOS FINANCIADORES DE CAMPANHA SOBRE A IMPLANTAÇÃO DE PROJETOS DE ENERGIA CONVENCIONAL NA AMAZÔNIA BRASILEIRA E NA PATAGÔNIA CHILENA(Abraão Soares Dias Dos Santos Gracco e Renata Soares Machado Guimarães de Abreu)

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

OS PRECEDENTES DA REMODELAGEM REPRESENTATIVA BRASILEIRA E CHILENA NOS PROCESSOS

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DE TOMADA DE DECISÕES ........................................................................................................................

A INFLUÊNCIA DOS FINANCIADORES DE CAMPANHAS NOS PROJETOS HIDRELÉTRICOS NA AMAZÔNIA BRASILEIRA E NA PATAGÔNIA CHILENA ..............................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

CONSTITUIÇÃO, ESTADO PLURINACIONAL E AUTODETERMINAÇÃO ÉTNICO-INDÍGENA: UM GIRO AO CONSTITUCIONALISMO LATINOAMERICANO ( Sandra Nascimento) ....................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

O CONSTITUCIONALISMO NA AMÉRICA LATINA E A QUESTÃO INDÍGENA ...........................................

O CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E A PLURINACIONALIDADE ......................................

NORMATIVIDADE CONSTITUCIONAL, PLURALISMO JURÍDICO E DIVERSIDADE ÉTNICO-INDÍGENA .

O SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO E A AUTODETERMINAÇÃO INDÍGENA: PARÂMETROS ÉTNICO-INDÍGENAS PARA A ADEQUADA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL ...................................

TERRITORIALIDADE E IDENTIDADE ÉTNICO-INDÍGENA: O QUE É TERRA INDÍGENA DE OCUPAÇÃO TRADICIONAL NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO ................................................................................

O CASO GUARANI KAIOWA E O TERRITÓRIO LARANJEIRA ÑANDERU: DEMARCAÇÃO TERRITORIALE OS PARADOXOS DA CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL ...................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

DEMOCRACIA E CONSTITUIÇÃO: CONTROLE PREVENTIVO DOS ATOS INTERNA CORPORIS DO LEGISLATIVO PELO PODER JUDICIÁRIO (Martonio Mont’Alverne Barreto Lima e Maria Alice Pinheiro Nogueira) ....................................................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

PODER LEGISLATIVO E DEMOCRACIA ......................................................................................................

O PODER LEGISLATIVO, OS ATOS INTERNA CORPORIS E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE .

O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA ........................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

DEVER FUNDAMENTAL DE ATUAÇÃO DO ESTADO COMO ELEMENTO PROMOTOR DA IGUALDA-DE SUBSTANCIAL E EFETIVIDADE DO SISTEMA CONSTITUCIONAL: DESDOBRAMENTOS DA DIG-NIDADE DA PESSOA HUMANA(Marília Ferreira da Silva, Erick Wilson Pereira) .....................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

A INTERSECÇÃO ENTRE DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DEVERES FUNDAMENTAIS .......................

DEVER DE ATUAÇÃO DO ESTADO COMO DESDOBRAMENTO DA DIGNIDADE PESSOA HUMANA .......

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CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

FEDERALISMO E PODER JUDICIÁRIO: A ATUAÇÃO DO STF NAS DISPUTAS FEDERATIVAS(Fernando Santos de Camargo) ....................................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

JUDICIÁRIO E FEDERALISMO ...................................................................................................................

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NAS DISPUTAS FEDERATIVAS ...........................................................

O PAPEL DO JUDICIÁRIO EM SISTEMAS FEDERATIVOS: QUESTÕES DE PESQUISA ...............................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................................................................

FIDELIDADE PARTIDÁRIA: A VONTADE DA CONSTITUIÇÃO, DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO POVO (Carina de Castro Quirino e Pedro Federici Araújo) ....................................................................

NOTAS INTRODUTÓRIAS ..........................................................................................................................

RELATO DO JULGAMENTO DO STF SOBRE FIDELIDADE PARTIDÁRIA – TESE VENCEDORA E TESE VENCIDA ....................................................................................................................................................

VOTO NOMINAL VERSUS VOTO PARTIDÁRIO ..........................................................................................

O DESCOMPASSO ENTRE A DECISÃO DO STF E A A REALIDADE DAS URNAS ........................................

ALTERNATIVA À DECISÃO DO STF E A CANDIDATURA SEM VINCULAÇÃO PARTIDÁRIA ............................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

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Caríssimo(a) Associado(a),

Apresento o livro do Grupo de Trabalho Teoria do Estado e da Constituição, do XXII

Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito

(CONPEDI), realizado no Centro Universitário Curitiba (UNICURUTIBA/PR), entre os dias

29 de maio e 1º de junho de 2013.

O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente

de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos

da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma

reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito,

nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela

tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do

processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos

parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN

do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da

Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro

Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas.

Com relação ao CONPEDI, consolidamos a marca de mais de 1.500 artigos submetidos,

tanto nos encontros como em nossos congressos. Nesse sentido é evidente o aumento da

produção na área, comprovável inclusive por outros indicadores. Vale salientar que apenas no

âmbito desse encontro serão publicados 36 livros, num total de 784 artigos. Definimos a

mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs – o que tem contribuído não

apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas, mas de reforçar as

especificidades de nossa área, conforme amplamente debatido nos eventos.

Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a

enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2)

aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a

todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiram-

nos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

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selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido

mais difícil.

Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada

em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para

seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e

que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto

para eventos.

O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso

comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de

2016, assim como do Qualis 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão

sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que

inserirem seus dados.

Futuramente, o INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os

programas, garantindo maior transparência e previsibilidade – em resumo, uma melhor

fotografia da área do Direito. Destarte, tenho certeza de que será compensador o amplo esforço

no preenchimento dos dados dos últimos três anos – principalmente dos grandes programas –,

mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será fundamental na elaboração da

segunda versão, disponível em 2014.

Com relação ao segundo balanço, após inúmeras viagens e visitas a dezenas de

programas neste triênio, estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará

importantes conquistas. Dentre elas pode-se citar o aumento de programas com nota 04 e 05,

além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota 07. Em que pese as

dificuldades, não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas do

Direito. Nesse sentido, importa registrar a grande liderança do professor Martônio, que soube

conduzir a área com grande competência, diálogo, presença e honestidade. Com tal conjunto de

elementos, já podemos comparar nossos números e critérios aos das demais áreas, o que será

fundamental para a avaliação dos programas 06 e 07.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

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Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III

Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o

estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores

do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo

livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras

parcerias e editais para a área do Direito.

Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de

Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do

UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro.

Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que

agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada

logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais.

Curitiba, inverno de 2013.

Vladmir Oliveira da Silveira

Presidente do CONPEDI

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

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Apresentação

Impossível deixar de reconhecer a importância desempenhada pelo fenômeno estatal

na modernidade e o papel da Teoria do Estado para desvendar as inúmeras matizes dessa

instituição elementar, sua estrutura, seu funcionamento, bem como sua relação com o sistema

jurídico e os direitos fundamentais. Afinal, é no Estado que se encontra o locus privilegiado de

emanação do jurídico, em uma íntima ligação entre a Teoria do Estado e a Teoria da

Constituição, eis que, tradicionalmente, o fenômeno constitucional disciplina a organização e a

limitação dos poderes estatais.

Entretanto, a complexidade das transformações estatais neste limiar do século XXI

exige um novo olhar sobre a Teoria do Estado e da Constituição, capaz de reconhecer a

travessia em curso, porém destinado a inaugurar uma nova visão dos fenômenos estatal e

constitucional, a partir da articulação dos os elementos que conformam a sociedade política

com os elementos da sociedade civil.

Nesse sentido, o XXII Encontro Nacional do CONPEDI teve como tema: 25 Anos

da Constituição Cidadã: os atores sociais e a concretização sustentável dos objetivos da

República. Realizou-se nos dias 29 de maio a 01 de junho de 2013, nas dependências da

Unicuritiba, em Curitiba-PR, congregando pesquisadores de instituições e programas de

Mestrado e Doutorado das mais diversas partes do Brasil e do exterior.

Fazendo jus à elevada relevância do tema, o grupo de trabalho Teoria do Estado e

da Constituição apresentou sua contribuição ao debate, a partir de três eixos temáticos: Eixo I-

Teoria do Estado e Novos Paradigmas (artigos 1 a 9). Eixo II- Teoria da Constituição e

Direitos Fundamentais (artigos 10 a 15). Eixo III- Controle de Constitucionalidade e

Judicialização da Política (artigos 16 a 26).

Na primeira parte deste livro coletivo tem-se o eixo temático intitulado “Teoria do

Estado e Novos Paradigmas”, reunindo os primeiros nove artigos aprovados para publicação

no evento.

Nesse contexto, Vinícius Silva Bonfim apresenta seu artigo “A Legitimidade do

Estado de Direito nas Raias da Democracia Constitucional”. O artigo analisa criticamente a

função da cidadania na efetividade da Constituição, uma vez que o processo de construção

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democrática é um vir a ser contínuo de luta por reconhecimento de direitos. Para o autor,

alicerçado no pensamento habermasiano, em uma democracia constitucional é necessário que

os cidadãos se reconheçam como coautores das decisões do Estado. É uma via de mão dupla,

pois o Estado só possui o monopólio da coerção em virtude da liberdade dos indivíduos de

constituí- lo.

Por sua vez, Julia Lafayette Pereira discute, no artigo “Neoliberalismo e Crise do

Welfare State: a reconfiguração do papel do Estado na economia globalizada”, a mudança do

papel do Estado em face ao modelo econômico neoliberal, sobretudo no que concerne ao

Direito e à prestação jurisdicional. Se antes cabia ao Estado elaborar planos econômicos

guiados pelos seus próprios objetivos, direcionados à concretização dos direitos dos cidadãos,

no cenário contemporâneo a autora entende que o Estado governa para e em função da

economia.

Já o artigo “Reflexões sobre a Crise Financeira Internacional e o Estado de Bem

Estar”, de Paulo Márcio Cruz, traz a discussão sobre os reflexos da atual crise financeira global

nas estruturas do Estado de Bem Estar europeu. Para o autor, a crise abre possibilidade para

questionamentos dos modelos existentes de Estado de Bem Estar sob diversos ângulos,

colocando dúvidas sobre a atual oportunidade e viabilidade do mesmo. O objetivo do artigo é

incitar a discussão acerca dos limites e do destino próximo do Estado de Bem Estar frente à

crise financeira internacional.

No artigo “O Estado de Exceção e a Garantia da Democracia”, Francisco de

Albuquerque Nogueira Júnior aborda a reflexão filosófica doutrinária que compreende a

natureza e as características da excepcionalidade, suas relações com a soberania estatal, as

consequências advindas de sua institucionalização na Constituição da República Federativa do

Brasil de 1988 e o complexo relacional de sua existência como garantia da própria democracia.

Por sua vez, os autores Eliseu Raphael Venturini e Gisela Maria Bester, no artigo

“Breves Notas por uma Ressignificação da Teoria Geral do Estado a partir dos Direitos

Humanos e do Humanismo Jurídico: hermenêutica e racionalidade no Estado humanista”

refletem sobre a ressignificação da Teoria Geral do Estado, em especial os aportes da Filosofia

Política, a partir da prevalência dos direitos humanos, verificável na teoria jurídica

contemporânea e no modelo de Estado Humanista. A hipótese central a ser discutida, portanto,

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é a de que o advento histórico do Estado Humanista, qualificado assim por conta da

prevalência dos direitos humanos e do humanismo jurídico como cosmovisão construída em

torno de sua vigência, repercute diretamente no orbe conteudístico da Teoria Geral do Estado,

cujo próprio objeto maior – o Estado – se redimensionou.

Adriano Corrêa de Sousa, no artigo “A Libertação como Objetivo Central do Novo

Constitucionalismo Latino-Americano: os caminhos para um constitucionalismo da libertação”

informa que o novo constitucionalismo latino-americano erige com um conjunto normativo de

densidade democrática e pluralista e até então não experimentados no âmbito do

constitucionalismo regional. Tal fenômeno resultou na incorporação no texto constitucional das

cosmovisões dos povos indígenas originários, traduzido por bem viver, especificamente dos

quíchuas na Constituição do Equador, de 2008, e dos aimarás na Constituição da Bolívia, de

2009. Para o autor, o ponto central desse novo constitucionalismo é o olhar dispensado ao

oprimido, que está nessa condição por ser pobre, ameríndio, negro, mulher, ou seja, por ser o

“outro”.

Já o artigo “A Noção de Justiça Social em Nancy Fraser e o Estado Plurinacional: da

reificação cultural pela identidade nacional ao reconhecimento paritário do outro”, dos autores

Heleno Florindo da Silva e Daury Cesar Fabriz, busca analisar a relação entre as construções

teóricas de Nancy Fraser acerca do reconhecimento, com os aspectos gerais do novo modelo de

Estado Plurinacional surgido na América Latina. Entendem que o Modelo Plurinacional de

Estado pode responder aos problemas do Estado Moderno Nacional rumo a uma justiça social

efetiva, na qual redistribuição e reconhecimento sejam vistos como faces de uma mesma

moeda.

Por sua vez, o artigo “O Presidencialismo de Coalizão e a Influência dos

Financiadores de Campanha sobre a Implantação de Projetos de Energia Convencional na

Amazônia Brasileira e na Patagônia Chilena”, de Abraão Soares Dias dos Santos Gracco e

Renata Soares Machado Guimarães de Abreu analisa a influência dos financiadores de

campanha no que chama de presidencialismo de coalizão do Brasil e do Chile, com

características de clivagem institucional para obter ou continuar obtendo alguma vantagem no

esteio da máquina pública e influenciar o processo de tomada de decisões sobre a implantação

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dos grandes projetos de energia convencional em biomas estratégicos, como as hidrelétricas na

região da Amazônia brasileira e na Patagônia chilena.

Por fim, esta primeira parte da obra encerra com a colaboração de Sandra

Nascimento, no artigo intitulado “Constituição, Estado Plurinacional e Autodeterminação

Étnico-Indígena: um giro ao constitucionalismo latinoamericano”. A autora discute a

normatividade constitucional em sistemas sociais pluriétnicos e pluriculturais, tomando como

referência o discurso institucional jurisdicional na questão das retomadas dos territórios

indígenas. A reflexão abrange o paradoxo da “constitucionalização” dos direitos dos “índios”

decorrentes dos seus costumes, tradições e direitos sobre as terras que tradicionalmente

ocupam e a resposta jurídica racialista, conservadora e positivista que ainda domina o cenário

jurídico brasileiro.

Um segundo núcleo estruturante das apresentações tratou da temática geral “Teoria

da Constituição e Direitos Fundamentais”. Foram apresentadas seis pesquisas de alta

relevância e atualidade.

O professor Martonio Mont’Alverne Barreto Lima também apresentou um trabalho

em conjunto com Maria Alice Pinheiro Nogueira, sobre o tema “Democracia e Constituição:

controle preventivo dos atos interna corporis do Legislativo pelo Poder Judiciário”. A ideia

fundamental de sua investigação é tecer um discurso crítico relativamente à postura ativista do

Supremo Tribunal Federal. Para tanto tomou como objeto central a questão do controle dos

atos interna corporis do Poder Legislativo. Após fazer uma verificação atenta da questão, os

autores concluem que é preciso fortalecer o Parlamento, notadamente se for considerada a atual

cultura brasileira, que se denota inserida em um paradigma que chamam de “juristocracia”.

“O Dever Fundamental de Atuação do Estado como Elemento Promotor da

Igualdade Substancial e Efetividade do Sistema Constitucional: desdobramentos da dignidade

da pessoa humana”, foi o assunto tratado por Marília Ferreira da Silva e Erick Wilson Pereira.

O pano de fundo da pesquisa é o descompasso entre um número crescente de direitos,

notadamente de natureza fundamental constitucional e o alto índice de não concretização

destes direitos. Como resposta ao problema propugnam por uma maior ênfase dos estudos

sobre o dever fundamental de atuação concreta do Estado na garantia de direitos. Denunciam a

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pouca doutrina na matéria e buscam um deslocamento da reflexão da fundamentação dos

direitos em si, ruma à preocupação com sua efetividade.

Também tratando do Poder Judiciário (tema recorrente nos trabalhos apresentados

no grupo) mas agora mediante outro enfoque, Fernando Santos de Camargo refletiu sobre o

tema “Federalismo e Poder Judiciário: a atuação do STF nas disputas federativas”. O seu texto

inicia com uma apresentação descritiva para o fim de propor a importância da atuação judicial

na concretização do processo de centralização e descentralização federativa. Após tecidas as

considerações preliminares e apresentado como é o desenvolvimento temático o Brasil, o autor

conclui que, aparentemente, o STF possui uma inclinação em favor do entre central, mas

ressalva que para ser efetuada uma proposição mais contundente é necessária a continuidade da

pesquisa.

Carina de Castro Quirino e Pedro Federici Araújo defenderam suas conclusões

relativas à investigação intitulada “Fidelidade Partidária: a vontade da Constituição, do

Supremo Tribunal Federal e do Povo”. A discussão não poderia ser mais atraente em face à

conjuntura político-social brasileira. O foco do trabalho foi a tratativa da legitimidade das

decisões referentes ao sistema representativo indireto existente no Brasil. Os autores não se

limitam a descrever a questão, propondo de forma concreta que a decisão do STF que confere

aos partidos o direito ao mandato não corresponde à vontade popular, pelo que é merecedora

de críticas e de uma necessária revisão em prol de uma maior realização da democracia.

No texto “Constituição e Paradoxos da Afirmação da Cidadania no Brasil: o caso

das forças armadas no texto constitucional de 1988”, os autores José Adeildo Bezerra de

Oliveira e Zaneir Gonçalves Teixeira problematizam, a partir de uma análise histórica e

jurídica, o processo de construção da cidadania no Brasil pós-1988, observando as condições

de elaboração da Constituição Federal vigente e explicitando aspectos paradoxais de seu texto

quanto ao papel constitucional das Forças Armadas.

Por fim, no texto “A CNI e a Defesa da Constituição: um retrato da atuação de uma

confederação sindical empresarial como intérprete constitucional no marco do Estado

Democrático de Direito”, de Camilla de Oliveira Cavalcanti, examina-se a atuação da

Confederação Nacional da Indústria (CNI) como intérprete da Constituição Federal de 1988 no

processo de controle concentrado de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.

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Insere-se na discussão o papel de uma Constituição e a forma como assegurar sua força

normativa em meio a constantes transformações econômicas e sociais.

O terceiro e último núcleo estruturante das apresentações do Grupo de Trabalho tratou

da temática “Controle de Constitucionalidade e Judicialização da Política ”. Os textos

reunidos sob esta temática geral tratam especificamente dos desdobramentos políticos e

institucionais da efetivação da Constituição de 1988 no Brasil, tendo como um elemento de

destaque o papel do Poder Judiciário nas suas mais variadas funções.

No texto “Governabilidade e capacidade para emendar: o Poder Executivo e as

Emendas Constitucionais”, o acadêmico Henrique Rangel e o professor Carlos Bolonha

analisam, a partir de um marco teórico institucionalista, que une Direito e Ciência Política, a

questão das Emendas Constitucionais. Abordam este objeto a partir do problema político do

presidencialismo de coalizão, relacionando governabilidade e capacidade de emenda do

Executivo. Avaliam que, mesmo com a possibilidade da redução da influência do Executivo no

Congresso Nacional, não diminui a sua governabilidade, o que aponta para o caráter sistêmico

das coalizões nas democracias contemporâneas. Realizam a pesquisa levando em conta a

análise das Emendas à Constituição de 1988, avaliando a participação do Executivo na sua

elaboração e no seu encaminhamento, bem como os desdobramentos de sua relação com o

Poder Legislativo e com o Poder Judiciário.

No artigo “O direito fundamental a limitação da jornada de trabalho: uma análise do

projeto de Emenda Constitucional do empregado doméstico”, o mestrando Murilo Kerche de

Oliveira e a professora Mirta Lerena Misailidis examinam um tema bastante discutido durante

o ano de 2013, o limite da jornada de trabalho do empregado doméstico. Analisam não

somente a PEC nº66/2012 em votação no Congresso Nacional e os benefícios que traz para o

empregado doméstico, mas o impacto político e social da incorporação desta medida no

ordenamento jurídico brasileiro.

“A natureza jurídica do Tribunal de Contas da União: uma análise sob a ótica da Teoria

Geral do Estado, do Direito Administrativo e do Direito Constitucional”, da professora

Fernanda de Carvalho Lage, é um artigo que tem a pretensão de avaliar a questão da separação

de poderes no Brasil a partir do funcionamento de órgãos de controle como é o caso do

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Tribunal de Contas da União. O objetivo do trabalho, que tem natureza interdisciplinar, é

determinar a natureza jurídica do órgão, dando relevância especial à sua independência.

“A crise funcional do estado contemporâneo brasileiro: uma análise das PEC´s nº

03/2011, nº 33/2011 e do PRC 21/2011”, da mestranda Mirelle Monte Soares, entende a

relação entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário como explicitadora de uma crise

institucional, caracterizada pela disputa por prerrogativas. Analisa, em especial, a PEC nº

3/2011, a PEC nº 33/2011 e o PRC nº 21/2011, de autoria do Deputado Federal Nazareno

Fonteles. Considera que a crise do Estado Brasileiro se mensura exatamente pelo processo de

judicialização da política e, em especial, pela extrapolação dos poderes experimentada pelo

STF.

Já o artigo “O Judiciário como intérprete oficial da Constituição: mitos, incongruências

e problemas democráticos a partir da análise comparada do Direito norte-americano”, Lara

Freire Bezerra de Sant’Anna foca um tema específico, o controle judicial de

constitucionalidade. Entretanto, seguindo a tendência crítica do artigo anterior, examina a ideia

de supremacia da interpretação judicial da Constituição. Realiza este exame a partir do direito

comparado, avaliando os caminhos históricos que separam a construção do instituto no Direito

norte-americano e as consequências políticas e filosóficas de suas incongruências no Direito

brasileiro.

Ainda sobre a temática de crítica ao controle judicial de constitucionalidade, “A

judicialização da política como corolário da globalização: desvio de finalidade ou redefinição

de papéis?” é um texto seminal, em que os professores José Querino Tavares Neto e Juvêncio

Borges Silva examinam o enfraquecimento do caráter dirigente, inscrito originariamente na

Constituição de 1988, pela influência do fenômeno da globalização. Um termômetro da erosão

do poder e alcance do Estado-Nação como elemento conceitual e político que poderia guiar o

desenvolvimento da soberania brasileira e o fenômeno da judicialização da política. Os autores,

lançando mão de uma bibliografia sofisticada e extremamente atual, avaliam a transformação –

ao mesmo tempo sutil e profunda – do Estado brasileiro e da divisão dos poderes da Nação

tendo em conta o fenômeno da judicialização.

“O amparo da Revisão Judicial na Constituição brasileira”, é um artigo em que as

professoras Katya Kozicki e Lissandra Espinosa de Mello Aguirre examinam o controle de

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constitucionalidade no Brasil e a origem técnica do judicial review. O artigo tem como

horizonte de sentido verificar a implementação dos direitos fundamentais, em especial os

direitos de minorias, através deste instituto. Consideram que a supremacia do Poder Judiciário

é uma exigência para a realização prática do Estado Democrático de Direito. Na sua origem

histórica, a prática da revisão judicial estaria intimamente ligada à realização da democracia, na

medida em que, segundo o argumento das autoras, seu funcionamento é um limitador

institucional à tirania das maiorias.

No artigo “A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: delineamentos da

Lei n. 9.882/99 - aptidão para o questionamento de atos formal e materialmente legislativos”,

os professores Alexandre Walmott Borges e Luciana Campanelli Romeu fazem uma análise

detalhada, na melhor tradição da dogmática constitucional, da ADPF. A examinam levando em

conta que o seu funcionamento constitucional deve obedecer a principiologia de divisão

funcional e orgânica dos poderes. Negam, com base neste aspecto de fundo, a possibilidade de

que a ADPF seja cabível para questionar os atos formal e materialmente legislativos, mesmo

diante da possibilidade de violação de preceito fundamental. Concluem, dentre outros pontos,

ser viável o questionamento por arguição dos atos legislativos meramente formais, como os

atos administrativos.

O tema da preservação do caráter federativo do Estado brasileiro aparece como nuclear

no artigo “Representação Interventiva Federal: relevantes e inovadoras alterações inseridas

pela Lei Nº 12.562, de 23 de dezembro de 2011”, dos professores Jader Ferreira Guimarães e

Renata Vitória Oliveira Dos Santos Trancoso. Os autores argumentam que a representação

interventiva deve ser reexaminada tendo em vista as alterações trazidas pela legislação de

2011, em especial no que tange à legitimidade ativa e aos requisitos para a sua propositura.

Um dos textos mais inovadores da coletânea aqui apresentada é o “Poder Executivo e

Poder Judiciário: o Estado brasileiro frente a expulsão de estrangeiros na Era Vargas”, de

Álvaro Gonçalves Antunes Andreucci e Osvaldo Estrela Viegaz. A utilização de método

historiográfico, em especial a pesquisa de arquivos, trouxe à tona um caso exemplar das

relações tensas entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário, no caso de extradição de caráter

político durante o período em torno da Segunda Guerra Mundial. Valendo-se do exame dos

processos de expulsão realizados pelo Supremo Tribunal Federal, o artigo avalia o caráter

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eminentemente político das decisões do STF, ora avalizando, ora combatendo o caráter

claramente ilegal de inúmeros atos do Poder Executivo.

Finalmente, encerrando as contribuições relativas ao estudo do processo de

judicialização, temos o texto “O constitucionalismo e a nova moral tributária: o estado

constitucional brasileiro e seus reflexos no Direito Tributário”, do mestrando Antonio Alves

Pereira Netto. Neste trabalho, o autor examina como o forte ativismo judicial altera

substantivamente o escopo e o alcance de princípios constitucionais tributários, com uma

modificação clara na justificação do poder de tributar. O texto analisa a relação desta mutação

do sentido dos princípios tributários à luz do processo de globalização e de judicialização da

política, avaliando de forma contundentemente crítica o surgimento de um “novo conjunto de

preceitos morais” que objetivaria legitimar e controlar a execução de normas de direito

tributário no Brasil.

Assim, é com grande satisfação que apresentamos a comunidade jurídica a presente

obra. Que todos possam se valer dos inúmeros ensinamentos aqui presentes.

Coordenadores do Grupo de Trabalho

Professor Doutor Rogério Dultra dos Santos – UFF

Professor Doutor Emerson Gabardo – PUC PR

Professora Doutora Janaína Rigo Santin – UPF

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A LEGITIMIDADE DO ESTADO DE DIREITO NAS RAIAS DA DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL THE LEGITIMATE STATE OF LAW IN CONSTITUCTIONAL DEMOCRACY RAYS

Vinícius Silva Bonfim1

RESUMO O presente artigo tem por finalidade a análise da Teoria da Constituição sob o olhar da tese do patriotismo constitucional trabalhado por Jürgen Habermas. Elaborou-se primeiramente uma visão da cidadania moderna na dinâmica de busca por efetividade da democracia constitucional. O artigo analisa criticamente a função da cidadania na efetividade da Constituição uma vez que o processo de construção democrática é um vir a ser contínuo de luta por reconhecimento de direitos. Demonstra-se que os sujeitos constitucionais, a partir do uso dos direitos fundamentais, fazem a interpretação da Constituição de maneira que ela se torne um constante interpretar das múltiplas identidades coletivas. Para que ocorra a construção permanente da Constituição, aberta para uma comunidade de interpretes, antes se deve ter uma devida compreensão da cidadania, da democracia e da Constituição. Palavras-chave: Democracia, Cidadania, Constituição, Efetividade, Patriotismo Constitucional. ABSTRACT This article aims to analyze the theory of the Constitution from the perspective of theory of constitutional patriotism worked by Jürgen Habermas. It was first elaborated a vision of modern citizenship in the dynamics of search effectiveness of constitutional democracy. The article critically examines the role of citizenship in the Constitution effectiveness once the construction process is a democratic become continuous struggle for recognition of rights. Demonstrates that the constitutional subject, from the use of fundamental rights, make the interpretation of the Constitution so that it becomes a constant interpretation of multiple collective identities. For the occurrence of permanent construction of the Constitution, to open a community of interpreters, first one must have a proper understanding of citizenship, democracy and the Constitution. Keywords: Democracy, Citizenship, Constitution, Effectiveness, Constitutional Patriotism.

1 Mestre e Doutorando em Teoria do Direito pela Puc/Minas, Professor no I.E.S. J. Andrade e Professor na Faculdade Arquidiocesana de Curvelo.

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1 - Introdução

O presente artigo visa construir um raciocínio que aponte a necessidade urgente de

elaboração de uma teoria que possa dar suporte a aplicação do direito sem que se tenha uma

alternativa paternalista ou clientelista à democracia. Quer dizer, para que se realmente tenha

uma Constituição democrática não basta que o texto normativo expresse essa vontade, já que

a construção do direito perpassa também pelo discurso de justificação (judiciário), além do

discurso de aplicação (legislativo).

O processo de legitimidade do direito não se realiza tão somente pelo o que os

teóricos do direito e da teoria da argumentação jurídica chamam de discurso de aplicação, mas

sim também por um discurso de justificação que ocorre no ato de efetivação da norma.

Em uma democrática constitucional é necessário que os cidadãos se reconheçam

como coautores das decisões do Estado. É uma via de mão dupla, o Estado só possui o

monopólio da coerção em virtude da liberdade dos indivíduos de constituí-lo

democraticamente. Sendo assim, a representatividade da atividade estatal, em qualquer poder

ou esfera que se pense, deve ser uma extensão da vontade pública, da opinião pública.

Habermas chama esse movimento de construção da opinião e da vontade pública que ocorre

através da sociedade civil e da esfera pública de modelo de eclusas.

Este artigo visa apresentar uma teoria que possa dar respaldo a aplicabilidade de uma

vertente democrática que trate os cidadãos como autossuficientes para pensar e construir o

direito legítimo. Uma democracia constitucional não aliena a competência para que poucos

sejam responsáveis para levantar problemas e também solucioná-los. Além disso, a ideia de

patriotismo constitucional visa dar fundamento tanto ao discurso de aplicação, do poder

legislativo, quanto à participação da sociedade civil na construção de decisões políticas e

jurídicas no âmbito do judiciário. Quer-se dizer com isso que há uma relação necessária entre

o discurso de aplicação e justificação com a participação da sociedade civil na construção das

decisões do estado, independentemente de onde é que elas ocorram.

A legitimidade do direito visa essa estrutura de complementariedade, não há papeis

isolados ou protagonistas na Teoria da Constituição e do Estado. Há um papel compartilhado

de construção da democracia constitucional que cidadãos que se entendem como livres e

iguais reivindicam por melhores condições de acesso aos direitos fundamentais.

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2 - O direito como um elemento constitutivo de seu tempo.

O direito a cidadania permite o processo contínuo e reflexivo que repercute na

possibilidade de alteração da realidade circundante do sujeito constitucional e na utilização

das prerrogativas jurídicas e políticas do cidadão. O papel da cidadania está diretamente

vinculado ao exercício da autonomia do cidadão, mesmo quando este deixa de realizá-lo, não

deixa de sê-lo. Deve-se entender que aquele que não participa da política, que se abstém de

assumir a responsabilidade de construir o seu futuro, aquele cidadão apático politicamente que

prefere transferir a responsabilidade para que outrem realize o “papel desagradável” da

política, fomenta o paternalismo e o clientelismo Estatal.2 Ou ainda na mesma linha, aquele

que prefere que outrem pense em seu lugar, encontra-se na menoridade. Nas palavras de

Menelick de Carvalho:

Para Rosenfeld, tal como para Friedrich Müller, Chantal Mouffe e a maior parte da filosofia política e da doutrina constitucional atuais, sabemos hoje, por experiência própria, que a tutela paternalista elimina precisamente o que ela afirma preservar. Ela subtrai dos cidadãos exatamente a cidadania, o respeito à sua capacidade de autonomia, à sua capacidade de aprender com os próprios erros, preservando eternamente a minoridade de um povo reduzido à condição de massa (de uma não-cidadania), manipulável e instrumental por parte daqueles que se apresentam como seus tutores, como os seus defensores, mas que, ainda de modo inconsciente, crêem a priori e autoritariamente na sua superioridade em relação aos demais e assim, os desqualificam como possíveis interlocutores. O debate público e os processos constitucionais de formação de uma ampla vontade e opinião pública são assim privatizados (CARVALHO NETTO, 2003, p. 11).

O esclarecimento dos cidadãos a respeito do uso de seus direitos políticos

constitucionalmente garantidos é o caminho mais adequado para a construção da democracia

constitucional e de melhores interpretações do constitucionalismo brasileiro. Quanto mais

forem os sujeitos constitucionais, cidadãos esclarecidos na defesa dos seus direitos

fundamentais, mais adequada será a aplicação do patriotismo constitucional. Claro que isso

não que quer dizer que sempre que se vise uma questão quantitativa tenha-se a

correspondência qualitativa, já que na contemporaneidade não há mais que se atribuir 2 Em continuidade ao raciocínio anteriormente exposto, utilizando-se da fala de Rosemiro Pereira Leal ao dissertar a respeito da celeridade processual utilizada como forma de excluir o cidadão da participação da construção das decisões judiciais, afirma que: “A paz ilusória que a desatinada celeridade anuncia por uma jurisdição-relâmpago (sumarização cognitiva) implica um clientelismo consumista episodicamente satisfeito numa lógica fetichizada de um mercado de decisões ágeis, sem que os conflitos sociais e econômicos sofram redução pelo exercício fiscalizatório popular e incondicional de controle da constitucionalidade democrática na base de produção e aplicação das leis no marco jurídico-teórico do devido processo constitucional”. (LEAL, 2002, p. 32).

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unicamente à maioria o papel das decisões. Muito pelo contrário, o que o artigo fundamenta é

que há a necessidade de uma revisão permanente de quais são os princípios de justiça que essa

sociedade plural e democrática pretende compartilhar. Muitas vezes pode-se observar que é a

própria maioria que exclui e segrega os indivíduos, mas sempre sob um fundamento

equivocado que pode aparecer no discurso de aplicação quanto no de justificação.

O exercício da cidadania condiciona-se, então, para questões de consolidação de

mecanismos que possibilitem aberturas procedimentais cívicas na reconstrução permanente do

Estado Constitucional. Assim sendo, se a educação é um possibilitador do esclarecimento

cívico necessário para que os cidadãos possam assumir a responsabilidade de interpretar

(construir) a realidade constitucional existente, provavelmente, maior elucidação de seus

direitos e melhores interferências da sociedade civil na esfera pública será feita.

Na democracia Constitucional o respeito mútuo dos cidadãos na construção da

decisão estatal é uma exigência para que se possa declarar iguais direitos e liberdades. A

construção da democracia necessita de permanente atenção às ações públicas que dizem

respeito a todos os agentes públicos, sejam eles juízes, prefeitos, deputados ou senadores,

nenhum deles possui a prerrogativa para decidir discricionariamente. O agente público está

vinculado aos fundamentos constitucionais adequados em cada caso específico no ato de

proferir suas decisões. Em outras palavras, deve haver uma comunicação constante entre

sociedade civil e esfera pública que possibilite a atualização daquilo que se chama de

identidade constitucional.

Por um lado deve haver uma insatisfação com a realidade política e jurídica, por

outro, uma vontade de atualização da identidade pela ausência de consensos sobre quais são

os princípios fundamentais de justiça que devem ser aplicados aos casos práticos ou ainda

quais são as políticas públicas que devem ser efetivadas. Essa problemática somente se solve

com a transformação dos momentos, o que em grande parte o direito é o responsável. Seja

para possibilitar a manifestação das diversas identidades ou, seja para constatar uma alteração

da realidade por alteração normativa.

A democracia constitucional emerge do encontro do eu com o outro fundado na

ausência e na alienação, encontra-se em uma posição que requer que ele esqueça a sua

identidade, se utilizado de um discurso enraizado em uma linguagem comum que vincula e

une os múltiplos outros.

Uma teoria que ser entenda como democrática não pode acolher o cidadão de

maneira a caracterizá-lo como hipossuficiente e incapaz de assumir a responsabilidade de

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interpretar seu passado, construir o seu presente e projetar o seu futuro. A democracia

constitucional não deve privilegiar qualquer modelo específico de “vida boa”, qualquer

projeto específico. Ela visa que iguais oportunidades sejam presentes independentemente de

quais decisões os indivíduos tomem no decorrer da vida.

A abertura à discussão dos conflitos de interesse dentro dos meios inerentes para a

resolução dos mesmos é característica de um povo que se reconhece como igual e compartilha

de princípios de justiça que possam ser defesos por qualquer um deles. Através do diálogo

intersubjetivo é que os cidadãos poderão manifestar suas identidades e defender seus

interesses amparados pelos direitos fundamentais. A problemática não é de universalizar

nenhum modo de vida, pelo contrário, é garantir a manifestação da pluralidade de concepções

de bem por meio de mecanismos procedimentais em que os cidadãos sejam tratados como

iguais e livres. Como já demonstrou GALUPPO: “enquanto o antônimo para igualdade é

desigualdade, o antônimo para identidade é diferença” (GALUPPO, 2002, p. 214). A

homogeneidade impossibilita o reconhecimento dos indivíduos como cidadãos livres e iguais

em busca de efetividade dos direitos fundamentais. Veja Menelick de Carvalho:

Não há espaço público sem respeito aos direitos privados à diferença, nem direitos privados que não sejam em si mesmos destinados a preservar o respeito público às diferenças individuais e coletivas na vida social. Não há democracia, soberania popular, sem a observância dos limites constitucionais à vontade da maioria, pois aí há, na verdade, uma ditadura; nem constitucionalismo sem legitimidade popular, pois aí há autoritarismo. A igualdade reciprocamente reconhecida de modo constitucional a todos e por todos os cidadãos, uma vez que, ao mesmo tempo, a todos e por todos é também reconhecida reciprocamente a liberdade, só pode significar a igualdade do respeito às diferenças, pois embora tenhamos diferentes condições sociais e materiais, distintas cores de pele, diferentes credos religiosos, pertençamos a gêneros distintos ou não tenhamos as mesmas opções sexuais, nos respeitamos ainda assim como se iguais fossemos, não importando todas essas diferenças (CARVALHO NETTO, 2003, p. 13).

Os movimentos sociais possuem importância primordial na dinâmica de constituição

da identidade democrática quando agem em solidariedade no espaço procedimental

discursivo, pois eles reivindicam a revisitação constante dos princípios fundamentais

estabelecidos na sociedade.

O direito é o instrumento de manifestação da diferença, da divergência, da

desigualdade. Ele é produto da descontinuidade histórica, e para que ele se manifeste

legitimamente, os indivíduos devem ser necessariamente livres. Não há direito sem liberdade,

muito menos qualquer hipótese de igualdade. Primeiro o indivíduo é livre, depois ele

regulamenta suas questões de igualdade. Claro, que a igualdade de fato é uma busca

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permanente, pois como se viu acima, caracteriza-se a democracia pelo princípio da diferença e

pelo respeito às minorias. Inclusive essa é a contribuição de Kant ao possibilitar pensar o

conceito dignidade como um fim em si mesmo. Hegel também contribui para esse movimento

moderno na análise intersubjetiva do processo de reconhecimento mútuo.3 São essas

contribuições que possibilitam a construção de uma visão pluralista e de pressupostos

universalistas e de reciprocidade na democracia constitucional. Esse processo dinâmico,

aberto e que tem por objetivo o movimento de negação e de posterior aceitação é o que Hegel

denomina de dialética. Hegel utiliza deste conceito para demonstrar como os indivíduos nas

relações sociais buscam a identidade através das diferenças. Diferenças que são apropriadas

pelas identidades que se entendem. Ou seja, o sujeito é famélico e busca a todo o momento

satisfazer seus desejos com o outro. É na negação do outro que tem a afirmativa de sua

própria identidade. Mas ao mesmo tempo em que nega, o sujeito constitucional se abre para a

possibilidade de se reconhecer em determinada identidade alheia.

A problemática contemporânea encontra-se na colonização dos mecanismos

linguísticos que servem de abertura à sociedade civil, como os meios midiáticos que são

privados e muitas vezes defendem interesses egoísticos, privados e/ou burocráticos. A

linguagem muitas vezes é colonizada pelo mercado e pela burocracia, e é o que ocorre com a

esfera pública no Brasil.

Grande parte dos problemas diz respeito ao uso que se dá à linguagem no direito. O

uso tecnicista da linguagem, a interpretação instrumentalizada, traz consigo uma tradição que

impossibilita a compreensão dos diversos mundos da vida e sempre realiza análise

tendenciosa do direito e da democracia. O problema do direito é também um problema de

linguagem, de interpretação que se faz da Constituição e da democracia.

A necessidade de reconstrução de uma teoria democrática constitucional é pelo fato

do próprio direito não ser contínuo. Ele desconstitui o que está constituído. Ele oxigena as

relações sociais através de intepretações sociais que, grande parte das vezes, se manifestam

através de revoluções e reivindicações populares. O que se pode afirmar, de certa forma, é que

o direito mantem a estabilidade social, ele muda, desconstitui para manter a continuidade.

Quer-se dizer com isso que ele possui uma característica holística que marca seu tempo e

determina seu espaço de acordo com a dinâmica social de interpretação, intervenção e

reivindicação de direitos.

3 Kant e Hegel são dois autores que fazem parte de um movimento intelectual que visava descobrir as formas de constituição do espírito (conhecimento). Este movimento foi primeiramente denominado de Idealismo Transcendental, pois a época , tinha-se era a Prússia, e não a Alemanha.

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A democracia constitucional deve institucionalizar procedimentos deliberativos em

que os interesses manifestos dentro da sociedade civil possam ser ouvidos e discutidos com

igual respeito por todos na esfera pública. Esses interesses diversos buscam, além de tudo, o

reconhecimento da identidade em um processo moderno de legitimação. O direito entra como

um mecanismo de integração social que irá fundamentar o respeito mútuo entre os cidadãos

que possuem interesses divergentes, mas que são detentores de igual respeito e liberdade.

A construção normativa através da participação popular, cidadã, não se preocupa

somente com a teoria do direito, mas também com uma teoria da sociedade. O direito nesta

construção é considerado o efetivador da teoria social através da integração social pela

comunicação (tensão) existente entre o mundo da vida e os sistemas.

3 – Habermas e a Democracia Constitucional: o uso complementar da tese do Patriotismo

Constitucional como fundamento de legitimidade do Estado de Direito.

Habermas se apropria da tese do patriotismo constitucional para complementar sua

Teoria Discursiva do Direito e da Democracia.4 A tese do patriotismo se preocupa com a

construção da identidade coletiva e possui como fundamento a validade do documento da

Constituição como elemento universalizante e neutro. É a partir dessa tese que se verá que o

exercício da democracia constitucional depende da virtude cívica em defesa das necessidades

fundamentais públicas.

O patriotismo constitucional representa a construção da identidade histórica e

política de uma coletividade a partir da Constituição. O termo foi “inicialmente introduzido

pelo filósofo Dolf Sternberg, e mais tarde, retomado pelo sociólogo Mario Rainer Lepsius”

(LACROIX, 2005, p.123) na criação de uma nova identidade coletiva pós-guerra. Foi com

4 O pensamento de Habermas que se explica em Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade contorna algumas das aporias decorrentes da sobrecarga idealizante na atividade decisória do Estado de Direito. Habermas disciplina que o encontro de fundamentos é no âmbito da linguagem, no âmbito do discurso. Antes de qualquer outro fator, de qualquer outra coisa, antes de ser ideologia, antes de ser política, antes de ser instrumento de domínio, a linguagem apela para a cognição. Habermas entende que, se elaborarmos um local onde as disputas linguísticas não tenham ruídos ideológicos, onde elas possam se dar de maneira livre, esse local ideal faria com que a linguagem se desse exclusivamente como cognição. Esse elemento cognitivo da linguagem que faz com que Habermas diga que, nesse discurso em condição livre, nesse discurso que se põe contra o discurso do outro, mas não para dominar, mas sim para ser entendido, encontra aí o elemento, digamos assim, central da linguagem e fundamentador de todos os outros discursos e também do nosso saber, do nosso conhecimento.

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base na Lei Fundamental da República Federativa Alemã de 1949, ou pode-se também

chamar de Lei Fundamental de Bonn que essa discussão é semeada.

O termo foi utilizado pela primeira vez “durante o debate sobre o passado nacional-

socialista que, no verão de 1986, opôs os intelectuais da Alemanha ocidental” (LACROIX,

2005, P. 123). Nesse debate entre os historiadores a preocupação primeira era em constituir

uma resposta legítima aos alemães para a formação da identidade política e do próprio

passado alemão do nazismo e dos campos de concentração.

Habermas vislumbra a possibilidade de que os argumentos utilizados nesse debate

poderiam possuir um caráter implícito de maquiar e induzir a interpretação da história alemã

ao esquecimento e negação das atrocidades ali ocorridas.5 O que de certa forma causaria a

instrumentalização da história e do direito, assim, a linguagem mais uma vez sofreria as

consequências da técnica e da manipulação. Nos dizeres de Lacroix:

Essa “controvérsia dos historiadores”, ou “batalha do historicismo”, questionava, em primeiro lugar, um método abrangente de restituição de sua história e, através dela, a reconstrução da identidade alemã, que alguns pretendiam engajar na perspectiva de uma reparação narcisista. Nesse contexto, historiadores de renome decidiam assistir à renovação da consciência nacional, trazendo imagens “positivas” do passado – o que supunha uma relativização dos crimes nazistas, cuja singularidade era às vezes explicitamente repudiada, entre as outras (LACROIX, 2005, p. 123).

No entanto, Habermas pretende construir um processo que possibilite a reconstrução

da identidade coletiva na Alemanha sem que interpretações amenas sejam priorizadas para

ocultar as mazelas sócio-políticas ocorridas durante o Holocausto. O que o autor propõe é que

a responsabilidade da interpretação do passado presente, dessa reconstrução da história,

partisse principalmente da própria sociedade.6 Por isso é que ele procura combater os

historiadores e negar o raciocínio exposto, uma vez que entende a necessidade da maturidade

dos próprios cidadãos alemães no (re)conhecimento e interpretação de seu próprio passado, de

sua própria história. Veja Cattoni de Oliveira:

5 Observe destaque que Cattoni de Oliveira realiza ao demonstrar a afirmativa de que havia uma vertente interpretativa de historiadores que tinham como objetivo abrandar e relativizar os acontecimentos da história alemã: “Autores como o historiador alemão Ernest Nolte destaca-se, nessa polêmica, em razão da radicalidade e influência. Nolte, que teria sido discípulo de Heidegger, relativiza a tal ponto os crimes nazistas que chega a afirmar que o extermínio em massa levado a cabo nos campos de concentração por parte do regime hitlerista teria sido tão-somente uma espécie de “reação”, sendo algo, portanto, que deveria ser compreendido apenas como mais um dos capítulos de uma suposta “guerra civil mundial” perpetrada entre americanismo e comunismo, ao longo do século XX” (OLIVEIRA, 2007, p. 03). 6 “A prender com a história não significa, para Habermas, apenas revisar os conteúdos da tradição cultural, mas fundamentalmente enfrentar a derrota das esperanças do passado. É preciso refletir sobre as tradições que fracassaram, sobre os desenganos e sobre a capacidade de indicar que caminho não podemos seguir” (CITTADINO, 2007, p. 59).

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Habermas, assim, irá combater veemente historiadores neoconservadores que pretendiam justificar, remetendo-se, mais uma vez, a uma dada tradição cultural herdada, uma certa normalização da história alemã que apelaria, quer seja à negação, quer seja ao esquecimento do holocausto e da experiência totalitária do nazismo (OLIVEIRA, 2007, p. 03).

Cidadãos com o papel pacífico, típico dos neoconservadores, é visão romântica e

exacerbada do autoritarismo nacionalista do século XIX. Por isso é que Habermas utiliza a

tese do patriotismo constitucional para fomentar a emancipação e construção de uma

democracia constitucional que vai contra o instrumentalismo e constitui a identidade de uma

nação que se entende esclarecida. Veja: “Ora, para Habermas, o desejo dos

neoconservadores de chegar a uma identidade “convencional” seria marcada uma regressão

em relação às precárias vantagens conquistadas pela RFA, desde 1949” (LACROIX, 2005,

p. 125).

Diante da visão crítica a qual fora formado é que Habermas pensa a reconstrução do

passado histórico da identidade alemã. Pois, “foi precisamente contra tal tentação que

Habermas fez chegar ao espaço público o tema do patriotismo constitucional” (LACROIX,

2005, p. 124). Portanto, a noção de patriotismo constitucional utilizada por Habermas assenta-

se “à titularidade de direitos fundamentais de participação política, jurídico-

constitucionalmente delineados, garantidores de uma autonomia jurídica pública.”

(OLIVEIRA, 2007, p. 04).

A utilização da expressão patriotismo constitucional reforça a idéia de que os fatos

do passado somente poderão ser instituídos como elementos fundamentais na construção da

identidade coletiva presente caso passarem por um crivo suspeitoso da experiência moral dos

cidadãos. “O passado deixa de ser fonte de legitimação de práticas sociais e se transforma

em um legado a partir do qual é possível extrair lições” (CITTADINO, 2007, p. 59).

Ao atribuir a responsabilidade aos cidadãos de alcançarem a identidade coletiva por

meio das diversas interpretações da Constituição é que a democracia pode ser viável. É nesse

fluxo interpretativo de reconstrução do passado conforme o presente e com o horizonte de

expectativa pautado no futuro presente é que se dá a necessidade de abertura constitucional na

formação da identidade coletiva.

Habermas vai além da afirmativa do amigo e Professor de Direito Público de

Harvard, Michelman, de que o patriotismo constitucional seria somente um

“compartilhamento consciente de sentimentos” (MICHELMAN, 2001, 254)7 ou de que seria

7 O patriotismo constitucional habermasiano é, na verdade, a confecção de uma idéia constitucional e de um sentimento comunitário empírico. Ele consiste em um compartilhamento consciente de sentimentos de

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“apenas de um consenso ético de uma dada comunidade” (CRUZ, 2006, p. 97). Para

Habermas o patriotismo constitucional é fonte de legitimidade de toda a estrutura do Poder

Constituinte e de sua Teoria Discursiva do Direito e da Democracia. Para o autor a ideia de

povo e de nacionalismo é substituída pela ideia de patriotismo constitucional. Agora a

identidade do sujeito ocorre pelo compartilhamento coletivo de uma permanente

aprendizagem com os princípios constitucionais. Veja Rouanet a respeito: Nesse sentido, em vez de orgulhar-se de um “sentimento nacional” ou de “um sentimento de pertença à nação”, que o mais das vezes se apóia sobre uma pertença unidade cultural, religiosa, ética ou lingüística (que em alguns casos pode ser real, mas isso não importa para o argumento), cabe ao cidadão unir-se em torno dos princípios constitucionais que asseguram os mesmos direitos e deveres a cada indivíduo que faz jus ao título de cidadão daquele país (ROUANET, 2005, p. 79).

Somente no reconhecimento do outro como livre e igual é que poderá surgir uma

identidade coletiva, isso não quer dizer, muito pelo contrário, de que todos tenham que

possuir mesmo entendimento a respeito de questões de tradição, crença e cultura, por

exemplo. Como visto acima, é pelo princípio da diferença é que a democracia se constitui

como organização social válida e forte.

A atitude cívica é pautada no exercício de conhecimento e interpretação permanente

da Constituição. O reconhecimento de iguais liberdades subjetivas no espaço

procedimentalizado discursivo legitimado pelos direitos fundamentais é que possibilita a

reconstrução interpretativa da Constituição. Conforme Cittadino: “O patriotismo

constitucional, tal como formulado por Habermas, difere da idéia de que o patriotismo é uma

identificação comum com uma comunidade histórica fundada em certos valores”

(CITTADINO, 2007, p. 61).

Habermas não procura buscar na ideia de povo uma espécie de refúgio para os

problemas da modernidade, ou ainda, fundamentar levianamente a política e a aplicação do

direito a partir de um conceito vago. O patriotismo constitucional vai substituir a ideia

tradicional de povo e servir de abertura para o texto constitucional ser entendido como

inacabado, aberto e perene. Ele não procura substancializar a constituição e muito menos

formar um patriotismo cultural baseando na homogeneidade ou no multiculturalismo. Sua

proposta é compreender que o patriotismo constitucional é uma atitude, uma postura, um

pertencimento à comunidade, inspirado pelo vínculo a uma idéia contrafática percebido pela comunidade (MICHELMAN, 2001, p. 254, tradução nossa). “Habermasian constitutional patriotism, in fact, is a confection counterfactual constitution idea and empirical communitarian sentiment. It consist in a conscious sharing of sentiments of attachment to the community, inspired by the community's perceived attachment to the counterfactual idea”.

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esclarecimento cívico, uma ação democrática e constitucional que por meio dele, os cidadãos

aceitam que as raias da solidariedade social se resguardam no direito e na Constituição. Nos

dizeres de Habermas, “A isso corresponde um conceito processual de identidade coletiva”

(HABERMAS, 2002, p. 330). Em outras palavras, quando cidadãos se reconhecem diferentes

culturalmente e iguais em direitos fundamentais, é possível perceber que a solidariedade

social está amparada na Constituição. Nem o direito e nem a Constituição são substâncias

éticas como cardápio de princípios morais valorativos e hierárquicos. Os princípios

constitucionais devem ser entendidos como possibilitadores do espaço procedimental

discursivo que os sujeitos se reconhecem como detentores de iguais liberdades subjetivas.

Assim, o patriotismo constitucional fomenta o espaço discursivo para formar uma

cultura política procedimental constitucionalizada. Em virtude de ele ser compartilhado e não

defender nenhum modelo do que seja “vida boa” é que se pode caracterizá-lo como neutro e

procedimental, assim como o princípio da democracia o é.

A consciência história é que possibilita a constante construção da democracia e do

constitucionalismo. Somente no exercício legítimo da cidadania democrática é que se poderá

instaurar o processo de construção da identidade coletiva. Mas para que esse processo

deliberativo democrático ocorra é necessário estabelecer como prioridade a efetivação dos

direitos fundamentais e da soberania popular como suportes legítimos da democracia

constitucional.

O patriotismo constitucional necessita da história argumentativa e autocrítica, aquela

história que supõe a tomada de consciência da ambivalência de cada tradição participante de

uma mesma identidade coletiva. “Nossa identidade não é algo que assumimos, mas também

um projeto de nós mesmos” (HABERMAS, 2002, p. 330).

Habermas defende que é através de uma sociedade reflexiva que o processo político

de modernização pode alcançar um futuro promissor em que se respeita a autonomia pública e

privada. Ele propõe uma leitura tensionada, bem dialética neste ponto, entre realidade e

normatividade. Uma realidade que cidadãos por meio de um complexo processo discursivo

fixam direitos e deveres e reconhecem-se entre si.

Baseado nas observações precedentes pode-se inferir que a democracia

constitucional surge como algo complexo, fragmentado e incompleto. Ela deve ser

considerada um vazio que ocupa o intervalo entre dois sentidos. Primeiramente, a consciência

da ausência de uma democracia plena é indispensável para haver a sua reconstrução

permanente e, consequentemente, a democracia constitucional é inerentemente incompleta,

daí aberta e a procura de completude.

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O texto constitucional depende do contexto e este é aberto a interpretações ao longo

do tempo para que se possa reinterpretar e reconstruir a democracia constitucional. Nesse

exercício de reconhecimento e de luta por reconhecimento é que está a função do cidadão

enquanto participante da política, pois, é somente no exercício da cidadania é que se produz

cidadãos. Não há ditadura que possa preparar o indivíduo para a cidadania. Esta envolve a

permanente reconstrução e reinterpretação do que se entende da e por Constituição.

Pelo fato da sociedade estar em constante mudança e o direito ser uma maneira de

relatar essas modificações, a democracia constitucional é aberta, é um hiato, é um estágio

indefinido. Ela só pode ser apreendida mediante o discurso intersubjetivo que vincula todos os

atores que estão e serão reunidos pelo mesmo conjunto de normas constitucionais.

É a partir de um compartilhamento coletivo dos direitos fundamentais instituídos na

Constituição que o passado constitucional deve emergir de forma íntegra, sem deixar que

retalhos históricos sejam realizados a fim de desconstituir a democracia. A história então é

considerada “como processo aberto de transformação de contextos sociais que permite, na

análise desse processo, o reexame do tempo presente” (REPOLÊS, 2007, p. 03) A

reconstrução do presente permite o movimento interpretativo permanente e vivo da

atualização da democracia e da Constituição.

Na sociedade moderna e pós-convencional, utilizando aqui termo apoiado nas formas

de desenvolvimento cognitivo de Piateg e da evolução moral dos sujeitos de Kohlberg, o que

Habermas propõe é que a identidade seja criada a partir da Constituição, uma vez que o

pluralismo é exatamente a coexistência de várias religiões, crenças e culturas que apesar de

serem diferentes e divergentes, se respeitam mutuamente. Pois, a abertura da Constituição é a

mesma para todos, os direitos nela contidos são necessariamente universalizados, como os

direitos fundamentais e a soberania popular. Os indivíduos se reconhecem nela e nesta

cidadania reflexiva se entendem como livres e iguais. Veja Habermas a respeito:

Em uma associação de livres e iguais, todos precisam entender-se, em conjunto, como autores das leis às quais se sentem individualmente vinculados como seus destinatários. Por isso o uso público da razão legalmente institucionalizado no processo democrático representa aqui a chave para a garantia de liberdades iguais (HABERMAS, 2002, p. 123).

Na Teoria Discursiva do Direito e da Democracia não há a homogeneidade de uma

ordem compartilhada de valores, esta ideia é substituída pelo pluralismo defendido na

Constituição em que se tem a defesa das autonomias pública e privada, procedimentalmente

estabelecidas. Veja Cattoni de Oliveira:

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Por fim, no que se refere ao pluralismo social e cultural, o patriotismo constitucional, que para Habermas envolve justamente a construção de uma cultura política pluralista com base na Constituição democrática de uma república de cidadãos livres e iguais, é expressão de uma forma de integração social, que se dá, pois, através da construção dessa identidade política pluralista e aberta, que pode ser sustentada por formas de vida e identidades ético-culturais diversas e mesmo divergentes, que convivem entre si, desde que assumam uma postura não-fundamentalista de respeito recíproco, umas com as outras (OLIVEIRA, 2007, p. 05).

Habermas substitui a ideia de Ethos compartilhado pela idéia de patriotismo

constitucional estabelecendo que a identidade coletiva possui por base comum a Constituição.

Esta, legitimada continuamente durante sua própria existência, é fundamentadora da

igualdade na sociedade por ser único fator igualmente compartilhado por todos. O patriotismo

constitucional reafirma a idéia de que os legitimados para participar dos processos

deliberativos decisório são os sujeitos constitucionais, aqueles que criam e recriam sua

identidade conforme o tempo e o espaço, de acordo com cada caso específico.

A cidadania reflexiva demonstra a alteração da matriz de pensamento ao reafirmar o

esclarecimento cívico no exercício de reinterpretação e participação permanente de

construção da Constituição e não adoção de modelos cívicos herdados por tradições utilitárias

e instrumentais. Cattoni de Oliveria em seu ilustre artigo intitulado “Revisão é Golpe! Por um

Exercício de Patriotismo Constitucional Contra Fraudes à Constituição”, demonstra a

importância da participação da sociedade civil no que diz respeito à construção da identidade

coletiva “a partir das condições jurídico-constitucionais de um processo deliberativo

democrático capaz de estreitar a relação entre os diversos grupos culturais e de consolidar

uma cultura política de tolerância entre eles” (OLIVEIRA, 2007, p. 06). Sob tais

pressupostos democráticos deliberativos é que a prática da cidadania será condizente com os

direitos políticos, pois, somente assim é que se poderá legitimar o exercício cívico reflexivo

na democracia constitucional. Ainda com Cattoni de Oliveira: “Isso significa dizer em ultima

análise a defesa do patriotismo constitucional identifica-se não com uma tradição cultural

herdada, mas refletida – à luz dos direitos fundamentais e da democracia, princípios típicos

do constitucionalismos moderno.” (OLIVEIRA, 2007, p. 04).

A ideia de patriotismo constitucional demonstra a maturidade de uma nação pela

construção e reconstrução da Constituição pelos sujeitos constitucionais. Essa liberdade

interpretativa é o que distingue toda a história do constitucionalismo, pois, a abertura e o

espaço de demonstração de aprendizado é o que fortalece a democracia constitucionalizada. O

patriotismo constitucional apropriado pela Teoria Discursiva do Direito e da Democracia é a

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tese que proporciona a superação das antigas tradições constitucionais pelo fato delas não

serem “capazes de nortear um estudo adequado a um paradigma de Estado democrático de

direito” (PEDRON, 2009, p. 53).

Sob a ótica da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia de Habermas não se

privilegia nem a visão republicana nem a liberal,8 nem a visão comunitarista nem a liberalista,

mas concebe a visão do pluralismo como sendo tanto visões individuais do mundo quanto

perspectivas a respeito do que seja o bem. Ou seja, Habermas não privilegia nem a autonomia

privada do justo (liberalismo), nem a autonomia pública do bem (comunitarismo). Mas, o que

será determinante para a realização da melhor interpretação é a interlocução realizada

procedimentalmente entre as duas autonomias, a pública e a privada. Nas palavras de

Rouanet: Quanto à noção de “patriotismo constitucional”, esta parece ser uma boa tentativa de se situar entre a noção liberal de direitos individuais e a noção não liberal de direitos coletivos, uma vez que se apóia na Constituição, e por esse motivo dependerá da escolha do próprio povo de cada país (ROUANET, 2005, p. 82).

Diante do pluralismo existente e do alto grau de complexidade da sociedade

moderna, os cidadãos assumem cada vez mais papeis sociais diferentes. Ora atuando na

defesa de interesses pessoais, na concepção individual de vida boa, ora como cidadão

organizado na sociedade civil que está lutando por direitos compartilhados na esfera pública.

Mas, o mais importante que se pode reconhecer neste tema é que necessariamente a gênese do

direito somente poderá ocorrer a partir de um debate em que tem como prioridade a

comunicação entre as autonomias pública e privada.

A ideia de que a Constituição é aberta aos interpretes e de que os afetados e

interessados é que possuem legitimidade para a titularidade do Poder Constituinte que está

dentro do que Habermas chama de patriotismo constitucional. O poder constituinte passa a ter

como titular os cidadãos e o povo é substituído pela ideia de patriotismo constitucional, ou

seja, a Constituição será um projeto em (re)construção e o poder constituinte um fenômeno

perene na prática discursiva de aprendizado em que leva em consideração o cidadão e o povo

ao mesmo tempo.

Assim, o Processo Legislativo Constitucional tem como titular os cidadãos

amparados pela Constituição aberta e inacabada. Mas para que eles, cidadãos, no exercício

8 O patriotismo constitucional é, portanto, menos que um nacionalismo republicano e mais que um individualismo possessivo. Por um lado, o individualismo liberal não é capaz de assegurar a coesão social, e pode levar à dissolução da sociedade; por outro lado, o nacionalismo republicano pode levar à perda das liberdades individuais asseguradas na Modernidade Ocidental (ROUANET, 2005, p. 78).

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cívico de seus direitos fundamentais possam exercer a função de re(construção) da

Constituição, necessário é voltar a atenção para questões cernes da Teoria Discursiva do

Direito e da Democracia como a função da sociedade civil e da esfera pública na legitimidade

do processo legislativo, uma vez que possuem papel decisivo na (re)construção participativa

da identidade coletiva.

Necessariamente a sociedade civil e a esfera pública devem ser levadas a sério no

que tange à construção da interpretação constitucional proporcionada pelo espaço

procedimental deliberativo discursivo. A tentativa constante é de efetivar os direitos

fundamentais a partir do exercício cívico de uma cultura política constitucionalizada na

participação em um processo deliberativo procedimental discursivo em que os cidadãos

possam, através de discursos, manifestarem no processo legislativo. Assim sendo, o devido

processo legislativo que não leva a cabo o fluxo comunicativo criado da sociedade civil para a

esfera pública, não está condizente com os princípios fundamentais e com a soberania

popular. Pois, como nos dizeres de Cattoni de Oliveira: “A constituição da república não está

à disposição do Legislativo, que constitucional e democraticamente deve representar mas que

não incorpora ou substitui a “soberania popular” (OLIVEIRA, 2007, p. 10).

A participação cívica na construção da opinião e da vontade pública apresenta-se

como exercício legítimo do Estado de Direito, pois o processo legislativo constitucionalizado

tem como resultado a soberania popular, esta, por sua vez, somente pode ser resultado da

construção em conjunto de um entendimento proporcionado pelos direitos fundamentais na

reinterpretação do direito e da Constituição. Os agentes públicos não podem atuar

desvinculados da formação da opinião e da vontade pública uma vez que são representantes

populares, assim, agir discricionariamente seria agir fora dos padrões de legitimidade

habermasiana. Dever-se-ia, à luz da Teoria Discursiva, aumentar a proximidade entre

sociedade civil e esfera pública na construção normativa.

A conectividade entre a sociedade civil e a esfera pública é elemento fundamental

para o exercício legiferante, pois, a construção participativa das normas é requisito essencial

na legitimidade da democracia e da interpretação da Constituição.

A Constituição da República Federativa do Brasil contempla os princípios basilares

da democracia procedimental deliberativa ao estabelecer com ênfase em seu primeiro artigo

que se constitui em Estado Democrático de Direito e tem como direitos fundamentais: “ I – a

soberania; II – cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV os valores sociais do

trabalho e da livre iniciativa; V – O pluralismo político” (CONSTITUIÇÃO DA

REPÚBLICA, 1988, art. 1º). Para fortalecer a idéia de que a participação cívica é necessária e

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também cerne da Constituição da República, ainda no artigo primeiro, no parágrafo único,

impõe-se que: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos

ou diretamente, nos termos desta Constituição” (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, 1988,

art. 1º). Ou seja, os representantes possuem o papel de proporcionar a aproximação da

sociedade civil e da esfera pública na construção da opinião e da vontade pública, por isso são

representantes do povo, caso contrário, atuam como executores de políticas individuais,

egoísticas e privatistas.9 A leitura constitucional deve ser realizada a partir de seus princípios

e seu texto normativo deve ser compreendido como um corpo principiológico que possibilita

amarrar as possíveis falhas ou aberturas do texto constitucional elaborado pelo Poder

Constituinte Originário.

4 - Conclusão

O presente artigo demonstra como o exercício da cidadania é a chave mestra para a

aproximação contínua de melhores condições de legitimidade do direito. Idealizar um regime

de governo que dialoga com a sociedade civil é criar condição de possibilidade que cidadãos

partícipes da política sejam responsáveis pela trajetória sócio-política escolhida, assim sendo,

haverá maior carga de legitimidade das políticas públicas e de reconhecimento das minorias

organizadas, enquanto atuantes em um espaço procedimental que está vinculado a questões de

solidariedade e reconhecimento mútuo. As deliberações públicas devem partir das duas

esferas, tanto da privada quanto da pública para garantir o devido processo legislativo por via

da participação da sociedade civil na esfera pública.

Com a utilização da tese do patriotismo constitucional conclui-se que o poder

constituinte é um projeto perene e inacabado, que o processo legislativo deve ser fundado na

participação cívica dos sujeitos de direito na defesa de suas interpretações constitucionais na

9 Ainda na mesma linha de raciocínio de aplicação de uma democracia procedimental, pode-se citar ainda o artigo 5º inciso LIV da Constituição que impõem: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.” (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, 1988, art. 5º, LIV, grifo nosso). Entende-se legal no texto da Constituição como “devido processo constitucional”.

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forma de procedimentos deliberativos democráticos em que se tem como finalidade o

pluralismo reconhecido.

A necessidade de conexão entre a sociedade civil e a esfera pública para

manifestação dos fluxos comunicativos institucionalizados e que a Constituição não é mais

em uma ordem homogênea, linear e substantiva, mas sim, aberta, viva, perene e cidadã são

fundamentos basilares da democracia constitucional.

A efetivação da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia com a Tese do

patriotismo constitucional ganha contornos mais adequados e que, fundada em um documento

universalmente compartilhado, pode realizar em maior medida a efetividade dos direitos

fundamentais e da soberania popular, bem como também da equiprimordialidade entre as

autonomias pública e privada.

O patriotismo constitucional reflete a maturidade de uma nação pelo constante

processo de (re)construção da Constituição, pois a partir do exercício dos direitos

fundamentais, constitucionalmente garantidos, é que se fundamenta a relação equânime das

duas autonomias, sem que se possa afirmar a priorização da autonomia pública frente a

privada.

5 - Referências

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NEOLIBERALISMO E CRISE DO WELFARE STATE: A RECONFIGURAÇÃO DO PAPEL DO ESTADO NA ECONOMIA GLOBALIZADA NEOLIBERALISMO Y CRISIS DEL ESTADO DE BIENESTAR: LA RECONFIGURACIÓN DEL PAPEL DEL ESTADO EN LA ECONOMIA GLOBALIZADA

Julia Lafayette Pereira1

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo discutir a mudança do papel do Estado em face do modelo econômico neoliberal, sobretudo no que concerne ao direito e à prestação jurisdicional. Este modelo econômico impõe um novo modo de governar: se antes cabia ao Estado elaborar planos econômicos guiados pelos seus próprios objetivos, direcionados à concretização dos direitos dos cidadãos, por exemplo, no cenário contemporâneo o Estado governa para e em função da economia. As ações estatais estão voltadas para a salvaguarda do mercado, pois manter o seu saudável funcionamento é a principal preocupação. Dessa forma, a garantia do pleno emprego, a diminuição dos abismos sociais, entre outros objetivos próprios do welfare state, têm sua importância reconhecida, contudo, são questões secundárias. Por isso, pode-se dizer que o Estado Contemporâneo vive um processo de “economização” e de relativização das garantias constitucionalmente asseguradas. O direito, assim como os sistemas de justiça, não estão imunes a este processo. Ambos são avaliados sob o ponto de vista dos consumidores, de modo que são submetidos a uma lógica (eficientista) que não lhes é própria. Não só o direito, como a prestação jurisdicional, são enformados pelos seguintes valores: eficiência, produtividade e padronização. O cumprimento destes valores permite que os atores econômicos reúnam certo número de informações necessárias a adoção de comportamentos estratégicos, de modo que possam prever as decisões, avaliar os custos que possam vir a ter com o judiciário e o peso burocrático dos mesmos. Nesse cenário, a preocupação com a garantia de direitos constitucionais, bem como com a qualidade da prestação jurisdicional são relegadas a segundo plano. Palavras-chave: neoliberalismo; Estado de Bem-Estar Social; eficiência; globalização. Resumen: Este trabajo tiene como objetivo analizar la evolución del papel del Estado en el modelo económico neoliberal, especialmente respecto al derecho y a la adjudicación. Este modelo económico requiere una nueva forma de gobernar: si antes la función del Estado correspondia al dever de desarrollar planes económicos, guiados por sus propios objetivos y orientados a la realización de los derechos de los ciudadanos, por ejemplo, en el escenario contemporâneo, el Estado gobierna para y en función de la economía. Las acciones del Estado están dirigidas a salvaguardar el mercado, pues mantener su buen funcionamiento es su principal preocupación. De este modo, lograr el pleno empleo, reducir abismos sociales, entre otros objetivos propios del Estado de Bienestar, tienen su importância reconozida, sin embargo, son cuestiones secundarias. Por lo tanto, se puede decir que el Estado contemporáneo vive un processo de “economización" y de relativización de las garantías constitucionales. El Derecho, bien como los sistemas de justicia, no están inmunes a este

1 Mestranda em Direito Público do Programa de pós-graduação em direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Graduada pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected].

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proceso. Ambos son evaluados desde el punto de vista de los consumidores, por una lógica (eficientista) que no les pernenece. No sólo el derecho, como la adjudicación, son conformados por los siguientes valores: eficiencia, productividad y estandarización. El cumplimiento de estos valores permite que los agentes económicos reunan cierto número de informaciones necesarias a la adopción de conductas estratégicas, de modo que puedan predecir las decisiones, evaluar los costos que puedan tener con la carga legal y burocrática de ellos. En este escenario, la preocupación con la garantía de los derechos constitucionales, bien como con la calidad de la adjudicación son relegados a un segundo plano. Palabras clave: neoliberalismo; Estado de bienestar; eficiencia; globalización. 1. INTRODUÇÃO É recorrente a discussão de que a dinâmica da globalização exerce uma influência

significativa na relativização do poder dos Estados Nacionais. Muitos autores, imersos nesta

discussão, preocupam-se com o futuro do Estado, perguntando-se, se há futuro promissor para

ele, ou se, por outro lado, ele ruma ao gradativo desaparecimento.

Longe do protagonismo outrora exercido pelo Estado Moderno, surgem novos atores

no atual cenário globalizado, que se materializam não só na forma de organizações

internacionais e supranacionais institucionalizadas, como também na forma de empresas e

organizações econômicas transnacionais.

Preocupados com o bom funcionamento da economia de “livre mercado global”, esses

novos atores acabam por menosprezar a importância da consolidação do Estado de Bem-Estar

Social: não raro, estimulam não só a desregulamentação de garantias constitucionalmente

asseguradas aos cidadãos, como também o desmantelamento dos antigos controles

regulamentares que limitavam a economia concorrencial.

Esse é o cenário cuja responsabilidade é, muitas vezes, atribuída ao modelo econômico

neoliberal, acusado de introduzir o pensamento econômico a todas as esferas da sociedade.

Considerando isto, a presente pesquisa tem como intuito esclarecer a reconfiguração

do papel do Estado na economia globalizada, bem como expor que o neoliberalismo está

intrinsecamente atrelado a esta mudança de papel.

Além disso, diante do poder regulamentar das organizações institucionalizadas e,

sobretudo, das empresas e organizações transnacionais informalmente associadas ao poder

regulamentar, pretende-se mostrar como o Direito teve sua autonomia prejudicada pela

introdução da lógica econômica no seu sistema.

O presente trabalho foi construído a partir do método hermenêutico-fenomenológico.

Partiu-se de pré-compreensões acerca do tema que foram postas à prova ao longo da pesquisa

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por meio de levantamento bibliográfico. O artigo está dividido em duas partes: na primeira,

procura-se demonstrar a crise do Estado de Bem-Estar Social diante da globalização da

economia e a crescente supremacia do poder econômico frente ao poder político e jurídico

(2.1). Ainda, será discutido o surgimento do modelo neoliberal no período pós-segunda

guerra, cuja pertinência se justifica por explicar a mudança de pensamento quanto ao papel do

Estado na economia, sendo a experiência alemã a mais significativa, como afirma Foucault

(2.2).

Na segunda parte, esclarece-se a relevante mudança da política liberal - Estado laissez-

faire-, para a política neoliberal - Estado supervisor/regulador do jogo econômico (3.1). Em

seguida, discute-se a perda de autonomia do Direito em decorrência de um Estado que passa a

se pautar por valores neoliberais (3.2).

2. A CRISE DO ESTADO DO BEM-ESTAR SOCIAL NA ECONOMIA GLOBALIZADA

De acordo com Hobsbawn (2007, p. 11), o impacto da globalização é mais sentido por

aqueles que dela não se beneficiam. A ampliação dos mercados globais trouxe como

conseqüência a acentuação das desigualdades econômicas e sociais entre os Estados Nações,

ainda que tenha havido uma diminuição geral da pobreza extrema. O crescimento do abismo

sócio-econômico entre os mais e menos abastados no interior dos estados também não

mostrou sinais de desaceleração (HOBSBAWN, 2007, p. 11).

Tal conjuntura, combinada com condições de extrema instabilidade econômica

decorrentes das práticas de livre mercado global, formam o eixo gerador das principais

tensões sociais e políticas do século XXI. Ao mesmo tempo em que a ascensão de novas

economias asiáticas ameaça os índices de desenvolvimento humano dos povos do velho norte,

países como Índia e China, dificilmente, alcançarão o alto nível de vida europeu para suas

vastas populações.

É em torno disto que provém a polarização das opiniões que dizem respeito aos

impactos da globalização. A divergência ocorre entre os que estão protegidos das suas

conseqüências negativas - os empresários, que recorrem à mão-de-obra barata de outros países

para baixar os custos e contornar a concorrência, os profissionais da alta tecnologia, os

profissionais que possuem curso superior, capazes de conseguir trabalho em mercados de alta

renda - e aqueles que neste rol não estão incluídos (HOBSBAWN, 2007, p. 11).

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“É por isso que, para a maior parte daqueles que vive dos salários provenientes dos

seus empregos nos velhos ‘países desenvolvidos’, o começo do século XXI oferece um

quadro sombrio, para não dizer sinistro” (HOBSBAWN, 2007, p. 11-12). Com as mesmas

qualificações, existe um imenso número de trabalhadores de outros países dispostos a exercer

as mesmas tarefas a apenas uma pequena fração dos salários pagos no Ocidente, isso sem

contar com a pressão do grande “exército de reserva de trabalhadores” imigrantes dentro dos

próprios países desenvolvidos, egressos das “aldeias das grandes zonas globais de pobreza”

(HOBSBAWN, 2007, p. 11-12).

Com isso, percebe-se que o mercado livre global comprometeu a existência do Estado

do Bem-Estar Social, constituindo tal realidade uma das faces da crise do Estado, temática

discutida por Bolzan de Morais (2011, p.14). Segundo o autor, este modelo de Estado vem

enfrentando dificuldades de três ordens distintas: fiscal financeira, ideológica e filosófica. E é

apegando-se às mencionadas dificuldades e fragilidades deste modelo nos presentes dias, que

surge a proposta neoliberal como contraponto, ao defender o retorno a uma ordem estatal

reduzida (BOLZAN DE MORAIS, 2011, p. 14).

2.1. A “ECONOMIZAÇÃO” DO ESTADO E A RELATIVIZAÇÃO DOS DIREITOS CONSTITUCIONALMENTE ASSEGURADOS PELO ESTADO DEMOCRÁTICO E SOCIAL DE DIREITO

Segundo Hobsbawn (2007, p. 105), politólogos e ideólogos, desde a década de 70,

vem defendendo o retorno a um modelo de laissez-faire ultra-radical, ao criticar o Estado e

afirmar que o “seu papel tem de ser reduzido a qualquer preço”. Assim, em oposição a um

Estado que tem como função a proteção e promoção do bem-estar social, a implementação de

prestações públicas e o dever finalístico de cumprir uma função social (BOLZAN DE

MORAIS, 2011, p. 31), tal corrente acredita que os serviços prestados pelas autoridades

públicas são indesejáveis (HOBSBAWN, 2007, p. 105).

Defendem que o “mercado” pode fornecê-lo de um modo melhor, mais eficiente e

mais barato, de modo que, nessa perspectiva, tem ocorrido uma privatização maciça tanto dos

serviços públicos como dos cooperativos2. Atividades outrora de competência dos governos

2 Segundo Canotilho (2002, p. 31-32), “fala-se (e teoriza-se a este propósito) de um ‘estado economizado’ e de um ‘estado dispensador de serviços’. Como o próprio adjectivo insinua o ‘estado economizado’ é um ‘estado economizador’ segundo os paradigmas de racionalidade econômico-privada. O Estado Social deve sujeitar-se a uma terapia adequada. Há que substituir, em primeiro lugar, o big government do estado de bem estar por um estado ‘reduzido’ e ‘elegante’. Para isso ser possível, os inúmeros serviços e administração estatais, caros e

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nacionais ou locais, como escolas, fornecimento de água, prisões e correios, hoje estão

“transformadas em empresas de negócios ou entregues a elas; e os funcionários públicos

foram transferidos para agências independentes ou substituídos por contratistas comerciais”

(HOBSBAWN, 2007, p. 105).

Nesse cenário, o Estado tem aspirado o modus operandi da empresa privada com fins

lucrativos. Em lugar da mobilização ativa e passiva dos cidadãos, o Estado passou a confiar

nos mecanismos econômicos do mercado. Só que dessa conjuntura emerge um problema

crucial, como bem revela Hobsbawn (2007, p. 105): “o ideal de soberania do mercado não é

um complemento à democracia liberal, e sim uma alternativa a ela”.

O ideal de soberania do mercado constitui uma alternativa a todos os outros tipos de

política: pauta-se por uma soma de escolhas, racionais ou não, de indivíduos que decidem de

acordo com suas preferências pessoais. Tal mecanismo ignora a necessidade de decisões

políticas, consistentes naquelas orientadas para interesses comuns ou de um determinado

grupo (HOBSBAWN, 2007, p. 106). A revelação dos interesses dos consumidores, medidos

pelo mercado - ou, mais precisamente, pelas pesquisas de mercado - tornaram-se meios mais

eficientes do que o defasado método de contar votos nas eleições.

Considerando isto, “a participação no mercado substitui a participação na política” e

“o consumidor toma o lugar do cidadão” (HOBSBAWN, 2007, p. 106). Diante disso,

permanece a seguinte pergunta: tal escolha se coaduna com um sistema político liberal e

democrático?

É certo que o Estado, como organização democrática, está vinculado às exigências

próprias de uma democracia, seus controles públicos, limites procedimentais e, sobretudo, aos

direitos e garantias cidadãs. No entanto, outras limitações emergem no presente Estado

Contemporâneo além daquelas que delineiam o Estado Constitucional. O Estado Moderno -

“tradicionalmente centro único e autônomo de poder”, “protagonista na arena internacional” e

“ator supremo” no âmbito do seu espaço territorial - está em crise, como evidencia Bolzan de

Morais (2011, p. 21).

Os centros de poder se dispersaram. Distante do protagonismo exercido pelo Estado

Moderno no cenário mundial, surgem em cena não só organizações internacionais

institucionalizadas, sobretudo no domínio econômico – entre elas, Organização Mundial do

Comércio (OMC), Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização dos Países

insuficientes, devem ser substituídos por esquemas privados empresariais. Mais do que isso. Os próprios instrumentos de direcção e organização econômico-privados revelam operacionalidade suficiente para serem introduzidos na máquina estatal”.

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Exportadores de Petróleo (OPEP) -, ou das novas tecnologias de comunicação - a

International Telecommunication Union (ITU), entre outras -. como também surgem

“empresas e organizações transnacionais informalmente associadas e produtoras de

regulamentação”, cujo poder econômico e social, muitas vezes, excede o do conjunto dos

Estados Nações, segundo Hespanha (2009, p.428-430).

Bolzan de Morais argumenta que as empresas transnacionais exercem um papel

central, pois suas decisões “não podem ser contrastadas sob o argumento da soberania

estatal”. Por não estarem ligadas a algum Estado em particular, suas decisões não podem ser

deslegitimadas, nem contrariadas, tendo em vista que a influência econômica que exercem

nos países, sobretudo nos mais fracos, pode afetar negativamente a situação sócio-econômica

dos mesmos.

O crescimento do poder dos atores econômicos chega a ser tão significativo ao ponto

de controlarem de modo velado não só os governos dos Estados Nacionais como, até mesmo,

o das entidades supra e interestatais, como União Européia (EU) e Organização das Nações

Unidas (ONU). O poder das autoridades eleitas nestes entes se encontra reconfigurado, para

não dizer reduzido. Segundo Neves (2008, p. 219), organizações regionais como União

Européia, Nafta, Mercosul, apesar de certa eficiência (em graus muito diversos), são antes

“instrumentos do mercado mundial, do que instituições políticas internacionais destinadas a

assegurar e promover a cidadania, o princípio da igualdade e a ‘soberania do povo’ nos

respectivos ‘Estados-Membros’”.

Neves (2008, p. 217-218) menciona que o fenômeno da globalização não consiste em

um problema para a realização do Estado Democrático de Direito, desde que existam

eficientes mecanismos interestatais e supra-estatais de regulação jurídica das novas relações

que surgem. Por outro lado, argumenta que um importante problema da sociedade mundial,

como responsável pelo condicionamento negativo ou enfraquecimento do Estado

Democrático de Direito, consiste no fato de que esta sociedade de reproduz primariamente

baseada no código “ter/não-ter”. Este código se revela o mais forte, e, como quotidianamente

se reproduz além de fronteiras, o sistema econômico permanece intocável pelos Estados

“enquanto sistemas jurídico-políticos diferenciados segmentariamente em territórios”

(NEVES, 2008, p. 218).

Conforme Bolzan de Morais (2011, p. 23), diferentemente dos agentes políticos, os

agentes econômicos não possuem visibilidade pública, de maneira que impõem orientações à

ação estatal que permanecem apenas nos bastidores dos órgãos estatais, sem passar pelo filtro

do debate público e da manifestação da vontade de uma maioria politicamente representada.

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Neves (2008, p. 218) reflete tal situação mencionando que a realização do Estado

Democrático de Direito agravou-se com os novos fluxos de economização no plano da

sociedade mundial, ou seja, “por força de uma expansão hipertrófica do código econômico

(‘globalização econômica’) em detrimento da autonomia dos sistemas político e jurídico”.

Assim, os códigos binários “lícito/ilícito” e “poder/não-poder”, próprios dos sistemas

jurídico e político respectivamente, são extremamente frágeis para conter a ação restritiva e

destrutiva dos sistemas econômicos sobre os sistemas jurídicos dos Estados nacionais

(NEVES, 2008, p. 219). Nesse cenário, o que ocorre não é uma autopoiese da economia

diante da política e do direito, o que na verdade ocorre é uma “hipertrofia do código

econômico em prejuízo dos códigos jurídico e político”.

Embora o mesmo constitucionalista ressalte que a influência dos interesses

econômicos varie de acordo com o grau de solidez do Estado Democrático de Direito, ele

argumenta que tais interesses constituem fatores que asfixiam uma esfera pública pluralista,

uma vez que dificultam a concretização da “soberania do povo”, da “soberania do Estado”, do

princípio da igualdade e da cidadania (NEVES, 2008, p. 219).

Conforme mencionado, a “sociedade política mundial” - composta por Estados

nacionais - possui mecanismos de regulação econômica que transcendem os limites

circunscritos pelos Estados nacionais. No entanto, o mercado mundial, principalmente o

mercado financeiro, opõe-se com muito mais força à vulnerável ordem política e jurídica

internacional. Isto para não mencionar que, não raro, a ordem político-jurídica internacional

está intrinsecamente ligada aos interesses das grandes potências, de modo que, acreditar que

tais organizações estão voltadas para a concretização do Estado Democrático de Direito

através de uma eficiente regulação da economia, muitas vezes, não passa de uma quimera

(NEVES, 2008, p. 219).

Conforme Jânia Saldanha (2010a, p. 9), para o modelo atual de economia de mercado,

o que está em pauta é que a economia “sirva de princípio, de forma e de modelo para o

próprio Estado” e, nisto, pode-se incluir também as organizações interestatais e supra-estatais.

Destarte, para o neoliberalismo, a preocupação central é manter o exercício global do poder

político orientado de acordo com a economia de mercado e baseado nas suas características:

abstração, estandartização, concorrência e quantificação. Com base nisso, Jânia Saldanha

elucida que quando isto ocorre, o abstrato se sobrepõe ao concreto e tais práticas passam a

representar a “‘normalidade abstrata’ de que se nutre o neoliberalismo para impor padrões de

conduta e padrões de gestão”.

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2.2. COMO ISSO FOI POSSÍVEL? APORTES FOUCAULTIANOS PARA A COMPREENSÃO DO NEOLIBERALISMO

No Estado de polícia vigente no século XVIII, a liberdade era identificada como uma

liberdade de privilégios, liberdade reservada, liberdade proveniente de um estatuto, ligado a

uma profissão, ou a uma concessão de poder. Por outro lado, a liberdade de mercado era

reconhecida como liberdade de “deixar fazer” ou laissez faire, isto é, possuía uma lógica

diferente das anteriores, visto que não era regulamentada de modo preciso.

Mas, o que assegurava a permissão de liberdade do mercado no interior da razão de

Estado, ou, no interior do funcionamento do Estado de polícia, era o princípio de

enriquecimento, de crescimento, que culminaria com o fortalecimento do poder estatal. Em

poucas palavras, resumia-se ao intuito de “alcançar mais Estado com menos governo: era

essa, em suma, a resposta do século XVIII”. O laissez faire trazia conseqüências positivas

para o Estado, equivalente ao seu aumento de poder (FOUCAULT, 2004, p. 139-140).

Nesse passo, Foucault revela-se um autor indispensável para se compreender o

surgimento do neoliberalismo, mais precisamente, do neoliberalismo alemão, próprio do pós-

guerra, do qual “somos contemporâneos e no qual estamos implicados”. Discorre-se acerca do

neoliberalismo alemão – ou ordoliberalismo – neste artigo por ser a experiência mais rica, aos

olhos de Foucault, sobre esta nova arte de governar (neoliberal), cuja característica principal

parece ser a de “fobia ao Estado” (FOUCAULT, 2004, p. 139).

Contrariamente ao problema presente no Estado de polícia do século XVIII,

consistente no problema de inserir uma liberdade de mercado no interior do Estado, como

explicitado no início deste subcapítulo, o problema da Alemanha, em 1948, foi

diametralmente oposto (FOUCAULT, 2004, p. 140).

O problema alemão assim se delimitava: “supondo, atrevo-me a dizer, um Estado que

não existe; supondo a tarefa de fazer um Estado existir; como legitimar, de certo modo

antecipadamente, esse Estado futuro?” (FOUCAULT, 2004, p. 140). Ou seja: como tornar

aceitável que a liberdade econômica limite o Estado, mas, ao mesmo tempo, permita que o

mesmo exista? De acordo com Foucault, estas indagações refletem o objetivo primeiro,

histórico e politicamente primeiro, do neoliberalismo, pois, no período pós-segunda guerra,

a história tinha dito não ao Estado alemão. Agora é a economia que vai lhe possibilitar afirmar-se. O crescimento econômico contínuo vai substituir uma história claudicante. A ruptura da história vai portanto poder ser vivida e aceita como ruptura de memória, na medida em que vai se instaurar na Alemanha uma

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nova dimensão da temporalidade que não será mais a da história, que será a do crescimento econômico. Inversão do eixo do tempo, permissão do esquecimento, crescimento econômico – tudo isso está, creio eu, no âmago da maneira como funciona o sistema econômico-político alemão. A liberdade econômica co-produzida pelo crescimento do bem-estar, do Estado e do esquecimento da história (FOUCAULT, 2004, p. 116).

Para que a liberdade econômica pudesse ser fundadora, limitadora e garantidora do

Estado, foi essencial a reelaboração de alguns elementos fundamentais da doutrina liberal: não

tanto da teoria econômica do liberalismo, como explica Foucault, mas sim do liberalismo

como arte de governar, ou como doutrina de governo.

A Escola de Friburgo - inspiradora da programação da política neoliberal na Alemanha

- teve o nazismo como um contexto histórico extremamente favorável para refletir e

desenvolver sua teoria. A partir dos problemas, das falhas existentes no nazismo, a eles foi

possível definir o “campo de adversidade” que tinham de definir para depois atravessá-lo e

alcançarem seu objetivo. Como menciona Foucault (2004, p. 145), “o nazismo foi, de certo

modo, o ‘caminho de Damasco’ epistemológico e político” do neoliberalismo.

Assim, o mesmo autor traz as três coisas que os teóricos da Escola de Friburgo tinham

de fazer. Primeiramente, deveriam traçar um objetivo, aquele mencionado alhures: fundar um

Estado legítimo a partir de um espaço de liberdade dos parceiros econômicos. Em segundo

lugar, deveriam definir os adversários contra os quais podiam se chocar para alcançar o seu

objetivo. Mais precisamente, deveriam definir o “sistema geral” contra o qual seu objetivo

podia se chocar, ou seja, o “campo de adversidade”. Por último, obviamente, deveriam

atravessar o “campo de adversidade” e alcançar seus objetivos. Para tanto, era necessário

“redistribuir os recursos conceituais e técnicos que eles tinham à sua disposição”

(FOUCAULT, 2004, p. 146).

Foi o que a experiência nazista os propiciou, de modo que nela conseguiram

reconhecer “inimigos”, definir estratégias para combatê-los, e, enfim, atingirem seu escopo

final, ou o que tinham como solução para os problemas presentes no nazismo.

Segundo os ensinamentos do arqueólogo, o pensamento liberal alemão é anterior a

Escola de Friburgo, porém se manifestava de forma ainda discreta, desde Lujo Brentano, cuja

obra tentava defender e manter o liberalismo clássico em um contexto que não lhe era

favorável. Alguns autores, entre eles List, impunham reservas à economia liberal argüindo

que a mesma não era universalmente aplicável, não passando de simples modelo fruto de uma

“posição hegemônica e politicamente imperialista” inglesa. Para a nação alemã, necessário

era uma política de cunho protecionista (FOUCAULT, 2004, p. 147).

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Na perspectiva de alguns pensadores, o liberalismo clássico alemão também já

encontrava dificuldades não só no plano teórico, como também prático, ante o socialismo

bismarckiano encontrado no final do século XVIII. Para eles, não era necessário apenas uma

política que protegesse a Alemanha do exterior. Era igualmente necessário, em âmbito

interno, dominar e eliminar tudo o que pudesse comprometer a unidade nacional. O

proletariado, visto como uma ameaça à unidade nacional e estatal, deveria ser “reintegrado no

seio do consenso social e político” (FOUCAULT, 2004, p. 147).

Outro obstáculo ao liberalismo clássico em território alemão foi o desenvolvimento de

um modelo de economia planificada, ou seja, organizada em torno de um aparelho

administrativo responsável pelas principais decisões no setor econômico, pela atribuição dos

recursos raros, pelo estabelecimento do nível dos preços e pela garantia do pleno emprego.

Tal prática, adotada forçadamente diante da situação da Alemanha durante a guerra,

permaneceu recorrente tanto nos governos socialistas como não socialistas alemães

(FOUCAULT, 2004, p. 148).

Por fim, houve mais um obstáculo ao liberalismo clássico, desta vez constituído pelos

keynesianos alemães, cujas idéias não diferiam das dos keynesianos em geral, que propunham

certas modalidades de intervenção no Estado sobre os equilíbrios gerais da economia. Desse

modo, desde antes da tomada do poder pelos nazistas, a Alemanha continha “quatro

elementos que constituíam verdadeiros ferrolhos contra uma política liberal”: economia

protegida, socialismo de Estado, economia planificada e intervenções de tipo keynesiano

(FOUCAULT, 2004, p. 148). São, portanto, estas as discussões que os neoliberais vão herdar

dos pensadores liberais que os antecederam.

Foucault explica que o que o nazismo fez, na verdade, foi reunir estes diferentes

elementos: “organização de um sistema econômico em que a economia protegida, a economia

de assistência, a economia planificada, a economia keynesiana formavam um todo, um todo

solidamente amarrado”, cujas faces estavam solidamente articuladas pela administração

econômica implantada (FOUCAULT, 2004, p. 149). A planificação tinha como objetivo

assegurar protecionismo absoluto à autarquia econômica da Alemanha e, ainda, garantir uma

política de assistência. Os efeitos inflacionários que daí surgiriam seriam solucionados com a

preparação para a guerra.

Para Foucault, o grande golpe teórico dos neoliberais alemães foi não ter dito que o

nazismo era produto de uma crise de Estado extrema e que o sistema econômico implantado

era uma monstruosidade. Nem mesmo, haver dito, tal qual os keynesianos, que o nazismo era

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o resultado de uma combinação inconciliável de elementos heterogêneos e contraditórios,

cujo resultado não poderia servir de modelo analítico para a história geral.

Os neoliberais alemães recusaram-se a ver tal monstruosidade no modelo. Contudo,

afirmavam que o nazismo era uma verdade ou uma relação natural entre aqueles diferentes

elementos. De acordo com eles, qualquer um dos elementos adotados faria surgir na cena da

ação governamental os outros elementos, pois são dependentes entre si. Assim, os alemães

neoliberais - ou ordoliberais, como os denomina Foucault – entre eles, Hayek e Röpke,

estudaram a política do New Deal, e a política keynesiana dos planos Beveridge,

respectivamente, e concluíram que o que estavam preparando era simplesmente o nazismo

(FOUCAULT, 2004, p. 150-151).

Para os ordoliberais, “a diferença essencial não era entre socialismo e capitalismo, a

diferença essencial não era tampouco entre esta estrutura constitucional e aquela outra”. A

verdadeira diferença consistia naquela entre uma política liberal e qualquer outro modelo de

intervenção econômica, seja ele de tipo keynesiado, seja ele mais radical como o plano

autárquico alemão. Esta conclusão seria, portanto, uma invariante antiliberal própria a todos

regimes cuja intervenção econômica faz-se presente (FOUCAULT, 2004, 151).

A segunda conclusão a que os ordoliberais chegam é que, na estrutura jurídica da

Alemanha nacional-socialista, o Estado perde o estatuto de personalidade jurídica e passa a

ser instrumento do povo (Volk) – este sim o verdadeiro fundamento do direito. O objetivo

final do Estado é o povo em sua organização de comunidade (Gemeinschaft). O Estado é

apenas um instrumento, nada mais que isso. Do mesmo modo, o Estado é também

desqualificado internamente pelo princípio do Führertum, isto é, pelo princípio de condução,

consistente no dever de responsabilidade e obediência, sem comunicação vertical de cima

para baixo ou de baixo para cima entre os diferentes elementos da comunidade (FOUCAULT,

2004, p. 152).

A terceira conclusão dos ordoliberais é a de que a existência do partido e do conjunto

legislativo responsável pelas relações entre aparelho administrativo e partido concentraram a

autoridade muito mais no partido do que no Estado, o que evidenciava, novamente, a posição

subordinada deste. Diante desse cenário, os ordolibeirais interpretam que o Estado é assim

subordinado porque suas estruturas, próprias do século XIX, não são capazes de dar conta das

exigências requeridas pelo III Reich.

Nesta linha de raciocínio, argüiram que, se fosse desejado um modelo de intervenção

estatal na economia, o Estado necessitaria de um sobre-Estado, tal qual necessitaram os

nazistas, mediante formas de intensificação do seu poder, como o tema da Gemeinschaft, o

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princípio de obediência ao Führer e a existência do partido. Embora a conduta adotada pelos

nazistas estivesse orientada a criação de suplementos de Estado, ou de um Estado em via de

nascimento, tais medidas eram por eles apresentadas como um modelo destruidor do Estado

burguês e capitalista (FOUCAULT, 2004, p. 153).

Por isso, a Escola de Friburgo conclui que há um nexo necessário entre tal organização

de Estado e o seu crescimento, de modo que a adoção de apenas um elemento pelo sistema

econômico (sistema econômico com economia protegida, por exemplo), implicará na adoção

dos outros três (economia de assistência, economia planificada e economia keynesiana). Por

fim, para que todos elementos sejam instaurados e funcionem, necessários será o crescimento

do poder estatal (FOUCAULT, 2004, p. 153).

Contra a crítica nazista de que o estado capitalista reduziu os indivíduos ao estado de

átomos, ou que os reuniu de uma forma “nivelada e anônima, a da massa”, os neoliberais

alemães perguntam-se se “os nazistas, com sua organização, seu partido, seu princípio do

Führertum” não fizeram o mesmo. Para eles, o nazismo intensificou a sociedade de massa,

consumista, uniformizada e normalizada, a julgar pela massa de Nuremberg, pelos

espetáculos de Nuremberg. o uniforme desejo consumista de todos e o mito do Volkswagen

(FOUCAULT, 2004, p. 155).

Nesse contexto, os neoliberais se posicionam afirmando que tais características são

próprias de um Estado que não aceita o liberalismo, mas sim de um Estado que enveredou

pelos caminhos de uma economia protecionista, de uma política de planificação, ou,

principalmente, de “uma política na qual o mercado não desempenha seu papel e em que a

administração, a administração estatal ou paraestatal, é que assume a responsabilidade

cotidiana dos indivíduos” (FOUCAULT, 2004, p. 155).

Por isso, tais aspectos não estão ligados à economia mercantil, mas sim ao

antiliberalismo. Assim sendo, os defeitos da economia de mercado não restam provados, não

há, nem mesmo, provas de uma defectibilidade intrínseca a economia de mercado: todos os

defeitos são atribuídos ao Estado.

É nesse ponto que há uma reviravolta no pensamento liberal clássico próprio do século

XVIII, pois há uma mudança na função da economia de mercado deste século para o século

XIX. No lugar dela dizer ao Estado que, a partir de certo limite, ele não pode mais intervir;

deve-se permitir que a economia de mercado seja em si mesma, deixando de ser, portanto, o

princípio limitador do Estado, mas sendo, por outro lado, o princípio de regulação do Estado,

desde sua existência até sua ação. Os neoliberais assim se posicionam amparados na

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justificativa de que o Estado é o portador de vícios intrínsecos, ao contrário da economia de

mercado, cujos defeitos não estão provados.

Em oposição a uma liberdade de mercado definida pelo Estado e mantida sob sua

vigilância, o neoliberalismo é o Estado sob vigilância do mercado: a liberdade de mercado

cumpre o papel organizador e regulador do Estado, desde a sua existência a sua última

modalidade de intervenção. Portando, retoma-se a idéia inicial de que foi a experiência nazista

que possibilitou uma mudança radical no pensamento liberal clássico, bem como, solucionar o

problema de conseguir legitimar um Estado que é preciso se tornar aceitável aos olhos de

outros. A partir do que foi exposto, aproveita-se a seguinte indagação de Foucault (2004, p.

159): “o que está em questão é saber se, efetivamente, uma economia de mercado pode servir

de princípio, de forma e de modelo para um Estado cujos defeitos, atualmente, à direita como

à esquerda, por uma razão ou por outra, todo o mundo desconfia”.

3. A RECONFIGURAÇÃO DO PAPEL DO ESTADO NA ECONOMIA GLOBALIZADA

Entre a política do laissez-faire e a política neoliberal há uma mutação

importantíssima: o que importa não é deixar a economia livre, o que realmente importa é até

onde os poderes de informação políticos e sociais da economia de mercado vão poder se

estender. Nessa perspectiva, os neoliberais alemães realizam certo número de deslocamentos,

de transformações e inversões da doutrina liberal tradicional, para que seja possível afirmar

que a economia de mercado tenha o poder de enformar o Estado e reformar a sociedade

(FOUCAULT, 2004, p. 160).

No liberalismo do século XVIII, o princípio do mercado era a troca: uma troca livre

entre os parceiros que “estabelecem por sua própria troca uma equivalência entre dois

valores”. Assim, limitava-se o Estado para que fosse possível que a equivalência dos preços

fosse factualmente uma equivalência, alcançando-se, desse modo, um mercado válido.

Demandava-se o Estado simplesmente para que atuasse na produção, a fim de que a

propriedade privada dos meios de produção fosse assegurada.

Para os neoliberais, no entanto, o essencial do mercado reside na concorrência, o que,

segundo Foucault (2004, p. 161), não passa de uma simples evolução do pensamento da

doutrina e da teoria liberais no decorrer do século XIX. Em praticamente toda teoria liberal do

fim do século XIX, admite-se que o essencial está na concorrência, ou seja, na desigualdade e

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não na igualdade. A partir daí, é a concorrência/monopólio que constituirá a espinha dorsal da

teoria da economia de mercado.

Mas afinal, o que é a concorrência? Foucault (2004, p. 163) responde que ela “não é

de modo algum um dado natural. A concorrência é um eîdos. A concorrência é um princípio

de formalização. A concorrência possui uma lógica interna, tem sua estrutura própria”. Desse

modo, ela só ocorre se a sua lógica for observada, pois ela consiste em um “jogo formal de

desigualdades”, e não em um jogo natural entre indivíduos e comportamentos, como explica

Foucault.

Como uma estrutura formal não acontece naturalmente sem um certo número de

condições, a concorrência, como jogo formal, só aparecerá e produzirá os seus efeitos

mediante uma preparação cuidadosa e artificialmente preparada e nisto consiste o ponto

fulcral, bem ilustrado com a seguinte passagem:

não haverá o jogo do mercado, que se deve deixar livre, e, depois, a área em que o Estado começará a intervir, já que precisamente o mercado, ou antes a concorrência pura, que é a própria essência do mercado, só pode aparecer se for produzida, e produzida por uma governamentalidade ativa (FOUCAULT, 2004, p. 164-165).

Para alcançar-se a almejada concorrência, vai haver uma “justaposição total dos

mecanismos do mercado indexados à concorrência e da política governamental” e o governo

acompanhará do início ao fim a economia de mercado. A política social, de cunho permanente

e multiforme, não será contra a economia de mercado: ela será condição de possibilidade para

que o mecanismo formal da concorrência aconteça, isto é, para que “a regulação que o

mercado concorrencial deve assegurar possa se dar corretamente”, de modo que os efeitos

negativos inerentes a uma ausência de concorrência sejam impedidos (FOUCAULT, 2004, p.

222).

Diante desta conjuntura, Avelãs Nunes (2011, p.118) refere que o combate à inflação

constitui a única política econômica bem fundamentada, pois ela afeta o mecanismo dos

preços relativos e põe em causa o funcionamento do “livre” mercado e a “racionalidade” das

economias capitalistas. Com o objetivo político de se alcançar a estabilidade dos preços, os

outros objetivos próprios de uma política econômica (que não a neoliberal) são postos em

segundo plano, para não dizer que nem ao menos são lembrados.

As medidas próprias de uma política keynesiana, constituintes da essência do estado

social - como crescimento econômico, pleno emprego, desenvolvimento regional equilibrado,

redistribuição do rendimento e justiça social -, e que objetivam conciliar capitalismo e

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democracia restam sacrificadas. Os monetaristas reconhecem na inflação um fenômeno

exclusivamente monetário, resultado de um aumento da quantidade de moeda em circulação

em maior medida do que aquela em que aumenta a produção (AVELÃS NUNES, 2011, p.

119). Nessa perspectiva, a inflação deve ser controlada mediante a diminuição da quantidade

de moeda em circulação, o que, inevitavelmente, acarretará a contração da atividade

econômica e, consequentemente, o aumento do desemprego.

Contudo, como se vivessem ainda no século XVIII, os neoliberais acreditam que a

partir desta situação ocorra uma diminuição dos valores salariais, o que possibilitará aumento

do lucro das empresas. Esta conjuntura possibilitará o aumento nos investimentos privados e,

em seguida, o “relançamento da economia”. Assim, haverá a ampliação das oportunidades de

emprego. Diante disto, o que se constata na política neoliberal é que a economia está entregue

às leis do mercado e é refratária a qualquer mecanismo de salvaguarda dos direitos sociais

(AVELÃS NUNES, 2011, p. 119).

Para que o Estado de direito funcione na ordem econômica, as leis na ordem

econômica devem ser eminentemente formais. Não é dever do Estado estabelecer planos

orientados a uma opção econômica global, afirmando, por exemplo, que as distâncias entre as

rendas deve diminuir. Cabe a ele somente dizer às pessoas o que devem e o que não devem

fazer. Ainda, uma lei deve respeitar a ordem econômica à luz do Estado de Direito, por isso,

deve ser criada a priori na forma de regras fixas, e não deve ser passível de correção diante

dos efeitos dela decorrentes. Da mesma forma, tais normas consistirão em molduras, dentro

das quais os agentes econômicos poderão decidir livremente, cientes de que aquele quadro

legal fixado não será alterado.

Em virtude de estas leis serem tão obrigatórias aos outros, como – sobretudo – ao

Estado, por meio delas deve ser possível prever exatamente como o poder público se

comportará (FOUCAULT, 2004, p. 237). A partir disso, percebe-se que este modelo de

Estado de direito exclui um sujeito universal de saber econômico “que poderia, de certo

modo, pairar acima do conjunto dos processos, definir fins para eles e substituir esta ou aquela

categoria de agentes para tomar esta ou aquela decisão”. (FOUCAULT, 2004, p. 238). Para

eles, o Estado deve ser cego aos rumos da economia. Nesse sentido,

O Rule of Law e o Estado de direito formalizam a ação do governo como um prestador de regras para um jogo econômico em que os únicos parceiros e os únicos agentes reais devem ser os indivíduos ou, digamos, se preferirem, as empresas. Um jogo de empresas regulado no interior de uma moldura jurídico-institucional garantida pelo Estado: é essa a forma geral do que deve ser o quadro institucional de um capitalismo renovado (FOUCAULT, 2004, p. 238).

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E é neste curso que seguirá a jurisdição, tendo como tema governar a ordem

espontânea da vida econômica.

3.1. A FIGURA DO ESTADO REGULADOR/SUPERVISOR E O SURGIMENTO DE NOVOS ATORES E FORMAS DE REGULAÇÃO: RUMO AO DIREITO NEGOCIADO Conforme Chevallier (2009, p. 69), ainda que o Estado não mais seja o “motor do

desenvolvimento” e o gestor dos setores-chave da economia, não quer dizer que ele esteja

menos engajado. “A complexidade crescente dos circuitos econômicos, as mutações

tecnológicas, a sofisticação dos produtos financeiros, a globalização das trocas”, mas também

a crescente pressão dos poderes econômicos, cujo poderio tem se reforçado com a

globalização, impõem que o Estado assuma um papel interventivo, como mencionado no

início deste capítulo (CHEVALLIER, 2009, p. 69).

Como Foucault, Chevallier afirma que a intervenção pelo Estado dirige-se à fixação

das regras do jogo econômico, ao estabelecimento de determinadas disciplinas a prevalecerem

em detrimento de outras e à proteção de determinados interesses. Desse modo, o Estado

permanece presente na economia, só que de modo mais distante, como um “supervisor”, “cuja

presença é indispensável para assegurar a manutenção dos grandes equilíbrios e criar as

condições propícias a seu desenvolvimento” (CHEVALLIER, 2009, p. 69).

Assim, de um Estado operador, detentor de empresas implantadas principalmente nos

setores de base (como energia, transportes e telecomunicações), passou-se ao Estado

regulador, diante dos movimentos de privatizações, muitas vezes impostos pelas instituições

financeiras como “programas de ajuste estrutural” na economia3. Nesse cenário, é certo que a

3 Segundo Chevallier (2009, p. 72), “esse movimento geral de privatização de empresas até então controladas pelo Estado não significa, no entanto, que esse se desvincule totalmente da esfera das atividades produtivas. Não apenas as privatizações encontram alguns limites estruturais (como o demonstram nos países europeus as dificuldades de privatização das ferrovias ou da rede postal, desencadeada, no entanto, em janeiro de 2006 no Japão), mas ainda o Estado é chamado a permanecer presente na economia, seja mantendo o seu controle sobre atividades de importância estratégica (indústria de armamento, nuclear...), seja suplementando o capital privado insuficiente para salvar determinados florões industriais (Alstom na França, em agosto de 2003) (‘Estado maqueiro’); mais generalizadamente, as participações que ele conserva no capital de um conjunto de empresas (participações doravante geridas na França por uma ‘Agência das Participações do Estado – APE ou na China pela ‘Comissão de Controle e de Gestão dos Ativos do Estado’) permitem-lhe, enquanto acionista, influenciar as estratégias dessas empresas. A retomada pelo Estado do setor energético (petróleo, gás), notadamente na Rússia (Gazprom, Rosneft) ou em determinados países da América Latina (Bolívia em 2006, Venezuela em 2007), mostra, sob outro aspecto, que um movimento reativo tende a se produzir e que o Estado pretende manter o controle dos recursos julgados essenciais”.

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mudança de papel o tirou do estatuto de operador econômico, no entanto, isto não quer dizer

que ele tenha integralmente deixado de intervir na economia (CHEVALLIER, 2009, p. 72).

Conforme o mesmo autor, o papel de regulador implica em um novo papel do Estado

na economia: para a teoria dos sistemas, a regulação “compreende o conjunto dos processos

pelos quais os sistemas complexos conseguem manter o seu estado estacionário, preservando

os seus equilíbrios essenciais, malgrado as perturbações externas” (CHEVALLIER, 2009, p.

72). A partir da intervenção do Estado na economia, presume-se, portanto, que o sistema

econômico não encontre o seu equilíbrio por si.

Desse modo, cabe à regulação supervisionar o jogo econômico, determinar regras,

amortecer tensões e compor conflitos, de maneira que garanta a manutenção do equilíbrio do

conjunto. Neste processo de regulação, o Estado não se identifica mais como ator, mas sim

como “árbitro” do processo econômico, cuja função limita-se a enquadrar a atuação dos

operadores e esforçar-se para harmonizar suas ações. Para desempenhar estas funções, exige-

se uma “posição de exterioridade relativamente ao jogo econômico; uma capacidade de

arbitragem entre os interesses em jogo; uma ação contínua a fim de proceder aos ajustes

necessários” (CHEVALLIER, 2009, p. 73).

Para tanto, Chevallier (2009, p. 73) refere que a regulação necessita de uma série de

meios de ação: “a regulamentação (rule-making), a fiscalização (monitoring), a alocação dos

direitos (adjudication), a composição dos litígios (dispute resolution)”. Se o processo de

regulamentação passa pelo canal do direito e pela formalização jurídica, ele ocorre de uma

forma bastante diferente da regulamentação clássica, pois o “direito da regulação” é maleável,

pragmático, flexível, além de ser elaborado com a participação estreita dos destinatários, ou

interessados, e sua revisão é recorrente, de acordo com os resultados obtidos, sem, no entanto,

comprometer a estabilidade das programações estratégicas dos interesses privados

(CHEVALLIER, 2009, p. 73).

Contudo, o Estado não é a única instância de regulação da economia. Como menciona

Chevallier (2009, p. 73), além dele, existem outros atores e formas de regulamentação que

atuam de forma a complementar, ou até mesmo, a substituir a regulação estatal. Ao seu lado,

há mecanismos de autorregulação, “fundados sobre a auto-organização e sobre a

autodisciplina dos grupos profissionais”, por exemplo, como as ordens profissionais

francesas. Há também o mecanismo de corregulação, em que atores públicos e privados

atuam conjuntamente.

A título de exemplo, o Relatório Al Gore de 1992, intitulado Reinventing Government,

sugeria que o mecanismo da autorregulação pudesse ser um modo eficiente de reforma na

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regulamentação, capaz de ensejar uma melhor aceitação e adaptação a novas regras. O mesmo

ocorreu no programa britânico de “reforma da regulamentação”, em 1997 e, em de 1998,

intitulado – Principles of Good Regulation. Mais tarde, em 2000, também no Alternatives to

State Regulation. No entanto, as incertezas que pairavam sobre o consenso entre os atores

privados fizeram com que novamente os atores públicos fossem reintroduzidos, estimulando-

se, portanto, o mecanismo de corregulação como uma importante saída (CHEVALLIER,

2009, p. 73).

Segundo Hespanha (2009, p. 430), o “mundo de novas unidades econômicas

transforma-se num mundo de unidades, também novas, de natureza política e normativa”.

Cada uma destas unidades constitui um novo centro de poder, bem como um novo centro de

produção de normas jurídicas. Estas normas tornam-se obrigatórias por contratos firmados

entre as unidades transnacionais, já as normas jurídicas de regulamentação genérica são

válidas para um setor de atividade, como as normas técnicas, por exemplo.

Por outro lado, Hespanha (2009, p. 431) expõe que as unidades, preocupadas com

estabilização e segurança das suas relações presentes, requerem uma disciplina obrigatória

para os “participantes das transações no mundo globalizado”. Ou seja, tais unidades postulam,

“um direito do mercado globalizado, uma espécie de desenvolvimento e extensão do direito

comercial que, na Antiguidade e na Idade Média, regulava as relações mercantis nas várias

praças comerciais do mundo (lex mercatoria)” (como será visto adiante, a idéia de uma

suposta estabilidade e segurança na lex mercatoria será questionada).

Na sociedade globalizada, Hespanha (2009, p. 431-432) afirma que as realidades estão

sempre em mutação e, por isso, a textualidade do Código deve ser substituída pela

maleabilidade de princípios menos fixamente formulados. Destarte, há quem pense que, a

partir desta maleabilidade normativa, possa surgir uma “comunidade de valores comum a

todos os sujeitos da comunidade global”, ou, em outras palavras, de “valores cosmopolitas”

(HESPANHA, 2009, 432).

Há quem pense, além disso, que a comunidade global responsável por gerar tais

valores seria a comunidade dos sujeitos econômicos transnacionais, representada por grandes

empresas transnacionais, cujos especialistas cumprem regras de boa gestão, ou regras

prudenciais, “apoiados por departamentos de aconselhamento ou de law firms também

internacionais, auditadas por firmas, novamente internacionais de gestão e auditoria”, que

resolvem seus problemas não mediante a justiça do Estado4, mas sim por meio da arbitragem,

4 Conforme Chevallier (2009, p. 146), “o recurso à arbitragem para compor as diferenças contribui para dar força obrigatória aos usos do comércio internacional: a arbitragem, com efeito, não somente resulta em subtrair

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isto é, por tribunais privados compostos por árbitros selecionados conforme sua capacidade

técnica e, sobretudo, de acordo com a sua sensibilidade ao ambiente das empresas e dos

grandes negócios5 (HESPANHA, 2009, p. 432).

Segundo Hespanha (2009, p. 432-433), seria este complexo político-mercantil o

constituinte do “caldo de cultura de uma ordem de valores (e, logo de um direito) para a

sociedade globalizada”, intitulada pelo autor como “constituição econômica do mercado

global”. À luz desta visão de mundo e das normas a ela associadas, as transações são fáceis e

seguras, mesmo diante de uma “dispersão geográfica” e da ausência do poder coercitivo

estatal.

Uma característica da “constituição econômica do mercado global” seria a

flexibilidade quanto aos assuntos “antipáticos para o mercado” - como a defesa dos interesses

nacionais, ou das comunidades nacionais, a garantia dos direitos dos cidadãos, a salvaguarda

de valores comunitários, a defesa dos direitos dos trabalhadores, entre outros – restando

evidente que nem todos os fatores e atores seriam igualmente “globalizáveis”, tendo esta

característica somente os interesses em consonância com a lógica do mercado global.

Desse modo, questões locais como a “deslocalização das empresas, as desigualdades

de rendimento e, portanto, de poder de compra de umas regiões para as outras, a diferente

exposição às catástrofes climáticas, diferente acesso às matérias-primas” são assuntos a serem

resolvidos simplesmente pelo funcionamento das leis do mercado internacional. Para estas

situações, o direito - estreitamente vinculado à prática cotidiana, às regras do mercado, e os litígios entre os operadores econômicos à competência dos tribunais estatais, mas ainda assegura a tomada em consideração de outras regras que não apenas o exclusivo direito estatal (usos, jurisprudência arbitral); os agentes econômicos exigem escolher os seus juízes (forum shopping) e ter os seus litígios decididos segundo um direito específico adaptado às necessidades do comércio internacional (law shopping). Ora, a arbitragem conheceu um desenvolvimento prodigioso, favorecido pela pressão das law firms americanas e pelo liberalismo muito grande dos Estados: tornou-se o procedimento normal de composição de diferenças comerciais internacionais; a sua institucionalização por meio da adoção de estruturas permanentes – instituições arbitrais com vocação genérica, tais como Corte permanente de arbitragem ou especializada, como o ‘Centro Internacional para a composição de diferenças relativas aos investimentos’ (CIRDI), criado sob a égide do Banco Mundial pela Convenção de Washington de 18 de março de 1965 – tende a fazer da jurisdição o direito comum dos negócios internacionais. Se as sentenças arbitrais não são geralmente executáveis senão depois de um procedimento de exequatur, a Convenção de Washintown impõe aos Estados a obrigação de reconhecer aquelas provenientes do CIRDI e de a elas assegurar a execução ‘tal como se tratasse de um julgamento definitivo’ dos tribunais nacionais (art. 54)”. 5 Para Chevallier, “O ‘direito da globalização’ se apresenta com um direito ‘extraestatal’ na medida em que ele é em boa parte construído pela iniciativa dos operadores econômicos. O processo de globalização conduziria, irresistivelmente, com efeito, à aparição de um ‘direito global’, concebido e aplicado no âmbito externo dos Estados: é a tese de A.J.ARNAUD, para quem as trocas entre atores econômicos passaria mais e mais pela elaboração de regras e o recurso a mecanismos de solução de litígios que evitam a mediação estatal. A globalização jurídica tomaria a forma de ‘relações jurídicas cujo tratamento ultrapassa o quadro nacional ou comunitário, sem entrar dentro do espaço jurídico internacional stricto sensu’. Correlativamente, ver-se-á delinear uma reestruturação das profissões jurídicas, pela criação, sob o modelo americano, de grandes escritórios de assessoramento, encarregados de aportar aos operadores econômicos os recursos jurídicos necessários e servindo de liame de composição amigável de desacordos”.

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pouco vinculado a outros valores que não o da utilidade (e a utilidade imediata) – demonstrar-

se-ia injusto e desequilibrado (HESPANHA, 2009, p. 435).

Chevallier (2009, 146-147) versa que, devido às suas características, o direito da

globalização se parece com uma contemporânea versão da lex mercatoria - desenvolvida na

Idade Média pelos mercadores sobre as questões de trocas entre mercadorias, que

progressivamente se esfacelou diante dos direitos estatais, sem, contudo, haver desaparecido

por completo. Sendo a lex mercatoria um direito instrumental sob domínio dos práticos e por

eles criado, o direito da globalização também excederia o poder estatal. No entanto, faz-se

uma ressalva, pois “a autonomia dessa lex mercatoria moderna, formada a partir dos usos do

comércio internacional e da jurisprudência arbitral, não é senão relativa” (CHEVALLIER,

2009, p. 147).

Ainda que haja uma crescente adoção dos “usos do comércio internacional” por parte

das jurisdições nacionais, a lex mercatoria possui limitações, pois o seu caráter flexível não se

coaduna com a exigência de segurança e de previsibilidade que o desenvolvimento das trocas,

da concorrência e de investimentos necessita. Inclusive, os próprios operadores preferem se

sustentar em bases mais sólidas (CHEVALLIER, 2009, p. 147).

3.2. O DIREITO NEGOCIADO (ECONOMICIZADO) E A PRESTAÇÃO JURISDICIONAL ENFORMADA PELA ECONOMIA NEOLIBERAL De acordo com Garapon (2008B, p. 2), o Neoliberalismo, nada mais sendo do que a

“extensão do paradigma econômico a todos os âmbitos da sociedade e da vida individual”,

não exclui do seu âmbito de influência o setor jurídico, de modo que o movimento da Law

and Economics não mais se limita apenas às universidades norte-americanas.

Segundo Garapon (2008B, p. 3), o novo modelo de justiça neoliberal se pauta por três

critérios novos, que excedem o “perímetro tradicionalmente reconhecido à justiça”. As

justificativas clássicas do ato de julgar são suplantadas pela

eficiência6, um metavalor que abre a frente de todos os outros, o respeito das escolhas do jurisdicionado, considerado um ator racional, que desloca o centro de

6 Conforme Gaiger (2008, p. 169), “no âmbito das preocupações ditadas pela economia capitalista, a eficiência refere-se essencialmente à exigência de otimizar-se a relação custo/benefício, pela decisiva incidência desta sobre a rentabilidade ou a taxa de lucro dos negócios. Nesses termos, a eficiência é compreendida como o equacionamento de varáveis reduzidas ao plano econômico, muito embora comportem elementos que transcendem essa esfera ou possuem outra natureza, como o trabalho e os demais agenciamentos sociais da estratégia produtiva em questão (...). A eficiência capitalista não considera, senão utilitariamente, benefícios

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gravidade da justiça e, enfim, a segurança, a qual confere a tudo uma referência substancial, pronta para homogeneizar os processos judiciais.

A padronização - reconhecida como um requisito da eficiência - consiste no primeiro

gesto da administração de traço neoliberal. Desse modo, a busca pela padronização de todas

as atividades visa, sobretudo, a possibilitar que os destinatários das regras possam se conduzir

de modo estratégico, prevendo comportamentos. Se, de acordo com Foucault, o principal

pilar da democracia neoliberal é a concorrência (mesmo que artificialmente criada),

considerada o mais eficiente método de regular as atividades humanas e de mediar a

coexistência, as reformas que vivenciamos atualmente mostram diversos exemplos

(GARAPON, 2008B, p. 3).

Segundo Chevallier (2009, p. 159), a exigência de coerência (ou padronização) passa

por múltiplas vias, sendo o “pluralismo ordenado” um dos traços da paisagem jurídica

contemporânea. Ele se traduz tanto por uma “coordenação por entrecruzamentos”, ou seja,

sofrendo influências cruzadas (reduzindo-se, por exemplo, as divergências jurisprudenciais

mediante um diálogo entre juízes de diferentes nações), como por uma “harmonização por

reaproximação” estabelecida a partir de referencial comum, ou, ainda, por uma “unificação

por hibridização”, consistente na combinação de vários sistemas jurídicos.

Destarte, a difusão dos “princípios comuns” por espaços jurídicos diversos torna

possível uma organização coerente, de maneira que as regras jurídicas constituirão as “portas”

e os princípios diretores constituirão as pontes que ligarão “territórios normativos diversos” e

“regulações diversas”, geralmente criadas segundo lógicas próprias. A existência de uma

“interlegalidade horizontal” entre legislações diversas, cujas especificidades lhes são próprias,

e de uma “internormatividade” dentre os espaços jurídicos, possibilita uma espécie de

“harmonização suave entre os diferentes pontos de produção do direito” (CHEVALLIER,

2009, p. 158).

Diante da emergência desses princípios, pode-se antever a produção de um “direito

comum pluralista”, construído por sucessivos ajustamentos e pela incorporação de diversas

culturas jurídicas do mundo7. Contudo, nesse cenário pode-se observar o fenômeno da

hegemonia jurídica, pois

sociais gerados pela ação econômica, tais como postos de trabalho, valorização do ser humano, preservação do ambiente natural e qualidade de vida. Ela despreza importantes questões, a exemplo do consumo de recursos não-renováveis e da transferência de custos para o exterior da empresa ou para as gerações futuras ”. 7 Para um maior aprofundamento no tema consultar “DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. Tradução: Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 1.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004” e “DELMAS-

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a extensão contínua de um fundo comum de regras e de princípios não é apenas a expressão de uma interdependência crescente entre os Estados, ilustrada por uma comunhão sempre maior de valores; é também o produto de mecanismos mais difusos de imposição (CHEVALLIER, 2009, p. 159).

A hegemonia jurídica é reflexo da desigualdade que preside as relações entre os

Estados. Logo, as potências que possuem mais condições de atuar no cenário internacional,

isto é, aquelas que dispõem de mais recursos, tem mais condições de impor o seu “sistema de

valores, o seu modelo de organização política e também a sua concepção do direito”, como

explica Chevallier (2009, p. 159). Desse modo, mediante a “força de atração intrínseca” que

exercem, as potências fazem pressões bastante concretas com o intuito de influenciar o

conteúdo do direito de outros sistemas jurídicos.

Sendo assim, quanto maior for a dependência, maior a vulnerabilidade diante de

pressões e influências exteriores e, com isso, a permeabilidade do sistema jurídico. Os

dispositivos de auxílio constituem um bom exemplo, pois as instituições financeiras

condicionam a prestação de ajuda financeira a um conjunto de imposições de ordem

institucional e a “transposição de standards jurídicos dominantes”. Nessa conjuntura, as

instituições financeiras internacionais se tornaram os principais agentes difusores de um

determinado modelo jurídico, tudo isso para atender a exigência de good governance

(CHEVALLIER, 2009, p. 159).

No âmbito do direito, a globalização se traduz por uma maior influência exercida

pelo direito de tradição anglo-saxã, ou norte-americana, especificamente. A Commun Law

constitui um modelo melhor adaptável às evoluções das trocas econômicas, em contraposição

ao modelo romano-germânico. O que ilustra bem isto é o relatório Doing Business in 2004

elaborado pelo Banco Mundial, que classificava o sistema jurídico francês entre os menos

eficientes do mundo no que diz respeito aos negócios. Com base nisso, os sistemas de justiça

são estimulados a aderir a algumas características próprias ao modelo de direito de inspiração

anglo-saxã, como o mecanismo da plea bargaining8. (CHEVALLIER, 2009, p. 159).

MARTY, Mireille. Três Desafios para um Direito Mundial. Tradução: Fauzi Hassan Choukr. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 8 Um bom exemplo é a introdução da plea bargaining na França, consistente na possibilidade de o réu concordar em negociar sua pena com o promotor. Segundo Garapon (2008A, p. 29), “na Common Law, em que a força motriz do processo é constituída pelas partes privadas, não causa surpresa o fato de a metáfora econômica subentender o raciocínio institucional até mesmo no contexto penal, ao passo que a cultura judiciária francesa não pode conceber a pilotagem de sua justiça senão em termos de políticas públicas e acesso à justiça”. Para um

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Garapon (2008B, p. 6) argumenta que “a justiça neoliberal acelera um processo de

revisão de perspectiva que está em gestação desde décadas atrás: ela muda de lugar o ponto de

vista a partir do qual é endereçado o direito”. Se uma vez o direito era endereçado ao poder,

ou ao interesse geral, hoje, ele gravita em torno do sujeito. O sujeito – consumidor do direito -

passa a ser o “árbitro da qualidade da justiça”, deixando de o ser, portanto, o Estado. O direito

tem como referência o destinatário das regras (sujeito), e não mais o seu emissor (Estado).

O mesmo autor também traz como exemplo o relatório do Banco Mundial Doing

Business, cujo intuito, segundo Garapon, consiste em comparar os direitos nacionais em

termos de competitividade. Sendo a competitividade o principal escopo, percebe-se que a

justiça é avaliada de acordo com os interesses privados, ou seja, de acordo com os interesses

dos destinatários das regras. Desse modo, o direito é reduzido a um instrumento à disposição do investidor: desse momento em diante – o instrumento jurídico é colocado a serviço de uma única parte, o investidor – os indicativos comparativos são destinados a avaliar as vantagens que eles procuram, o contencioso é considerado um entrave e um custo (GARAPON, 2008B, p. 6).

No Brasil, um importante relatório elaborado pelo Banco Mundial – “O setor

judiciário na América Latina e no Caribe”, de 1996 – tinha, dentre os seus objetivos, destacar

a importância de que o judiciário trabalhe com o valor certeza, pois, “sob o ponto de vista dos

interesses econômicos, se um Estado – e suas instituições – mudam as regras do jogo no

percurso da partida, as empresas não poderão saber o que é lucro ou não no futuro”

(SALDANHA, 2010, p. 84). Sendo, portanto, a previsibilidade um importante valor a ser

preservado aos olhos do Banco Mundial, encontrou-se oportunamente uma justificativa

favorável para a criação da súmula vinculante, da repercussão dos recursos extraordinários e

especial e, ainda, da súmula impeditiva de recursos, constantes na Emenda Constitucional n.

45.

Diante disto, o direito deixa de constituir um quadro formal compromissado com a

efetivação do interesse geral, ou “um conjunto de garantias com o escopo de neutralizar o

desequilíbrio entre as partes” (protegendo o hiposuficiente seja ele consumidor ou

trabalhador), e se torna apenas um “destrinchador de interesses contraditórios” (GARAPON,

2008B, p. 7). Nesse novo modelo de justiça neoliberal, o direito não é mais pensado a partir

do seu interior, mas sim de seu exterior, sob o ponto de vista dos consumidores do direito,

aprofundamento do tema, consultar “GARAPON, Antoine. Julgar nos Estados Unidos e na França: Cultura Jurídica Francesa e Common Law em uma Perspectiva Comparada. Tradução: Regina Vasconcelos. Riod e Janeiro: Lumen Juris, 2008”.

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cujo direito é apenas uma informação a ser considerada ao se traçar suas estratégias

individuais.

Na mundialização, portanto, os sistemas jurídicos estão em concorrência, o que

possibilita o exercício do forum shopping pelos litigantes, que consiste em submeter suas lides

à jurisdição que lhes for mais favorável (GARAPON, 2008B, p. 7). Esta prática é também

exercida para litigantes institucionais (multinacionais), ou para vítimas de crime contra a

humanidade, por exemplo.

Se no direito nacional o direito dos investidores é sopesado pelo direito dos

trabalhadores, que aparecem na mesma esfera jurídica; no contexto globalizado, não há mais

espaço para os direitos sociais. Como expõe Garapon (2008B, p.7), “investidores e

trabalhadores não possuem qualquer espaço político em comum”. Castanheira Neves (2002,

p. 30), ao analisar o cenário ora descrito, diria que o direito “deixa de ser um auto-subsistente

de sentido e de normatividade para passar a ser um instrumento – um finalístico instrumento e

um meio ao serviço de teologias que de fora o convocam e condicionantemente o submetem”.

Assim, o comportamento pessoal e institucional muda as suas bases de equilíbrio “do

bem, do justo, da validade (axiológica material), para as “do últil e da funcionalidade, da

eficiência, da performance” (CASTANHEIRA NEVES, 2002, p. 35). Garapon evidencia que

o modelo neoliberal se substitui traiçoeiramente aos princípios da justiça clássica, ao priorizar

os critérios de eficiência, das vantagens comparativas e da segurança. No cenário neoliberal,

todos estes valores se impõem como o principal conteúdo dos “guias da reforma geral das

instituições” (GARAPON, 2008B, p. 19).

Por tais valores serem transcendentes, eles não precisam estar acompanhados dos

valores tradicionais. O que se percebe, diante disso, é que o cenário neoliberal provoca uma

“laicização das instituições”, que são revaloradas sob a lógica de uma racionalidade que a elas

não pertence, ou que lhes é totalmente estranha: concorrência e empreendimento

(GARAPON, 2008B, p. 19). Ao evidenciar a eficiência, a universidade de interesses e a

precisão dos dados mensuráveis fornecidos às instituições e à opinião, acalma-se a função

deliberativa da democracia, pondo-se um “fim prematuro à tensão inelutável de pontos de

vista opostos” (GARAPON, 2008B, p. 24).

Contudo, o que se quer dizer não é que os valores - segurança, liberdade do sujeito,

eficiência, utilidade – devam ser desconsiderados a priori, mas sim que devem ser submetidos

à discussão, pois “a despolitização começa logo que um valor tem por ímpeto ser justo por ele

mesmo, sem ter como se justificar” (GARAPON, 2008B, p. 25). Desse modo, não se pode

recriminar uma escola de pensamento por ser originária de escolhas ideológicas, ou por tomar

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partido de alguma versão em detrimento de outra. O que se deve fazer, segundo Garapon

(2008, p. 24), é protestar que o neoliberalismo disfarça suas escolhas (ideológicas) e

apresenta-as (as escolhas) como evidências. Este é um importante caminho para reanimar a

discussão democrática9.

Avelãs Nunes (2011, p. 253) elucida que uma crítica à globalização não pode se

confundir com o retorno a algum “paraíso perdido, negador da ciência e do progresso”.

Mesmos os adversários da globalização apóiam a revolução científica e tecnológica. O que há

de errado na globalização “é o neoliberalismo que a alimenta, a estrutura dos poderes em que

ela se apoia, os interesses que serve”, mas não a revolução científica e tecnológica

especificamente, acusadas por alguns de serem as responsáveis por possibilitar o

desenvolvimento de um projeto neoliberal. De acordo com Avelãs Nunes, o erro está na

utilização perversa que se faz a partir de tal progresso.

Portanto, considerando-se a globalização como um “projeto político”, necessário é um

“espírito de resistência à ideologia dominante”, que deve começar desde já a partir de uma

construção teórica. Assim, poder-se-á construir um modelo político que englobe os objetivos

cujo mercado é incapaz de abarcar. Da mesma forma, necessário é um projeto cultural que

faça frente à lógica determinista e sem alternativas da globalização neoliberal, reconhecida

como uma das marcas da “civilização-fim-da-história (AVELÃS NUNES, 2011, p. 254).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No primeiro capítulo, explicou-se como o “livre mercado global” comprometeu as

bases do Estado de Bem-Estar Social, sendo esta uma das faces da crise do Estado. Discutiu-

se o objetivo das organizações interestatais, supranacionais e das organizações econômicas e

empresas transnacionais de que o Estado tenha o seu poder reduzido, seja estimulando o

movimento de privatização de empresas, seja importando o modelo de gestão privada às

9 Gaiger (2008, p. 170) esclarece na obra “Dicionário Internacional da Outra Economia” que “uma visão alternativa de eficiência alia-se indissoluvelmente à discussão sobre a eficácia da ação empreendida, isto é, sobre os fins a serem alcançados e as possibilidades de atingi-los. Tais fins, longe de se restringirem ao faturamento e ao crescimento econômico, ou, ainda, a uma profícua relação mercantil entre produtores e consumidores, vinculam-se à satisfação de necessidades e a objetivos materiais, socioculturais e ético-morais dos indivíduos e da coletividade, imediatos ou de longo prazo. A racionalidade em questão compõe-se de valores dirigidos à qualidade de vida do grupo diretamente implicado e à garantia de melhorias e de segurança humana para a sociedade. Assim concebida, a eficiência consiste, pois, na capacidade de se gerirem esses resultados por meio da oferta de bens e serviços com qualidade referida a seu valor de uso, mediante estratégias produtivas e procedimentos de controle que assegurem a perenidade de tais processos e a oferta permanente daqueles benefícios”.

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instituições estatais. Com isso, percebeu-se que o Estado passa a confiar nos mecanismos

econômicos do mercado, não cabendo mais a ele cumprir o dever finalístico de cumprir uma

função social.

Destacou-se o papel exercido pelos novos atores, principalmente no que diz respeito

ao funcionamento da economia, e mencionou-se que tais atores atuam se não diretamente no

processo de normatização, ao menos “paranormativamente” – mediante a influência

econômica que exercem, capaz de mudar o destino dos Estados territoriais. Com base nisso,

elucidou-se que, nos dias de hoje, a sociedade tem se reproduzido primariamente baseada no

código “ter/não-ter”, em detrimento dos códigos “lícito/ilícito” e “poder/não poder”, o que

afeta as bases do Estado Democrático e Social de Direito.

A partir dos aportes de Michel Foucault, explicou-se a reelaboração de alguns

elementos fundamentais da doutrina neoliberal, não tanto da teoria econômica do liberalismo,

mas sim do liberalismo como arte de governar, ou como doutrina de governo. À luz da

experiência nazista, os ordoliberais foram capazes de “detectar” que a invariante antiliberal

das políticas econômicas (keynesianismo, protecionismo, assistencialismo), só podiam, cedo

ou tarde, culminar com o Estado de traços nazistas.

Por outro lado, nada se provou acerca da defectibilidade intrínseca da economia de

mercado, pois todos os defeitos foram atribuídos ao Estado. Com isso, em oposição a uma

liberdade de mercado definida pelo Estado, implantou-se um Estado sob vigilância do

mercado.

No segundo capítulo, demonstrou-se que, para os neoliberais, o essencial do mercado

reside na concorrência, tornando-se esta a espinha dorsal da teoria da economia de mercado.

Como a concorrência é um mecanismo formal, ela só ocorre diante de um certo número de

condições, a serem artificialmente preparadas pelo Estado. É assim que surge o modelo de

Estado supervisor/regulador da economia de mercado, caracterizado como um “árbitro” das

regras do jogo econômico, e o Direito sucumbe a esta “funcionalização”/instrumentalização

do Estado.

Não sendo o Estado o único regulador da economia, evidenciou-se o papel

desempenhado pelas novas unidades econômicas, transformadas em, também novas, unidades

políticas e jurídicas. Dentre elas, destacam-se os sujeitos econômicos transnacionais, cujos

consultores jurídicos preocupam-se com regras de boa gestão aptas a impulsionar a economia

de mercado global. Embora, o “direito da regulação” seja maleável, pragmático, flexível, além

de ser elaborado com a participação estreita dos destinatários, ou interessados, ele deve ter sua

previsibilidade assegurada. Para tanto, o Estado desempenha um importante papel como

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garantidor deste status quo, através de uma legislação estatal. Como explicado, a lex

mercatoria não cumpre a exigência de previsibilidade.

Ademais, discutiram-se as conseqüências desse novo modelo de Estado “enformado”

pelo modelo Neoliberal, na autonomia do Direito. Como argumenta Castanheira Neves, o

direito torna-se uma função de outros interesses, e, assim, ruma a um modelo

descomprometido com a consolidação do Estado Democrático e Social de Direito. Tudo isto,

para atender à demanda por eficiência e padronização, cujos standards são, geralmente,

importados dos modelos jurídicos próprios dos países economicamente mais influentes,

especificamente do Commun Law, por também ser mais adaptável às evoluções das trocas

econômicas.Como mencionado, a Jurisdição, então, transforma-se em um forum shopping,

perde a sua função simbólica e passa a ser avaliada somente pelo que é mensurável, e não por

critérios de justiça.

Contra os valores neoliberais - que tem por ímpeto justificarem-se por eles mesmos,

silenciando o debate inerente à democracia participativa e representativa, necessário é por às

claras suas verdadeiras escolhas, também fruto de uma certa ideologia, para que sejam

discutidos e repensados, e não vistos como uma saída sem alternativas à globalização

neoliberal.

Por fim, pretendeu-se, igualmente, ao longo do trabalho, demonstrar que o Estado não

ruma ao desaparecimento. Ainda que suas clássicas atribuições tenham sido reelaboradas, ele

permanece mais atuante do que nunca, seja na esfera legislativa, política, ou judiciária.

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REFLEXÕES SOBRE A CRISE FINANCEIRA INTERNACIONAL E O ESTADO

DE BEM-ESTAR1

REFLECTIONS ON THE INTERNATIONAL FINANCIAL CRISIS AND THE

WELFARE STATE

2

Paulo Márcio Cruz

RESUMO O presente artigo trata dos reflexos da atual crise financeira global nas estruturas do Estado de Bem Estar europeu. A Europa que protege foi e é um lema da União Europeia. Todavia, o Estado de Bem-Estar vem sofrendo críticas na Europa desde as décadas de oitenta e noventa do século passado. A atual situação de crise intensa abre possibilidade para questionamentos dos modelos existentes de Estado de Bem-Estar sob diversos ângulos, colocando dúvidas sobre a atual oportunidade e viabilidade do mesmo. O objetivo deste artigo é incitar a discussão acerca dos limites e do destino próximo do Estado de Bem-Estar frente à crise financeira internacional. PALAVRAS-CHAVE: Estado de Bem-Estar. Crise Financeira Internacional. Europa. União Europeia.

ABSTRACT In the past five decades Europeans have transformed high taxes in a protection net, which ranges from the crib to the tomb. Europe that protects is the motto of European Union. Nevertheless, the Welfare State has been suffering critics in Europe since the 1980s. The current situation of intense crises opens the possibility to question the existing model of Welfare State under different viewpoints, raising doubts about the current opportunity and viability of such State model. The objective of this paper is to promote the discussion about the limits and the near future of the Welfare State in the face of the international financial crisis. KEYWORDS: Welfare State. International Financial Crisis. Europe. European Union.

1 O presente trabalho é fruto das reflexões e debates efetuados pelos professores doutores Paulo Márcio Cruz e Maurizio Oliviero durante a estada do segundo na UNIVALI, no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica – PPCJ/UNIVALI, cursos de Mestrado e Doutorado, como Professor Estrangeiro Visitante, com bolsa da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, de março de 2011 a outubro de 2012. 2 Pós-Doutor em Direito do Estado pela Universidade de Alicante, na Espanha, Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Instituições Jurídico-Políticas também pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Coordenador e professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI em seus programas de Doutorado e Mestrado em Ciência Jurídica. Foi Secretário de Estado em Santa Catarina e Vice-reitor da UNIVALI. É professor visitante nas universidades de Alicante, na Espanha, e de Perugia, na Itália. ([email protected]).

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PARA COMEÇAR: NOTAS DE INTRODUÇÃO

A América Latina sempre enxergou os estados de bem-estar europeus com admiração e com

uma indisfarçável vontade de ter o mesmo modelo em seus países. Tem sido o sonho dos latino-

americanos quando se discute qual o modelo ideal de Estado. Nas últimas décadas o Estado de Bem

Estar foi sobejamente discutido nos meios acadêmicos como um modelo a ser seguido.

De maneira até inusitada, a crise iniciada em 2008 coloca em xeque o modelo de Estado, ou,

pelo menos, gera questionamentos profundos sobre sua viabilidade a médio e longo prazo.

Os especialistas economistas assistem atônitos, com a sua ciência mais inexata do que

nunca, a crise que começou nos Estados Unidos e vem derretendo ativos financeiros, empregos e a

credibilidade de todo sistema econômico da Europa, com gravíssimas repercussões na vida do

cidadão comum. Aquele cidadão que acreditou – e ainda acredita – ser seu modo de vida o mais

adequado para as nações de nosso planeta.

Na verdade, em toda a Europa Ocidental, o estilo de vida europeu está em debate. O mundo

todo sempre admirou os europeus por seu sistema de benefícios sociais e por seus sistemas de saúde

pública. Enfim, por seu modelo de bem-estar social, em contraste com a dureza do jogo de mercado

noutros países “capitalismocêntricos”, já pedindo desculpas pelo neologismo.

Os europeus, ao longo das últimas cinco décadas transformaram impostos altos em uma rede

de proteção que vai do berço à sepultura. A Europa que protege é um lema da União Europeia. Mas

todos os governos da Europa com grandes orçamentos, receitas fiscais em queda e envelhecimento da

população enfrentam o aumento do déficit público e o endividamento privado - e outras notícias ruins

produzidas pela crise financeira.

Na Grécia, por exemplo, país atingido em cheio pela crise, a sociedade ressente-se de pagar

impostos elevados para financiar um estado inchado e de eficiência duvidosa. Reverbera a antiga

discussão entre a função pública, na qual seus membros chegam a se aposentar aos 50 anos com altos

salários, enquanto aqueles que estão na iniciativa privada, pela forma como as coisas estão

caminhando, terão de trabalhar até chegar aos 70. Em toda Europa existem questionamentos sobre

qual será o futuro daqueles que dependem ou dependerão da assistência do Estado. Os cidadãos com

idades próxima da aposentadoria estão profundamente pessimista em relação à consecução desse

objetivo. Para esse cidadão, o governo está tergiversando sobre a solução aos graves problemas que

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atingem a população e não acredita que haverá condições de encher os cofres da previdência. A frase

mais ouvida é a de que “o país não tem futuro”.

Entretanto, acredita-se que a perplexidade que toma conta da Europa Ocidental

poderia ser amenizada com a retomada do debate sobre o novo papel do Estado de Bem-

Estar4, que contestou a concepção liberal de que a liberdade e o desenvolvimento das

atividades privadas só podem ser garantidos através da limitação das funções do Estado.

Considerando as experiências ocorridas nos países ocidentais, pode-se dizer que a

transformação dos Estados liberais em Estados de Bem-Estar implicou uma ruptura de

determinados aspectos da ordem jurídica e econômica até então existente.

Diante dessa realidade, o Estado passou a chamar para si a solução dos problemas

sociais emergentes, principalmente através de sua principal característica: a intervenção direta

nos domínios econômico, social e cultural.

Pode-se entender por Estado de Bem-Estar uma determinada concepção de conformação

estatal, baseada na intervenção social e econômica que levaram a efeito alguns Estados liberal-

democráticos contemporâneos. Uma análise da evolução do Estado Moderno mostra diversas

experiências de intervenção social, econômica e – mais recentemente – cultural, do Estado5.

O Estado de Bem-Estar é, na verdade, uma adaptação do Estado burguês capitalista, ou seja,

dos regimes baseados na Democracia pluralista. A plena articulação do Estado de Bem-Estar só pode

funcionar com base em dois fundamentos do Estado liberal-democrático contemporâneo. Em

primeiro lugar, as propostas do Estado de Bem-Estar tiveram como intenção garantir a acumulação

capitalista – mediante a intervenção sobre a demanda – com a intenção de manter a estabilidade

social. Em segundo lugar, o Estado de Bem-Estar proporcionou uma nova e importante dimensão à

Democracia, a partir do reconhecimento de um conjunto de direitos sociais (SÁNCHEZ, 1996, p.

336).

Através do constitucionalismo social, o Estado de Bem-Estar passou a desenvolver

ações acompanhadas de uma crescente inclusão, nas Constituições, não só de previsões de

regulação estatal das relações contratuais, mas também de comandos aos poderes públicos para

que passem a prover ou financiar uma série de prestações de serviços, em geral públicos e

4 Estado de Bem-Estar é sinônimo de Estado Social Democrata ou simplesmente Estado Social, que são denominações diferentes para um mesmo modelo ideológico de Estado, cada um deles com algumas características próprias, como será visto mais adiante. 5 Conforme FORSTHOFF, 1996, p. 123.

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gratuitos, aos cidadãos (CRUZ, 2001, p. 202). Os esforços para garantir a igualdade de

oportunidades – que, frise-se, é o objetivo principal do Estado de Bem-Estar – e distribuição de

renda derivada de algumas ações do próprio Estado, completaram esta nova dimensão da

Democracia que este modelo ideológico de Estado representa (BONAVIDES, 1996, p. 186).

Portanto, principalmente em algumas matérias, o Estado de Bem-Estar – ou os poderes

públicos – passou a prestar serviços diretamente à população, como nas já aludidas áreas da

saúde, educação, habitação e, principalmente, a seguridade – ou previdência – social, como

aposentadorias, auxílio-velhice, salário-desemprego, afastamentos remunerados para tratamento

de saúde, pensões etc. Estas foram as ações através das quais o Estado de Bem-Estar

materializou-se e, a bem da verdade, resolveu boa parte dos problemas sociais nos países onde foi

implantado de forma decidida. A doutrina costuma dizer que o Estado de Bem-Estar se

caracteriza por ser fortemente ativo com as classes passivas, e passivo com as classes ativas,

numa alusão a pobres e ricos, nesta ordem.

Esta tendência foi acompanhada também, por óbvio, de um aumento da carga tributária

nestes países. As elites, diante da ameaça real do Comunismo instalado na extinta União

Soviética, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, quando aquele regime ganhou força

tecnológica e bélica, resolveram pagar esta conta. Que não foi pequena, mas que valeu a pena, em

todos os casos, para aquelas elites. Foi mais ou menos no sentido do “entregar os anéis para não

perder os dedos”.

Com o fim da União Soviética, no final da década de oitenta, esta tendência foi

progressivamente freada, quando não invertida, pelo movimento ideológico denominado

Neoliberalismo, que será tratado em capítulo próprio mais adiante.

Os estudiosos do Estado de Bem-Estar vêm utilizando como indicador, de maneira a

estabelecer a intensidade do Estado de Bem-Estar em um determinado país, o nível de gasto

público e, em particular, de gasto com o setor social. Este indicador se apresenta como um

percentual sobre o conjunto da riqueza produzida pelo país (Produto Interno Bruto – PIB). Na

maioria dos países que adotam este modelo de Estado, o conjunto do gasto público, nas décadas

de 70 e 80, chegou a representar entre 40 a 50% do PIB. (GIORGIS, 2006, p. 1905). Em alguns

países, como os escandinavos, tidos como exemplos de Estado de Bem-Estar, chegou a 50%.

A consequência desse movimento foi o sobrestamento de muitos dos dogmas liberais,

com o Estado, antes considerado um mal necessário, passando a ser um elemento fundamental a

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todos os setores sociais, inclusive para aqueles que se opunham à sua intervenção (DALLARI,

1972, p. 136).

PARA DESENVOLVER: O ESTADO DE BEM ESTAR E ALGUMAS ABORDAGENS

IMPORTANTES

Estado de Bem-Estar é o sistema político-econômico que, mantendo um âmbito privado

capitalista, encarrega o Estado de tarefas relativas à obtenção de condições sociais mínimas,

como foi visto acima.

Esse conceito de Estado de Bem-Estar tem suas origens históricas nos segundo e

terceiros quartos do Século XX, caso se aceite a premissa de que sua plena consolidação foi

produzida após a Segunda Guerra Mundial. Em muitas ocasiões o seu conceito foi utilizado como

sinônimo de “Estado Social”. Alguns autores, como Wolkmer (1990, p. 72), usam

indistintamente ambos os termos. Outros, de acordo com o âmbito cultural no qual foram

formados (nórdico ou anglo-saxão), utilizam as expressões “Estado Social” ou “Estado Social-

Democrata” para definir categorias similares, senão iguais.

É possível apontar alguns aspectos diferentes entre ambos. Em primeiro lugar é preciso

observar que o Estado Social é o modelo através do qual se concretiza a vontade de intervenção

social dos organismos públicos, mesmo considerando que tanto o Estado de Bem-Estar quanto o

Estado Social tenham reconhecimento constitucional. O que ocorre é que o nível de intervenção é

diferente. Em segundo lugar, é comum utilizar-se o conceito de Estado de Bem-Estar para referir-

se a âmbitos de intervenção pública que são menores que os incluídos no conceito de Estado

Social.

A ação interventora e reguladora do Estado em matéria econômica e trabalhista, no que

se refere à política salarial, pode-se dizer que é uma característica do Estado Social, mas que não

faz parte dos objetivos primordiais do Estado de Bem-Estar.

É a partir dos anos 40, na Inglaterra, que são firmados e explicitados os princípios

fundamentais do Estado de Bem-Estar. Em 1939, Alfred Zimmern, catedrático em Oxford,

contrapôs welfare a power, numa clara intenção de diferenciar os regimes democráticos dos

fascistas que por aquela época estavam em plena expansão no continente. O Estado de Bem-

Estar, segundo a doutrina inglesa daquela década, deveria garantir a todos os cidadãos,

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independente de sua renda, a proteção de direitos sociais relacionados ao trabalho, previdência,

saúde, maternidade e educação.

O fato de o uso do conceito de Estado de Bem-Estar ter origem acadêmica constituiu-se

numa razão a mais para se prestar uma atenção especial às primeiras manifestações de

concretização política da dimensão social do Estado.

A profunda crise estrutural da Sociedade e do Estado verificada entre as duas grandes

guerras tem sido considerada a responsável pela exaustão completa do modelo liberal clássico.

Neste período entre os dois conflitos mundiais, muitas transformações foram operadas. Neste

sentido, como assinala Touchard (1993, p. 489), houve o desaparecimento do dualismo entre

Estado e Sociedade e se manifestam abertamente os fatores que representavam para o Estado a

transformação das capacidades e condições da existência individual.

O avanço mais importante, entretanto, foi representado pela constituição do Estado

como Estado Social, em resposta direta às necessidades substanciais das classes subalternas

emergentes. Assistiu-se, portanto, no período entre guerras, principalmente, a uma retomada por

parte do Estado e do seu aparelho, de uma função de gestão direta da ordem social, mas,

sobretudo da ordem econômica, cujo andamento natural era agora posto em dúvida pela menor

homogeneidade de classe da Sociedade Civil e pela impossibilidade de um controle automático e

unívoco do próprio Estado, por parte desta mesma Sociedade.

O Bem-Estar voltou a ser o objetivo mais prestigioso da gestão do poder, embora não

mais em função declaradamente fiscal e político-econômica, como nos tempos do Estado

Absoluto, e sim, em vista de um progressivo e indefinido processo de integração social

(BOBBIO, 1994, p. 430).

Este momento de surgimento de novas formas de prestação social a partir do Estado ou,

preferindo, de ruptura com as políticas assistenciais próprias do Estado Liberal clássico, pode ser

considerado como o início de um processo dinâmico de ajuste entre o indivíduo e o Estado. Um

dos eixos principais de tal processo foi o surgimento da seguridade social em todas suas formas,

fato que ajuda sobremaneira na análise científica dos diversos modelos possíveis do Estado de

Bem-Estar.

Interessante ressaltar que, assim como o que se observa na atual crise europeia, o

principal sintoma de esgotamento do modelo liberal clássico, durante as três primeiras décadas do

século XX foi o aumento acelerado do desemprego. O Estado passou a patrocinar políticas que

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garantissem a preservação dos postos de trabalho. O próprio Estado passou a ser um empregador

em grande escala, principalmente com o crescimento do contingente de funcionários públicos

dedicados aos serviços sociais, resposta a uma demanda social cada vez maior. O Estado de Bem-

Estar transforma-se num elemento importante na resolução do problema do desemprego

(NAVARRO, 1998, p. 107).

Os economistas britânicos foram os responsáveis pela formulação econômica do Estado

de Bem-Estar. A política econômica e social correspondente ao Estado de Bem-Estar corresponde

às posições de John Maynard Keynes e seus seguidores (VERDÚ; MURILLO DE LA CUEVA,

2000, p. 120).

Podemos dizer que depois de Adam Smith e Thomas Malthus, economistas da escola

clássica, e de Karl Marx, nenhum outro teórico foi tão importante quanto Keynes, pensador de

muita influência na renovação das teorias econômicas tradicionais e na reformulação da política

econômica do livre mercado.

A necessidade de alavancar o crescimento econômico e a extensão de um maior bem-

estar para toda a Sociedade são considerados princípios indissociáveis que se vinculam à

crescente intervenção do Estado e que estão ligados, de forma inequívoca, a Keynes.

Numa leitura sistematizadora do postulado de Keynes, é possível dizer que ele defendeu

seu conceito de “multiplicador de demanda” como sendo a regra através da qual o aumento dos

gastos governamentais aumenta a demanda agregada, o que criaria uma otimização do trabalho e

do capital numa escala tal que a produção se expandiria em proporção superior ao crescimento

daqueles gastos.

Considerando-se estas análises, pode-se dizer que a “equação keynesiana” apoiou a

possibilidade de se fazer convergir elementos de mercado e sociais através da articulação de

políticas redistributivas.

Numa perspectiva histórica, parece evidente que a pregação de Keynes, como modelo

que pretendeu promover a combinação de recursos entre o mercado e o Estado converteu-se, até

fins dos anos setenta, numa doutrina econômica que quase ninguém questionava, na medida em

que sua defesa se relacionava estreitamente com a construção do Estado de Bem-Estar e permitia

que este desfrutasse de um amplo consenso.

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A obra de Keynes foi plenamente reconhecida em seus últimos anos de vida. Em 1944,

chefiou a delegação do Reino Unido à Conferência de Bretton Woods6, nos Estados Unidos.

O modelo keynesiano, independentemente de sua consistência teórica, contou com

vários elementos que ajudaram a torná-lo uma unanimidade nos mais diversos setores sociais e

ideológicos. (KING; SCHNEIDER, 1993, p. 136). Uma das expressões mais visíveis deste fato

foi o desaparecimento das disputas entre as classes sociais que convulsionaram as sociedades

capitalistas nos períodos anteriores à II Guerra Mundial, o que pode ser atribuído a dois fatores:

a) o crescimento econômico que as sociedades ocidentais experimentaram a partir dos

anos cinquenta; e

b) a extensão do Bem-Estar social a camadas cada vez mais amplas da Sociedade.

O Estado de Bem-Estar passou a gozar de um enorme grau de consenso, assim como as

políticas econômicas keynesianas.

Nas duas décadas após a II Guerra Mundial havia uma sensação de que, efetivamente, a

consolidação e a expansão do Estado de Bem-Estar correspondiam, na realidade, a um período

que poderia significar o fim do confronto ideológico entre esquerda e direita ou entre liberdade e

igualdade. O decurso dos acontecimentos, porém, mostrou o equívoco desta percepção.

De qualquer forma, em qualquer destas direções, as pesquisas disponíveis são

suficientemente amplas para uma abordagem sistemática sobre este assunto. Um bom exemplo de

coincidência que se pode encontrar nos estudos sobre o Estado de Bem-Estar é a que tem o gasto

público como principal hipótese de pesquisa, critério muito utilizado até por conta da falta de dados

para operar com outras hipóteses.

Um dos traços permanentes nos textos que tratam deste tema, é que a maioria das

abordagens que se limitam à analise do Estado de Bem-Estar a partir dos investimentos públicos,

consideram que todo gasto realizado pelo Estado tem o mesmo valor, independente dos seu fins e

dos seus resultados.

Assim, as diferenças que devem ser apreciadas entre os diversos modelos de Estado de Bem-

Estar possibilitam a elaboração de distintas classificações, como a classificação já clássica realizada

6 Quando a guerra aproximava-se do fim, a Conferência de Bretton Woods foi o ápice de dois anos e meio de planejamento da reconstrução pós-guerra pelos Tesouros dos EUA e Reino Unido. Representantes estadunidenses estudaram com os colegas britânicos a reconstituição do que tinha estado faltando entre as duas guerras mundiais: um sistema internacional de pagamentos que permitisse que o comércio fosse efetuado sem o medo de desvalorizações monetárias repentinas ou flutuações selvagens das taxas de câmbio — problemas que praticamente paralisaram o capitalismo mundial durante a Grande Depressão.

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por Titmuss, que distinguiu dois modelos: a) o residual, no qual o Estado desempenha uma função

mínima na provisão do bem-estar, cujos serviços são de escassa qualidade e destinam-se à

subsistência, ao contrário da mercado e da família, que são as instituições que gozam de maior

relevância; b) o institucional que, diferente do anterior, tem o Estado como principal instrumento

para a provisão do bem-estar (BLAS GUERRERO; VERDÚ, 1997, p. 117).

O britânico Richard Titmuss7 é uma das principais referências contemporâneas e que se

dedicou à investigação das políticas sociais e do Estado de Bem-Estar, em suas múltiplas formas

e efeitos.

Os modelos ditos “institucionais” se caracterizariam pela universalidade dos serviços

prestados, ou seja, com os serviços atendendo a toda Sociedade de forma indistinta. Nesta forma

de organização, o Estado assume um papel de intervenção com o objetivo de assegurar um

mínimo de bem-estar em todos aqueles âmbitos considerados imprescindíveis ao conforto

individual.

Naqueles ditos “residuais”, ao contrário, a intervenção somente aconteceria quando

falhassem os instrumentos preceptores – a família e o mercado – para a realização do bem-estar.

Neste caso, a intervenção ficaria limitada a segmentos bem delimitados e praticamente excluídos

da Sociedade.

A diferença básica entre estes dois tipos de Estado de Bem-Estar está no fato de que, nos

“institucionais”, os direitos sociais para a cidadania ocupam um espaço central, enquanto que,

nos ditos “residuais”, os direitos estariam sujeitos a provas de merecimento por critérios de

carência social.

Para se ir além do critério do estrito conhecimento do gasto público para classificar o

Estado de Bem-Estar, deve-se ter em conta, então, a análise dos programas de intervenção do

Estado em diversas políticas sociais. Aspectos como as condições para desfrutar das ações que

oferecem os programas, universalidade e especificidade de alguns destes programas ou qualidade

das transferências econômicas previstas nos mesmos são questões relevantes que devem ser

consideradas quando se pretende aprofundar o debate sobre o Estado de Bem-Estar.

7 RICHARD MORRIS TITMUSS (1907-1973), um dos maiores e mais respeitados estudiosos do Estado de Bem-Estar do Ocidente e um dos seus mais influentes teóricos na Grã-Bretanha, foi professor do London School of Economics de 1950 até sua morte, em 1973. Escreveu, entre outras obras, The philosuphy of welfare: selected writings of Richard M. Titmuss, Commitment to Welfare, EssMys on “the Relfare sPMte”, Social policy: an introduction, Problems of Social Policy e Unequal rights.

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O Estado de Bem-Estar gozou de um amplo consenso desde os anos quarenta até os anos

setenta, durando, mais especificamente, até a crise econômica de 1973, que abalou os princípios

keynesianos e sobre os quais havia se sustentado. A partir desta crise o consenso do pós-guerra

em torno da economia mista e do Estado-Providência, partilhado, sofreu seu primeiro importante

revés (MISHRA, 1995, p. 5).

A fase de pujança econômica iniciada após a II Guerra Mundial chegou ao fim, por

conta de dois fatos marcantes. O primeiro deles foi a decisão dos Estados Unidos de não

manter a convertibilidade do dólar em ouro, tomada em virtude da quantidade da moeda

norte-americana em circulação em outros países (BLAS GUERRERO; VERDÚ, 1997, p.

119). Os problemas econômicos causados por esta decisão se prolongaram desde meados da

década de setenta até o início da de oitenta. Diante desta nova realidade econômica, os países

ocidentais começaram a ter sérias dificuldades para continuar implementando suas políticas

econômicas baseadas no modelo keynesiano.

Importante ressaltar, no entanto, que a crise econômica de 1973 não foi a única

responsável pelo questionamento ao modelo keynesiano. O segundo fato marcante foi o

crescimento descontrolado do gasto público. Este fato, importante lembrar, é um dos grandes – se

não o principal - problemas de países europeus, que se debatem entre a pressão de seus cidadãos

para manter os benefícios do Estado de Bem-Estar e as exigências do Banco Central Europeu e

do FMI para que controlem o déficit público, aumentem a carga tributária e para que o Estado

abandone a intervenção em diversos setores, principalmente o social.

Está-se falando de uma época em que a Europa estava em estágio inicial de sua

integração econômico-financeira.

Hoje a realidade é outra. Os governos atuais, na Europa, engessados pela gestão

centralizada do euro, passam a ter que conviver com a contradição de manter os altos custos do

Estado de Bem Estar e aumentar a carga tributária ou reduzir os investimentos públicos que

beneficiavam milhares de pessoas. (CRUZ; FERRER, 2010, p. 12-17). Em qualquer dessas

situações, a impopularidade e o possível desgaste eleitoral são fantasmas sempre presentes.

A intervenção do Estado para regular a economia, que havia sido a prática característica

do modelo keynesiano para fazer frente, respectivamente, ao crescimento da estagnação ou ao da

inflação, mostrara-se ineficientes para combater a atual crise na Europa.

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Com o desequilíbrio fiscal e o aumento da recessão e do desemprego, verificado,

principalmente, nos países da periferia europeia, a estrutura pública de Estado de Bem-Estar ficou

ainda mais vulnerável.

As novas orientações são no sentido de que os governos não devem manter as políticas

voltadas para o pleno emprego, já que isto criaria efeitos indesejáveis, como o aumento da

inflação e a diminuição da produtividade.

Será muito difícil manter a base ideológica e política do Estado de Bem-Estar diante da

onda conservadora e tecnocrata que assola o Ocidente europeu. Pode-se dizer que os principais

serviços universais – manutenção dos rendimentos, cuidados de saúde e educação – terão grandes

dificuldades para sobreviverem ao movimento neoconservador na Europa Ocidental.

O Estado de Bem Estar vem sofrendo críticas na Europa desde as décadas de oitenta e

noventa do século passado. A atual situação de crise intensa abre possibilidade para

questionamentos dos modelos existentes de Estado de Bem-Estar sob diversos ângulos, colocando

dúvidas sobre a atual oportunidade e viabilidade do mesmo. De forma ampla, as críticas

correspondem a três posturas ideológicas distintas e, dependendo do tema em discussão, opostas: o

neoliberalismo, o neoconservadorismo e a neotecnocracia (se é que se pode chamar assim), esta

última representada por correntes reformistas, como aquela representada pelo Premiê Mario Monti,

na Itália (CRUZ, 2011, p. 76).

As pregações neoconservadoras giram em torno, principalmente, de movimentos

políticos e econômicos destinados a diminuir o Estado Médio de Bem-Estar para a condição de

um Estado capaz de enfrentar a atual crise econômica na Europa e insistem em dois fenômenos

para sustentar esta “nova” proposta de atuação política, econômica e estatal:

a) a Crise de Governabilidade, originada por uma ideologia igualitária que tende a

“deslegitimar” a autoridade política, através de uma intervenção do Estado que não

pretendia outra coisa senão corrigir efeitos sociais perversos causados pelo passado

Liberalismo. A disposição do Estado de intervir nas relações sociais provoca um enorme

aumento nas solicitações dirigidas às instituições políticas, determinando a sua paralisia

pela sobrecarga de demanda. As bases de sua crítica se situam no corolário de que o

Estado não pode assimilar uma demanda por serviços públicos e gratuitos ilimitada por

parte da Sociedade; e

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b) a Sobrecarga do Estado a partir de concepções pluralistas da Sociedade, que se

compõe de múltiplos grupos, cujos interesses são objeto de negociação e compromisso

com o Poder. Estes grupos trabalham com uma expectativa cada vez mais elevada para

o seu nível de vida. O sistema de disputa entre os grupos de pressão e as agremiações

políticas obriga o governo a assumir vários compromissos, mesmo que contraditórios,

para se manter no Poder. Assim, os governos não possuem autoridade suficiente para

impor o que se poderia denominar de um adequado ajuste econômico. As tentativas

feitas pelos governos para ter maioria nos parlamentos implicaram ampliar ao extremo

o exercício da negociação, deturpando a concepção de Democracia. O resultado desta

falta de “correções periódicas de rumo” acaba por formar um círculo vicioso do qual o

Estado de Bem-Estar, após determinado período, torna-se refém.

O Neoconservadorismo é o principal movimento de oposição aos modelos de Estado de

Bem-Estar observado na atual crise. O Estado de Bem-Estar e a Democracia Social, por extensão,

são, para a Neoconservadorismo, incompatíveis com a ética e a liberdade política e econômica.

Contra o Estado de Bem-Estar existem, atualmente, argumentos muito robustos e não são

poucos nem de pouca intensidade. Os neoconservadores, aliados muitas vezes aos neoliberais (e até

mesmo a liberais ortodoxos), mesmo ressalvadas as discordâncias que se possa ter em relação aos

seus argumentos, expõem contradições muito concretas em suas críticas.

Muito do que se pode ler sobre a grave crise pela qual atravessa a Europa permite

apontar essas contradições, sendo possível resumir aquelas que seriam as mais relevantes e as que

mais têm tido efeito na opinião pública:

a) o Desestímulo à Economia de Mercado provocado pelo Estado de Bem-Estar.

Segundo este argumento, o Estado de Bem-Estar retira do mercado os incentivos para

investir e empreender;

b) o Alto Custo do Estado de Bem-Estar, provocada pelo rápido crescimento das

burocracias e castas de funcionários públicos, concorre em recursos humanos e

econômicos com a iniciativa privada e consome recursos que poderiam ser aplicados na

produção industrial não-estatal;

c) a Incapacidade de Solução do Estado de Bem-Estar. Um exemplo dos argumentos –

que parecem inconsistentes – que os neoconservadores e neoliberais utilizam em

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relação a esta incapacidade do Estado de Bem-Estar seria relativo à pobreza, já que,

apesar dos recursos destinados ao seu combate, não conseguiu erradicá-la;

d) a Obstrução da Liberdade. Além do risco à Democracia, esta crítica está relacionada

também com a impossibilidade da escolha, pelos cidadãos, dos serviços que serão

colocados ao seu dispor;

e) a Oposição à Iniciativa Privada, que é produzida como consequência do super-

dimensionamento do tamanho do Estado. A redução de seu tamanho – para chegar a um

Estado Novo Mínimo –, a privatização dos serviços, a contenção do poder dos sindicatos

de trabalhadores e a redução da burocracia são as principais propostas que o

Neoconservadoriesmo, o Neoliberalismo e a Neotecnocracia apontam como alternativas

às políticas típicas do Estado de Bem-Estar.

Porém há outras questões que são apontadas como responsáveis pela crise do Estado de

Bem-Estar e a sua falta de capacidade para atender a suas funções tradicionais:

a) o Estado como protetor, não funciona como deveria, já que não consegue evitar a

falta de segurança pública, o terrorismo e o surgimento de movimentos anarquistas;

b) o Estado como administrador industrial tem demonstrado sua incompetência. Suas

empresas sempre dão prejuízo, sufocam as pequenas e médias empresas e sacrificam

o setor primário da economia;

c) o Estado como controlador econômico mostra uma política econômica marcada por

incertezas e oscilações, com recessão, monetarista e não-monetarista, sendo incapaz de

evitá-la;

d) o Estado como magistrado está desprestigiado, oferecendo uma justiça lenta e, algumas

vezes, corrupta. Não raramente, incorre em inconstitucionalidades evidentes e é refém

do corporativismo, tanto público como privado.

Estamos assistindo a talvez a mais grave crise do Estado social, que afeta todas as suas

estruturas: políticas, socioeconômicas e jurídicas. Estamos vivendo uma aguda e crítica etapa de

transição da civilização ocidental de modo que o Estado, fruto dessa civilização, sofre

intensamente essa crise (VERDÚ; MURILLO DE LA CUEVA, 2000, p. 117).

Com possivelmente algumas poucas exceções e bem determinadas, será muito difícil o

Estado de Bem-Estar Social e seus programas históricos sobreviverem em sua matriz original.

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(CRUZ, 2008, p. 9). É preciso observar se a força mais ampla da história continuará atuando com

a crise iniciada em 2008.

PARA TERMINAR: EM DIREÇÃO À DEFINIÇÃO DE UM NOVO MODELO DE

ESTADO NA EUROPA. LIMITES E PRÉ-CONDIÇÕES.

Fundamentado em tudo o que até aqui foi exposto e discutido, a relação causa-efeito da

crise em relação ao Estado de Bem-Estar na Europa aparece como um enredo que não pode ser

separado ou desmembrado. O Estado de Bem Estar e a crise iniciada em 2008 são indissociáveis8.

Nessa discussão deve-se também considerar o fato de que o fundamento constitucional

do Estado de Bem estar faz parte do núcleo duro do constitucionalismo europeu, como seu

pressuposto de fundo para a aceitação de tal modelo de estado de bem-estar.9 Mas mesmo assim,

essa tradição de constitucionalismo social, diante do contexto atual globalizado, sem regras claras

de mercado, corre o risco de desintegrar-se em confronto com a voracidade e a rapidez que o

sistema econômico mundial impõe aos países ocidentais atualmente. (CRUZ; STELZER, 2009, p.

132).

Diversamente de tudo quanto sucede nos EUA, onde a marginalidade e a disparidade

sociais foram sempre dominantes, com a vantagem de um mercado de trabalho muito mais

flexível, boa parte dos Estados europeus estão descobrindo graves carências nos serviços sociais,

o que é mais complicado quando ligada a uma constante e crescente precariedade no mercado de

trabalho. Em outras palavras, a crise econômica além de acentuar a crise de trabalho quase zerou

o valor “amortizador” social do Estado de Bem Estar. Segundo os recentes dados fornecidos pela

UE, nos Países membros, cerca de 114 milhões de pessoas, no mês de julho de 2010, estavam no

risco de exclusão social: cerca de um jovem entre quatro está ainda à procura da primeira

ocupação.

Neste quadro, a Europa aparece extremamente frágil já que como se tratou

anteriormente, as diversas variantes nacionais do modelo de Estado de Bem Estar Europeu estão

realmente em profunda crise. Ademais, parecem nesta fase prevalecerem os egoísmos nacionais.

8 Sobre isso, recomenda-se seja observada a crítica de FINK; LEWIS; CLARKE, 2001. 9 Sobre isso ver COUSINS, 2005.

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Estes fatores, valorados conjuntamente, constituem os limites absolutos para o encaminhamento

de soluções de curto e médio prazo para a referida crise.

As finalidades da presente reflexão poderão ser úteis, também, em relação ao debate que

está envolvendo os principais protagonistas da atual fase histórica, indicando algumas tendências

que tentam redefinir o sistema do Estado de Bem-Estar europeu no contexto da crise

econômica.10

O exercício realizado no presente artigo, como em outras partes também destacado,

requer uma capacidade diferente e inovadora de compreender a complexidade, a amplitude e a

globalidade dos problemas que as autoridades monetárias europeias tentam varrer para debaixo

do tapete. Além disso, é necessária também uma nova investida metodológica baseada na

interdisciplinaridade de análises entre juristas, sociólogos, cientistas políticos e economistas.

Nesta perspectiva, a construção de um novo paradigma social europeu, que possa ser

sustentável, requer algumas pré-condições imprescindíveis de razoabilidade e justiça, como: a) a

redefinição estrutural da organização política da União Europeia, caracterizada por critérios de

unidade fiscal (não só monetária); b) a redeterminação dos paradigmas de equidade social; e c) a

adoção de instrumentos flexíveis de equilíbrio orçamentário. (CRUZ; OLIVIERO, 2012, p. 23).

Mas, se a moderação é a face jurídica da sustentabilidade econômica dos direitos sociais e do

próprio Estado de Bem-Estar, a vontade política é a pré-condição fática sem a qual nada é

possível. (CRUZ; FERRER, 2011, p. 13). Até o momento não há qualquer definição sobre qual

projeto político-estratégico a União Europeia realmente adotará. Não está claro se a União

Europeia pretende construir uma sociedade indubitavelmente mais austera e sóbria, mas

realmente solidária no seu conteúdo e direcionada aos mais necessitados, ou se, ao invés disso,

pretenda “decidir não decidir”, ou seja, perpetuar, em nome da idolatria ao mercado, uma política

neoliberal sabidamente inconsistente, permitindo que um sentimento cada vez mais egoísta tome

conta de seus membros, o que significa renunciar ao seguinte passo da integração da Europa do

tipo ab infra (dentro, abaixo, entre) e a um critério de solidariedade mais forte, que seja ab intra

(fora, acima) e que não seja ab extra (distante, longínqua).

Em outras palavras, a situação atual poderia ser definida como um tempo de carência de

regras; de ausência de estadistas e líderes europeus e mundiais com estatura suficiente para

10 Sobre isso ver JIMENA QUESADA, 2011, p. 76 e CAMPEDELLI, 2010, p. 594.

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enfrentar esse desafio; e, como consequência deste panorama, de ausência de adequadas e

corajosas escolhas político-legislativas nos diversos níveis nacional e continental, tanto europeu

como global.

A austeridade fiscal e os esforços para reduzir salários em países que sofrem

estrangulamento monetário podem causar a fratura de sociedades, governos e até dos Estados.

Sem uma solidariedade maior, é improvável que essa história termine bem.

Neste contexto, no qual parece prevalecer um conjunto de táticas de curto prazo e típicas

dos egoísmos favoritos dos governos nacionais, que sofrem de miopia relativa aos direitos sociais

e àqueles referentes às expectativas humanas das gerações futuras, é importante não se deixar de

assinalar e/ou considerar a função de suplência subsidiária desenvolvida pela jurisprudência.

Emerge, de maneira sempre mais evidente, o relatório decisivo, racional e estratégico dos

tribunais nacionais e supranacionais, cuja jurisprudência parece substituir os Parlamentos nesta

longa transição sistemática (não somente europeia, mas mundial) cujos êxitos são pouco

divulgados.

O dado incontroverso é que o vazio normativo e a ausência de políticas legislativas

produziram um fenômeno de reforço normativo do tipo jurisprudencial, a ponto de se poder

afirmar que a existência de alguns direitos, não só os sociais, são muito mais fruto de um trabalho

de criação judicial do Direito do que movimentos coordenados de governos ou de autoridades

europeias. (COLAPIETRO, 2009, p. 46).

Substancialmente, além da valoração puramente formalista, ao menos na Europa, o

Estado Constitucional Moderno parece adquirir, definitivamente, semblantes de um Estado

jurisdicional, profundamente “empapado” de direito supranacional europeu. O que permite

especular o embrião de um Estado Transnacional.

Nesse sentido o trabalho dos tribunais europeus, por ter servido como núcleo duro das

tradições constitucionais, contribui para alimentar o desenvolvimento de um endereço comum

transnacional (CRUZ; OLIVIERO, 2012, p. 5).

Mesmo que o papel desempenhado pelos tribunais pareça claro, menos compreensível

parecem ser as consequências jurídicas sobre a ordem constitucional e as econômicas sobre o

tratamento político dado à crise. Na realidade, a possível consequência disso tudo é que os

tribunais europeus, apenas atentando ao núcleo valorativo da tradição do constitucionalismo

europeu, alcançado através de diversas decisões, levem a um modelo de “Estado de Bem-Estar

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Real”, que em realidade está sustentado pela estrutura judicial europeia e não positivado. Tudo

isso fruto de uma política legislativa descoordenada e, sobretudo, sem uma análise do impacto

econômico de tal modelo no tempo (ex ante e ex post), tarefa que deveria ser dos legisladores em

suas tarefas decisionais. (RODOTÀ, 2007, p. 76). Portanto, a ausência de debate sobre a

sustentabilidade-factibilidade-exigibilidade intensifica o risco e pode produzir um posterior

agravamento da relação entre o Estado de Bem-Estar e a crise econômica, com uma definitiva

renúncia ao modelo histórico europeu. Já não por opção, mas por necessidade.

Tal risco declinado acima pode assumir dimensões ainda mais complexas. De fato, ou a

crise econômica em relação ao Estado de Bem-Estar constitui uma ocasião de relançamento do

modelo como oposição à globalização negativa, de segunda oportunidade e de redenção corajosa

do sonho e do modelo comunitário ou se revelará o infeliz início do fim do projeto europeu.

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O ESTADO DE EXCEÇÃO E A GARANTIA DA DEMOCRACIA

STATE OF EXCEPTION AND THE SAFEGUARD OF DEMOCRACY

Francisco de Albuquerque Nogueira Júnior*

RESUMO

A compreensão do estado de exceção é ponto nevrálgico de discussão nas escolas jusfilosóficas, justamente por representar a falta de sua normatização em um texto constitucional perante a inexperiência do poder constituinte em identificá-lo, impedindo, dessa forma, a sua positivação. Sua total abstração impede a sua estrita definição, restando-lhe a análise de teorias acerca de sua natureza e de suas implicações na soberania estatal. Não se destoando da experiência contemporânea, o próprio constitucionalismo brasileiro enfrentou o dilema da existência da excepcionalidade no contraste à própria normalidade constitucional. O entendimento do estado de exceção passa pela definição de seu campo de atuação. Diante dessa afirmação, o presente trabalho aborda a reflexão filosófica doutrinária que compreende a natureza da excepcionalidade, as consequências advindas de sua institucionalização na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e o complexo relacional deu sua existência com a garantia da própria democracia. Nesse sentido, colhem-se os reflexos da própria legitimidade de instalação de um estado excepcional como necessário, ou não, a manutenção da ordem social, evidenciando a experiência do texto constitucional de 1988 no desempenho de instituições consideradas democráticas para a defesa do Estado. Por isso, o que se pretende com o presente trabalho científico é apresentar uma definição mais próxima do que se coaduna com a realidade do estado de exceção, evidenciando as suas principais características, as suas relações com a própria soberania estatal, a sua experimentação na Constituição Federal de 1988 e a sua relação com a garantia da própria democracia. PALAVRAS-CHAVE: Estado de exceção; Soberania; Teoria do Direito; Democracia.

ABSTRACT

Understanding the State of exception is a central discussion in the jusphilosophical schools, precisely because it represents the lack of standardization in their constitutional text before the inexperience of constituent power in identifying it, preventing thus their positivization. Its total abstraction prevents its strict definition, leaving it to analyze theories about their nature and its implications in the State’s sovereignty. There is no grand differentiation in the contemporary experience, the Brazilian constitutionalism itself is faced with the dilemma of the existence of exceptionality in contrast to its own constitutional normality. The understanding of the State of exception is the definition of its field. Given this assertion, this paper discusses the philosophical reflection that this understanding of a doctrinal nature of this exceptionality, the consequences arising from its institutionalization in the constitution of the Federal Republic of Brazil in 1988 and its complex existence with the safeguard of democracy itself. In this sense, people gather reflections of their own ideas of the legitimacy of the installation of an exceptional condition as needed, or not, the maintenance of social order, showing the experience of the 1988 constitution in the performance of democratic institutions considered for the defense of the State. So, what is intended with this scientific * Graduado no Curso de Direito pela Universidade de Fortaleza. Advogado.

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work is to present a definition closer that meets the reality of the State of exception, highlighting its main characteristics, its relationships with State sovereignty, Its experimentation in the Constitution of 1988 and its relationship with the safeguard of democracy itself. KEYWORDS: State of emergency; Sovereignty; Theory of Law, Democracy.

INTRODUÇÃO

A compreensão da História revela a existência de um processo de normatização das

sociedades e a consequente concepção dos Estados. Trata-se da necessidade de criação de

normas e regras que pudessem pautar a coexistência pacífica entre indivíduos dotados de um

anímico sentimento de agrupamento, delimitados sob um mesmo espaço territorial provido de

uma peculiar soberania. No instante de afrontamento da legalidade posta, caberia ao Estado,

sob a representação de uma cúpula diretiva, a resolução da celeuma criada, competindo-lhe

dirimir a turbulência causada à ordem legal vigente, impedindo, assim, a fragilização da

instituição estatal.

O relacionamento entre os Estados e um consequente comportamento mútuo de

beligerância reflete a ocorrência de outra situação em que há a perturbação da legalidade

estabelecida. Sob a tentativa de imposição da vontade de um Estado sobre o outro, há de se

perceber a possibilidade de capitulação de uma ordem legal até então estabelecida, porém

fagocitada em razão de interesses alienígenas distintos.

Diante dessa experimentação histórica, fez-se necessária a elaboração cognitiva de

instituto sensível que pudesse no resvalo da ordem legal manter e preservar a columidade

estatal, garantindo a sobrevivência inerente da soberania.

O processo de constitucionalização trouxe mudanças significativas aos Estados

nacionais na obtenção do intento de autopreservação. A constituição posta passou a dispor

acerca da própria organização funcional do Estado, estabelecendo funções e criando órgãos

necessários a gerência da máquina administrativa. Houve um fortalecimento dos poderes

públicos na perseguição de uma finalidade social única, embora não represente paralelo

necessário com a institucionalização de um estado democrático de direito. É correto, contudo,

observar que coube a esse processo de fixação de uma ordem constitucional a necessidade de

elaboração de mecanismos particulares que pudessem tolher qualquer intento turbatório, seja

ele intrínseco ou extrínseco, à própria soberania nacional.

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A complexidade da questão se fez surgir, porém, no instante de se perceber a própria

institucionalização daquilo que jamais fora institucionalizado. Ou seja, como compreender os

limites de um estado de exceção? A quem caberia a legitimidade de solucionar as

intervenções à ordem constitucional estabelecida? E mais. O que é o próprio estado

excepcional?

Tratam-se, portanto, de questões fundamentais que passaram a ser pontos

fundamentais de discussão dos mais variados meios acadêmicos das principais escolas

jusfilosóficas do mundo.

1 DO ESTADO DE EXCEÇÃO EM CARL SCHMITT

O estado de exceção compreendido por Carl Schmitt, jurista e filósofo alemão do

começo do século XX, revela a formação de uma indagação fundamental: como agir na

prevalência de um estado excepcional? A questão expande-se sob o círculo da indefinição

ainda marcante da própria situação da excepcionalidade.

A não conceituação, como observado por Schmitt, não é óbice para a formação

conceitual das influências passíveis de serem sentidas na ocorrência real da excepcionalidade.

Trata-se de um conceito vago a priori, visto que há a falta de experimentação histórica que

pudesse definir o indefinido espaço surgido diante da generalidade constitucional. O processo

constitucionalista e a consolidação dos valores democráticos ainda permaneciam sob obtusa

compreensão diante da realidade autocrática cultuada pelos seculares Estados nacionais,

insensíveis a uma ordem constitucional prevalecente e emanante da própria funcionalidade do

organismo estatal. Definir como exceção o que sempre fora a regra é questão de difícil

resolução.

Ao passo da natural indefinição, sobrevém, todavia, especificação de sentido

disforme ao de outros estados também anormais, porém marginais à compreensão da

sobrevivência estatal. Schmitt, assim, distingue o estado de exceção da anarquia ou do caos.

Diferentemente dos últimos, há algo naquele que subsiste mesmo diante da impossibilidade

de prevalência normativa – sendo compreendido fundamentalmente como o Estado.1 Desfaz-

se a ordem constitucional a fim de que a inexistência de qualquer vínculo normativo

1 SCHMITT, Carl. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 13: “Ao contrário, para isso precisa-se de uma competência, a princípio, ilimitada, ou seja, a suspensão de toda ordem existente. Entrando-se nessa situação, fica claro que, em detrimento do Direito, o Estado permanece. Sendo o estado de exceção algo diferente da anarquia e do caos, subsiste, em sentido jurídico, uma ordem, mesmo que não uma ordem jurídica. A existência do Estado mantém, aqui, uma supremacia indubitável sobre a validade da norma jurídica. A decisão liberta-se de qualquer vínculo normativo e torna-se absoluta em sentido real. Em estado de exceção, o Estado suspende o Direito por fazer jus à autoconservação, como se diz”.

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possibilite a tomada de decisão por parte do soberano, responsável por reconstituir o estado

normal anterior à turbação provocada. Diante do vazio normativo surge a autoridade capaz de

reconduzir o Estado ao seu originário status quo. Faz-se segundo o dever de resguardar a

própria incolumidade estatal diante de agentes estranhos aos interesses nacionais –

desvinculados aos propósitos da soberania do Estado afetado.

Defronte à complexa questão existente, Schmitt empreende a noção de um binômio

conceitual importante: soberania e decisão. Tratam-se de idéias empregadas sob o mesmo

aspecto funcional, vinculadas à necessidade de legitimar aquele responsável por conduzir o

Estado durante a vigência do estado excepcional. O entendimento de Carl Schmitt ao afirmar

que “soberano é quem decide sobre o estado de exceção” revela a profunda conexão existente

entre os termos.2 O jurista entende que diante do quadro de excepcionalidade, na não-vigência

da ordem constitucional, caberia apenas ao soberano, agente receptor da totalidade de

interesses comuns ao Estado, transcender aos próprios limites constitucionais e proporcionar a

continuidade da integridade estatal. O Estado, portanto, traduziria o desejo do povo.

Percebe-se a evidente importância do fator decisório na atuação do soberano. As

decisões, mecanismos eminentemente políticos, agregam legitimidade à capacidade

desempenhada pela autoridade diante do estado de exceção. O soberano exerce o monopólio

da última decisão. É em face de tal afirmativa que a natureza da soberania estatal deve ser

compreendida não como monopólio coercitivo ou imperialista, mas como monopólio

decisório.3 Esse feito impede que haja superposição de qualquer outro instituto diante da

autoridade exercida pelo soberano – sua palavra é a última e assim deve ser aplicada.

Em sua obra “O Guardião da Constituição” (Der Hüter der Verfassung), Carl

Schmitt nega ao Poder Judiciário a atribuição de guarda da constituição.4 Sua reflexiva análise

produz a compreensão de que somente caberia ao Presidente do Reich ser o guardião do texto

constitucional, bem como efetuar o controle de constitucionalidade das leis e dos atos

normativos. Schmitt entende que todo ato de reconhecimento de inconstitucionalidade de uma

lei encontra-se preenchido por um profundo aspecto político, visto que é ato decisório. Um

tribunal constitucional ao assim decidir estaria em incompatibilidade com a sua própria

natureza, visto que ao Poder Judiciário caberia a exegese legal.

2 SCHMITT, Carl. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 7. 3 Ibid., p. 14.

4 SCHMITT, Carl. O guardião da constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 193-205.

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Após uma profunda introspecção na temática, Schmitt aborda o dispositivo presente

no art. 48 da Constituição de Weimar.5 Na ocorrência de uma situação emergencial a por em

risco a integridade do Estado, bem como a segurança e a ordem públicas, é o Presidente do

Reich competente a fim de equalizar a excepcionalidade surgida, tomando as medidas

necessárias a fim de restaurar a ordem constitucional. Schmitt revela o caráter legítimo e

democrático presente nesse dispositivo ao compreender que o Presidente do Reich é eleito

pela totalidade do povo alemão, derivando seus poderes perante as instâncias legislativas de

um próprio “apelo do povo”.6

Schmitt aprimora o entendimento acerca daquele que é legítimo para atuar na

existência de um estado excepcional. O soberano concentra a totalidade dos anseios populares

e suas decisões são respaldadas na necessidade de permanência da ordem jurídica e social. Ao

decidir no estado de exceção, o soberano reflete consequentemente o sentimento nacional

total e regular. O Presidente do Reich é o soberano diante do próprio texto constitucional,

visto tratar-se de condicionamento particular dado pela nação alemã. A não

institucionalização, contudo, em nada desclassificaria o caráter legítimo desse entendimento.

O Presidente do Reich permanece na representação do Estado sob a anuência do povo alemão

e suas decisões são convalidadas a partir da aceitação automática que é feita pela sociedade

quanto aos caminhos empreendidos na gestão estatal. É a evidente vontade política da

totalidade do povo alemão em atribuir a guarda da constituição ao Presidente do Reich que o

define como soberano.7

5 O art. 48 da Constituição de Weimar de 11 de agosto de 1919 assim dispõe: “Caso a segurança e a ordem públicas estejam seriamente ameaçadas ou perturbadas, o Presidente do Reich (Reichspräsident) pode tomar as medidas necessárias a seu restabelecimento, com auxílio, se necessário, de força armada. Para esse fim, pode ele suspender, parcial ou inteiramente, os direitos fundamentais (Grundrechte) fixados nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124 e 154". 6 SCHMITT, Carl. O guardião da constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 233-234: “O fato de o presidente do Reich ser o guardião da Constituição corresponde, porém, apenas também ao princípio democrático, sobre o qual se baseia a Constituição de Weimar. O presidente do Reich é eleito pela totalidade do povo alemão e seus poderes políticos perante as instâncias legislativas (especialmente dissolução do parlamento do Reich e instituição de um plebiscito) são, pela natureza dos fatos, apenas um ‘apelo do povo’. Por tornar o presidente do Reich o centro de um sistema de instituições e poderes plebiscitários, assim como político-partidariamente neutro, a vigente Constituição do Reich procura formar, justamente a partir dos princípios democráticos, um contrapeso para o pluralismo dos grupos sociais e econômicos de poder e defender a unidade do povo com uma totalidade política”. 7 Ibid., p. 233-234: “A Constituição busca, em especial, dar à autoridade do presidente do Reich a possibilidade de unir diretamente a essa vontade política da totalidade do povo alemão e agir, por meio disso, como guardião e defensor da unidade e totalidade constitucionais do povo alemão. A esperança de sucesso de tal tentativa é a base sobre a qual se fundam a existência e a continuidade do atual Estado alemão”.

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2 DO ESTADO DE EXCEÇÃO EM GIORGIO AGAMBEN

O filósofo italiano Giorgio Agamben em sua obra “Estado de Exceção” (Stato di

Eccezione) reassume a discussão quanto à existência de um estado excepcional e de suas

implicações a integridade estatal. O estado de exceção é compreendido como um ponto de

desequilíbrio entre o direito público e o fato político, a situar-se numa franja ambígua e

incerta, na intersecção entre o jurídico e o político.8 Trata-se de insurreição de aparente

“anomalia” ao considerado status quo em existência, promovente de uma situação que

extrapolaria, em princípio, a normalidade do texto constitucional vigente.

Agamben, através de sua capacidade filosófica, desperta a necessidade de convergir

doutrina sociológica e jurídica diante da apresentação de um estado excepcional. Tal posição

é apresentada quando decide relacionar sistematicamente a distinção dada pela tradição

jurídica dos Estados ocidentais à necessidade ou não de regulamentação do estado de exceção

por instrumento normativo. O filósofo empreende a divisão entre autores que defendem a

oportunidade de uma previsão constitucional ou legislativa do estado de exceção e os que

criticam a pretensão de se regular por lei o que não pode ser normatizado.9

A consequência dessa análise enseja o entendimento da oportunidade legislativa de

delimitar o alcance da atividade do agente soberano diante de situação de exceção, evitando a

transmutação do status excepcional para um posterior status ditatorial. Sua percepção

histórica o leva a acreditar no fracasso da continuidade dos princípios democráticos em um

Estado tomado pela excepcionalidade e desprovido de normatização limitante dos atos do

agente soberano na vigência do interstício legal. Agamben rememora, portanto, o estado de

exceção em que a Alemanha se encontrou sob a presidência de Hindenburg. Sob a perspectiva

dominante de Carl Schmitt de que caberia ao Presidente do Reich a “guarda da constituição”,

agente receptor da totalidade dos anseios nacionais, a condução da política do Estado alemão

transgrediu a fase de transição de um estado excepcional para um possível estado

democrático. O fim da República de Weimar, contudo, demonstrou que o paradigma da

8 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 11. 9 Ibid., p. 22: “Um exame da situação do estado de exceção nas tradições jurídicas dos Estados ocidentais mostra uma divisão – clara quanto ao princípio, mas de fato muito mais nebulosa – entre ordenamentos que regulamentam o estado de exceção no texto da constituição ou por meio de uma lei, e ordenamentos que preferem não regulamentar explicitamente o problema. Ao primeiro grupo pertencem a França (onde nasceu o estado de exceção moderno, na época da Revolução) e a Alemanha; ao segundo, a Itália, a Suíça, a Inglaterra e os Estados Unidos. Também a doutrina se divide, respectivamente, entre autores que defendem a oportunidade de uma previsão constitucional ou legislativa do estado de exceção e outros, dentre os quais se destaca Carl Schmitt, que criticam sem restrição a pretensão de se regular por lei o que, por definição, não pode ser normatizado”.

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ditadura constitucional funciona, na verdade, como uma fase de transição da excepcionalidade

para a instauração de um regime totalitário.10

A devida positivação do estado de exceção ocorreria, segundo Agamben, mediante a

produção de um sistema de cláusulas gerais que possibilitariam a autoridades competentes e

específicas a adotar medidas necessárias para lidar com a crise em voga. Os atos

governamentais emitidos em descompasso à previsão legal deveriam ser considerados ilegais

e passíveis de serem corrigidos por um Bill of indemnity especial.11

Guerras civis, resistências, interferências à ordem constitucional e democrática

seriam exemplos de agentes propulsores que levariam ao estado de exceção. A

excepcionalidade se apresenta cada vez mais como paradigma dominante em governos na

política contemporânea.12 O esforço empreendido a fim de se solidificar os preceitos de

estado democrático de direito ocasionaram um desenvolvimento na ciência pragmática

jurídica de situações excepcionais, previamente identificadas, a fim de que a soberania estatal

não viesse a ser posta em risco diante de agentes desagregadores da ordem constitucional.

Obtém-se, assim, uma necessidade preeminente de equalizar a oposição topográfica implícita

das disposições normativas durante a vigência de um estado de exceção.

Como pode uma anomia ser inscrita na ordem jurídica?13 A resposta para essa

pergunta é justamente o que satisfaz o equalizamento da oposição topográfica referida. Trata-

se de compreender a anomia como antítese – e não como paradoxo.14 A antitética situação

posta permite a existência de uma zona de indiferença que compreende a excepcionalidade.

No instante de sua vigência não há a abolição ou suspensão da norma constitucional, porém

há a prevalência da normatização paralela incumbida de restaurar a devida ordem

constitucional normal. Buscam-se, portanto, diante da necessidade de se recuperar a

normalidade constitucional, medidas a fim de se reparar os entraves políticos, sociais e

jurídicos consequentemente existentes.

Trata-se, portanto, o estado de exceção de “viés necessário” a fim de se defender a

ordem constitucional, não se compreendendo como violação ocasional ou casuística.15 À crise

instaurada sobraria o exercício normal de competências extraordinárias, exercidas sob o

respaldo popular e político, não jurídico. 10 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 29. 11 Ibid., p. 22-23. 12 Ibid., p. 13. 13 Ibid., p. 39. 14 Na antítese as ideias não se anulam, apesar de contrárias - tal fato não ocorre com o paradoxo, pois as ideias em conflito são insuscetíveis de convivência. 15 BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição: poder constituinte, estado de exceção e os limites da teoria constitucional. São Paulo: [s.n], 2005, p. 36.

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O filósofo italiano conclui a sua obra “Estado de Exceção” (Stato di Eccezione) sob a

premissa necessária de se evitar que na vigência do estado excepcional haja a abolição

provisória da distinção entre Poder Legislativo, Judiciário e Executivo.16 Havendo a

concentração dos poderes sob uma mesma autoridade, tender-se-á ao estado de exceção

transformar-se em prática durável do governo. O estado de exceção passaria, portanto, a ser a

regra.

3 DO ESTADO DE EXCEÇÃO SEGUNDO KARL MARX

O conceito de Estado, segundo Max Weber, designa a entidade que consiste em um

povo residente num território definido e que vive sob um sistema governamental organizado,

sujeito de relações internacionais, capaz de engajar-se diretamente ou por intermédio de outro

Estado. Weber concebe o Estado como sendo um agrupamento de dominação de caráter

institucional cuja direção administrativa reivindica com sucesso o monopólio da coerção

física legítima sobre um determinado espaço físico. As decorrências lógicas de seu

pensamento resvalam, sobretudo, na concentração e na organização da violência, não mais

dispersa, mas sob a forma de monopólio institucional – polícia ou exército –, além da

delimitação de fronteiras – dentro das quais o Estado exerce seu poder17.

A análise inicial desenvolvida por Max Weber da acepção sobre o monopólio

legítimo do Estado da violência física e a plena institucionalização dos meios de dominação e

organização dessa coerção pelos dirigentes estatais se mostra essencial para a compreensão da

análise de Karl Marx sobre o estado de exceção.

Ocorre que a racionalização do Estado, tendo em vista a renúncia dos indivíduos ao

uso da força em benefício do governo constituído, é o pilar de sustentação dos Estados

16 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 48-49. 17 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2004, v.2, p. 528-529: “Por toda parte inicia-se o desenvolvimento do Estado moderno, pela tentativa de desapropriação, por parte do príncipe, dos portadores ‘particulares’ de poder administrativo que existem a seu lado, isto é, daqueles proprietários de recursos administrativos, bélicos e financeiros e de bens politicamente aproveitáveis de todos os tipos. Todo o processo constitui um paralelo perfeito ao desenvolvimento da empresa capitalista, mediante a desapropriação gradativa dos produtores autônomos. No fim vemos que no Estado moderno de fato há a concentração em um ponto supremo da disposição sobre todos os recursos da organização política, que mais nenhum funcionário é proprietário pessoal do dinheiro que desembolsa ou dos prédios, das reservas, dos instrumentos ou da maquinaria bélica de que dispõe. No ‘Estado’ atual, está, portanto, completamente realizada - e isto é essencial para o conceito - a ‘separação’ entre o quadro administrativo, os funcionários e trabalhadores administrativos, e os meios materiais da organização. Para nossa consideração, cabe, portanto, constatar o puramente conceituai (sic): que o Estado moderno é uma associação de dominação institucional, que dentro de determinado território pretendeu com êxito monopolizar a coação física legítima como meio da dominação e reuniu para este fim, nas mãos de seus dirigentes, os meios materiais de organização, depois de desapropriar todos os funcionários estamentais autônomos que antes dispunham, por direito próprio, destes meios e de colocar-se, ele próprio, em seu lugar, representado por seus dirigentes supremos”.

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contemporâneos, notadamente os ocidentais. Todavia, quando o Estado perde sua

racionalização e os sujeitos se proclamam legítimos para promoverem a violência e

provocarem uma ruptura do status constitucional vigente, dar-se-á aceso o sinal de alerta

institucional.

A consequência disso revela-se na utilização dos meios tidos como adequados e

necessários à conservação do Estado, conferindo a aparência de legalidade às tais medidas

empregadas pela cúpula do poder. A tensão deste conflito repousa essencialmente no fato de o

estado de exceção agir exclusivamente acobertado pelo império legal, de onde se presume

haver consentimento social, embora seja instaurado somente pelo Chefe do Poder Executivo

em nome da racionalidade contra a democracia popular.

Dotado das experiências revolucionárias vivenciadas na França a partir do ano de

1848, Karl Marx denuncia o estado de exceção como derivado imediato do Estado burguês,

reorganizado e reaparelhado jurídico, político e administrativamente para oprimir as revoltas

do proletariado e seu iminente anseio pela derrubada da ordem. Trata-se de uma medida

vinculada aos interesses burgueses de manutenção e subsistência do Estado com vistas à

preservação de sua dominação sobre as classes economicamente fragilizadas. Para tanto, a

necessidade de racionalização burguesa obriga a transmudação de sua forma política e

jurídica, normalmente vulnerando o próprio texto constitucional, sempre que a manutenção do

Estado estiver em risco, leia-se, para aqueles que detêm o controle da máquina

administrativa.18

Friedrich Engels destaca aquilo que se opõe ao estado excepcional como sendo o

“direito à revolução”, único direito verdadeiramente histórico e endossado pela consciência

universal, sobre o qual se sustentam todos os Estados modernos, surgindo, assim a tensão

natural entre o direito ao golpe de Estado dos povos e as medidas de urgência promovidas

pelo Estado no intuito de sua sobrevivência.19

Karl Marx denuncia constantes casos durante a instabilidade na gestão francesa com

as revoluções desencadeadas de 1848 em que era comum alegar-se ser inescusável violar a

Constituição no intuito de preservá-la.20 Soa audacioso afirmar referida assertiva quando não

há sequer um dispositivo legal que embase pretensão nesse sentido.

18 MARX, Karl. A revolução antes da revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 185: “Em 21 de maio, a Montagne trouxe ao debate a questão preliminar e propôs a rejeição de todo o projeto porque violava a Constituição. O partido da ordem respondeu que se violaria a Constituição sempre que tal fosse necessário”. 19 Ibid., p. 58. 20 Ibid., p. 121: “Sob o pretexto da salut public [salvação pública – francês], um motim teria permitido dissolver a Constituinte, violar a Constituição no interesse da própria Constituição”.

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Afinal, como precisar quais casos efetivamente arriscariam a sobrevivência da ordem

constitucional? Ademais, quem seria legitimado para se pronunciar sobre a “legalidade” das

providências adotadas para manutenção da constituição?

Questionamentos como esses induziram Marx a explicitar a estruturação do poder

por detrás do que se acreditava ser a república francesa, manipulada, na verdade, pela soma de

interesses daqueles que momentaneamente dirigiam o rumo do país, os quais se viam

frequentemente obrigados a desrespeitarem dispositivos constitucionais durante as atividades

legislativas com o único escopo de sua autopreservação.21

Com base no combate às revoluções proletárias na França, Marx destaca ao lado do

cunho ideológico e contrarrevolucionário do estado de exceção seu aspecto brutal e

sanguinário. Conforme se ampliavam as contradições entre trabalho e capital, o Estado

necessitava aprimorar seus mecanismos para a escravização social, de sorte que em cada

revolução desatada era exposto com maior nitidez o caráter puramente repressivo do poder

estatal.

O emprego da violência estatal sob a forma jurídica, ou ditadura do Estado, como

prefere Engels, é a demonstração sem nenhum rebuço do fim perseguido na república

burguesa para perpetuar a dominação do capital e a escravidão do trabalho.22 Revela-se o

expediente mais politizado e essencial no cotidiano da luta de classes no que se refere ao

combate das aspirações proletárias à consecução de justiça social que tanto amedronta a

estrutura do poder.

Não menos relevante é a capacidade de internacionalização sobre o estado de

exceção – este refém do capital globalizado. Importante ferramenta para o deleite do poderio

internacional foi possível perceber sua magnitude com o desrespeito ao acervo de regras

internacionais por parte do governo prussiano no garrote da Comuna de Paris, mas que,

todavia, não lhe resultou em nenhuma represália internacional compatível. A união dos

governos em torno do capital internacional apenas realizou indagações à Prússia acerca das

poucas vítimas que escaparam do duplo cordão formado em torno de Paris.

21 MARX, Karl. A revolução antes da revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 68: “A monarquia de julho era apenas uma sociedade por ações para explorar a riqueza nacional da França e cujos dividendos eram distribuídos pelos ministros, Câmaras, 240 mil eleitores e o seu séquito. Luís Felipe era o diretor dessa sociedade, um Roberto Macaire no trono. Num tal sistema, o comércio, a indústria, a agricultura, a navegação, os interesses da burguesia industrial não podiam deixar de estar constantemente ameaçados e de sofrer prejuízos. “Gouvernement à bom marche”, governo barato, fora o que ela durante as jornadas de julho inscrevera na sua bandeira”. 22 Ibid, 2008, p. 60: “Ruptura da Constituição, ditadura, regresso ao absolutismo, regis voluntas suprema lex! [a vontade do rei é a lei suprema! – latim] Portanto, coragem, meus senhoras, deixam de conversas e arregacem as mangas”.

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Enfim, o papel do estado de exceção como meio regulador dos anseios populares, faz

emergir uma lógica quase que particular do Estado, colide frontalmente com o direito

universal à revolução dos povos, o qual menciona Engels.23 A positivação do estado de

exceção no texto constitucional empresta, em tese, legitimidade à sua instauração, levando à

reflexão sobre até que ponto sua manifestação contrária a determinado movimento

revolucionário é realmente legítima, ainda que amparada pela legalidade.

A adoção dos meios legais pela burguesia para consagrar suas pretensões na nova

realidade social demonstrou a expressa relação entre a afirmação da nascente classe

dominante no cenário político e a disseminação de seus interesses nas mais diversas esferas

do aparelho estatal. Assim sendo, é razoável pensar se o poder constituinte ao incorporar o

estado de exceção na sua legalidade respalda-se, em qualquer medida, no consenso popular?

É inegável que as supressões das garantias e liberdades individuais visam à

manutenção da ordem posta, burguesa ou não. No entanto, a sobrevivência do Estado se vê

ameaçada exatamente pelo movimento daqueles que outrora lhe legitimaram e também os

meios para sua subsistência.

O poder legítimo entre o embate do poder estatal e o movimento revolucionário

pertencerá ao vencedor desse conflito. Enquanto não houver a superação ou supressão do

estado de exceção pela vontade popular é porque esta não se mostrou suficientemente

fortalecida e consensualizada para subverter a ordem, razão pela qual, a contrário senso,

infere-se que a legitimidade ainda repousa no Estado constituído. Quando a “massa” reunir

condições objetivas, relativas ao contexto fático, e subjetivas, a respeito de sua capacidade de

auto-organização, para promover a inauguração da nova ordem social, é o momento que a

legitimidade desloca-se da ordem jurídica para a ordem social, da razão do Estado para a

razão política, do estado de exceção para o povo.

4 DO ESTADO DE EXCEÇÃO NA DEMOCRACIA BRASILEIRA

Em 1º de fevereiro de 1987 iniciaram-se os debates promovidos pela Assembleia

Nacional Constituinte a fim de formular novo texto constitucional para a República

Federativa do Brasil. Dotado de uma experimentação histórica em ciclos de autoritarismo e

democracia, o constituinte brasileiro, legitimado pelos anseios da população, procurou não

23 MARX, Karl. A revolução antes da revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 58.

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apenas fixar os direitos fundamentais dos cidadãos e as instituições básicas do país como

solucionar questões que estivessem fora de seu alcance.24

O conflito de proposições para a determinação dos dispositivos constitucionais

advinha da existência dos diversos interesses presentes na promulgação do texto

constitucional. O inevitável choque de aspirações dos mais variados grupos sociais,

representantes das maiorias e das minorias, revelou a significação plural contida na

participação livre e democrática que foi o processo legislativo de elaboração da Constituição.

Tratava-se de um instante único e essencial em que categorias sociais marginalizadas – como

os indígenas, os negros, as mulheres e os trabalhadores rurais e urbanos – passaram a ser

contempladas pela proteção dos dispositivos constitucionais.

Acontece, no entanto, que a tensão resultante da unificação de interesses tão

dissonantes poderia comprometer a própria ordem constitucional. No sentido de evitá-lo,

determinou o constituinte, no sexto título da Constituição Federal brasileira, sob a

denominação “Da defesa do Estado e das instituições democráticas”, o estabelecimento de

estado emergencial capaz de promover a continuidade e a normalidade do ordenamento

jurídico pátrio: o Estado de Sítio.

A dotação, ainda, de uma lógica unificadora registrou a necessidade do

estabelecimento de um capítulo ao texto constitucional que tratasse sobre a intervenção a ser

praticada entre entes federativos. Do artigo 34 ao 36 da Constituição Federal de 1988 restaram

disposições objetivas e completivas para a persecução de um estágio garantidor da

minimalista integridade estatal.

No intento de compreender a complexidade de tais institutos, passa-se à análise de

suas peculiaridades e de seus princípios sustentadores.

4.1 Da normalidade e da continuidade do núcleo do sistema político democrático

A constituição de um Estado Democrático de Direito exige como pressuposto

inevitável a normalidade do status social e da ordem jurídica. Trata-se do exercício imperioso

praticado pelo Estado em regular as diversas questões sociais e econômicas, mantendo o

24 FAUSTO, Boris. História do Brasil. 13.ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009, p. 524: “Havia um anseio de que ela [Assembléia Nacional Constituinte] não só fixasse os direitos dos cidadãos e as instituições básicas do país como resolvesse muitos dos problemas fora de seu alcance. Os trabalhos da Constituinte foram longos, tendo-se encerrado formalmente a 5 de outubro de 1988 quando foi promulgada a nova Constituição. A inexistência de um projeto inicial que servisse de base às discussões contribuiu para alongar os trabalhos. Embora dessem muitas vezes a impressão de ser caóticos, o fato é que foram debatidas, além de coisas menores, questões centrais da organização do Estado e dos direitos dos cidadãos”.

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devido funcionamento das instituições organizacionais estatais e resguardando a soberania

nacional e a aplicabilidade dos direitos fundamentais.

Após a conquista dessa “situação organizacional normal”, faz-se necessário a

continuidade do sistema político produzido. A linearidade e a não interferência na ordem

constitucional vigente permitem o desenvolvimento eficaz e pleno dos institutos democráticos

nacionais, o que resulta em inescusável avanço nos diversos campos sociais e econômicos do

Estado.

Vencidos os dois estágios iniciais de consolidação do organismo estatal, há por

resultado final e imprescindível a conquista do objetivo do Estado. Trata-se da pacificação

completa em seu território. Tal fato só em plenitude se realizaria diante do controle das

diversas variações sociais que em tamanha inconstância interfeririam no estabelecimento de

fins nacionais comuns. Como solução para tal questão fez-se presente a chamada reflexão

liberal sobre a existência de um estado excepcional a ser posto em exercício a cada vez que

necessário fosse impelir a existência de forças antagônicas ao desiderato constitucional

potencialmente liberal.25

4.2 Da justificação da situação excepcional e do princípio da auto-conservação

A adoção do estado excepcional se justifica diante de ameaça à unidade política do

Estado que é posta em fragilidade diante de uma situação conflituosa. Questões de ordem

interna ou externa acabam por interferir na compreendida continuidade do status

constitucional tão fundamental na vitaliciedade do organismo estatal. Na tentativa de

reestabelecer a anterior normalidade que se subleva a “excepcionalidade”.

O estado de exceção não deve ser entendido como um estado anárquico. Há naquele

a subsistência de uma ordem composta por vetores excepcionais constitucionalmente

compreendidos – diferentemente do segundo em que nenhum direito habita. Para fins de

melhor elucidação remete-se à didática de dois conjuntos que se interseccionam formando

uma região em comum. Há um conjunto que deve ser visualizado por “estado de

normalidade” e outro por “estado de conflito”. A intersecção é a representação do “estado

excepcional” em que se mesclam ambas as condições dos conjuntos interligados. Na exceção

há a substância do sentido vital de continuidade do Estado como característica essencial do 25 BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição: poder constituinte, estado de exceção e os limites da teoria constitucional. São Paulo: [s.n], 2005, p. 203: “Os fins do estado de sítio são restritivos: garantir o poder do Estado, a liberdade constitucional e a sociedade liberal burguesa contra os radicalismos dos democratas, comunistas e anarquistas. A reflexão liberal sobre o estado de exceção, geralmente, se refere aos atentados que podem ser cometidos contra a ordem político-social existente não pelo executivo, mas sobretudo pelo legislativo”.

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fator transitório presente na excepcionalidade, visto que a total anulação retiraria o sentido

teleológico da própria formulação de uma exceção. Trata-se do reestabelecimento da ordem

constitucional anterior em vigência e não do desenvolvimento de uma ordem constitucional

diversa, pois à exceção não caberia o desiderato de constituição de uma nova aspiração social,

todavia o simples prosseguimento da ordem até então tida por legitimamente constituída.

O professor Gilberto Bercovici em sua obra Constituição e “Estado de Exceção

Permanente” afirma que na existência de um caso de exceção ao Estado caberia por suspender

o direito em virtude de um direito de auto-conservação.26 Tratar-se-á tal fato como

consequente desdobramento da justificação de atuação do Estado em face da constituição da

excepcionalidade. À autoridade responsável por resolver a questão incumbiria o dever

máximo de garantir a incolumidade da organização estatal, bem como de todos os alicerces

inerentes à existência da ordem constitucional.27

O parágrafo único do artigo 137 da Constituição Federal de 1988 destaca que caberá

ao Presidente da República, após solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o

estado de sítio, relatar os motivos determinantes de seu pedido em face das duas situações

possíveis de ocorrência do próprio estado excepcional – conforme incisos I e II do dispositivo.

Quis o legislador ampliar a capacidade justificativa do agente executivo em razão dos casos

taxados, dando-lhe certa discricionariedade de ação motivadora para que agisse conforme o

interesse nacional.

Interpretação diversa ocorre ao se analisar os artigos 34 e 35 do próprio texto

constitucional. Agora se trata de casos passíveis de intervenção taxativamente descritos pelo

legislador, motivados unicamente por sua desobediência pontual. O aspecto discricionário,

diferentemente do ocorrido no estado de sítio, é bem mais contido.

4.3 Dos agentes desagregadores responsáveis pela tomada da situação excepcional

São os agentes desagregadores a razão primeira pela existência do estado

excepcional, visto que o descompasso de interesse entre eles e o Estado acaba por criar uma

situação atípica, ou tipicamente prevista, que interfere na continuidade e na normalidade das

funções estatais.

26 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente: atualidades de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p. 27. 27 Id., 2005, p. 209: “Para Bluntschli, a necessidade de conservação do Estado é o primeiro dever do governo. Em nome dessa convervação, a ordem jurídica pode ser violada, para que não se sacrifique o todo à parte. Qualquer outro direito perece diante do direito supremo da salvação do Estado.”

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As transformações provocadas pela evolução do sistema capitalista trouxeram

profundas interferências e consequentes modificações na evolução da organização estatal de

diversos países da América Latina. Detentores de modos primários de produção, os Estados

latino-americanos não acompanharam o desenvolvimento industrial e tecnológico dos

denominados “países desenvolvidos”, restando-lhes infindáveis crises econômicas

desestruturalizantes. A recessão econômica interna facilitou a transposição de agentes

externos desagregadores e nocivos à própria soberania estatal, facilmente visualizado diante

do exemplo de controle da economia nacional por organismos internacionais como o Fundo

Monetário Internacional.

Ao se analisarem os dispositivos referentes à intervenção percebe-se a existência de

particulares agentes desagregadores internos. Tratam-se dos próprios entes federativos – com

exceção da União – que ao se avistarem em descompasso com as suas gerências e devidas

funções constitucionais, encontram-se passíveis de serem intervencionados por outro ente que

a Constituição lhe tenha garantido a interferência. É o caso da União que intervém no Estado-

membro ou no Distrito Federal que não der provimento à execução de lei federal. Há, ainda, a

existência de agentes desagregadores externos na intervenção – que é o caso da invasão

estrangeira que comprometa a soberania do Estado.

Os incisos I e II do artigo 137 da Constituição Federal de 1988 explicitam claramente

os agentes desagregadores responsáveis pela decretação de estado de sítio. A comoção grave

de repercussão nacional ou a ocorrência de fatos comprovativos da ineficácia de medida

tomada durante o estado de defesa refletem os agentes internos, enquanto que os agentes

externos são a declaração de estado de guerra ou a resposta à agressão armada estrangeira.

4.4 Das limitações impostas na ocorrência do estado excepcional

A restrição de garantias e direitos é condição peculiar na existência de um estado

excepcional. Trata-se de medida adotada pelo Estado como forma de minar os mais sensíveis

focos de incongruência com a normalidade e a continuidade da ordem constitucional, visto

que enfraquece a possibilidade de insurreições ante a atividade controladora estatal.

No estado de sítio a limitação ocorre em razão de dois fatores. O primeiro é

percebido diante da leitura da primeira parte do artigo 138 da Constituição Federal de 1988. O

texto constitucional prevê que as garantias constitucionais que ficarão suspensas serão

indicadas em face do decreto do estado de sítio proferido pelo Presidente da República. Já o

segundo fator surge como delimitador daqueles direitos que poderão ser passíveis de

limitação. Sua previsão é percebida no artigo 139 da Constituição brasileira e sua

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compreensão é clara: apenas as medidas elencadas poderão ser realizadas. Trata-se, portanto,

da possibilidade de suspensão da liberdade de reunião ou da intervenção nas empresas de

serviços públicos em decretação de estado excepcional ou da intervenção.

É preciso compreender que a existência de um estado excepcional acaba por influir

no exercício de um direito marginal e distinto daquele vigente em situação normal. Tal

compreensão segue em plena consonância com o exercício dos próprios direitos e garantias.

Embora sejam considerados fundamentais e inerentes ao homem, na prevalência de um estado

de exceção cercear-se-ão conforme o interesse da normalização estatal – se o ordenamento

jurídico é modificado, modificam-se também as restrições às liberdades.28

Em relação ao disposto quanto à intervenção, percebe-se que não há limitação quanto

a direito fundamental ou a garantia. Tratam-se de restrições impostas a comandantes do Poder

Executivo afastados do exercício de seus cargos em razão das motivações constitucionalmente

dispostas. O parágrafo quarto do artigo 36 da Constituição Federal de 1988 ainda revela que

cessados os motivos da intervenção poderão as autoridades afastadas voltarem aos seus

cargos, salvo determinação legal impeditiva.

4.5 Da discricionariedade e da limitação do agente soberano

A situação de decretação de estado excepcional surge como forma de tentar realinhar

a organização estatal a fim de reestabelecer a normalidade e a continuidade da ordem

constitucional vigente. O legislador originário, consciente de uma evolução histórica em prol

da consolidação de um Estado brasileiro Democrático de Direito, dispôs no texto

constitucional um equilíbrio entre a determinação de poderes discricionários ao agente

executivo, bem como sua consequente limitação.

A capacidade discricionária é percebida na decretação do estado de sítio no disposto

do parágrafo único do artigo 137, em que caberá ao Presidente da República relatar os

motivos determinantes do pedido de decretação. A possibilidade de decretar estado de sítio

em face de ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa remete à questão da

preservação da ordem pública ou da paz social. Tratam-se, inevitavelmente, de aspectos

subjetivos ao entendimento humano, podendo refletir diretamente na compreensão pessoal do

agente executivo em sua abordagem. Ainda em caráter discricionário, há o disposto na 28 BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição: poder constituinte, estado de exceção e os limites da teoria constitucional. São Paulo: [s.n], 2005, p. 212: “No entanto, a violação e restrição das liberdades individuais não se justifica por um direito subjetivo do Estado, mas pela necessidade e impossibilidade de aplicar as normas que regulam a vida normal estatal. Portanto, as restrições são provenientes de um novo ordenamento advindo da situação excepcional, que determina de modo diverso as fronteiras entre a atividade do Estado e a esfera individual”.

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segunda parte do artigo 138 da Constituição brasileira que possibilita ao Presidente da

República designar o executor das medidas específicas e quais serão as áreas abrangidas.

Passados os aspectos discricionários, avistam-se os limitadores. Embora a decretação

do estado de sítio ocorra por iniciativa de solicitação do Presidente da República, apenas o

Congresso Nacional, por maioria absoluta, poderá autorizar a sua decretação – conforme

disposto no caput e no parágrafo único do artigo 137 do texto constitucional. O estado de sítio

não poderá ser decretado por período superior a trinta dias, nem prorrogado, conforme haja a

existência de incidência de comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que

comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa. Havendo a existência

de guerra ou de resposta armada estrangeira, o estado de sítio poderá ser decretado por todo o

tempo em que perdurá-las. É preciso também afirmar que o artigo 139 limita o poder de

atividade do agente executivo durante o exercício do estado de sítio, visto que apenas as

medidas mencionadas poderão ser restringidas.

A limitação da atividade do agente soberano na intervenção deve ser compreendida

diante da leitura do artigo 36 do texto constitucional. A decretação da intervenção dependerá

de solicitação do Poder Legislativo ou do Poder Executivo constrangido ou impedido – nos

casos do art. 34, IV – ou de requisição do Supremo Tribunal Federal quando a coação for

exercida contra o Poder Judiciário. A decretação ainda dependerá de requisição do Supremo

Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral nos casos

de desobediência a ordem ou a decisão judiciária. Há também o caso de decretação de

intervenção diante de representação do Procurador-Geral da República e o seu devido

provimento pelo Supremo Tribunal Federal na ocorrência da hipótese do art. 34, VII, e no

caso de recusa à execução de lei federal. Deverá, por fim, o decreto de intervenção ser

submetido à apreciação do Congresso Nacional ou da Assembleia Legislativa do Estado no

prazo de 24 horas, conforme previsto no primeiro parágrafo do artigo 36 da Constituição

brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As evidências resultantes da abordagem filosófica e da própria compreensão de

natureza jurídico-política da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

demonstraram que o estado de exceção é um instituto de conceituação imprecisa que habita o

campo da política e do senso jurídico, reflexo da contraposição de interesses na manutenção

da ordem constitucional estabelecida.

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Sua caracterização reflete a existência, ou não, de uma situação juridicamente

desconhecida ao prenunciado pelo ordenamento jurídico de um Estado. Trata-se, portanto, da

evidente falta de experiência do poder constituinte em prever a anormalidade constitucional,

resultante do descompasso entre a garantia da soberania estatal e os fatores de propulsão

desencadeadores da excepcionalidade. Ao tratar desses fatores, podem, portanto, sê-los

agrupados em dois: internos – movidos dentro da própria estrutura estatal – ou externos –

reflexos da interferência provocada por um organismo estrangeiro ou por outro Estado

soberano.

Compreende-se, portanto, o estado de exceção em uma dúplice natureza, tanto

reacionária quanto revolucionária, modulado em razão dos interesses que o propulsionam. Sua

definição antitética comporta tanto a plena garantia da democracia como a sua não satisfação,

tendo em vista o exercício da própria excepcionalidade como fruto de um legítimo e autêntico

interesse contrário ao vigoro de uma ordem constitucional, compreendendo-a, antes de tudo,

como inconstitucional aos interesses do povo.

A experimentação histórica revelou diante dos ciclos de autoritarismo e democracia o

convívio da excepcionalidade no processo de formação histórica do próprio

constitucionalismo brasileiro. Dotado dessa vivência, coube ao constituinte brasileiro de 1987

a promulgação de uma Constituição que pudesse, embora de forma genérica, solucionar as

questões que estivesse fora do seu alcance normativo, de forma a evitar o enfraquecimento

das instituições públicas, a fragilidades dos Poderes Públicos e a limitação dos direitos e

garantias fundamentais dos indivíduos e da coletividade. O sexto título da Constituição

Federal de 1988 (“Da defesa do Estado e das instituições democráticas”) representa

justamente a tentativa do novo texto constitucional em promover a continuidade da

normalidade do ordenamento jurídico pátrio diante do surgimento do estado emergencial e à

borda da previsão constitucional.

Desta forma, nada mais razoável do que afirmar que o estado de exceção é, sim,

mecanismo legítimo de garantia da democracia, havendo, porém, a necessidade de sua

conformidade com o desiderato legítimo do povo, não atinente a interesses particulares e

totalitários. Sua instituição, no entanto, tornar-se-á prejudicial quando no exercício de forças

reacionárias, instituídas com o único objetivo de tornar menos democrático o gerenciamento

estatal com a justificativa de pacificação social.

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BREVES NOTAS POR UMA RESSIGNIFICAÇÃO DA TEORIA GERAL DO

ESTADO A PARTIR DOS DIREITOS HUMANOS E DO HUMANISMO JURÍDICO:

HERMENÊUTICA E RACIONALIDADE NO ESTADO HUMANISTA

BRIEF NOTES TOWARDS A STATE’S GENERAL THEORY RESSIGNIFICATION

FROM HUMAN RIGHTS AND LEGAL HUMANISM: HERMENEUTICS AND PUBLIC

RATIONALITY AT HUMANIST STATE

Gisela Maria Bester* Eliseu Raphael Venturi**

RESUMO

Neste artigo objetiva-se refletir sobre a ressignificação da Teoria Geral do Estado, em especial os aportes da Filosofia Política, a partir da prevalência dos direitos humanos, verificável na teoria jurídica contemporânea, em especial na que defende o chamado modelo de Estado Humanista. A consolidação destes direitos (acumulação de gerações de direitos civis, políticos, econômicos, culturais, ambientais, da paz e da democracia) representa o redimensionamento da compreensão sobre o conceito, estrutura, função e papel do ente estatal no contexto da sociedade contemporânea. A partir disso, tem-se fundamento para práticas políticas e jurídicas, indicando-se rumos de decisão, informando-se, assim, a natureza deôntica do Estado e, principalmente, estabelecendo-se critérios de racionalidade hermenêutica para implemento normativo prático. Neste rumo, o problema consiste em se pensar as relações entre Direito e Estado para se identificar o sentido destes quando informados pelas categorias de direitos que, conforme se sustenta dentre as hipóteses deste artigo, representam a finalidade maior, quando assentados na vigente e indeclinável noção da dignidade da pessoa humana como centro irradiador de sentido e demais posturas éticas protetivas como modo de realidade jurídica.

PALAVRAS-CHAVE: Estado Humanista; humanismo jurídico; direitos humanos e democracia; hermenêutica.

ABSTRACT

In this article the central objective is to reflect about the redefinitions senses on State’s General Theory, in particular with the Political Philosophy contributions, from the prevalence of human rights in contemporary legal theory, especially in defending the state model called

* Professora de Direito Constitucional. Conselheira do Ministério da Justiça (2008-2012). Mestre e Doutora em Direito Constitucional. Pós-Doutoranda em Direito Público. [email protected] ** Licenciado em artes visuais pela FAP/PR, especialista em direito público pela ESMAFE/PR e mestrando em direitos humanos e democracia (inclusão social e cidadania) pela UFPR. Advogado em Curitiba. [email protected]

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“Humanist State”. The consolidation of these rights (accumulation of civil, political, economical, cultural, environmental, and for peace and democracy rights) represents the resizing comprehension about the concept, structure, function and role of the state entity in the context of contemporary society. From this, has a foundation for political and legal practices, indicating whether courses of decision and informing the deontic State’s nature and mainly settling criteria for hermeneutical rationality and practical normative implement. In this way, the central problem consists in thinking relations between Law and State for identify the meaning of these when informed by the subjective right’s categories that, as it is sustained among the hypotheses of this article, represent higher juridical order, much more while seated in force and unwavering sense of the dignity of the human person as the radiating center sense, besides any other and other ethical protective stances as a mode of legal reality.

KEYWORDS: Humanist State; legal humanism; human rights and democracy; hermeneutics.

1. INTRODUÇÃO

A figura do ente estatal intrigou historicamente e segue intrigando o pensamento

político e jurídico à procura da construção de orientações, conformações e sentidos para as

vidas individuais e coletivas, buscando-se, assim, estabelecer marcos institucionais de

regulação da produção e reprodução da vida e da convivência humanas em sociedade.

A partir do complexo fenômeno cultural da existência de uma organização social

nominada “Estado” decorrem as mais variadas questões, a serem enfrentadas tanto pela Teoria

Geral do Estado quanto pela Filosofia Política, posto que, a partir de qual seja o modelo

estatal vigente, declinam-se as orientações dos mais variados setores da sociedade, assim

como o manejo dos valores políticos e jurídicos na interpretação e na intervenção da realidade

social.

Tendo por referência as peculiaridades temáticas de tais disciplinas, é inevitável

considerar o papel do Direito neste contexto, eis que ínsito à problemática tanto da Teoria do

Estado quanto da Filosofia Política, ao mesmo tempo em que distinto e próprio enquanto

campo de reflexão filosófica e científica.

Neste plano de ideias e diálogo de saberes, no presente artigo objetiva-se, mais do

que ser expositivo e conceitualmente exaustivo, transitar brevemente por algumas

possibilidades de ressignificação da Teoria Geral do Estado, tendo-se por mote tanto os

aportes da Filosofia Política e sua função essencialmente crítica, quanto a prevalência material

do Direito Internacional dos Direitos Humanos, o qual confere substância moral ao debate.

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Considera-se e adota-se a teoria da existência de um Estado Humanista de Direito,

como forma expressiva do humanismo jurídico, modo de cosmovisão a que, igualmente, se

filia neste artigo. Nesta perspectiva, integram-se funcionalmente os problemas e aportes dos

campos indicados, tendo-se por finalidade última a concreção dos direitos humanos, uma vez

que todo estudo jurídico deve necessariamente considerar as incidências dos conteúdos desses

direitos fundamentais em suas discussões e em suas práticas.

Assim, o problema central desta proposta de verificação de ressignificação dos

conteúdos aludidos é o de se tracejar algumas das relações entre Estado e Direito,

identificando-se a informatividade das categorias de direitos subjetivos que, conforme se

sustenta dentre as hipóteses deste artigo, representam a teleologia jurídica, quando pensados

ante a noção da dignidade da pessoa humana e demais posturas ético-protetivas correlatas

como modo de realidade jurídica insculpido pelos direitos humanos, o que funcionaliza as

instituições democráticas e a iniciativa privada em torno de fins maiores do que seus

interesses estritamente considerados.

A hipótese central a ser discutida, portanto, é a de que o advento histórico do Estado

Humanista, qualificado assim por conta da prevalência dos direitos humanos e do humanismo

jurídico como cosmovisão construída em torno de sua vigência, repercute diretamente no orbe

conteudístico da Teoria Geral do Estado, cujo próprio objeto maior – o Estado – se

redimensionou.

Logo, também a integração crítica da Filosofia Política é indispensável para se

repensar o fenômeno do ente estatal diante da sociedade e suas demandas, especialmente no

manejo de diferentes linhas argumentativas em conflito, quando da escolha por um rumo, no

momento decisório. As implicações hermenêuticas disto são profundas, uma vez que a

racionalidade jurídica se coaduna com o modelo estatal vigente, implicando sensibilidade e

racionalidade dos intérpretes, o que exige compromisso e vinculação semântica e pragmática

dos agentes.

Para o desenvolvimento do problema que deu origem a este artigo emprega-se a

sistemática metodológica de raciocínio dialético e interdisciplinar, abordando-se aspectos das

disciplinas científicas e filosóficas envolvidas na construção da problemática, pensando-se nas

influências recíprocas, com aspectos dedutivos a partir de sentidos teóricos, razão pela qual

predominam o estudo bibliográfico e a análise teórica como técnicas de pesquisa empregadas.

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Por fim, é relevante destacar também que o tema guarda ligação direta com a

temática do Grupo de Trabalho “Teoria do Estado e da Constituição”, ao qual se submete este

artigo para apreciação, especialmente pela análise interdisciplinar feita a partir dos Direitos

Constitucional e Internacional Público em sinergia com a Filosofia Política e a Teoria Geral

do Estado, ao tratar de peculiaridades desta última disciplina que merecem ser ressignificadas

face à assunção do Estado de Direito Humanista, em direta conexão com o dever

constitucional de proteção e de concretização dos direitos humanos fundamentais, exsurgindo

daí ser apropriada a sua análise e o seu aprofundamento neste artigo científico.

2. TEORIA GERAL DO ESTADO E FILOSOFIA POLÍTICA: PROBLEMÁTICAS

DO ESTADO E INFLUÊNCIAS NA CONSTITUIÇÃO DO HUMANISMO JURÍDICO

De um modo geral, no campo da Teoria Geral do Estado articulam-se as questões

essenciais para a investigação e o esclarecimento das formas e manifestações do ente estatal

ao longo do tempo e do espaço, depreendendo-se, assim, algumas características e modelos

comuns em diferentes sociedades historicamente pontuadas.

O foco próprio da disciplina pode ser apontado como o conceito de Estado, a

diferença deste com o de nação, os elementos constitutivos de território, povo e governo, as

variantes de soberania e autonomia, assim como as formas de Estado e as relações internas e

externas.

A disciplina abarca também a questão da divisão dos poderes e da forma de governo,

ao compasso das classificações clássicas de pensadores como Aristóteles e Maquiavel, com

especial atenção aos sistemas de governo e ao regime político democrático.

Para uma abordagem que se pretenda seja contemporizada com a supremacia dos

direitos humanos, contudo, alguns elementos precisam ser revistos, em seus sentidos e

significados atuais, pela disciplina, como modo de melhor contextualizar e pontuar seu objeto.

Assim, exemplificativamente, as dinâmicas da sociedade (teorias de sua origem,

finalidade, moral e convenções, organizações políticas) e o Estado propriamente pensado em

sua origem e formação, expressão histórica e tipologia (antigo, grego, romano, medieval,

moderno), mais conceitos plúrimos como os de soberania, território, povo, cidadania, bem

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comum, poderes político, jurídico e funções estatais, (DALLARI, 1998) assumem novas

feições, vetorizados pelos direitos humanos.

Ademais, ainda nas linhas da Teoria do Estado, também são pensados (DALLARI,

1998) os pontos de contato entre Estado e Direito (personalidade jurídica estatal, relações com

a política, sociedade, comunidade, nação), bem como mudanças do ente estatal por meio de

reforma e revolução. Igualmente, a disciplina abarca os vínculos do Estado com o governo,

em especial enfocando o regime democrático (aspiração e ideal moderno, princípios, formas

direta, semidireta, representativa e participativa), além de questões fundamentais como o

referendo, o plebiscito, a iniciativa e o veto populares, o recall.

Outrossim, integram ainda a disciplina os partidos políticos e sistemas de

representação, assim como o sufrágio, as normas de direitos humanos – marcando a

interrelação destes direitos, mas de modo isolado – a separação de poderes, as formas de

governo (monarquia, república, parlamentarismo, presidencialismo) e de regime político,

assim como a questão do Estado federal. Por fim, problemas do Estado contemporâneo são

levantados (DALLARI, 1998), tais como as relações internacionais, a intervenção estatal na

sociedade e os modos de produção econômica (modelos não intervencionistas, liberais,

neoliberais, estados socialista e capitalista, democracias populares, socialismo asiático,

questões sobre igualdade).

Desta sorte, os exemplos de enfoques da Teoria Geral do Estado apontam para a

definição conceitual do ente, acompanhado do exame de elementos constitutivos, em um

trabalho precipuamente científico de classificação e definição, em um exame explicativo e

demonstrativo.

Tal enfoque é temperado pelas dimensões críticas da Filosofia Política, de modo que

as características próprias do conhecimento científico naquele orbe de conteúdo são

equalizadas pela dinâmica do pensamento filosófico, apto a abordar as mudanças e

necessidades de adequação das demandas da realidade social.

A Filosofia Política dialoga com o campo da Teoria Geral do Estado, contudo, suas

pretensões são mais discursivas e menos classificatórias. Assim, ocupa-se das relações

humanas coletivas, social e politicamente organizadas para a produção dos modos de

existências, sobretudo por meio do aporte crítico dos sistemas vigentes, inserindo-lhes em

questionamentos éticos, estéticos, políticos, jurídicos, enfim, filosóficos.

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O manejo dos valores políticos vigentes, portanto, encontra elo na conjugação dos

enfoques de ambas disciplinas, de modo a auxiliar na composição de uma axiologia política e

jurídica, a partir dos indicativos vigentes pelas categorias de direitos.

A expressão tradicional dos problemas da Filosofia Política encontra suas bases

desde Platão e Aristóteles, assim como em Cícero e Maquiavel, apenas para citar os nomes

mais recorrentes na disciplina, passando-se pelo labor dos mais diversos filósofos modernos e

contemporâneos, como Hobbes, Locke, Rousseau, Montesquieu, Comte, Gramsci, Marx,

Weber, Constant, Mill, Berlin, Arendt, Bobbio, Kant, Hegel, Mill, Rawls, Habermas, Sandel,

Rorty, entre outros. Tais pensadores, ao problematizarem as questões do bem comum, da

igualdade e da liberdade, assim como as finalidades e expectativas democráticas e

republicanas, formaram um corpo de pensamento filosófico apreendido pelas formas

jurídicas.

Tal como destaca Mogado (2010, p. 469), a Filosofia Política, em seu aporte

histórico, demonstra o sentido da possibilidade de problemas e soluções políticos, sendo que,

na contemporaneidade, se assiste ao monopólio da forma democrática, no ocidente, a partir do

que a pergunta do filósofo se daria acerca das conformações racionais deste modelo.

O filósofo político, assim, sem uma sujeição obrigatória ao regime em que vive, mas

vinculado a ele por sua própria existência temporal, articularia argumentos em conflito na

batalha política, clarificando a natureza das respostas, demonstrando viabilidades de escolhas

dentre várias possibilidades.

O surgimento histórico do Estado Neutro, segundo Morgado, no cerne da filosofia

política moderna, retiraria as preocupações teológicas de fundamentação da ordem pública,

para se instituir uma concepção do Estado com novas bases: “sendo filosofia política, isto é,

filosofia do homem e das coisas humanas, obrigou-se [a filosofia política] a uma igualmente

tremenda abstração: o cidadão tinha de prescindir de ser homem, um ser com ideias,

convicções, concepções do bem, religião, e por aí em diante” (Idem, ibidem, p. 478).

Esta mudança de eixo ideológico proporcionou a inserção do humanismo como base

de busca dos fundamentos do Estado na modernidade e contemporaneidade, posto que a

problemática do humano e das coisas humanas passou a ser enfocada. Deste modo, os direitos

subjetivos gravitam em torno da noção de que o ser humano ocupa um lugar privilegiado no

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universo e que sua continuidade demanda uma série de condições pessoais e ambientais

atendidas.

Tanto assim que, ainda conforme Morgado (Id., ib., p. 487), a tônica dos direitos

humanos revela o substrato moral da democracia, definindo o seu conteúdo enquanto

regime político, daí se falar em igualdade democrática, em liberdade democrática, e demais

valores políticos qualificados de “democráticos”, ainda que implicitamente, no manejo do

conteúdo dos diplomas de direitos humanos.

Por estes mesmos motivos, o trabalho do filósofo político seria marcado pela

respeitabilidade e pela responsabilidade, na medida em que, sem se sujeitar, lhe incumbe

identificar as regras do regime político, com reconhecimento do valor da democracia e

consideração pelos sentidos e significados do bem individual e coletivo.

Desta maneira, os trabalhos de Teoria Geral do Estado, ao identificarem expressões

estatais, ao compasso do trabalho de Filosofia Política, que agrega a dimensão valorativa e

crítica, necessitam ser projetados em suas expressões jurídicas, próprias dos direitos humanos

e do humanismo que embasa a própria existência estatal na contemporaneidade.

Esta fundamentação de ideias dos Estados pode ser vista no estudo de Bester (2005,

p. 10-26), para quem o histórico e a evolução conceitual de Estado e de constitucionalismo

são imprescindíveis para a compreensão do Direito Constitucional, uma vez que Estado e

Constituição apresentam-se como expressões históricas concorrentes, a despeito da

modernidade da terminologia.

Para a autora, a vocação ideológica do Estado não pode ser cindida da Constituição,

ao mesmo tempo em que os conceitos de Estado, de Estado de Direito e de Estado

Constitucional e Democrático de Direito devem ser adequadamente distinguidos para se

entender o Estado em suas feições e dimensões atuais.

Se o Estado em sua acepção moderna, conforme Weber, na leitura de Bester (2005,

p. 10), seria o detentor da força legítima para manutenção da ordem vigente, o Estado de

Direito seria resultado das revoluções modernas (caracterizando-se pelo império da lei, pela

divisão de poderes, pela legalidade administrativa, e pelos direitos e liberdades fundamentais),

enquanto o Estado Constitucional de Direito é o Estado limitado pelo Direito, “cujo poder se

baseia no respeito a uma Constituição, que o autolimita” (Id., ib., p. 13), expresso na forma

típica do Estado liberal clássico.

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No entanto, a questão nevrálgica do Estado, “apenas”, Constitucional de Direito,

seria o problema de se admitirem ditaduras em sua forma, de sorte que o Estado

Constitucional e Democrático de Direito emergiria como forma qualificada, cuja legitimidade

advém da soberania popular.

Segundo a autora (BESTER, 2005, p. 14), pensar a formação e o desenvolvimento do

Estado, em suas fases históricas, ou seja, em expressões distintas ao longo do tempo, implica

analisar mudanças que não necessariamente revelem evolução, mas sim modos de se entender

o fenômeno que modernamente se nominou Estado.

Neste sentido, em apertada síntese, o Estado na antiguidade clássica seria um Estado

escravista, com exercício direto da democracia por pequenas populações locais. Na Europa

Medieval ter-se-ia o fragmentário Estado feudal, marcado pela poliarquia e pelo Estado

estamental, além do crescimento das cidades e das relações comerciais, revelando, ao longo

do caminho, as bases para a formação do poder estatal monista. O Estado absolutista marcaria

a Idade Moderna, de modo que o poder centralizado nas mãos do monarca extinguira a

fragmentariedade do Estado medieval, sendo que ante as abusividades absolutistas nasceriam

os pleitos de liberdade e de limitação do poder estatal (BESTER, 2005, p. 18).

No início da idade contemporânea, seguindo o histórico de Bester (2005, p. 20),

surgiria o Estado liberal clássico (guardião das liberdades e não-intervencionista), com a

máxima de fundamentação do Estado na teoria da Soberania Popular, merecendo destaque a

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. O Estado do Bem-Estar Social

marcaria o início do século XX, cujos préstimos foram a limitação das explorações humanas

cometidas pelo liberalismo ilimitado, de sorte a formar um Estado prestacionista, providente e

intervencionista, obrigado a sistemas de previdência, seguro social, habitação, educação,

saúde, enfim, comprometido com o núcleo dos direitos sociais atuais.

Por fim, ainda conforme sua síntese (BESTER, 2005, p. 24-26), o Estado atual seria

do tipo neoliberal, marcado pela forma de Estado Gerencial, configurando um Estado mínimo

que admite privatizações, desregulamentações, flexibilizações, gerando novos déficits

humanos no cenário globalizado, o que, nos termos da autora, em regra representam um

Estado do Mal-Estar para trabalhadores e hipossuficientes que ficam expostos à voracidade

do mercado.

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Estas compreensões e ponderações (Id., ib., p. 26) são relevantes para o escopo deste

artigo, que trata do humanismo e se preocupa, portanto, com as condições de manutenção e

reprodução da vida humana, que dependem de fortes institutos jurídicos efetivos; por isso,

detém-se na passagem final de sua análise do Estado contemporâneo:

Se esta guinada de um Estado de tipo social a um Estado de perfil neoliberal é criticada até nos países que já viveram um autentico Estado Social, muito mais o é em um país em que o Estado Social é tardio, como no caso brasileiro atual. Pela Constituição Federal vigente há uma conformação do Estado de tipo social, isto pelos princípios que majoritariamente veicula (bem-estar, justiça social, solidarismo, dignidade da pessoa humana, igualdade, função social da propriedade etc.), em que pese também adotar princípios de livre mercado. Ocorre que já desde 1989, no ano seguinte à entrada em vigor do texto constitucional de 1988, iniciou-se por parte dos governantes uma ofensiva neoliberal contra essa concepção de Estado. Isto é a prova de que no Brasil se comete aquele erro classificado por Hermann Heller como um dos mais graves do pensamento político, que consiste em confundir governo com Estado, operando-se pois a confusão do ‘núcleo de poder que realiza positivamente o poder estatal com o próprio Estado’. Para o autor, ‘do fato, certamente exato, de que o Estado se apoia neste núcleo de poder extrai-se a falsa consequência de que este núcleo de poder ‘é’ o Estado. Este sofisma está na base de todas as inadmissíveis concepções que confundem o Estado com o seu governo, e ao poder do Estado com o poder do governo’. (BESTER, 2005, p. 26).

Conforme a pensadora pontua em seu estudo, aos variados “perfis” de Estado

correspondem expressões constitucionais que refletem a ideologia do tempo em que são

construídas. Assim, para o modelo do Estado contemporâneo acima debatido, tem-se o seu

posicionamento acerca da Constituição:

Diante disso tudo [deletérios efeitos humanos do neoliberalismo global], para a manutenção da força normativa da Constituição há que se defender o que nela está positivado, notadamente em termos de direitos fundamentais e do perfil de Estado de tipo social que foi configurado pelo poder constituinte originário ao Estado brasileiro. (BESTER, 2005, p. 56).

Veja-se, pois, que a compreensão exaltada pela autora é do tipo humanista, no

momento em que expressa a preocupação com o ser humano em suas condições de existência

e modo de realidade. Este tipo de apreensão revela uma avaliação do sistema e ordenamento

jurídico, vendo-lhe funções e significados que transcendem a pura normatividade.

Para este ponto de vista, alguns autores valem-se da terminologia “Estado

Humanista”, como modo de compreender as relações entre Estado, Direito e Justiça, em

especial por uma organização própria de sistema de fontes.

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Assim, tem-se tanto uma cosmovisão, conforme o exemplo da construção teorética

de Bester, como um sistema de organização de representações estatais, sendo este segundo

modelo a ser explorado no tópico seguinte.

3. O ESTADO HUMANISTA E A HERMENÊUTICA JURÍDICA: RACIONALIDADE

PRÓPRIA E VISÃO DE MUNDO

Conforme Gomes e Mazzuoli (2010, p. 195) o Estado Constitucional e Humanista de

Direito representa uma síntese histórica do último modelo estatal evolutivo havido no mundo

ocidental. Para os autores, a conjunção de fontes do direito neste modelo é a característica

própria de sua coordenação, critério mesmo que serve para se verificar diferentes ondas

evolutivas.

No Estado Constitucional e Humanista de Direito são fontes normativas em

recíproco diálogo as leis (JAYME, 1995), os códigos, a Constituição, a jurisprudência interna,

os tratados internacionais (em especial os que versem sobre direitos humanos), a

jurisprudência internacional e o direito universal com valor supraconstitucional.

Respectivas fontes teriam se consagrado em diferentes momentos históricos,

marcando os trânsitos entre Absolutismo, Legalismo, Constitucionalismo (e

Neoconstitucionalismo), Internacionalismo e Universalismo, os quais marcam “[...] a

evolução do direito rumo à concretização de normas e princípios cada vez mais

humanizantes” (GOMES; MAZZUOLI, 2005, p. 21, grifo no original).

Assim, na primeira onda evolutiva do Estado, do Direito e da Justiça, no modelo

revolucionário liberal, ter-se-ia o Estado Legalista, seguido, na segunda onda, pelo Estado

Constitucional de Direito, em que houve predomínio da Constituição e jurisprudência interna.

A terceira onda seria do Estado Constitucional e Internacional de Direito, momento em que os

tratados e a jurisprudência internacional assumem relevância.

Por fim, ainda para os mesmos autores (GOMES; MAZZUOLI, 2005, p. 197), a

síntese mais recente seria a do direito universal, expressa na forma do Estado

Constitucional e Humanista de Direito, que se apresenta como macrogarantia da proteção

dos direitos humanos ante o exercício arbitrário e ilegítimo do poder político estatal.

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Estado, Direito e Justiça, assim, são estruturados em torno da regulamentação

jurídica, buscando-se equacionar interesses e direitos individuais e coletivos.

Sendo assim, é vocação do Estado Constitucional e Humanista de Direito a proteção

ampla e irrestrita dos seres humanos tutelados pelo ordenamento jurídico, que passa a ser

considerado como uma totalidade de conhecimento orientada para a proteção de direitos e

valores consolidados e que se pretende efetivar e maximizar, transmutando-se os preceitos

jurídicos em implemento prático.

Além disso, na sistemática do Estado Humanista, a democracia substancial (tutela

efetiva dos direitos fundamentais) se sobrepõe à democracia meramente formal (expressão da

vontade da maioria), de sorte que os desvios dos direitos ou sua supressão não são tolerados

nem mesmo que assim seja a vontade do maior contingente de pessoas.

Assim, o Estado Humanista significa, ancorado nas figuras do Estado, do Direito e

da Justiça integrados, instrumento limitado, vinculado e orientado à garantia de direitos

humanos, de sorte que todos os atos jurídicos de uma sociedade devem seguir tal

funcionalização. O argumento derradeiro de Gomes e Mazzuoli é o seguinte:

Dos horrores e atrocidades cometidos no período sombrio do holocausto, lições universais puderam ser tomadas por toda a sociedade internacional, espraiando-se reflexos no direito interno dos Estados, que passaram cada vez mais consagrar normas protetivas de direitos humanos. Essas normas vão ganhando corpo cada vez mais denso (em valores, axiologicamente) e concentrado, até chegarem à característica de jus cogens, que são normas imperativas de direito internacional geral, aceitas e reconhecidas pela sociedade dos Estados com um todo, das quais nenhuma derrogação é permitida e que só podem ser modificadas por norma ulterior da mesma natureza (arts. 53 e 54 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969). ( 2010, p. 199).

Outros pensadores, na linha de Gomes, Mazzuoli, Bester, acima expostos, também

têm refletido em caminho similar, integrando instâncias hermenêuticas e buscando

fundamentos vários, sempre humanistas, para o fenômeno estatal. A função legitimatória e

embasadora do humanismo pode ser visualizada, por exemplo, no argumento seguinte:

É dever indeclinável do Estado humanista buscar em primeiro lugar a sua legimitação como instância que promove o bem-estar da coletividade. E isto, na acepção hegeliana, consiste em seguir o que hoje se pode denominar lei de responsabilidade ética em contraponto à falácia da lei de responsabilidade fiscal. A primeira, sendo eminentemente ética, consiste na viabilização de políticas de desenvolvimento e de justiça social; a segunda, meramente contábil, limita a

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capacidade de intervenção do governo, à sombra da ideologia liberal do chamado ‘Estado mínimo’, e, consequentemente, da ação pública que se fizer indispensável. (BOMBASSARO; KRÜGGELER; SOUZA, 2009, p. 221). [grifou-se].

Na linha dos modelos histórico-evolutivos indicados nos pontos precedentes

(DALLARI, 1998; BESTER, 2005), o humanismo cívico, enquanto movimento de modo de

ver e avaliar o mundo, é rememorado como importante elemento informativo da ordem

jurídico-estatal, antecedendo-lhe e, assim, indicando os pontos de partida a serem integrados

na concretude do real.

O movimento humanista se caracteriza pela sua defesa intransigente da dignidade da pessoa humana. É um movimento que concentra todas as suas energias e forças para o homem e em favor do homem. Tem como princípios básicos a exaltação dos valores éticos e morais que atendam ao direito do livre pensar e do livre agir. O movimento humanista no seu processo histórico de desenvolvimento buscou sempre destacar a importância do homem como sujeito de sua própria história e, fundamentalmente, que todas as formas de organização política, jurídica e econômica provêm da vontade do próprio homem. Assim, o poder temporal deveria ficar vinculado à vontade única e exclusiva do próprio homem, enquanto que o poder espiritual deveria preocupar-se com a fé dos homens. A vinculação, portanto, de um discurso de legitimação do poder temporal através do poder espiritual não era aceita pelo movimento humanista. (MEZZAROBA, 2004, p. 122).

Os reconhecimentos da origem e finalidades do Estado revelam o humanismo como

pressuposto e consequente, donde se pode depreender a sua função interpretativa por meio da

conferência de significação às práticas jurídicas e como fundamento de discussão e avaliação

dos rumos políticos.

Conforme Britto (2007) destaca ao longo de sua argumentação pela compreensão do

humanismo como categoria constitucional, o ponto de vista para se visualizar o humanismo

jurídico depende da apreensão global e hermenêutica dos valores jurídicos vigentes, a serem

manejados por meio de uma postura comprometida e vinculada com a realização destes

valores.

O trabalho do filósofo político aproxima-se, assim, do trabalho do intérprete jurídico,

reunindo-se as dimensões cindidas na divisão social do trabalho e reincorporando a dimensão

de concreção dos valores jurídicos. Veja-se esta cosmovisão humanista antecedente às

ideologias, ao compasso da submissão do Estado ao humanismo.

Pero sobre esa base común del reconocimiento del fin del Estado y del orden jurídico caben, y se han producido, floraciones humanistas muy diferentes, las cuales divergen en cuanto a la apreciación de cuales sean los medios más adecuados y

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eficaces para el cumplimiento de tal finalidad. Y, así, coincidentes en el reconocimiento de ese fin supremo – el servicio a los seres humanos vivientes – pero divergentes en cuanto a la elección de los medios, figuran de modo igual dentro de una visión humanista, entre otros, los siguientes ideários: el individualismo liberal – en parte considerable juzgado ya como caduco –; la tesis democrática; el intervencionismo; el neoliberalismo; y el socialismo como ideal ético-jurídico de índole humanista (es decir, no inspirado por la mecánica y periclitada tesis del materialismo histórico, ni incurso en la monstruosa aberración totalitaria); y muchos otros matices intermedios. Son patentes las grandes diferencias entre esos criterios de estimativa o axiología político-jurídica; pero se trata de diferencias relativas tan solo a lo que se considera como medios más adecuados y eficientes para la realización del ideal humanista. Por debajo de esas importantes diferencias, hay, sin embargo, la concordancia en el reconocimiento de la tesis primordial del humanismo, a saber: el hombre no ha nacido para el Estado, sino que el Estado ha sido hecho para servir a los seres humanos. (RECASÉNS SICHES, 2003, p. 324-325). [grifou-se].

O mesmo entendimento é adotado no cerne de disciplinas jurídicas específicas,

donde se retira seus fundamentos, como na referência do Direito Administrativo citada

abaixo, reforçando, mais uma vez, o valor ético anterior ao jurídico, criando a ambiência

política de desenvolvimento da vida coletiva na comunidade organizada.

Este princípio capital, que afirma no Direito contemporâneo o postulado da supremacia do homem sobre suas próprias criações, tem sua trajetória histórica traçada desde Protágoras, definindo-o como medida de todas as coisas; sua primeira grande elaboração teórica com o Direito Natural, em suas sucessivas expressões doutrinárias; sua redescoberta pelo humanismo, com sua rica elaboração moderna e a sua atual revalorização pós-moderna, como um princípio supraconstitucional, justamente considerado com o um fundamento da própria civilização. Seu recebimento explícito, primeiro, nas declarações de direitos do homem e, depois, nas declarações de direitos fundamentais constitucionalizadas, atesta essa capital importância, como, de modo especial, a sua destacada inclusão nos documentos constitutivos da União Europeia, acompanhado da afirmação solene da inviolabilidade da pessoa humana, o que assinala não apenas sua importância como megaprincípio do Direito, como o seu conteúdo de precedência lógica e ética sobre o Estado e seus desdobramentos políticos. Conclusões essas que igualmente resultam de sua destacada explicitação no art. 1º, III, da Constituição brasileira de 1988 (MOREIRA NETO, 2009, p. 85).

O Direito Constitucional, conforme analisado no estudo de Bester (2005) no ponto

precedente, é espaço privilegiado dessa discussão, tanto pelo caráter intermediário que

assume, entre o direito interno e o internacional, quanto pela fortuna axiológica que

representa. Segundo Paulo Bonavides:

As bases morais do humanismo constitucional da Carta de 1988 acham-se cifradas num princípio pendular, que é a chave da abóbada dessa catedral do constitucionalismo brasileiro: o princípio da dignidade da pessoa humana. Esse princípio está para o constitucionalismo do Estado Social, nesta fase do pós-

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positivismo, assim como o princípio da separação de poderes esteve para o constitucionalismo do Estado liberal na época clássica do positivismo legalista. Princípio novo nos anais do constitucionalismo, perpassa ele a carta contemporânea dos direitos fundamentais com o dogma consagrador da alforria moral do ser humano, em idade de incertezas geradas pelas convulsões da globalização (BONAVIDES, 2006).

Deste modo, a ressignificação da Teoria Geral do Estado, como corolário e

decorrência imediata da mudança do seu próprio objeto, o “Estado”, se mostra patente a partir

da referida fortuna axiológica e de cosmovisão concedida pelo Direito Internacional dos

Direitos Humanos, cujos preceitos especialmente teleológicos e abertos demandam a

densificação hermenêutica no trabalho interpretativo, atividade de condensação e visualização

dos fundamentos morais da democracia que demanda a postura consciente do intérprete,

aproximando-se do filósofo político.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Teoria Geral do Estado, pensada em conjunto à Filosofia Política, sofre cabais

mudanças quando verificada a partir da prevalência dos direitos humanos, corpo de

conhecimento inarredável da teoria jurídica contemporânea, consagrada no atual modelo de

Estado Humanista, o qual, por sua vez, consolida o humanismo jurídico como cosmovisão

própria do Direito sobre a vida coletiva.

A hipótese proposta neste artigo considera que os direitos humanos não se encerram

em uma das partes do estudo de Teoria do Estado, justamente porque o objeto, o Estado, não

se restringe ao elemento funcional-estruturante.

Assim, a consequência lógica da hipótese é a de que a mudança do objeto leva à

mudança dos métodos e problemas científicos e filosóficos estatuídos em seu entorno, e esta

estrutura de pensamento é determinante na compreensão jurídica dos fenômenos sociais,

posto ser o Estado a base do Direito positivo vigente, o qual se deve aplicar por meio das

instituições democráticas.

Portanto, resta inevitável concluir que o potencial hermenêutico dos direitos

humanos ressignifica a tal ponto a estrutura estatal que se pode falar de um

redimensionamento do Estado e da Teoria Geral respectiva, na medida em que todos os

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elementos constitutivos são orientados teleologicamente no rumo da ética do cuidado e da

proteção humana e ambiental estatuída pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos.

A atividade hermenêutica da Filosofia Política é central para a compreensão do ente

estatal, seja pela via dos elementos estruturais fornecidos pela Teoria Geral do Direito, seja

pelo momento crítico filosófico em que se questionam os sentidos e efetividades dos valores

da comunidade política.

Em suma: se a Teoria Geral do Estado fornece as bases científicas do fenômeno

estatal (o qual se vê obrigado de redimensionamento por força das mudanças do ente estatal),

a Filosofia Política permite a crítica, tendo em vistas a moralidade trazida pelos direitos

humanos, das práticas realizadas na comunidade política, definindo-se prioridades e

escolhendo entre as possibilidades de alocação de recursos materiais e jurídicos. Este trânsito

de saberes equipa o procedimento hermenêutico com substância.

Por sua vez, a acumulação de gerações de direitos civis, políticos, econômicos,

culturais, ambientais, da paz e da democracia nas Constituições ocidentais redimensionou não

apenas o Estado como a sociedade civil contemporâneos, vinculando em um projeto comum

as esferas pública e privada, todos preocupados, por força do direito, com a consecução dos

objetivos e fundamentos constitucionais.

Esta cosmovisão humanista torna o Estado um aparato destinado à efetividade e à

concreção dos direitos de idêntico perfil, sendo pensada a sua estrutura vetorizada ante tal

finalidade. Com isso, as ações no corpo institucional se direcionam e classificam-se pela

medida do compromisso com estes direitos, definindo as orientações dos seus agentes. Assim,

a apontada ressignificação dos conteúdos da Teoria Geral do Estado contribui para que a

racionalidade hermenêutica direcionada ao implemento prático do normativismo humanístico

revista-se de significados jurídicos mais densos, que demandam o labor interpretativo

casuístico e comprometido com as posturas éticas e protetivas de todas as pessoas em

sociedade.

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A LIBERTAÇÃO COMO OBJETIVO CENTRAL DO NOVO

CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO: OS CAMIMNHOS PARA UM

CONSTITUCIONALISMO DA LIBERTAÇÃO

LA LIBERACIÓN COMO OBJETIVO CENTRAL DEL NUEVO

CONSTITUCIONALISMO LATINOAMERICANO: LOS CAMINOS HACIA UN

CONSTITUCIONALISMO DE LA LIBERACIÓN

Adriano Corrêa de Sousa1

RESUMO O novo constitucionalismo latino-americano, capitaneado pelas constituições da Venezuela

(1999), Equador (2008) e Bolívia (2009), erige no subcontinente com um conjunto normativo

de densidade democrática e pluralista e até então não experimentados no âmbito do

constitucionalismo regional. Em uma de suas dimensões de pluralidade resultou na

incorporação no texto constitucional das cosmovisões dos povos indígenas originários,

traduzido por bem viver, especificamente dos quíchuas na Constituição do Equador, de 2008,

e dos aimarás na Constituição da Bolívia, de 2009.

Isso não representa, contudo, uma negação à identidade de matriz europeia ocidental, que

tradicionalmente se apresentou no constitucionalismo latino-americano, mas tampouco

significa sua continuidade. Porém, um ponto central é o olhar dispensado ao oprimido, que está

nessa condição por ser pobre, ameríndio, negro, mulher, ou seja, por ser o “outro”. Desse modo, o presente estudo tem como objetivo demonstrar a importância o processo de

reflexão iniciado com as teorias da libertação que surgiram no início da década de 1970 sob a

influência da teoria da dependência, desenvolvida por Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank,

Teotônio dos Santos, Fernando Henrique Cardoso, Enzo Falletto e outros.

Defendo a tese de que o objetivo central do novo constitucionalismo latino-americano é a

libertação do oprimido e, com isso, a filosofia da libertação, desenvolvida por Enrique Dussel,

figura como importante marco teórico que sustenta a proposta de refundação do Estado.

PALAVRAS-CHAVE: Constitucionalismo; filosofia da libertação; América Latina;

dependência.

RESUMEN El nuevo constitucionalismo latinoamericano, capitaneado por las constituciones de Venezuela

(1999), Ecuador (2008) y Bolivia (2009), se erige el subcontinente con un conjunto de densidad

normativa democrática y pluralista, hasta ahora no probado en el constitucionalismo regional.

Una de sus dimensiones de pluralidad dio lugar a la incorporación en la Constitución de la

cosmovisión de los pueblos indígenas originarios, traducidos por el vivir bien, en concreto del

quichua en la Constitución ecuatoriana de 2008 y de los aymaras en la Constitución Política de

Bolivia, 2009.

1 Mestre em Direito Constitucional pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da

Universidade Federal Fluminense. Professor Substituto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Advogado. E-mail: [email protected].

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Esto no es, sin embargo, una negación de la identidad de matriz de Europa occidental, que

tradicionalmente aparecían en el constitucionalismo latinoamericano, pero tampoco significa

su continuidad. Pero, el punto central es el aspecto relevado a los oprimidos, que se encuentra

en esta condición por ser pobres, indígenas, negros, mujeres, es decir, por ser el "otro".

Por lo tanto, este estudio pretende demostrar la importancia del proceso de reflexión iniciado

con el lanzamiento de las teorías que surgieron en la década de 1970 bajo la influencia de la

teoría de la dependencia, desarrollado por Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank, el Teotônio

Santos, Fernando Henrique Cardoso, Enzo Falletto y otros.

Yo sostengo que el objetivo central del nuevo constitucionalismo latinoamericano es la

liberación del oprimido y, por tanto, la filosofía de la liberación desarrollada por Enrique Dussel

figura como importante marco teórico que apoya la propuesta de reformar el Estado.

PALABRAS CLAVE: Constitucionalismo; filosofía de la liberación; América Latina;

dependencia.

1. Introdução

Na passagem do século XX para o século XXI, o cenário político latino-americano

assistiu a ascensão de um modelo constitucional que pretende ser, pela profundidade e alcance

das suas mudanças, transformador da realidade social e criador de uma nova matriz de

pensamento. Isso ocorre em um ambiente aparentemente estagnado com o fim da Segunda

Guerra Mundial e a promulgação da Constituição da República Italiana, de 1947, da Lei

Fundamental de Bonn, de 1949, bem como o fim da Guerra Fria e a ascensão hegemônica do

liberalismo político como principal legitimador do Estado.

Contudo, essa constatação é tão-somente aparente, tendo em vista que ainda predomina

nas pesquisas da área de Direito algumas tendências prejudiciais para uma adequada

compreensão dos fenômenos políticos e sociais locais e regionais. Dentre elas, podemos apontar

a incorporação majoritária do conhecimento produzido nos países centrais (Estados Unidos e

Europa) e, concomitantamente, a desconsideração do pensamento inovador produzido na

Améria Latina. Nesse sentido, a construção de uma teoria do constitucionalismo é

monopolizada por um caminho de mão única, conforme pretendemos demonstrar adiante.

O novo constitucionalismo latino-americano, capitaneado pelas constituições da

Venezuela (1999), Equador (2008) e Bolívia (2009)2, desenvolve no subcontinente com um

2 Sobre as transformações operadas na seara do Direito Constitucional, a doutrina apresenta o

neoconstitucionalismo como o conjunto difuso de críticas que demonstram a insuficiência do constitucionalismo moderno e, com isso, a necessidade de trazer novamente a discussão ética ao Direito com a normatividade dos princípios, mediante o uso da nova interpretação constitucional, da ponderação de interesses, da força normativa da constituição etc., muito difundida por meio de coletâneas organizadas por Miguel Carbonell. Veremos adiante que, sem negar os avanços do neoconstitucionalismo, o novo constitucionalismo latino-americano opera transformações mais

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conjunto normativo de densidade democrática e pluralista até então não experimentados no

âmbito do constitucionalismo regional. Uma de suas dimensões de pluralidade resultou na

incorporação no texto constitucional das cosmovisões dos povos indígenas originários,

traduzido por bem viver, especificamente dos quíchuas na Constituição do Equador, de 2008,

e dos aimarás na Constituição da Bolívia, de 2009.

Sua ascensão ocorre após momento de ruptura política, operada pelo processo de

redemocratização realizado ao longo da década de 1980 na América Latina e emergiu da base

da sociedade por meio de diversos movimentos sociais iniciados a partir do século XX, sendo

que até o presente momento ainda não se encontram definitivamente consolidados. Estamos

tratando, assim, de um "constitucionalismo em configuração" (PASTOR e DALMAU, 2010).

Desse modo, o constitucionalismo, para esses países, passou a ter outro papel que não

apenas o de declarar direitos fundamentais e assegurar a divisão de funções. Existe a proposta

de voltar a atenção ao oprimido e devolver para ele sua dignidade e isso ocorre tanto pelos

mecanismos de democracia ampliada (plebiscitos, referendos, revogação de mandato), como

também pelo pluralismo, que não se limita ao aspecto político, promovendo a refundação do

Estado com base em premissas diferentes daquelas que caracterizaram o Estado moderno de

tipo europeu, como o da plurinacionalidade.

No entanto, o novo constitucionalismo latino-americano, amplamente lastreado em

movimentos da base da sociedade, somente conseguiu transformar essas pretensões em prática

após longo processo de reflexão iniciado no final da década de 1960 e início da década de 1970.

Partindo-se de um sujeito latino-americano oprimimido, nasceu um conjunto de teorias próprias

do subcontinente que mira suas questões existenciais neste tipo de sujeito histórico.

Para explicar o fracasso do desenvolvimento na América Latina, a teoria da dependência

elaborada por Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, André Gunder Frank e outros,

demonstrou a superação do pensamento etapista necessário para trilhar o caminho do

desenvolvimento. Assim, essa teoria revelou outros atores, centrais e hegemônicos, que

estariam em jogo e com poder de controlar os fluxos de capitais, não bastando que os Estados

seguissem um caminho pré-estabelecido.

Esse pensamento no plano econômico foi fundamental para dar início a um conjunto de

ideias que surgiriam durante a década de 1970. Desse modo, a Teologia da Libertação, passando

pela Filosofia da Libertação, bem como pela Pedagogia da Libertação têm, em comum, o olhar

significativas, em verdadeira perspectiva de refundação do Estado e de ruptura com a lógica política anterior.

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para o oprimido.

Após a Conferência de Medellín, de 19683, marco inicial da teologia da libertação, sob

a influência da teoria da dependência, propagada pelas ciências sociais latino-americanas,

surgiu na Argentina a filosofia da libertação4, que tem como expoente autores como Enrique

Dussel, Rodolfo Kusch, Arturo Andrés Roig, Juan Carlos Scannonne, Aníbal Fornari, Osvaldo

Ardiles, Julio De Zan, Horacio Cerutti, entre outros (SCANNONE, 2009, p. 60). Trata-se de

importante marco do pensamento crítico latino-americano onde se questiona as bases de

dominação do subcontinente e que serve de marco filosófico para as recentes rupturas operadas

pelo novo constitucionalismo latino-americano.

A partir deste momento, portanto, ganha força na região questões como a inclusão do

“outro”, considerando os direitos dos povos indígenas, assim como a cultura popular latino-

americana (DUSSEL, 1997) e, por causa dessa importância, a filosofia da libertação será tratada

aqui como o marco filosófico do novo constitucionalismo latino-americano.

A filosofia ocidental, segundo Ludwig (2011, p. 7 e 8), apresenta como principal

fundamento de sua elaboração a categoria da totalidade. Esta se revela no paradigma do ser, da

consciência e do agir comunicativo. Assim, verifica-se uma ontologia da totalidade onde o

mundo é iluminado pela visão do “ser”, que detém a verdade e a lógica prevalescente é a de

dominar o “outro”, o “não-ser”, sem qualquer espaço para alteridade, na concepção de Dussel

(1973, p. 108).

A ideia de dominação, que permeia o pensamento da filosofia ocidental, permite

imaginar diversas dicotomias que figuram como temas relevantes e polêmicos, tais como

civilização e barbárie, nacional e estrangeiro, modernidade e tradição. São exemplos de

dualidades na qual um deve se sobrepor ao outro, justamente por esse outro ser diferente e

causar certo estranhamento.

O subcontinente latino-americano foi moldado à luz da modernidade. Conforme será

visto adiante com mais detalhes, a modernidade não foi simplesmente importada para a América

Latina, mas sua própria ideia teve origem no impacto filosófico que representou a descoberta e

a invasão europeia (DUSSEL, 2010b), com os intensos discursos racionais de legitimidade das

3 Trata-se da Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, convocada pelo Papa

Paulo VI, cuja temática foi “A Igreja na presente transformação da América Latina à luz do Concílio Vaticano II”. O Concílio Vaticano II, por sua vez, XXI Concílio Ecumênico da Igreja Católica, foi convocado no dia 25 de janeiro de 1961, pelo Papa João XXIII.

4 Maiores detalhes sobre a Filosofia da Libertação, bem como sobre a Teologia da Libertação e a Teoria da Dependência serão apresentados ao longo deste trabalho.

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ações espanholas.

A identidade latino-americana se apresenta mestiça, ultrapassando a dimensão racial

para centrar-se na mestiçagem cultural. Durante muito tempo essa foi a justificativa utilizada

pelos estudiosos para o subdesenvolvimento da região. O pensamento que concebe a

possibilidade enriquecedora de culturas diferentes coexistirem no mesmo Estado-nação não era

vista com bons olhos à luz dos principais pensadores do século XIX e início do século XX.

Período este em que as teorias racistas – e totalitárias – proliferaram (SOTELO, 1975, p. 37)5,

sendo que muitos delas creditavam a instabilidade institucional dos países hoje considerados

multiculturais justamente na falta de homogeneidade étnica.

No entanto, embora inserida no âmbito da modernidade, a América Latina nunca deixou

de ter um papel periférico no desenvolvimento dos pressupostos modernos (DOMINGUES,

2009, p. 7), tendo sido rotulado como um continente subdesenvolvido ou em desenvolvimento.

A hipótese central desse trabalho considera que o movimento teórico da libertação se

trata do marco teórico que acompanha o novo constitucionalismo latino-americano. Naquele

período, pela primeira vez o subcontinente voltou seus olhos para si e pensou a realidade a partir

de espírito de sua época.

Contudo, os movimentos bruscos são facilmente percebidos e a reação não tardou a

aparecer. As ditaduras militares proliferaram na América Latina com a missão de sufocar o

pensamento “subversivo”. Seria necessário esperar a redemocratização para que o resultado das

teorias da libertação pudessem ser percebidas.

O presente estudo se divide em três partes.

A primeira parte trata da inserção do novo constitucionalismo latino-americano em seu

contexto econômico, político e social. Pretende-se estabelecer um perfil do constitucionalismo

e contrasta-lo com as inovações do novo constitucionalismo.

A segunda parte é dedicada ao estudo da libertação e suas diferentes manifestação no

campo dos estudos sociais na América Latina, passando pela teologia da libertação, filosofia da

libertação e mesmo a pedagogia da libertação.

A terceira parte, por fim, destaca o tratamento conferido ao oprimido pelo novo

constitucionalismo latino-americano. Nesse ponto estudamos o caso boliviano, onde

5 Roberto Gargarella explica que foram muitos os pensadores inspirados pelo pensamento de

Rousseau que consideraram indispensável projetar uma sociedade homogênea como condição de possibilidade para tornar possível um autogoverno coletivo. As teorias racistas também condicionaram importantes autores que pensaram o Direito Constitucional, como Francisco Campos, autor da Constituição de 1937 e teórico do regime fascista de Getúlio Vargas, e Carl Schmitt, teórico da Alemanha nazista.

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cosmovisão quíchua erigiu à norma constitucional como meio de trazer povos históricamente

alijados ao processo de decisão política do Estado.

O estudo foi realizado por meio de pesquisa bibliográfica como fonte primária.

Secudariamente utilizamos documentos estatísticos como meio de quantificação dos grupos

marginalizados, sejam eles oficiais ou elaborados pela sociedade civil.

2. O novo constitucionalismo latino-americano no contexto regional

O constitucionalismo que emergiu da independência dos países da América Latina se

tratou de um modelo conservador e perfeccionista, resultante de uma combinação de imposição

de valores morais e da autoridade estatal. Segundo Gargarella, a presença do conservadorismo

se tornou dominante a partir de 1815, assim que se dissipou o entusiasmo pós-revolucionário

(2005, p. 85).

Além disso, o projeto constitucional desse período se pautou por um perfeccionismo

moral, isto é, os indivíduos deveriam orientar suas vidas conforme as pautas determinadas pela

autoridade pública, encarregada da defesa da moralidade, mediante o uso de seu poder

coercitivo e assegurando que os indivíduos vivam de modo apropriado (GARGARELLA, 2005,

p. 87).

Esse caráter manifestamente manipulador do constitucionalismo latino-americano do

século XIX serviu às elites políticas e assegurou a manutenção do poder, inclusive para Igreja.

Trata-se de uma postura que parte do pressuposto de que o indivíduo não é capaz de escolher

os melhores valores a seguir por si só, por ser naturalmente violento e inculto, e estes valores

devem ser estabelecidos por uma classe política superior intelectualmente, remontando uma

ideia próxima ao Rei Filósofo platônico ou mesmo ao despotismo ilustrado.

A crescente exigência de homogeneização do Estado aliada a uma realidade social

altamente assimétrica construiu um cenário marcado pela instabilidade institucional no plano

político durante século XIX e, especialmente, o século XX. Regimes ditatoriais ascenderam e

caíram nesse período e, com isso, atos de brutalidade foram realizados sob o olhar atento do de

um Estado policial que não tolerava dissidências. Destaca-se a forte participação dos setores

militares, criando uma cultura de intervenção política das Forças Armadas que se arrastou até

os dias de hoje, sempre com forte caráter autoritário.

As transformações operadas na virada do século XX em todo o mundo rotularam esse

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momento histórico de “Era das Revoluções”6 e tal nome não lhe foi dado sem motivo. Em

particular, na América Latina, as duas Guerras Mundiais e a consequente ascensão dos Estados

Unidos como potência mundial ensejaram mudanças substanciais e seus desdobramentos

marcaram profundamente o destino do subcontinente.

Com o foco no atual momento da América Latina, Boaventura de Sousa Santos visualiza

quatro dimensões que caracterizam o contexto sócio-político-cultural do continente latino-

americano, que se referem ao caráter: i) das lutas; ii) da acumulação; iii) da hegemonia; e iv)

do debate civilizatório (SANTOS, 2010, p. 55 e segs.).

Para desenvolver cada uma dessas dimensões, Boaventura de Sousa Santos estabelece

uma dualidade antagônica e dialética. O principal traço característico diz respeito ao caráter das

lutas, contudo, embora possua um forte viés marxiano, o autor não se refere à luta de classes ao

avaliar as lutas no âmbito da América Latina. Trata-se, na verdade, do que chama de “lutas

ofensivas” e “lutas defensivas”, que coexistem e se tencionam.

As lutas ofensivas, segundo o autor, não têm necessariamente um potencial socialista,

mas sim a tomada do poder do Estado para realizar as mudanças importantes nas políticas

públicas (SANTOS, 2010, p. 55). Nesse cenário podemos inserir as ações sociais que serviram

de base para o novo constitucionalismo latino-americano, como a revolução bolivariana, que

proporcionou um avanço democrático no quadro institucional, mediante mecanismos de

democracia direta e participativa, bem como o controle dos recursos naturais e, naturalmente, a

organização dos movimentos indígenas como mola-mestra dessas transformações. Por outro

lado, as lutas defensivas figuram como elemento de contenção do poder repressivo do Estado

ou de poderes fáticos (SANTOS, 2010).

A segunda dimensão do contexto latino-americano que se destaca diz respeito à

coexistência entre acumulação ampliada e a acumulação primitiva (SANTOS, 2010, p. 57), na

qual Boaventura de Sousa Santos empresta forte conotação marxiana. Segundo ele, há uma

acumulação ampliada exercida pelo capital por meio dos mecanismos econômicos, amplamente

compreendidos. A acumulação primitiva se trata daquela pautada na apropriação, muitas vezes

ilegal e violenta. A relação entre uma e outra pode ser representada pela concepção de nação e

de imperialismo, este incorporando à frente da acumulação primitiva e aquela a noção de

acumulação ampliada. Em que se pese a relevância do embate entre imperialismo e soberania,

tema sempre presente na América Latina, cremos que não há propriamente uma contraposição

6 Título que dá nome à obra de Eric Hobsbawn, “A Era dos Extremos”, que estabelece o intervalo

entre 1914 e 1991 para delimitar o “breve século XX”.

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entre as acumulações ampliadas e primitivas, pois a lógica do sistema capitalista é a produção

de pobreza (MARSHALL, 1967) e, com isso, a natural necessidade de sempre haver um

mercado emergente, bases para o florescimento do imperialismo.

A terceira dimensão trata de uma ideia a algum tempo trabalhada por Boaventura de

Sousa Santos: o hegemônico e o contra-hegemônico. O novo constitucionalismo latino-

americano, conforme seu desenho institucional apresentado pretende claramente ser um uso

contra-hegemônico de um instrumento hegemônico, que é o constitucionalismo. Assim

compreende o autor sobre instrumentos hegemônicos:

Entiendo por instrumentos hegemónicos las instituciones desarrolladas en Europa a partir del siglo XVIII por la teoría política liberal con vista a garantizar la legitimidad y gobernabilidad del Estado de Derecho moderno en las sociedades capitalistas emergentes. (SANTOS, 2010,

p. 58)

Desse modo, o uso contra-hegemônico é operado pelo novo constitucionalismo por

meio da ampliação de mecanismos democráticos, de modo que as classes sociais possam se

apropriar dos instrumentos políticos – e não o capital, mediante sua extensa rede de mecanismos

legais ou ilegais, aproveitando-se do gargalo democrático existente na democracia liberal.

Por fim, a quarta dimensão do contexto latino-americano passa pelo debate civilizatório,

que se manifesta hoje por dualidades complexas alcançadas em universos culturais e políticos

bastante distintos (SANTOS, 2010, p. 60). O canal de comunicação político estabelecido com

o movimento indígena no âmbito do novo constitucionalismo latino-americano proporcionou

uma releitura política e sociológica do embate entre civilização e barbárie7: o que antes era visto

como bárbaro sob a óptica abissal hoje é reinterpretado à luz de novos paradigmas. Algumas

dessas dualidades podem ser representadas, segundo Boaventura de Sousa Santos por: recursos

naturais ou Pachamama; desenvolvimento ou Sumak Kawsay; Estado-nação ou Estado

plurinacional; descentralização/desconcentração ou autogoverno dos povos indígenas

7 Segundo definição contemporânea de barbárie de Francis Wolf, considera-se cultura bárbara (e,

portanto, uma cultura "incivilizada") aquela que não dispõe, em seu próprio cerne, de estruturas que lhe permitam admitir, assimilar ou reconhecer outra cultura - ou seja, a simples possibilidade de outra forma de humanidade (WOLF, 2004, p. 40-43). Segundo essa definição, podemos encontrar alguns focos de barbárie em uma Europa que se fecha cada vez mais ao estrangeiro e possibilita atentados, como o de Oslo, na Noruega, em 22 de julho de 2011, em que um norueguês ligado à extrema direita explodiu uma bomba contra um prédio do governo e abriu fogo contra a juventude do Partido Trabalhista, matando mais de 70 pessoas. No entanto, o tema barbárie já foi debatido anteriormente na América Latina por Domingo F. Sarmiento, em sua clássica obra “Vida de Juan Facundo Quiroga” ou “Civilización y Barbarie”, onde analisa as condições de governabilidade da América Latina por meio da vida de Juan Facundo, representado como típico caudilho que encarna.

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originários camponeses. Assim, grande importância dessa dimensão reside na refutação da tese

que seria inevitável um “choque de civilizações”8 e mostrar que um Estado plurinacional que

articule a coexistência de culturas antagônicas é possível.

Outro aspecto significativo do debate civilizatório é “la pertenencia mutua de

capitalismo y colonialismo en el código genético de la modernidad ocidental” (SANTOS, 2010,

p. 61). O capitalismo como um sistema típico de produção de pobreza e de exclusão social,

naturalmente necessita de um “mercado emergente” e de “regiões subdesenvolvidas” para

poder funcionar; ou, em outras palavras, necessita de “colônias econômicas” para que possa

maximizar a remuneração do capital.

Desse modo, podemos observar três marcos importantes para fins do nosso estudo: i) a

independência, quando emergiu certo sentimento de protonacionalidade, durante o século XIX;

ii) as lutas sociais travadas durante o século XX, que proporcionaram insurgente articulação

política de camadas sociais até então alijadas; iii) o desenvolvimento amadurecido dos

movimentos sociais, articulados suficientemente para reivindicar direitos e erigi-los a nível

constitucional, refundando o próprio Estado.

Indaga-se sobre precisão terminológica para designar um conjunto de constituições que

não representam sequer a metade dos países que compreendem a América Latina. No entanto,

mudando a perspectiva do seu sentido, o novo constitucionalismo latino-americano se

caracteriza por lançar ideias originais que surgem em uma região do planeta que historicamente

se alimentou do pensamento estrangeiro, sobretudo europeu e estadunidense. Talvez por esse

motivo, o novo constitucionalismo mereça ser denominado latino-americano.

Outra questão terminológica relevante se refere à diferença estabelecida por alguns

autores, como Ramiro Ávila Santamaría, entre neoconstitucionalismo latino-americano e

neoconstitucionalismo andino.

O primeiro se trata da recepção do neoconstitucionalismo construído pela doutrina

europeia e que tiveram um desenvolvimento próprio em nossa região, destacando-se a expansão

de direitos, o aprofundamento do controle de constitucionalidade, o redimensionamento do

Estado, o constitucionalismo econômico voltado para a igualdade e o hiper-presidencialismo

8 A terminologia é de autoria de Samuel Huntingon, em que desenvolve a tese de que algumas

relações intercivilizacionais têm maior tendência para o conflito do que outras. No nível micro, as linhas de fratura mais violentas estariam entre o Islã e seus vizinhos ortodoxos, hindus, africanos e cristãos ocidentais. No nível macro, a divisão predominante estaria entre o Ocidente e o resto, com os conflitos mais intensos ocorrendo entre as sociedades muçulmana e asiática, de um lado, e o Ocidente, do outro. Assim, o motor disso seria a interação de três fatores: a arrogância ocidental, a intolerância islâmica, a postura afirmativa sínica, proporcionando o inevitável choque de civilizações (HUNTINGTON, 2010).

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(SANTAMARÍA, 2011, p. 60). Não obstante isso, ainda se trata de um constitucionalismo

pensado a partir do Norte, como resposta às suas crises geradas pela tensão entre neoliberalismo

e estado de bem-estar.

O neoconstitucionalismo andino ou transformador, majoritariamente tratado como novo

constitucionalismo latino-americano, diz respeito à resposta ao problema da colonização

persistente no subcontinente por meio da dominação, da exploração e da discriminação. Além

disso, outros temas como a segregação de grupos minoritários e majoritários excluídos e

marginalizados em razão de sua relação de pertencimento a determinada etnia ou classe social.

Para superar, definitivamente, essa complexa problemática, aparece o novo

constitucionalismo latino-americano, que se propõe a resgatar a tradição revolucionária típica

dos momentos de ruptura política, tão frequentes na nossa história. Autores como Dalmo Dallari

nos permitem esclarecer as possibilidades de uma ação realmente transformadora, identificando

as duas formas de transformação do Estado: a primeira por meio da evolução ou da revolução,

por outro lado a segunda ocorre de modo progressivo no tempo, com a assimilação gradual de

ideias e costumes. A revolução se trata de uma mudança brusca, que remove os obstáculos que

impedem a livre circulação do pensamento e das opiniões (DALLARI, 2007, p. 142).

Desse modo, novo constitucionalismo latino-americano se trata de um produto

originário de movimentos sociais, que começaram a se articular e sofisticar na América Latina

a partir da primeira metade do século XX, em especial com a incorporação de ideias marxianas

na classe trabalhadora e pobre, que progressivamente impregnam os setores progressistas.

Assim, o caráter revolucionário do novo constitucionalismo latino-americano é revelado

pela tentativa de distribuição equitativa de direitos entre as classes sociais, forçando que as

elites tenham que ceder parte de seu poder em favor dos grupos marginalizados. O próximo

capítulo objetiva expor as teorias desenvolvidas na América Latina diante do cenário de

exclusão social.

3. Dependência e libertação na América Latina

No plano econômico, a crise de 1929 ensejou em uma reversão do coeficiente de

comércio exterior dos chamados “países industrializados” (FURTADO, 2007, p. 103), o que

resultou na queda de demanda por produtos primários e, com isso, um impacto catastrófico na

economia latino-americana. Como uma das regiões mais inseridas no sistema de divisão

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internacional do trabalho (FURTADO, 2007, p. 108) – justamente com a função de exportar

produtos primários – a falta de demanda criou a necessidade de diversificar a base econômica.

Essa necessidade fez nascer o desenvolvimentismo na região, que buscou superar o

domínio colonial e fazer surgir burguesias locais com anseio de encontrar seu espaço na

expansão do capitalismo mundial (SANTOS, 2000, p. 26), por meio de políticas econômicas

orientadas para o crescimento da produção industrial e da infraestrutura urbana, com

participação ativa do estado e o aumento do mercado consumidor.

No entanto, a política desenvolvimentista não conseguiu traduzir suas pretensões em

realidade. Somente a partir da década de 1960 se conseguiu estabelecer um esforço crítico para

compreender os obstáculos para um desenvolvimento iniciado em um momento que o mundo

estava já sob o domínio hegemônico das forças imperialistas. Esse esforço deu origem à teoria

da dependência, que visava dar um passo além do desenvolvimentismo para alcançar as bases

de uma efetiva descolonização.

A teoria da dependência reconheceu a situação histórica de subdesenvolvimento e sua

relação entre periferia e centro. Afastou-se a ideia de que o caminho para o desenvolvimento

deveria percorrer uma fase evolutiva, tal qual a dos países centrais. O processo capitalista, desde

seu início, estabeleceu dois tipos de relação: uma entre centro e periferia e outra entre

economias centrais. Assim, as economias latino-americanas se incorporaram ao sistema

capitalista, desde sua fase colonial como periferia, e nessa situação permaneceram após a

formação dos Estados nacionais (CARDOSO e FALETTO, 2011, p. 46). Isso significa que não

está em jogo etapas que estão à disposição para serem superadas por parte das economias

emergentes, mas sim uma relação de controle do desenvolvimento de outras economias, tendo

em vista que a relação entre centro e periferia tem como resultado a formação de zonas de

dependência ou mesmo de outros centos econômicos (idem, p. 47).

Além disso, outro obstáculo encontrado para o desenvolvimento foi a resistência das

elites latino-americanas em se desvencilharem das suas bases coloniais de poder. Isso porque

alguns pressupostos básicos do desenvolvimento não tiveram condições de possibilidade na

América Latina, como o alargamento do mercado de consumo interno, que necessariamente

implicaria em melhor distribuição de renda. No caso brasileiro, a exigência de reforma agrária

e investimentos para geração de base intelectual, científica e técnica capaz de sustentar as novas

bases econômicas ecoaram de modo muito negativo nas elites, pois se negavam em aceitar

pagar um preço que ameaçasse seu poder (SANTOS, 2000, p. 34). Exatamente por isso, a

alternativa mais conveniente encontrada pela burguesia foi a de se associar com o capital

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estrangeiro, que detinha o conhecimento necessário para promover o desenvolvimento.

Contudo, como efeito secundário, tal postura forjou o caminho da dependência.

Especificamente no caso brasileiro, a teoria do desenvolvimentismo, capitaneada por

Celso Furtado e pela CEPAL9, ganhou força no governo de Getúlio Vargas, mas desde logo

encontrou forte oposição por parte das elites. A intensa campanha pelo impeachment foi

resfriada pelo seu suicídio e criou forte mobilização popular que retardou os anseios da

burguesia, que desejava acabar com o modelo corporativista para abrir caminho com a entrada

do capital externo. O governo de Juscelino Kubitschek acabou por permitir a entrada de

investimentos externos, mas houve o compromisso para condicionar isso à construção de uma

indústria de base, que permitiria um desenvolvimento menos dependente.

Contudo, isso não foi suficiente para impedir que as elites permitissem o golpe de Estado

executado pelos militares em 1964, que inseriu o Brasil definitivamente no caminho da

dependência. No entanto, o cenário externo foi decisivo para seu êxito, na medida em que os

Estados Unidos, por meio da CIA, prestou assessoramento e influenciou decisivamente para a

ruptura democrática, garantindo o êxito de seus interesses no país e, assim, demonstrou como

a relação de poder hegemônico pode determinar a formação de zonas de subserviência.

Assim, a estrutura econômica dos países latino-americanos nasceu subordinada ao

mercado externo. Em uma situação de dominação e dependência, a formação superior acabou

introjetando esse modus operandi, limitando a produção intelectual à recepção do pensamento

europeu. Segundo o filósofo brasileiro Julio Cabrera , “hoje em dia a Europa não precisa perder

seu tempo rejeitando-nos, porque ela já tem representantes internos que desempenham a

contento esse papel excludente.” (CABRERA, 2011).

Somente no século XX, esse panorama passou a sofrer uma análise crítica mais

sofisticada. Nesse período, inciou-se um questionamento sobre as condições de possibilidade

de uma filosofia latino-americana. O marco dessa reflexão ocorreu por ocasião da Segunda

Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, chamada de Conferência de Medellín, de

1965, cujo tema foi “A Igreja na presente transformação da América Latina à luz do Concílio

Vaticano II”.

O evento buscou discutir ideias sobre a adequada aplicação do Concílio Vaticano II na

América Latina. Contudo, as consequências transbordou seus objetivos, pois proporcionou que

9 A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe foi criada em 1948 pelo Conselho

Econômico e Social das Nações Unidas e tem como objetivo promover a cooperação econômica na América Latina. Com a coordenação das ações da CEPAL, Celso Furtado e Raúl Prebisch se tornaram os grandes expoentes do pensamento desenvolvimentista.

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os intelectuais pensassem a partir da sua própria experiência e localidade.

Assim, sob a influência da teoria da dependência, que estava nesse momento se

propagando nas ciências sociais latino-americanas, desde um pondo de vista da teologia

política, constuiram-se diversas correntes de pensamento que covergiam na interpretação do

Evangélio como modo de libertação de injustiças e de condições sócio-políticas opressoras.

Trata-se aqui da chamada teologia da libertação.

Todo o ambiente criado em Medellín propiciou que se transportassem os

questionamentos da teologia política para a filosofia, nascendo a filosofia da libertação. Essa

mudança de campo de conhecimento não alterou seu objeto, que busca a recompreensão do

indivíduo como libertação humana integral e não meramente no plano sociológico ou

econômico, objeto da teoria da dependência. Assim, a “libertação” se opõe dialeticamente à

dependência e opressão (SCANNONE, 2009, p. 60).

A filosofia da libertação deu seguimento à reflexão intelectual realizada a partir da

década de 1960, sobre o papel da América Latina diante do mundo, iniciada com a teoria da

dependência e que se refletiu em outras áreas, como, por exemplo, com a pedagogia da

libertação, com Paulo Freire10.

Portanto, trata-se de um período intelectualmente fértil para a América Latina, onde pela

primeira vez pensou-se o mundo a partir de nossa localidade. O mesmo fizeram os pensadores

europeus com sua filosofia, ou seja, propuzeram soluções universais para problemas

localizados. O filósofo Pedro Novelli, professor da UNESP, assim escreveu sobre as condições

de possibilidade da filosofia:

O pensar filosófico se manifesta historicamente em determinadas

culturas e épocas. A filosofia se consolida aos poucos como opção de

alguns povos e, não é por acaso que ela pode ser identificada a certos

grupos. Os gregos ainda continuam sendo identificados com a filosofia,

mas na atualidade o endereço da filosofia passou para outros países.

França e Alemanha congregam as maiores referências na história da

filosofia. Oceania, África, Ásia e América não são sinônimos do pensar

filosófico, e, se a filosofia recebe nesses lugares algum destaque, cabe

indagar se não estão reproduzindo os temas e interesses filosóficos

europeus (NOVELLI, 2006).

Por conta dessas caracteríticas que contextualizam a filosofia da libertação, entendemos

10 Em sua obra “Pedagogia do Oprimido”, Paulo Freire estabelece a contradição entre opressores e

oprimidos, encontrando na libertação sua superação (FREIRE, 2011, p. 41), na mesma linha da filosofia da libertação.

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que se trata do marco filosófico do novo constitucionalismo latino-americano, que tem também

o objetivo de descolonizar, libertando todos aqueles que de algum modo encontram-se

oprimidos pelas assimetrias históricas conduzidas tanto no plano interno quanto no plano

internacional11.

Nesse esteio, podemos apontar que a filosofia da libertação iniciou-se com a resposta

do filósofo mexicano Leopoldo Zea à obra do peruano Augusto Salazar Bondy. A problemática

de Bondy centrou-se em perguntar se existe uma filosofia em “nuestra América”, levantando a

hipótese de que não existe uma filosofia hispanoamericana peculiar, genuína e original, ou seja,

com uma personalidade histórico-cultural própria, embora não negue a possibilidade disso

ocorrer no futuro (BONDY, 2006, p. 72-74 e 93-94).

Em resposta à obra de Bondy, Zea destaca de plano que a própria problemática de Bondy

contém um estranhamento, tendo vista que “quando nos perguntamos pela existência de uma

filosofia americana, fazemo-lo partindo do sentimento de uma diversidade, do fato de que nos

percebemos e sentimos distintos” (ZEA, 2005, p. 357). De modo, Zea quer dizer que a conexão

intelectual com os países centrais é tão forte que o simples fato de pensar autônomamente nos

causa estranhamento, afinal, o grego antigo não se perguntou se existe uma filosofia na Grécia,

tampouco o francês ou alemão fizeram.

A partir desse ponto, o mencionado autor não só afirma a produção filosófica na

América Latina, como também traça sua peculiaridade: ao contrário da filosofia europeia, que

perdeu sua humanidade ao longo do tempo, ao negar humanidade ao “outro”, como denuncia

Sartre (idem, p. 460), a filosofia latino-americana tem a peculiaridade de “subverter a história”

e “mudar uma ordem na qual a essência do homem foi menosprezada” (idem, p.485), lançando

o caminho no qual a filosofia da liberatação iria perfilhar.

Para compreender adequadamente o pensamento que subjaz tudo isso, é fundamental

conhecer a trajetória e o locus epistêmico dos principais autores. Para o estreito alcance desse

trabalho, elegeu-se Enrique Dussel como marco filosófico central, não obstante outros autores

trilharem caminhos convergentes, que serão abordados aqui.

Dussel nasceu em Mendoza na Argentina em 1934 e é uma das maiores referências do

11 O novo constitucionalismo também se projeta no plano internacional com propostas inovadoras. A

Constituição do Equador, de 2008, oferece parâmetros de proteção de direitos aos imigrantes bem superiores aos instrumentos internacionais. Assim estabelece seu art. 40 estabelece que “no se identificará ni se considerará a ningún ser humano como ilegal por su condición migratoria”. Apesar dos avanços, o Equador continua aplicando lei de imigração anterior ao documento constitucional, com esteio em outros valores, como soberania e segurança nacional, em descompasso com a atual ordem constitucional (COALICIÓN POR LAS MIGRACIONES Y EL REFUGIO, 2012).

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pensamento latino-americano na atualidade. Filósofo formado em 1957 pela Universidad

Nacional de Cuyo, doutor em filosofia pela Universidad Complutense de Madrid, em 1959.

Prossegue seus estudos na Europa também nas áreas de Teologia e História na Sorbonne,

passando pelo Oriente Médio, até regressar para a Argentina em 1968 para lecionar Ética na

Universidad Nacional de Cuyo. Logo, trata-se de um representante da cultura mestiça, de

formação latino-americana e europeia.

A partir desse período, começa a ver a América Latina “como uma totalidade a partir de

fora” (ZIMMERMANN, 1987, p. 28), sendo que suas publicações se notabilizaram pela

originalidade em formular uma Filosofia da Libertação para a América Latina, que estivesse

fora do paradigma da autoconsciência proposto pelo filósofo mexicano Leopoldo Zea, bem

como por se colocar como crítico da modernidade, ao menos daquela modernidade do norte da

Europa imposta como paradigma.

Por conta das hostilidades da ditadura militar na Argentina, é expulso da Universidad

Nacional de Cuyo em 1975 e, nesse mesmo ano, exila-se no México, aonde a maior parte das

suas obras são escritas.

Logo, podemos verificar que se trata de um autor que construiu sua formação acadêmica

do lado hegemônico do pensamento moderno, mas que tenta pensar o Outro a partir da crítica

de sua própria concepção de mundo.

Debruçando-se sobre as obras de Dussel, Roque Zimmermann estabeleceu a seguinte

periodização, para fins didáticos, da evolução do pensamento dusseliano: uma primeira fase

ontológica, que data de 1961 até 1969; segunda fase metafísica, de 1968 até 1976; e uma fase

mais concreta, de 1976 até os dias atuais, isto é, 1986, no caso (ZIMMERMANN, 1987, p. 31).

Na “fase ontológica”, Dussel tenta desconstruir todo o pensamento ontológico da

filosofia ocidental, conforme se poderá observar nos capítulos seguintes, revelando um ser

latino-americano oculto, oprimido, colonizado e ontologicamente dependente (idem, p. 31).

Em sua fase metafísica, o autor partiu de Ricoeur e Lévinas para compreender a

categoria de Exterioridade, para justamente tentar superar a ontologia dialética entre opressor e

oprimido, a partir da autoconsciência (idem, p. 32).

Por fim, em sua terceira fase, que se inicia a partir de seu exílio no México, começa a

ter importância a sua análise crítica de Marx (idem, p. 32). Contudo, vale dizer que essas fases

não se superpõem, mas são predominantes em cada momento, sendo certo que o autor não

deixou de lado os traços de cada uma dessas fases.

Por conta dessas características enunciadas, esse autor foi escolhido para servir de

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suporte teórico às críticas do pensamento moderno que pretendem ser aqui esboçadas.

Assim, para alcançar esse objetivo, o presente estudo se divide em três partes, que visam

abordar como o discurso colonial se oculta no pensamento moderno e a recente tentativa de

quebra do paradigma abissal nas novas constituições andinas.

A compreensão do fenômeno da moderidade ocidental passa pela ideia de que se trata

de um modo de vida que surgiu em determinada época e lugar, sendo posteriormente

internacionalizado, servindo de paradigma para qualquer povo que pretende obter alguma

relevância no cenário internacional.

A modernidade foi um caminho construído para que a razão atingisse uma pretensa

forma de compreensão totalizante do mundo. Descartes, Kant, Hegel e tantos outros

pavimentaram essa via de aceitação da razão. Segundo seus postulados, o ser humano, único

ser racional, deve ser o fim último de todas as ações para a satisfação das próprias necessidades.

Seu grande instrumento de ação passou a ser a ciência, ápice do pensamento racional, a grande

produtora da verdade universal.

A modernidade e a colonialidade são fenômenos, portanto, altamente mescláveis em

diversos momentos, em especial assim que a modernidade encontrou no capitalismo seu

formato padrão de apropriação. A modernidade elaborou uma forma de pensar lastreada na

racionalidade que levou às grandes descobertas e uma forma de apropriação da natureza para a

satisfação das necessidades humanas. O homem se tornou o centro do universo. Aníbal Quijano

assim descreve esse momento:

(...) foi elaborado e formailizado um modo de produzir conhecimento

que dava conta das necessidades cognitivas do capitalismo: a mediação,

a externalização (ou objectivação) do cognoscível em relação ao

conhecedor, para o controlo das relações dos indivíduos com a natureza

e entre aquelas em relação a esta, em especial a propriedade dos

recursos de produção. (QUIJANO, 2010, p. 74)

O capitalismo, ao corresponder como formato padrão de apropriação da modernidade,

estabelece um novo modo de relação do homem com o seu ambiente. Todas as coisas, sejam

elas humanas ou não, são passíveis de serem apropriadas, caso permitam a acumulação de

capital. Dessa forma, a colonização foi antes um empreendimento do recém formado Estado-

nação para a acumulação primária de capital.

Com uma crítica epistemológica da modernidade, Enrique Dussel objetiva reinserir

América Latina no mapa geopolítico mundial, bem como na história da filosofia, desde que

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essa região se tornou colônia de países semiperiféricos (Espanha e Portugal) que perderam sua

centralidade com a Revolução Industrial, deslocando-se o centro cultural do mediterrâneo (Sul

da Europa) para o Norte da Europa (DUSSEL, 2010b, p. 307).

Em síntese, o autor defende a ideia de que a modernidade filosófica não surgiu com

Descartes ou Espinosa e, consequentemente, no Centro-Norte da Europa, mas sim na Península

Ibérica, após a invasão da América, fato que implicou profundos questionamentos filosóficos,

não experimentados no resto da Europa.

Além de identificar esses elementos, surge a necessidade de mobilizar os atuais

instrumentos hegemônicos de um modo contra-hegemônico. Para isso, ao passo que o desafio

epistemológico passa por compreender uma teoria que considere a alteridade, o pesquisador

deve fazer um esforço epistêmico para uma abertura ao outro distinto e minimize os efeitos de

suas preconcepções.

4. O oprimido e os caminhos para um constitucionalismo da libertação

Conforme estudado anteriormente, o novo constitucionalismo latino-americano é

apresentado como proposta descolonizadora na medida em que se pauta em um modelo

alternativo, buscando justiça cultural, política, social e redistributiva, mediante convivência

plural entre os membros da sociedade e, além disso, possa romper com a relação de dependência

econômica e cultural historicamente estabelecida com os países centrais.

Essa relação de dependência, diagnosticada primeiramente com a teoria da dependência,

agravou-se com o endividamento gerado pelo desenvolvimentismo das ditaduras militares

latino-americanas, que se associou com o capital externo. Diante disso, o neoliberalismo surgiu

como proposta dos países centrais para a solução da dívida externa e do colapso das economias

da América Latina durante a década de 1980. As teses do neoliberalismo foram sintetizadas em

um documento que foi celebrado pelas instituições multilaterais sediadas em Washington. Por

isso ficou conhecido como Consenso de Washington12.

12 O “Consenso de Washington” foi elaborado pelo economista britânico John Williamson como um

conjunto de proposições para serem adotadas pelos países da América Latina. Williamson elaborou dez pontos centrais para a política econômica: “a) disciplina fiscal visando eliminar o déficit público; b) mudança das prioridades em relação às despesas públicas, eliminando subsídios e aumentando gastos com saúde e educação; c) reforma tributária, aumentando os impostos se isto for inevitável, mas “a base tributária deveria ser ampla e as taxas marginais deveriam ser moderadas”; d) as taxas de juros deveriam ser determinadas pelo mercado e positivas; e) a taxa de câmbio deveria ser também determinada pelo mercado, garantindo-se ao mesmo tempo em que fosse competitiva; f) o

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Contudo, o efeito da adoção dessas políticas por parte dos países latino-americanos foi

catastrófica, de modo que os problemas históricos foram agravados, gerando maior

concentração de renda, desemprego e, ao mesmo tempo, pouco crescimento econômico

(GUILLEN, 2012). Não sem motivo razoável, o preâmbulo da Constituição da Bolívia de 2009

expressamente declara que o Estado colonial, republicano e neoliberal encontra-se no

passado13.

Para reconstruir uma noção de Estado que seja adequada para a realidade cultural e

social, a Bolívia incorporou em seu texto constitucional de 2009 um fundamento ético que se

posiciona como alternativa ao individualismo e ao etnocentrismo do capitalismo hegemônico.

Trata-se do paradigma do “vivir bien”.

Assim, para que possamos realizar uma adequada análise comparativa entre dignidade

da pessoa humana e bem viver, devemos antes compreender o que é resgatado e incorporado

no constitucionalismo boliviano, conceber o próprio paradigma cultural. Com isso, traça-se

breves linhas sobre a cosmovisão do povo aimará, que serviu de referência na elaboração do

texto constitucional.

Segundo os dados oficiais obtidos por meio do último censo boliviano de 2001, a

população aimará representa o segundo maior contingente populacional dentre os povos

originários, ficando atrás apenas dos quíchuas (BOLÍVIA, 2001). Não obstante isso, a

Constituição de 2009 se refere à suma qamaña quando trata de bem viver, no idioma aimará, e

não sumak kawsay, em quíchua.

Em boa medida, isso se deve por causa do nacionalismo aimará que surgiu com mais

intensidade entre 1990 e 2000, onde o indigenismo surgiu como força política revolucionária

após as revoltas populares em face da política neoliberal adotada durante os anos de 1980 e

1990, que geraram demissões em massa e só fez aumentar a população envolvida do plantio da

coca. Com efeito, a pressão dos EUA para o combate a essa prática, nesse cenário conflituoso,

desaguou no forte movimento indigenista (LINS, 2009), que já vinha se articulando

intelectualmente ao longo do século XX, com a Guerra do Chaco e a Revolução de 1952.

Contudo, isso não explica uma demanda presente em todo o processo constituinte de 2008: a

nacionalidade aimará.

comércio deveria ser liberalizado e orientado para o exterior (não se atribui prioridade à liberalização dos fluxos de capitais); g) os investimentos diretos não deveriam sofrer restrições; h) as empresas públicas deveriam ser privatizadas; i) as atividades econômicas deveriam ser desreguladas; j) o direito de propriedade deve ser tornado mais seguro.” (BRESSER PEREIRA, 1991, p. 6).

13 “Dejamos en el pasado el Estado colonial, republicano y neoliberal.”

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Inicialmente, um dos momentos fundamentais para a construção de um povo aimará foi

a conquista inca e a integração dos diversos territórios pertencentes por populações de origem

aimará ao Império Inca (Tawantinsuyu em quíchua), aproximadamente em 1450. Nesse sentido,

grupos étnicos diferentes, mas similares, como “aullaga, ayaviri, cana, canchis, carangas,

charcas, chicha, larilari, lupacas, umasuyus, pacaje, pacasa y quillaca”, reuniram-se ao redor

do sentimento de uma etnia aimará e de seu território da administração imperial, chamado

Qullasuyu. (MAKARAN-KUBIS, 2009, p. 45-46).

O segundo momento fundamental aqui apresentado foi o impacto sofrido com a

conquista e dominação espanhola sobre a comunidade aimará e sua integração em 1532 ao

sistema colonial como Vice-Reinado do Peru. O perfil atual do povo aimará é aquele que sofreu

os efeitos da colonização, com a mita14, a reducción15, a evangelização, bem como a imposição

linguística. Com isso, para melhor administração colonial por parte dos espanhóis, os povos

indígenas foram reagrupados sob a mesma matriz linguística para facilitar a evangelização, que

a partir de determinado momento passou a usar o idioma nativo em suas missões. Assim,

mesmo diante da exploração brutal, os aimarás conseguiram manter certo grau de autonomia

no regime colonial.

O terceiro momento em destaque para a construção da identidade aimará é a

independência e, com isso, o surgimento da República da Bolívia. Esse período assistiu as

reformas liberais – que começaram a ser incorporadas ainda com a Constituição de Cádiz

(SALA VILA, 1992) – objetivaram que os indígenas absorvessem toda a matriz de pensamento

ocidental que se consagrou com a modernidade: o individualismo em detrimento do

corporativismo; a cidadania ao invés das castas; a civilização em prejuízo a “barbárie”. Assim,

essas reformas acabaram por contribuir para a desintegração da cultura aimará, na medida em

que afetaram o núcleo político, econômico e cultural mais importante: o ayllu16 (MAKARAN-

KUBIS, 2009, p. 47).

As teorias racistas da época terminaram por marginalizar os aimarás que, não obstante

14 O sistema de administração adotado pelos espanhóis recuperou, na exata medida do conveniente,

o modelo inca. Assim ocorreu com ayllus, que eram pequenas extensões de terra que eram administradas por famílias incas e dependiam de caciques (SALA VILA, 1992, p. 52). A mita, outrossim, resgatou o sistema de divisão do trabalho inca, tratando-se do trabalho compulsório, na forma de imposto comunal (SALA VILA, 1992, p. 59).

15 Populações assentadas em luares separados das cidades onde viviam os espanhóis, com finalidade eminentemente evangelizadora.

16 Trata-se do núcleo orgânico social familiar, onde se trabalha coletivamente e a propriedade é comum a todos os membros.

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tivessem passado a serem cidadãos, passaram a ser, também, pobres e, assim, membros de uma

classe social. Observamos, desse modo, uma tensão entre dois grupos sociais que se polarizam:

o criollo mestiço, que deseja expandir o latifúndio, e o indígena, que luta por defender seu

território, não obstante estar em jogo outros grupos sociais excluídos.

O quarto momento em destaque se trata dos eventos políticos que ocorreram ao longo

do século XX e se tornaram cruciais para a articulação recente da identidade aimará. Em

primeiro lugar, evidencia-se a Guerra do Chaco, que deflagrou conflito militar entre Bolívia e

Paraguai entre os anos de 1932 e 1935.

Enfrentando problemas políticos intensos com a deterioração da economia, devido aos

esforços da Bolívia para a Segunda Guerra Mundial em reduzir o preço do estanho, o governo

de Daniel Salamanca perdeu a maioria do congresso em 1º de julho de 1931. Após incidente

pequeno na fronteira com o Paraguai, Salamanca surpreende rompendo relações com o

Paraguai. Ao mesmo tempo, nesse período, alegando ameaçar comunistas, tentou aprovar

decreto que lhe daria plenos poderes, mas sua proposta foi rejeitada pelo Poder Legislativo.

Diante disso, Salamanca concentrou esforços na questão fronteiriça (ANDRADE, 2007, p. 31).

Segundo Everaldo Andrade, muitos autores indicam que a principal motivação da guerra se

trata dos supostos campos petrolíferos da região do Chaco. Contudo, essa afirmação não pode

ser feita descontextualizada do plano de fundo político e econômico (idem ibidem).

A guerra teve início em 1932 e o cenário desenhava uma vitória Boliviana, cuja

população e estrutura econômica eram superiores às do Paraguai. No entanto, o exército

boliviano era composto majoritariamente por indígenas que viviam nos altiplanos e a região do

Chaco apresentou um cenário completamente diferente, onde a resistência física seria decisiva.

Os paraguaios acostumados com as adversidades do território, superaram as capacidade

militares bolivianas. Como resultado, a paz foi celebrada em 14 de julho de 1935, com o triste

saldo para Bolívia de 65 mil vidas em soldados mortos e 240 mil quilômetros quadrados em

território.

Contudo, o fator decisivo da derrota boliviana foi a própria estrutura social. O Exército

reproduziu a segregação social no interior da caserna e no campo de batalha, onde os aimarás e

quíchuas eram constantemente humilhados pelos brancos e mestiços. Oficiais criollos gozavam

de regalias enquanto os soltados eram carentes de cuidados médicos mínimos.

Portanto, segundo Everaldo de Oliveira Andrade:

A guerra não significou uma integração do índio à nação; pelo

contrário, reafirmou toda a estrutura social de opressão, que ele já

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conhecia, e aprofundou ainda mais o fosso que separava a elite burguesa

branca da maioria indígena ou mestiça (idem, p. 33)

O primeiro partido político a surgir no pós-guerra foi o Partido Obrero Revolucionario

(POR), em 1935, que teria influência decisiva posteriormente, na Revolução de 1952 e na

consolidação da Central Obrera Boliviana (COB).

Em segundo lugar, temos os eventos que desaguam na Revolução de 1952, que

determinou mudanças substanciais na vida política e social da Bolívia, com a nacionalização

das minas de estanho, a reforma agrária, o voto universal e a reforma educacional

(MAKARAN-KUBIS, 2009). No entanto, a articulação política do movimento revolucionário

mais uma vez polarizou a sociedade boliviana, sendo as classes burguesas emergentes

representadas pelo Movimento Nacional Revolucionario (MNR), que desejavam implementar

transformações desde cima com apoio popular. A classe trabalhadora, por outro lado, foi

representada pela Central Obrera Boliviana (COB), com propostas de mudanças radicais do

sistema que marginalizava e oprimia (MAKARAN-KUBIS, 2009).

Assim, a crescente articulação do indigenismo na Bolívia desencadeou um movimento

de viés nacionalista aimará. Trata-se do movimento katarista, em homenagem a Tupac Katari17,

indígena aimará que liderou uma rebelião contra o Império Espanhol na província de Sicasica,

região do Alto Perú (MARINO, 2000). O katarismo se consolida a partir da década de 1970 e

é promovido pela intelectualidade aimará de formação universitária para recuperar uma

identidade étnica própria e, assim, se opor ao então nacionalismo homogeneizante do Estado

boliviano. Segundo Álvaro García Linera, para o Estado moderno “lo indio es pues, para la

racionalidad estatal, la purulencia social en proceso de displicente extirpación; es la muerte

del sentido histórico de lo válido” (GARCÍA LINERA, 2009, p. 252). Diríamos, em um sentido

dusseliano, que o índio é o não-ser.

Um dos grandes pensadores kataristas foi o filósofo aimará Fausto Reinaga, figura

central do movimento. Seu lema "Ni Cristo, ni Marx" convoca um retorno aos valores dos povos

originários e, segundo Makaran-Kubis, serve de “excelente ilustración del ‘despertar’ étnico

en Bolivia de los años setenta.” (MAKARAN-KUBIS, 2009).

Desse modo, a eleição de Evo Morales está inserida nesse contexto de nacionalismo

aimrá e do katarismo. Segundo Hoyêdo Nunes Lins, a repressão à produção de coca no final de

década de 1990 e início de 2000, foi o principal motor que revelou as novas lideranças, as

17 Trata-se de pseudônimo adotado, seu nome original era Julián Apaza.

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figuras de Evo Morales e de Felipe Quispe:

O repúdio ao combate à produção de coca se fortaleceu no governo de

Hugo Banzer Suárez (eleito em 1997), quando a repressão transformou-

se em "guerra" pela erradicação (Bolivia..., 1998). Entre os insurgentes

que, na segunda metade de 2000, bloqueavam estradas e lutavam contra

as forças de segurança, em Cochabamba e Oruro, figuravam

plantadores de coca exigindo a preservação de espaços para cultivo no

Chapare, a nordeste de Cochabamba, e o fim das iniciativas de extinção

em Yungas, ao norte de La Paz. À frente da sublevação perfilavam-se

Evo Morales e Felipe Quispe, este também uma liderança aimará,

defensor do "nacionalismo indigenista" (pertencente ao Movimiento

Indigenista Pachacutik). (LINS, 2009)

Diante dessas transformações ocorridas ao longo do tempo, não podemos imaginar que

o novo constitucionalismo latino-americano resgate uma cosmovisão inteiramente pré-colonial.

Não podemos esquecer que os indígenas do altiplano, vestidos com suas roupas típicas,

remontam a imposição de Carlos III, no final do século XVIII, bem como os trajes femininos e

penteado das índias, repartido ao meio, imposições do vice-rei Toledo. Mesmo a coca foi objeto

de intervenção na cultura indígena, deixando de ser um instrumento ritualístico para ser um

produto conveniente para o espanhóis (GALEANO, 2011, p. 73) No entanto, trata-se de

recuperar uma cultura que sofreu intensas transformações ao longo do tempo, sobretudo com o

processo de evangelização, mas foi preservada e hoje se revela como símbolo da mestiçagem e

da interculturalidade latino-americana.

Além disso, uma análise comparativa sobre a cosmovisão indígena no

constitucionalismo latino-americano deve levar em consideração as forças repressivas que

atuam em face de determinados grupos sociais. Abaixo podemos observar dados da CEPAL

sobre a parcela da população que se diz sofrer fazer parte de um grupo discriminado.

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Tabela 1: Porcentagem de população que afirma pertencer a um grupo discriminado

Países 2011

Argentina 17.3

Bolívia (Estado Plurinacional de) 34.3

Brasil 34.7

Chile 22.2

Colômbia 19.6

Costa Rica 17.8

Equador 16.4

El Salvador 6.9

Guatemala 34.8

Honduras 21.9

México 21.8

Nicarágua 17.2

Panamá 12.2

Paraguai 14.6

Peru 29.5

República Dominicana 17.7

Uruguai 15.8

Venezuela (República Bolivariana de) 12.7

Fonte: CEPALSAT – Base de dados 2012 | CEPAL.

No quadro acima podemos observar que, dentre os países da América Latina, a Bolívia

figura em terceiro lugar como país que possui maior porcentagem da população pertencente a

grupo discriminado, perdendo apenas para a Guatemala e para o Brasil. Desse modo, a

constituinte de 2008 se encontrava em um contexto de demanda por superação de desigualdades

e diante de forte movimento político articulado pelos grupos indígenas.

Assim, a partir desse momento, devemos estudar o conteúdo da cosmovisão que é

resgatado pelo constitucionalismo boliviano. Um dos maiores obstáculos para a traduzibilidade

entre o pensamento ocidental e aimará se trata do reducionismo cartesiano introjetado pelo

ocidente. O conceito de desenvolvimento é um exemplo. Para o povo aimará, o

desenvolvimento tem algo a ver com vida (Jaka), mas, ao mesmo tempo, vida é indissociável

do conceito de morte (Jiwa). O conceito ocidental de desenvolvimento, ao revés, não está

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subordinado ao princípio de complementaridade de opostos, mas pelo princípio de identidade.

Assim, desenvolvimento para o ocidente é simplesmente desenvolvimento (MEDINA, 2001, p.

33).

Desse modo, como em aimará não existem substantivos abstratos, apenas concretos,

mediante radicais enriquecidos de prefixos e sufixos, no qual se forma uma rede de

complementariedade (MEDINA, 2001, p. 34). Portanto, um dos grandes desafios os povos

originários é compreender a dimensão e o significado de desenvolvimento, que lhe é negado

pelo ocidente por serem justamente subdesenvolvidos. Exatamente para compreender isso que

ganha relevo a expressão qamaña.

5. Conclusão

Observamos incialmente os alicerces teóricos do novo constitucionalismo latino-

americano. Vimos que a democracia é expandida para instrumentos diretos, para permitir mais

legitimidade das decisões políticas. Ao mesmo tempo, o pluralismo surge como característica

marcante, permitindo o diálogo intercultural.

Ainda nesse ponto, contextualizamos a América Latina para demonstrar sua posição

periférica e dependente, sujeita à colonização nos dias atuais por meio da posição hegemônica

dos países centrais refletida na economia, na esfera militar e mesmo na imposição cultural. Em

seguida, partimos para análise do constitucionalismo latino-americano, sem dúvida

influenciado por essa projeção periférica.

Longe de apresentar conclusões cerradas sobre o problema levantado, o presente estudo

buscou aproximar a teoria constitucional encartada no novo constitucionalismo latino-

americano ao conjunto de teorias da libertação desenhadas em determinados campos do

conhecimento, particularmente na economia, na teologia, na filosofia e na educação.

Propomos, com isso, um marco filosófico para o novo constitucionalismo latino-

americano. Mapeando os pensamentos dos quais podemos apontar como essencialmente

originais do subcontinente, observamos a teoria da dependência na economia, a teologia da

libertação, no campo teológico, a filosofia da libertação na área filosófica, bem como a

pedagogia da libertação na área da educação. Assim, partimos da análise desse movimento de

libertação iniciado a partir da década de 1960 para apontar a filosofia da libertação e seu foco

no oprimido como sujeito histórico como a mais apta a lidar com temas como a descolonização,

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o pluralismo e o bem viver.

Contudo, outros problemas surgem em decorrência disso e devem ser enfrentados pela

sociedade. Com o pluralismo sendo o instrumento para levar dignidade a povos historicamente

alijados, como poderemos desenvolver um adequado espaço de traduzibilidade intercultural?

Observamos as dificuldades para compreensão da cultura quíchua sobre

desenvolvimento. A palavra qamaña surge, assim, como uma tentativa de compreensão desse

fenômeno, revelando uma visão holística de mundo e de integração entre espiritualidade e

materialidade.

No entanto, outras dificuldades revelam na medida em que o pluralismo avança. Haveria

possibilidade de convívio entre capitalismo e a cosmovisão quíchua encartada na Constituição

da Bolívia de 2009? O desenvolvimento da economia nos tempos atuais, que demanda um

crescimento econômico ilimitado, poderia se compatibilizar com o tratamento biocêntrico? São

questões relevantes e complexas que devem ser enfrentadas.

Portanto, o caminho trilhado pelo novo constitucionalismo latino-americano para

conferir dignidade ao oprimido e possibilidade de ser voz ativa na condução dos assuntos

relevantes da sociedade nos leva a pensar em um constitucionalismo da libertação, cuja fonte

filosófica advém de uma superação da ontologia da totalidade.

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A NOÇÃO DE JUSTIÇA SOCIAL EM NANCY FRASER E O ESTADO

PLURINACIONAL: Da Reificação Cultural pela Identidade Nacional ao Reconhecimento

Paritário do Outro

A CONCEPT OF SOCIAL JUSTICE IN STATE AND NANCY FRASER

PLURINATIONAL: From Cultural Reification the Joint National Identity Recognition of

the Other

Heleno Florindo da Silva1

Daury César Fabriz2

RESUMO: O presente artigo busca analisar a relação entre as construções teóricas de Nancy

Fraser acerca do reconhecimento, com os aspectos gerais do novo modelo de Estado

Plurinacional surgido na América Latina. Para tanto, analisaremos a concepção bidimensional de

justiça social em Nancy Fraser, bem como sua visão acerca da política do reconhecimento e os

problemas que o Estado Moderno Nacional, enquanto instituição reguladora da vida em

sociedade, apresenta na busca pela efetivação dessa justiça social. Após, verificaremos como o

Modelo Plurinacional de Estado pode responder aos problemas do Estado Moderno Nacional

apontados por Nancy Fraser, descrevendo, assim, como o nosso presente se configura como um

reflexo do nosso passado, ou seja, como a identidade nacional do Estado Nacional ainda está

presente no contexto periférico latino americano, e mais, como o novo Estado Plurinacional

latino americano pode ser visto como uma nova visão de Estado, que poderá romper com os

grilhões do Estado Nacional, rumo a uma justiça social efetiva, onde redistribuição e

reconhecimento sejam vistos como faces de uma mesma moeda.

ABSTRACT: This paper analyzes the relationship between the theoretical constructs of Nancy

1 Membro do BIOGEPE – Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão – da Faculdade de Direito de Vitória. Membro do

Grupo de Pesquisa Estado, Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória.

Bolsista da FAPES – Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Espírito Santo. Mestrando em Direitos e

Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória. Pós Graduado em Direito Público pelo Centro

Universitário Newton Paiva. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. Professor e Advogado. 2 Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenador do Programa de Pós-

Graduação Stritu Sensu em Direitos e Garantias Fundamentais (Mestrado) da Faculdade de Direito de Vitória.

Coordenador do Grupo de Pesquisa Estado, Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais. Presidente da

Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH). Professor e Advogado.

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Fraser on the recognition with the general aspects of the new model Plurinational State emerged

in Latin America. Therefore, we will analyze the two-dimensional conception of social justice in

Nancy Fraser, as well as its view of the politics of recognition and the problems the Modern

National State, while regulatory institution of society, shows that in the search for effective social

justice. After we check how the Model Plurinational State may respond to the problems of the

Modern National State appointed by Nancy Fraser, describing, as well as our present is

configured as a reflection of our past, ie, as the national identity of the nation state still is present

in peripheral Latin American context, and more, as the new Latin American Plurinational State

can be seen as a new vision of the state, which can break the shackles of the National State,

towards an effective social justice, where redistribution and recognition are viewed as sides of the

same coin.

PALAVRAS-CHAVE: Reconhecimento, Redistribuição, Paridade de Participação, Reificação

Cultural, Estado Plurinacional.

KEYWORDS: Recognition, Redistribution, Parity of Participation, Cultural Reification,

Plurinational State.

INTRODUÇÃO

O mundo mudou! Atualmente nosso tempo vem sendo marcado por profundas crises

sociais, econômicas e culturais que pensávamos nunca serem possíveis. Potências econômicas

vem perdendo espaço no “jogo econômico-financeiro” da globalização. Países de modernidade

tardia, tais como o Brasil, são considerados os “novos ricos”, a “bola da vez”, o que demonstra

como estamos insertos em tempos de transformações.

Diante desse mapa global, temos algo essencial, o problema do Estado Moderno

Nacional e seu modelo econômico – capitalismo – que já não corresponde mais aos anseios de

uma “aldeia global”, que está interligada por redes sociais virtuais, por prazeres tão fugazes

quanto necessários, por buscas respeito, de direitos, e mais, de reconhecimento.

Percebendo essa situação, bem como a existente e incessante busca do ser humano por

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reconhecimento, teóricos do mundo todo vêm desenvolvendo estudos para explicar essa situação-

problema. Dentre estes estudiosos podemos citar, para ilustrarmos a importância do tema, nomes

como o do canadense Charles Taylor, do alemão Axel Honneth e da norte americana Nancy

Fraser, cada qual percebendo, a sua maneira, a problemática da busca pelo reconhecimento.

Mas não só as teorias da busca por reconhecimento surgem no cenário atual como

explicações para o que estamos vivenciando. Novas acepções, modelos e, porque não, novos

paradigmas para o Estado, também ganham espaço na tentativa de desencobrirmos aquelas

pessoas alijadas da participação no mundo globalizado em que vivemos.

É nesse sentido, que destacaremos, no decorrer deste artigo, os novos modelos de Estado

surgidos na América Latina (Bolívia e Equador), denominados Plurinacionais, demonstrando em

que divergem do Estado Moderno, bem como em que medida podemos perceber nesse novo

modelo uma resposta às crises, principalmente àquelas insertas ao reconhecimento, que hoje

levam o Estado, nos moldes em que fora gestado a mais de 500 anos, à beira de um precipício.

Nós somos seres humanos, seres culturais, sociais, e em decorrência desse fato sempre

atuamos em nosso contexto social, na tentativa de sermos reconhecidos como sujeitos sociais,

como sujeitos capazes de participar ativamente de uma sociedade.

Será, portanto, nesse contexto de busca por reconhecimento, de busca por justiça social e

a partir das discussões trazidas acima, que buscaremos resposta ao seguinte problema: é possível

relacionarmos as linhas gerais da teoria de Nancy Fraser, referentes a essa problemática, àquelas

do modelo de Estado Plurinacional, buscando, a partir daí, proporcionar a todos não só o

reconhecimento em relação a cultura dominante, mas também, uma participação paritária da vida

em sociedade, sem que se exclua ou extermine determinadas culturas “submissas”?

A partir de então, para buscarmos resposta ao problema lançado acima, num primeiro

momento, traremos à discussão as construções de Fraser acerca do reconhecimento – e da

redistribuição – apontando suas divergências com outros teóricos, em especial, as que têm com

Axel Honneth, demonstrando como sua leitura percebe o modelo de Estado Moderno em que

vivemos, e mais, quais os principais elementos caracterizadores de sua teoria.

Faremos, em seguida, uma análise do modelo de Estado que surge na América do Sul,

denominado Plurinacional, apontando suas bases, bem como suas distinções em face do Estado

Moderno em que estamos inseridos, e mais, como essa construção pode alterar as relações entre

as pessoas a nível local, regional, nacional e internacional, resolvendo, assim, os problemas que

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Fraser destaca em relação ao reconhecimento no Estado Moderno Nacional.

Portanto, em tempos onde o reconhecimento vem sendo estudado por teóricos de todo o

mundo, bem como a construção de novas acepções para a figura do Estado põem em cheque os

elementos caracterizadores do Estado Moderno, de cunho nacional, em que vivemos, o presente

trabalho, a partir de uma leitura múltipla dialética, tem a função de colaborar com os estudos de

ambos, demonstrando como poderemos construir, a partir da junção dos problemas e soluções

levantados por Fraser em seus estudos sobre o reconhecimento, com as diretrizes do Estado

Plurinacional, uma concepção de paridade de participação que nos possibilite, nos termos

destacados por Fraser, alcançar, realmente, uma justiça social inclusiva e transformativa.

1 – A CONCEPÇÃO BIDIMENSIONAL DE JUSTIÇA SOCIAL EM NANCY FRASER: A

Política do Reconhecimento e os Problemas do Estado Moderno Nacional em que Vivemos

Para compreendermos como Nancy Fraser constrói seu posicionamento acerca do

reconhecimento fixaremos, neste ponto, algumas premissas básicas em seus estudos, tais como, a

ideia de paridade de participação, reificação cultural, a visão bidimensional de justiça social, que

compreende as ideias de redistribuição e de reconhecimento, dentre outros aspectos que por

ventura exporemos em nossa construção.

Contudo, antes de visualizarmos, em si, os conceitos de Nancy Fraser acerca de sua

visão do reconhecimento, devemos destacar que a referida autora aparece como ícone desse

assunto, juntamente com outros grandes nomes da atualidade – Charles Taylor3 e Axel Honneth

4

– e mais, que ela constrói seus entendimentos acerca do reconhecimento de uma forma peculiar.

Para Fraser (2008, p. 168-169) não há possibilidade de apreendermos a noção pura de

3 Neste trabalho não iremos abordar as construções teóricas de Charles Taylor acerca do reconhecimento. No entanto,

para maiores esclarecimentos acerca de seus posicionamentos sobre o tema aqui discutido, ver TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. 3ªed. São Paulo: Editora Loyola, 2011; TAYLOR, Charles.

Argumentos Filosóficos. São Paulo: Editora Loyola, 2000. Cap. 12, p. 241-274. 4 Em relação a Axel Honneth, o presente estudo trará abordagens feitas por Nancy Fraser acerca de seu estudo, haja

vista neste artigo buscarmos expor, de forma mais detalhada, as características principais do pensamento desta, de

modo que para um maior aprofundamento acerca da visão do alemão Axel Honneth sobre a problemática do

reconhecimento, ver HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ªed..

Trad. por REPA, Luiz. São Paulo: Editora 34, 2009; MATTOS, Patrícia. O Reconhecimento, entre a Justiça e a Identidade. In.: Revista Lua Nova, nº63, 2004 e LUCAS, Doglas Cesar e OBERTO, Leonice Cadore.

Redistribuição versus Reconhecimento. Apontamentos sobre o debate entre Nancy Fraser e Axel Honneth. In.:

Revista Direitos Culturais. Santo Ângelo. Vol. 5. nº8. jan./jun. 2010, p. 27-40.

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reconhecimento se não a aliarmos àquela referente a redistribuição, traduzindo tal perspectiva

naquilo que a autora entende como sendo justiça social.

A partir de então, poderemos perceber que sua construção teórica nasce da visão que tem

do tempo em que vivemos, ou seja, Nancy Fraser aponta que a sociedade contemporânea está

perto de uma importante transformação social, onde a globalização exerce um papel fundamental,

haja vista o fato da ordem internacional, dominada por Estados soberanos, começar a se

desgastar, ou seja, aos poucos está sendo substituída por uma ordem globalizada, que reduzirá a

capacidade de governação dos Estados Nacionais, afinal, esses já não correspondem mais aos

anseios da sociedade do conhecimento em que estamos inseridos (FRASER, 2002).

Diante do cenário percebido pela autora, podemos concluir que a globalização está

gerando um novo modus de reivindicação política, que podemos denominar de luta pelo

reconhecimento. De um lado essa busca pelo reconhecimento pode ver vista como uma forma de

ampliarmos nosso entendimento acerca da noção de justiça social, que passará a compreender

não só questões inerentes a representação e a identidade mas, também, questões acerca do

problema da diferença.

Sob esta perspectiva, temos de destacar que nas palavras de Fraser (2007b, p. 298) a

mudança da redistribuição para o reconhecimento, “é parte de uma transformação histórica de

maior escala”, que está associada, segundo ela, “à globalização”, seja se a percebemos sob a ótica

da queda do comunismo, seja se a olharmos à luz da ascensão do neoliberalismo enquanto

modelo de governo no plano político-econômico.

De outro lado, não podemos concluir que esse cenário de busca pelo reconhecimento nos

proporcionará um aprofundamento das questões acerca da redistribuição, ou seja, a busca pelo

reconhecimento poderá, por si só – se visualizada de forma estanque ao problema da

redistribuição – proporcionar um desenvolvimento desigual para a sociedade em que vivemos.

Fraser, a partir de então, (2002, p. 10) nos demonstra problemas ou riscos, bem como

soluções que podem ser percebidas como inerentes ao atual cenário da globalização,

principalmente em se tratando do caráter identitário e do reconhecimento social, e mais, frente

àquilo que ela destaca como substituição de lutas – da redistribuição ao reconhecimento – senão

vejamos

o risco da substituição das lutas por redistribuição pelas lutas por reconhecimento (…). Para neutralizar esse risco, proporei uma análise da justiça social. (…) o risco da atual centralidade da política cultural (…). Para que este risco seja neutralizado, proponho

uma concepção não identitária do reconhecimento adequada à globalização (…) o risco

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da globalização estar a subverter as capacidades do Estado para reparar os tipos de

injustiça. A fim de neutralizar este risco, proporei uma concepção múltipla de soberania

que descentre o enquadramento nacional. Em cada um dos casos, as concepções

propostas assentam em potencialidades emancipatórias que estão a despontar na atual

constelação.

Assim, se analisarmos o pensamento de Nancy Fraser, a partir dessas primeiras

conclusões que autora nos coloca, perceberemos que as angústias acerca daquilo que ela traz

como justiça social estão separadas em duas frentes de um mesmo lado da batalha, ou seja, por

uma perspectiva, temos a busca pela redistribuição, que almejam uma distribuição mais

igualitária dos recursos e bens que possuímos enquanto grupo social e, por outro lado,

percebemos as políticas de reconhecimento, tais como aquelas inerentes às minorias étnicas,

raciais, sexuais ou de gênero.

Fraser (2008, p.167-170) nos aponta, a partir das premissas acima, que um dos grandes

problemas trazidos pela globalização à justiça social é o fenômeno da troca de lutas – da

redistribuição de renda ao reconhecimento –, sendo que para ela, não deveríamos nos restringir,

na busca pela justiça social, a uma dessas duas perspectivas, haja vista o fato de que a justiça

requer tanto redistribuição, quanto reconhecimento. É a partir desse ponto que a citada autora

constrói sua visão bidimensional da justiça social.

Ressalta-se neste ponto – quando Fraser reconhece o problema do reconhecimento como

sendo inerente às questões da justiça social – que a citada autora diverge de outros expoentes –

Taylor e Honneth – da teoria do reconhecimento, haja vista o fato desses últimos ligarem a ideia

de reconhecimento com as noções de ética, conforme depreenderemos abaixo.

A partir disso, Moreira (2010, p. 46) destaca que na era pós-socialista, conforme

apregoado por Fraser, há um processo de transformação da sociedade, configurado pela troca

gradativa das lutas por redistribuição pelas lutas por reconhecimento, ou seja, “os conflitos de

classe são substituídos, nas três últimas décadas, por conflitos de status social (termo utilizado

pela autora para se referir à condição de reconhecido), advindos da dominação cultural”.

Desta feita, se o reconhecimento e a redistribuição, enquanto faces de uma mesma

moeda – justiça social –, são os remédios para alcançarmos respostas aos problemas de nosso

tempo, antes de continuarmos, temos de destacar, a contrário sensu, as injustiças que são

percebidas por Fraser em nosso contexto, reconhecidas, assim, como o mal a ser combatido.

Aqui, através de uma distinção reconhecida pela própria autora como meramente

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analítica, a primeira injustiça que podemos perceber, é aquela referente a visão sócio econômica –

percebida a partir de uma estrutura política econômica da sociedade em que vivemos – que gera

problemas, tais como: a exploração da mão de obra, a marginalização econômica e a privação de

um padrão material mínimo de vida. A segunda injustiça que podemos perceber em Fraser, é

aquela referente ao perfil simbólico e cultural, que está atrelada aos “padrões sociais” de

representação, interpretação e comunicação, ou seja, uma injusta de onde podemos retirar, por

exemplo, problemas relacionados a dominação cultural, ao não reconhecimento e ao desrespeito

(MOREIRA, 2010, p. 48-49).

Para combater tais injustiças, Fraser destaca a necessidade de efetivarmos, como visto

acima, uma justiça social que não seja arraigada de forma isolada, em mecanismos de combate a

má distribuição de bens e valores, ou naqueles inerentes ao combate do não reconhecimento, o

que poderia gerar um eclipse de uma busca pela outra, mas sim, em mecanismos que nos

possibilite perceber, de forma conjunta, tanto a satisfação da redistribuição, quanto do

reconhecimento.

Um desses mecanismos é percebido pela autora com o desígnio de princípio da paridade

de participação, que surge como meio de interação entre os vários sujeitos sociais, sem que um

venha a se sobrepor ao outro, ou seja,

a justiça requer arranjos sociais que permitam a todos os membros (adultos) da sociedade

interagir entre si como pares. São necessárias pelo menos duas condições para que a

paridade participativa seja possível. Primeiro, deve haver uma distribuição de recursos

materiais que garanta a independência e “vos” dos participantes. (…) a segunda condição requer que os padrões institucionalizados de valor cultural exprimam igual respeito por

todos os participantes e garantam iguais oportunidades para alcançar a consideração

social (FRASER, 2002, p. 13).

Assim, podemos reconhecer que o princípio da paridade de participação pode ser visto

como o objetivo principal da teoria da justiça em Fraser, haja vista esta ideia ser de melhor

compreensão e concretização, do que aquela desenvolvida por Honneth – ideia de autorrealização

– e mais, por possibilitar que saiamos da análise do reconhecimento a partir de uma perspectiva,

meramente, ética.

E mais, para que essa noção de paridade de participação efetivamente ocorra, podemos

extrair, do pensamento de Fraser, dois pressupostos básicos, quais sejam: a remoção dos

obstáculos para uma participação social completa, bem como o desmantelamento dos obstáculos

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culturais que foram institucionalizados ao longo do tempo (PINTO, 2008, p. 41) – o que,

conforme demonstraremos no decorrer deste trabalho, pode ocorrer através de um novo modelo

de Estado que venha substituir o modelo atual, ou seja, um “novo” Estado capaz de ser

construído a partir tanto das noções de redistribuição, quanto de reconhecimento, de modo a

desconstruir as institucionalizações culturais do, ainda soberano, Estado Nacional.

Temos de destacar ainda – a partir do dito acima – uma das principais divergências entre

Honneth e Fraser, qual seja: a construção ética, segundo Fraser, da teoria do reconhecimento de

Honneth, que separa de forma esquizofrênica, a filosofia moral. Segundo a citada autora,

Honneth separa a noção de moralität kantiana (o correto) – ligada a ideia de distribuição – da

noção de reconhecimento (o bem) – sittlichkeit (ética) hegeliana –, o que para ela não deve ser o

correto, sob pena de sobrepormos as ideias de reconhecimento sobre as de redistribuição,

causando, assim, um eclipse da redistribuição pelo reconhecimento (COUTINHO, 2012, p. 16).

Se por um lado Honneth, seguindo a tradição hegeliana, apregoa que o reconhecimento

intersubjetivo é uma condição essencial para o desenvolvimento de uma identidade –

reconhecimento das identidades – Fraser, ao seu turno, não vê o reconhecimento como uma

categoria central da sociologia e psicologia moral, onde a ideia de reconhecimento está ligada a

noção de autorrealização individual, mas sim, o enxerga como sendo uma questão de justiça, ou

seja, o reconhecimento passa a ser uma espécie de padrão universal de justiça, aceito por todos,

partindo da ideia de que todos os seres humanos possuem igual valor (MATTOS, 2004, p. 150).

Ao construir a ideia de redistribuição e reconhecimento como sendo dimensões de uma

mesma justiça, e mais, dessas acepções como mecanismos irredutíveis um ao outro, submetendo-

os àquilo que chama de princípio da paridade de participação, como visto acima, podemos

concluir que Fraser posiciona ambos na perspectiva da moralidade, ou seja, a autora evita, assim,

voltar-se à ética5.

Outra construção – já mencionada acima – de Fraser, é em relação ao reconhecimento

enquanto questão de status social, ou seja, o que nos exige reconhecimento não é uma questão de

identidade específica de um indivíduo ou grupo, mas sim, a condição necessária para os membros

desse grupo serem tidos como parceiros integrais durante a interação social.

Conclui Fraser (2007a, p. 107), portanto, que “o não reconhecimento,

5 Para maiores esclarecimentos acerca do distanciamento que Nancy Fraser propõe no tocante a análise do

reconhecimento, ver FRASER, Nancy. Reconhecimento sem Ética?. In.: Revista Lua Nova, São Paulo. n.70. pp.

101-138. 2007.

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consequentemente, não significa depreciação e deformação da identidade de grupo. Ao contrário,

ele significa subordinação social no sentido de ser privado de participar como igual na vida

social”.

Como podermos perceber, nesse modelo de status criado por Fraser, para verificarmos a

ocorrência do reconhecimento, temos de ter como premissa base, o seu contrário: o não

reconhecimento. Essa negativa ao reconhecimento será visível no momento em que as

instituições sociais, tais como: o Estado, estruturarem a interação social nos moldes de normas

culturais que sirvam para impedir a paridade de participação, dando origem àquilo que a citada

autora chama de reificação cultural.

Temos de destacar, neste ponto, que a abordagem do reconhecimento, enquanto uma das

faces de uma mesma moeda – justiça social –, criada por Fraser, vai de encontro com o modelo

padrão da política de reconhecimento, qual seja, o modelo da identidade.

Em relação a esse modelo da identidade, diagnosticado por Fraser como um dos

problemas para se alcançar a justiça social, devemos destacar que, segundo ela, aquele se

caracteriza por dar azo a uma política da identidade, o que para Fraser, não parece ser o caminho

mais correto, haja vista essa identidade criada enquanto modelo, ser um padrão de aceitação ou

não do outro, reificando, assim, a cultura dominante, em desfavor da cultura submissa.

Partindo dessas preocupações, ou seja, que o modelo de identidade oriundo dessa

política padronizada de reconhecimento, podemos perceber que Fraser destaca a violência

cultural que essa forma de reconhecimento pode gerar, de modo que para ela

(…) o modelo reifica a cultura. Ignorando as interações transculturais, ele trata as culturas como profundamente definidas, separadas e não interativas, como se fosse óbvio

onde uma termina e outra começa. Como resultado, ele tende a promover o separatismo e

a enclausurar os grupos ao invés de fomentar interações entre eles (FRASER, 2007a,

p.107).

É a partir dessa percepção de reconhecimento que Fraser constrói sua visão de

reconhecimento enquanto status, o que nos possibilita, diferentemente das visões de Honneth e

Charles Taylor, examinar os padrões institucionalizados de valoração cultural em função de seus

efeitos sobre a posição relativa dos atores sociais, ou seja, se, e quando, esses padrões culturais,

institucionalizados, possibilitam aos vários atores sociais constituírem-se como parceiros atuantes

no seio social enquanto seres iguais (FRASER, 2007a, p. 108).

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Será a partir dessas discussões acerca da funcionalidade do Estado Moderno Nacional,

em tempos de capitalismo globalizado, em relação as políticas do reconhecimento, bem como o

problema da padronização de um modus vivendi, ou seja, de uma cultura dominante, que deve ser

percebida enquanto a correta, descaracterizando as demais, que buscaremos, no ponto seguinte,

verificar como o “novo” modelo de Estado, surgido em terras latino americanas, pode ser o

começo de um rompimento com o modelo nacional de Estado, que nasceu, se concretizou e ainda

hoje representa uma forma de violação, pela cultura dominante, do modo de vida daquelas

culturas que ficam a margem da sociedade, ou daquelas que nem sequer são reconhecidas

enquanto cultura.

Acerca do referido fenômeno globalizante em que vivemos, temos de destacar as

palavras de Fraser (2002, p. 17) acerca das ameaças que a globalização representa para o Estado

Nacional, haja vista o fato de em nossos dias não ser mais possível que admitamos esse modelo

de Estado como sendo a única instância de atuação e regulação da justiça social, haja vista o

Estado Nacional não dar conta, nos moldes em que fora gestado e que ainda permanece, de

separar quais os temas são nacionais, quais são locais, regionais ou globais, padronizando, assim,

o que será ou não reconhecido.

É preciso termos uma visão múltipla, que venha descentrar as institucionalizações do

Estado Nacional, ou seja, é preciso que saibamos respeitar e concretizar direitos para todos,

independentemente se pertencem a essa ou aquela cultura, a essa ou aquela identidade, a esse ou

aquele status social. Portanto, abre-se espaço agora para discutirmos como o Estado Plurincional

é capaz de vencer os problemas de reconhecimento, apresentados por Fraser enquanto reificação

cultural, do Estado Moderno Nacional.

2. – A ESPERANÇA QUE NASCE NA AMÉRICA DO SUL: De como o Modelo

Plurinacional de Estado Responde aos Problemas do Estado Moderno Nacional Apontados

por Nancy Fraser

Ao falarmos de reconhecimento, bem como de justiça social, reificação cultural,

paridade de participação, não podemos nos esquecer de que os apontamentos trazidos por Nancy

Fraser em sua obra, não podem ser percebidos, separadamente, à questão da análise da

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importância que o Estado possui na concretização ou afastamento dessas premissas lançadas pela

autora.

É importantíssimo, então, discutirmos a presença do Estado como um dos principais

componentes para que alcancemos o reconhecimento, a redistribuição, a paridade de participação,

ou seja, uma verdadeira justiça social.

Podemos perceber que, tanto nas construções de Nancy Fraser, quanto nas construções

filosófico doutrinárias de Axel Honneth – principal opositor das ideias de Fraser, e que poderá ser

melhor estudado em outro trabalho – a figura do Estado caracterizada ali é aquela do Estado

Nacional – moderno – principalmente o modelo de Estado Nacional fincado nos países do

hemisfério norte (PINTO, 2008, p. 48).

Se, ao contrário, analisarmos as discussões acerca do reconhecimento e, desse modo, da

justiça social trazida por Fraser, em contextos de extrema pobreza, como a grande maioria dos

países do sul global, poderemos extrair daí que o reconhecimento ficará adstrito ao

reconhecimento externo, ou seja, o outro, nacionalmente identificado enquanto habitante do

norte, reconhecerá o sulista sem que daí, necessariamente, se construa uma relação de paridade.

Perceberemos, a partir de então, que o modelo de Estado Moderno Nacional, imposto

aos países de modernidade tardia, como o caso do Brasil, é fonte – a partir do momento em que

se possibilita a um determinado status social ser tido como o espelho para todas as espécies de

reconhecimento que daí partirem – das dificuldades existentes para que alcancemos, realmente,

uma justiça social. E mais, como nos adverte Pinto (2008, p. 50)

Se o Estado, tal qual está proposto, é o responsável por grande parte das injustiças, este

mesmo Estado só pode ser o executor das tarefas a ele atribuídas por Fraser, se for

transformado em agente de políticas socialmente justas. (…). É no embate entre o sistema e seus elementos exteriores que se poderá reconstruir o Estado.

Após essas primeiras incursões ao diálogo proposto, passaremos à analise do Moderno

Estado Nacional e as transformações inauguradas pelo novo constitucionalismo latino americano

acerca do Estado Plurinacional, ou seja, destacaremos, a partir de agora, como se deu, ao longo

dos séculos, a formação do modelo de Estado em que estamos inseridos, bem como o fato desse

modelo hoje estar chegando “à beira do precipício”.

Para tanto, nos utilizaremos – haja vista as características do presente trabalho – do

aspecto que julgamos ser mais relevante para a caracterização do Estado Moderno Nacional, qual

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seja: a questão da identidade nacional e seus desdobramentos – a relação entre o nós e o eles

surgida na busca dessa identidade nacional, como o fato da política da identidade nacional ter

representado um gigantesco massacre dos povos originários dos países periféricos, em especial,

dos latino americanos.

Os problemas aludidos – acerca da construção de uma identidade nacional – estão para o

Estado Nacional, assim como a construção do capitalismo, enquanto modelo econômico-

financeiro, está para o Estado Liberal, ou seja, iremos perceber a partir de então como a busca e a

formação de uma identidade nacional foi essencial para o surgimento do Estado enquanto

instituição moderna, em substituição ao modelo feudal de agrupamento social. E mais, como a

identidade nacional foi utilizada pelo poder soberano do Estado, com o objetivo de construir uma

sociedade separada não só entre o Nós e o Eles/Outros, mas também, entre aqueles e os

considerados inexistentes.

Nessa caminhada, buscaremos um marco para o surgimento do paradigma da

Modernidade – devemos frisar aqui que a história não é, e não deveria ser, vista de forma linear e

estanque, ou seja, acontecimentos históricos, tais como o surgimento da Modernidade, bem como

de suas instituições sociais, tais como o Estado, não possuem hora, dia, mês ou ano exatos, mas,

ao contrário, são frutos de revoluções, de décadas de avanços e retrocessos em direção ao novo –

o ano de 14926, haja vista este ano ter marcado o “descobrimento” das Américas por Colombo,

bem como a queda de Granada, última cidade muçulmana da Europa medieval.

Sob tal perspectiva, percebemos em Dussel (1994, p. 11) que Espanha e Portugal são os

primeiros modelos de Estados que surgem com a modernidade no fim do séc. XV, e mais, que a

partir do momento em que espanhóis e portugueses se lançam ao mar, as primeiras periferias vão

sendo formadas.

Há que ressaltar, antes de continuarmos, o fato de que em Dussel é possível realizar uma

análise não europeizada da história humana, em especial, acerca da origem da principal

instituição moderna: o Estado. Também perceberemos que, sua desvinculação com o

conhecimento da metrópole, nos possibilita perceber como pensadores, do cabedal de Hegel,

entendiam a Europa – reconhecida como o fim de toda e qualquer racionalidade. Assim, tudo o

6 Em que pesem as discussões históricas e doutrinárias acerca do termo inicial do Estado, enquanto instituição

moderna, adotamos nesse trabalho o mesmo entendimento de José Luiz Quadros Magalhães, conforme artigo acerca

das discussões travadas entre o culturalismo e o universalismo diante do Estado Plurinacional. MAGALHÃES, José

Luiz Quadros de. Culturalismo e Universalismo diante do Estado Plurinacional. In: Revista Mestrado em Direito

– UNIFIEO – Osasco, ano 10, nº2. 2010a. p. 201-219.

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que há de bom em se tratando de filosofia e teorias, em especial, àquelas ínsitas ao Direito,

partem da Europa Ocidental, seja da Grécia, Alemanha, Itália ou França.

A partir daí, a “conquista” das Américas pode ser caracterizada como algo de extrema

importância na construção da subjetividade europeia como sendo o centro e o fim de toda a

história mundial, seja porque através da exploração dos recursos que aqui existiam, seja pela

utilização dessas terras como mecanismos de enriquecimento dos pobres e miseráveis europeus –

aqueles que, embora não tido como Nós, eram reconhecidos enquanto Outros, um “privilégio”

que os habitantes originários das Américas não possuíam, conforme veremos abaixo.

Nesta linha, percebemos que a partir do momento em que o Europeu coloca seus pés em

solo Americano dá-se início a uma série de atentados contra os habitantes originários, ou seja, tais

pessoas, não reconhecidas como humanas, eram passíveis de quaisquer tipos de atrocidades, seja

frente a sua cultura, seja frente ao seu corpo e, na grande maioria das vezes, contra sua vida.

Contudo, ao perceber a necessidade, bem como a possibilidade – através do poderio

bélico – de se utilizar os povos que aqui viviam como instrumentos de exploração de suas terras –

coloniais – ao benefício da metrópole, deu-se a partida para a formação de uma identidade

nacional, a fim de que as várias culturas, diferentes entre si, se reconhecessem enquanto

pertencentes àquela sociedade – metrópole.

Nesta busca, surgem instituições uniformizadoras, que aviltam a cultura existente, haja

vista não sê-la condizente com aquela tida como a correta, como a que representa o belo. Diante

disso, Magalhães aponta que:

“A identidade nacional é fundamental para a centralização do poder e para a construção

das instituições modernas, que nos acompanham até hoje, sem as quais o capitalismo

teria sido impossível: o poder central, os exércitos nacionais, a moeda nacional, os

bancos nacionais, o direito nacional uniformizador, especialmente o direito de família,

de sucessões e de propriedade, a polícia nacional, as polícias secretas e a burocracia

estatal, as escolas uniformizadoras e uniformizadas” (2012a, p. 2).

A partir da construção exposta acima por Magalhães, temos que ressaltar a utilização da

religião como um dos principais mecanismos de uniformização da identidade nacional. A Santa

Inquisição, neste sentido, atuava como instrumento de afastamento daqueles tidos como

diferentes, do inexistente, de modo que nacionais só seriam os que professassem as mesmas

condutas religiosas do europeu da metrópole – condutas cristãs.

A partir desse momento pode-se retirar as primeiras conclusões dessas discussões

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históricas, filosóficas, políticas e culturais, quais sejam: que o Estado, enquanto instituição

moderna, surgido no final do séc. XV, é uniformizador, haja vista existir, dentro de seu sistema

jurídico-legal, um único direito de família, bem como um único direito de propriedade; é

homogenizador, afinal, a ideia de identidade nacional é necessária para a formação e permanência

do Estado sendo que, desse modo, na busca por essa identidade o europeu poderia se valer de

quaisquer meios que lhe aprouvesse.

E mais, podemos perceber, também, que o modelo econômico do capital se consolidou

como essência da economia moderna, haja vista sê-lo baseado à época, na exploração mineral das

colônias periféricas, dos povos originários enquanto instrumentos/produtos e, posteriormente, no

tráfico dos habitantes da África para as Américas (MAGALHÃES, 2012b, p. 3).

Percebemos, também, que para haver, realmente, a formação de um Estado Nacional

europeu, haveria a necessidade de se criar uma identidade nacional europeia, ou seja, a partir da

imposição de valores comuns que deveriam ser compartilhados pelos diversos grupos étnicos,

para que assim todos reconhecessem o poder soberano do Estado.

Portanto, o Estado nacional, em seu processo de gestação, está embrionariamente ligado

à intolerância, ou seja, à negação da diversidade religiosa e cultural que, estando fora de

determinados padrões e limites estabelecidos pela cultura hegemônica da identidade nacional,

deveriam ser adequadas, ou, em muitos casos, exterminadas.

2.1 – O Nosso Presente Como Reflexo do Nosso Passado: a identidade nacional no contexto

periférico latino americano

A partir dessas premissas, ao trazermos o contexto de formação do Estado Nacional para

o contexto da América Latina, perceberemos que, em terras latinas, esse paradigma de Estado

surge a partir de lutas pela independência no decorrer do séc. XIX, ou seja, antes de serem

Estados Nacionais, os atuais países latino americanos foram, durante séculos, espaços de todos os

tipos de exploração.

Ressalta-se a existência de um detalhe comum à todos os países latino americanos: o

fato de que os seus entes soberanos surgiram como meros benefícios destinados a uma parcela

minoritária da população – a parcela que a época era reconhecida enquanto Nós ou Eles (esses, os

europeus pobres) –, ou seja, para o contexto da busca pela identidade do povo de cada uma das

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sociedades independentes, necessária para a formação de um Estado, continuavam como “massa”

desinteressante às elites, os representantes dos povos originários – “índios” –, bem como aqueles

de imigração forçada – os negros.

Neste ponto, ao analisar o processo de formação do Estado Nacional no contexto

europeu, com o Estado Nacional que se formou – impositivamente – na América Latina,

Magalhães (2010c, p. 16) aponta que foram processos diferentes, senão vejamos

De forma diferente da Europa, onde foram construídos Estados nacionais para todos que

se enquadrassem ao comportamento religioso imposto pelos Estados, na América não se

esperava que os indígenas e negros se comportassem como iguais, era melhor que

permanecessem à margem, ou mesmo, no caso dos povos originários (chamados

indígenas pelo invasor europeu), que não existissem: milhões foram mortos.

Em todo o contexto latino americano a formação dos Estados Nacionais foi

hegemonizada pelas classes dominantes, de matrizes europeias, conforme visualizamos acima,

sendo que, em relação aos inúmeros agrupamentos indígenas, por exemplo, houve um

planejamento acerca de uma pretensa universalização, que ia desde o reconhecimento de direitos

jurídico-políticos de cidadania àqueles que se enquadrassem como “cidadãos”, à prática de

etnocídio.

Se voltarmos à acepção europeia de identidade nacional como mecanismo

homogenizador do Estado Nacional, perceberemos que, a partir da necessidade de se fortalecer

enquanto Estado, cunhou-se o que entendemos como identidade nacional, ou seja, dos elementos

que os europeus entendiam à época serem os que melhor demonstravam o modo de vida a ser

seguido, buscou-se estratificar o mundo conhecido a partir de sua semelhança com esse modelo,

o que legitimou a exclusão dos povos muçulmanos, bem como a dizimação dos “índios” no

contexto latino americano, e a escravização do africano.

Quanto à expressão destacada acima – índios – temos de destacar o seu conteúdo, de

separação entre o Nós – europeu – e o Eles – os povos originários que aceitavam seguir o modus

vivendi europeu –, bem como entre o Nós e o Inexistente – o índio que não se sujeitava aos

desígnios europeus – haja vista ao fato de que, etimologicamente, o desígnio índio se referir ao

habitante do que se conhecia à época como Índias, e mais, ao fato de que nas Américas, àquela

época, existirem dezena de milhões de “índios” de inúmeras culturas diferentes, o que para o

Europeu não significava nada, legitimando, assim, a imputação de uma única personalidade a

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todos os povos originários que aqui existiam.

A história, assim, nos ajuda a perceber como essa identidade forçada – índio –,

possibilitou a dizimação cultural pelo Europeu dos povos originários das Américas, entendidos

como não humanos, inexistentes, haja vista, dentre as inúmeras diferenças com o perfil, ou seja, a

estética7, europeia, não professarem a mesma religião.

Momento interessante que nos demonstra como essa configuração da identidade imposta

ao “índio” ocorreu, dá-se no debate entre o Frei Bartolomeu de Las Casas e o professor Juan

Gines de Sepulveda, por onde o primeiro escrevia ao Rei que o Eles/Inexistentes – os índios –

assim como o Nós, eram pessoas humanas, e deveriam ser tratadas como tal, sendo que, em

contrapartida, o segundo, visualizava a possibilidade de intervenção cultural, mesmo com a

utilização da força, a fim de evangelizar, “em cristo, aqueles seres”. (MAGALHÃES, 2012a, p.

5).

Antes, contudo, de aprofundarmos no reconhecimento da identidade nacional como

verdadeira estética do poder soberano do Estado Nacional, há que ressaltar que no presente

trabalho não há pretensão de esgotar todos os acontecimentos históricos ocorridos desde o

surgimento do Estado, da construção de uma identidade nacional, bem como do Estado em que

esse modelo se encontra em nossos dias, mas, tão somente, lançar uma nova visão de tais fatos.

A partir dessa visão radicalizada, extraída ao longo da construção daquilo que

destacamos ser a representação da busca por uma identidade nacional, percebemos que as

pessoas que não se encontram do lado “certo” e “universal”, o Nós, portanto, nem sequer serão

entendidas como outro, pois esse é passível de reconhecimento, são, mas do que isso, percebidas

como seres inexistentes, matáveis8. Diante disso, acentua Boaventura de Sousa Santos que:

“A divisão é tal que o “outro lado da linha” desaparece enquanto realidade, torna-se

inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. (...). Tudo aquilo que é produzido

como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que

a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro. (...). Para além

dela há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não dialética”. (2007, p. 3-4).

Desta feita, a construção de uma identidade nacional pelo Estado Moderno Nacional

atuou como mecanismo de radicalização entre aqueles que pactuam do modelo hegemônico de

7 A palavra estética aparece aqui empregada no mesmo sentido que FABRIZ (1999) lhe dá.

8 Essa expressão está empregada no presente trabalho no mesmo sentido empregado por Agamben, ou seja,

representa o que ele chama de Homo Sacer, ou seja, a vida matável. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

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ser, e aqueles que sequer poderão, um dia, vir a ser reconhecidos, haja vista serem a-humanos,

inexistentes.

Diante dessa visão entre os que são iguais e aqueles que sequer virão a ser igualizados,

percebemos que a chegada do Europeu em terras americanas se pautou nessa dicotomia, ou seja,

como os habitantes originários dessas terras não pactuavam com o modo de ser europeu, bem

como não aceitavam tal ingerência – a cristianização dos povos originários da América é um dos

inúmeros exemplos – poderiam ser objeto das mais vis atrocidades – afinal para além do equador

não há pecados –, pois na condição de “zona colonial” esses povos originários eram vistos como

exemplos do que um dia se intitulou “Estado de Natureza”, ou seja, “as teorias do contrato social

dos séculos XVII e XVIII são tão importantes pelo que dizem como pelo que silenciam”

(SANTOS, 2007, p. 6-8).

O movimento de escravização dos “índios”, portanto, foi entendido como mecanismo

necessário para a conquista da metrópole sobre a colônia, pois como os habitantes dessas “novas”

terras nem sequer eram humanos, ou morreriam ou serviriam como mercadoria, instrumento de

trabalho. Neste mesmo sentido, Faoro nos aponta que:

O selvagem americano deveria ser subjugado, para se integrar da rede mercantil, da qual

Portugal era o intermediário. Sem essa providência perder-se-ia o pau-brasil, e,

sobretudo, a esperança dos metais preciosos se desvaneceria. (2001, p. 127).

A Identidade Nacional, a partir dos citados pressupostos uniformizadores, aparece como

elemento estético do poder do Estado, ou seja, a estética europeia entendida como sendo aquela

visão correta, haja vista ser o belo, o padrão a ser necessariamente seguido, o que deve ser

endeusado, aparece, perfeitamente, na busca por uma identidade nacional, que como visto acima,

foi o elemento utilizado pelo Estado Nacional moderno e soberano, para unir os vários povos,

anteriormente separados em feudos.

Desse modo, podemos visualizar que a formação de uma identidade nacional atuou, no

âmbito do Estado Nacional moderno, como instrumento do poder soberano, ou seja, a identidade

funcionava como a estética do poder no Estado Nacional a fim de separar os nacionais, o Nós,

dos não nacionais, o Eles/Outros, e mais, de possibilitar a utilização daqueles que nem sequer

eram tidos como Outros, pois eram a-humanos, justificando, nesses termos, a escravidão e a

dizimação de culturas milenares que existiam em terras do Novo Mundo, tais como a Inca, a

Maia e a Asteca.

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Portanto, em que pesem as diferenças entre a América Latina ao final do séc. XV, com a

atual América Latina, a ingerência da identidade nacional ainda está imanente em nosso meio, ou

seja, se antes ser nacional era professar os dogmas europeus, hoje ser nacional e participar

avidamente da sociedade capitalista de consumo.

A estética do poder do Estado Nacional que em sua formação se vinculava a ideia de

identidade nacional, ainda hoje separa aqueles que estão, nos dizeres de Boaventura, desse lado

na linha, daqueles que estão do outro lado, não só pela cor da pele, etnia, credo ou sexo, mas,

também, por ser, ou não, um homo consumens globalizado.

2.2 – O Novo Estado Plurinacional Latino Americano: de um constitucionalismo nacional

ao um constitucionalismo plurinacional

A partir da visão lançada frente a formação da identidade nacional, peça fundamental na

construção do Estado Nacional em que vivemos, bem como do fato de que é por esses e outros

motivos que o Estado moderno Nacional é apontado pelos autores da teoria do reconhecimento,

em especial, por Nancy Fraser, como um dos responsáveis pelas injustiças sociais que nos

assolam enquanto sociedade cosmopolita, é que destacaremos o contexto de nascimento do

Estado Plurinacional, abreviando, desde já, que tal perspectiva é totalmente diversa daquela que,

a priori, veio substituir, o que demonstraremos através de exemplos de Estados em que já

podemos perceber tais novidades.

Como dito acima, transpostos os delineamentos que utilizamos em relação a construção

do moderno Estado Nacional através da imposição de uma identidade nacional, forjada a partir de

divisões e separações entre os indivíduos sociais, é chegado momento de analisarmos a

construção desse novo modelo de Estado, entendido como Plurinacional, e mais, como se dá a

construção de um novo constitucionalismo democrático latino americano, que se pauta na busca,

por exemplo, por uma concepção diferente aos direitos humanos, bem como pela concretização

de uma justiça social, que reconheça, e ao mesmo tempo, redistribua os elementos essenciais para

vivermos paritariamente em sociedade.

Assim, destacaremos a influência do capitalismo na formação de uma sociedade de

consumo, encrustando valores como sendo os que devemos seguir, sem que, com isso, se

mantenha um diálogo permanente com aquelas culturas que não são de matriz euro-norte-

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americanas, ou seja, como a imposição de um modus vivendi, ínsita ao moderno Estado Nacional,

provoca uma homogeneização social pautada em aspectos étnicos, religiosos, físicos e,

atualmente, a partir do capital, haja vista que nos dias de hoje aquele que consome e, portanto,

gera riqueza, é reconhecido enquanto cidadão, caso contrário, não é visto como pertencente ao

povo, se tornando indigno de ser escutado, de ser reconhecido.

Nosso tempo está repleto de crises, de mudanças, que vem e vão de forma tão rápidas

que logo são esquecidas e deixam de ser entendidas como mudanças. O novo de hoje,

literalmente, está cada vez mais rápido se tornando o velho do amanhã. As mudanças sociais,

culturais, filosóficas e políticas, estão transformando nosso mundo em um cenário um tanto

quanto curioso, afinal, enquanto os “novos ricos” vivem o sol escaldante de um verão promissor,

o “outro árabe”, reinventa a primavera, o “nós” euro-norte americano está imerso em um

congelante recesso econômico, que ameaça por fim a hegemonia financeira dos colonizadores.

Entretanto, devemos perseguir sempre o entendimento de que o diferente não pode mais

ser esquecido, o igual não pode ser restringido à antiga acepção europeizada de identidade

nacional analisada acima, ou seja, deveremos – se ainda não somos assim – saber conviver com

o paradoxo do nacionalismo – a dicotomia entre o Nós e o Eles – entendendo-o, a partir de

agora, nesse contexto de transformações globais, como o paradoxo do plurinacionalismo.

Acerca dessa noção de paradoxo do nacionalismo, destacamos as palavras de

Hobsbawm (1997, p.145), que o entendia como sendo o fato de, ao se formar sua própria nação, o

Estado automaticamente criar movimentos contra nacionais, ou seja, movimentos que não

reconheciam a legitimidade do Rei, advindo de uma determinada cultura, em face de todas as

outras. Os Outros, nesse contexto, eram, e ainda são, forçados a assimilar-se à cultura dominante,

esquecendo, ao poucos suas origens, ou a serem relegados a eterna inferioridade.

Neste sentido, a criação do Estado Nacional no fim do séc. XV ocasionou a origem de

um Rei, ou seja, em substituição ao regime feudal, o Rei era aquele que encarnava o espírito de

seu povo, e desse modo, não poderia se identificar como pertencente a essa ou àquela cultura

pretérita, sob o risco de não conseguir que as demais culturas lhe vissem como soberano.

Portanto, a construção de uma identidade nacional se tornou extremamente importante para que o

soberano conseguisse desenvolver seus poderes. (MAGALHÃES, 2012a, p. 7).

Diante de tais circunstâncias, vemos que a América Latina talvez seja o local de maior

diversidade étnico-cultural em nosso planeta, tendo em vista possuir representantes de várias

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culturas originárias, que apesar de tudo, ainda resistem, bem como de culturas orientais,

africanas, europeias e muçulmanas, ou seja, é “o Continente da diferença”.

É bem no meio deste contexto de diversidade que surge um “novo” tipo de Estado, ou

seja, uma nova formulação para a instituição Estado, com objetivo de substituir o modelo de

Estado Nacional surgido no fim séc. XV, por um novo paradigma, que seja apto a solucionar os

problemas do reconhecimento da diversidade cultural, não por meio de uma imposição cultural

de uma identidade nacional – tratada por Fraser como reificação cultural –, mas sim, através de

um diálogo entre os diferentes, da consolidação daquilo que, no contexto da teoria de Fraser, ela

chama de paridade de participação.

Para fixarmos, portanto, as primeiras visualizações desse novo modelo de Estado,

destacamos as palavras de Vieira (2012) que nos aponta, dentre as principais características das

Constituições Latino Americanas que inauguram essa nova conformação para o Estado, dentre as

quais se destacam, principalmente, as Constituições do Equador de 2008 e da Bolívia de 2009, a

principal delas, qual seja: o fato de que nesse modelo, o povo é visto como uma sociedade aberta

de sujeitos constituintes, o que, via de consequência, representa uma superação das noções de

identidade nacional construídas a partir de uma única cultura hegemônica dentro do Estado

Nacional.

Sob tais pontos, Baldi (2008) destaca que esse Estado Plurinacional possuiu três ciclos,

ou seja, como origem o constitucionalismo multicultural (1982/1988), ou seja, as primeiras

discussões acerca da insuficiência do modelo nacional em garantir direitos – de primeira, segunda

ou terceira dimensão – para aquelas pessoas que não comungassem dos ideais culturais impostos

pelo colonizador como necessários ao reconhecimento, o que objetivou, neste primeiro momento,

o surgimento de legislações que reconhecessem os direitos indígenas específicos, bem como a

noção de diversidade cultural.

Em seguida a esse modelo multicultural, deu-se a ascensão daquilo que se denominou

um constitucionalismo pluricultural (1988/2005), que trouxe o reconhecimento da existência de

sociedades multiétnicas e de Estados Pluriculturais. Exemplo de uma Constituição Pluricultural

surgida neste período, apontada pelo autor, é a Constituição da Venezuela de 1999. E mais, neste

contexto, podemos ainda destadar o surgimento da Convenção 169 da Organização Mundial do

Trabalho, reconhecendo um catálogo de direitos indígenas, afro e outros de cunho coletivo aos

indivíduos e povos cujo Estado a ratificasse – essa Convenção que foi ratificada pelo Brasil pelo

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Decreto nº 5.051, de 19 de Abril de 2004.

Ao fim, como último ciclo de desenvolvimento desse novo contexto constitucional

latino americano, destaca o citado autor, o constitucionalismo plurinacional surgido em 2006 no

contexto da Declaração das Nações Unidas sobre direitos indígenas. Como exemplos desse

constitucionalismo plurinacional surgem as Constituições do Equador e da Bolívia, dando origem

ao denominado Estado Plurinacional.

No entanto, em que pese Baldi destacar a construção desse novo modelo de Estado

Latino Americano através de uma evolução iniciada no constitucionalismo multicultural da

década de 1980, haja vista as constituições surgidas ali serem exemplos de reconhecimento e

proteção cultural – por exemplo, os arts. 231 e 232, da CRFB/88 – existem entendimentos

diversos, que ligam essa nova visão de Estado, originariamente a Constituição Colombiana de

1991, é o que destaca Noguera-Fernándes e Diego, ao afirmarem que:

Na Constituição colombiana aparecem, mesmo que imperfeitamente, mas claramente

reconhecível, alguns elementos inovadores e diferenciados em relação ao

constitucionalismo clássico, que mais tarde permearão e serão desenvolvidos nos

processos constituintes equatoriano em 1998, venezuelano em 1999, e boliviano em

2006-2009 e, de novo, no Equador em 2007-2008. (...). A Constituição colombiana de

1991 é, por conseguinte, o ponto de partida do novo constitucionalismo no continente9.

(2011, p. 18).

Afora as discussões sobre qual instrumento normativo efetivamente deu o “ponta-pé-

inicial” para o surgimento desse novo modelo de Estado latino americano, o que nos interessa

aqui é o fato desse novo modelo paradigmático representar uma novidade capaz de romper com a

lógica moderna de Estado vigente há 500 anos, ou seja, esse novo modelo de Estado,

efetivamente diverso, pautado pela multiplicidade de ordenamentos jurídicos e pela elaboração de

mecanismos de diálogo, objetiva, como se perceberá adiante, a construção de uma “carta”

mínima de Direitos Humanos a serem respeitados dentro de uma sociedade, esses de cunho,

reconhecidamente, multicultural, o que possibilitará, ao analisarmos tal ponto, à luz das

discussões trazidas por Fraser, uma paridade de participação em sociedade, bem como,

mecanismos efetivos para alcançarmos aquilo que ela designa como justiça social.

9 “En la Constitución colombiana aparecen, aún de forma imperfecta pero claramente reconocibles, algunos rasgos

novedosos e diferenciados con respecto al constitucionalismo clásico, que más tarde impregnarán y serán

desarrollados por los procesos constituyntes ecuatoriano de 1998, venezolano de 1999, boliviano del 2006-2009 y, de

nuevo, Ecuador en el 2007-2008. (...). La Constitución colombiana de 1991 constituye, por lo tanto, el punto de

inicio del nuevo constitucionalismo en el continente” (Tradução nossa).

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Há que ressaltar, neste ponto, que esse novo paradigma é diferente, em termos

estruturais, por exemplo, de Estados reconhecidos como regionais, tais como: a Espanha e a

Itália. Neste sentido, nos demonstra Magalhães (2010a, p. 202) que

O Estado Plurinacional, portanto, vai muito além do regionalismo presente no

constitucionalismo italiano (1947) e espanhol (1978), uma vez que nestes países, embora

a constituição tenha admitido a autonomia administrativa e legislativa das comunidades

autônomas ou regiões, reconhecendo a diversidade cultural e linguística, mantém a base

uniformizadora, ou seja, um direito de propriedade e um direito de família.

Assim, diferentemente do Estado Nacional, essa nova conformação de Estado, se afasta

dos elementos uniformizadores utilizados pela lógica dos Estados Modernos Nacionais, quais

sejam, a existência de um único direito de propriedade e de família para toda a coletividade.

A noção de família, bem como de propriedade, utilizadas para uniformizar, identificar os

nacionais de uma sociedade, não surgia através de um diálogo entre as diversas culturas, ao

contrário, era imposta pela cultura hegemônica, ou seja, conforme se deslindou acima, o poder do

Estado imputava uma estética a ser seguida.

A atual Constituição da Bolívia, na tentativa de resguardar os direitos dos indígenas ou

descendentes destes, grande maioria da população daquele país, trouxe uma inovação, qual seja: a

criação de uma justiça indígena, com tribunais próprios, formado por juízes escolhidos na própria

comunidade indígena – atualmente existem 36 sistemas jurídicos na Bolívia –, bem como a

formação de um Tribunal Constitucional Plurinacional, onde estão presentes representantes das

comunidades indígenas, o que rompe com a lógica uniformizadora da identidade nacional,

pautada em um único direito nacional.

Destaca-se, ainda, que a jurisdição ordinária comum não se sobrepõe a jurisdição

indígena, ou seja, as decisões tomadas nos tribunais indígenas não poderão ser revistas pela

Justiça ordinária (MAGALHÃES, 2012c).

Os povos originários – aquele conjunto de indivíduos que, originariamente, habitam

determinado território – ou aqueles de migração forçada – historicamente os africanos – ganham

espaço no Estado Plurinacional boliviano, ou seja, depois de séculos de silêncio, poderão

participar da formação de seu ordenamento jurídico, bem como da solução de suas divergências,

não a partir de um direito nacional uniformizador, mas nos termos que sua cultura lhes determina.

Participarão da construção de um Estado onde os cidadãos serão iguais em direito, não

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pela dominação cultural, mas pelo que se tem de diferente, ou seja, construirão um Estado

enquanto seres reconhecidos, chamados ao diálogo social de forma paritária, sem privilégios, haja

vista todos nós, segundo a constituição bolivariana, sermos seres pertencentes a Pacha Mama.

Há que lembrarmos, também, que a construção do Estado Nacional na América Latina

oriunda dos movimentos de independência dos vários Estados, dentre eles o Brasil, não fez cessar

o sentimento de ser colonizado, inerente ao latino americano, ou seja, depois dos movimentos

pelas independências na América Latina, o colonialismo continuou, só que de outros meios, tais

como: através da ingerência do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, em resumo,

através do mercado global transnacional pautado economicamente pelo sistema capitalista

consumista (SANTOS, 2009, p. 198).

Portanto, no âmbito desse novo Estado Plurinacional, surgido na primeira década deste

século, será priorizado um modelo de institucionalização calcado numa democracia participativa,

ou seja, os governos não serão compostos apenas de representantes das camadas sociais

dominantes, pois serão, sobretudo, integrados por representantes de diversas culturas, inclusive a

indígena, tudo isso a partir de um processo eminentemente participativo e dialógico.

A partir desses fatos, Grijalva (2008, p. 50-51) ao, também, analisar a formação desse

novo modelo plurinacional surgido na América latina, destaca que:

O constitucionalismo plurinacional é ou deve ser um novo tipo de constitucionalismo

baseado em relações interculturais igualitárias que redefinem e reinterpretam os direitos

constitucionais e reestruturam a institucionalidade provenientes do Estado Nacional. O

Estado plurinacional não é ou não deve se reduzir a uma Constituição que inclui um

reconhecimento puramente cultural, (...), senão um sistema de foros de deliberação

intercultural autenticamente democrática10

.

De outro lado, Sánchez Parga (2008) analisando as diretrizes desse novo Estado

plurinacional, tece-lhes algumas críticas, ao partir do entendimento de um existente exagero,

nesse novo paradigma, dos poderes do Executivo, haja vista ser, segundo ele, a única forma, de se

consubstanciar as propostas oriundas dessa matriz.

Neste ponto, o mencionado autor coloca que não será uma simples alteração

10

“El constitucionalismo plurinacionales o debe ser um nuevo tipo de constitucionalismo basado en relaciones

interculturales igualitárias que redefinan y reinterpreten los derechos constitucionales e reestruturen la

institucionalidad proveniente del Estado Nacional. El Estado plurinacional no es o no debe reducirse a una

Constitución que incluye um reconocimiento puramente culturalista, (...), sino um sistema de foros de deliberación

intercultural auténticamente democrática” (Tradução nossa).

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constitucional, inaugurando o Estado Plurinacional e uma nova matriz constitucional, que alterará

a realidade dos povos e culturas excluídas, tendo em vista que para ele “(...), é preciso reconhecer

que é a sociedade que faz a Constituição e não a Constituição que faz a sociedade11” (SÁNCHEZ

PARGA, 2008, p. 82).

Há, também, os apontamentos trazidos por Kraus (2012, p. 60) acerca dos problemas

para se efetivar a democracia nesses novos Estados Plurinacionais, ou seja, para ele o potencial

de conflitos advindos de um alto nível de pluralismo sub cultural – existência de várias culturas

menores dentro de uma cultura estatal – afetará de forma negativa a capacidade de integração

política de regimes plurinacionais.

Entretanto, em que pesem as referidas críticas, mesmo que haja um reforço dos poderes

do Executivo, em um primeiro momento, com objetivo de se concretizar os direitos e garantias

dispostos na Constituição, o novo constitucionalismo latino americano possibilita uma maior e

mais ativa participação da sociedade, ou seja, o povo estará mais presente nas decisões de seu

governo, pois dentro desse governo, estarão representantes de várias culturas.

O Estado moderno Nacional de matiz capitalista, nascido da intolerância com aqueles

que não partilhavam da identidade nacional, dependente. em seu desenvolvimento. de políticas de

intolerância, exploratórias, uniformizadoras, já não suporta os anseios de um mundo interconecto,

uma aldeia global, por onde os direitos humanos necessitam ser reconstruídos, não como

mecanismos de uniformização, imposição cultural do poder enquanto estética do belo, mas como

mecanismo de integração cultural, enquanto mecanismo de reconhecimento.

Com a expansão de uma globalização virtual, as culturas excluídas da lógica do Estado

Moderno, capitalista, voltado para a uniformização pela igualdade de crenças – atualmente o

consumo –, houve o surgimento de um novo modelo de Estado – Plurinacional – cujo fim é, não

só o reconhecimento de direitos, mas a salvaguarda de meios que garantam o surgimento de

culturas encobertas pelo Estado Nacional, ou seja, que a identidade nacional seja forjada a partir

da diferença entre os vários Eu’s de uma mesma sociedade, Eu's esses, que sejam reconhecidos e

que possam participar, igualmente, do discurso social, que recebam, em redistribuição,

mecanismos que lhes possibilitem inaugurar-se enquanto sujeito de direitos.

Como nos mostra Grijalva, (2008, p. 52) acerca de como deveremos pautar a condução

11

“(...), es preciso reconhecer que es la sociedade la que hace La Constitución y no La Constitución que hace la

sociedade” (Tradução nossa).

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desse modelo constitucional de Estado latino americano, chegamos a conclusão de que nesse

paradigma que surge, necessariamente, deveremos ser: Dialógicos – pois o novo modelo requer

comunicação e deliberações permanentes entre as culturas; Concretizantes – pois deveremos

buscar soluções específicas, e em tempo, para situações individuais e coletivas; e Garantistas –

haja vista essas soluções surgirem por meio de deliberações, cujo marco de compreensão é o

reconhecimento dos valores constitucionais institucionalizados pelos Direitos Humanos.

Neste mesmo sentido Santos (2007, p. 26-27) já nos alertava acerca da necessidade de

refundação do Estado, ou seja, de uma nova construção estatal em buscasse resgatar uma parcela

do povo esquecida há mais de 500 anos, o que pode ser justificado por inúmeros fatores, sendo o

principal deles o fato de enfrentamos hoje um grande distanciamento entre a teoria política e a

prática política

O Estado plurinacional e, consequentemente, o novo constitucionalismo latino

americano que lhe é inerente, nos termos trazidos acima, lançam uma nova conotação à

democracia, ou seja, estatui o que Santos (2007, p. 47) denomina de Demodiversidade, uma

democracia onde a diversidade cultural tem voz, onde não ser igual é ser normal, onde não

pertencer à cultura reificada, não é significado de não reconhecimento, de injustiça social.

Temos sempre que nos lembrar que o diverso não, necessariamente, será desunido, bem

como o que aparentemente está unido, não, necessariamente, será uniforme, ou seja, “temos o

direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza, mas, temos o direito de ser diferentes,

quando a igualdade nos descaracteriza” (SANTOS, 2011, p. 462).

O Estado Plurinacional, assim, não é sinônimo de não “Estado” enquanto instituição de

organização social, mas, ao contrário, é um resgate do Outro, do esquecido, daquele não

reconhecido, daquele inexistente aos olhos do poder, do povo ou do indivíduo, é um rompimento

com uma série de instituições e seus significados modernos – Estado, Nação, Identidade

Nacional, Soberania – dentre as quais, está a democracia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após delinearmos, na primeira parte deste trabalho, os contornos essenciais da visão de

Nancy Fraser acerca da política do reconhecimento, fonte dos mais variados estudos em nossa

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atualidade, seja por uma visão social, política ou filosófica, concluindo, a partir de suas

premissas, pela existência de elementos do Estado Nacional que impedem a efetivação de uma

justiça social – que na visão de Fraser é bidimensional, agrupando não só o reconhecimento mas,

também, a redistribuição –, visualizamos a necessidade de amoldarmos esse Estado, enquanto

ente regulador da vida em sociedade, às questões de nosso tempo, que já não são resolvidas pela

estrutura organizacional do Estado em que vivemos.

E mais, após termos apresentado, também, na segunda parte deste trabalho, uma

reconstrução – mesmo que sucinta – dos elementos essenciais utilizados para a formação do

Estado Moderno Nacional, dentre os quais destacamos a identidade nacional, demonstrando,

inclusive, como se deu seu surgimento no contexto latino americano, bem como os elementos

caracterizadores do novo modelo de Estado Plurinacional, e o fato desse modelo responder aos

problemas apresentados atualmente, segundo Fraser, pelo moderno Estado Nacional, podemos

então trazer nossas conclusões.

Conforme destacamos acima, enquanto seres humanos que somos, sempre atuaremos na

tentativa de sermos reconhecidos enquanto entes sociais, ou seja, como sujeitos capazes de

participar ativamente de uma sociedade.

Nesse contexto de busca por reconhecimento, de busca, segundo Fraser, por justiça

social, podemos perceber que é possível estabelecermos uma relação produtiva entre aquilo que,

em linhas gerais, Nancy Fraser nos traz acerca dessa problemática, àquilo que o modelo de

Estado Plurinacional nos traz, buscando, a partir daí, proporcionar a todos, não só o

reconhecimento em relação a cultura dominante, mas, também, uma participação paritária da vida

em sociedade, sem que se exclua ou extermine determinadas culturas tidas como “submissas”

pelo simples fato de serem diferentes daquilo que temos posto em nós, como sendo a identidade a

ser buscada.

Portanto, em que pesem as divergências semânticas, doutrinárias e de perspectiva,

podemos perceber que, ao analisarmos conjuntamente os apontamentos de Nancy Fraser e os

contornos do Estado Plurinacional, em relação ao problema da busca pelo reconhecimento, da

igualdade de participação na vida em sociedade, da redistribuição de bens e valores que possam

nos possibilitar o mínimo necessário para que alcancemos tal participação, ou seja, o problema da

injustiça social, percebemos que as propostas não são tão distantes assim.

Precisamos, então, buscarmos um “novo” Estado, um Estado que nos possibilite não

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uma identidade, mas sim, um reconhecimento nacional, que nos proporcione mecanismos de

resgate cultural e que não seja pautado na palavra de poucos, mas, ao contrário, seja o reflexo da

razão de muitos, ou seja, um Estado democraticamente Plurinacional.

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O PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO E A INFLUÊNCIA DOS

FINANCIADORES DE CAMPANHA SOBRE A IMPLANTAÇÃO DE PROJETOS DE

ENERGIA CONVENCIONAL NA AMAZÔNIA BRASILEIRA E NA PATAGÔNIA

CHILENA

THE COALITION PRESIDENTIALISM AND THE INFLUENCE OF CAMPAIGN

DONORS ON THE DEPLOYMENT OF CONVENTIONAL ENERGY PROJECTS IN THE

BRAZILIAN AMAZON AND CHILEAN PATAGONIA

Abraão Soares Dias Dos Santos Gracco *

Renata Soares Machado Guimarães de Abreu ** RESUMO

É inescusável afirmar-se que a América Latina sempre foi uma região de contrastes sociais, econômicos e culturais. Entretanto, não se pode perder de vista que, nessa mesma região, os processos de tomada de decisão se apresentam, por um lado, de forma uniformizada, e, por outro, dotados de características próprias, como se observa nos períodos do paternalismo getulista brasileiro e peronista argentino, da ditadura militar brasileira e da ditadura Pinochet no Chile; não se podendo, outrossim, desconsiderar, as especificidades do processo de redemocratização desses países. Com efeito, tem-se, contemporaneamente, a formação e o desenvolvimento de um presidencialismo de coalizão no Brasil e no Chile com características de clivagem institucional, cuja influência dos financiadores de campanha é ainda mais permeável por setores que possuem interesse em obter ou continuar obtendo alguma vantagem no esteio da máquina pública. O presente trabalho busca comparar esse aspecto e relacioná-lo à forma como as empresas, na condição de financiadoras de campanha, buscam influenciar no processo de tomada de decisões sobre a implantação dos grandes projetos de energia convencional em biomas estratégicos, como as hidrelétricas na região da Amazônia brasileira e na Patagônia chilena. Para isso, adota-se a teoria do discurso como marco teórico, suplementado pela visão externa da teoria dos sistemas. O método comparado é utilizado na abordagem do tema em análise, considerando-se de forma rígida os aspectos temporais e espaciais de suas constatações. PALAVRAS-CHAVE: Presidencialismo de Coalizão; América Latina; Financiamento de Campanhas; Hidrelétricas; Amazônia Brasileira; Patagônia Chilena.

________

* Mestre e doutor em Direito Constitucional ** Especialista em Direito

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ABSTRACT

Is indispensable said that Latin America has always been a region of social, economic and cultural contrasts. However, we cannot lose sight of the fact that, in this same region, the decision-making procedures are, on the one hand, standardized form, and, on the other, with its own characteristics, as noted in the paternalist periods of Brazilian getulism and Argentine Peronism, the Brazilian military dictatorship and Pinochet's dictatorship in Chile; cannot, in addition, disregard, the specifics of the process of democratization in these countries. Indeed, it has, at the same time, the formation and the development of a coalition presidentialism in Brazil and in Chile with cleavage institutional characteristics, whose campaign donor influence is even more permeable for sectors which have interest in get or continue getting some advantage in the mainstay of public machine. The present paper seeks to compare this aspect and relate it to how companies, funders, seek influence in decision-making on the deployment of large conventional power projects in strategic, biomes as the hydroelectric plants in the region of the Brazilian Amazon and Chilean Patagonia. To this end, it adopts the theory of speech as theoretical framework, supplemented by external vision of systems theory. The comparative method is used in the approach of the subject under review, considering rigid temporal and spatial aspects of their findings. KEYWORDS: Coalition presidentialism; Latin America; Financing of campaigns; Hydroelectric Power Plants; Brazilian Amazon; Chilean Patagonia. 01 INTRODUÇÃO

A queda do absolutismo monárquico e a eclosão das revoluções burguesas do século

XVIII acarretaram a junção momentânea da burguesia e da classe popular no contexto do

fervor iluminista. Isso devido ao fato de, pela primeira vez na história humana, ter sido

possibilitado construir-se uma sociedade de seres livres, iguais e agora proprietários, no

mínimo, do próprio corpo, desmoronando, de uma vez por todas, a fase pré-moderna

(SANTOS GRACCO, 2008). Nesse contexto, Charles-Louis de Secondat (Montesquieu), em

suas pesquisas empíricas, deixou como legado para a humanidade a constatação de que todo

aquele que exerce o poder tende ao abuso e, exatamente por não possuir mais fundamentação

metafísica, esse poder deveria ser dessacralizado e descentralizado para exercentes diversos.

Desse modo, a doutrina dos checks-and-balances, aperfeiçoada por Immanuel Kant e pelos

pais fundadores americanos (HAMILTON, JAY e MADSON, 2009) buscou resolver a

permanente tensão dessa divisão funcional de poderes, principalmente pela referida

descentralização do exercício legítimo dessas.

Sob esse aspecto, o estudo das relações entre os poderes Executivo e Legislativo é

particularmente relevante para o Brasil e o Chile, países cujo sistema de governo (o

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presidencialismo) tem sido objeto de especial atenção da Ciência Política, da Teoria do

Estado e do Direito Constitucional. Isso não só pelos impasses entre esses poderes – o que

acarreta, na visão de alguns autores1, crise de governabilidade -, mas também por causa da

preponderância da figura do Presidente da República sobre o Legislativo, em decorrência de

suas prerrogativas constitucionais.

No entanto, essa tensão não se confirma quando é analisado o comportamento desses

poderes em relação aos agentes financiadores de suas campanhas, os quais influenciam, de

maneira direta, os procedimentos brasileiros e chilenos de tomada de decisão, mormente em

relação aos grandes projetos de engenharia que possuem repercussões ambientalmente

relevantes.

Assim, na segunda seção do presente trabalho, busca-se analisar os precedentes da

remodelagem do sistema representativo de tomada de decisões nos dois países em comento.

Na terceira seção, adentra-se nos aspectos relacionados à plataforma energética dos dois

países e na forma como os financiadores de campanha têm moldado esses Estados a adotarem

políticas energéticas equivocadas em relação a outros países em desenvolvimento e

desenvolvidos. Por fim, na quarta seção, esboçam-se as considerações finais sem a pretensão

do esgotamento conclusivo da matéria, eminentemente complexa.

02 OS PRECEDENTES DA REMODELAGEM REPRESENTATIVA BRASILEIRA E

CHILENA NOS PROCESSOS DE TOMADA DE DECISÕES

Nos países em comento, o sistema presidencialista, herdado do modelo americano,

possui características próprias que o diferem deste, mormente pela continuidade da

dessacralização do imperador pelo Presidente de República (HAMBLOCH, 1981). Nesse

contexto, é de asseverar que a América Latina possui um histórico de centralização política e

de personificação institucional acentuado. Em determinados países, a preponderância da

figura do exercente (pessoa física) suplanta em muito a organização institucional (pessoa

1 Juan Linz, nos anos noventa, de forma precursora, criticou funcionalmente o sistema presidencialista, ressaltando que dupla legitimidade dos poderes, originada pela eleição independente do presidente e do Congresso ao invés de favorecer os freios e contrapesos, obstariam à governabilidade, principalmente nos casos em que o Presidente não contasse com maioria no parlamento. Alegava, ainda, o problema trazido pelo fato de que o Parlamento não dispõe de muitos mecanismos para interromper o mandato presidencial, em caso de governo ineficiente, e convocar de novas eleições. Dessa forma, já que chefe do Executivo não precisa de apoio partidário no congresso para se manter no poder, haveria incentivos para a formação de partidos políticos fracos e pouco preocupados em fornecer sustentação aos chefes do Executivo, os quais, por sua vez, acabam atuando de maneira personalizada. (LINZ; VALENZUELA, 1994, p. 56)

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jurídica). Parece não haver como desvincular as duas perspectivas, principalmente no tocante

às forças políticas e suas agremiações partidárias. O caciquismo da América espanhola, ou o coronelismo na América portuguesa, é o fenômeno básico que dirigiu toda a vida política da América Latina no século XIX. Hoje em dia decadente, o caciquismo deixou, no entanto, importantes sobrevivências na facies arcaica da sociedade dualista (LAMBERT, 1969, p. 200).

Tanto assim que o atual “chavismo” (sem Hugo Chavez2) na Venezuela não é um

fenômeno historicamente isolado, mas a personificação da política em escala de massas e

resultado da crise das tradicionais instituições corporativas e políticas de representação. No passado, mesmo recente, o caudilhismo triunfou tão freqüentemente que para muitos parece ser a característica política mais relevante da América Latina. Basta recordar o caso da Venezuela, quase caricatural, na verdade: a partir de 1830, data da dissolução da Grande Colômbia, que abre a existência nacional da Venezuela, até 1935, os caudilhos se sucederam um após o outro. Paez, que domina o país de 1830 a 1846, é substituído pelos irmãos Monagas (1846-1861), depois, novamente, Paez (1861-1863), Gusmán Blanco (1870-1887), Crespo (1887-1898), Castro (1899-1908) e, finalmente, Gómez (1908-1935). No decorrer de um século, o regime caudilhista não foi interrompido, senão durante os sete anos de 1863-1870, que foram, porém, sete anos de guerra civil. (LAMBERT, 1969, p. 202).

No entanto, isso não tem nada de natural ou naturalizado, mas é produto de uma

construção social embrulhada e engessada, que estimula estrategicamente os destinatários a

percebê-la como se fosse sempre assim e que não se necessita de mudança. A personificação

da unidade da vontade social por meio de lideranças plebiscitárias leva em consideração os

suportes técnicos oferecidos pela reformulação da representação política, conforme

desvendou Luhmann (1998, p. 98): Em razão das críticas usualmente feitas às concepções de causalidade e de liberdade, não deveria ser difícil reformular as diretrizes de observação ocultas nesses conceitos. Buscamos, assim, conceitos que possam orientar as pesquisas histórica e regionalmente comparadas, e cuja expressividade se encontre acima da dos conceitos de "cultura" e de "mentalidade". Parte-se da suposição de que uma revisão conceptual não apenas se adaptará melhor ao saber já disponível no que toca às concepções acerca da causalidade e da liberdade, como também, ao mesmo tempo, fornecerá melhores pontos de partida para as pesquisas comparadas, já que partiria do fato de a causalidade não ser simplesmente uma construção livremente oscilante que pudesse avaliar o verdadeiro e o falso ou o funcional e o não-funcional, e de a liberdade não ser apenas um postulado normativo no sentido de, como se diz, a emancipação ser a sua melhor parte, mas que, em ambos os casos, tratar-se-ia de construções cuja aplicação tem que ser apreendida sob condições históricas e regionais específicas e que dificilmente serão revistas no caso de prova. Pois, como já se comprovou, dificilmente se consegue expurgar essas concepções quando não são oferecidas possibilidades bem melhores e mais concretas.

Com efeito, além desse presidencialismo diferenciado3, Brasil e Chile ainda possuem

um sistema multipartidário, produto de um gradual - e não linear - processo político ainda

2 Presidente da Venezuela eleito em 1998 e reeleito em 2000 e 2006, o qual faleceu em 05 de março de 2013. 3 Importa salientar que nenhum sistema político é puro e muito menos perfeito como lembra Sartori (2006, pp. 135 e 147), ao analisar o semipresidencialismo francês, “Vimos que tanto o presidencialismo quanto o parlamentarismo podem falhar, especialmente nas suas formas puras. A partir desses dois extremos, somos levados a buscar uma solução ‘mista’: uma modalidade de organização política que se situe entre os dois e se

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arraigado na questão desse voto pessoal, seja nos cargos de eleição majoritária, seja nos

cargos de eleição proporcional. No Chile, esse aspecto é observado em razão do sistema

eleitoral ser binominal com lista aberta e “prêmio” para a segunda lista (imposto por Pinochet

após a derrota no plebiscito de 1988), incentivando os partidos a disputarem de forma

coligada as eleições (MELO; NUNES, 2008), como também estimula a competição entre as

agremiações dentro de uma mesma coalizão. E, consequentemente, o sistema acaba por

estimular a identificação com o candidato e não com o partido. Chilean democracy is based on a presidential regime, typical in Latin America. Under the constitution of 1980, inherited from a dictatorship and still in place despite numerous reforms reinforcing the powers of the president. Executive power is directed by the president, elected for four years without the possibility of immediate reelection. Facing him is a bicameral legislature composed of a Senate whose 38 members are electedfor 8 years and indefinitely renewable, within binomial circunscriptions, and a 120 member Chamber of Deputies whose 120 members are elected for 4 years, also for renewable terms, and also in binominal districts. (JOIGNANT, 2008, p. 47).

No caso brasileiro, a combinação do sistema de representação proporcional e de lista

aberta - dado o arranjo federativo descentralizado - também promove a personalização do

voto, correndo-se o risco de estimular a indisciplina dentro da agremiação partidária4,

dificuldade dos instrumentos de controle do comportamento legislativo de suas bancadas e

estímulo aos parlamentares a tratarem de políticas localistas (“paroquiais”) em detrimento das

de cunho nacional5, Isso, conforme Santos Gracco (2006), principalmente devido ao fim da

“verticalização partidária”6, não mais obrigando a vinculação entre as candidaturas em âmbito

inspire em ambos [...] Levando em conta o que segue, declaro que um sistema político é semipresidencialista se as seguintes propriedades ou características lhe puderem ser aplicadas conjuntamente: a) Chefe de Estado (Presidente) é eleito por votação popular – de forma direta ou indireta -, com um mandato determinado; b)o Chefe de Estado compartilha o Poder Executivo com um Primeiro Ministro, em uma estrutura dupla de autoridade com os três seguintes critérios de definição: b.1) embora independente do Parlamento, o Presidente não tem o direito de governar sozinho ou diretamente, e, portanto, sua vontade deve ser canalizada e processada pelo seu governo; b.2) inversamente, o Primeiro Ministro e seu gabinete independem do Presidente, na medida em que dependem do Parlamento, estão sujeitos à confiança e/à não confiança parlamentar pelo que precisam de apoio da maioria do Parlamento; b.3) a estrutura dupla de autoridade do semipresidencialismo permite diferentes equilíbrios e a oscilação de prevalências do poder dentro do Executivo, estritamente sobre a condição de que subsista a ‘autonomia potencial’ de cada componente do Executivo. 4 Dado à autonomia dos candidatos em relação à suas agremiações, mesmo após a histórica decisão do Supremo Tribunal Federal estabelecendo que a partir de 27.03.2007 considera-se que o mandado pertence ao partido e não a seu membro, salvo justa causa. (SANTOS GRACCO, 2008). 5 Embora alguns autores têm defendido que esse caráter tem sido cada vez mais diluído: “[...] a investigação da conexão eleitoral unicamente como função da relação entre políticos e cidadãos (eleitores) não contempla toda a complexidade do processo legislativo, já que a representação se faz não só do ponto de vista geográfico, mas também dos interesses organizados. Assim, grupos de interesse – sindicatos, associações ruralistas etc. – podem ter influência em diversos tipos de município, viabilizando ou dificultando campanhas. A nosso ver, com relação a esse argumento, tornar-se-ia mais interessante para o estudo da dinâmica legislativa brasileira obter uma perspectiva analítica focada sobre os grupos de interesse, as atividades de lobby e a influência dos setores organizados da sociedade. Em outras palavras, para além da relação direta entre deputados e eleitores, é preciso considerar a policy community, a issue network ou os iron-triangles.” (RICCI; LEMOS, 2004). 6 Vide Emenda Constitucional nº 52, que alterou o art. 17, parágrafo 1º, da Constituição brasileira (BRASIL, 2006).

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nacional, estaduais, distritais ou municipais. E mais, incentiva-se que os políticos valorizem

suas características próprias e abdiquem das ideologias (TELLES, 2010).

Não obstante tudo isso, contrariando-se o pessimismo da literatura a respeito da

inviabilidade desses sistemas (MAINWARING, 1993, MAIWARING; SCULLY, 1995,

SHUGART; MAINWARING, 1997, LINZ, 1994, LINZ; VALENZUELA, 1994, LINZ;

STEPAN, 1996, SARTORI, 1996 apud MELO, 2009), Brasil e Chile são os dois casos mais

bem sucedidos de governos de coalizão da América Latina, com alta governabilidade, por

meio da articulação e manutenção, pelo Presidente da República, de uma base de sustentação

no Congresso. E isso a um preço institucional muito elevado para o último, à vista da

existência de mecanismos de antecipação do debate legislativo por meio das medidas

provisórias (atos normativos com força de lei – Gesetzeseigenschaften - imediatamente à sua

expedição pelo Presidente da República) no Brasil e o seu equivalente na Constituição

chilena7.

O contrapeso nas relações entre os poderes Executivo e Legislativo, sem sombra de

dúvidas, tem feito parte do processo de aprendizado democrático após a onda da

redemocratização. Diante dessa nova engenharia constitucional, a formação de coalizões

disciplinadas no governo se torna necessária, já que um gabinete composto por vários partidos

é um gabinete representativo de matizes ideológicos, programáticos e até mesmo pragmáticos.

Isso, por um lado, tem sido legitimamente fomentado, mas, por outro, pode acarretar impasses

em temas sensíveis8, gerando uma avalanche política para tomada de posição do poder

Judiciário, muitas vezes como um substituto funcional (LUHMANN, 1998).

Desse modo, quando trata das dinâmicas dos governos de coalizão brasileiro e chileno,

Melo (2009, p. 24) ressalta a necessidade de se fazer referência, entre outros aspectos, ao “[...]

número de atores envolvidos no jogo e a distância entre suas preferências políticas, fatores

que, conjugados, remetem ao problema de como aprovar a agenda de governo evitando ao

máximo os custos da barganha e os problemas de coordenação”. E completa o autor: “No

Brasil, relativamente ao caso chileno, os presidentes sempre tiveram que lidar com um quadro

7 Novas democracias da m r ica atina introduziram ou mantiveram medidas que estendem os poderes legislativos emergenciais do executivo. Hoje, poderes equivalentes aos das medidas provis rias (MPs) instituídas pela Constituicão brasileira de 19 vigoram em cinco outros paí ses da região: Col mbia, rgentina, Chile, Peru e Equador. Essas medidas são usualmente vistas como mais uma característica do presidencialismo latino-americano, um resíduo autoritário herdado pelas novas democracias. (FIGUEREDO; LIMOGI, 1997, p. 127). 8 Como foi a votação do novo Código Florestal brasileiro em 2012 e nos vetos sobre a distribuição federativa dos Royalties em 2013.

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de maior fragmentação partidária e um menor grau de informação acerca de seus eventuais

parceiros”.

Ainda sobre a fragmentação partidária, principalmente pela possibilidade dos dois

sistemas admitirem coligações no sistema proporcional pode-se afirmar que: Dado o multipartidarismo e a natureza das coalizões feitas no interior do parlamento, um partido razoavelmente forte, detentor de um número considerável de cadeiras, pode ser deslocado dos centros mais importantes de decisão congressual. Por outro lado, um pequeno partido, dependendo de seu perfil ideológico, pode ter seu poder decisório ampliado consideravelmente se sua adesão for crucial para a formação da coalizão parlamentar. Ao contrário, em sistemas partidários parlamentares com dois partidos, aquele que obtiver o maior número de cadeiras define a agenda legislativa, pois comandará os loci, relevantes de decisão. O comportamento dos membros do parlamento, sejam líderes partidários ou não, adequa-se automaticamente em uma ou outra situação. No sistema bipartidário, a luta pelo maior número possível de cadeiras é decisiva, pois, sem isto, é praticamente impossível exercer qualquer influência na composição da agenda. Em sistemas multipartidários, além do poder parlamentar, fonte aliás incerta de influência legislativa, é fundamental ter acesso aos cargos governamentais que alocam recursos públicos e regulam as atividades dos agentes econômicos e sociais. Por isso, no Brasil, a importância de ter acesso a cargos do Executivo (SANTOS, 2003, pp. 64-65).

Portanto, a partir dessas premissas, deve-se considerar o aumento do custo político e

econômico dessa governabilidade artificial, contingencial e precária denominada de

presidencialismo de coalizão (SANTOS GRACCO; ABREU, 2010), concretizada por acordos

políticos sobre cargos de primeiro e segundo escalão do governo. Com efeito, essas

negociações viabilizam, além da reeleição do Presidente ou a permanência de seu partido no

poder, a própria agenda presidencial perante o poder Legislativo para formar gabinete. A formação e duração de coalizões legislativas em favor do governo seriam função de acordos estabelecidos entre o chefe do Executivo e os partidos com assento no Parlamento, acordos que envolvem a distribuição de postos ministeriais a pessoas indiciadas pelos partidos e apoio destes à agenda proposta pelo governo ao Congresso (ANASTASIA; MELO; SANTOS, 2005, p. 57).

Assim, vê-se, de um lado, o Chefe do Executivo liderando a coalizão e, de outro, a

oposição em seu papel contra-majoritário na arena do Congresso. Se o sistema partidário é,

portanto, composto por muitas agremiações, nenhuma delas teria maioria para formar o

governo como ocorre no sistema parlamentarista, de modo que o Presidente da República

precisa utilizar a estratégia da patronagem de cargos e políticas públicas específicas para

formar e mesmo manter sua base de sustentação junto ao Legislativo. Em primeiro lugar, o presidente sabe que as lideranças partidárias, dados o voto personalizado, não possuem controle de natureza eleitoral sobre suas bancadas. Por isso, sua expectativa é que as taxas de coesão partidária não podem ser garantia de formação e manutenção de uma base de apoio sistemática no parlamento. A barganha em torno de propostas políticas com lideranças dos grandes partidos se vê limitada, por decorrência das preferências dos políticos tomados individualmente. Nenhum acordo partidário é suficiente para formar a coalizão. De forma resumida, pode-se dizer que o presidente é vítima do efeito de informação (RIKER, 1962): ele não sabe o tamanho real de sua base de sustentação, dada a expectativa de taxas

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reduzidas de coesão partidária. Por outro lado, o presidente possui recursos importantes que podem ser utilizados como moeda de troca numa eventual compra de apoio parlamentar, notadamente, cargos no Governo Federal. Ora, se ele espera que a coalizão formal de apoio não corresponderá à base efetiva conquistada no parlamento quando da votação de matérias de seu interesse, então , não lhe resta outra alternativa senão oferecer postos do Executivo para membros de partidos estranhos à coalizão de apoio formal. (SANTOS, 2003, p. 66)

Eis então o motivo pelo qual se pode entender que os governos de coalizão se

associam a custos mais altos para o processo decisório do que os governos formados por

partidos majoritários (POTERBA, 1994).

Portanto, a combinação de um Executivo historicamente forte com um Legislativo

fragmentado em vários partidos, sem uma identificação ideológica ou programática com a

liderança da coalizão, poderia custar um alto preço de modo a criar riscos de impasses

decisórios por motivos pouco republicanos e de ineficiência do procedimento de tomada de

decisões legítimas a tempo e modo9. Aumenta-se, desse modo, o risco de autonomização10

dessas instâncias legítimas de representação política clássica e enfraquecendo as

possibilidades fugazes de construção de um projeto de nação coletivo, uma vez que passam a

girar em torno de si mesmas sem lastro no sentimento de constituição da comunidade de

princípios.

03 A INFLUÊNCIA DOS FINANCIADORES DE CAMPANHAS NOS PROJETOS

HIDRELÉTRICOS NA AMAZÔNIA BRASILEIRA E NA PATAGÔNIA CHILENA

A necessidade energética do presente século não pode ser resolvida como ocorreu no

século passado durante o regime militar brasileiro e a ditadura chilena. Isso deve ser

ressaltado por dois motivos. O primeiro relaciona-se com a natureza do direito em questão:

direito indisponível e transindividual, cujos afetados são indeterminados por definição e

ligados por circunstâncias fáticas. O segundo motivo questiona a própria plataforma

9 Neste momento não há como não remontar-se ao escândalo do “mensalão”, maior caso de corrupção já julgado pelo Supremo Tribunal Federal (Ação Penal nº 470) que consistiu, de forma sucinta, em fornecimento de dinheiro a parlamentares (compra de votos) em troca de apoio ao Executivo, nos anos de 2003 a 2005, durante o governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, do PT (Partido dos Trabalhadores), ainda que sem evidências empíricas da extensão de seus efeitos no resultado de votações como a reforma da previdência (EC 41/2003). 10 termo “ utonomização” foi cunhado da teoria dos sistemas de Ni las uhmann, no sentido de classificar a desvinculação dos sistemas funcionais do direito, da política e da economia como outrora fundantes da diferenciação social. [ ]o deslocamento da representação das instâncias mediadoras clássicas para arenas plurais, tendo em vista a sua autonomização e os abusos em nome dos representados, interfere na qualidade do “sentimento de representação” e a consequente indisponibilidade do mandado, seja pela configuração do estelionato eleitoral da representação, cujo compromisso está viciado na origem, seja pela apropriação ind b ita da soberania popular em que o compromisso inicial do representante de esforçar-se para criar ou reforçar expectativas de comportamento e práticas institucionais de consideração p blica desviado ap s a assunção do mandato. (SANTOS GRACCO, 2008, p. 19)

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energética dos dois países: não é mais concebível, diante dos novos padrões de produção e

consumo relacionados aos limites do planeta e o reconhecimento de direito de populações

tradicionais, implementarem-se projetos que exigem dos recursos naturais o que eles não

podem mais oferecer, sem resvalar-se na sua capacidade de resiliência.

Assim, o que se demonstra a seguir é o desacerto da decisão brasileira e chilena de

construir grandes projetos hidrelétricos em biomas vulneráveis, pois mesmo sendo uma fonte

de energia limpa, a energia hidrelétrica é considerada convencional por exigir o alagamento

de grandes extensões dos territórios dos países e ainda contribuir para o aumento da emissão

de gases que influenciam na frequência de eventos naturais extremos (mudanças climáticas),

ainda que mitigados pelo novo conceito de usina-plataforma11. Além disso, preocupa-se com

o procedimento de legitimação (e não de legitimidade) dentro do arcabouço institucional que

os tenha viabilizado. Isso porque, conforme será demonstrado, é cediço que os fragmentários

presidencialismos de coalizão brasileiro e chileno permitem o avanço de empreendimentos

ligados diretamente aos financiadores de campanhas (empreiteiras e mineradoras) sobre

biomas sensíveis e até agora não explorados, sem considerar efetivamente outras alternativas

técnicas e locacionais.

Com efeito, a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL divulgou recentemente

o Relatório de Acompanhamento de Estudos e Projetos de Usinas Hidrelétricas (BRASIL,

2013), demonstrando a existência de 144 (cento e quarenta e quatro) projetos hidrelétricos na

região da Amazônia brasileira, entre grandes hidrelétricas e pequenas centrais hidrelétricas

(PCH's com potencial abaixo de 30 megawatts). Esses projetos envolvem os Estados do Acre,

Amazonas, Rondônia, Pará, Tocantins, Mato Grosso e Maranhão, impactando

significativamente as bacias dos rios envolvidos.

No Estado do Amazonas, destacam-se os projetos das empresas Voltalia Energia do

Brasil e a Energias Renováveis S/A (ERSA) na área do rio Canumã e seu afluente, rio Acari,

na calha do Madeira, não esclarecendo o referido relatório sobre seu potencial energético

esperado. Na fronteira entre os Estado do Acre e Amazonas existe outro empreendimento

localizado na região do rio Juruá e seu afluente, rio Moa. Nos Estados do Pará e Tocantins,

atingindo os municípios de Palestina do Pará/PA, Piçarra/PA, São Geraldo do Araguaia/PA,

Ananás/TO, Aragominas/TO, Araguaina/TO, Riachinho/TO e Xambioá/TO, tem-se o projeto

hidrelétrico de Santa Isabel, localizado na região do rio Araguaia, no Pará, retomado pelo

11Trata-se da utilização do conceito de plataforma de petróleo na construção das hidrelétricas de modo a reduzir o desmatamento para fins de canteiro de obras, uma vez que os trabalhadores construíram o empreendimento pela logística de deslocamentos de equipamentos e materiais por helicópteros.

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Consórcio GESAI (Geração Santa Isabel, integrado pelas mineradoras Vale, Alcoa Alumínio

S/A, BHP Billiton Metais S/A, Votorantim Cimentos Ltda e a empreiteira Camargo Corrêa

S/A). Esse empreendimento ficou suspenso por alguns anos por encontrar-se em área

considerada de alta prioridade para a proteção da biodiversidade, além de afetar diretamente

131 cavidades naturais. Com a previsão de cobrir 250 km² com seu reservatório, estima-se

gerar 1080 megawatts. Além dessa, tem-se a hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, integrante

do Complexo do Tapajós12, com o reservatório de 722,25 km² e estimativa de gerar 6.133

megawatts. No Estado de Rondônia tem-se a construção da hidrelétrica de Jirau que aproveita

o potencial energético do Rio Madeira com o reservatório planejado para de 258 km2 e

estimativa de gerar 3.750 megawatts, de responsabilidade da Energia Sustentável do Brasil

(ESBR, integrada pelas empresas Suez Energy, Eletrosul e Chesf). Juntamente com esse

empreendimento, tem-se a hidrelétrica de Santo Antônio de responsabilidade do consórcio

Madeira Energia, integrado pela Odebrech e Furnas Centrais Elétricas S/A, formando-se o

denominado Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, sendo que esse tem a estimativa de gerar

3.150 megawatts com um reservatório de 271 km2 (BRASIL, 2011).

Mas, sem sombra de dúvidas, o mais avançado e que mais tem ganhado notoriedade é

o projeto de da hidrelétrica de Belo Monte13, no Estado do Pará, com a previsão estimada de

gerar 11.233 megawatts com um reservatório de 516 Km2, instalado no Rio Xingu. Esse

empreendimento está sob a responsabilidade do Consórcio Norte Energia, integrado pela

Chesf, Vale, Queiroz Galvão, J Malucelli, Cetenco Engenharia, Mendes Júnior Trading

Engenharia, Contern Construções e Comércio, Serveng-Civilsan e Galvão Engenharia.

Nota-se que as falhas nos estudos de impacto ambiental específicos de cada

empreendimento - quando deveria ser estratégico de modo a envolver toda a região - e sua

12 Na microrregião estão previstas 07 hidrelétricas: São Luiz do Tapajós (6133 MW), Jatobá (2338 MW), e Chocorão (3336 MW) no rio Tapajós, e Cachoeira do Caí (802 MW), Jamanxim (881 MW), Cachoeira dos Patos (528 MW), e Jardim do Ouro (227 MW) no rio Jamanxim. O total da capacidade instalado seria de 14.245 MW. [...] O custo das usinas seria R$ 40,9 bilhões/US$ 20,76 bilhões. A mais cara seria São Luiz (US$ 9,2 bi), daí vai Jatoba ($4 bi), Chocorão ($4,3 bi), Cachoeira do Caí ($1,02 bi), Jamanxim ($984 mi), Cachoeira dos Patos ($751 mi), e Jardim do Ouro ($500 mi) (SWITKES, 2009, grifo nosso). 13 Belo Monte será hidrelétrica menos produtiva e mais cara, dizem técnicos. Eles preveem que insegurança jurídica e ambiental vão complicar usina. Leilão definiu grupo que tocará obra, formado por Chesf e construtoras. A hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, Pará, será a usina que produzirá menos energia, proporcionalmente à capacidade de produção, e que terá maior custo para os investidores na comparação com outros empreendimentos de grande porte, em razão da intensidade dos impactos sociais e ambientais na região [...].O governo estima cerca de R$ 3 bilhões dos R$ 19 bilhões totais previstos para a construção. Especulações dão conta de que a obra total custe até R$ 30 bilhões."A usina está em um local longe e o primeiro problema é o acesso. Entra em território que não é reserva indígena, mas tem população indígena. Se conhece o terreno olhando de cima", acrescentou. Para o engenheiro, há muita coisa na construção da hidrelétrica que não se pode prever. "A complexidade disso é exatamente pelo porte da obra. Os problemas serão de magnitude e consequencias do porte da obra", afirma Areco (OLIVEIRA e JUSTE, 2010, grifo nosso).

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necessária e adequada publicidade14 bem como no planejamento inadequado das licenças

ambientais exigidas15 deságuam no poder Judiciário. Constata-se que por tratar-se de uma

demanda que exige uma maior maturação sobre os interesses envolvidos na arena política, o

seu debate em busca de solução deveria partir dos cenários montados entre os poderes

Executivo, Legislativo e os afetados diretos. O problema que procedimentos de licenciamento

mal instruídos e a desconsideração de interesses, como das populações tradicionais, atrai o

poder Judiciário como um substituto funcional do necessário desse ausente debate na esfera

pública.

Isso fica evidente no caso da hidrelétrica de Belo Monte em que o poder Judiciário

constatou que faltavam até os pressupostos para se considerar um licenciamento. No entanto,

mesmo suspendendo as obras num primeiro momento, principalmente nas licenças ambientais

iniciais, até mesmo a teoria do fato consumado16 já foi alegada para pleitear-se a restauração

do prosseguimento das mesmas.

A confiança na insegurança jurídica difundida e incorporada ao meio empresarial é

patente de modo que empreendimentos, diante de várias opções de energias firmes renováveis

diferentes da hidrelétrica, tornariam inviáveis projetos grandes em uma região cuja

biodiversidade e clima são sensíveis a qualquer alteração de suas condições naturais. Para se

tomar um parâmetro atual, verificam-se países como a Alemanha e China caminhando em

direção oposta à brasileira. Nos Estados Unidos também não tem sido diferente quanto à

alteração crescente de sua plataforma energética, sendo que, em 2012, aquele país passou a

gerar em escala 13.000 megawatts, o equivalente a uma hidrelétrica de Belo Monte, somente

com energia solar e eólica.

A grande questão que se evidencia na manutenção de uma plataforma energética

convencional é o fato das obras de engenharia permitirem licitamente a transferência dos

valores desprendidos pelas construtoras, mineradoras e bancos no financiamento de campanha

em todos seus matizes17.

14 Vide art. 225, parágrafo 1º, inciso IV, da Constituição da República (BRASIL, 1988). 15 Vide Resolução nº 237 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (BRASIL, 1997). 16 No julgamento do Recurso Extraordinário nº 609.748/2011 - Rio de Janeiro, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a teoria do fato consumado não pode ser invocada para conceder direito inexistente sob a alegação de consolidação da situação fática pelo decurso do tempo . 17 Das dez maiores financiadoras de campanhas políticas, seis são empreiteiras. O valor fornecido por empreiteiras nessas eleições <2012> é de R$54 milhões, de acordo com os documentos emitidos no fim do último mês, o que representa 75% do total doado para as campanhas. Na lista das dez maiores empresas que fomentaram as candidaturas, apenas quatro não são construtoras: dois bancos (Alvorada e BMG), um frigorífico (JBS) e uma empresa de exportação e importação (Coimbra). A principal financiadora é a construtora

Andrade Gutierrez, que doou R$23.085 milhões, seguida pela OAS, com R$21.260 milhões distribuídos

entre diversos partidos. As outras empreiteiras são Queiroz Galvão, Cristiani-Nielsen, Odebretch, Carvalho

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É sintomático que, nas eleições de presidenciais de 2010, poucas empresas foram

responsáveis pela maior parte do financiamento da campanha da presidente Dilma Rousseff,

sendo que metade de todo o dinheiro declarado pela campanha da presidente eleita saiu de 27

maiores doadores. Apenas o setor de empreiteiras e construtoras doou pelo menos R$ 37

milhões para os cofres petistas, o que representa mais de 27% de toda a arrecadação,

conforme destacam Bramatti e Toledo (2010). Nota-se que todas elas, direta ou indiretamente,

estão envolvidas na construção das usinas hidrelétricas na região amazônica.

Quadro 1: Ranking dos maiores doadores para a campanha de Dilma Rousseff em 2010. Fonte: Bramatti e Toledo (2010).

Hoskent e Camargo Correa. Os partidos, comitês e candidatos têm obrigação legal de prestar contas a respeito da campanha.A grande contribuição das empreiteiras não é novidade no país. Desde que o marketing começou a fazer parte do dia-a-dia dos candidatos, as campanhas carecem de montantes de dinheiro para atrair votos. O financiamento é fruto de doações, já que por instrução da lei nenhum incentivo pode vir dos cofres públicos. A maior parte do dinheiro acumulado vem de empresas. Muitas dessas empresas fecham contratos com o governo, em sua maioria, grandes empreiteiras. (CAIRES, 2012, grifos nossos).

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Quadro 2: Quadro geral dos doadores para a campanha de Dilma Rousseff em 2010, por setor. Fonte: Bramatti e Toledo (2010).

Se verificar o benefício direto a essas empresas pode-se chegar à conclusão que ao

menos 12 empreiteiras e construtoras que doaram para a campanha da presidente Dilma

Rousseff são fornecedoras do governo federal: Só em 2010, receberam, por ora, R$ 1,247 bilhão. Juntas, doaram R$ 28,4 milhões ao comitê da petista ou ao seu partido. Nenhum outro setor econômico recebe tanto dinheiro do governo federal. Isso dá pistas da razão pela qual o segmento de construção foi o que mais contribuiu para a campanha de Dilma. Foi responsável por um em cada quatro reais que entraram nas contas do comitê. A Construtora Andrade Gutierrez S/A, por exemplo, doou R$ 5,1 milhões ao Comitê Financeiro Nacional para Presidente da República administrado pelo PT. Recebeu, apenas em 2010, R$ 391 milhões do governo federal, principalmente pelas obras da Ferrovia Norte-Sul. A Construções e Comércio Camargo Correa doou R$ 8 milhões à campanha de Dilma. Recebeu até hoje R$ 99 milhões do governo federal, pela construção da Norte-Sul e por obras de irrigação. Tem mais a receber, como pelas eclusas da

usina hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, inauguradas esta semana por Lula e

Dilma (TOLEDO, 2010).

Quadro 3: Quadro comparativo de valores doados pelas empresas financiadoras da campanha de Dilma Rousseff em 2010 x valores recebidos pelas mesmas pelo governo eleito. Fonte: Toledo (2010).

Diante disso fica patente como a sustentação financeira das campanhas tem relação

direta com manutenção de projetos de energia convencional de grande impacto na amazônia

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brasileira. De outro lado, demonstra também como a agenda do poder Executivo sobrepõe-se

ao poder Legislativo, cujos financiamentos também não destoam das eleições majoritárias: [...] como o sistema eleitoral brasileiro se alimenta de práticas clientelistas, já fartamente indicadas pela literatura, os parlamentares buscam apoio no setor

privado como forma de capitalizar recursos, tanto para as campanhas quanto

para a produção de políticas de interesse localizados, que possam maximizar as

chances de eleição. Além do mais, em um sistema altamente competitivo como o brasileiro, recusar a doação do setor privado aumenta os riscos deste capital buscar apoio na oposição, aumentando as incertezas do sucesso eleitoral. Por esta razão o apoio do capital privado ocorre com todos os candidatos de todas as regiões do Brasil, independentemente do grau de desenvolvimento sócio-econômico do território. (RIBEIRO; SOUZA, 2011, p. 16).

Por seu turno, necessário agora verificar como esse mosaico de interesses tem sido

trabalhado no âmbito do presidencialismo de coalizão chileno.

3.2 Os Projetos Hidrelétricos na Patagônia Chilena

A construção de centrais hidrelétricas na região da Patagônia demonstra a tendência na

América Latina de avançar-se sobre regiões de biodiversidade sensíveis, com projetos de

hidrelétricas ainda defendidos como as uma das poucas energias firmes sustentáveis. Após

estudos para a implantação de cinco hidrelétricas ao longo dos rios Baker e Pascua, tem-se a

aprovação de mais projeto hidrelétrico na região. Esse denominado projeto Rio Cuervo, da

Energia Austral, é um empreendimento conjunto das australianas Origin Energy e Xstrata

Copper que busca gerar 640 megawatts. Ele também está situado em Puerto Aysén, na

Patagônia chilena, uma região com grandes reservas de água e natureza quase inexplorada. Os

primeiros cinco projetos têm o valor estimado de US$ 3,2 bilhões, uma joint venture entre a

chilena Colbún e a hispano-italina Endesa, e prevê a geração de 2.750 megawatts de

eletricidade, sendo que as barragens inundariam 5.900 hectares de área virgem. Não por

acaso, o governo argentino também tenha interesse em utilizar a Patagônia para tais

empreendimentos. Tanto assim que, no final do ano de 2012, foi aberta uma licitação

internacional para a construção de duas hidrelétricas sobre o rio Santa Cruz, na Patagônia,

com investimentos na ordem de 4,5 bilhões de dólares (ROSSI, 2012).

Somando-se a isso há o fato que, além da geração da energia nos projetos chilenos, no

âmbito da transmissão, tem-se a previsão da construção de 1.900 km de linhas de entre as

usinas e a distribuição para o sistema elétrico que atende a região de Santiago e as minas de

cobre da Codelco e da Anglo American, de modo que 80% da energia gerada será

disponibilizada para a indústria, comércio e mineradoras (PROTESTOS, 2011).

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Nesse contexto, os poderes Executivo e Legislativo também deixaram para o poder

Judiciário o enfrentamento de questões como a concepção dos projetos das hidrelétricas

chilenas, que são próprias do debate político institucional do presidencialismo de coalizão.

Desse modo, justiça do Chile acolheu o pedido dos ambientalistas e suspendeu a construção

do projeto hidrelétrico no Rio Cuervo, contrariando a recomendação de uma comissão de

revisão ambiental, que havia aprovado administrativamente o projeto. E mais, ignorando uma

recomendação do serviço nacional de geologia e do serviço de mineração de rejeitar o

levantamento de solos feito pelos empreendedores (JUSTIÇA, 2012).

É fato que enquanto o Brasil possui uma taxa de cobertura energética de 92% e o Chile

possui o índice de 33%, sendo que esse importa 97% dos seus combustíveis fósseis e tem uma

grande dependência da geração hidrelétrica. Mesmo assim, ambos os países avançam da

mesma forma convencional sobre as áreas ambientalmente sensíveis e com o mesmo

argumento: a necessidade energética. Esse agir estratégico18 fica demonstrado quando se

verifica em uma pesquisa feita pelo instituto Ipsos que 61% da população chilena rejeita os

projetos sobre a região. No entanto, a autonomização das instâncias políticas de representação

enseja a constatação que o cumprimento dos compromissos assumidos com os financiadores

de campanha tem sido mais relevante: La preocupación respecto a la influencia del financiamiento de la política en las políticas públicas de un país se centra en el rol de las donaciones corporativas más que en las individuales. Una visión respecto a las donaciones corporativas (empresas y organizaciones gremiales) al financiamiento de campañas es que estas tienen por objetivo “comprar” legislación favorable, en particular leyes que permitan obtener subsidios o exenciones tributarias [...]. Dada la evidencia existente respecto a la motivación y la influencia de grupos corporativos para contribuir financieramente a las campañas electorales, la pregunta relevante es por qué no se observan montos mayores de contribuciones al financiamiento de campañas dado que es tan rentable hacerlo. Una explicación posible es que contribuir con dinero a una campaña electoral es simplemente una forma de participación (Ansolabehere et al, 2002). En ese sentido, las personas donarían

18 “[...] tanto o agir comunicativo quanto o agir estratégico partem do pressuposto do participante, e não mais do observador. Ao passo que o primeiro é uma ação voltada para o entendimento e reconhecimento mútuo, o segundo, embora não seja lingüístico, não pode ser considerado instrumental; visto que pressupõe o agir comunicativo, podendo ser convertido em ação instrumentalizante, que, ao ter a linguagem como mero meio de comunicação, conserva singular o plano de ação do altere do ego. Assim, no primeiro nível de idealização (idealidade da generalidade dos conceitos e significados – semântica), os participantes da interação têm de atribuir-se reciprocamente a consciência de seus atos; ou seja, têm de supor que eles são capazes de orientar seu agir por pretensões de validade. Do contrário, tantos os participantes filósofos (perspectiva interna) quanto os observadores sociológicos (perspectiva interna), enquanto virtuais participantes, passam do enfoque performativo (Peirce, assumido por Habermas) para o estratégico (finalístico/objetivador). [...] Essa universalidade da aceitabilidade racional mantém a tensão pela não ocorrência de síntese hegeliana de todos os contextos, como o ocorreu na representação do Estado liberal (excessos do Poder Legislativo) e na representação do Estado social (excessos do Poder Executivo). No mais, somente a aceitação obrigatória da contingência gerada por essa tensão permanente pode fazer das pretensões de validade caminhos para uma prática cotidiana ligada ao contexto (concepção principiológica da linguagem) da representação política institucionalmente aceita como uma construção.” (S NT S G R CC , 200 , p. 64-65).

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simplemente por motivación ideológica, por interés en algunas elecciones en particular y porque tienen ingresos suficientes como para participar en política de esta forma

7. Otra explicación, que puede ser complementaria a la anterior es que

hay formas más efectivas de influir en legislación favorable para grupos de interés específicos. (AGOSTINI, 2011).

Desse modo, assim como no Brasil, os agentes financiadores de campanha no Chile

participam dos grandes projetos de hidrelétricas em regiões de biodiversidade sensível.

Embora a reforma do mecanismo de financiamento tem sido alterado19, tem-se que o controle

nessa seara ainda é fugidio. A influência desses agentes na tomada de decisões fica patente

quando se verifica que um dos coordenadores financeiros da campanha do atual presidente

Sebastián Piñera foi Bernardo Lorraín Matte20, presidente da Colbún, empresa envolvida

diretamente com o projeto das hidrel tric as na Patag nia chilena, que atualmente faz “meia

culpa” diante da mobilização internacional pela preservação da região: Colbún se incorporó a HidroAysén en el año 2006 y era una prioridadsocializar el proyecto a nivel regional (en Aysén), pero ignoramos completamente la audiencia nacional", dijo el directivo en el marco de un seminario organizado por Valor Futuro y la Escuela de Administración de la Universidad Católica. No obstante, Larraín Matte se excusó afirmando que "fue un error que cualquiera habría cometido, porque pensar que HidroAysén se convertiría en un tema mundial era algo difícil de anticipar (BERNARDO, 2012).

Como toda abordagem que se realiza sobre o tema, a preocupação não pode ser apenas

pela legalidade do financiamento. É importante também focar-se nos mecanismos de controle

popular sobre as pretensões - muitas vezes, nada republicanas - dos financiadores de

campanha e sua encampação mediante políticas públicas, como a política energética dos

Estados brasileiro e chileno, pela coalizão presidencial exercente do poder.

19 El 11 de diciembre de 2005 se realizaron elecciones presidenciales y parlamentarias en todo el país y un tema que en estos días cobra realce en la discusión pública es el del financiamiento de campañas políticas, tanto por parte de privados (personas naturales, empresas y organizaciones sociales) como del Fisco. Para normar este crítico aspecto del proceso electoral existe una clara legislación al respecto. Las donaciones monetarias a partidos políticos están normadas principalmente por la Ley N° 19.884 sobre transparencia, límite y control del gasto electoral, y por la Ley N° 19.885, que norma el buen uso de donaciones de personas jurídicas que originan beneficios tributarios. En la Ley N°19.884 hay que hacer notar dos aspectos. El primero es que fija un límite de dinero que una persona natural o jurídica puede donar a campañas políticas en una misma elección, sea a uno o varios partidos, sea a uno o varios candidatos. Los límites son: 1.000 UF para cada candidato a elecciones municipales.1.250 UF para cada candidato al Congreso Nacional. 2.000 UF para cada candidato a la Presidencia de la República. 10.000 UF para cualquier conjunto de candidatos.10.000 UF para un mismo partido político. El segundo aspecto es que se crean tres mecanismos para efectuar donaciones que buscan hacer más transparentes los procesos y evitar los tráficos de influencias y los cobros de favores (FINANCIAMIENTO, 2005). 20 Los que conocen la cocina de Apoquindo 3000 –el cuartel general de las empresas del ex- senador, ubicado al frente de su comando “oficial”– sitúan al tope de esta pirámide a su íntimo amigo y socio, el empresario José Cox Donoso. El director de la administradora de fondos de inversiones CMB Prime (que tiene oficinas apenas unos pisos más abajo que el candidato) es quien ha liderado la recolección para la campaña. Algunos allegados a Piñera agregan que cumple dicha tarea junto a al menos otros cuatro ejecutivos, entre los que se cuentan los también empresarios Patricio Parodi y Juan Bilbao, de Consorcio Financiero. Otros mencionan a Bernardo Matte –de viejos nexos con RN y más bien cercano a Andrés Allamand - como parte de la misma red (MINAY, 2009).

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04 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma vez que nenhum mosaico jurídico de controle de tomadas de decisão é perfeito,

mas produto de uma construção permanente, quando se reflete sobre as relações entre o poder

Executivo e o poder Legislativo na história institucional brasileira e chilena, observa-se a

preponderância da agenda daquele, principalmente após o advento do Estado Social e as

demandas por políticas públicas de massa.

Com efeito, quando se analisam os financiadores dessa transformação de votos em

cargos políticos, constata-se que, mesmo sendo suas doações regulares e lícitas, essas

possuem uma vinculação direta com o retorno do capital investido nas campanhas com os

empreendimentos de grandes hidrelétricas na região da Amazônia brasileira e da Patagônia

chilena.

Assim, a fragmentação do processo de tomada de decisão no presidencialismo de

coalizão reflete na postura dos poderes Executivo e Legislativo no sentido de viabilizar os

marcos jurídicos para a execução das obras relacionadas com as empresas que implementam

esses grandes projetos hidrelétricos. Além disso, propugnam no ambiente comunicacional um

caráter pejorativo às energias renováveis não convencionais (solar e eólica) denominando-as

como “não firme” por alegação não serem estocáveis. Por outro lado, ressaltam

ilegitimamente as hidrelétricas como a única energia renovável firme e de escala.

Esse discurso estratégico tem a finalidade de perpetuar a fonte de financiamentos das

campanhas eleitorais bem como, ao contrário dos países desenvolvidos e mesmo em

desenvolvimento, de deixar de realizar um maior aporte financeiro inicial para as energias

renováveis não convencionais. O cerne da discussão está no fato que essas escolhas, sob o

pano-de-fundo imediatista, pode gerar um anacronismo político e energético. O primeiro pelo

fato de inviabilizar outras candidaturas que não das coalizões que estiveram comprometidas

com a permanência e a ampliação desses projetos. O segundo relaciona-se com o fato de que,

diante da efetiva alteração dos regimes de chuvas como consequência das mudanças

climáticas, esses grandes reservatórios naquilo que um dia foi um rico bioma estarão sub-

utilizados.

REFERÊNCIAS

ABREU, Sebastião de. A esquerda em tempos de Lula. Brasília: André Quicé, 2006.

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______. A fidelidade partidária e o estatuto jurídico do mandato eletivo na ordem

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CONSTITUIÇÃO, ESTADO PLURINACIONAL E AUTODETERMINAÇÃO

ÉTNICO-INDÍGENA: um giro ao constitucionalismo latinoamericano.

CONSTITUCIÓN, ESTADO PLURINACIONAL Y LA AUTODETERMINACIÓN INDIGENA: un giro al constitucionalismo latinoamericano.

Sandra Nascimento1

RESUMO

A Constituição tem sido compreendida como expressão da realidade organizativa de uma sociedade servindo como fundamento para o exercício do poder político, dotada de supremacia e sustentada na democracia, entretanto, é constituída de elementos culturais eurocêntricos hegemônicos, que conservam o modelo de unicidade jurídica de base normativa lógico-formal e forjam a unidade nacional justificando as espoliações das terras indígenas e a incorporação/integração dos índios a uma sociedade nacional, ocultando ou deixando em segundo plano a sua condição política de autodeterminação. Esse artigo discute a normatividade constitucional em sistemas sociais pluriétnicos e pluriculturais, tomando como referencia o discurso institucional jurisdicional na questão das retomadas dos territórios indígenas. A reflexão abrange o paradoxo da “constitucionalização” dos direitos dos “índios” decorrentes dos seus costumes, tradições e direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam e a resposta jurídica racialista, conservadora e positivista que ainda domina o cenário jurídico brasileiro.

Palavras-chave: Constitucionalismo; autodeterminação; territórios indígenas.

RESUMEN

La Constitución ha sido entendida como una expresión de la realidad organizativa de una sociedad que funciona como base para el ejercicio del poder político, dotado de la supremacía y sostenida en la democracia, sin embargo, se compone en elementos culturales eurocéntricos hegemónicos, que conservan el modelo de la unidad jurídica en su base normativo lógico-formal y forjan la unidad nacional que justifica el despojo de las tierras indígenas y la fusión / integración de los indígenas a la sociedad nacional, y hace la ocultación de su condición política de autodeterminación. En este trabajo se analizan los sistemas normativos constitucionales pluriétnicos y multiculturales, tomando como referencia el discurso institucional sobre el tema de la reconquista de los territorios indígenas. La reflexión abarca la paradoja de la "constitucionalización" de los 1 Doutoranda em Ciências Sociais no Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas –

CEPPAC/UnB. Mestre em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. Professora de Direito Constitucional do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Advogada e Consultora em Direitos Humanos.

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derechos de los "indios" en virtud de sus costumbres, tradiciones y derechos sobre las tierras que tradicionalmente ocupan y la naturaleza de la respuesta juridica, racialista, conservador y positivista que aún domina el escenario jurídico brasileño.

Palabras clave: Constitucionalismo; la autodeterminación; los territorios indígenas.

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Introdução

A memória pós-colonial e a retórica da modernidade ocidental nos mostra que os

sistemas constitucionais na América Latina, de tradição romano-germânica, foram

constituídos no modelo da unidade jurídica e da homogeneidade político-cultural, cujas

bases epistemológicas sustentam a sistematicidade e normatividade Estatal como única

dotada de validade e legitimidade.

Em fins da década de 80, com a última onda de democratização, a eclosão de

demandas então silenciadas, colocou a diversidade étnica e o pluralismo na agenda

político-institucional e social, como reação ao racialismo geo-histórico e cultural até

então preservadas no contexto da modernidade.

As questões indígenas alcançaram destaque, na medida em que o desenho da

interação étnica haveria de se redefinir em face da ressignificação das posições dos

sujeitos enquanto titulares de direitos, em especial, do direito a identidade étnica e à

autodeterminação.

Assistimos, com certo entusiasmo, a textualização do pluralismo e a refundação

de Estados-Nação na perspectiva multicultural, a partir da incorporação da diversidade

cultural, da identidade étnica, linguística e da autonomia territorial indígenas

inaugurando assim o “constitucionalismo latino-americano”, marcando uma ruptura

com o modelo constitucional até então predominante nas Constituições do continente.

Na onda de refundação dos Estados-Nação sob a perspectiva multicultural, a

Constituição Brasileira de 1988 é uma das cartas políticas que reúne inconsistência

jurídica no que se refere à dimensão indentitária pluriétnica e de autonomia indígena,

pois, embora o país seja constituído por mais de 258 formas societárias indígenas

originárias e, atualmente, com uma população de quase um milhão de indígenas

autodeclarados2, não assume nem declara a dimensão pluriétnica e multicultural como

fundamentes da sociedade nacional.

A Constituição Brasileira sequer menciona “povos indígenas”. O texto

constitucional utiliza a expressão “índios”, “grupos” ou “comunidades”. Apesar disso, o

2 Fonte: IBGE – Censo 2010 (IBGE, 2012). A metodologia para obtenção das informações considera o

quesito raça/cor, na pesquisa por amostra de domicilio. Os indígenas que estão em áreas não demarcadas não integram os números da pesquisa, e certamente o numero seria maior se a metodologia fosse especifica.

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documento constitucional de 1988 reconheceu aos índios sua cultura, costumes,

tradições e os direitos territoriais sobre as terras que tradicionalmente ocupam.

No contexto do constitucionalismo latino americano em fins da década de 80, e

do novo constitucionalismo inaugurado nessa primeira década do século XXI, no plano

de avanços conceituais, pondera-se que a diversidade étnico indígena tem sido

politicamente ocultada, socialmente rejeitada e juridicamente desqualificada, como se

tem observado em episódios criminosos contra as populações indígenas no Chile,

Colômbia, Equador, Peru e Brasil.

Esse artigo discute os aspectos da normatividade constitucional e da

conflitualidade entre norma-texto e realidade a partir discurso institucional na questão

judicial de demarcação de um dos territórios do povo Guarani Kaiowá, denominado

Laranjeira Ñanderu, na região de Rio Brilhante no Estado de Mato Grosso do Sul no

Brasil, tendo em vista as decisões judiciais tendem a caracterizar o movimento de

ocupação do tekoha pelos indigenas como ato de “violência” contra a propriedade

privada em que se desenvolvem desastrosas atividades agropecuárias e agroindustriais.

Propõe-se aqui uma reflexão crítica acerca da constitucionalização dos direitos

dos “índios” decorrentes dos seus costumes, tradições e direitos sobre as terras que

tradicionalmente ocupam e o paradoxo da unicidade territorial e da mononormatividade.

A análise da questão da demarcação do território do povo Guarani Kaiowá

servirá, de inicio, para abrir espaço nos estudos constitucionais sobre a dimensão

jurídica da autodeterminação e autonomia dos povos indígenas enquanto direito e

principio constitucional.

O argumento é construído a partir da compreensão sobre o constitucionalismo e

a questão indígena no contexto da América Latina em fins da década de 80, com os

desdobramentos ao novo constitucionalismo de natureza pluriétnica e plurinacional. Os

fundamentos dessa reflexão cingem-se ao plano das normatividades produzidas a partir

do processo hermenêutico e do reconhecimento do pluralismo jurídico como campo que

proporcionará o esboço dos parâmetros jurídico-politicos sobre a diversidade étnica e a

autodeterminação indígena. Na questão da demarcação territorial, discute-se o conceito

normativo de território indígena em diálogo com a antropologia sob a ótica da

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. O registro sociopolítico e

judicial da questão que envolve a demarcação do TI Laranjeira Ñanderu propiciará a

analise jurídico constitucional na perspectiva pluriétnica e pluricultural, na qual tento

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demonstrar o paradoxo de concretização das expectativas normativo-constitucionais

diante do modelo de monormatividade.

O Constitucionalismo na América Latina e a questão indígena:

Constitucionalismo é uma noção que dimensiona o movimento de reivindicação

de autoridade jurídica para a decisão politica de moldar a organização política, o

exercício do poder político e a garantia das liberdades, em um sistema de normas

supremas emanadas de uma força constituinte originária. Enquanto movimento possui

uma historicidade e contextualidade geocultural, que desde sua expressão mais evidente

em termos de difusão ideológica a partir da Revolução Francesa de 1789 e dos ideais

individualistas e liberais, chega-se ao novo constitucionalismo resultante das revoluções

étnico indígenas da América Central e América Andina que impõem a primazia da

plurinacionalidade.

Enquanto noção o constitucionalismo é um constructo que incorpora

significações multidimensionais. No sentido amplo, pode ser compreendido como

fenômeno relacionado ao fato de que todos os Estados possuem uma constituição. Em

sentido estrito, o constitucionalismo pode ser compreendido como o movimento

jurídico, politico, social e ideológico que impõe a limitação do poder por constituições

escritas, consistindo, assim, em técnica jurídica de tutela das liberdades fundamentais e

contenção dos arbítrios do Estado, encontrando no contexto europeu e estadunidense,

em fins do século XVIII, seus marcos históricos e normativos, com as revoluções

francesas de 1789 e norte americana de 1776 (Bulos, 2008).

Embora não se tenha precisão conceitual, é possível identificar formas de

expressão de constitucionalismo desde a antiguidade clássica e na idade media, como

afirma Herman Heller, Leon Homa, T. O. Elias ou Karl Lowenstein ( apud Bulos

(2008), entretanto, chamo a atenção para o caráter do direito político que se constituiu

com as primeiras constituições escritas a partir da modernidade, com o Estado-Nação

Moderno e suas consequências sobre as novas institucionalidades na América Latina

pós-colonial.

As reflexões nesse trabalho estão delimitadas ao contexto do constitucionalismo

moderno de fins do século XVIII, compreendido como movimento jurídico, político e

cultural que promoveu a ruptura com o absolutismo, inaugurando o modelo de Estado

Constitucional, caracterizado pela primazia da separação de poderes e pela tutela das

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liberdades fundamentais, no qual o exercício do poder político é limitado por uma

Constituição produto de poder constituinte e, por esta razão dotada de supremacia.

(Bobbio, Matteucci, & Pasquino, 1998).

A trajetória do constitucionalismo moderno, contudo, não se constituiu de modo

linear e sem retrocessos. A experiência constitucional-liberal europeia sofreu os

impactos das revoluções socialistas do século XIX, e das contrarrevoluções que

impediram a consolidação de um formato institucional de validade universal, porém, o

projeto de hegemonização da organização estruturante do Estado Liberal e burguês, por

assim dizer, não foi interrompido.

A América Latina, no contexto pós-colonial, foi destino do projeto da

modernidade europeia destinado a afirmar uma identidade nacional, instituir a unicidade

jurídica e garantir a unidade territorial, dando sequência à logica da dominação colonial

(Mignolo W. D., 2002). As cartas constitucionais do inicio do século XIX, embora

tenham particularidades geo-histórias, adotaram em geral a separação de poderes, a

declaração dos direitos políticos e democracias representativas, como se vê, a exemplo

na Carta Constitucional do Império Brasileiro de 1824.

A América constitui-se como o primeiro espaço/tempo de um padrão de poder

de vocação mundial e, desse modo e por isso, como a primeira identidade da

modernidade. Dois processos históricos convergiram e se associaram na produção do

referido espaço/tempo e estabeleceram-se como os dois eixos fundamentais do novo

padrão de poder (Quijano, 2005).

De acordo com o Uadi Lamego Bulos o constitucionalismo moderno representou

a reaproximação entre os fundamentos éticos da vida humana e o Direito,

reintroduzindo as concepções de justiça e legitimidade coincidindo até a primeira

metade do século XX com o positivismo jurídico3 (2008).

A partir de meados do século XX, em decorrência dos episódios que marcaram a

II Guerra Mundial, levaram a redefinição da ordem jurídica e política, marcando o

neoconstitucionalismo, como mais uma etapa da experiência constitucional europeia.

Essa referência histórica é importante para contextualizar os processos de

redefinição do pensamento jurídico e do constitucionalismo, que a partir de meados e 3 Registro como referencia que na história do direito ocidental, a codificação do direito civil na França em 1804 marca o positivismo jurídico, reconhecido como positivismo-legalista. Na primeira metade do século XX o positivismo jurídico é reconfigurado a partir do positivismo-normativista kelseniano (Kelly, 2010), reconhecido também como neopositivismo, que dá ênfase à linguagem, ao teor literal da norma e segundo o qual a constituição regula a criação de outras normas , sendo fonte das demais normas infraconstitucionais, marcando o ponto de vista jurídico-positivo.

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fins do século XX se constitui pela aproximação das ideias de constitucionalismo e

democracia, no marco filosófico do pospositivismo jurídico, que busca ir além da

legalidade estrita, levando a quebra de paradigmas em face da afirmação da força

normativa da Constituição, da expansão da jurisdição constitucional e no

desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional inspirada pela

teoria da justiça (Barroso, 2007).

O neconstitucionalismo coincide com o processo de internacionalição dos

direitos humanos, no qual a pessoa humana, enquanto sujeito, é recolocada no campo

sociopolítico a partir da declaração de que todos nascem livres e iguais em direitos e

dignidade, marcando a importância da politica relacionada com a identidade e o retorno

da moralidade à política e do humanismo ao Direito (Douzinas, 2009, p. 34).

O discurso dos Direitos Humanos repercutiu na América Latina, em fins da

década de 80, com impacto nos processos redemocratização dos países até então

submetidos a regimes ditatoriais de caráter militar, e no cenário dos estudos jurídicos

críticos, marcado pela indissociável relação em direito e política (Kelly, 2010).

Esse novo contexto produziu uma explosão de demandas sociais, com as quais a

engenharia do novo Estado Democrático de Direito, entenda-se Estado-Nação

Constitucional, para garantir estabilidade institucional haveria de ser redefinida para

assegurar a inclusão dos interesses de grupos e comunidades antes à margem da

proteção social e do reconhecimento identitário, em especial, das populações indígenas

que, nesse período, ainda estavam submetidas a processos de dominação,

aniquilamento e ocultamento das identidades étnicas.

Não se pode deixar, contudo, de relacionar a historia do constitucionalismo sob a

gestalt indígena, para quem o constitucionalismo liberal significou “el sometimiento

indígena, esto es, el despojo de sus territorios, el aseguramiento de su subordinación

política, y su anulación cultural”; e o constitucionalismo social significou

integracionismo (Fajardo, 2006).

Somente com as lutas dos povos indígenas por reconhecimento de sua identidade

cultural foi possível em fins do século XX e inicio do século XXI, a produção de uma

legislação importante sobre os direitos dos povos no âmbito do Estado e no âmbito

internacional, levando à aprovação da Convenção 169 da Organização Internacional do

Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, em 1989

(Rodrigues Pinto, 2008).

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Nesse cenário o protagonismo indígena foi determinante para provocar a

redefinição do modelo de Estado-Nação, abrindo frente para um “constitucionalismo

latino-americano” e incorporação do pluralismo jurídico, porém, não de forma global ou

linear, no continente, destacando-se contudo o constitucionalismo andino.

O constitucionalismo latino-americano e a plurinacionalidade

A trajetória de [re]apropriação histórico-cultural das populações indígenas na

América Latina provocou uma onda de constitucionalização de direitos e liberdades

fundamentais orientadas agora por uma leitura moral do Direito, voltada para o

reconhecimento do outro, acomodando a diversidade etnicorracial e a pluralidade de

culturas no discurso do multiculturalismo.

Segundo Rodrigues Pinto o multiculturalismo constitucional foi-se difundindo

na América Latina a partir das Constituições da Guatemala (1986) e da Nicarágua

(1987), destacando que outros países criaram suas próprias variações do

reconhecimento dos direitos indígenas, e que tais constituições de alguma forma forma

“aceitam e protegem a identidade étnica de suas minorias e quase todas reconhecem a

precedência dos povos indígenas em relação ao estabelecimento do Estado” (Rodrigues

Pinto, 2008).

Nesse cenário, contudo um novo quadro do constitucionalismo latinoamericano

seria desenhado a partir dos anos 90 com as Constituições Políticas do Equador e Peru,

e no ano de 2009 com a Constituição Política Bolívia ao constituir uma nova

institucionalidade fundamentada na plurinacionalidade.

Essa nova face do constitucionalismo latino-americano, no período de 2006 a

2009, foi configurada no contexto da Declaração das Nações Unidas sobre os direitos

dos povos indígenas em 2007 e constituída

“a partir do protagonismo indígena, de que são resultado, também, um papel diferenciado da justiça indígena (no caso boliviano, sujeita apenas ao Tribunal Constitucional) e um novo léxico baseado na própria cosmovisão indígena (de que o reconhecimento de direitos a “pacha mama” no Equador e dos princípios- de cunho aimará- da nação boliviana são alguns exemplos)” (Baldi).

Não há duvidas de que as mudanças politicas e os novos processos sociais de

luta, protagonizados principalmente pela força “inconteste dos povos indígenas no

Continente”, marcaram um novo paradigma de constitucionalismo, de configuração

pluralista intercultural (Wolkmer, 2010).

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Enquanto movimento, contudo, o constitucionalismo de vertente plurinacional

ou pluralista intercultural não alcançou, ainda, espaço no sistema jurídico de todos os

países, a exemplo do Chile e do Brasil, sendo, pois distintas as respostas jurídicas para

as questões que abrangem o pluralismo, a autodeterminação sociopolítica e autonomia

territorial indígena.

Uma breve análise comparativa quanto à finalidade normativa em cada sistema

constitucional permite identificar, de um lado, os modelos que se baseiam na dimensão

multicultural, que tão somente representa o reconhecimento formal do pluralismo

cultural e da diversidade étnica enquanto expressão de „colonialidad de poder”. As

concepções multiculturalistas de identidade, cultura, entre outras, nas palavras de Silva,

“desempenharam um papel meramente retórico na transformação da situação colonial

dos povos indígenas na região” (Silva, 2012).

De acordo com Wolkmer os documentos legais e os textos constitucionais

elaborados na América Latina, em grande parte, têm sido a expressão da vontade e do

interesse de setores das elites hegemônicas, formadas e influenciadas pela cultura

europeia ou anglo-americana (2010).

Encontramos, contudo, de outro lado, as Constituições que incorporam o

pluralismo cultural e a diversidade étnico indígena enquanto condição sociopolítico

constituinte, ou seja, admitem sua origem pluriétnica como se verifica em relação às

Constituições do Equador de 1993 e da Bolívia de 2009, que afirmam sua natureza

plurinacional.

Essas duas constituições contemplam a reengenharia institucional, assegurando a

participação de grupos étnicos indígenas enquanto parte fundante do Estado e da

sociedade, sem reduzi-los à condição de grupo vulnerável, em cujas circunstâncias

sociopolíticas exercem, em condições de igualdade, o poder constituinte e, por meio de

outra organização politico-administrativa, que contempla espaços de participação

política plena, integram as estruturas de governo.

As Constituições da Venezuela, Equador e Bolívia seriam, assim, marco

normativo do que se tem convencionado denominar “novo constitucionalismo latino-

americano”, segundo Dalmau, para quem uma constituição que esteja à altura do novo

constitucionalismo deveria se basear na participação do povo, ser redigida por uma

Assembleia Constituinte, e buscar o "Sumak kamaña" ou o "Sumak kawsay" que

significa em quéchua o "viver bem" (Dalmau, 2009)

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O novo constitucionalismo é reação evidente ao processo de colonialismo

interno, como estratégia contra hegemônica, e surge em razão da insuficiência do

pensamento multicultural, que, na verdade, enquanto elemento politico ideológico tão

somente contribui para a preservação do liberalismo e das práticas de dominação.

Nesse sentido, o multiculturalismo, afirma Silva, como filosofia política crítica

do liberalismo, elaborado a partir da experiência com os “cultural mosaics” e dos

“melting pots” da América do Norte, passou a desempenhar este papel paradigmático

constituindo um novo ideal civilizatório para as elites políticas dos países da América

Latina no século XX, após a desilusão com seus mitos de democracia racial (2012).

De outro lado, Raquel Yriogyen pondera que as “ reformas constitucionales de

los países andinos incorporan derechos indígenas y el discurso del multiculturalismo, y

suponen cambios paradigmáticos respecto de la ideología jurídica monista (Fajardo,

2006).

Pode-se considerar que o multiculturalismo serviu para abrir espaço para o

reconhecimento das identidades étnicas, porém, criticamente, deve ser superado, na

medida em que coloca os povos indígenas no mesmo contexto de todos os outros

grupos que reclamam por reconhecimento.

Sob essa perspectiva, Goméz chama a atenção para o fato de não se confundir

ou subsumir o tema dos direitos indígenas no espaço da diversidade, pois, afirma “ Si

bien es cierto que estos movimientos y organizaciones se agrupan en colectividades, el

ejercicio de los derechos que reclaman, la titularidad de los mismos siempre se

individualiza. Diferente es el caso de los pueblos indígenas, que también están

incluidos en el espacio de la diversidad pero la naturaleza de los derechos que

reclaman es colectiva como lo es su titularidad” (Gómez, 2000)

É certo, porém, que até o evento desse “novo constitucionalismo”, as

constituições latino-americanas não contemplaram “as necessidades de seus segmentos

sociais majoritários, como as nações indígenas, as populações afro-americanas, as

massas de campesinos agrários e os múltiplos movimentos urbanos” (Wolkmer, 2010)

Deve-se, contudo, levar em consideração que nenhuma das Constituições, por

mais contra hegemônica que possa indicar seu teor literal, está livre de tensões no

âmbito de sua aplicação e, assim, não estarão desprovidas dos problemas de

normatividade em relação ao programa normativo que afirma o direito à diversidade

étnica e ao pluralismo, principalmente em razão de impasses conceituais, que ainda

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influenciam o sistema constitucional no continente com as nuances político ideológicas

dominantes.

Sem pretender, contudo, esgotar conceitualmente ou criticamente o tema, penso

ser importante, para a análise dos paradoxos de aplicação da constituição às questões

indígenas no sistema jurídico brasileiro, fazer algumas considerações sobre a força

normativa da constituição no contexto da diversidade étnico-indígena e das

consequências práticas no âmbito das relações interétnicas, no campo político e jurídico.

Normatividade constitucional, pluralismo jurídico e diversidade étnico-indígena

O Direito Político ou Direito Constitucional, como categoria de conhecimento, é

tradicionalmente compreendido como sendo o “conjunto de regras que estrutura o

aparelho da potencia dos Estados. Contempla em sua finalidade a tarefa de estabelecer

a organização do Estado, definir o regime político, fixar a estrutura governamental e

regulamentar suas relações com os outros Estados (Goyard-Fabre, 2002, p. 2).

No centro do modelo de Estado-Nação, está a Constituição que define o estatuto

orgânico do Estado e é nela que reside a base da potência estatal (Goyard-Fabre, 2002,

p. 103). Pondera Goyard-Fabre (2002) que se “a potencia é força e, às vezes, violência,

o poder político implica a ordem de direito erigida por um conjunto de vínculos

institucionais e que o poder político é constituído pelas normas que regem a organização

institucional da política e seu funcionamento no âmbito por ela determinado e

delimitados” (2002, p. 2).·.

A constituição é norma que contém recortes da realidade social e, enquanto

norma jurídica “é mais do que um enunciado de linguagem que está no papel” cuja

aplicação, ou seja, concretização, em um dado caso, se faz a partir dos dados fornecidos

pelo programa da norma, pelo âmbito da norma e pelas peculiaridades do conjunto dos

fatos” (Müller, 2010)

A normatividade da Constituição não é, assim, produzida pelo teor literal e sim

pelos elementos extralinguísticos, do tipo sociocultural e político, que se produzem e

reproduzem no processo hermenêutico, sendo a normatividade um processo estruturado,

que garante a análise hermenêutica da relação entre norma-texto e realidade, para além

do positivismo legalista (Müller, 2010).

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Nesse sentido, o significado e sentidos do texto não condicionam de modo

acabado, a produção de efeitos da norma, sendo que é o olhar do destinatário/interprete

que, contextualizadamente, confere validade e legitimidade às expressões jurídicas,

associadas à historicidade e exigências sociais, culturais, políticas, econômicas ou de

qualquer outra ordem que integram os modos de ser de determinada sociedade e que

funcionam como parâmetros da normatividade.

Apropriando da noção de que no “ direito constitucional uma norma jurídica

não é um juízo hipotético isolável diante do seu âmbito de regulamentação, nenhuma

forma colocada com autoridade por cima da realidade, mas uma inferência

classificadora e ordenadora a partir da estrutura material do próprio âmbito social

regulamentado” (Müller, 2010), é inegável considerar que os conteúdos que afirmam a

diversidade étnica sejam recorte da realidade e não pode ser ignorado pelo interprete ao

produzir a decisão no caso concreto.

A constitucionalização da diversidade étnica a partir do reconhecimento da

organização cultural, da cultura, dos costumes, das tradições indígenas assim como os

direitos territoriais, não é desprovida de normatividade, e funciona como parâmetro para

a efetividade jurídica, na dimensão da realidade.

Oportuno considerar que o problema da efetividade da Constituição no que se

refere aos preceitos da diversidade cultural e identidade étnica indígena e suas

consequências fáticas, não está apenas no plano metodológico de interpretação ou de

técnica classificatória das normas constitucionais, mas sim, de caráter conceitual

político-ideológico.

É necessário em última instância, como afirma Neves, fazer a distinção prática

da inefetividade da Constituição, que teriam fatores causais distintos, envolvendo de um

lado, conteúdos normativos que contenham fins que não se realizam em razão das

possibilidades estruturais e de outro, as condições e tendências das relações de poder

que estruturam a realidade constitucional (2007).

De acordo com Gómez a incorporação nos documentos constitucionais do

reconhecimento dos direitos indígenas, reconhecidos nas expressões “usos y

costumbres” anunciam a subordinação do direito indígena ao direito nacional, sendo

este “unicista y homogneizador de la diversidade cultural”. Para a autora implica em

“la recepción de um invitado de última hora, normas recién llegadas al derecho

nacional, simples adiciones que no lo cuestionan” (Gómez, 2000)

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A diversidade étnica, assim como o pluralismo étnico indígena e os direitos

indígenas, é certo, não se efetivam pela linguagem, porém, a linguagem jurídica é

determinante enquanto parâmetro para o âmbito normativo, que é o conjunto de dados

reais normativamente relevantes para a concretização individual da norma (Neves,

2007). O âmbito normativo, assim, deve ser considerado como espaço de

ressignificação e atualização permanente do sentido normativo das Constituições que

apenas tenham textualizado os direitos indígenas.

Em sistemas constitucionais que adotam a perspectiva do multiculturalismo,

com mais razão, estaremos diante do paradoxo da instrumentalidade normativa e de sua

efetividade, que poderá conter também a dimensão simbólica conservadora e racialista

que ainda encontra-se presente modelo jurídico influenciado pelo sistema

constitucional euroestadunidense.

A Constituição não se interpreta do mesmo modo que se interpretam as normas

comuns de direito civil ou de direito penal e por esta razão a atuação das instancias de

decisão não conseguem dar uma resposta constitucionalmente adequada às novas

situações de interação étnica indígena, pois exige a consequente superação do

positivismo legalista, do pragmatismo ou do oportunismo jurídico que tem silenciado

sobre os princípios fundamentais de sociedades pluriétnicas, quais sejam o da

autonomia e autodeterminação.

De acordo com Rangel compreender a autonomia e autodeterminação indígenas

exige a compreensão e aceitação do pluralismo jurídico, que enquanto fenômeno de

sociedades pluriculturais e multiétnicas deve ser compreendido no âmbito de uma outra

racionalidade, e que só pode ser o plano do direito subjetivo, que significa a “faculdade

ou poder da pessoa sobre seu ser, capacidades, atividades e posses para conquistar seu

desenvolvimento histórico e chegar à plenitude de seu fim último” (González Mofin

apud Rangel, 2004, p. 318)

Ao longo das últimas duas décadas foram se constituindo referencias

paradigmáticas para atuar no âmbito do pluralismo, enquanto noção de natureza

multidisciplinar levando a uma multiplicidade de concepções, mais precisamente pela

antropologia jurídica, sociologia jurídica, direito comparado, direito internacional, e dos

estudos sócio jurídicos (Tamanaha, 2007)4.

4 Tradução livre.

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Pluralismo jurídico é uma noção que designa a existência de várias ordens

jurídicas em um mesmo território, não diz respeito às meras representações jurídicas

plurais fundadas na mesma ordem jurídica, mas à identificação de sistemas próprios,

singulares, originários de formas societárias e de culturas distintas.

O que dá forma ao pluralismo jurídico não é a existência de múltiplas expressões

normativas, mas sim a distinção que existe entre elas, e que reclamam um lugar de

autoridade e que produzem, entre outros aspectos, exigências ou normas conflitantes, já

que devem conter diferentes estilos e orientações5 (Tamanaha, 2007).

Na história do direito, observa-se que a configuração das sociedades humanas é

marcada pelo pluralismo jurídico, desde a idade antiga, englobando o período medieval

que foi caracterizado por diferentes tipos de leis e instituições, ocupando o mesmo

espaço, às vezes conflitantes, às vezes complementares contestando e confrontando

hierarquias e organizações (Tamanaha, 2007).

A mudança dessa perspectiva pluralista ocorreria com o advento do jus

racionalismo do século XVIII.

Mas em que momento o pluralismo jurídico permite incorporar a

autodeterminação indígena, enquanto direito e enquanto principio norteador do diálogo

interétnico? Se considerarmos que as sociedades indígenas se constituem a partir de um

modo próprio de vida, possuem organização social distinta da sociedade nacional e

realizam seus usos e costumes, é consequência lógica que o reconhecimento e aceitação

do pluralismo jurídico levará ao reconhecimento da autodeterminação, do contrario,

não teremos avançado em nenhum grau na efetivação da diversidade étnica. Para

compreender os efeitos jurídicos da autodeterminação e sua influência nos processos de

demarcação territorial, no contexto constitucional brasileiro, apresento a seguir, um

esboço dos parâmetros de interpretação como mediadora da normatividade

constitucional.

O sistema constitucional brasileiro e a autodeterminação indígena: parâmetros

étnico-indígenas para a adequada interpretação constitucional.

O sistema constitucional brasileiro, assim como grande parte do mundo

ocidental, foi construído no marco da ideologia individualista e de homogeneidade

político-cultural, ocultando a diversidade étnica indígena no discurso da igualdade.

5 “impose conflicting demands or norms; they may have different styles and orientations”

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O discurso da diversidade inaugurado na dimensão política no final da década de

80 marca importante momento da história da redemocratização brasileira. A

Constituição Federal de 1988 contemplou demandas sociais importantes antes

desconsideradas, entre as quais, dos movimentos de defesa dos direitos dos povos

indígenas, ao incorporar no artigo 231 o reconhecimento da organização social,

costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que

tradicionalmente ocupam. No que se refere às terras que tradicionalmente ocupam, a

Constituição Federal, o conteúdo material do artigo 231, na verdade, oculta uma a

perversa situação, na medida em que os direitos territoriais dos povos indígenas não se

concretizam senão pela atuação do poder público, pois foi delegada à União a tarefa de

demarcar as terras indígenas.

Ao analisar a estrutura organizativa do Estado Brasileiro após a

constitucionalização dos direitos à diversidade étnica e cultural verifica-se que não

houve alteração institucional capaz de propiciar a interação étnica e o fortalecimento

dos direitos dos povos indígenas, ou de tornar efetiva a proposta a dimensão do

pluralismo.

No Brasil, a promoção e proteção dos direitos dos povos indígenas –

considerados como grupos minoritários - e, portanto, destinatários de políticas

específicas para as “minorias”, têm sido realizadas, ainda, por meio de medidas de

inclusão, de caráter integracionista, que tendem a desqualificar as identidades étnicas, a

autonomia e a diversidade.

As diversas constituições desse final de século XX como antes já mencionado,

lograram incorporar disposições da mesma natureza, algumas contemplando uma

normatização mais ampliada, no sentido de disciplinar a instrumentalidade dos preceitos

da diversidade étnica, da identidade cultural e da autonomia territorial como é o caso

das Constituições da Guatemala de 1986 com a reforma de 1993, ao assegurar

constitucionalmente a assistência financeira e técnica nas terras indígenas, ou da

Constituição da Nicarágua de 1987 com as reformas de 2003, que assegura a

participação politica dos indígenas, bem como da Constituição da Colômbia de 1991

com as reformas de 2005, que assegura a autogestão dos territórios indígenas por

conselhos formados pelos usos e costumes das comunidades, ou ainda, a exemplo, a

Constituição do Peru de 1993 ao reconhecer personalidade jurídica e existência legal às

comunidades nativas, e autonomia na sua organização e trabalho e a livre disposição de

suas terras.

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Sem duvida alguma, os artigos 231 e 232 da Constituição Federal representam

um avanço no reconhecimento da diversidade étnica e cultural. Entretanto, não há como

deixar de analisar criticamente o impacto das condicionantes técnico-jurídicas que

acompanham esses enunciados e os demais dele decorrentes, que influenciam

diretamente na força normativa desses preceitos, incidindo diretamente nos processos de

“territorialização”.

Observa-se que o compromisso constitucional da diversidade étnica não

incorporou o caráter jurídico político da autodeterminação, pois os processos de

reconfiguração intersubjetiva tem sido, ainda, mediados por entidades e instituições

públicas e privadas de varias categorias, que de algum modo, conservam, nas práticas

protecionistas, a “moldura ideológica positivista” (Silva & Lorenzoni, 2012).

O reconhecimento das expressões culturais, costumes e tradições dos “índios”

não poderá se fazer dissociado da compreensão normativa constitucional sobre o que

seja o direito fundamental à diversidade étnica e cultural, ou seja, o direito à existência

singular enquanto povo com uma organização social e política próprias. Enquanto

direito fundamental vincula os poderes públicos e, nesse plano, há de se concluir que se

retira do legislador ordinário autorização para editar atos que possam restringir o núcleo

de incidência desse enunciado normativo, principalmente as que venham estabelecer

“sistemas classificatórios pelo grau de contato e interação com a sociedade nacional”,

tendo em vista que nestes, segundo Silva & Lorenzoni “o índio é, não somente

implicitamente, mais explicitamente e legalmente, definido pelo olhar e atos do sujeito

nacional” (2012).

Na sequência a esta reflexão me ocupo da tarefa de fazer um esboço preliminar

acerca dos elementos mínimos indispensáveis para a compreensão jurídica da

autodeterminação, enquanto direito e enquanto princípio contido implicitamente no teor

literal do artigo 231 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

O programa normativo desse dispositivo preceitua que são reconhecidos aos

índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos

originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-

las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Adotando a perspectiva teórica de antes apresentada de que a norma não se

identifica com o teor literal, é necessário, de um lado, extrair as significações

linguísticas, tais como o termo “reconhecer” que significa admitir ou aceitar, e de

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outro lado, as significações extralinguísticas e os aspectos extrajurídicos que integram a

normatividade.

No plano da sua aplicação esse enunciado normativo está tecnicamente pronto

para irradiar efeitos sobre as situações que contempla, abrangendo o conteúdo material

relativo a: organização social; costumes; línguas; tradições; crenças e, direitos

territoriais.

Esse conteúdo material revela o núcleo jurídico da diversidade étnica e cultural,

que é multidimensional e diz respeito, não ao direito a cultura, mas, à própria cultura. A

noção de cultura é, no entanto, plurissignificativo e de conceituação multidisciplinar.

Não pretendo aqui abrir a reflexão para o conceito de cultura, dada a sua complexidade,

porém, admitindo que “nenhuma cultura existe em estado puro e sem ter jamais sofrido

a mínima influência externa”, apenas como ponto de partida ara os fins de nortear a

proposta de produzir sentido ao enunciado constitucional, adoto aqui a noção de cultura

elaborada no âmbito da Declaração da Cidade do México sobre Política Culturais de

1982, como um conceito útil, como sendo o“ conjunto dos traços distintivos, espirituais

e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e

que abarca, para além das artes e das letras, os modos de vida, os direitos fundamentais

do ser humano, os sistemas de valores, as tradições e as crenças”.

A partir dessa concepção é possível delimitar o campo normativo da diversidade

étnica, que se desdobra em vários núcleos jurídicos.

O desdobramento plurinuclear, entre outros, deverá abranger os seguintes

campos jurídicos: a) reprodução cultural sem interferência externa; b) manifestação

cultural autônoma; c) identidade étnica; d) convivência comunitária com o próprio

povo; e) acesso a ancestralidade; f) formação e desenvolvimento na sua própria

cultura; g) educação nos moldes de sua tradicionalidade; h)) educação no próprio

idioma ( língua materna); i) conservação das tradições; j) pertencimento étnico sem

condicionantes externas, e l) cidadania plena, livre de protecionismo.

Os princípios e os núcleos jurídicos materiais contidos no programa normativo

podem ser compreendidos em duas dimensões, considerando os efeitos jurídicos

latentes e os efeitos jurídicos manifestos. Em interação com a realidade produzem

consequências jurídicas de natureza negativa, no sentido de vedar de práticas

integracionistas e de impor respeito aos usos, costumes e tradições. De outro lado,

irradia sua natureza positiva ao impor a tarefa de assegurar o direito ao bem estar e à

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reprodução física e cultural. Implícita e de maneira latente, sobressai a natureza

preceptiva que impõe o reconhecimento da equivalência cultural e da autodeterminação.

Essa dimensão jurídica, assim entendo, como resultado da atividade interpretativa

constitucionalmente adequada à perspectiva pluriétnica e multicultural, confere aos

indígenas autonomia para tomar decisões sobre as questões relacionadas ao processo de

territorialização abrangendo, inclusive a autodemarcação dos limites territoriais

necessários à sua reprodução física e cultural.

Se os povos indígenas controlam os acontecimentos que os afetem, no que diz

respeito a seu território e sua cultura, poderão manter e fortalecer suas instituições,

cultura e tradições, assim como promover seu desenvolvimento de acordo com suas

necessidades e interesses, conforme enuncia a Declaração das Nações Unidas sobre os

direitos dos povos indígenas, A/RES/61/295, 10/12/2007.

Desse modo os parâmetros de interpretação constitucional devem coincidir com

a perspectiva internacional, ao declarar que os povos indígenas têm direito a livre

determinação segundo a qual determinam livremente sua condição política e buscam

livremente o seu desenvolvimento econômico, social e cultural, consistindo o direito

de todos os povos de buscar o seu desenvolvimento material, cultural e espiritual

enquanto grupo social, ou seja, de controlar seu próprio destino.

Enquanto „direito‟ manifesta-se, ou seja, exterioriza-se, na autonomia ou

autogestão, que diz respeito a gestão de suas questões internas e locais e, enquanto

princípio a autodeterminação6 orienta as relações interétnicas no sentido de não admitir

intervenções arbitrárias, dominação ou negação da condição jurídica enquanto sujeito de

direitos, com ênfase em princípios conexos como o da não discriminação. Entenda-se

que a dimensão jurídica da autonomia só pode ser relacional, considerando, as

sociedades indígenas em face do Estado-Nação.

Embora, a Constituição Federal de 1988 não fazer referência a “povos

indígenas” ou “nações indígenas”, essa dimensão é implícita à realidade social do nosso

tempo recortada no artigo 231, e por esta razão a atividade hermenêutica,

principalmente realizada pelos juízes e tribunais, deve resultar na ampliação do espaço

de significação da diversidade étnica e do pluralismo proclamado no mencionado artigo,

6 Principio do direito internacional, afirmado na Carta das Nações Unidas, no Pacto de Direitos Civis e Políticos e no Pacto de Direitos Econômicos, sociais e culturais e na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

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afirmando e assumindo a dimensão da autodeterminação como princípio constitucional

e direito no âmbito do sistema jurídico interno.

Desse modo, a autodeterminação enquanto princípio constitucional deverá

nortear, em grau de superioridade hierárquica, a atividade do poder público, seja no

âmbito do poder legislativo, do poder executivo, e, principalmente no âmbito do poder

judiciário ao solucionar questões que envolvam interesses indígenas de modo a não

utilizar equivocadamente os instrumentos jurídicos que não sejam compatíveis com a

perspectiva mulitucultural e pluriétnica.

Sob essa perspectiva, apresento o esboço da reflexão acerca da demarcação da

TI Laranjeira Ñanderu e das normatividades conflitantes no pretenso diálogo interétnico

relativo a territorialização, a partir de um dialogo interdisciplinar com a antropologia.

Territorialidade e identidade étnico-indígena: o que é terra indígena de ocupação

tradicional no sistema jurídico brasileiro

O território é o âmbito estratégico-administrativo mais relevante na situação de

incorporação de populações indígenas dentro (e por parte) do Estado-nação. Do ponto

de vista indígena, no entanto, a cronologia de fatos históricos que caracterizam a perda

de suas autonomias territoriais tem profundas implicações para o modo como esses

grupos pensam e agem nas conjunturas do presente (Contreras, 2008).

Entretanto, significar o território é uma tarefa bastante complexa, pois a ideia de

território é construída a partir de uma historicidade singular, real ou mítica, e de acordo

com as relações internas dos povos entre si e no espaço, abrangendo o espaço ambiental

e o espaço cultural destinado à reprodução de hábitos e cultura (Marés, 2002).

A questão do reconhecimento dos direitos sobre os territórios indígenas possui

uma historicidade normativa que contribuiu em grande parte para os impasses atuais,

principalmente com a proclamação da república e do modelo federativo em 1889.

Com a então Constituição de 1891 foi atribuída aos Estados federados a

titularidade e controle sobre as terras “ocupadas pelos índios”, gerando impasses com o

poder local, o Município. Pelo Decreto nº 8.072 de 1910, foi criado do Serviço de

Proteção ao Índio no âmbito União, vinculado à Presidência da República, que passou a

atuar como mediadora do diálogo entre o Estado e o Município, sendo que nesse

período surgiram várias normas municipais e estaduais disciplinando a questão da

demarcação territorial indígena, de formas bem distintas.

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Em 1928 por meio do Decreto nº 5.484 as terras devolutas que eram da

titularidade dos Estados federados, e que os índios tinham a posse, passou para o

domínio da União, provocando assim, outro mail estar institucional, tendo em vista que

a União passa a fazer a gestão de terras no âmbito do território dos Estados federados.

Somente com a Constituição de 1934 se deu a constitucionalização da proteção

da posse indígena garantindo-se a posse das terras ocupadas de modo permanente,

seguindo a Constituição de 1946 e a carta constitucional de 1967 que conferiu aos

índios o usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nela existente,

disciplinando ainda a nulidade de títulos que tivessem por objeto terra indígena.

E importante destacar que nenhum desses momentos de constitucionalização da

proteção da posse indígena se deu na perspectiva pluriétnica ou pluricultural e o

processo de demarcação quase sempre resultava da atuação jurisdicional, em razão do

conflito federativo.

Pretendendo eliminar as tensões federativas e conter as demandas indígenas, foi

aprovada, em 1973, a Lei nº 6.001 (Estatuto do Índio), de natureza explicitamente

integracionista, que não só disciplinou a configuração das identidades étnico-indígenas,

como também dispôs que as terras indígenas seriam demarcadas administrativamente

conforme decreto do poder executivo federal e sob a orientação do órgão de assistência

ao índio.

A Constituição de 1988 inova ao incorporar a diversidade étnica e cultural, e por

trazer de modo técnico, o conceito de terra indígena como se lê no § 1º do artigo 231:

são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, aquelas por eles habitadas em caráter

permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à

preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua

reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

Essa descrição técnico-jurídica é o parâmetro e limite para a atividade da

demarcação administrativa pelo poder público, no caso pela Fundação Nacional do

Índio - Funai e pelo Ministério da Justiça, alcançando e vinculando também o Poder

Judiciário, porém não foi suficiente para resolver os problemas de reconhecimento

territorial indígena, tendo em vista que não se trata de uma fórmula matemática,

dependendo de estudos etno-históricos, sociológicos, cartográficos e fundiários.

Como consequência, a definição de terra indígena passa a ser um constructo da

jurisprudência e da doutrina jurídica, mediadas pelos estudos antropológicos, mas que já

revelou ser equivocada, pois, em nenhum momento condiciona a identificação da terra à

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escuta com primazia dos povos indígenas interessados ou modo de ocupação de opção

de cada etnia.

|Por ocasião da demarcação da terra indígena da comunidade Pataxó Hã Hã Hae,

o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da questão de ordem nº 312-1-Bahia em

2002, considerou que a qualificação de terra indígena exigiria a presença concomitante

dos quatro elementos normativamente prescritos e que constituiria, nas palavras do

relator, Ministro Nelson Jobim, em “quatro círculos concêntricos” e que haveria uma

relação de dependência entre os quatro elementos, quais sejam, ser habitada, caráter

permanente, utilização para atividade produtiva e destinada a reprodução física e

cultural .

Em 1996 editou-se o Decreto nº 1.775, tendo por finalidade resolver uma das

questões problema em relação ao procedimento anterior, regulamentado pelo Decreto

22 de 1991, relacionado a alegada ausência de contraditório, admitindo que os

interessados não indígenas, entenda-se ocupantes das áreas indígenas não demarcadas,

poderiam aduzir as seguintes defesas, de que sua área não pode ser considerada terra

indígena ou de que as benfeitorias não foram indenizadas.

De acordo com a decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2002, criou-se o que

seria denominado “diálogo-confronto” com o grupo técnico.

Judicialmente, após a realização do laudo antropológico e das defesas

apresentadas, o documento final segue para homologação do Ministro da Justiça a

quem, por força do Decreto nº 1.775/96 se conferiu competência para rejeitar as defesas,

acolhendo o relatório técnico; determinar nova diligencia ou ainda, desaprovar a

identificação por não terem sido atendidos os elementos constitucionais. Nessa ultima

hipótese evidencia-se

A demarcação territorial foi de todo mundo acelerada a partir de 1988,

apresentando resultados importantes, como destaca Aurélio Veiga Rios, “não só pela

determinação constitucional de que ela fosse concluída pela União Federal em cinco

anos (art. 67 do ADCT), mas também, pela ação do Estado em promover o resgate

histórico do direito dos índios às terras que lhes resta ocupar” (2002, p. 69).

Contudo, o teor literal do enunciado normativo não possui, em si, normatividade,

e somente em situações concretas no plano da realidade é possível identificar seu

alcance e efetividade, e por esta razão torna-se relevante a descrição do processo de

territorialização do TI Laranjeira Ñanderu, uma entre outras muitas que não foram

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demarcadas justamente por não estarem na condição de historicidade imemorial da

ocupação.

As falas dos atores/agentes de “poder” demonstram que a normatividade

constitucional sobre a diversidade étnica, enquanto direito à diferença, e da autonomia

estão silenciadas, como se observa no caso Guarani Kaiowá, a seguir exposto.

O caso Guarani Kaiowa e o território Laranjeira Ñanderu: demarcação territorial e os paradoxos da concretização constitucional

A questão sociopolítica e jurídica envolvendo a demarcação do território do

povo Guarani Kaiowá no TI Laranjeira-Ñanderu, no Município de Rio Brilhante em

Mato Grosso do Sul, é caracterizada por um “pseudo-conflito” entre proprietários

“titulados” e uma das comunidades dos Ava Kaiowá é mais um dos episódios jurídico-

constitucionais que mostra a frágil interação étnico-indígena, após a incorporação da

tradicionalidade, modo de vida, cultura e territorialidades indígenas no texto da

Constituição de 1988.

. A maior parte das terras ancestrais do povo Guarani Kaiowá e Guarani Ñandeva

foram invadidas pelo agronegócio, por intermináveis plantações de cana, de soja e

intercaladas com a pecuária. Na região foram instaladas usinas de produção de

álcool/etanol e o processo de demarcação de terras indígenas não se conclui por

intervenção da Federação dos Agricultores de Mato Grosso do Sul– Femasul, que tenta

contrapor-se às demarcações com o argumento desenvolvimentista. Desde 2007, 36

áreas indígenas aguardam a conclusão dos relatórios antropológicos pela FUNAI, no

processo de demarcação administrativa e homologação das áreas já identificadas.

Enquanto isso, a insegurança dos povos indígenas se intensifica.

A Reserva de Dourados, na região da capital do Estado de Mato Grosso do Sul foi

criada em 1917 pelo Decreto Estadual nº 401. Em 1925 foi transferida para o domínio da

União, como unidade administrativa do SPI, com uma área de 3.539 há, onde foram

instalados os Guarani Kaiowá, em razão de ali corresponder ao seu tekoha, em seguida os

Guarani Ñandeva e por fim, na década de 30, os Terena (Aylwin, 2009).

Foram delimitados oito pequenos espaços – “aldeias indígenas” – as de Dourados,

Amanbai, Caarapo, Takuapiry, Limão Vedere, Pirajú, Sassoró e Porto Lindo, sendo que na

na década de 70 os Kaiowás foram expulsos do seu Tekoha, por força da ação de

fazendeiros com “títulos” de propriedade, desencadeando várias reações, surgindo o

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movimento político Guarani para retomada de seus territórios, a partir da década de 80,

ocasião em que se intensificaram as tensões (Benites, 2012).

A reserva está hoje dividida nas aldeias de Jaguapiré e Bororo, nesta vivendo o

numero maior do povo Guarani Kaiowá, estimando-se um total de 12 mil pessoas,

gerando sérios conflitos “intra-comunitários” (Aylwin, 2009)

Os processos de demarcação das terras indígenas antes de 1988 eram concluídos

sem qualquer preocupação com a preservação de espaço para reprodução física e

cultural, para as opções de produtividade, pois faziam parte do projeto de integração do

“índio” e de assegurar o processo civilizatório, e nesse contexto, sequer foi levado em

consideração a dimensão da posse de natureza comunitária e, por esta razão se iniciaram

processos de revisão demarcatória, em fins da década de 90.

A demora na conclusão da demarcação fez com que várias famílias extensas,

historicamente vinculadas ao Tekoha Juaguapiré, retomassem outras áreas, além da

reserva e ainda ocupadas por fazendeiros, e nominalmente identificada como Jaguapiré

Memby (Benites, 2012).

A organização social do povo Guarani Kaiowá é estabelecida a partir de

parentela extensa7, que segundo Benites são muito distintas entre si no seu modo de

viver próprio, múltiplo, o teko reta, e que estão associado a contexto de

territorialização. (Benites, 2012)

A delimitação territorial foi realizada sem levar em conta as estruturas sociais

organizativas de cada povo, em razão do conjunto de famílias estendidas Kaiowá

Guarani, contribuindo para a mobilização política que viria a reivindicar o

reconhecimento, por autodemarcação, de parte de seu território na região do município

de Rio Brilhante, pela retomada do TI Laranjeira Ñanderu.

O que se reivindica pelo povo Guarani Kaiowá, por uma das famílias extensas,

antes confinada na aldeia Lagoa Rica, que compõe a área denominada de “Brilhante

pegua”, são pequenas parcelas de terra e, inclusive na área de reserva legal da Fazenda

Santo Antônio da Nova Esperança, não pode ser classificada como conflito entre

proprietários “titulados”.

A ausência na demarcação administrativa pelo órgão público – FUNAI, levou a

judicialização da questão por meio de “ação de reintegração de posse”, medida judicial

protetiva da posse e propriedade regulada pelo direito civil e processual civil, em

7 Cf. Pereira, Levi M. Parentesco e Organização Social Kaiowá. Dissertação de mestrado. 1999. Biblioteca do IFCH – PUC. Campinas, São Paulo.

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01/08/2008, na 2ª Vara Federal da Dourados, processo nº 0001228-46.2008.4.03.6002. Os

autores da ação se dizem proprietários titulados, Julio Cesar Cerveira, Mario Julio

Cerveira, Maria Luiza Cerveira, Zélia Maria Cerveira, José Cerveira Filho, Maria

Tereza Cerveira, Marco Antônio Cerveira, tendo como advogado Marcio Julio Cerveira,

todos da mesma família, que invocam os direito sobre a terra, para eles denominada de

“Fazenda Santo Antônio da Nova Esperança”.

O Poder Judiciário determinou de imediato que a Funai adotasse todas as

providencias para retirar os “silvícolas” da "Fazenda Santo Antônio da Nova

Esperança". Em breve análise do discurso já se constata o distanciamento do poder

judiciário de todo o debate e reflexões acerca da identidade étnica ao chamar os índios

Kaiowa Guarani de “silvícolas”.

De outro lado, demonstra total desconhecimento epistemológico acerca da

territorialidade indígena, e inegável insubordinação aos preceitos constitucionais sobre a

diversidade étnica, reduzindo toda a questão ao campo do direito civil, no âmbito da

proteção da propriedade privada, ao acolher e a pretensão de proteção possessória aos

fazendeiros por considerar inexistir até o momento “prova quanto ao direito da

comunidade Guarani Kaiowá sobre a área ocupada, e assim afastou a aplicação do

artigo 231 da Constituição Federal.

Para o poder judiciário a retomada do tekoha Guarani Kaiowá é ato de “invasão

de terras” que produz temeridade ao direito de propriedade, considerando que a inércia

do poder público, os indígenas “ são incentivados à invasão”.

Paradoxalmente, em outro momento da decisão, no que tange a ordem para

desocupar a área, argumenta a Juíza “...cumpre ressaltar que os princípios da dignidade

da pessoa humana, e especialmente os direitos assegurados aos indígenas, impõem

providência URGENTE da FUNAI no sentido de proporcionar, para aqueles que assim

desejarem, local adequado à sua segurança, bem-estar, e compatível com sua cultura”

No curso da ação judicial, e pretendendo fazer a então requerida prova da

tradicionalidade da ocupação indígena, fez-se estudo antropológico da área, porém o

Juiz Federal, titular arbitrariamente, concluiu que a FUNAI e os indígenas

compreenderam mal a realidade, e como não havia sido o Juízo informado do ingresso

de uma antropóloga na propriedade dos fazendeiros, onde a comunidade indígena

permanece, decidiu pela invalidade de quaisquer dados, informações, trabalhos ou

laudos eventualmente elaborados pela antropóloga.

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Embora o apelo da FUNAI e dos indígenas para que "... enquanto perdurarem os

estudos de identificação e delimitação” fosse a comunidade mantida na área, a ordem de

desocupação e reintegração da posse dos fazendeiros foi cumprida em 11 de setembro

de 2009.

A comunidade indígena passou, então, a viver em acampamento às margens da

rodovia federal - BR 163, nas proximidades de seu tekoha , submetidas, contudo, a

situação de riscos de toda natureza.

No curso dessa ação, os fazendeiros tomaram para si a justiça própria, se

armaram, queimaram as ocas, contrataram segurança privada armada, tudo sob os

olhares dos poderes públicos, impunemente.

No discurso do poder judiciário a questão da territorialização indigena está

contida na categoria de disputas pela posse de terras entre índios e proprietários rurais

culminam geralmente em acirrados conflitos”, o que demonstra outro grande equivoco

conceitual, politico-ideologicamente marcado pela dimensão monocultural e de

ausência de compreensão acerca do diálogo interétnico, pois não se trata de disputa de

posse. Os povos indígenas não estão disputando a posse, pois a posse já lhes é

originária. O que deve ser compreendido é o processo histórico de expropriação dos

territórios tradicionalmente ocupados mediante políticas e leis de terras que se

sobrepuseram aos direitos indígenas.

Observa-se ainda que a interpretação aplicação do programa normativo do artigo

231 sofre arbitrária restrição, incompatível com os princípios constitucionais da

autodeterminação, porém, contraditoriamente, reconhece o direito a cultura no que diz

respeito, por exemplo, a crenças e as expressões culturais vinculadas ao artesanato e as

danças tradicionais.

O Poder Judiciário fragmenta a normatividade do artigo 231 para acolher apenas

o teor literal que se representa nas expressões costumes, crenças e tradições deixando

de levar em consideração, com o mesmo valor, a expressão “os direitos tradicionais

sobre as terras que ocupam”.

Em 2010, a FUNAI em nome dos autores, que até então, não possuem

representação própria judicialmente, requereu que fosse autorizada a produção de prova

pericial de natureza etno-histórica e antropológica, a fim de comprovar a ocupação

tradicional da etnia Guarani Kaiowá no local do imóvel objeto da ação de reintegração

de posse, o que só foi possível após decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª. Região,

invalidando a negativa dada pelo juiz titular.

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De acordo com as informações contidas no processo perante a Vara Federal de

Dourados – MS, em 16 de maio de 2011, o mesmo grupo Guarani Kaiowá retornou ao

seu território, provocando nova decisão judicial para a desocupação. Apenas nesse

momento se observa a referência à comunidade indígena enquanto parte no processo,

quando então o Poder Judiciário decide pela retirada dos indígenas, mesmo com o laudo

pericial do antropólogo do Ministério Público Federal, concluindo que a região

reivindicada fora no passado ocupada pelo povo Guarani Kaiowá, cuja desocupação

ocorreu alheia a vontade da etnia, nos processos de expulsão, inclusive, combinada com

a ação indigenista do antigo SPI.

A questão que envolve o reconhecimento territorial nesse, caso, assim como em

muitos outros semelhantes no Brasil, tem sido tratada no âmbito dos conflitos entre os

direitos sobre as terras tradicionalmente ocupadas e os títulos/matriculas registradas no

Cartório de Registro de Imóveis de Rio Brilhante/MS, demonstrando a propriedade do

imóvel.

Na verdade esse é um “pseudo conflito”. Não há como validar os títulos de

propriedade em nenhuma circunstância a teor do que dispõe o paragrafo 6º do artigo

231 da Constituição Federal ao prescrever que: "são nulos e extintos, não produzindo

efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das

terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios

e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União.

De outro lado, embora o direito de propriedade seja também assegurado

constitucionalmente, esse direito está condicionado a função social da propriedade e,

contudo, não pode se fazer validado no tempo, se em algum momento a área não era

produtiva para os fins da econômica capitalista e era então de ocupação indígena, por

certo.

Ademais, os equívocos jurídico-constitucionais levam o Poder Judiciário a

construir requisitos que invertem a lógica da proteção da terra indígena, pois devem

considerar que na ausência de estudos, mas na evidência da ocupação, a proteção deverá

incidir com primazia sobre a territorialidade indígena, e não concluir pela prevalência

do direito de propriedade como tem se constituído a tradição jurídica nas questões da

demarcação de terras na região de Mato Grosso do Sul.

As decisões judiciais reproduzem o racialismo e a perspectiva conservadora,

positivista-legalista inerente às práticas integracionistas e civilizacionistas inadmissíveis

na contemporaneidade. A simples leitura das razões de decidir do órgão jurisdicional,

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nos aproxima, inevitavelmente dessa constatação, quando o Poder Judiciário contrapõe

de um lado “os produtores” e de outro os “índios”; ou quando se refere aos integrantes

da etnia Guarani Kaiowá como “silvícolas”; ou, ainda, quando qualifica o ato de

retomada do vinculo histórico do tekoha a “atos de insubordinação contra a ordem

pública”. Todas essas expressões são extraídas da decisão judicial proferida em 29 de

julho de 2011.

A fundamentação judicial é desprovida de qualquer componente mínimo

indispensável ao caráter declaratório da diversidade étnica, distanciado da perspectiva

pluralista, quando afirma que “os índios têm direito à proteção da sua organização

social, costumes, línguas, crenças e tradições (art. 231, da CF/88), também têm o dever

de respeitar a ordem jurídica nacional, especialmente o direito à propriedade, que

também é garantido pela Constituição Federal, especialmente aquela que cumpre sua

função social”(grifei).

Aqui se dá o conflito de normatividades de que este trabalho se ocupou de

demonstrar, em razão de que o processo de interpretação que cumpre a função de

mediara efetividade do preceito constitucional declarado no artigo 231 da Constituição

Federal de 1988 recebe do interprete, significações fundamentadas na homogeneidade

cultural e na normatividade, que retiram a normatividade na perspectiva do pluralismo,

afasta o principio da autodeterminação e autonomia indígena e, silencia sobre a

diversidade étnica.

Até a finalização deste artigo, os estudos antropológicos periciais não foram

concluídos. O processo judicial continua. A comunidade indígena Guarani Kaiowá

continua na área de seu tekoha, até que haja a conclusão do processo de demarcação,

por força de decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª. Região, invalidando a decisão

do Juiz singular que determinava a desocupação, porém sob as ameaças constantes,

inclusive de morte.

Considerações finais

No atual cenário brasileiro, a posição dos povos indígenas está longe de ser a de

equivalência sociopolítica, principalmente em razão da estrutura institucional que

mantém um sistema neoprotecionista por meio da Fundação Nacional do Indio –

FUNAI e de intervenções missionárias que tendem as práticas de desintegração cultural

desses povos.

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A reflexão aqui apresentadas abrange o paradoxo da “constitucionalização” dos

direitos dos “índios” decorrentes dos seus costumes, tradições e direitos sobre as terras

que tradicionalmente ocupam e as respostas jurídicas racialistas, conservadoras e

positivistas, e serve como contribuição para um giro crítico ao doutrinarismo

constitucionalista no Brasil, que toma os paradigmas eurocêntricos e as vertentes

teóricas estadounidenses para reproduzir o modelo do Estado de Direito Constitucional,

silenciando o cenário politico-jurídico na América Latina.

Ainda que tecnicamente haja evidências de incorporação de subjetividades

sociopolíticas e culturais, a resposta institucional ao desenho de sociedades pluriétnicas

não tem sido suficiente para produzir mudanças na relação interétnica, como demonstrei

na análise à questão da demarcação de territórios tradicionais que é geradora de

persistentes tensões sociais e graves violações dos direitos dos povos indígenas.

A interpretação jurídica constitucional é ato político e cultural (Godoy, 2011) que

permite fazer a integração entre norma-texto e realidade, a partir de um processo

intelectivo que, adequado aos preceitos da dignidade humana, da liberdade e da

igualdade, permite extrair do teor literal e das significações extralinguísticas, o princípio

da autodeterminação e autonomia indígenas, implícitos ao programa normativo do

artigo 231 da Constituição Brasileira de 1988 e seu diálogo com as demais normas.

A atuação do poder público, em qualquer circunstância, que deixa de levar em

conta a decisão do povo8 indígena sobre questões que lhes dizem respeito, também no

campo das interações étnicas, ofenderá o princípio e o direito de autodeterminação, que

devem ser compreendidos como “condicio sine qua non” para que os indígenas possam

desfrutar dos direitos fundamentais em um ambiente de segurança social.

Qualquer outra interpretação para aplicação da constituição que não considere a

autonomia e autodeterminação indígena é desprovida de legitimidade, e,

consequentemente, enfraquece a normatividade constitucional fazendo prolongar a já

longa conservação dos indígenas à margem da dignidade humana de que todos são

inerentemente destinatários.

Deve-se considerar que a ausência de estudos constitucionais específicos sobre a

questão indígena resulta na inexistência de reflexão crítica em relação aos produtos

8 Sobre o termo povo e sua localização no discurso jurídico, destaca-se que a reflexão na América Latina, em países como Bolívia, Venezuela, Colômbia, entre outros, de formação pluriétnica e plurinacional, a terminologia povo não é utilizada no sentido do direito internacional. Por força mesmo, do que contem a Convenção 169, a dimensão que se tem consagrado é no sentido de afirmar a condição de povos indígenas como parte da sociedade nacional, com autonomia relativa.

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finais constitucionalmente alcançados, que se existente é produzida no marco de

manifestações de juristas conservadores ou com discursos do “racismo jurídico” que

associa a questão da territorialidade indígena a interesses de empresas transnacionais

que querem se apropriar dos recursos naturais, ou ainda fundados em humanismos

religiosos (Carbonell, 2007).

Convenhamos que no Brasil não há no campo jurídico um estudo aprofundado

sobre os resultados da constitucionalização conceitual sobre o que seja território

indígenas. As únicas produções doutrinárias são ainda conservadoras e tecnicistas,

unilaterais, desprovidas do elemento da interação étnica indígenas e da perspectiva

pluricultural.

Ao contrario do que se imagina, não se trata de ausência de norma

regulamentadora que inviabiliza a demarcação dos territórios indígenas no Brasil, mas é

de se reconhecer razão a Marés, não pela mesma motivação, quando afirma que a

Constituição contém em sua estrutura armadilhas nas quais os aplicadores ou o titular

do direito acabam caindo (Marés, 2002).

No processo de reconhecimento formal de seus territórios, os povos indígenas se

deparam com a exigência jurídica de ter que comprovar tecnicamente sua condição

étnica e seu “modo de ser indígena” para configurar que a terra que ocupam é terra

tradicional.

De outro lado, a demora institucional no reconhecimento administrativo dos

territórios indígenas, sempre marcada por confrontos entre agroempresários,

agroindústrias, usinas hidrelétricas, mineradoras e outras formas de invasão das áreas

indígenas, tem levado à judicialização das demandas que se arrastam por décadas, sem

que qualquer proteção aos povos indígenas seja tomada com primazia, conservando

práticas “etnocidas” subliminares.

A atuação judicial é notoriamente conservadora e positivista, incorporando o

discurso militarista da segurança nacional9 ou do desenvolvimento socioambientalmente

sustentável, impondo aos indígenas uma representação da sociedade que se diz plural,

porém, não vivencia o pluralismo, pois ao afirmar a igualdade atores enquanto sujeitos

de direitos e de obrigações reciprocamente, apenas o indígenas estão obrigados a se

integrar à cultura nacional. Os povos indígenas estão obrigados a aceitar os modos de

ser e de agir da sociedade nacional, sem reciprocidade.

9 inaugurado após a guerra da tríplice aliança

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De outro, a equivocada classificação da demarcação territorial indígena como

disputa fundiária, aplicando a legislação civil de influência privatista e os institutos de

proteção possessória aos proprietários titulados, tem gerado entraves insuperáveis no

cotidiano dos populações indígenas, que se veem obrigadas a abandonar seus vínculos

territoriais históricos.

Esse cenário revela que o Estado Brasileiro e seus agentes desconsideram o

contexto histórico e cultural que produziu a expropriação territorial e a forçada

realocação dos povos indígenas em áreas rurais desprovidas de sustentabilidade ou em

áreas urbanas periféricas, e silenciam sobre a diversidade étnica, a pluriculturalidade e a

autodeterminação enquanto princípios implícitos fundantes da sociedade brasileira.

O sistema jurídico brasileiro, na dimensão formativa, conceitual e operativa, está

distanciado das reflexões e das transformações sociopolíticas do continente latino-

americano. Afirma Curtis que a separação entre eficácia simbólica e eficácia

instrumental do Direito é notória, pois do ponto de vista do método, a tendência

hegemônica na formação jurídica na região latino-americana reproduz os cânones do

formalismo jurídico europeu, o que tem contribuído para a negação do direito de

autodeterminação indígena.

No Brasil, as medidas de demarcação de terras quando em choque com

interesses de agroempresas, agricultores, fazendeiros entre outras categorias

econômicas e profissionais, os povos indígenas estão à margem do processo. Todos,

juízes, técnicos da Funai, peritos, membros do Ministério Público, empresas,

empresários, e “proprietários” falam e decidem sobre a territorialização indígena, em

perversas tramas processuais, em cuja cena a voz dos povos indígenas, é apenas mais

uma voz, porém, com nítida desigualdade de forças no jogo de interesses.

Nesse sentido, a dimensão jurídica constitucional da diversidade étnica

indígenas torna-se retórica, e a única normatividade que prevalece é dada pelos setores

conservadores da sociedade nacional. A contribuição das reflexões aqui apresentadas é

nos sentido de propiciar a incorporação das bases epistemológicos do “novo

constitucionalismo” ao pensamento jurídico brasileiro, para ressiginificar as relações

interétnicas reconhecer poder de decisão aos povos indígenas, enquanto protagonistas

da constituição nacional e não apenas enquanto grupos minoritários, dependentes e

vulneráveis socioeconomicamente.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

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DEMOCRACIA E CONSTITUIÇÃO: CONTROLE PREVENTIVO DOS ATOS

INTERNA CORPORIS DO LEGISLATIVO PELO PODER JUDICIÁRIO

DEMOCRACY AND CONSTITUTION: JUDICIAL REVIEW OF LEGISLATIVE

INTERNA CORPORIS ACTS BY THE JUDICIARY

Martonio Mont’Alverne Barreto Lima

Maria Alice Pinheiro Nogueira

RESUMO

O exame dos aspectos mais relevantes que norteiam o ordenamento jurídico pátrio indica a necessidade de se averiguar a postura ativista adotada pelo Supremo Tribunal Federal, diante, principalmente, dos atos deliberativos internos do parlamento brasileiro. A fiscalização da adequação constitucional prévia foi atribuída expressamente ao Legislativo e ao Executivo, devendo o Judiciário manifestar-se apenas posteriormente, em relação a normas que já ingressaram no ordenamento jurídico. Nessa perspectiva, a pesquisa tem como objetivo demonstrar a impossibilidade de realização do controle judicial preventivo de constitucionalidade diante do processo legislativo, como forma de se resguardar a separação de poderes, sob a ótica teórica e casuística, em especial, por meio da análise do julgamento do mandado de segurança nº 31.816, de relatoria do Ministro Luiz Fux, que determinou a necessidade de apreciação dos vetos presidenciais em ordem cronológica pelo Congresso Nacional. O tema suscita discussões, em virtude, principalmente, das decisões interventivas do Judiciário na seara interna do Legislativo. Acerca do caso, propõe-se o fortalecimento do parlamento, como forma de inibir M culPurM da “ÓurisPocrMciM”, pelM qual o Judiciário surge como o poder do Estado dotado de credibilidade para solucionar quaisquer demandas.

PALAVRAS-CHAVE: Controle judicial preventivo de constitucionalidade; Processo legislativo; Jurisdição; Poder Legislativo; Atos interna corporis.

ABSTRACT

The examination of the most relevant aspects that guide the Brazilian legal system indicates the need to investigate the activist stance adopted by the Supreme Court, on, primarily, of the Brazilian Parliament's internal deliberative acts. The constitutional adequacy prior surveillance was assigned expressly to the Legislative and the Executive, and the Judiciary manifested only in relation to standards that have already entered the legal system. In this perspective, the research aims to demonstrate the impossibility of realization of judicial review on the legislative process, as a way to protect the separation of powers, by theoretical perspective series, in particular, through the analysis of the injunction n. 31.816, report of Minister Luiz Fux, which determined the need of assessment of presidential vetoes in chronological order by the National Congress. The theme gives rise to discussions, because, mainly, of the intervention of Judicial decisions in the field of internal legislation. About the case, it is proposed the strengthening of Parliament as a way of inhibiting the culture of

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"juristocracia", by which the judiciary comes as State power endowed with credibility to resolve any demands.

KEYWORDS: Judicial Review; Legislative process; Jurisdiction; Legislative Branch; Interna corporis acts.

INTRODUÇÃO

O controle de constitucionalidade consiste no instrumento de compatibilização da

Constituição com as normas infraconstitucionais. Através do estudo da Constituição Federal

de 1988, constata-se que existe a adoção do modelo prévio de constitucionalidade no Brasil,

que é realizado precipuamente pelos Poderes Legislativo e Executivo. Analisando casos

concretos, percebeu-se a tentativa de adequação do Poder Judiciário como legitimado à

realização do controle preventivo diante dos atos internos do parlamento. Isso gerou

inquietação em relação à possível ingerência desmedida de um poder sobre o outro.

Este trabalho resulta do estudo realizado visando à Teoria Geral do Estado e da

Constituição, enfocando na temática da política e das formas de Governo e de Estado, com o

intuito de averiguar, teórica e casuisticamente, o controle preventivo de constitucionalidade

concretizado no âmbito do Supremo Tribunal Federal, sob a perspectiva do

neoconstitucionalismo.

A metodologia utilizada caracteriza-se como um estudo descritivo-analítico,

desenvolvido através de pesquisa bibliográfica, utilizando-se da consulta a livros, publicações

especializadas, artigos e sítios eletrônicos, o que possibilitou fazer um exame histórico acerca

do surgimento do controle de constitucionalidade, essencial para a formulação das presentes

ideias, bem como fazer uma análise crítica concernente ao controle preventivo de

constitucionalidade.

Diante dessas considerações, buscou-se desenvolver pesquisa para responder aos

seguintes questionamentos: a partir da modernização do princípio da tripartição dos poderes,

seria possível flexibilizar a ingerência de um Poder sobre outro, resguardando a supremacia

da Constituição? Seria plausível haver uma intervenção preventiva do Poder Judiciário no

trâmite do processo legislativo para realizar o controle preventivo de constitucionalidade? Os

juízes, em razão da forma como ingressam na carreira da magistratura, ou seja, sem respaldo

popular, teriam legitimidade para decidir sobre questões políticas?

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Destarte, tem-se como objetivo analisar o controle judicial preventivo de

constitucionalidade sobre os atos interna corporis do Poder Legislativo, como forma de

questionamento acerca da permissão à averiguação constitucional das espécies normativas em

tese, ou seja, que ainda não integram o ordenamento jurídico pátrio. Além disso, busca-se

apreciar a consequência dessa admissão para a manutenção da ordem democrática. Nesse

sentido, para fins didáticos, o presente artigo divide-se em três capítulos, distribuídos na

forma explicitada a seguir:

O primeiro capítulo aborda a supremacia do Poder Legislativo, enaltecendo a

democracia representativa. Frisa-se, em seguida, que, após as Revoluções Burguesas, o

sistema democrático fortaleceu-se e passou a predominar nos Estados contemporâneos,

deixando o povo de ser mero espectador para atuar politicamente, comumente, por meio de

representantes.

Prossegue-se com a análise breve, no segundo capítulo, da Teoria dos Atos Interna

Corporis, como ferramenta de inibição da interferência do Judiciário em questões internas do

Legislativo. Dividiu-se o estudo na observância de dois aspectos: primeiramente, quanto ao

mérito do projeto de espécie normativa em tramitação na casa legislativa. Em segundo

momento, houve a reflexão quanto aos atos interna corporis, que não configuram todo e

qualquer ato interno legislativo.

O terceiro capítulo é dedicado, inicialmente, à apreciação do controle de

constitucionalidade na Constituição brasileira, a partir de um exame histórico do instituto. Em

seguida, observa-se a abordagem da jurisdição constitucional, da ordem democrática e da

soberania popular, sob a justificativa de se estudar a possibilidade de realização do controle

judicial preventivo de constitucionalidade no ordenamento jurídico brasileiro, bem como se

verifica a legitimidade dos magistrados para decidirem sobre questões concernentes ao

Legislativo.

A justificativa para este trabalho, considerando a sua repercussão social, diz respeito ao

incentivo ao aprimoramento do senso crítico que é enriquecido quando do debate sobre o

surgimento das normas infraconstitucionais e a sua consequente e necessária adequação à

Constituição Federal, principalmente, para viabilizar a importância do voto para a

concretização da democracia e do fortalecimento da soberania popular. Este trabalho, então,

propõe uma visitação ao tema do controle de constitucionalidade à luz da separação dos

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poderes, da autonomia parlamentar e da supremacia das normas constitucionais, no afã de

analisar a harmonia e independência dos poderes.

1 PODER LEGISLATIVO E DEMOCRACIA

Citar a supremacia do Poder Legislativo significa evidenciar a figura democrática, que

se concretiza pelas manifestações da vontade do povo, titular da soberania. Notadamente, o

modelo democrático, que é bem aceito, não o foi sempre, em razão, principalmente, de não se

dar credibilidade suficiente ao autogoverno das massas. O Legislativo, por muito tempo

enfraquecido, fortificou-se, posteriormente, diante dos anseios populares por mudanças na

forma de governar o Estado. Isso ficou demonstrado, principalmente, diante da Revolução

Francesa, que transformou a forma de pensar a participação do povo no cenário político.

A partir de então, desencadeou-se uma nova concepção sobre a importância do povo na

conjuntura política. O povo, antes mero espectador das vontades do monarca e do Judiciário,

passou a atuar, diretamente ou por meio de seus representantes no Congresso, o que ressaltou

o equilíbrio entre os três Poderes.

Quanto à forma de atuação, a democracia representativa consagrou-se em diversos

países como modelo de manifestação do povo e foi acolhida pelo ordenamento jurídico

brasileiro. O conceito de democracia representativa corresponde a um modelo de Estado que

admite a participação ativa do povo na composição da ordem social e política, ou seja, a

expressão da vontade popular é prestigiada.

O tema basilar da concepção da democracia registra-se na eleição dos representantes,

por voto livre e secreto dado pelo povo, o que demonstra uma evolução democrática para o

Estado. Adotado o regime representativo, as decisões passam a ser tomadas de maneira

colegiada e majoritária pelo parlamento. Dessa forma, constata-se que o povo é o titular

soberano, mas não exerce a soberania de forma direta.

Contudo, relevante mencionar a observação feita por José Afonso da Silva (1997, p.

131), ao entender que a escolha dos governantes não significa, necessariamente, atender-se

aos anseios da maioria do povo. Ao contrário, percebe-se o privilégio da minoria detentora do

poder:

Quanto mais divergentes são os interesses das classes sociais, quanto mais aguçadas são as contradições do sistema social vigente, tanto mais acirrados são os debates e

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as lutas no processo de formação das leis, já que estas é que vão estabelecer os limites dos interesses em jogo, tutelando uns e coibindo outros. Daí também a luta prévia relativa à composição dos órgãos incumbidos da função popular e decisão por maioria, os titulares de interesses que conseguirem maior representação terão a possibilidade de domínio. Essa luta prévia se traduz no procurar evitar-se que os interesses dominados, ou que se quer dominar, venham a participar de legislação. A história registra esse embate, que tem culminado nos grandes revoluções, sempre com a consequência de novas conquistas democráticas.

Em virtude da predominância de um regime democrático nos Estados modernos,

ressaltando a superioridade do Poder Legislativo, questiona-se, por conseguinte, a atribuição

constitucional dada ao Poder Judiciário para interpretar e construir o direito, por meio da

análise e do julgamento das questões internas do parlamento. Seria isso um mecanismo de

desvirtuamento da democracia, que deveria se concretizar pelas produções legislativas? Essa

questão será analisada posteriormente nos seguintes tópicos.

2 O PODER LEGISLATIVO, OS ATOS INTERNA CORPORIS E O CONTROLE DE

CONSTITUCIONALIDADE

É incontestável o papel do Legislativo para a democracia moderna, para o qual o poder

constituinte atribuiu a possibilidade de exercer o controle de constitucionalidade ainda durante

o trâmite do processo legislativo. É interessante mencionar que as produções legislativas são a

concretização dos anseios do povo, por meio de um processo legislativo rígido e cauteloso,

correspondente ao conjunto de atos realizados pelo Poder Legislativo, com o intuito de

propiciar a criação de novas leis e atos constitucionais. Já o procedimento legislativo se funda

no conjunto de regras jurídicas aptas a orientar todo processo de criação das leis, observando

as fases legislativa e administrativa, dirigidas por normas constitucionais, infraconstitucionais

e regimentais.

Finalizado o trâmite do processo legislativo, observando os dispositivos constitucionais

e as normas regimentais, com a apreciação da legitimidade ativa para a propositura, bem

como com o devido encaminhamento do parecer proferido pela Comissão de Constituição e

Justiça, competirá ao Chefe do Poder Executivo, com observância do artigo 66, §1º, da

Constituição Federal, pronunciar-se acerca do projeto de lei ou de ato normativo que lhe foi

encaminhado, podendo sancioná-lo ou vetá-lo, total ou parcialmente.

Contudo, é interessante mencionar a problemática do controle judicial preventivo de

constitucionalidade, que é uma modalidade de fiscalização não prevista na Constituição

Federal. Tal modelo de compatibilização, caso fosse aceito, permitiria a intervenção do Poder

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Judiciário para manifestar-se sobre a (in)constitucionalidade do projeto de lei ou ato

normativo que está sendo discutido na casa legislativa, com o fundamento de, desde logo,

evitar que um ato inconstitucional passe a vigorar. Não haveria, portanto, a necessidade de se

aguardar que a norma ingressasse no ordenamento jurídico para ocorrer a manifestação

judicial.

Sobre o assunto, consagrou-se a Teoria dos Atos Interna Corporis, pela qual se

resguardam os atos estritamente parlamentares mencionados no regimento interno do controle

externo. Dessa forma, no Brasil, todo o procedimento relativo à produção legislativa deve ter

como fundamento os ditames do regimento interno ao qual se submete cada casa legislativa,

devendo observar, além disso, as determinações estabelecidas pelos órgãos técnicos,

denominados de comissões, responsáveis pela apreciação da constitucionalidade, legalidade,

juridicidade, regimentalidade e a técnica legislativa das proposições.

Esta parte do trabalho destina-se a examinar a discussão doutrinária e jurisprudencial

acerca da possibilidade de apreciação judicial dos atos próprios do parlamento. Existem atos

internos que são reservados à apreciação exclusiva do Legislativo e devem ser respeitados

pelo Judiciário, gozando de imunidade interventiva. Contudo, é imperioso observar, como

preceitua Hely Lopes Meirelles (1997, p. 609), que essa escusa de ingerência judicial não se

aplica a todo e qualquer ato:

Os interna corporis das Câmaras também são vedados à revisão judicial comum, mas é preciso que se entenda em seu exato conceito, e nos seus justos limites, o significado de tais atos. Em sentido técnico-jurídico, interna corporis não é tudo que provém do seio da Câmara, ou de suas deliberações internas. Interna corporis são só aquelas questões ou assuntos que entendem direta e imediatamente com a economia interna da corporação legislativa, com seus privilégios e com a formação ideológica da lei, que, por sua própria natureza, são reservados à exclusiva apreciação e deliberação de Plenário da Câmara. Tais são os atos de escolha da Mesa (eleições internas), os de verificação de poderes e incompatibilidade de seus membros (cassação de mandatos, concessão de licenças, etc.) e os de utilização de suas prerrogativas institucionais (modo de funcionamento da Câmara, elaboração do Regimento, constituição de Comissões, organização de Serviços Auxiliares, etc.) e a valoração das votações. Daí não se conclua que tais assuntos afastam, por si sós, a revisão judicial. Não é assim. O que a Justiça não pode é substituir deliberação da Câmara por um pronunciamento judicial sobre o que é da exclusiva competência discricionária do Plenário, da Mesa ou da Presidência.

A Constituição Federal prevê as normas básicas que regem o processo legislativo. O

regimento interno é o documento formal que compõe o ordenamento jurídico, com vigência e

eficácia, e apresenta as normas específicas do trâmite do devido processo legislativo, à

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semelhança da Carta Federativa. Em virtude dessa relação direta com a Constituição, pode ter

a sua constitucionalidade verificada.

Hely Lopes Meirelles era um exemplo de defensor da possibilidade de ingerência

judicial nos atos internos do Legislativo, mas, concomitantemente, admitia ressalvas para essa

interferência. O âmbito de controle deveria se restringir apenas à formalidade, não adentrando

no domínio material da questão analisada.

Portanto, resta vedada a possibilidade do exercício do controle preventivo de

constitucionalidade sobre um projeto de espécie normativa, pois se estaria adentrando no

mérito de uma questão tipicamente legislativa, que ainda não tem vigência nem eficácia para

ser legitimamente apreciada judicialmente. Ao contrário, por compor o ordenamento jurídico,

o regimento interno pode ser alvo de compatibilização, porém, frise-se, o controle será

realizado de modo repressivo. Ressalte-se que a verificação só ocorrerá nos dispositivos com

referência direta na Constituição Federal, ou seja, os demais gozam de imunidade interventiva

judicial.

Não raras vezes, destarte, o Judiciário é demandado a se posicionar sobre a

constitucionalidade do conjunto de atos legislativos que almeja a elaboração de uma espécie

normativa. Nesse sentido, os parlamentares, que têm o direito líquido e certo de participarem

de um processo legislativo constitucional, utilizam-se do mandado de segurança, objetivando

arguir vícios formais de inconstitucionalidade do regimento interno, visando a assegurar o

trâmite do devido processo legislativo:

Os parlamentares, portanto, poderão propiciar ao Poder Judiciário a análise difusa de eventuais inconstitucionalidades ou ilegalidades que estiverem ocorrendo durante o trâmite de projetos ou proposições por meio de ajuizamento de mandados de segurança contra atos concretos da autoridade coatora (Presidente ou Mesa da Casa Legislativa, por exemplo), de maneira a impedir o flagrante desrespeito às normas regimentais ao ordenamento jurídico e coação aos próprios parlamentares, consistente na obrigatoriedade de participação e votação em um procedimento inconstitucional ou ilegal. (MORAES, 2009, p. 721, grifo original).

No próximo capítulo, serão apreciadas questões relativas ao controle judicial de

constitucionalidade, à legitimidade dos magistrados em declarar um projeto de lei ou de ato

normativo inconstitucional ainda durante o processo legislativo, bem como serão expostos

julgamentos pátrios sobre a temática.

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3 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NA CONSTITUIÇÃO

BRASILEIRA

O controle de constitucionalidade consiste no mecanismo de adequação dos dispositivos

infraconstitucionais à Constituição Federal, refletindo a sua supremacia e a sua força

vinculante. A exigência de se estabelecer uma harmonia no ordenamento pátrio tem respaldo

na necessidade de garantir a segurança jurídica e, principalmente, proporcionar o

fortalecimento do Estado Democrático de Direito.

A supremacia constitucional representa a superioridade hierárquica que a Constituição

Federal alcança no ordenamento jurídico em relação aos outros patamares preenchidos pelas

demais normas jurídicas, revelando-se como fundamento de validade. Já a rigidez

corresponde a uma característica do processo de elaboração e formação da norma

constitucional, que se demonstra mais complexa que os demais atos jurídicos.

A abordagem nesse tópico será feita com o intuito de apreciar a conjuntura histórica à

qual se submeteu a ordem constitucional brasileira. Inicialmente, reconhece-se o regime da

Constituição Federal de 1824, primeiro documento que coordenou a seara política do Brasil.

Havia a imponência do Poder Moderador, como responsável por dispor sobre a organização

política e velar pelo equilíbrio e pela harmonia dos demais poderes, conforme menciona o seu

artigo 98: “O Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado

privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante,

para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio, e harmonia

dos mais poderes políPicosB”

Inexistia qualquer previsão do controle de constitucionalidade das leis e dos atos

normativos. Nesse sentido, não se tinha um órgão incumbido de fiscalizar a compatibilidade

da norma infraconstitucional com a Constituição. Percebe-se, portanto, o maior prestígio

concedido aos demais poderes, em detrimento do Judiciário, que tinha pouca atuação no

período imperial. Aliás, ressalte-se a intenção constitucional, em seu artigo 15, VIII e IX, em

exMlPMr o Poder I egislMPiQo como responsáQel por inPerprePMr e resguardar M FonsPiPuição: “É

da atribuição da Assembleia Geral: Fazer Leis, interpretá-las, suspendê-las, e rovogá-las;

Velar na guarda da Constituição, e promover o bem geral da Nação”.

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Portanto, ausente a compatibilização da constitucionalidade na Constituição de 1824,

sua previsão adveio com o regime republicano, sob influência norte americana, ou seja, a

fiscalização era exercida de maneira incidental e difusa. A Constituição Federal de 1891

inovou, prescrevendo a competência da Justiça Federal para conhecer da validade e aplicação

das leis federais perante a Constituição, facultando-se a interposição de recursos ao Supremo

Tribunal Federal quando fosse negado o pleito na instância inferior, o que representou uma

mudança na concepção da política brasileira.

Posteriormente, aplicando o texto constitucional, adveio a lei nº 221, de 1894, que

dispôs sobre a organização da Justiça Federal republicana, em seu artigo 13, §10, in verbis:

“Os juízes e tribunais apreciarão a validade das leis e regulamentos e deixarão de aplicar aos

casos ocorrentes as leis manifestamente inconstitucionais e os regulamentos manifestamente

incompaPíQeis com Ms leis ou com M FonsPiPuição”B

Com a Constituição de 1934, no concernente ao tema do controle de

constitucionalidade, houve previsão da possibilidade de suspensão da espécie normativa pelo

Senado Federal quando declarada a sua inconstitucionalidade. Além disso, modificou-se o

sistema de compatibilização constitucional com a criação de condições para a eficácia

jurídica, ao exigir a maioria absoluta dos membros dos tribunais para a declaração de

inconstitucionalidade de uma lei.

Nesse período, também surgiu um novo instituto, diante do controle concentrado e por

via incidental, perante o Supremo Tribunal Federal, denominado de representação

interventiva, pelo qual a lei que autorizasse a intervenção federal, em razão da violação de

princípios constitucionais, deveria ser, previamente, apreciada pelo STF para que declarasse

sua constitucionalidade.

A Constituição de 1937, historicamente em concomitância com um regime autoritário,

manteve as exigências proferidas pelas Constituições anteriores, mas limitou a influência do

Poder Judiciário na seara política, atribuindo ao Executivo a possibilidade de rever a lei ou ato

normativo declarado inconstitucional, como prescreve o artigo 96, parágrafo único:

No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa do interêsse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento; se êste a confirmar, por dois terços de votos de cada uma das câmaras, ficará sem efeito a decisão do tribunal.

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Tal dispositivo não foi reproduzido na Constituição de 1946. Já em 26 de novembro de

1965, repercutiu no ordenamento jurídico a Emenda Constitucional nº 16. Sob a égide do

regime militar, com influência do sistema europeu, instituiu-se a ação genérica de

inconstitucionalidade, a qual garantia ao Supremo Tribunal Federal a competência para

declarar a inconstitucionalidade de espécie normativa federal, após representação feita pelo

Procurador Geral da República. Portanto, caracterizado estava um controle por via principal,

por meio de ação direta, com fiscalização abstrata e concentrada no Supremo Tribunal

Federal, sem prejuízo da concomitância com o controle incidental e difuso (BARROSO,

2009, p. 64).

A Constituição de 1967 não trouxe maiores alterações para a ordem jurídica quanto ao

controle de constitucionalidade, apenas deixou de prever a possibilidade da ação genérica

contida na Emenda Constitucional nº 16.

Em seguida, com M FonsPiPuição de 1969, em seu MrPigo 15, §3º, “d”, foi previsPM M Mção

direta na seara estadual, relativa unicamente à intervenção estatal em município, que ocorrerá

quando os

Tribunais de Justiça do Estado derem provimento à representação formulada pelo Chefe do Ministério Público local para assegurar a observância dos princípios indicados na Constituição estadual, bem como prover a execução de lei ou de ordem ou decisão judiciária, limitando-se o decreto do Governador a suspender o ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade.

FinalmenPe, com M EmendM FonsPiPucionMl nº 7, de 1977, em seu MrPB 119, H, “p”, foi

indicada a competência do Supremo Tribunal Federal para julgar o pedido de medida cautelar

nas representações oferecidas pelo Procurador Geral da República, dirimindo quaisquer

dúvidas sobre o tema. Ademais, por meio dessa emenda instituiu-se a possibilidade de o STF

estabelecer, em caráter vinculante, a interpretação a ser dada a um dispositivo normativo

federal ou estadual.

O Brasil, na Constituição de 1988, adotou o modelo jurisdicional misto de controle de

constitucionalidade, por meio do qual se aprecia o controle concentrado, pelo uso de ações

diretas ou abstratas, e o controle difuso, mediante a interposição de vários meios processuais,

de efeito concreto, como o Mandado de Segurança, a Ação Popular e a Ação Civil Pública.

A Constituição Federal brasileira, ao consagrar o princípio da separação dos poderes do

Estado, negou a interferência na autonomia de um poder sobre o outro, em atenção aos

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ensejos de independência e harmonia. Corroborando esse entendimento, não há previsão de

fiscalização judicial a priori de atos normativos destituídos de eficácia, vigência e validade.

Nesse contexto, no Brasil, o controle preventivo é assegurado aos órgãos políticos e internos

das Casas Legislativas e ao Chefe do Poder Executivo, o que enfatiza a autonomia

parlamentar. Assim, o modelo brasileiro de fiscalização judicial da constitucionalidade

caracteriza-se ordinariamente pelo controle repressivo.

3.1 Jurisdição constitucional versus soberania popular

Analisando a forma de governo democrática, precisa-se observar, igualmente, a

Constituição que rege a vida societária. Não se pode dissociar, por conseguinte, o Estado da

ordem constitucional. Portanto, o constitucionalismo dissemina o pensamento da submissão

de todas as autoridades políticas ao direito, repudiando, assim, o poder absoluto ou ilimitado.

Robert Alexy (2007, p. 301) aborda precisamente a temática:

A jurisdição constitucional é uma expressão da prioridade ou superioridade dos direitos fundamentais sobre e contra a legislação parlamentar. Sua base lógica é o conceito da contradição. A declaração de um estatuto como inconstitucional implica que ele contradiga pelo menos uma norma da Constituição. Essa contradição no nível das normas é acompanhada de uma contradição no nível dos juízos sobre as normas. O juízo da corte constitucional é, na maioria dos casos, explícito. Adota a seguinte formM: ‘O enunciMdo S é inconsPiPucional’. O Óuízo do parlMmento- pelo menos durante o processo de legislação, quer dizer, antes de a atuação da corte constitucional começar- é normMlmente Mpenas implíciPoB Tem M formM: ‘O enunciMdo S é consPiPucional’B EssMs duas modalidades de contradição demonstram que a jurisdição constitucional (revisão constitucional) é essencialmente proposicional e, portanto, argumentativa ou discursiva. A jurisdição constitucional, no entanto, consiste em mais do que asserções concernentes à constitucionalidade. A corte constitucional não apenas diz algo, mas faz algo. Ela tipicamente tem o poder de invalidar atos inconstitucionais do parlamento. Esse tipo de participação na legislação significa que a atividade das cortes constitucionais tem um caráter não apenas proposicional ou discursivo, mas PMmNém insPiPucional ou ‘de MutoridMde’.

O Estado desempenha sua autoridade diante do exercício das atividades atribuídas a

cada um dos poderes. A jurisdição constitucional significa, então, a manifestação jurisdicional

do Estado diante das demandas impostas, que só se legitima quando compatibilizada com os

ditames democráticos. Já a atividade do parlamento é outra forma de o Estado exercer sua

autoridade, que, naturalmente, é legítima, por sua descendência popular, em razão de o Poder

Legislativo ser composto por membros escolhidos pelo povo para representá-lo, por meio de

mandato eletivo. Não há contexto mais democrático que esse.

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O impasse existe quando se confrontam as demandas sobre o trâmite do processo

legislativo levadas à apreciação do Judiciário. Como, então, ajustar a atuação jurisdicional

com a manifestação autônoma do Legislativo? A análise se inicia pelo contexto do poder

constituinte, que representa a real origem política do Estado, o qual tem como fundamento a

vontade do sujeito soberano, inclusive superior à Constituição, denominado povo. A

consagração da soberania popular nas Constituições nada mais é que uma maneira de

conceder caráter jurídico-formal à supremacia da vontade do povo, que passa a ser encarada

como um princípio relevante para a ordem política de cada Estado. Dessa forma, impõem-se

respeito e obediência aos seus ditames.

Ressalte-se que é a Constituição que se submete aos comandos do povo, sendo fruto da

soberania popular, o que desmitifica o entendimento de que é a Carta Federativa que confere a

supremacia ao povo. Dessa forma, o Estado e o direito são produtos da vontade popular, não

se confundindo, em hipóPese MlgumM, com M própriM soNerMniMB “O EsPMdo não Pem vontade

própriM, nem M FonsPiPuiçãoB AmNos são produto dM Mção de um Oomem ou grupo de Oomens”

(BERCOVICI, 2008, p. 23).

Corrobora-se, por conseguinte, o entendimento de que a função legiferante,

desempenhada pelos representantes do povo, tem salutar importância para manter a ordem

político-democrática equilibrada, o que, mais uma vez, ratifica o pensamento sobre a

preponderância do Legislativo em relação aos demais poderes.

O Poder Legislativo, então, apresenta-se como a mais alta expressão da soberania

popular, e sua atuação é de grande relevância para a concretização da democracia. A

soberania, portanto, pertence ao povo, o qual a exerce por meio da escolha dos representantes

do Legislativo, a fim de consagrar a vontade do demos, que passou a ter respaldo na norma

constitucional. Disso, infere-se a necessidade de se ter um Legislativo livre na sua atuação,

sem amarras, principalmente, quanto aos entendimentos casuísticos dos Tribunais nacionais.

A soberania popular consagra-se, portanto, em um sistema em que exista um Legislativo

legítimo, que assim exerce sem percalços a democracia. A liberdade para legislar é uma forma

de exercitar a vontade do povo, que só se viabiliza em um ambiente político resguardado pela

precisa separação dos poderes do Estado.

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Diante da atuação do Judiciário, é válido acrescentar a observação feita por Luís

Roberto Barroso (2009, p. 3), ao diferenciar jurisdição constitucional de controle de

constitucionalidade:

As locuções jurisdição constitucional e controle de constitucionalidade não são sinônimas, embora sejam frequentemente utilizadas de maneira intercambiável. Trata-se, na verdade, de uma relação entre gênero e espécie. Jurisdição constitucional designa a aplicação da Constituição por juízes e tribunais. Essa aplicação poderá ser direta, quando a norma constitucional discipline, ela própria, determinada situação da vida. Ou indireta, quando a Constituição sirva de parâmetro para sua validade. Nesse último caso, estar-se-á diante do controle de constitucionalidade, que é, portanto, uma das formas de exercício da jurisdição constitucional. (grifo original)

Nesse sentido, o tema da jurisdição constitucional comporta diversos questionamentos,

dentre eles, a indagação da legitimidade conferida aos magistrados togados para decidir sobre

trâmites legislativos, já que não têm origem de aclamação popular. Em regra, ingressam na

carreira jurídica por mérito próprio e não pela manifestação do povo.

Para tanto, faz-se um breve retrocesso histórico. Diante de um Estado Liberal, percebia-

se a pouca autonomia dos juízes para adotarem a hermenêutica na sua atividade prática.

Adotava-se o silogismo simples. O Judiciário, politicamente nulo, deveria apenas pronunciar

a lei e obedecer aos ditames normativos impostos pelo parlamento. Nesse aspecto, enfatizava-

se a função do Legislativo, que deveria produzir normas claras e com o máximo de

objetividade.

Já no período do Estado Social, adotava-se a postura de um Estado prestacional, no qual

se ressaltava a função desempenhada pelo Poder Executivo para o cumprimento das ações

estatais. Judiciário e Legislativo tinham pouca atuação política.

Em meio a um Estado Democrático de Direito consolidado, constata-se a adoção da

postura do Judiciário como guardião da Constituição Federal. Assim corrobora o pensamento

de Francisco Lisboa Rodrigues (2008, p. 39):

Se no Estado Liberal, com ênfase no primado da lei, o Legislativo foi o modelo de exercício de poder; se no Estado Social (prestacional), era o Executivo que comandava as ações, no Estado Democrático Constitucional de Direito é do Judiciário que vem a função garantística de realização dos direitos fundamentais.

Questiona-se acerca dos parâmetros de atuação do Poder Judiciário. De fato, a ele

incumbem o resguardo e a interpretação final da Constituição Federal, mas como se deve

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entender o alcance do exercício da autoridade judiciária para a concretização dos ideais

democráticos?

Em virtude do desempenho da jurisdição constitucional, é natural existir o embate entre

a fiscalização, com o intuito de impedir o ingresso de normas em descompasso com a

Constituição, e a independência do Legislativo para a produção livre de normas. A origem,

então, dos poderes influi na decisão sobre a preponderância de um sobre o outro.

Parece de bom alvitre indicar a solução para tal embate entre poderes por meio

principiológico. O princípio da soberania popular, pelo qual o povo é dotado de legitimidade

para compor o poder constituinte, é o idealizador de tal controvérsia.

Como parte de um silogismo, se o poder constituinte atribui legitimação às decisões do

Judiciário, não se pode mais questionar frontalmente o exercício do controle de

constitucionalidade. Contudo, há uma limitação.

A legitimação atribuída constitucionalmente ao Judiciário é claramente concedida de

maneira indireta, por meio do documento político que rege o Estado Democrático de Direito,

que se originou do poder constituinte, claramente de base popular. A legitimidade legislativa,

conferida diretamente pelo soberano, portanto, é indubitavelmente preponderante em relação

à legitimação do Judiciário.

Consubstanciando o pensamento de Locke, Montesquieu, Kant e Rousseau acerca da

organização estatal democrática, bem como da submissão do homem aos parâmetros

normativos, como aceitar a legitimidade dos magistrados para decidir sobre questões

políticas?

O fundamento do contratualismo diz respeito à restrição da liberdade individual, que se

transfere para a maioria, respeitando a vontade plural. O indivíduo obriga-se ao cumprimento

da lei a ele imposta, em benefício do interesse público. A opinião da maioria do povo, então,

determina a vontade do Estado, prevalecendo o entendimento da soberania popular.

Adentrando no conceito democrático, o agente político, para determinar sua

legitimidade, deve agasalhar-se de um mínimo de origem popular. O parlamento, no sistema

constitucional, consiste em órgão cujos agentes que o compõem são dotados de mandato

certo, submetendo-se aos ditames constitucionais. Identificadas suas atribuições na

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Constituição, não lhes é possível agir de maneira diversa. Foram escolhidos, portanto, como

representantes do povo para cumprir as diretrizes constitucionais, criadas pelo poder

constituinte originário, de procedência popular.

Em distinto entendimento, porém, vê-se disseminada o conceito de uma jurisdição

constitucional, como meio de reassegurar o poder detido pelas Supremas Cortes, o que revela

o pensamento de que a justiça constitucional tutelaria o exercício da soberania popular, por

meio do julgamento das demandas a ela impostas.

Em observância rápida a essa concepção, poder-se-ia aparentar uma premissa de

segurança jurídica para o próprio povo, contudo, vê-se manifestamente prejudicada a

democracia constituída, haja vista, principalmente, a origem ilegítima da investidura dos

membros do Supremo Tribunal Federal, no caso brasileiro, submetidos à indicação do Poder

Executivo, e não ao crivo de eleição, portanto, não podendo ser controlados pelo povo.

Robert Alexy (2007, p. 301-302) apresenta possível forma de conciliação entre o

modelo democrático e a legitimidade dos magistrados:

A chave para a solução desses problemas e, assim, para a solução do problema geral da jurisdição constitucional é o conceito de representação argumentativa. Representação é uma relação de dois polos entre um repraesentandum e um repraesentans. No caso da legislação parlamentar a relação entre o repraesentandum –o povo- e um repraesentans- o parlamento- é essencialmente determinada pela eleição. Agora, é possível determinar um modelo de democracia que contem não mais do que um sistema de tomada de decisões centralizado em torno dos conceitos de eleição e regra da maioria. Esse seria um modelo de democracia puramente decisional. Um conceito adequado de democracia deve, entretanto, compreender não apenas a decisão, mas também o argumento. A inclusão da argumentação no conceito de democracia cria a democracia deliberativa. A democracia deliberativa é uma tentativa de institucionalizar o discurso enquanto um mecanismo possível de tomada de decisões públicas. Por essa razão, a conexão entre o povo e o parlamento não deve ser unicamente determinada por decisões expressas em eleições e votos, mas também por argumentos. Nesse sentido, a representação do povo pelo parlamento é, ao mesmo tempo, volitiva ou decisional e argumentativa ou discursiva. A representação do povo por uma corte constitucional é, em contraste, puramente argumentativa. O fato de a representação pelo parlamento ser volitiva tanto quanto discursiva demonstra que representação e argumentação não são incompatíveis.

Para o filósofo alemão, os tribunais são encarregados de procederem à representação

argumentativa, saneando as produções legislativas, que, muitas vezes, não fundamentam suas

decisões. Essa teoria tem sido adotada, não na integralidade, por parte do Supremo Tribunal

Federal, como pelo Ministro Gilmar Mendes, para justificar a judicialização da política e

explicar que dessa representação advém a legitimidade democrática do Pretório Excelso.

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Robert Alexy (2007, p. 303) determina condições fundamentais para a consolidação da

PeoriM MrgumenPMPiQM, quais seÓMm: “(1) A exisPênciM de Mrgumentos corretos ou plMusíveis, e

(2) a existência de pessoas racionais, ou seja, pessoas que sejam capazes e estejam dispostas a

MceiPMr MrgumenPos pelo fMPo de eles serem corretos ou plMusíveis”B Data venia, não se

concorda com a teoria argumentativa proposta por Robert Alexy. Estar-se-ia atribuindo

poderes abusivamente ao Judiciário, por meio de critérios totalmente subjetivos, o que não se

justifica como admissível.

Critica-se, comumente, a prática legislativa desnudada de compromisso político, técnico

e ético, em desconformidade com preceitos constitucionais. Como guardião diligente e

assíduo da Constituição Federal, restaria ao Supremo Tribunal Federal a militância pela

supervisão e pretensa correção dos atos legislativos. Nesse paradigma, reconhece-se a

ideologia de descrença na consciência da relevância da instituição do Poder Legislativo.

(STRECK; LIMA, 2011, online).

A jurisdição constitucional não pode ser exercida como instrumento da judicialização

política. Portanto, permitir a ingerência do Poder Judiciário nos atos em tramitação no

Legislativo corresponderia a uma interferência desmedida na independência e na harmonia

dos poderes, em desrespeito evidente aos princípios democráticos. Nesse sentido, causa

arrepio a possibilidade de se permitir a intervenção desse poder destituído de legitimidade

popular no processo legislativo, mediante um controle preventivo.

3.2 O entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal

O entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal vem se modificando ao

longo das décadas de existência dessa Corte, para a qual, com a evolução constitucional,

coube a análise hermenêutica da demanda posta, ampliando seu exercício jurisdicional. Esse

trabalho questiona o controle preventivo de constitucionalidade realizado pelo Poder

Judiciário e, para analisá-lo de forma concreta, é importante observar o entendimento

jurisprudencial das Cortes pátrias, primeiro quanto à apreciação do regimento interno e, em

segundo momento, quanto à manifestação sobre o mérito do projeto de lei ou ato normativo

questionado.

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou de diversas maneiras sobre o caso. Em

1980, no mandado de segurança nº 20.257, assim ficou decidido:

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MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA ATO DA MESA DO CONGRESSO QUE ADMITIU A DELIBERAÇÃO DE PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL QUE A IMPETRAÇÃO ALEGA SER TENDENTE A ABOLIÇÃO DA REPUBLICA. - CABIMENTO DO MANDADO DE SEGURANÇA EM HIPÓTESES EM QUE A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL SE DIRIGE AO PRÓPRIO PROCESSAMENTO DA LEI OU DA EMENDA, VEDANDO A SUA APRESENTAÇÃO (COMO É O CASO PREVISTO NO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 57) OU A SUA DELIBERAÇÃO (COMO NA ESPÉCIE). NESSES CASOS, A INCONSTITUCIONALIDADE DIZ RESPEITO AO PRÓPRIO ANDAMENTO DO PROCESSO LEGISLATIVO, E ISSO PORQUE A CONSTITUIÇÃO NÃO QUER - EM FACE DA GRAVIDADE DESSAS DELIBERAÇÕES, SE CONSUMADAS - QUE SEQUER SE CHEGUE A DELIBERAÇÃO, PROIBINDO-A TAXATIVAMENTE. A INCONSTITUCIONALIDADE, SE OCORRENTE, JÁ EXISTE ANTES DE O PROJETO OU DE A PROPOSTA SE TRANSFORMAR EM LEI OU EM EMENDA CONSTITUCIONAL, PORQUE O PRÓPRIO PROCESSAMENTO JÁ DESRESPEITA, FRONTALMENTE, A CONSTITUIÇÃO. INEXISTÊNCIA, NO CASO, DA PRETENDIDA INCONSTITUCIONALIDADE, UMA VEZ QUE A PRORROGAÇÃO DE MANDATO DE DOIS PARA QUATRO ANOS, TENDO EM VISTA A CONVENIÊNCIA DA COINCIDÊNCIA DE MANDATOS NOS VÁRIOS NÍVEIS DA FEDERAÇÃO, NÃO IMPLICA INTRODUÇÃO DO PRINCÍPIO DE QUE OS MANDATOS NÃO MAIS SÃO TEMPORÁRIOS, NEM ENVOLVE, INDIRETAMENTE, SUA ADOÇÃO DE FATO. MANDADO DE SEGURANÇA INDEFERIDO. (Relator(a): Min. DÉCIO MIRANDA. Relator(a) p/ Acórdão: Min. MOREIRA ALVES. Julgamento: 08/10/1980. Órgão Julgador: Tribunal Pleno Publicação DJ 27-02-1981 PP-01304 EMENT VOL-01201-02 PP-00312 RTJ VOL-00099-03 PP-01031).

O posicionamento adotado, sob relatoria do Ministro Moreira Alves, que serviu de

precedente para demais julgamentos, foi pelo provimento ao controle judicial sobre o mérito

das deliberações legislativas, ao admitir a legitimidade do parlamentar para interpor mandado

de segurança, com a finalidade de coibir atos inconstitucionais.

Contudo, após a impetração do mandado de segurança nº 22.503 no STF, considerado o

caso paradigmático quanto ao controle de constitucionalidade preventivo, percebeu-se uma

mudança no posicionamento jurisprudencial, ao qual esse trabalho se filia, que passou a

admitir o controle judicial quando se tratar apenas de dispositivo regimental com referência

direta à Constituição Federal, proibida a manifestação quanto ao mérito do projeto de espécie

normativa analisado.

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA IMPETRADO CONTRA ATO DO PRESIDENTE DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, RELATIVO À TRAMITAÇÃO DE EMENDA CONSTITUCIONAL. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DE DIVERSAS NORMAS DO REGIMENTO INTERNO E DO ART. 60, § 5º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PRELIMINAR: IMPETRAÇÃO NÃO CONHECIDA QUANTO AOS FUNDAMENTOS REGIMENTAIS, POR SE TRATAR DE MATÉRIA INTERNA CORPORIS QUE SÓ PODE ENCONTRAR SOLUÇÃO NO ÂMBITO DO PODER LEGISLATIVO, NÃO SUJEITA À APRECIAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO; CONHECIMENTO QUANTO AO FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL. MÉRITO: REAPRESENTAÇÃO, NA MESMA SESSÃO LEGISLATIVA, DE PROPOSTA DE EMENDA

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CONSTITUCIONAL DO PODER EXECUTIVO, QUE MODIFICA O SISTEMA DE PREVIDÊNCIA SOCIAL, ESTABELECE NORMAS DE TRANSIÇÃO E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS (PEC Nº 33-A, DE 1995). I - Preliminar. 1. Impugnação de ato do Presidente da Câmara dos Deputados que submeteu a discussão e votação emenda aglutinativa, com alegação de que, além de ofender ao par. único do art. 43 e ao § 3º do art. 118, estava prejudicada nos termos do inc. VI do art. 163, e que deveria ter sido declarada prejudicada, a teor do que dispõe o n. 1 do inc. I do art. 17, todos do Regimento Interno, lesando o direito dos impetrantes de terem assegurados os princípios da legalidade e moralidade durante o processo de elaboração legislativa. A alegação, contrariada pelas informações, de impedimento do relator - matéria de fato - e de que a emenda aglutinativa inova e aproveita matérias prejudicada e rejeitada, para reputá-la inadmissível de apreciação, é questão interna corporis do Poder Legislativo, não sujeita à reapreciação pelo Poder Judiciário. Mandado de segurança não conhecido nesta parte. 2. Entretanto, ainda que a inicial não se refira ao § 5º do art. 60 da Constituição, ela menciona dispositivo regimental com a mesma regra; assim interpretada, chega-se à conclusão que nela há ínsita uma questão constitucional, esta sim, sujeita ao controle jurisdicional. Mandado de segurança conhecido quanto à alegação de impossibilidade de matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada poder ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa. II - Mérito. 1. Não ocorre contrariedade ao § 5º do art. 60 da Constituição na medida em que o Presidente da Câmara dos Deputados, autoridade coatora, aplica dispositivo regimental adequado e declara prejudicada a proposição que tiver substitutivo aprovado, e não rejeitado, ressalvados os destaques (art. 163, V). 2. É de ver-se, pois, que tendo a Câmara dos Deputados apenas rejeitado o substitutivo, e não o projeto que veio por mensagem do Poder Executivo, não se cuida de aplicar a norma do art. 60, § 5º, da Constituição. Por isso mesmo, afastada a rejeição do substitutivo, nada impede que se prossiga na votação do projeto originário. O que não pode ser votado na mesma sessão legislativa é a emenda rejeitada ou havida por prejudicada, e não o substitutivo que é uma subespécie do projeto originariamente proposto. 3. Mandado de segurança conhecido em parte, e nesta parte indeferido. (Tribunal Pleno. Ministro Relator: Marco Aurélio. Julgamento: 07/05/1996. Publicação: DJ 06-06-1997 PP-24872 EMENT VOL-01872-03 PP-00385 RTJ VOL-00169-01 PP-00181).

Por tratar-se de dispositivo aludido na Constituição, ao Poder Judiciário competiu a

manifestação sobre a questão posta. Nesse caso, não se referiu a ato interno do parlamento

propriamente dito, mas ao dispositivo constitucional a que ele faz referência, e, como

guardião e intérprete último da Constituição, foi adequado esse entendimento. Portanto, o

regimento interno pode ser alvo de controle pelo Poder Judiciário, mas desde que mencione

dispositivo evidente na Constituição Federal.

Ressalte-se que, em momento posterior, diante de tantas demandas e em apreço ao

princípio da celeridade, o Ministro Cezar Peluso, enquanto presidente da Suprema Corte

NrMsileirM, declMrou, no enconPro do “Terceiro PMcto RepublicMno”, sua Mfeição Mo controle

judicial preventivo de constitucionalidade, ou seja, aceitou a possibilidade de o Judiciário

intervir no processo legislativo como um todo, mesmo diante do projeto de lei ou de ato

normativo. Porém, sob pressões externas, reconsiderou seu pensamento:

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No início deste ano, inclusive, o atual presidente da Suprema Corte, Ministro Cezar Peluso, tendo identificado o quanto a existência de mecanismos de controle prévio poderia desafogar o Poder Judiciário, chegou a defender formalmente a criação de tal instituto. No entanto, diante de críticas severas à ideia, justamente fundadas na alegação de violação à tripartição dos Poderes Republicanos, acabou abandonando sua defesa. (REBELO, 2011, online)

Em conformidade com o posicionamento adotado por este trabalho, vislumbra-se a

decisão proferida no Plenário do Supremo Tribunal Federal que cassou, por maioria dos

votos, a liminar concedida, em 07 de fevereiro de 2013, no mandado de segurança nº 31.816,

de relatoria do Ministro Luiz Fux (2013, online), que, com fundamento no artigo 66, §4º da

Constituição Federal, decidiu pela abstenção da acerca do Veto Parcial 38/2012 antes que se

procedesse à análise, em ordem cronológica de recebimento da respectiva comunicação, dos

demais vetos pendentes com prazo de análise expirado até aquela data, observadas as regras

regimentais pertinentes:

De plano, reporto-me os termos claros em que vazada a parte dispositiva da decisão, cujo teor não deixa dúvidas de que o Congresso Nacional brasileiro não se encontra impedido, por ordem judicial, de deliberar sobre toda e qualquer proposição, mas apenas e tão somente de apreciar e votar vetos presidenciais fora da ordem cronológica da respectiva comunicação. A decisão se limita a obstar a deliberação aleatória e casuística de determinado veto presidencial diante do volume acumulado de vetos pendentes, alguns com prazo constitucional expirado há mais de uma década.

A Mesa do Congresso Nacional interpôs agravo de instrumento e questionou sobre

necessidade de observância da ordem cronológica dos vetos proferidos, pois não há qualquer

dispositivo que assim preceitue, bem como isso prejudicaria a apreciação imediata do então

recente veto parcial concedido pela Presidente da República ao projeto de lei nº 2.565/2011,

convertido na lei 12.734/2012, que aborda a partilha dos royalties relativos à exploração do

petróleo e gás natural.

Nesse sentido, transcreve-se o voto do Ministro Ricardo Lewandowski (2013, online),

que se manifestou contrário ao posicionamento do relator quanto à apresentação dos vetos:

Cumpre destacar, por outro lado, que os constituintes quando quiseram exigir a observância de uma ordem cronológica, o fizeram de forma expressa, como ocorre no caso do art. 100 da Lei MMior, que Mssim dispõe: ‘Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim’ (grifei). Ora, se não é possível extrair do texto constitucional, de plano, ao menos em um exame perfuntório, a mesma obrigatoriedade para a apreciação dos vetos na ordem cronológica em que foram recebidos, entendo que a imposição de tal exigência ao

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Congresso Í McionMl, pelo Judiciário, significMriM subPrair do I egislMPiQo o ‘poder de Mgenda’, que se enconPrM ínsiPo nM MmplM Mutonomia que a Carta Magna confere a esse Poder. Nem mesmo os tribunais do País, vale lembrar, julgam as ações judiciais na ordem cronológica em que foram propostas, mas segundo uma avaliação que leva em conta a sua repercussão política, social, econômica ou jurídica e, em especial, o não menos relevante interesse das partes em litígio.

Acertadamente e em consonância com os votos dos ministros Rosa Weber, Dias Toffoli,

Cármen Lúcia, Teori Zavascki, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, convergiu-se ao

entendimento de que se trata de questão interna corporis, ou seja, tema imune à interferência

do Judiciário.

O Supremo Tribunal Federal, então, não resguardou de maneira hermética os atos

interna corporis da apreciação do Judiciário. Permitiu o controle no trâmite legislativo apenas

nos casos em que se faz referência direta a dispositivo constitucional, resguardando o objeto

das deliberações.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal adota a possibilidade de interferência do

Judiciário quanto ao processo legislativo apenas se houver referência direta à Constituição

Federal, resguardando a ingerência em relação ao mérito do projeto apreciado pela casa

legislativa.

CONCLUSÃO

Como observado no trabalho, o controle de constitucionalidade é o mecanismo de

fiscalização recíproca entre os poderes que garante a compatibilidade das normas

infraconstitucionais com a Constituição, consistindo em instrumento necessário à garantia de

uma segurança no ordenamento jurídico.

Sobre esse aspecto, renasce o pensamento acerca da separação dos poderes, idealizado

por diQersos pensMdores liberMis, como I ocke, mMs que se consMgrou com M oNrM “O EspíriPo

das I eis”, de MutoriM de MonPesquieu, em 1748.

Diante desse postulado, indicado no artigo 2º da Constituição Brasileira de 1988, foi

feito questionamento sobre a flexibilização do comando constitucional quanto à ingerência de

um poder sobre o outro. O princípio da separação dos poderes estabelece a independência e a

harmonia entre o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, e, de tanto relevo para a ordem

democrática, figura como cláusula pétrea em nosso ordenamento jurídico.

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No direito constitucional contemporâneo, é reconhecida a necessidade de se conceber a

separação dos poderes de uma maneira mais flexível, em razão da existência de uma

jurisdição constitucional que transcende as competências típicas, a fim de se poder construir

um Estado Democrático de Direito mais efetivo. Com respaldo hermenêutico, portanto, o

Legislativo, objeto de maior relevância para este estudo, não está imune às interferências do

Poder Judiciário. Contudo, há que se acentuar o respeito às suas competências precípuas.

Esse trabalho dividiu o estudo do controle de constitucionalidade em dois. Em primeiro

momento, destacou-se a ingerência do Judiciário no mérito do projeto de espécie normativa

em tramitação na casa legislativa. Em segundo momento, houve a reflexão quanto aos atos

interna corporis, que não configuram todo e qualquer ato interno legislativo.

A propositura de um projeto, com o intuito de vê-lo aprovado, para, posteriormente,

ingressar no ordenamento jurídico, faz parte de ato de deliberação exclusiva do parlamento,

que, por meio da manifestação da vontade dos seus membros, deve analisar a

constitucionalidade do projeto.

O projeto de ato normativo, objeto de análise, deve ser apreciado por aqueles

legitimados constitucionalmente, ou seja, apenas os parlamentares da casa legislativa em que

esteja ocorrendo sua tramitação. Ao Judiciário somente resta pronunciar-se após a conclusão

do trâmite legislativo.

Nesse sentido, vê-se a importância das Comissões de Constituição e Justiça, que têm o

escopo de confrontar o projeto de lei ou do ato normativo com a Constituição; e, quando o

concretiza, realiza o controle preventivo de constitucionalidade.

Porém, não raras vezes, os documentos a elas enviados não recebem tratamento

constitucional suficiente, e, ainda assim, em razão da inatividade do Legislativo, que não

realiza satisfatoriamente a sua tarefa institucional de legislar, são aprovados e ingressam na

ordem jurídica. Isso gera uma descrença no parlamento, que deveria se fortalecer como poder

do Estado legitimamente popular, contudo, vê-se desacreditado pelo próprio povo.

Frise-se, portanto, a necessidade do engajamento e da consequente qualificação técnica

das Comissões de Constituição e Justiça. Nesse sentido, quanto maior o seu compromisso

com a fiscalização da atividade legiferante, menor será o questionamento à presunção da

constitucionalidade das normas e maior será a credibilidade atribuída ao Legislativo.

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Quanto aos regimentos internos das casas legislativas, estes compõem o sistema jurídico

brasileiro, subordinando-se às premissas da Constituição Federal e, portanto, não há

empecilhos, na hermenêutica constitucional do Supremo Tribunal Federal, para que se admita

a viabilidade de instrumento processual para verificar os vícios procedimentais de

inconstitucionalidade.

Ressalte-se que não será feito o controle de constitucionalidade sobre qualquer

dispositivo do regimento interno. Mas apenas sobre aqueles os quais fizerem referência direta

à Constituição Federal, pois, caso contrário, estar-se-ia adentrando na seara dos atos interna

corporis, que são restritos à apreciação do Legislativo.

O uso de mandado de segurança por parlamentares que objetivam interromper o

processo legislativo só pode ser acolhido quando se tratar de lei ou ato normativo em

concreto, manifestamente contrário aos ditames constitucionais. Caso contrário, a apreciação

pelo Judiciário só se dará após a aprovação legislativa, de maneira posterior à sua vigência no

ordenamento jurídico.

Outro aspecto abordado nesse trabalho disse respeito à atuação dos magistrados quanto

ao exercício do controle preventivo de constitucionalidade dos atos legislativos. Com a

judicialização da política, o parâmetro estabelecido em relação aos juízes passou a reconhecê-

los como defensores da democracia, por meio da sua atuação, que transcende diversas searas

da sociedade, seja a civil, a penal ou a econômica.

O mMgisPrMdo deixou de represenPMr merM “NocM da lei” parM exercer M hermenêuticM

constitucional moderna, sendo o guardião da Constituição Federal. Não se pode, entretanto,

admitir a transformação do controle judicial preventivo de constitucionalidade em

instrumento mais político que jurídico. A separação de poderes deve ser respeitada

severamente, sob o infortúnio de se fragilizar a base democrática construída no Estado

Federal.

Além disso, observando os ditames do poder constituinte, ressalte-se a legitimidade

indireta dos juízes, conferida pela Constituição Federal, em oposição à legitimidade direta do

Legislativo atribuída pelo próprio povo. Como, então, sobrepor a decisão de um magistrado à

de um parlamentar ainda no processo legislativo? Não há plausibilidade para tanto.

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O Estado consagra-se como criação dos anseios do povo. O Legislativo, então, é

resultado da vontade popular. Disso, infere-se a legitimidade do parlamento advinda dos

soberanos, o que não ocorre com os magistrados.

O controle de constitucionalidade deve ser exercido conforme as balizas

constitucionalmente estabelecidas, que não garantiram expressamente a possibilidade de

apreciação judicial das espécies normativas ainda em tramitação no processo legislativo.

Ao Judiciário compete exclusivamente a análise das normas existentes concretamente

no ordenamento jurídico, ou seja, trata-se de uma fiscalização repressiva, por meio dos

instrumentos viáveis ao caso concreto.

Portanto, imperioso ter-se um Legislativo respeitado e forte, pois, a partir de então,

gera-se uma menor influência do Poder Judiciário, que, atualmente, recebe inúmeras

demandas, em razão do fácil acesso à Justiça, como forma encontrada pelo jurisdicionado de

receber uma resposta interpretativa de possível maior credibilidade ao caso concreto.

Finalmente, sugere-se uma maior conscientização concernente à importância do voto. O

direito de votar foi conquistado após difíceis obstáculos históricos, principalmente, o

autoritarismo, antes vigente. Se tão almejado e, hoje, atribuído de forma igualitária, deve ser

reconhecida a sua relevância.

Escolher os representantes não é ato de mera evolução política; é uma aquisição pessoal

de cada um como cidadão e deve ser enaltecido diante de um sistema democrático-

representativo. Por isso, deve-se votar conscientemente, a fim de fortalecer o Poder

Legislativo, que almeja restabelecer sua credibilidade ao povo.

Diante de todo o exposto, posiciona-se contrariamente ao controle judicial preventivo de

constitucionalidade, em virtude de se coadunar com o pensamento de que adotar a postura da

compatibilização judicial preventiva é consagrar no ordenamento jurídico brasileiro a

“ÓurisPocrMciM”B

REFERÊNCIAS

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DEVER FUNDAMENTAL DE ATUAÇÃO DO ESTADO COMO ELEMENTO

PROMOTOR DA IGUALDADE SUBSTANCIAL E EFETIVIDADE DO SISTEMA

CONSTITUCIONAL:

DESDOBRAMENTOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

FUNDAMENTAL DUTY OF ACTION STATE OF PROMOTING SUBSTANTIAL

EQUALITY AS AN EFFECTIVE CONSTITUTIONAL SYSTEM:

DEPLOYMENT DIGNITY OF THE HUMAN PERSON

Marília Ferreira da Silva1

Erick Wilson Pereira2

RESUMO: Assiste-se à enxurrada de legislações regulando toda espécie de direitos,

conferindo aos cidadãos a sensação de segurança, em vista de que são titulares das mais

diversas prerrogativas jurídicas, essencialmente dos denominados direitos fundamentais, e,

por este motivo, estão protegidos das mais diversas intervenções em sua esfera privada, bem

como, no âmbito social. O cenário inflacionado de direitos, protagonizado pelo Estado-

provedor, tantas vezes fugindo de sua função de corrigir as desigualdades sociais, alheia os

indivíduos de um relevantíssimo fator: o feedback, que no caso em apreço, corresponde à

necessária obrigação de seu cumprimento (cumprimento dos direitos constitucionais), por

parte dos órgãos estatais competentes. Trata-se da teoria do dever fundamental que concebe a

cada direito uma prestação, seja ela de atuação ou de abstenção. Esquece-se, ou se encobre,

que a excessiva oferta desses direitos nada representa se não se lhe acompanhar a

concretização respectiva. Aqui, quer-se debruçar sobre aqueles direitos que exigem uma

prestação estatal, que impõem a atuação positiva do Estado para que se materializem e passem

a compor efetivamente, além de eficazmente, o mundo fático e jurídico dos destinatários. Mas

porque a doutrina acerca desta problemática é tão escassa? Porque apenas se propugna

direitos, relegando a segundo plano os correlatos deveres, especialmente o dever fundamental

de atuação do Estado, do qual depende diretamente a efetividade do sistema constitucional?

Não será ele (o Estado) sujeito à obrigações? Sim. Todavia, é mais interesse conceder direitos

às massas, iludindo-as com a falsa aparência de sistema democrático de direito, provido de

direitos, liberdades e garantias, que, de outra banda, apresentar-lhes o falho, cruel e

massacrante processo de (des)cumprimento dos seus deveres, o que inviabiliza a consecução

dos direitos outorgados, legitimadores do sistema constitucional, informado pelo primado da

dignidade da pessoa humana. PALAVRAS-CHAVE: Dever Fundamental; Direito Fundamental; Dignidade da Pessoa

Humana; Estado Constitucional. 1 Advogada. Assessora Jurídica do Município de Nova Cruz/RN. Mestranda em Direito Constitucional na

Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2 Advogado. Especialista em Direito e Cidadania; Criminologia e Direito do Trabalho (todas pela UFRN).

Mestre em Direito Constitucional. Doutor em Direito do Estado (ambos pela PUC/SP). Professor da

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UFRN. Professor da Escola de Magistratura do Rio Grande

do Norte – ESMARN. Professor da Universidade Potiguar – UNP. Membro da Academia de Letras Jurídicas do

Rio Grande do Norte (Cadeira n. 15: Des. Paulo Pereira da Luz). Diversas obras publicadas.

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ABSTRACT: We witness the flurry of laws regulating all sorts of rights, giving citizens a

sense of security, and a variety of legal prerogatives, essentially the so-called fundamental

rights, and, therefore, are protected from various interventions in their private sphere as well

as in the social sphere. This set full of rights, played by the state-provider, often running away

from its function of correcting social inequalities, what blocks something very important to

the individuals : the feedback, which in this case corresponds to the necessary requirement of

compliance (compliance constitutional rights), by the State and its competences. It is the

fundamental duty of the theory that conceives every right a benefit, whether acting or

abstaining. By the way, the oversupply of these rights is nothing if you do not monitor the

implementation thereof. Here, we want to dwell on those rights which require a state service,

which impose the positive role of the state to materialize and start to write effectively, and

efficiently, the factual and legal world of the recipients. But why the doctrine on this issue is

so scarce? Why only the rights are known, but the correlates duties stay in the background,

especially the fundamental duty of state action, which depends directly on the effectiveness of

the constitutional system? Is not it (the state) subject of obligations? Yes, however, is more

interested grant rights to the masses, deluding them with false appearance of democratic

system of law, provided with rights, freedoms and guarantees, that otherwise, submit them

flawed, cruel and grueling process of (non) compliance of their duties, what does not allow

the realization of rights, that legitimize the constitutional system, based on the principle of

human dignity.

KEYWORDS: Fundamental Duty; Fundamental Right; Dignity of the Human Person;

Constitutional State.

1 INTRODUÇÃO

O presente arrazoado pretende, com brevidade, tratar da teoria que disciplina os

deveres fundamentais,3 pontuando, com especialidade, de um lado, a vala de esquecimento a

que são, discretamente, relegados, e, de outro, a intersecção destes para com a unidade e a

efetividade do sistema constitucional hodierno.

Vivencia-se o tempo em que os direitos se multiplicam em contagem infindável,

dada a velocidade com que as relações sociais surgem, modificam-se e se extinguem, cada

vez maior, dentro de um Estado que tenta, a todo custo, acompanhar tal processo de evolução.

A enxurrada de legislações permeia na sociedade e na consciência dos cidadãos os

direitos que possuem frente ao Estado-provedor4, as suas liberdades e garantias. E apoiada

3 No vertente artigo, para fins didáticos, as expressões “deveres fundamentais” e “deveres constitucionais”,

devem ser entendidas sempre pela maior abrangência que possam, semântica e juridicamente, representar.

Considera-se, assim, em qualquer das asserções os deveres fundamentais, os legais ou os supralegais, além dos

implícitos, extraídos do sistema. 4 Diz-se Estado-provedor não apenas vinculando-o aos direitos sociais, mas também à criação de condições para

que os direitos de liberdade sejam efetivos. Considera-se, assim, ultrapassada a velha dicotomia que separa os

direitos de defesa dos direitos prestacionais, pois que ambos necessitam da atuação estatal, um positiva, outro

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pela superação do Estado minimalista, incute nos indivíduos a plausível luta e incessante

busca pela realização dos direitos inerentes à sua condição humana, tantos já preconizados

pelo texto constitucional, na tentativa (in)suscetível de se formalizar completamente o

universo dos direitos, o que se convém chamar de direitos fundamentais, bloco de

prerrogativas que confere legitimação à própria Constituição, também conhecida como

Constituição Cidadã.

Os direitos fundamentais, fins constitucionais, são, como se sabe, aqueles que

exigem do Estado uma prestação e compõem o núcleo essencial do sistema constitucional, do

qual se extrai a ideia de dignidade da pessoa humana. Tal atuação por parte do ente estatal,

por sua vez, encontra-se vinculada à atuação político-legislativa, ao que se pode fazer

referência imediata a um mecanismo de conformação do público espectador.

Mas, e os deveres fundamentais? Quem os busca tão ferozmente?

O que se tem, na verdade, é o esquecimento desta parcela do Direito que tão

importante é, sem, contudo, resvalar na perca de relevância. É inimaginável realizar

efetivamente um Estado Democrático de Direito pautado na igualdade substancial que

incansavelmente se deseja, quando apenas se propugna a noção de direitos fundamentais,

relegando a plano secundário o feedback destes, a saber, a observância dos correlatos deveres

fundamentais, sejam dos próprios indivíduos ou do Estado.

É a partir desta problemática, pois, que o estudo que aqui se propõe será

desenvolvido, com vistas a identificar a interligação entre as teorias dos direitos e deveres

fundamentais e o sistema constitucional hodierno, ocupando-se, especialmente, do dever de

atuação do Estado, apontando, por fim, possíveis formas de otimização e dissolução do

dilema que se impõe em decorrência da referida imbricação.

2 A INTERSECÇÃO ENTRE DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DEVERES

FUNDAMENTAIS

negativamente. Isto porque, transcrevendo o ensinamento de Isabel Moreira, “a liberdade dos cidadãos não é mais uma liberdade em face do (inimigo) Estado, mas configurada em termos que a sua existência depende de

condições que, se não estão ao alcance do indivíduo (isto é: se este não consegue reuni-las no âmbito da sua

autonomia existencial), devem ser criadas pelo Estado que as assume como tarefa”. (MOREIRA, Isabel. A

solução dos direitos. Coimbra: Almedina, 2007, p. 37).

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A Dignidade da Pessoa Humana representa um valor moral5, bastando, a priori,

compreender a sua vertente de primado constitucional e, como tal, definidor de consequências

jurídicas.

Tal primado passou a compor o ordenamento pátrio com o advento da Constituição

de 1988, período em que se processava a redemocratização das instituições domésticas,

contexto no qual também se estreitavam as relações entre o direito nacional e o direito

internacional, marcado pela Declaração de 1948, em resposta aos atentados contra a

humanidade, protagonizados pelos nazistas.

Relativizando-se o conceito até então vigente de soberania em prol de indivíduos

vulneráveis e desprotegidos, a dignidade da pessoa humana, desvinculada de qualitativos de

ordem moral, cultural ou religiosos, passou a ocupar lugar central no sistema jurídico

contemporâneo, impondo a sua observância nas mais diversas dimensões dogmático-jurídicas.

Bittar afirma que ao erigir valores-guia ao centro do sistema jurídico, entre eles, o da

dignidade, a Constituição Federal de 1988 assumiu grande potencial transformador da

sociedade brasileira, colaborando, assim, à formação fundamental da cultura dos direitos

humanos dentro de uma sociedade pluralista (BITTAR, 2010, p. 250), no plano interno.

Isto porque, ainda segundo ele, a dignidade da pessoa humana é expressão que possui

amplo alcance, reunindo em seu bojo todas as facetas dos direitos humanos, a exemplo da

prestação de serviços essenciais por parte do Estado; do cumprimento de políticas públicas;

do atendimento das necessidades sociais; da construção da justiça social; do alicerce das

tomadas de decisão em política legislativa, entre outras (BITTAR, 2010, p. 255).

O fato é que este potencial transformador vem sendo dificultado pelo que se

convencionou chamar de programaticidade das normas, adormecendo a perspectiva inovadora

trazida pela Constituinte e renegando as conquistas alcançadas por esta, conferindo-lhe, ao

contrário de efetividade, inocuidade.

Assim é que o presente arrazoado vem avolumar os estudos que insistem em vincular

o texto constitucional à dignidade da pessoa humana e à implementação dos direitos e deveres

fundamentais, por quem de direito, rejeitando, com isso, a falsa sensação de conformação por

5 Ana Paula de Barcelos, neste sentido, enfatiza que, “do ponto de vista jusfilosófico, e para uma sociedade como

a contemporânea, que crê nos postulados humanistas e na democracia, a dignidade da pessoa humana (aí

incluindo o seu aspecto material), constitui o valor mais fundamental”. (BARCELOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar,

2002, p. 248).

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parte dos cidadãos, promovida pelos dispositivos que, abstratamente, conferem-lhes os mais

diversificados direitos e garantias que, por motivos vários, não saem do papel.6

Com efeito, ao passo que a dignidade da pessoa humana se configura um direito do

homem, direito subjetivo de ter sua dignidade respeitada, impõe, igualmente, um dever, a

obrigação de se portar com dignidade em face de si mesmo e dos outros que consigo vivem

em sociedade. Mas não só isso. Impõe, ao mesmo tempo, o dever do Estado de promover esta

dignidade, de permitir que ela seja acessível aos cidadãos, pois que em nada é relevante

pronunciá-la se não forem propiciadas as condições de sua materialização. Do contrário, será

sempre uma abstração, não obstante provoque imensurável sedução.

Em sendo abstração apenas, perde completamente o sentido de diretriz axiológico-

normativa do sistema constitucional, em vista de que a realidade social a que se destina tal

sistema não necessita de mais abstrações, ilusões, mas, sim, de concretização. Concretização

esta que depende frontalmente da atuação estatal quando da consecução de suas obrigações

constitucionais e políticas, isto é, de seus deveres fundamentais. Na prática dos tribunais,

importa em relevantíssimo instrumento nos processos de interpretação e ponderação. Nas

duas hipóteses, pois, o princípio-mor da dignidade da pessoa humana se liberta da vagueza

que lhe oprime, deixando de ser meramente mecanismo retórico, figura ilustrativa, para

ganhar foros de relevo jurídico.

Corroborando a ideia de vinculação entre dignidade da pessoa humana e dever

fundamental, Jorge Reis Novais (2011, p. 51) afirma que quando este princípio plasmado na

Constituição é formalmente acolhido no respectivo texto constitucional, o que ocorreu com a

realidade jurídica brasileira, além de representar, como dito, a qualidade de um valor moral

legitimador da força normativo-constitucional de um Estado de Direito material, também se

transforma em um dever-ser jurídico, já que vincula a atuação dos Poderes do Estado,

impondo-lhes uma atividade positiva.

No plano jurídico, âmbito que interessa ao feito, conforme salienta Ana Paula de

Barcelos, ao considerar especialmente a situação brasileira inaugurada com o advento da

Constituição de 1988, o princípio constitucional em apreço (dignidade da pessoa humana)

tornou-se o princípio estruturante, fundante da ordem jurídica e, bem assim, a finalidade

6 “O teor do discurso constitucional, ao deixar ambíguo, vago, ou mesmo apagado e esquecido o conteúdo

significativo da dignidade da pessoa humana, pretende conferir exatamente, pela sua própria índole, de uma

cruel e proposital espécie de desconsideração ao citado valor, permitindo, assim, como isto, não cumprir o seu

compromisso com tal valor que é deixado a vagar pelas malhas da rede constitucional como se fosse a expressão

‘Dignidade da Pessoa Humana, mera figura de retórica” (LÖWENTAL, Ana Maria Valiengo. Exame da

expressão ‘A Dignidade da Pessoa Humana’ sob o Ângulo de uma Semiótica Jurídica. In: Revista da

Universidade de Ibirapuera, vol. I, n. 3, p. 28) .

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estatal mais precípua, assumindo para si todas as consequências advindas, inclusive, a

atividade da Hermenêutica que se impôs(õe) ao novo status conferido ao princípio, já que,

como assevera Moreira, a doutrina avança para uma teorização dos direitos fundamentais

enquanto princípios e valores, movendo-se no âmbito e na direção de “uma concepção de

Constituição evolutiva aberta à sociedade dos intérpretes” (MOREIRA, 2007, p. 191).7

Nesta esteira, há que se ter em mente sempre que a atividade reveladora do Direito

não é a de prescrever dispositivos, a exemplo da atividade legislativa, mas, outrossim, a de

interpretá-los8, pois como bem ensina Eduardo Bittar, o texto jurídico é o locus da

interpretação e é sempre a partir dele, e não da intenção do legislador, que parte o intérprete

jurídico na busca de alcançar o sentido da proposição jurídica (BITTAR, 2010, p. 239).

Desta feita, tem-se que o princípio da dignidade da pessoa humana e a sua realização

prática deve enformar, diga-se, dar forma, a todo o sistema constitucional que se declare

democrático para de uma banda garantir um mínimo9 digno de direitos aos indivíduos e, de

outra, assegurar o pluralismo político, elementos estruturais de qualquer Democracia.

Todavia, o que vem a ser essa dignidade?

Maria Celina Bodin de Moraes afirma ser a dignidade o elemento que distingue os

seres humanos dos outros seres vivos (MORAES, 2003, p. 112). Para ela, os homens detêm

uma substância única, uma qualidade própria comum unicamente à sua natureza de seres

humanos.

Em estudo como Professor Visitante da Universidade de Havard, em 2011, Luís

Roberto Barroso registrou que a dignidade da pessoa humana é uma realidade no mundo

ocidental, um consenso ético.

Segundo a lição de Barroso, a dignidade humana é um valor fundamental que se viu

convertido em princípio jurídico de estatura constitucional, seja por sua positivação em norma

expressa, seja por sua aceitação como um mandamento jurídico extraído do sistema

(BARROSO, 2011).

Entoando a superioridade do valor “dignidade” aos homens, também Kant, um dos

mais influentes filósofos do Iluminismo, citado por Moraes (2003, p. 115), chega a afirmar

que assim como “as coisas têm preço; as pessoas, dignidade”. Isso para refletir o dever de a

7 Sobre este assunto, conferir as lições de Peter Härbele.

8 Conforme ensina Isabel Moreira, “a força normativa da Constituição também repousa na obrigação da

interpretação mais conforme à Lei Fundamental” (op. cit., p. 224). 9 Diante da vagueza da locução “dignidade da pessoa humana”, o problema que vem se impondo na atualidade é

identificar qual é esse mínimo e quais efeitos concretos possui.

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legislação, a vigorar na sociedade, levar em consideração a realização desse valor carregado

pelo princípio da dignidade humana, como o seu mais relevante fim.

Neste particular, a Constituição Federal de 1988 normatizou, em seu artigo 1º, III, a

dignidade da pessoa humana como um dos “fundamentos da República”, delineando então a

tutela desse núcleo intangível, em detrimento dos valores civilistas-individualistas.

Desta feita, pode-se dizer, em consonância com a mais moderna doutrina, seguida

pela mais abalizada jurisprudência, que a dignidade da pessoa humana parece ser o vetor mais

poderoso, talvez o único, dentro do atual sistema constitucional, capaz de conceber a este uma

sistematização axiologicamente fundamentada, necessária à iminente superação do modelo de

Estado em vigor.

Segundo Junqueira de Azevedo (2002, p. 22), a consideração pelos pressupostos

materiais mínimos para o exercício da vida é preceito originado no imperativo categórico da

intangibilidade da vida humana, pressuposto do princípio jurídico da dignidade da pessoa

humana.

Então, pergunta-se: quais são esses pressupostos mínimos? Poderia-se dizer que são

os próprios direitos fundamentais plasmados na Constituição expressamente. Sim, porque se

alçados à categoria de direitos fundamentais pelo documento normativo supremo, são, de fato,

os componentes essenciais à existência de uma vida digna, pautada pela igualdade real.

Contudo, a obviedade da resposta esbarra na generalidade dos preceitos10

, especialmente

daqueles que exigem uma prestação estatal, e nas dificuldades financeiras do Estado,

fundamento primeiro da teoria da reserva possível11

.12

É, pois, a dignidade da pessoa humana que informa esse mínimo existencial,

conteúdo nuclear que viabiliza uma vida digna em consonância com os preceitos

constitucionais da contemporaneidade, alcançando o status de princípio jurídico13

, expressão

10

Para Dimitri Dimoulis , trata-se do fenômeno da baixa densidade normativa, que torna difícil decidir qual das

partes envolvidas em um conflito está com a razão constitucional, já que interpretações conflitantes entre elas

são autorizadas por um texto constitucional extremamente genérico. (DIMOULIS, Dimitri. Arguição de

descumprimento de preceito fundamental. Problemas de concretização e limitação. Revista dos Tribunais, v.

832, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 13-16). 11

Por ser temática objeto de grandes controvérsias, impõe estudo autônomo, detalhado, pelo que se deixa de

adentrá-la. 12

O ideal é que esses conteúdos básicos da dignidade sejam universalizáveis, multiculturais, de modo a poderem

ser compartilhados e desejados por toda a família humana. 13

Segundo BARROSO, op. cit., p. 12: “Princípios são normas jurídicas com certa carga axiológica, que

consagram valores ou indicam fins a serem realizados, sem explicitar comportamentos específicos. Sua aplicação

poderá se dar por subsunção, mediante extração de uma regra concreta de seu enunciado abstrato, mas também

mediante ponderação, em caso de colisão com outras normas de igual hierarquia. Além disso, seu papel no

sistema jurídico difere do das regras, na medida em que eles se irradiam por outras normas, condicionando seu

sentido e alcance”.

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de um dever-ser normativo e, por consequência, sindicável perante os Poderes estatais, pelo

que resvala nos princípios da liberdade e igualdade fática.

Tal entendimento que vem se disseminando por todo o mundo ocidental, compondo

as mais diversas Constituições e Tratados Internacionais, representa a passagem de um Estado

de Direito para um Estado Constitucional14

que tem por meta alcançar e fornecer, por meio de

estruturas jurídico-político-sociais, a plena satisfação de necessidades físicas, morais,

psíquicas e espirituais do ser humano, isto é, de um “minimum exigível socialmente, capaz,

por seus recursos, meios e técnicas, de alcançar justiça social” (BITTAR, 2010, p. 254),

igualdade material, de onde se infere a necessidade de observar incondicionalmente o

cumprimento dos deveres fundamentais por parte do Estado, responsável pelo bem-estar

social, agora pautado pelo discurso jurídico da dignidade da pessoa humana, elemento de

construção e aprimoramento de uma sociedade aberta e plural, o que impõe a preponderância

dos demais valores sociais e que estes, juntamente com a dignidade, estejam em permanente

processo de troca intersubjetiva.

Só assim, considerando a não soberania da superioridade da interpretação autêntica

proposta por Kelsen, mas, sim, permitindo o agir comunicativo de Habermas (através do

permanente processo de troca intersubjetiva entre os valores abrigados pela realidade

constitucional e, entre eles, a dignidade da pessoa humana) poder-se-á superar a ideia ainda

existente de Constituição apenas como mero documento formal, evidenciando-a como

documento real, ocasião em que poderá se considerar a superação do Estado de Direito em

direção a um Estado Constitucional, onde o princípio jurídico-mor da dignidade humana seja

embasamento à materialização dos direitos fundamentais, fim da Constituição, a partir do

cumprimento dos deveres fundamentais estatais, seja atuando positivamente ou se abstendo de

tal, mas vindo, em qualquer caso, em prol das necessidades dos excluídos, marginalizados, a

fim de lhes criar as condições ou lhes promovendo, ao menos, mínimas oportunidades para

que estes sejam (re)inseridos na sociedade.15

3 DEVER DE ATUAÇÃO DO ESTADO COMO DESDOBRAMENTO DA

DIGNIDADE PESSOA HUMANA

14

Não se fala aqui em uma nova forma de Estado, mas, sim, como faz Isabel Moreira, “de uma modalidade da forma de Estado Democrático de Direito”. Não pretendendo, portanto, substituir as tarefas antigas, mas complementá-las com novas, na busca por uma maior igualdade social. (MOREIRA, Isabel. A solução dos

Direitos. Coimbra: Almedina, 2007, p. 34). 15

Sobre este aspecto, diante da imposição e do crescimento de incumbências ao Estado, Isabel Moreira consigna

que o atual Estado deu lugar a um novo modelo que pode ser batizado de Estado “Pós-Social” (op. cit., p. 41).

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O catálogo de direitos fundamentais é demasiadamente extenso, conferindo aos seus

titulares16

um extenso rol de direitos, individuais e coletivos, e suas garantias.

Ao lado desse aparato de proteção à condição do indivíduo, enquanto homem e

cidadão, há, igualmente, a previsão de deveres jurídicos, de ordem individual e coletiva, tendo

em vista que os direitos antes referidos não se apresentam como meros “apelos ao legislador”,

“programas” ou “linhas de actuação política” (QUEIROZ, 2006, p. 65).

Neste particular, os direitos sociais, cuja concretização está afeita aos órgãos estatais,

exige uma atividade positiva do Estado, um dever, importando relevantes consequências

jurídicas, entre eles o dever de “reposição da igualdade” (MOREIRA, 2007, p. 236) e a

proibição do retrocesso social17

.

Como se viu no tópico anterior, a dignidade da pessoa humana é princípio jurídico

que irradia efeitos sobre todo o ordenamento jurídico, impondo, assim, que todo ele, em sua

interpretação e aplicação, esteja pautado por um fundamento que confira aos seus

destinatários um mínimo de dignidade.

Ao tentar fixar limites a este mínimo, buscando compreender o que é e qual o seu

conteúdo, esbarra-se em dificuldades de ordem constitucional e institucional, dada a abertura

da expressão da cláusula de tutela, de onde emana a imposição de que seja a dignidade da

pessoa humana elemento de ponderação, além dos argumentos tangentes às dificuldades

orçamentárias e estruturais do Estado.

Todavia, não restam dúvidas de que cabe ao Estado-provedor implementar a

consecução dos direitos fundamentais expressamente arrolados na Constituição Federal de

1988, e, bem assim, aqueles implícitos que se extraem do corpo do texto constitucional, já que

dotados de eficácia plena e imediata. Esta é a questão chave diante do atual paradigma de

Estado.

Isabel Moreira, em suas lições, bem ensina que ao Estado cabe garantir a todos o

direito à educação, promovendo a cultura, a ciência, a educação física, o desporto, entre

outros (...), bem como assegurar o direito à saúde, à segurança social, à habitação, ao trabalho,

e ainda a proteção da infância, o desemprego, os idosos, etc, etc (MOREIRA, 2007, p. 36).

16

Para o professor LEONARDO MARTINS, o estudo detalhado da questão de quem são os titulares de

determinado direito é de crucial importância para a aplicação dos direitos fundamentais. Porém, como o cerne do

presente estudo não é os direitos fundamentais, ousa-se não se imiscuir nesta particularidade. (MARTINS,

Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012, p. 68-69). 17

Por esta teorização, uma vez consagradas legalmente as prestações sociais, o legislador não poderá depois

eliminá-las sem alternativas ou compensações, o que impõe, segundo Queiroz, “a acção do Estado, num ‘dever de legislar’” (op. cit., p. 70). É tese da irreversibilidade dos direitos fundamentais.

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Desta forma, estará o Estado cumprindo o seu dever de atuação, a sua função social, ao criar

igualdade de oportunidades de fato, garantindo a todos a liberdade fundamental.

Não se pode descurar, a bem da verdade, que a respectiva implementação é objeto de

políticas de conformação legislativa, de modo que têm a sua materialização comprometida

ante a não atuação do Poder Legislativo. Ressalve-se, por oportuno, ainda, a significativa

atuação do Poder Judiciário nos casos de omissão ou insuficiente realização.

O modelo de ordenamento que vem avançando reclama um balanceamento de

valores, impondo o “alargamento da justiça política e o reconhecimento de um princípio de

interpretação activista por parte do juiz” (MOREIRA, 2007, p. 209), e o entendimento de que

os preceitos constitucionais são mandamentos que obrigam o legislador a prosseguir em sua

tarefa com equilíbrio, proporção e justiça, sob pena de serem “fórmula vácua de conteúdo”

(MOREIRA, 2007, p. 211), daí a relevância da atuação dos Poderes Judiciário e Legislativo.

De modo geral, por ser a realização desses direitos essenciais uma imposição do

princípio da dignidade humana, pois que conferem um mínimo de dignidade à vida dos que

avidamente dele necessitam, representam obrigação jurídica a cargo do Estado, impondo

limite e parâmetro à sua atuação, não obstante as suas dificuldades de ordem institucional

(financeira e estrutural), uma vez que é função do Estado promover a igualdade substancial,

mediante a satisfação generalizada das necessidades básicas, permitindo aos cidadãos um

mínimo vital.18

Contudo, a doutrina jurídica muito pouco se debruça acerca dessa questão de crucial

relevância, qual seja, a dimensão positiva do dever de atuação do Estado, que aponta o tipo e

o nível de relação existente entre o ente estatal e os indivíduos/sociedade.

Por outro lado, todos são sabedores da “inflação de direitos” a que, cotidianamente, a

sociedade é submetida. São direitos de toda a espécie. Direitos estes que, assustadoramente,

padecem de efetivação, principalmente, no que atine aos direitos sociais. Esta problemática é,

por sua vez, tratada rotineiramente pelos operadores e estudiosos do Direito, resvalando

sempre no fosso que é a discrepância entre a realidade e o texto constitucionais. Inúmeros

estudos advindos dos mais célebres constitucionalistas versam sobre a questão da ineficácia

dos direitos fundamentais, com maior enfoque aos de 2ª geração (direitos econômicos, sociais

e culturais).

Mas, e o dever fundamental estatal de tutela? Existe um equilíbrio na consideração

entre os direitos e deveres fundamentais?

18

Este dilema acerca dos argumentos fazendários e constitucionais diante da dicotomia reserva do possível x mínimo existencial merece análise mais acurada em estudo autônomo, o qual não se propõe no presente artigo.

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Nesta esteira, o Professor Leonardo Martins enfatiza que há um fortíssimo

desequilíbrio doutrinário. E lança a questão que incita o presente estudo, excetuando a

realidade alemã: Porque a doutrina não se interessa pelos deveres fundamentais? Ao que

diretamente trata de responder: deve-se à hostilidade de muitos autores quanto ao caráter anti-

liberal dos deveres fundamentais, bem como à sua limitada relevância nas Constituições de

inspiração liberal. (MARTINS; DIMOULIS, 2012, p. 59).

De fato, a temática “deveres fundamentais” tem sido relegada a plano secundário,

enquanto todos os holofotes se ocupam em apresentar os brilhantes espetáculos

protagonizados pelos mais diversos direitos fundamentais e suas teorias. É o que Gomes

Canotilho (2005, p. 80) denomina de “excessiva enfatização”. Afinal, é politicamente mais

interessante conceder direitos que tratar da (in)suscetível concretização.

José Casalta Nabais (2004, p. 15) chega a se referir ao tema “deveres fundamentais”

como um daqueles que a doutrina contemporânea mais se esqueceu de tratar. Acompanhado

por Ingo Sarlet que, por sua vez, aponta o quase inexistente desenvolvimento jurisprudencial e

doutrinário acerca do tema no constitucionalismo brasileiro. Daí o motivo que enseja a

pesquisa e a torna relevante ao panorama jurídico-constitucional hodierno, onde se assiste

corriqueiramente à avassaladora avalanche de direitos reiteradamente desrespeitados e não-

implementados pela não atuação do Estado que se furta do cumprimento de suas obrigações,

impostas pela Constituição-tarefa.

A dignidade da pessoa humana enquanto princípio jurídico irradiador de

consequências jurídicas, impõe aos indivíduos que imprimam os ditames da dignidade em

seus comportamentos nas relações com os outros indivíduos, para com a sociedade como um

todo e, também, para consigo mesmo.

Relativamente ao Estado, como salienta Jorge Reis Novais (2011, p. 52), a exigência

moral de respeito pelos ditames de uma vida digna é, igualmente, critério de valoração da

legitimidade de sua atuação e, bem assim, fundamento apto a invalidar qualquer ato que

contrarie tais ditames, emanados de qualquer um dos poderes do Estado que promova a

violação.

Assim, em tendo a Constituição de 1988 elevado o princípio da dignidade humana a

fundamento da República, obrigou o Estado a conformar toda a sua ordem jurídica neste

sentido, vinculando seus Poderes a atuarem em conformidade com os preceitos emanados

deste princípio jurídico, fundamento estruturante da República brasileira.

Por assim ser, cabe ao Estado dispor de mecanismos de prevenção, proteção e

promoção da dignidade da pessoa humana em face de desafortunadas intervenções que

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tendam a desafiá-lo, em razão de que ao projetá-la como fundamento republicano, afasta o

Estado da ideia de que possui um fim em si mesmo, aproximando-o da ideia de que é a pessoa

que é fim em si mesmo (NOVAIS, 2011, p. 52), de que existe para servir as pessoas e torna-

las iguais. Iguais, diga-se de passagem, não apenas perante a lei, mas, sim, e principalmente,

entre elas mesmas, iguais em chances.

Percebe-se que a Constituinte, no Capítulo I (Direitos e Deveres Individuais e

Coletivos) do Título II (Direitos e Garantias Fundamentais), ocupou-se de trazer

expressamente deveres fundamentais, devendo-se somar a estes, ainda, outras passagens que

se encontram esparsas no texto além daqueles deveres implicitamente extraídos.

Já fora mencionado antes que é inimaginável passar pelo estágio evolutivo de um

Estado Democrático de Direito, propugnando-se apenas direitos e desconsiderando os

deveres. Tanto assim o é que o legislador constituinte optou por inseri-los no mesmo capítulo,

unindo-os sistematicamente. Aos indivíduos portadores de direitos, também são atribuídos

deveres para com os outros, para com a sociedade e consigo mesmo.

Nesta oportunidade, interessam os deveres atinentes à atividade do Estado, enquanto

Estado-provedor-interventor, em prol da realização do princípio-vetor da dignidade, através

da sua obrigação de respeitar aquilo que se oferece pela Constituição, cumprindo-a, sem,

contudo, afetar desnecessária ou desproporcionalmente a autonomia individual. Do contrário,

vivenciar-se-ia um retrocesso inaceitável, essencialmente porque a liberdade, ao lado da

igualdade e da solidariedade social, são desdobramentos da dignidade da pessoa humana.

Direitos e deveres fundamentais possuem uma forte relação de imbricação, de modo

que a materialização dos direitos fundamentais sociais, por exemplo, depende diretamente do

cumprimento do dever de atuação positiva do Estado.19

De outro modo, registre-se o dever

correlato ao direito de um mesmo indivíduo, a exemplo do direito ao meio ambiente saudável

correlato ao dever de preservação do meio ambiente, modalidade que não é objeto do estudo

vertente, ocupado com a modalidade dever fundamental de atuação do Estado quanto ao

cumprimento dos direitos fundamentais.

Desta feita, impõe para que se tenha um sistema constitucional uno e efetivo que o

Estado assuma para si as responsabilidades que lhe são atinentes, entre elas o dever estatal de

tutela, entendido no seu sentido mais amplo, não restrito aos que se encontram na

Constituição, mas também os supralegais e legais.

19

Há de se ressalvar que à existência de um direito nem sempre corresponde a existência de um dever, salvo se a

intenção for dizer que ao direito de um implica o dever de reconhecimento e respeito do outro.

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Martins e Dimitri consignam que o dever estatal de tutela refere-se ao dever do

Estado de proteger ativamente o direito fundamental contra ameaças de violação

provenientes, sobretudo, de particulares.

E quem protege o direito fundamental contra a violação e/ou omissão proveniente do

próprio Estado? O que legitima esse dever estatal de atuação?

Após todo o delineado, fica fácil inferir: a dignidade da pessoa humana.

Segundo a Grundgesetz,20

o Estado é obrigado a observar e a proteger a dignidade da

pessoa humana, concepção da dogmática do efeito horizontal que deve ser levada a efeito pelo

constitucionalismo brasileiro.

A teor do que antes fora esposado, a dignidade é fundamento da República brasileira

e vincula o Estado a lhe dar espaço, pelo que a cada direito fundamental previsto ao

indivíduo, há um dever fundamental que obriga o ente estatal a atuar positiva ou

negativamente, observando, protegendo e/ou cumprindo o preceito constitucional.

Deste modo, não cabe ao Estado apenas se abster de comportamentos lesivos, ou

seja, de não intervir nas esferas individuais protegidas, e proteger ativamente os direitos

fundamentais em face de possíveis inobservâncias por particulares, como ensina Martins

(2012, p. 114). Cabe-lhe mais. Cabe-lhe o dever jurídico de dar efetivo cumprimento aos

preceitos constitucionais traduzidos pelos direitos fundamentais, fins constitucionais. São os

deveres de prestação do Estado, pelos quais se põe em prática serviços e políticas públicas

para a concretização desses direitos que legitimam todo o sistema constitucional. E tal não o é

apenas para se desincumbir de um ônus, mas, sim, porque “dele depende o desenvolvimento e

o progresso da pátria” (ÁVILA, 1967, p. 159).

Caso contrário, a quem cabe realizar o extenso rol de direitos fundamentais

desrespeitados e não implementados, mas fartamente encontrados na Constituição? Se não se

buscar conferir juridicidade ao dever de atuação do Estado, não obstante que o seja mediante

a via judicial, estes tais direitos que conferem ao Estado Brasileiro o caráter Democrático, não

passaram de figuras ornamentais, ilusórias, servientes aos grupos de poder, em detrimento das

massas, reiteradamente enganadas, iludidas, esquecidas, mola propulsora da crise institucional

vivenciada.

Isto porque a concepção moderna do Direito não preenche mais as expectativas da

sociedade, impondo-se pelas novas necessidades da pós-modernidade uma concepção

20

Lei Fundamental alemã (art. 1, I, 2, GG). Saliente-se que a dogmática do dever estatal de tutela foi

desenvolvida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, doutrina essa ainda não completamente

sistematizada.

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funcional, em que as interpretações jurídicas sejam feitas com o escopo de assegurar eficácia

concretiva aos comandos normativos à luz da dignidade humana, como forma de se realizar

valores intrínsecos à manutenção do Estado como a igualdade (material) e a liberdade.

Por esta razão é que pôr a dignidade da pessoa humana efetivamente no cume do

sistema constitucional se impõe, pois que ela carrea toda a carga de demandas pela realização

da Justiça, fim primeiro colimado pelo Direito. No que diz respeito ao dever de atuação estatal

em prol da sociedade e dos indivíduos, serve a dignidade humana como elemento unificador

do sistema e, bem assim, como “uma grande referência no sentido da necessidade de proteção

dos valores fundamentais constitucionais conquistados pela humanidade” (BITTAR, 2010, p.

261), ocasião em que se promove e densifica a otimização do sistema constitucional, dando-

lhe maior efetividade e evitando que o Estado se utilize de seus direitos e deveres como

instrumentos de manipulação de muitos, no interesse de poucos.

Urge cobrar o respeito ao pacto inicial, fazendo cumprir as cláusulas sociais

indispensáveis à dignidade humana e à sobrevivência, em prol da proclamada igualdade

substancial.

4 CONCLUSÃO

As teorias dos direitos fundamentais e seus mais espetaculares compêndios

praticamente anularam, num processo contínuo, diga-se de passagem, a categoria dos deveres

fundamentais, provavelmente impulsionadas por uma retaliação ao período em que apenas

estes figuravam no cenário sócio-jurídico.

Todavia, na ordem constitucional hodierna, impõe-se o imediato reconhecimento da

simbiose permanente e necessária entre essas duas vertentes do Direito, os direitos e os

deveres, sejam eles dos cidadãos, dos homens públicos ou do Estado.

No breve estudo elaborado neste, não obstante a escassa doutrina a respeito, sem

descurar de sua imensidão a explorar, analisou-se uma espécie do gênero deveres

fundamentais, qual seja o dever de atuação estatal, pelo qual o Estado-provedor encontra-se

obrigado pelas circunstâncias sociais, políticas e jurídicas, a dar cumprimento e efetividade

aos dispositivos constitucionais, essencialmente porque eles são desdobramentos do primado

da dignidade da pessoa humana, princípio jurídico maior que informa toda a ordem

constitucional, e disso depende a manutenção do sistema constitucional vivo e complacente

com as demandas sociais.

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É, pois, o que a pós-modernidade e os avanços do Direito em direção a um Estado

Constitucional reclama para que se possa preencher as lacunas deixadas pelas teorias dos

direitos fundamentais: que sejam sopesados os direitos em face dos deveres e vice-versa, que

estas duas realidades sejam postas em relação de interdependência, e que os cidadãos

conscientizem-se dos deveres e da necessidade de cobro de sua observância, do que estar a

depender muitos dos problemas enfrentados pela ordem constitucional, entre eles, a afamada

discrepância entre o texto e a realidade constitucionais.

Esta perspectiva se torna muito mais relevante quando o que se põe em xeque são os

direitos e deveres fundamentais, onde se tem o Estado como sujeito passivo, obrigado a atuar

positivamente. Isto porque o acesso efetivo àqueles dependem direta e umbilicalmente do

cumprimento destes. Logo, se há deficiência no final da cadeia, ocasião da consecução dos

direitos em atendimento aos deveres, dada a negligência do ente estatal, resta completamente

comprometido o sistema constitucional.

Sabe-se que o sistema constitucional sobrevive de dois elementos basilares, quais

sejam, a sua unidade e efetividade, sem os quais todo o sentido de sistema democrático de

direito se esvai, em vista de que nada representa o mais extenso rol de direitos fundamentais

compendiados e outorgados a destinatários identificados ou identificáveis, se não se alcança o

mínimo de materialização.

Viu-se que o referido mínimo sofre por ausência de determinação concreta, já que a

doutrina esbarra em obstáculos de ordem constitucional e institucional ao tentar fixar limites

ao seu conteúdo.

Porém, ante a vivência da superação do Estado Democrático de Direito em prol de

um Estado Constitucional, emerge a dignidade da pessoa humana como a luz no fim túnel. É a

dignidade humana que, saindo de sua abstração, como alegam os retrógrados, impõe

parâmetros à atuação estatal, definindo, por seus ditames, o que vem a ser um mínimo digno

diante do caso concreto.

Por fim, ante o convencimento da importância de se elevar a teoria dos deveres

fundamentais, especialmente dos deveres de atuação do Estado, ao patamar em que se coloca

a teoria dos direitos fundamentais, conclama-se os cidadãos a assumir uma postura ativa, a

exigir o cumprimento daquilo que lhe fora conferido como direito subjetivo, fundamental,

daquele que tem a obrigação, o dever de o fazer, o Estado, controlando-os. Esta contribuição é

fundamental.

Unicamente desta forma, em consonância com as constantes mutações sociais e

imposições da pós-modernidade, a busca pela sonhada e desejada igualdade material,

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encontrará um ambiente social, político e jurídico fértil, onde germinarão direitos atrelados ao

dever cumpridor do Estado, oportunidade na qual o sistema constitucional, renovado,

triunfará uno e efetivo, apto a ser realizado, pautado por preceitos que não serão, o que

Lassale há muito já propunha, mera folha de papel.

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FEDERALISMO E PODER JUDICIÁRIO: A ATUAÇÃO DO STF NAS

DISPUTAS FEDERATIVAS

FEDERALISM AND JUDICIARY: THE ROLE OF BRAZILIAN SUPREME

COURT IN FEDERAL DISPUTES

Fernando Santos de Camargo (Mestrado – UFPR)

RESUMO

O controle concentrado e abstrato de constitucionalidade brasileiro tornou o Supremo

Tribunal Federal peça chave na análise dos conflitos federativos, uma vez que o exercício

dessa atribuição permite a Corte decidir sobre os limites das competências das entidades

federativas fixadas na Constituição. Por conseguinte, as decisões do Supremo nesses casos

culminam na “centralização” ou na “descentralização” da federação. Este artigo pretende,

pois, investigar se as decisões da corte constitucional brasileira têm tomado alguma direção

clara e, a partir dos resultados alcançados, discutir alguns pontos sobre como pode ser

investigado o papel do judiciário na federação. Antes, contudo, apresenta brevemente como

tem sido abordada, em parte da literatura, a relação entre judiciário e federalismo.

PALAVRAS-CHAVE: Federalismo; Controle de constitucionalidade; Poder Judiciário.

ABSTRACT

Brazilian judicial review turned the Supreme Court into a key figure in the analysis of federal

conflicts to the extent that this assignment allows the court to decide on the limits of the

federal entities’ powers constitutionally established. Thus, the Supreme Court’s verdicts

culminate in "centralization" or "decentralization" of the federation. This article aims,

therefore, to investigate whether the decisions of the constitutional court in Brazil have taken

some clear direction and, from the results, to discuss some points on how the role of the

judiciary could be investigate. Before, however, it presents briefly how the relationship

between the judiciary and federalism, in part of the literature, has been addressed.

KEYWORDS: federalism; judicial review; judiciary.

1 Introdução

Nas federações a existência de pelo menos dois níveis de governo com atribuições

definidas constitucionalmente em uma relação não hierárquica levanta a questão sobre quem

será o árbitro quando ocorrer disputas sobre a jurisdição. Na primeira federação moderna, a

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norte-americana, esse papel foi atribuído ao judiciário, a quem coube interpretar a

Constituição e, por consequência, decidir sobre os limites de atuação de cada ente federativo.

O modelo, de um modo geral, foi empregado na maioria dos sistemas federativos, nos quais a

importância da supremacia constitucional gerou uma forte demanda para a instituição de um

órgão independente para salvaguardá-la. No Brasil, o controle concentrado e abstrato de

constitucionalidade tornou o Supremo Tribunal Federal peça chave na análise dos conflitos

federativos, uma vez que o exercício dessa atribuição permite a Corte decidir sobre os limites

das competências das entidades federativas fixadas na Constituição. Por conseguinte, as

decisões do Supremo nesses casos culminam na “centralização” ou na “descentralização” da

federação.

Este artigo pretende, pois, investigar se as decisões da corte constitucional brasileira

têm tomado alguma direção clara e, a partir dos resultados alcançados, discutir alguns pontos

sobre como pode ser investigado o papel do judiciário na federação. Nessa linha, o texto dá

seguimento ao estudo pioneiro de Oliveira (2009) sobre o Poder Judiciário como árbitro da

federação brasileira, mas rediscute alguns dos seus pressupostos e amplia o foco de análise.

Antes, contudo, apresenta brevemente como tem sido abordada, em parte da literatura, a

relação entre judiciário e federalismo.

Para tanto, o texto foi divido em três partes. A primeira parte é dedicada à revisão

bibliográfica sobre o papel do judiciário nas federações. A segunda, por sua vez, apresenta o

estudo empírico realizado sobre influência do Supremo Tribunal Federal no federalismo

brasileiro com base nas Ações Direta de Inconstitucionalidade que envolveram disputas

federativas entre 1988 e 2012. A terceira expõe e discute algumas questões a respeito da

investigação sobre a influência das altas cortes federais e, em um sentido geral, de todo

judiciário, nos arranjos federativos.

2 Judiciário e federalismo

Já nos Artigos Federalistas o reconhecimento da importância do judiciário no arranjo

institucional inaugurado pela constituição está entre os motivos que justificaram a sua

formação como ramo independente de poder. Na mesma linha, nas federações atuais, a

essencialidade da preservação do texto constitucional - e, por consequência, da distribuição do

poder entre os entes federativos - surge como uma das razões para a criação de um órgão

independente como árbitro para os eventuais conflitos que surjam entre as suas unidades

componentes.

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Nesse contexto, as seções seguintes abordam tanto os argumentos normativos que

fundamentam a adoção de uma corte suprema nas federações quanto os estudos empíricos que

demonstram a força dessa correlação. A primeira examina o papel atribuído ao judiciário nos

Artigos Federalistas, que fundaram as bases da primeira federação moderna. A segunda seção

expõe, brevemente, a crítica de Halberstam (2008) aos argumentos contrários à adoção de um

árbitro judicial para conflitos federativos. Em seguida, apresentam-se alguns dados da

abrangente pesquisa de Watts (2008) sobre a posição do judiciário em diversas federações.

Nas duas seções seguintes, examina-se a abordagem dessa relação em dois trabalhos atuais

sobre instituições políticas: Tsebelis (2009) e Lijphart (2003), respectivamente. Enquanto no

estudo comparativo do segundo os dados denunciam uma relação entre federalismo,

Constituição e controle de constitucionalidade, a teoria do primeiro explica a associação entre

federalismo e judiciário independente.

2.1 O judiciário nos Artigos Federalistas

Dentre os artigos federalistas, seis se dedicam exclusivamente a temas do poder

judiciário (Artigos nos 78, 79, 80, 81, 82 e 83), como a organização e a competência das cortes

federais, a relação entre os tribunais estaduais e federais e a composição da Suprema Corte.

Escritos por Hamilton, esses textos procuram demonstrar a importância do papel do judiciário

como ramo independente de poder e a sua utilidade essencial na preservação do texto

constitucional, que, como expressão da vontade popular, deveria ser encarado como

autoridade superior a todos os ramos do poder. Apresento, nesta seção, algumas das ideias

centrais debatidas nos cinco primeiros artigos, uma vez que o último aborda uma questão

específica – o tribunal do júri - que escapa aos objetivos deste texto.

O título do Artigo no. 78 já enuncia a característica fundamental do sistema jurídico

federal inaugurado: “Os Juízes como Guardiões da Constituição”. A atribuição da capacidade

de interpretar a Constituição aos tribunais prenuncia o mecanismo de controle de

constitucionalidade, operacionalizado somente anos depois no caso Marbury versus Madison

(1803), em que o controle de constitucionalidade (judicial review) da legislação foi

compreendido como consequência lógica da supremacia da Constituição - argumento que,

como se verá, já se encontrava em Hamilton.

Para Hamilton, a atividade desempenhada pelo judiciário deveria ser dirigida a

preservar as determinações da autoridade delegante (o povo) frente os atos da autoridade

delegada (legislativo). Assim, contrariamente ao advogado pelos adversários da atribuição

dessa capacidade aos juízes, a possibilidade de invalidar atos legislativos não tornaria o

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judiciário superior aos demais ramos do poder. Os juízes seriam apenas intermediários entre o

povo e o legislativo, que deveria ser mantido dentro dos limites fixados constitucionalmente,

ou seja, os magistrados protogeriam o povo contra uma possível usurpação perpetrada pelo

legislativo. Na verdade, Hamilton considerava o judiciário o ramo mais fraco entre os poderes

por não ter participação na força e na riqueza nem a capacidade de tomar resoluções e

depender inclusive do executivo para fazer valer seus julgamentos (HAMILTON in

HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 464). Por isso, seriam necessárias medidas

suplementares para assegurar independência nos exercícios de suas funções. O autor então

sugere garantias de estabilidade funcional e de não redução da remuneração (HAMILTON in

HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 468).

A estabilidade dos cargos judiciais se apresenta como dispositivo assecuratório de

independência na medida em que nomeações periódicas, sejam elas promovidas pelo

executivo, pelo legislativo ou pelo próprio povo, sujeitam os juízes às preferências e à

influência das autoridades responsáveis pela escolha, se considerarmos ser interesse do

magistrado a recondução ao cargo. Do mesmo modo, a garantia da não redução da

remuneração reforça a imunidade judicial frente às influências externas por eliminar a

possibilidade de os demais poderes interferirem na subsistência dos magistrados como forma

de pressão (HAMILTON in HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 468-470). Para a

garantia do magistrado e, ao mesmo tempo, proteção do judiciário contra a má prática dos

juízes, as hipóteses de suspensão e destituição foram estabelecidas no próprio texto

constitucional e submetidas a controle pelo poder legislativo (HAMILTON in HAMILTON;

MADISON; JAY, 2003, p. 470).

Outra relação entre legislativo e judiciário é debatida no Artigo no. 81. Nele,

pretende-se fundamentar a existência de uma corte suprema como órgão independente do

poder legislativo. O alvo de Hamilton é a ideia de que a capacidade de a Suprema Corte dizer

a última palavra sobre a constitucionalidade das leis a tornaria superior ao legislativo, que

estaria impossibilitado de sobrestar a medida. O poder de interpretar as leis de acordo com a

Constituição é encarado, nessas objeções, como habilitação para o exercício arbitrário das

funções judiciais. Como visto, essas questões já foram parcialmente enfrentadas no Artigo no.

78, quando se atribuiu aos juízes a tarefa de proteger a Constituição e, portanto, de invalidar

leis incompatíveis com o texto constitucional. A resposta havia sido que o judiciário era o

órgão intermediário entre o povo e o legislativo. Nesse momento, no entanto, a objeção é mais

séria, pois se trata de defender que o judiciário – no caso, a Suprema Corte – também será a

instância final da decisão sobre a constitucionalidade. No Artigo no. 81, Hamilton procura dar

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maior sistematicidade ao seu raciocínio. A sua defesa encontra-se apoiada, essencialmente,

em três argumentos:

1) Em primeiro lugar, aceita a ideia de Constituição limitada, a decorrência lógica é

que o padrão para a interpretação das leis será o texto constitucional. Quando essa tarefa é

atribuída a um órgão integrante de um dos ramos do legislativo, a disposição para ajustar ou

modificar a aplicação de uma lei é minada, na medida em que o próprio órgão também

participou da elaboração do dispositivo legal contestado. Além disso, a composição da última

instância por membros do legislativo provocaria um estranho arranjo institucional no qual a

primeira instância seria formada por juízes permanentes (e, portanto, com maiores garantias

de imparcialidade) e a última instância seria um órgão de composição provisório e imutável,

sujeito a interesses partidários e circunstanciais (HAMILTON in HAMILTON;MADISON;

JAY, 2003, p. 481-482).

2) Em segundo lugar, a ratificação das decisões defeituosas pode ocorrer não

somente nos locais em que a última palavra sobre a constitucionalidade cabe ao Legislativo,

mas também em locais em que esse poder é exercido por um órgão desvinculado da atividade

legislativa. Nesse sentido, é necessário notar que mesmo na primeira hipótese o Legislativo

deve respeitar as decisões judiciais na medida em que seus atos legislativos só incidirão sobre

casos futuros (HAMILTON in HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 483).

3) Por fim, o risco de usurpação pelo poder judiciário da função legislativa é

superestimado, pois, segundo o autor, “Interpretações equivocadas e violações da vontade do

legislador podem eventualmente ocorrer, mas não serão extensas o bastante para gerar

grandes inconvenientes, ou em grau suficiente para afetar a ordem do sistema político”

(HAMILTON in HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 484, em tradução livre).

No Artigo no. 80, Hamilton fundamenta a competência dos tribunais federais. Entre

as atribuições, inclui as disputas entre os estados-membros, as quais certamente não poderiam

ser julgadas de modo imparcial pelas justiças estaduais. Não trata, no entanto, da competência

da Suprema Corte, que atualmente, por lei, detém competências originárias e recursais,

obrigatórias e facultativas, em uma série de disputas federativas (cf. CARVALHO, 2007, p.

168). A competência residual dos tribunais estaduais, por fim, é defendida no Artigo no. 82.

A Constituição norte-americana, no entanto, restringiu-se a estabelecer, além de uma

competência originária mínima, o método de escolha e nomeação, a garantia de vitaliciedade

dos membros da Suprema Corte, a possibilidade de renúncia e o procedimento para a

destituição do cargo. Os demais aspectos, como a qualificação e o número de juízes, são

determinados por lei.

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Assim, o cuidado no tratamento da organização e da instituição do poder judiciário

como órgão independente e imparcial no desempenho de suas atribuições, bem como o

destacado papel lhe atribuído na defesa da Constituição demonstram a importância

fundamental desse poder na estrutura federal, segundo os Artigos. Na próxima seção,

expõem-se a crítica de Halberstam (2008) aos argumentos que sustentam a ineficiência do

árbitro judicial como instituição apta à proteção do federalismo.

2.2 A possibilidade de alternativas ao árbitro judicial em Halberstam (2008)

A preocupação em estabelecer tribunais federais como órgãos imparciais nos

conflitos federativos nos Artigos Federalistas fortalece a compreensão das cortes como

essenciais na preservação do federalismo. A suspeita de parcialidade na resolução de conflitos

federativos, assim, pode colocar em dúvida o papel das cortes nessas disputas. Bzdera (1993),

por exemplo, demonstra o caráter nacionalista e centralizador das altas cortes federais,

característica que, segundo o autor, pode ser atribuída em grande parte ao modo de indicação

dos juízes. Desse modo, a constatação parece alimentar o sentimento de que a proteção do

federalismo não deve ser uma atribuição das instituições judiciais centrais. Contra esse senso,

Halberstam (2008) enumera e critica três visões defensoras da tese de que o judiciário não

deve ser o árbitro das disputas federativas.

Uma primeira visão parte justamente da ideia de que o judiciário federal favorece,

naturalmente, as instituições centrais. As outras duas posições, no entanto, partem de

considerações normativas sobre qual instituição deve salvaguardar a federação: enquanto uma

advoga a possibilidade e a necessidade de que a proteção da federação seja promovida pela

política e não pelo direito, a outra argumenta que "o Judiciário é, em qualquer hipótese,

incapaz de realizar qualquer investigação eficaz para averiguar se o equilíbrio do federalismo

foi violado" (HALBERSTAM, 2008, p. 2).

A primeira crítica de Halberstam é dirigida ao argumento de que a proteção do

federalismo deve ser atribuição da política e não do direito. Segundo o autor, esse argumento

ampara-se na ideia de que as estruturas políticas são suficientes para proteger a autonomia

estadual (HALBERSTAM, 2008, p. 2-3). Todavia, constata-se que mesmo nos sistemas

federativos verticais, como a Alemanha e Áustria, nos quais uma alta corte judicial federal

seria, em tese, menos imprescindível, deliberadamente optam pela sua instituição. Nesses

sistemas a ação do governo central sobre as unidades constituintes é ampla, mas o processo

decisório e os poderes fiscais estão entrelaçados. Por conseguinte, o governo central necessita

da cooperação das unidades constituintes para implantar suas políticas e aplicar a lei federal.

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Em tal sistema os interesses dos governos estaduais gozam de maior proteção

(HALBERSTAM; HILLS, 2001) comparativamente aos sistemas federativos horizontais,

como o norte-americano e o canadense, no qual “governo central e unidades constituintes são

organizações políticas independentes um ao lado da outra”, cada qual com “uma base

democrática independente e uma base fiscal independente, assim como a capacidade de

formular, de executar e de adjudicar suas próprias políticas" (HALBERSTAM, 2008, p. 3, em

tradução livre). Nos sistemas horizontais a coordenação vertical é operada, portanto, por

mecanismos informais, dependentes das condições políticas circunstanciais (HALBERSTAM,

2008, p. 4), o que torna o controle de constitucionalidade judicial ainda mais necessário. De

fato, como demonstra Halberstam (2008, p. 4, em tradução livre), a única exceção é a Suíça,

onde “uma tradição excepcionalmente forte de referendo popular levou à rejeição consistente

do controle de constitucionalidade”. Nos demais sistemas federativos, verticais ou horizontais,

as salvaguardas políticas são encaradas como proteção insuficiente ao federalismo.

A segunda crítica opõe-se à tese de que há uma tendência natural das supremas

cortes favorecerem as instituições centrais. Como já afirmado, Bzdera (1993) identifica essa

tendência em diversas federações, como a norte-americana, canadense e alemã; no Brasil,

Oliveira (2008) constata uma menor disposição do Supremo Tribunal Federal na solução de

disputas federativas propostas por atores estaduais. Nesse sentido, muitos estudiosos

sustentam "que judiciário central não é independente suficiente para servir como um árbitro

do federalismo"(HALBERSTAM, 2008, p. 4). Entre as razões alegadas estão a decisão do

governo central na criação, na manutenção e na composição desses tribunais e o interesse da

corte central em expandir sua jurisdição e manter seu suporte lógico e fiscal

(HALBERSTAM, 2008, p. 5). Entretanto, Halberstam demonstra, com base nos exemplos

norte-americano e canadense, que, de fato, pode haver uma tendência centralizadora no

exercício da jurisdição central, mas ela não se mantém por períodos prolongados.

Portanto, se no início a inclinação em favor da centralização pode ter em vista a

manutenção da União, na federação madura a resistência às investidas do governo federal

servem à sua manutenção como sistema federativo (HALBERSTAM, 2008, p. 8). O

federalismo, na verdade, “não é um estado final, mas um processo” (HALBERSTAM, 2008,

p. 6) e, embora flexível, o compromisso de divisão de poderes deve persistir. As cortes são,

nesse sentido, razoavelmente neutras. Portanto, para o autor, a tese de que a corte central se

inclina, invariavelmente, à ampliação dos poderes do governo federal superestima o controle

deste sobre aquela ao concebê-la como um agente federal e desconsidera a grande variedade

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de incentivos baseados nas preferências pessoais, na ética profissional e no ambiente

profissional (HALBERSTAM, 2008, p. 8).

Por fim, contra o argumento de que as cortes centrais são incapazes de dirimir

conflitos federativos, Halberstam (2008, p. 8) sustenta que, quando as regras federativas são

suficientemente claras, as cortes servem sim como árbitros. O autor defende, todavia, que a

melhor compreensão do princípio da subsidiariedade, inerente ao federalismo, pode contribuir

no desempenho desse papel, na medida em que clarifica as justificativas na tomada de

decisão. Assim, distingue subsidiariedade instrumental e subsidiariedade substantiva.

Enquanto a primeira "procura determinar qual nível de governo é mais adequado para atingir

determinado objetivo", a segunda "busca determinar qual nível de governo é o mais adequado

para determinar se um objetivo particular pode ser considerado um objetivo político"

(HALBERSTAM, 2008, p. 9-10). Portanto, é possível que um nível de governo seja

considerado apto a determinar qual ação deverá ser implementada, mas que outro seja

competente para executá-la.

Halberstam evidencia, desse modo, que as cortes centrais podem ser instituições úteis

ao federalismo. A próxima seção demonstra que a análise comparada reforça essa percepção.

2.3 Federalismo comparado: judiciário e sistemas federativos em Watts (2008)

Em estudo comparativo abrangendo quase trinta federações (incluindo situações

híbridas de federação-confederação, como a União Europeia, e experimentos federais pós-

conflitos, como o Iraque a partir de 2005), Ronald Watts destina um capítulo ao tema da

supremacia constitucional nas federações, considerada “pré-requisito para uma efetiva

operação da federação” (WATTS, 2008, p. 157, em tradução livre). A existência de “uma

constituição suprema escrita não modificável unilateralmente e que requer o consentimento

para emendas de uma proporção significante das unidades constituintes” (WATTS, 2008, p. 9,

em tradução livre) é enumerada por Watts como uma das características dos estados federais,

ao lado da repartição de poderes legislativos e administrativos entre os níveis de governo. O

não reconhecimento da supremacia constitucional comprometeria, desse modo, o desenho

institucional federal por não estabelecer obstáculos robustos a avanços de uma ordem de

governo sobre a outra (WATTS, 2008, p. 157).

O respeito ao texto constitucional e, consequentemente, à distribuição de

competências nele encerradas, seria assegurada por outro aspecto dos estados federais: a

presença de um árbitro para dirimir as disputas entre os entes federados. Para o autor, elas

podem ser de quatro ordens (WATTS, 2008, p. 158, em tradução livre): a interpretação da

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extensão de uma competência atribuída a um nível de governo, “o conflito de leis aprovados

por entidades federativas diferentes em áreas de legislação concorrente”, “a ameaça de grupos

que desafiam a jurisdição legal de um governo” e a violação de um direito constitucional por

uma lei. Watts (2008, p. 9) não estabelece uma forma específica desse árbitro: podem ser

tribunais, consultas populares ou uma câmara alta com poderes especiais. Assim, tanto

procedimentos eleitorais quanto judiciais podem ser empregados como meios primários na

resolução dessas disputas. “A maioria das federações apostou numa combinação de ambos"

(WATTS, 2008, p. 158, em tradução livre): a promoção de eleições em cada nível de governo

e a instituição de tribunais para a realização da interpretação constitucional de forma

imparcial (WATTS, 2008, p. 159).

A supremacia constitucional é, assim, reconhecida de forma explícita ou implícita

nos textos constitucionais, o que, segundo o autor, explica a importância crescente do controle

judicial de constitucionalidade no federalismo (WATTS, 2008, p. 157). Essa tarefa pode ser

desempenhada por um tribunal especializado (uma corte constitucional, como na Alemanha,

Áustria, Rússia, Bósnia e Herzegovina, Emirados Árabes, Bélgica e Espanha) ou por qualquer

tribunal da federação, mas com a decisão final reservada a uma última instância recursal (uma

suprema corte, modelo adotado nos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Índia, Argentina,

Venezuela, México, Malásia, Nigéria, Paquistão, Comores, Micronésia, Palau, São Cristóvão

e Nevis e Brasil1) (WATTS, 2008, p. 159). Ainda, um terceiro modelo é encontrado na Suíça,

onde o Tribunal Federal decide a validade apenas das leis cantonais, enquanto a validade das

leis federais é decidida por consulta popular por meio de referendo realizado nos oito cantões

(WATTS, 2008, p. 158-159). A importância do papel exercido por esses tribunais na

federação, por sua vez, coloca no centro a preocupação da sua instituição como órgão

independente e imparcial, diretamente ligada ao método de escolha e nomeação de seus

membros (WATTS, 2008, p. 159). Na Etiópia, ao contrário de todas as demais federações, o

controle de constitucionalidade é atribuído a uma câmara alta, a Câmara da Federação,

composta por membros representantes dos estados, que tem “o direito exclusivo e a última

palavra na interpretação da constituição” (WATTS, 2008, p. 159).

Por fim, Watts (2008, p. 160) defende que a estrutura do sistema legal – isto é, se

apoiado em precedentes judiciais (common law) ou em códigos legais (civil law) – tem

influência sobre o controle de constitucionalidade nas federações. A relevância, no entanto, é

rechaçada por Tsebelis (2009, p. 316), ao argumentar que os únicos aspectos importantes são

1 Na verdade, uma combinação dos dois modelos

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a possibilidade de os tribunais realizarem interpretações constitucionais e a capacidade dos

sistemas políticos sobrestarem interpretações estatutárias ou constitucionais. Para Tsebelis, na

relação entre federalismo e judiciário estão em jogo outras questões, conforme exposto na

seção seguinte.

2.4 Atores com poder de veto e federalismo: o judiciário em sistemas federativos

por Tsebelis (2009)

Em Tsebelis, a relação entre federação e judiciário independente é associada a maior

estabilidade decisória, frequentemente percebida no desenho federal comparativamente aos

estados unitários. O argumento é o seguinte. A maior estabilidade decisória seria devida a

associação entre países federais e, pelo menos, uma de duas características: (1) a existência de

um legislativo bicameral, no qual a segunda câmara tem poder de veto efetivo na legislação,

ou (2) a exigência de maiorias qualificadas no processo decisório (TSEBELIS, 2009, p. 196).

Esses aspectos ampliariam a estabilidade decisória pela inclusão de novos atores com poder

de veto na arena, mas não seriam, por isso, exclusivos do federalismo, e sim apenas mais

frequentes nele (TSEBELIS, 2009, p. 196).

A inclusão de novos atores com poder de veto, por sua vez, ao reduzir o conjunto

vencedor do status quo, restringe as possibilidades de o legislativo sobrestar as escolhas do

judiciário (e da burocracia). Logo, o poder de arbítrio dos juízes (e dos burocratas) seria

reforçado com o aumento da estabilidade decisória (TSEBELIS, 2009, p. 311), conforme

apontam evidências empíricas (TSEBELIS, 2009, p. 327), o que explicaria a associação entre

federalismo e um judiciário forte e independente.

Contudo, para Tsebelis (2009, p. 204-205), a direção da causalidade não é evidente e,

portanto, não permite considerar o judiciário, de modo inequívoco, como um mecanismo de

proteção contra avanços do governo central. O autor, assim, contempla duas possibilidades: o

judiciário independente como uma consequência estrutural associada aos múltiplos atores

com poder de veto, ou uma consequência independente do federalismo, que amplia “a

independência do Judiciário não apenas porque o número de atores com poder de veto

aumenta, mas também porque se pede aos juízes que exerçam suas funções entre diferentes

níveis de governo” (TSEBELIS, 2009, p. 223).

Por fim, outra característica do judiciário que deve ser levada em conta no

federalismo é a possibilidade de tribunais realizarem interpretações constitucionais sem

possibilidade de sobrestamento do legislativo (a não ser por reforma da Constituição). A

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decisão por uma corte constitucional2 seria vinculada principalmente ao federalismo e à

ocorrência de distúrbios parlamentares (ALIVIZATOS, 2005 apud TSEBELIS, 2009, p. 321).

Frequente, portanto, em países federais, a atividade de interpretação constitucional,

diferentemente das decisões estatutárias (aplicação da lei ao caso concreto), torna o judiciário

um ator com poder de veto, cuja posição sobre determinada decisão legislativa é considerada

no processo decisório para evitar sua futura revogação (TSEBELIS, 2009, p. 317). Deste

modo, às supracitadas características associadas ao federalismo, soma-se outra na direção de

maior estabilidade decisória.

Assim, a maior independência e a sua atuação como um ator com poder de veto,

qualidades associadas por Tsebelis ao judiciário nos desenhos federativos, demonstram a

importância que os tribunais podem assumir nas disputas federais. Em Lijphart (2003), por

sua vez, a análise comparativa reforça a relação entre federalismo, Constituição e controle de

constitucionalidade, como se expõe a seguir.

2.5 Democracia, federalismo e judiciário em Lijphart (2003)

Lijphart (2003, p. 18 e 213) enquadra a descentralização e o federalismo como

métodos de divisão do poder do seu modelo “consensual” de democracia, no qual as

instituições buscam ampla participação e amplo acordo sobre as políticas de governo. Esse

modelo é apresentado como contraposição ao modelo “majoritário” de democracia,

desdobramento simples do princípio de que “a maioria” governa, ainda que seja uma “maior

minoria” (LIJPHART, 2003, p. 18). A distinção entre os dois extremos é operada em duas

dimensões: uma relativa à estrutura do poder conjunto (executivo-partidária) e outra relativa à

divisão do poder territorialmente (federal unitária) (p. 19; 213). Nessa segunda dimensão, o

modelo consensual associa-se a (1) governo federal e descentralizado, (2) bicameralismo, (3)

constituições rígidas, (4) controle de constitucionalidade e (5) bancos centrais independentes

(LIJPHART, 2003, p. 19). Federalismo e temas relacionados ao judiciário, como rigidez

constitucional e controle de constitucionalidade, assim, surgem lado a lado.

A primeira associação entre poder judiciário e federalismo aparece com enunciação

das características do desenho federativo na revisão da literatura especializada. Nessa linha,

uma Constituição escrita, com exigências rigorosas para emenda, e a presença de um tribunal

com a capacidade de revisar a legislação, seja sob a forma de uma corte constitucional ou de

2 O controle de constitucionalidade, no entanto, não necessariamente é realizado por uma única corte; pode ser realizada pelos tribunais inferiores e a decisão final atribuída a uma última instância recursal, como a Suprema Corte norte-americana.

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última instância recursal na ordem jurídica nacional (suprema corte), são apontadas como

características secundárias, isto é, como garantias e não como um componente da federação

(LIJPHART, 2003, p. 215).

Dos seis países enquadrados por Lijphart (2003, p. 251) no grau máximo de rigidez

constitucional (com exigências mais rigorosas para a alteração da Constituição) cinco são

conhecidas federações – Austrália, Canadá, Suíça, Estados Unidos e Alemanha, classificadas

no estudo comparativo de Watts (2008, p. 28-38) como federações maduras. Exigências

rigorosas, no entanto, não se apresentam como um obstáculo efetivo às maiorias

parlamentares se inexistir um órgão independente com competência para decidir a

compatibilidade da legislação com a Constituição (LIJPHART, 2003, p. 253), na medida em

que restaria ao legislativo, caso fosse o responsável pelo juízo de constitucionalidade, optar

pelo caminho de produzir leis contrárias à carta maior ao invés de emendar o texto

constitucional.

A possibilidade de controle de constitucionalidade é, assim, para o autor, decorrência

lógica da própria ideia de Constituição e judiciário independente, embora haja constituições

que explicitamente neguem às suas cortes esse poder – como a holandesa (LIJPHART, 2003,

p. 254). Entre os países que Lijphart identificou a presença de um forte poder de controle de

constitucionalidade (presença de controle de constitucionalidade e alto grau de ativismo da

corte), seja exercida por um tribunal especializado (corte constitucional) ou não (suprema

corte), todos são federações – Alemanha, Índia, Estados Unidos e Canadá (depois de 1982;

anteriormente é situado como de “controle de constitucionalidade de força média”). Entre os

nove estados em que essa característica estava ausente, apenas dois eram federais – Suíça e

Bélgica (apenas até 1984, posteriormente identifica-se um controle de constitucionalidade

fraco) – e dois “semifederais” – Holanda e Israel (LIJPHART, 2003, p. 257), conforme

classificação do autor (2003, p. 217). Revisões judiciais mais fortes e numerosas são

encaradas como uma tendência e associadas a democracias mais recentes (LIJPHART, 2003,

p. 258). Por fim, Lijphart (2003, p. 260) reconhece explicitamente a ligação entre

federalismo, controle de constitucionalidade e constituições rígidas.

Demonstrada a forte correlação entre suprema corte e federalismo, a próxima parte se

dedica a investigar, de modo específico, a influência da alta corte brasileira – o Supremo

Tribunal Federal (STF) – quanto a movimentos de centralização ou de descentralização no

sistema federativo nacional.

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3 O Supremo Tribunal Federal nas disputas federativas

O STF que possui, entre suas atribuições constitucionais, a de dirimir conflitos entre

a União e os Estados. A resolução dessas disputas pode ser empreendida por diversos

mecanismos institucionais3. Neste estudo, entretanto, a análise restringe-se ao mais utilizado:

a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI).

A ADI é um instrumento do sistema de controle judicial de constitucionalidade para

a invalidação de lei ou ato normativo federal ou estadual incompatíveis com a constituição.

Por meio dela, um Estado pode requerer a invalidação de uma norma federal quando entender

que a União ao editar a lei desrespeitou as regras de repartição de competências

constitucionais e, do mesmo modo, a União pode solicitar a invalidação de lei estadual

quando entender que invadiu o âmbito de atribuições federais.

Nessa linha, o texto dá seguimento ao estudo pioneiro de Oliveira (2009) sobre o

Poder Judiciário como árbitro da federação brasileira, cujos métodos e resultados são

apresentados na seção seguinte. Todavia, também rediscute alguns dos seus pressupostos e

amplia o foco de análise, o que é tema das seções posteriores.

3.1 A pesquisa pioneira de Oliveira (2009)

Oliveira (2009) procura demonstrar "que há uma tendência do Poder Judiciário em

favorecer o Governo central, em detrimento dos governos estaduais, nas questões de ordem

constitucional que chegam ao STF" (OLIVEIRA, 2009, p. 226). Para isso, a autora analisa a

influência do Supremo Tribunal Federal no sistema federativo brasileiro como um capítulo do

papel desempenhado pelo poder judiciário nos países federais. A pesquisa focou a atuação do

Supremo Tribunal como árbitro nas disputas envolvendo dois níveis de entes federativos –

Estados-membros e União –, a partir das taxas de sucesso no julgamento das ações direta de

inconstitucionalidade que um propôs contra outro sob a alegação de usurpação da

competência legislativa, fixada no documento constitucional (OLIVEIRA, 2009, p. 224). Os

dados englobam ações propostas pela União contra os Estados e dos Estados contra a União,

no período entre 1988 e 2002. Os resultados demonstram que as ações impetradas pela União

contra os Estados foram mais vitoriosas. A autora os interpreta como indício de um

"federalismo centralizador" (OLIVEIRA, 2009, p. 224). Abaixo se descreve e se discute mais

detalhadamente o método empregado, os resultados obtidos e as conclusões aferidas.

3 O assunto é abordado na seção 4.4.

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A primeira consideração a ser feita, é que Oliveira toma "como pressuposto o caráter

político da atuação do Judiciário na resolução de conflitos federativos entre estados e governo

federal" (OLIVEIRA, 2009, p. 227), interpretando, assim, o julgamento contrário ou

favorável a um ente federativo como uma decisão política - e não técnica. O estudo se baseia

nos dados de 305 ações diretas de inconstitucionalidade (ADI), de um total de 941

envolvendo questões federativas (OLIVEIRA, 2009, p. 234). Foram considerados apenas três

tipos de ação, abrangendo somente conflitos entre as esferas estadual e federal: 1) ações

propostas pelo Procurador-Geral da República contra o Governador do Estado ou Assembleia

Legislativa; 2) ações propostas pelos Governadores dos Estados contra o Presidente da

República, Senado Federal, Congresso ou Ministro de Estado; e 3) ações propostas pelas

Assembleias Legislativas estaduais contra o Presidente da República, Senado Federal,

Congresso ou Ministro de Estado (OLIVEIRA, 2009, p. 234). Estavam, portanto, excluídas as

ações propostas pelos demais legitimados4 e as que envolviam a esfera municipal. Por fim, as

ações foram reunidas em dois blocos – ações da União contra Estados (grupo 1) e ações dos

Estados contra a União (grupo 2) (OLIVEIRA, 2009, p. 235) e classificadas em nove temas -

administração pública, servidor público, política social, políticas econômicas, privatizações,

regulação econômica do setor público, política tributária, regulação da sociedade civil e

competição política (OLIVEIRA, 2009, p. 242-243).

Em primeiro lugar, os dados revelaram que mais da metade das ações, sejam elas

propostas pelos Estados ou pela União ainda estavam aguardando julgamento. A diferença

entre as porcentagens é relativamente pequena – 53,3% para a União contra 61,5% para os

Estados, mas deve ser levado em conta que a União propôs quase quatro vezes mais ações do

que os Estados (240 e 65 ADI, respectivamente)(OLIVEIRA, 2009, p. 239). A primeira

hipótese suscitada por Oliveira (2009, p. 240) é se o Judiciário tem se eximido de seu papel de

árbitro do conflito federativo. Outra possibilidade seria que a baixa frequência de atuação

revelasse apenas “fragilidade desse instrumento, como árbitro de contendas judiciais, para a

resolução de questões federativas, ainda mais se considerarmos a necessidade de respostas

rápidas (...)" (OLIVEIRA, 2009, p. 246).

Em segundo lugar, além de apresentar maior disposição na apreciação das ações

propostas pela União, o STF foi ainda mais generoso na concessão de liminares (que têm

eficácia imediata contra o requerido) para o governo central: 73,6% contra 15,8% dos Estados

4 Presidente da República, Mesa do Senado Federal, Mesa da Câmara dos Deputados, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

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(OLIVEIRA, 2009, p. 237). O resultado ainda é pior para as subunidades nacionais no

julgamento do mérito: nenhuma ação dos Estados contra a União prosperou, enquanto 22,5%

das ações propostas pela União (ou quase metade delas, se desconsiderar as que ainda

aguardam julgamento) foram julgadas procedentes. Os dados suscitam a hipótese de que “o

poder judiciário brasileiro (...) estaria favorecendo o desenvolvimento de um federalismo

centralizador" (OLIVEIRA, 2009, p. 246). Antes de sugerir uma conclusão, contudo, Oliveira

submete a hipótese ao seguinte teste: verificar se, em vez da identidade do ator impetrante,

não seria o “tema” o verdadeiro responsável pelo sucesso das ações.

De acordo com os dados, as ações propostas pelos Estados versaram principalmente

sobre regulação econômica do setor público (29,7%), administração pública (15,6%),

servidores públicos (14,1%) e política tributária (14,1%). Já a grande maioria das ações da

União tratou da administração pública (43,2%) e de servidores públicos (35,9%) (OLIVEIRA,

2009, p. 244). A diferença de matérias entre os impetrantes, assim, poderia sugerir o “sucesso

do tema”. Contudo, o fracasso de todas as ações estaduais não permitiu inferir conclusões, que

dependeriam de um trabalho mais minucioso na análise do conteúdo das ações, segundo

Oliveira (2009, p. 246). Para a autora, "Os dados apresentados pretenderam dar o pontapé

inicial para essa compreensão"(OLIVEIRA, 2009, p. 248).

3.2 Pressupostos da análise das ADI

Como Oliveira (2009), este estudo parte do exame das ADI para resolver o seu

problema-objeto, qual seja, se o STF tem contribuído na centralização ou na descentralização

da federação brasileira após a CRFB/1988. Entretanto, amplia-se o foco temporal de análise

para abarcar mais 10 anos (de 1988 a 2012) e da categoria “conflito federativo” para englobar

qualquer ação que envolva em um dos polos um legitimado federal (Presidente da República,

Senado Federal, Congresso Nacional e Procurador da República) e no outro um legitimado

estadual (Governadores de Estado ou do Distrito Federal e Assembleia Legislativa ou

Distrital)5. Além disso, procura comparar os dados relativos à disposição de julgamento

conforme o ente federativo nos conflitos federativos com os dados referentes a questões não

federativas e identificar os legitimados individualmente do polo propositor.

5 Excluíram-se, assim, as ações propostas pelos demais legitimados (Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partidos políticos com representação no Congresso Nacional, Confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional), independentemente de quem ocupe o outro polo da demanda e as disputas “internas”, isto é, legitimados federais contra instituições centrais e legitimados estaduais contra instituições estaduais.

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3.3 Resultados

O número total de ADI contabilizadas entre 1988 e 2012 foi de 4751, das quais 896

(19%) envolviam conflitos federativos. A averiguação da existência de inclinação do STF em

privilegiar um dos entes federativos, por sua vez, envolveu a análise da disposição da corte no

julgamento (denominada aqui de eficiência) e dos resultados (taxa de sucesso). Assim,

enquanto a segunda examina se há diferenças estatisticamente significativas na obtenção de

êxito conforme a entidade propositora, a primeira atesta se há um tratamento distinto na

condução do processo, isto é, se o STF soluciona mais rapidamente as ações propostas por um

dos entes. Por fim, verifica-se se a distribuição das ADI está concentrada em um legitimado

específico.

3.4 Eficiência no julgamento

A primeira constatação a partir dos dados coletados foi o diferente uso da ADI que

fizeram os legitimados federais e estaduais (Tabela 3.4.1). Enquanto a União utilizou esse

instrumento para atuar nas disputas contra os Estados (83,6% das ADI propostas por

legitimados federais envolveram conflitos federativos), as subunidades nacionais o

empregaram para resolver disputas internas, como as batalhas jurídicas entre Governadores e

Assembleias (apenas 7,7% das ADI propostas por legitimados estaduais envolveram disputas

federativas).

Tabela 3.4.1 Número de ADI propostas entre 1988 e 2012 Conflito

Federativo União Estados Outros Total

Sim 805 91 0 896 Não 157 1085 2613 3855

Total 962 1176 2613 4751 Fonte: STF. Banco de dados organizado pelo DIRPOL6.

A segunda constatação é que entre disputas federativas e não federativas não houve

diferenças estatisticamente significativas quanto ao desempenho na condução do processo

pelo STF: 32% (287) das ADI envolvendo conflitos federativos ainda não foram julgadas

definitivamente, ao passo que 34,8% (1342) das ações que não envolviam tal tipo de disputa

6 Núcleo de Direito e Política - UFPR. Dados coletados por Jéssika Kaminski, Antônio Eduardo Seixas, Galanni Dorado de Oliveira, Guilherme Cantero Nunes, Kayan Acassio e Fernando Santos de Camargo e organizados pelo Prof. Dr. Fabricio Ricardo de Limas Tomio.

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aguardam julgamento (Tabela 3.4.2). O chi-quadrado7 foi apenas de 2,49, ou seja, abaixo do

limite de 3,84 para um intervalo de confiança de 95%.

Tabela 3.4.2 Situação das ADI propostas entre 1988 e 2012

Conflito Federativo

Julgadas Aguardado julgamento Total Frequência

observada Frequência Esperada

Frequência observada

Frequência Esperada

Sim 609 588,78 287 307,22 896 Não 2513 2533,22 1342 1321,78 3855

Total 3122 1629 4751 Fonte: STF. Banco de dados organizado pelo DIRPOL. Chi-quadrado (IC 95%) = 2,4950

Do mesmo modo, não houve diferenças estatisticamente significativas no andamento

de processos que envolviam conflitos federativos conforme o legitimado requerente. Das 896

ações sobre conflitos federativos, 287 (32%) ainda não obtiveram solução definitiva. Os

legitimados estaduais foram responsáveis pela propositura de 91 (quase 10% do total) dessas

ações, das quais 29 (31,9% das ações estaduais) ainda não obtiveram solução definitiva.

Apesar de os legitimados federais haverem proposto quase nove vezes mais (805), a

porcentagem de ações não julgadas é praticamente a mesma (32%). Portanto, não houve

disparidade significativa entre as frequências observadas e as frequências esperadas caso a

distribuição fosse aleatória (Tabela 3.4.3). O chi-quadrado obtido foi de apenas 0,0012 para

um intervalo de confiança de 95%.

Tabela 3.4.3 Situação das ADI envolvendo disputas federativas conforme a entidade requerente no período 1988-2012

Entidade requerente

Julgadas Aguardado julgamento Total Frequência

observada Frequência Esperada

Frequência observada

Frequência Esperada

União 547 547,15 258 258,85 805 Estado 62 61,85 29 29,15 91 Total 609 287 896

Fonte: STF. Banco de dados organizado pelo DIRPOL. Chi-quadrado (IC 95%) = 0,0012

7 O teste do chi-quadrado (X2) permite verificar se a diferença entre duas distribuições é estatisticamente significativa (não aleatória). Assim, serve para confirmar se duas variáveis categóricas estão ou não relacionadas entre si (hipótese de independência). Para um intervalo de confiança de 95%, a diferença será estatisticamente significativa se ultrapassar o limite crítico de 3,841, quando o grau de liberdade for igual a 1(conforme a tabela de distribuição do chi-quadrado), como nos testes aplicados neste artigo.

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3.5 Taxa de sucesso

A taxa de sucesso avalia o desempenho no processo conforme o requerente, isto é, se

obteve vitória final na ação (sucesso) ou não (fracasso). Contatou-se que os legitimados

federais obtiveram sucesso em 36% (289) das ações propostas, enquanto os legitimados

estaduais galgaram êxito em apenas 8% (7) dos processos que iniciaram. A diferença entre as

frequências observadas e as frequências esperadas (Tabela 3.5.1) gerou um chi-quadrado de

29,4. Embora o resultado demonstre que as diferenças observadas foram estatisticamente

significativas, a disparidade na distribuição das ações propostas conforme o requerente (10%

para os Estados e 90% para União) não permitiu mensurar a força da correlação (Q de Yule8)

por ultrapassar a distribuição recomendada para o teste (70:30).

Tabela 3.5.1 Taxa de sucesso das ADI julgadas envolvendo disputas federativas conforme a entidade requerente no período 1988-2012

Entidade requerente

Sucesso Fracasso Total Frequência

observada Frequência Esperada

Frequência observada

Frequência Esperada

União 289 265,94 516 539,06 805 Estado 7 30,06 84 60,94 91 Total 296 600 896

Fonte: STF. Banco de dados organizado pelo DIRPOL. Chi-quadrado (IC 95%) = 29,4074

3.6 Taxa de sucesso “ampliada”

Por meio da taxa de sucesso ampliada pretende-se abarcar também as ações não

julgadas definitivamente. O índice pretende, assim, contornar uma possível distorção

provocada pelas ações ainda não julgadas (em alguns casos, propostas há muito tempo), mas

que já surtissem efeitos. Trata-se das hipóteses de concessão de liminar, em que o ente

requerente, embora não tenha assegurado o resultado final, pode usufruir de efeitos jurídicos

provisórios. Desse modo, classificaram-se como “sucesso”, além dos processos julgados

procedentes, os processos pendentes, mas com deferimento de liminar, isto é, nos quais

surtiram efeitos provisórios da decisão.

Constatou-se, nessa análise, uma diferença ainda maior nos resultados conforme o

propositor. Enquanto a União obteve sucesso em 43% (349) das ações propostas, os Estados

8 O Q de Yule permite averiguar a intensidade da relação entre duas variáveis dicotômicas (o chi-quadrado apenas verifica se variáveis categóricas estão ou não relacionadas entre si, mas é incapaz de mensurar a força da correlação).

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tiveram êxito em apenas 12% (11) das ações. O chi-quadrado obtido foi de 33,25 para um

intervalo de confiança de 95% (Tabela 3.6.1). Do mesmo modo, contudo, a disparidade na

distribuição das ações propostas conforme o requerente (10% para os Estados e 90% para

União) não permitiu mensurar a força da correlação (Q de Yule) por ultrapassar a distribuição

recomendada para o teste (70:30).

Tabela 3.6.1 Taxa de sucesso das ADI julgadas e aguardando julgamento (deferimento de liminar) envolvendo disputas federativas conforme a entidade requerente no período 1988-2012

Entidade requerente

Sucesso “ampliado” Fracasso Total Frequência

observada Frequência Esperada

Frequência observada

Frequência Esperada

União 349 323,44 456 481,56 805 Estado 11 36,56 80 54,44 91 Total 360 536 896

Fonte: STF. Banco de dados organizado pelo DIRPOL. Chi-quadrado (IC 95%) = 33,2526

3.7 Legitimados individuais

A análise individual dos legitimados demonstra que, além da disparidade entre o

número de ações propostas pelos legitimados federais e estaduais considerados em grupo

(90% e 10%, respectivamente), a autoria das ações da União está concentrada em um dos

legitimados: o Procurador-Geral da República. Sozinho, o chefe do Ministério Público

Federal foi responsável pela propositura de 798 das 805 ações propostas por legitimados

federais, ou seja, aproximadamente 99% delas (Tabela 3.7.1). O resultado não é de todo

surpreendente, uma vez que tal ator tem como uma de suas principais atribuições a iniciativa

de ações constitucionais. Entretanto, revela a necessidade de uma análise qualitativa das ações

que envolveram conflitos federativos, na medida em que o sucesso da União nas disputas é

atribuído a um ator que, por atuar com independência, não pode ser considerado um agente do

governo federal.

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Tabela 3.7.1 Tabela de correspondência: requerente9 x desempenho

Assembleia Governador Senado Procurador-Geral Presidente Total

Fracasso 0 55 0 257 1 313 Aguardando julgamento sem liminar

5 20 0 193 5 223

Aguardando julgamento com liminar

1 3 1 59 0 64

Sucesso 0 7 0 289 0 296

Total 6 85 1 798 6 896 Fonte: STF. Banco de dados organizado pelo DIRPOL.

3.8 A inclinação do STF

Os resultados obtidos indicam que o STF, no julgamento de ADI, tem decidido mais

favoravelmente à União, conforme havia apontado Oliveira (2003), mas o desempenho

semelhante da alta corte tanto no julgamento de conflitos federativos quanto na resolução das

demais disputas enfraquece as hipóteses, suscitadas por Oliveira (2003), de que a corte em se

eximido de decidir conflitos federativos ou de que a ADI é um instrumento frágil para

resolver questões federativas10. Além disso, não se pode afirmar uma "maior disposição" do

STF em decidir as ações iniciadas pelos legitimados federais, pois apesar de a União propor

quase dez vezes mais que os Estados, a proporção entre ações não julgadas e já decididas se

mantém e a diferença entre as distribuições observadas e esperadas é insignificante.

O sucesso da União, no entanto, revela que, quando decide - seja definitivamente,

seja provisoriamente pelo deferimento de liminar - o STF se inclina em favor do ente central.

Todavia, há duas dificuldades que não permitem, a partir dos dados analisados, transpor desse

indicativo para uma conclusão mais robusta. O primeiro é que a disparidade na distribuição

entre as ações iniciadas pelos legitimados federais e estaduais não permite mensurar a força

dessa correlação. O segundo empecilho é que o principal propositor das ADI da União contra

os Estados situa-se no ente federal, mas sua atuação é independente do governo central.

9 A Mesa da Câmara de Deputados não propôs nenhuma ação direta de inconstitucionalidade no período considerado. 10 Houve, na verdade, também uma redução no número de processos sobre questões federativas ainda não julgados. No período entre 1988 e 2002, conforme os dados da autora, mais da metade dessas ações aguardavam julgamento. Caso se considere os dez anos posteriores, de acordo com este estudo, constata-se que 32% dos processos envolvendo disputas federativas ainda não foram julgados.

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Portanto, o principal legitimado em favor da União não é, propriamente, um agente do

governo federal.

Os resultados obtidos neste trabalho, desse modo, mais do que oferecer respostas

definitivas, indicam algumas questões a serem abordadas no desenvolvimento do estudo sobre

o papel do STF na federação brasileira – tema da próxima parte deste trabalho.

4 O papel do judiciário em sistemas federativos: questões de pesquisa

Variadas questões podem ser levantadas quanto às possíveis conclusões que os

resultados obtidos permitem aferir. A primeira delas é quanto ao pressuposto da atuação

política do Supremo Tribunal Federal no julgamento de disputas federativas, como tomou por

pressuposto explícito Oliveira (2003) e implícito a pesquisa aqui desenvolvida. A segunda se

refere à limitação da pesquisa sobre a atuação do judiciário no conflito de duas entidades

federativas, quando no Brasil existem três. A terceira é justamente se outras instâncias do

poder judiciário, além do STF, podem ser consideradas na análise sobre a influência dos

tribunais sobre o arranjo federativo. A quarta remete à necessidade ou não da consideração de

outros mecanismos que denunciam conflitos federativos, mas não somente as demais

modalidades de controle constitucional (como a ação declaratória de constitucionalidade e a

arguição de descumprimento de preceito fundamental), mas também a participação do

judiciário nas medidas excepcionais, como a intervenção. A quinta, por fim, se antecipa aos

resultados empíricos e questiona se a decisão judicial por centralização na maioria dos casos,

mais do que uma posição política dos juízes, não seria reflexo das próprias características do

texto constitucional e, portanto, um efeito esperado – como defendeu Arretche (2009) no caso

das iniciativas legislativas. Essas questões são abordadas nas próximas seções como dados a

serem considerados nas pesquisas sobre o papel e a influência do poder judiciário nas

federações.

4.1 Preferências políticas e preferências procedimentais

A atuação política do judiciário, ou “judicialização da política”, está associada aos

movimentos de expansão do poder judiciário, que passa a ocupar um espaço no processo

decisório (CARVALHO, 2004; CARVALHO, 2007). Um processo político é judicializado

"quando houver possibilidade de censura constitucional futura ou quando uma decisão

baseada na jurisprudência altera os resultados legislativos" (CARVALHO, 2007, p. 174). A

atuação do STF nas disputas federativas por meio do controle de constitucionalidade, nesse

sentido, é política, pois decorre da sua inclusão no processo decisório. Nesse caso específico,

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de interpretação constitucional, o STF se apresenta como ator com poder de veto, embora na

maioria das vezes possa estar absorvido pelos demais (TSEBELIS, 2009, p. 317). Essa linha

de raciocínio parece sugerir que a decisão de uma disputa federativa é uma questão de

preferência política - pela centralização ou pela descentralização - ou mesmo como

retribuição com aqueles que os indicaram. Nessa linha, o julgamento é encarado como

resultado do arbítrio dos juízes e só é possível predizê-lo pelo conhecimento prévio das

preferências dos membros da corte. O argumento, portanto, ignora que questões técnicas

podem estar em jogo, e mesmo que o alinhamento ideológico dos membros do tribunal seja

em outro sentido, ignorar os obstáculos institucionais pode ser muito custoso.

Um argumento semelhante é desenvolvido por Tsebelis na explicação de como os

tribunais constitucionais podem vetar a legislação, já que, pelas suas características

institucionais, estariam incluídos “no núcleo de unanimidade dos atores existentes com poder

de veto” (TSEBELIS, 2009, p. 318). A primeira razão é que na escolha de juízes para a

suprema corte, algumas de suas posições decisórias não são conhecidas ou são consideradas

secundárias no momento (TSEBELIS, 2009, p. 319). A segunda é justamente que a revogação

de uma lei não é necessariamente uma oposição à ação governamental; ela pode ser

simplesmente “a expressão das preferências procedimentais, como a introdução de restrições

técnicas”, ou seja, “O tribunal pode estar indicando ao governo que essa determinada maneira

de atingir seu objetivo viola a Constituição e que, portanto, deve-se seguir uma linha de ação

diferente” (TSEBELIS, 2009, p. 319).

Nesse sentido, a anulação de uma lei estadual, por exemplo, pode ocorrer em razão

do descumprimento de uma regra procedimental na sua elaboração e não pelo entendimento

de que determinada matéria seria “melhor regulada” por uma lei federal (ainda que a

justificativa técnica possa ser vista como um subterfúgio ao enfrentamento da questão de

mérito). Do mesmo modo, pode haver uma violação patente de um dispositivo constitucional,

como uma lei estadual, no Brasil, que estabelecesse um novo tipo penal ou alterasse a pena de

um tipo previsto em legislação federal, embora tal situação possa soar improvável. Nesses

casos é possível predizer, com significativa probabilidade de êxito, a decisão do tribunal – e

não se deve atribuir isso a uma tendência do tribunal em favorecer o governo federal ou os

estaduais. É provável que esta não seja efetivamente uma situação frequente, mas, para maior

clareza e precisão, uma análise não pode desconsiderar essa distinção.

Além disso, outra possibilidade deve ser considerada: a existência de casos

repetitivos, como, por exemplo, quando vários estados promulgam lei em uma determinada

matéria que são, posteriormente, declaradas inconstitucionais. Se o julgamento das ações não

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ocorrer simultaneamente, várias decisões são incluídas como dados diferentes da tendência de

reforçar o governo central, quando, na verdade, houve apenas uma decisão pela centralização,

replicada por uma questão procedimental de uniformização. Como há certa previsibilidade

quando decisões sinalizam a posição do tribunal em certo sentido, quando se tratar de casos

semelhantes, talvez seja mais adequado considerá-los como um único dado.

4.2 Governos locais como ente federativo

Outro ponto a ser observado é que na federação brasileira há três – e não apenas duas

– entidades federativas: União, Estados e Municípios. Esse desenho institucional torna mais

complexas as disputas federativas. Isso porque negar à União a capacidade de produzir leis de

determinado conteúdo não significa necessariamente atribuir aos Estados a possibilidade de

realizá-lo. A constituição brasileira enumera as competências legislativas privativas da União

e dos Municípios, mas reserva aos Estados apenas áreas de competência concorrente com a

União (nas quais cabe às subunidades complementar a legislação federal ou suplementá-la na

sua ausência). Como são enunciados mais de 40 itens entre matérias de competência privativa

da União e concorrente da União e dos Estados, resta pouco espaço para as subunidades

nacionais exercerem sua competência residual privativa – sob esse aspecto, comparativamente

a outras federações, a brasileira aparece como a mais centralizada (TOMIO; ORTOLAN;

CAMARGO, 2010, p. 83). Um exame mais completo da influência do poder judiciário na

centralização ou descentralização deve, portanto, levar em conta três espécies de conflitos

federativos, conforme as entidades envolvidas: União e Estados, Estados e Municípios e

União e Municípios.

4.3 A existência de outros árbitros para os conflitos federativos

A terceira questão, por sua vez, remete a uma característica associada à presença de

três entes federativos: nem todas as disputas federativas em torno das competências

constitucionais são resolvidas no STF. A representação contra leis municipais que violam a

constituição estadual, por exemplo, se exerce perante o Tribunal de Justiça do Estado. Na

verdade, entretanto, é provável que a consideração dessa arena não gere muitos benefícios à

pesquisa, uma vez que a constituição federal restringe a possibilidade de inovação

institucional estadual e detalha as regras que devem estar presentes no documento estadual.

Como consequência, há poucas diferenças significativas entre as instituições políticas

estaduais, “resultantes de inovações jurídicas dos anos 90 ou legadas das antigas constituições

estaduais”, e “muitas destas diferenças resultam de interpretações jurídico-políticas

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questionáveis da Constituição Federal, portanto, passíveis de sofrer ações diretas de

inconstitucionalidade (ADINs) e ter seus efeitos políticos sustados e revistos” (TOMIO in

CARREIRÃO; BORBA, 2006, p. 95). Assim, uma lei municipal que contraria a Constituição

estadual possivelmente viola também a Constituição federal. Nesse caso, ao lado da

representação perante o Tribunal de Justiça estadual, caberia a propositura de arguição de

descumprimento de preceito fundamental frente ao STF.

4.4 Demais mecanismos de resolução das disputas federativas

Um quarto ponto é a necessidade de se considerar outros mecanismos judiciais de

solução de impasse federativo. É possível dividi-los em duas modalidades: instrumentos

políticos e judiciais. Os instrumentos políticos englobam medidas de exceção, emendas à

constituição, acordos políticos e eleições (ANDERSON, 2009, p. 49). Os instrumentos

judiciais envolvem a revisão judicial da legislação.

Particularmente, no estudo do papel do judiciário na federação os instrumentos

políticos interessam quando há controle judicial prévio ou posterior de sua utilização. Poucas

constituições federais concedem poderes excepcionais ao governo central para restringir a

autonomia das subunidades em situações emergenciais, como distúrbios políticos graves ou

ameaças de desintegração (WATTS, 2009, p. 90). No Brasil, há previsão constitucional da

intervenção federal (União sobre Estados, ou União sobre Municípios localizados em

territórios federais) e estadual (Estados sobre Municípios), que podem ser “espontâneas”

(submetidas a controle político posterior do legislativo), “provocadas por solicitação

(submetidas a controle político prévio do legislativo, previstas apenas no caso de intervenção

federal)” e “provocadas por requisição” (submetidas a controle judicial prévio). Embora

somente a última hipótese tenha previsão explícita da participação do judiciário, dadas as

características do sistema jurídico brasileiro, nada impede que os demais casos sejam

submetidos a controle judicial posterior. A utilização desses instrumentos tem sido pouco

frequente no Brasil, mas a análise das situações em que foi empregado pode contribuir para a

compreensão da atuação do judiciário nas disputas federativas. De outro lado, a frequência no

emprego dos mecanismos interventivos pode se revelar um dado importante para estudos

comparativos da influência judicial nas federações. Na Índia, o uso extensivo de tais

instrumentos, apesar do controle judicial da Suprema Corte, recentemente tem sido

minimizado por pressões políticas (WATTS, 2008, p. 90). Na mesma linha, a emenda

constitucional interessa aos estudos quando passível de controle de constitucionalidade, como

é no Brasil.

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Os instrumentos judiciais, por sua vez, podem envolver uma série de diferentes

mecanismos, com abrangência e efeitos diversos. A constituição brasileira, por exemplo,

prevê cinco espécies de ação de controle de constitucionalidade: ação direta de

inconstitucionalidade (genérica), ação declaratória de constitucionalidade, arguição de

descumprimento de preceito fundamental, ação direta de inconstitucionalidade interventiva e

ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Dessas, as quatro primeiras podem remeter

diretamente a disputas federativas. A seguir, apresenta-se uma síntese das características

principais das três primeiras, já que a ação direta de inconstitucionalidade interventiva é um

instrumento da intervenção provocada por requisição, abordado anteriormente.

A ação direta de inconstitucionalidade (ADI), como visto, visa à invalidação de lei

ou ato normativo federal ou estadual, posteriores à promulgação do texto constitucional atual,

incompatíveis com a Constituição Federal. Para os estudos sobre o papel do judiciário

interessam particularmente aquelas em que se situam em polos opostos autoridades federais e

estaduais.

Já ação declaratória de constitucionalidade (ADC) destina-se a “blindar” leis ou atos

normativos federais. Serve, assim, como mecanismo preventivo para o governo central,

embora tenha como legitimados os mesmo da ADI. Contudo, devido à sua natureza dúplice

(como a ADI), pode surtir efeito reverso ao esperado: a decisão de constitucionalidade

implica na procedência da ação declaratória e na improcedência da ação direta e vice-versa.

Como instrumento passível de aumentar os poderes da esfera federal, talvez seja pertinente a

sua consideração.

A arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), por sua vez, inclui

a esfera municipal, embora tenha os mesmo legitimados da ADI e da ADC, e engloba mesmo

dispositivos anteriores à Constituição de 1988. Restringe-se a “atos”, sem abranger questões

de legislação. Uma análise detalhada poderia aferir sua utilização nas disputas federativas.

4.5 Outras determinantes

Por fim, o quinto ponto que quero abordar é se as decisões judiciais favoráveis à

União manifestam necessariamente um alinhamento ideológico dos tribunais em favor da

centralização. Análises do judiciário norte-americano demonstram a atuação da Suprema

Corte em favor do fortalecimento do governo central (KATZ, 2009 apud OLIVEIRA, 2009,

p. 231-232) e do aumento da importância dos tribunais federais na gestão de recursos, em

razão do crescimento expressivo das verbas concedidas pela União a partir dos anos 60

(WALKER, 1981, p. 149). Em estudo recente, no entanto, Meyer (2011) aponta a reversão

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desse fenômeno e demonstra como os estados-membros tem aproveitado a tendência da

Suprema Corte nos últimos anos em limitar os poderes federais para regular interesses que

ultrapassariam a esfera regional. Nos Estados Unidos, os resultados podem ser mais

frequentemente interpretados como preferências políticas pela centralização ou

descentralização na medida em que a constituição federal atribui uma lista sucinta de

competências à União, relacionada principalmente a assuntos externos e interestaduais.

Assim, podem surgir temas que, dado a sua relevância, os tribunais entendam que mereçam

tratamento nacional, embora não estejam enumerados explicitamente como de competência da

União. No Brasil, entretanto, a enumeração das competências legislativas da União é muito

abrangente e, por consequência, a competência residual dos estados é diminuta. Há ainda,

como dito acima, uma série de competências legislativas concorrentes, distribuídas entre

governos central e estadual, nas quais cabe ao primeiro estipular regras gerais e ao segundo,

determinações específicas. Nesse quadro, parece ser mais provável que o Estado, ao legislar,

extrapole mais os limites de suas atribuições (reduzidas) do que o contrário. A centralização,

assim, seria um resultado esperado pelo próprio texto constitucional e não simplesmente

preferência dos juízes, que deveriam ignorar obstáculos institucionais para reverter o

fenômeno. Um argumento nesse sentido é desenvolvido por Arretche (2009) ao analisar o

aumento das inovações legislativas com o intuito centralizador a partir de 1995.

A autora contesta a interpretação de que o evento seja fruto simplesmente das

preferências políticas dos autores envolvidos no processo decisório (que superestimam o

objetivo de descentralização do texto constitucional) ao demonstrar a centralização como

desdobramento da própria carta de 1988 (ARRETCHE, 2009, p. 380). Entre os argumentos

elencados, estão os seguintes: (1) a Constituição Federal (CF) atribui iniciativa legislativa -

em muitas áreas privativas - para União em diversos setores, inclusive nos que regulamentam

políticas públicas que devem ser executadas pelas outras entidades federativas (ARRETCHE,

2009, p. 391); (2) a CF atribui iniciativa legislativa para União na regulação do exercício da

autonomia das unidades federativas, inclusive nas áreas orçamentárias, tributárias e

administrativas (ARRETCHE, 2009, p. 406); (3) a CF não estabeleceu pontos de vetos

adicionais para as entidades federativas: as questões federativas são decididas sempre na

arena central sem pontos de vetos descentralizados (ARRETCHE, 2009, p. 406); e (4) A CF

não exigiu supermaiorias para a aprovação de legislação que regula a autonomia das entidades

federativas, e onde isso ocorreu, comparativamente a outros países, a supermaioria exigida

não é tão extensa (Leis Complementares e Emendas Constitucionais) (ARRETCHE, 2009, p.

407-408). Segundo Arretche (2009, p. 403), mesmo onde houve oportunidade de vetar

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legislações desfavoráveis a Estados e Municípios, as bancadas estaduais não se mobilizaram.

Diante disso, a maior centralização a partir de 1995 deve-se mais a agenda do governo, que

aproveitou as oportunidades institucionais, do que um esforço dirigido à formulação de um

novo pacto federativo (ARRETCHE, 2009, p. 412). Esse argumento não pode ser

desconsiderado no exame das decisões judiciais nas disputas federativas.

5 Considerações finais

Nos Artigos Federalistas o reconhecimento da importância do judiciário no arranjo

institucional inaugurado pela constituição está entre os motivos que justificaram a sua

formação como ramo independente de poder. Na mesma linha, nas federações atuais, a

essencialidade da preservação do texto constitucional - e, por consequência, da distribuição do

poder entre os entes federativos - surge como uma das razões para a criação de um órgão

independente como árbitro nos eventuais conflitos que surjam entre as suas unidades

componentes. Federalismo, constituição rígida e controle de constitucionalidade aparecem,

assim, relacionados em estudos comparativos. Uma explicação alternativa da independência

do judiciário nas federações, centrada mais nos efeitos dos aspectos institucionais do que na

intencionalidade de seus desenhistas, é que nesses sistemas, dado determinadas características

institucionais frequentemente associadas, há maior estabilidade decisória e, portanto, menor

probabilidade de o legislativo obter sucesso no sobrestamento das decisões judiciais. Seja

qual for o caminho da causalidade, a relação frequente entre federalismo e judiciário

independente instiga o estudo sobre o papel das altas cortes nas federações. No estudo aqui

desenvolvido, foi possível demonstrar que, quando decide - seja definitivamente, seja

provisoriamente pelo deferimento de liminar - o STF se inclina em favor do ente central.

Contudo, uma série de questões a serem consideradas para transformar esse dado em uma

conclusão. Desse modo, a pesquisa sobre a influência da alta corte no sistema federativo

brasileiro deve investigar as possibilidades de atuação e o teor das decisões do árbitro

federativo, de modo a identificar indicadores que permitam aferir o grau de influência na

configuração do arranjo federativo.

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FIDELIDADE PARTIDÁRIA: A VONTADE DA CONSTITUIÇÃO, DO SUPREMO

TRIBUNAL FEDERAL E DO POVO ∗∗∗∗

PARTISAN LOYALTY: THE WILL OF THE CONSTITUTION, OF THE SUPREME COURT

AND OF THE PEOPLE

Carina de Castro Quirino† Pedro Federici Araújo ††

SUMÁRIO: 1. Notas introdutórias; 2. Relato do julgamento do STF sobre fidelidade partidária – tese vencedora e tese vencida; 3. Voto nominal versus voto partidário; 4. O descompasso entre a decisão do STF e a realidade das urnas; 5. Alternativa à decisão do STF e a candidatura sem vinculação partidária; 6. Conclusão; 7. Referências bibliográficas.

RESUMO:

A exposição parte do atual cenário constitucional e político brasileiro, das constantes tensões diante dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal quando relacionados à concepção de Estado e competências dos outros poderes. A análise concentra-se na problemática da fidelidade partidária, suscitada em Consulta ao Tribunal Superior Eleitoral, em mandados de segurança no Supremo Tribunal Federal e mesmo Ações Diretas de Inconstitucionalidade relacionadas ao tema. Busca-se a verificação do grau de legitimidade da posição firmada que consagrou os partidos políticos como titulares dos mandatos parlamentares. Intenta-se demonstrar que os Tribunais não deveriam posicionar-se em relação a questões que influenciem nas constituições de outros poderes sempre que este controle puder ocorrer diretamente pelo povo. Apresentam-se, baseados no caso tratado, os argumentos de que (i) a decisão do STF não corresponde à vontade popular manifesta por meio de sufrágio universal e direto; (ii) sendo o voto participação tão importante no processo democrático, não deveriam os Tribunais alterar a escolha executada; (iii) o povo é o

�Este artigo foi elaborado no âmbito do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições (LETACI), vinculado à Faculdade Nacional de Direito (FND) e ao Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), na concorrência do Edital Universal nº 14/2011 (Processo nº 480729/2011-5), e pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), na concorrência do Edital nº 09/2011 (Processo nº E-26/111.832/2011), além de Bolsa de Iniciação Científica (IC-FAPERJ). † Mestranda em Teorias Jurídicas Contemporâneas pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]. †† Graduando pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected].

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verdadeiro soberano do Estado e como tal não pode ter sua vontade suprimida, afinal é capaz de “tomar conta de si mesmo”.

PALAVRAS-CHAVE: Fidelidade Partidária, Constitucionalismo Popular, Emenda Constitucional e Soberania Popular.

ABSTRACT:

The present work starts in the current constitutional and political scenario of Brazil, including constant tension before Federal Supreme Court decisions, when concerned about the nature of Governments, competence and framework of separated Powers. Partisan loyalty is the main issue analyzed, raised to discussion through Resolution, Injunctions and Direct Action of Unconstitutionality before superior courts, namely the Electoral Court and the Federal Supreme Court. The aim is to verify the degree of legitimacy around the modern understanding that established political parties as holders (owners) of parliamentary mandates (seats). The major purpose is to demonstrate how Courts should not decide about issues related to other powers frameworks if people themselves can exercise directly this control. Regarding the selected case, three arguments are brought forward: (i) the decision of the Federal Supreme Court contradicts the will of the people expressed through the vote; (ii) assuming the vote as a very important aspect of the democracy, the Courts should not change its decision; (iii) as the sovereign power of the State, the people cannot see their will collapse, after all “people can take care of themselves”.

KEY-WORDS: Partisan Loyalty, Popular Constitutionalism, Constitutional Amendment and People Sovereignty.

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1. NOTAS INTRODUTÓRIAS

As discussões sobre fidelidade partidária são travadas sob diversas formas e aspectos.

Não se pode negar que é tema presente não só na esfera acadêmica jurídica, mas que se

relaciona com todos os cidadãos ao menos uma vez a cada dois anos (tratando-se,

obviamente, dos eleitores que comparecem às urnas nesse intervalo de tempo). Não é demais

sublinhar que se está diante de assunto de suma importância para o povo brasileiro e de

conexão direta com as matrizes dos poderes federativos e das instituições que participam do

cenário político e jurídico nacional na equação da governabilidade

O objeto que aqui se propõe analisar é a decisão do Supremo Tribunal Federal - STF

em relação ao debate travado sobre fidelidade partidária no Mandado de Segurança 26.602.

Em breves assertivas, vale dizer que se trata de decisão justaposta ao entendimento da

Resolução nº 22.526 (derivada da Consulta nº 1.398/2007) do Tribunal Superior Eleitoral

determinando que o candidato que porventura trocar de legenda após a eleição deverá perder

o mandato. Afirmou-se para tanto, em um verdadeiro “giro jurisprudencial”1, que o mandato

não pertence à pessoa do candidato eleito, mas sim ao partido, alterando entendimento

anterior do STF em relação ao ponto. Quanto às suas particularidades, a decisão será melhor

analisada posteriormente, esclarecendo-se qual era a posição anterior do Tribunal

Constitucional e como se operou tal mudança de entendimento. Importante ressaltar, no que

se refere ao objeto, que os argumentos da decisão não serão avaliados em certos ou errados;

em verdade, o que se pretende averiguar seria o grau de representatividade contido no

posicionamento assumido, e quais eventuais consequências poder-se-ia derivar desta decisão

no Poder Legislativo e na adequação que se coloca diante do mundo real.

Do objeto selecionado para estudo, surgem os pontos e as perguntas nodais que

orientam a análise e os argumentos suscitados neste trabalho. A premissa inicialmente

traçada subsume-se a verificar se a decisão do Supremo Tribunal Federal reflete a “realidade

das urnas”, isto é, se foram considerados aspectos singulares de representação eleitoral, tais

como identificação dos eleitores com partidos ou a afinidade pessoal com determinados

candidatos. Diante desta problemática, busca-se averiguar como a Corte Constitucional em

algumas decisões, a exemplo da análise do caso em específico, pode contrastar com a opinião

1 “A Emenda Constitucional 5, de 15.05.1985, suprimiu o instituto, agora revigorado, em outras bases, primeiro, de modo expresso, pela Constituição de 1988; depois, diante do polêmico giro jurisprudencial operado pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Tribunal Superior Eleitoral.”CLÈVE, Clèmerson Merlin. Fidelidade Partidária e Impeachment. 2ª Ed. Curitiba: Juruá Editora, 2012. p. 27.

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pública, alinhavando posicionamentos que eventualmente seriam diferentes se submetidos à

consulta popular2.

Nesta linha de raciocínio, aponta-se um objetivo geral concernente aos mecanismos de

interação entre instituições: como podem ser entendidas as instituições envolvidas na

problemática engendrada? Poder-se-ia afirmar que tanto o Poder Legislativo como o Poder

Judiciário e os partidos políticos são verdadeiramente compreendidos por quem é titular de

soberania, o povo? Neste contexto, uma hipótese passível de identificação seria a ausência de

compreensão das instituições brasileiras, afinal, como o eleitor brasileiro realmente assimila a

afeição partidária e a personificação do candidato? A partir desta hipótese, propõe-se um novo

foco para a tomada de posicionamento jurisdicional dando centralidade ao povo, o verdadeiro

soberano e instituidor do Estado. Vez que, se este não compreende instituições tão

importantes do jogo político brasileiro e, ocasionalmente, não se sente representado por elas,

como podemos falar em democracia?

Ao longo do trabalho serão visitados textos que tratam da fidelidade partidária, da

representatividade dos partidos políticos e da personificação do candidato, alguns de viés

jurídico e outros claramente da ciência social e política. Mas a questão maior que suscita a

abordagem de Larry Kramer, notadamente em sua obra “People Themselves: Popular

Constitutionalism and Judicial Review” , trata principalmente do constitucionalismo popular e

traz a discussão pretendida, de que o povo é o verdadeiro soberano do Estado, que suas

instituições não devem propor decisões que não refletem ou excluem a vontade do povo e de

que ele é o maior protetor de si mesmo3.

No que se refere à solução do problema apresentado, tendo, única e exclusivamente, o

tema da vinculação do candidato ao partido e da titularidade do mandato, serão apresentados

argumentos que identificam mutação constitucional na decisão do STF, que poderia ter sido

evitada em nome da separação dos poderes e principalmente para que não se constranja um

escolhido pelo povo a permanecer em um partido contra sua liberdade de consciência. Por

fim, será apresentado o projeto de Lei que tramita no Senado Federal alterando o texto legal

para permitir a candidatura sem partido político.

2. RELATO DO JULGAMENTO DO STF SOBRE FIDELIDADE PARTIDÁRIA –

TESE VENCEDORA E TESE VENCIDA

2 KRAMER, Larry D. People Themselves: Popular Constitutionalism and Judicial Review. Oxford University Press, 2004. p. 105. 3 KRAMER, Op.cit., p. 107.

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Antes de relatar o julgamento exarado pelo Supremo Tribunal Federal sobre fidelidade

partidária, cabe apontar que esta suscita diversas perspectivas. Aqui se trata da fidelidade

partidária relacionada à mudança de partido (legenda) após eleito, no decurso do mandato, o

que não se confunde com a fidelidade partidária em relação às posições do eleito durante as

votações no Congresso ou com sua postura parlamentar. Mais especificamente, estamos

tratando da fidelidade partidária relacionada com o regime proporcional com voto em lista

aberta (RPLA)4-5, próprio, na esfera federal, da eleição dos Deputados Federais6-7.

Não serão feitas explicações extensivas em relação ao RPLA, noção sempre de

compreensão confusa para aqueles que não têm intimidade com o procedimento e com as

aplicações matemáticas necessárias para chegar ao resultado do quociente partidário. O que se

torna útil esclarecer, em resumo e simplificação, é que no RPLA os candidatos dependem, em

tese, da quantidade de votos recebida pelo partido. Verificando-se que o partido que for mais

votado, na soma dos votos de cada candidato com os votos da legenda terá mais candidatos

eleitos. Ou seja, poderá um candidato com mais votos de um partido X perder a eleição para

um candidato com menos votos do partido Y, desde que não tenha atingido o quociente

partidário8 de votos necessários para se eleger dentro do seu próprio partido9.

4Conceitualmente, pode-se entender sistemas eleitorais como conjuntos de leis e regras partidárias que estabelecem as regras para a competição eleitoral entre os partidos e a dinâmica interna dos mesmos. Há três modelos de representação nas democracias: (i) majoritário, (ii) proporcional e (iii) misto. Bem colocados são os esclarecimentos de Cristian Klein quanto à caracterização destes modelos, notadamente quanto ao proporcional: “Sistemas proporcionais priorizam a representatividade. Seus defensores argumentam que a função primordial de um sistema eleitoral é espelhar a diversidade da população no Parlamento.” KLEIN, Cristian. O desafio da reforma política – consequências dos sistemas eleitorais de listas aberta e fechada. Mauad X: Rio de Janeiro, 2007, p. 25. 5 “Na lista aberta, não há uma relação de nomes preordenada. É o eleitor quem decide que candidatos ocuparão as cadeiras conquistadas pelo partido. Os nomes mais votados ocupam os primeiros lugares de cada lista partidária. No Brasil, no Peru e na Letônia, o cidadão tem duas opções: votar em candidatos ou na lista partidária (voto de legenda).” Dado interessante é trazido pelo autor, ao apontar que das trinta e três maiores democracias, que adotam o sistema proporcional de lista, 19 (58%) utilizam a lista fechada e 14 (42%) permitem o voto preferencial (lista aberta, flexível ou livre). 6 Vale fazer breve esclarecimento: um Estado não precisa, necessariamente, uniformizar o sistema eleitoral. No Brasil, por exemplo, adota-se o sistema majoritário de dois turnos na eleição para a Presidência da República, o de maioria simples para o Senado Federal e o sistema proporcional de lista para a Câmara dos Deputados. 7 “(...) Manifesta-se, aqui, um segundo tipo de fidelidade partidária, insuscetível de autorizar sanção, constituindo, portanto, a perda do mandato decretada pela Justiça Eleitoral, nos termos do novo entendimento do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitora, autêntica mutação constitucional, mera consequência do nosso modelo de democracia representativa fortemente marcada pelo monopólio partidário das candidaturas aos cargos eletivos.” CLÈVE. Op. cit., p. 24. Note-se no texto do autor que o mesmo fala na perda do mandato decretada pela Justiça Eleitoral. Estamos diante de ponto crucial do presente trabalho onde encontramos a questão de ser o povo o “outorgante” do mandato, como pode a Justiça Eleitoral revogá-lo? O assunto será melhor abordado nos próximos itens. 8 Quociente partidário (QP) ou quociente eleitoral (QE) equivale ao número de votos válidos do partido ou coligação. BRASIL. Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina. Quociente partidário. Disponível em: <http://www.tre-sc.gov.br/site/eleicoes/eleicoes-proporcionais-criterios/index.html>. Acesso em 22 de fevereiro de 2013.

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Nessa esteira, temos duas perspectivas diferentes: (i) a existência de candidatos menos

votados que dependem exclusivamente da soma de votos do partido para serem eleitos e (ii) a

situação de candidatos com grande volume de votos que não só não dependem dessa soma do

partido, como são eles responsáveis para que o partido tenha direito a um número de vagas

maior na aplicação do quociente partidário. Este é o cerne fundamental da discussão que se

colocou no Tribunal Superior Eleitoral e no Supremo Tribunal Federal durante os julgamentos

das mencionadas demandas. Para uma melhor digressão, é necessário contextualizá-las.

O Partido da Frente Liberal (PFL), representado pelo presidente da sigla, Jorge Bornhausen,

apresentou Consulta (CTA 1398) ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE)10, na qual indagou sobre a

ocupação de vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, na hipótese em que o titular da vaga troca

de partido. O relator da matéria é o ministro Cesar Asfor Rocha. Na prática, a consulta busca

estabelecer a fidelidade partidária no país. Foram seus termos, in verbis:

“Considerando o teor do art. 108 da Lei nº 4.737/65 (Código Eleitoral), que estabelece que a eleição dos candidatos a cargos proporcionais é resultado do quociente eleitoral apurado entre os diversos partidos e coligações envolvidos no certame democrático.

Considerando que é condição constitucional de elegibilidade a filiação partidária, posta para indicar ao eleitor o vínculo político e ideológico dos candidatos.

Considerando ainda que, também o cálculo das médias, é decorrente do resultado dos votos válidos atribuídos aos partidos e coligações.

INDAGA-SE: Os partidos e coligações têm o direito de preservar a

vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda?”11

9 A clareza de raciocínio de Jairo Nicolau se mostra indispensável para a questão: “O sistema em vigor no Brasil oferece duas opções aos eleitores: votar em um nome ou em um partido. As cadeiras obtidas pelos partidos (ou coligações entre partidos) são ocupadas pelos candidatos mais votados de cada lista. É importante sublinhar que as coligações entre os partidos funcionam como uma única lista; ou seja, os mais votados da coligação, independentemente do partido ao qual pertençam, elegem-se. Diferentemente de outros países (Chile, Finlândia e Polônia) onde os eleitores têm que obrigatoriamente votar em um nome da lista para ter o seu voto contado para o partido, no Brasil os eleitores têm a opção de votar em um nome ou em um partido (legenda). O voto de legenda é contado apenas para distribuir as cadeiras entre os partidos, mas não tem nenhum efeito na distribuição das cadeiras entre os candidatos”. NICOLAU, Jairo. O sistema eleitoral de lista aberta no Brasil. In: NICOLAU, Jairo e POWER, Timothy J.. Instituições representativas no Brasil. Balanço e Reforma. Belo Horizonte: Editora UFMG e Rio de Janeiro: IUPERJ, 2005. 10 O artigo 23, inciso XII, do Código Eleitoral, resguarda ao TSE a atribuição de responder a consultas formuladas em tese, por autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político. 11Resolução nº 22.526 do TSE, 2007. Relator: Ministro Cesar Asfor Rocha. p. 2 (relatório).

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Em face às formulações levantadas, foi exarada a Resolução nº 22.256 de 2007,

oportunidade em que se lavrou a seguinte conclusão proferida pelo Ministro Relator:

“(...) respondo afirmativamente à consulta do PFL, concluindo que os Partidos Políticos e as coligações conservam o direito à vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda.”

Com o julgamento da Consulta n.º 1398 pelo Tribunal Superior Eleitoral, onde restou

afirmado que perde o mandato o parlamentar que migrar injustificadamente para outro

partido, o tema da infidelidade partidária voltou a ocupar a pauta do STF, por meio da

propositura dos Mandados de Segurança n.º 22.602, 22.603 e 22.604, todos contra atos do

presidente da Câmara dos Deputados que se negou a declarar vagos os cargos daqueles que

mudaram de partido.

No julgamento das referidas ações constitucionais o STF mudou de posicionamento,

entendendo pela ocorrência de perda do mandato do parlamentar que, de forma injustificada,

abandona o partido pelo qual se elegeu. A infidelidade partidária, enfim, segundo o STF,

constituía-se em hipótese de perda do mandato eletivo. Diz a ementa no julgamento do MS n.º

22.602:

“Mandado de segurança conhecido, ressalvado entendimento

do Relator, no sentido de que as hipóteses de perda de mandato

parlamentar, taxativamente previstas no texto constitucional,

reclamam decisão do Plenário ou da Mesa Diretora, não do Presidente

da Casa, isoladamente e com fundamento em decisão do Tribunal

Superior Eleitoral. 2. A permanência do parlamentar no partido

político pelo qual se elegeu é imprescindível para a manutenção da

representatividade partidária do próprio mandato. Daí a alteração da

jurisprudência do Tribunal, a fim de que a fidelidade do parlamentar

perdure após a posse no cargo eletivo. 3. O instituto da fidelidade

partidária, vinculando o candidato eleito ao partido, passou a vigorar a

partir da resposta do Tribunal Superior Eleitoral à Consulta n. 1.398,

em 27 de março de 2007. 4. O abandono de legenda enseja a extinção

do mandato do parlamentar, ressalvadas situações específicas, tais

como mudanças na ideologia do partido ou perseguições políticas, a

serem definidas e apreciadas caso a caso pelo Tribunal Superior

Eleitoral. 5. Os parlamentares litisconsortes passivos no presente

mandado de segurança mudaram de partido antes da resposta do

Tribunal Superior Eleitoral. Ordem denegada”

[grifos nossos]

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Com base nessa decisão e de outras com caráter similar, o Tribunal Superior Eleitoral

editou a Resolução n.º 22.610/2007, o que fez com que o Supremo Tribunal Federal voltasse a

examinar a matéria, dessa vez com uma amplitude maior, já que o fez em sede de Ação Direta

de Inconstitucionalidade (ADIN), nas ADIN 4086 e 3999.

Na ADIN n.º 4086 proposta pelo Procurador Geral da República, questionou-se a

inconstitucionalidade de vários artigos da Resolução TSE n.º 22.610/2007, dentre eles: o

artigo 2º12, que ao atribuir competência ao Tribunal Superior Eleitoral e aos Tribunais

Regionais Eleitorais, feriria o artigo 121 da CF/8813, uma vez que tal artigo prevê reserva de

Lei Complementar para instituição de competência dos Tribunais, Juízes e Juntas Eleitorais;

suposta usurpação da competência dos poderes executivo e legislativo para legislarem sobre

matéria eleitoral, conforme disposto nos artigos 22, I14, 48 caput15 e 84, IV16 da CF/88, em

virtude do artigo 1º da Resolução dispor de forma inovadora sobre a perda do mandato

eletivo17, bem como infração ao princípio da separação dos poderes, previsto pelos artigos

2º18, 60, § 4º, III19 da CF/88.

Percebe-se que as decisões do STF em sede de Ação Declaratória de

Inconstitucionalidade possuem efeitos especiais, sobretudo por valer para todos os

jurisdicionados, inclusive de observância obrigatória para todo o Poder Judiciário e Poder

Executivo. E foi com esse poder de decisão que a Corte Suprema entendeu ser a Resolução n.º

22.610/2007 do TSE plenamente compatível com a CF/88, ou seja, declarou (por via da

12“Art. 2º - O Tribunal Superior Eleitoral é competente para processar e julgar pedido relativo a mandato federal; nos demais casos, é competente o tribunal eleitoral do respectivo estado.” 13 “Art. 121. Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais.” 14 “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;” 15 Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: 16 “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...)IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; 17 Art. 1º - O partido político interessado pode pedir, perante a Justiça Eleitoral, a decretação da perda de cargo eletivo em decorrência de desfiliação partidária sem justa causa. § 1º - Considera-se justa causa: I) incorporação ou fusão do partido; II) criação de novo partido; III) mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário; IV) grave discriminação pessoal. § 2º - Quando o partido político não formular o pedido dentro de 30 (trinta) dias da desfiliação, pode fazê-lo, em nome próprio, nos 30 (trinta) subseqüentes, quem tenha interesse jurídico ou o Ministério Público eleitoral. § 3º - O mandatário que se desfiliou ou pretenda desfiliar-se pode pedir a declaração da existência de justa causa, fazendo citar o partido, na forma desta Resolução. 18Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. 19 “Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (...)§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...)III - a separação dos Poderes”.

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improcedência da ADIN) que a citada resolução é constitucional, e, nessa qualidade, com

validade e eficácia assegurada no ordenamento jurídico20.

Debruçando-se tanto sobre a Resolução do TSE, quanto aos argumentos engendrados

nos writs impetrados, é oportuno destacar as principais teses e os destacados argumentos que

sustentaram as posições dos Tribunais, assim como as alegações das partes e Ministros

vencidos e da jurisprudência contornada.

2.1. A tese vencedora que conferiu os mandatos parlamentares aos partidos políticos

A tese vencedora em ambos os Tribunais trouxe diversos argumentos legais,

constitucionais e principiológicos. Utilizou-se ainda de técnicas interpretativas para chegar à

conclusão, hasteando a vontade do Constituinte, a função da norma e a consagração

axiológica da figura dos partidos na Constituição Federal de 1988. Todos esses métodos são

de extrema importância na interpretação jurídica, mas é importante ressaltar que não são

absolutos e objetivos. Em outras palavras trata-se de mera perspectiva do intérprete, vez que

ao alterar o referencial, o mesmo método pode justificar conclusões diferentes21.

O argumento mais enaltecido nas considerações feitas pelos Ministros foi o suposto

tratamento especial conferido aos partidos políticos pela Constituição Republicana.

Interpretou-se a condição da filiação partidária para elegibilidade, prevista no § 3º, V do art.

14 da Carta Magna22, como máxima de que o partido político é o elemento essencial da

candidatura e não o candidato em si. A disposição constitucional estaria consagrando a

chamada “democracia representativa partidária”23, onde o partido é o elo entre candidato e

eleitor, relação que não subsiste sem o mesmo.

O Ministro Cezar Peluso, durante seu voto no julgamento do TSE, chegou a

demonstrar a relação da seguinte maneira24:

ELEITOR ------------ PARTIDO ------------ CANDIDATO

20 Ressalta-se que não temos interesse em falar dos efeitos ex nunc atribuídos a Resolução do TSE, já que o objeto do presente trabalho limita-se à verificação do entendimento de que o mandato pertence ao partido e não ao candidato. 21 Campo da filosofia e hermenêutica jurídica que certamente não é objeto deste trabalho. Mas, dada a colocação de certas proposições nos votos dos Ministros, é importante demonstrar essa possibilidade de duplicidade de entendimento que corroborará a conclusão final. 22 “Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: (...)§ 3º - São condições de elegibilidade, na forma da lei: (...)V - a filiação partidária;” 23 Trata-se de expressão conhecida no meio das ciências sociais e políticas que refere-se às democracias onde os partidos políticos exercem papel de protagonista, quase como um monopólio dos mesmos. 24 Resolução nº 22.526 do TSE, 2007. Relator: Ministro Cesar Asfor Rocha. p. 31.

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Esta demonstração permaneceria antes e depois da eleição, consagrando o

entendimento de que o eleitor só poderia votar no candidato, caso este possua um partido.

Logo, não poderia o candidato ser responsável pela quebra de um desses elos

(candidato/partido), mantendo-se o mandato que só lhe foi conferido por meio de votos

angariados pelo partido.

Nesta linha de raciocínio, os acórdãos utilizam-se do § 1º do art. 17 da Constituição25,

no qual está expressa a possibilidade de os partidos políticos estabelecerem “normas de

disciplina e fidelidade partidária”. O raciocínio segue uma lógica consistente, afinal, se o

texto máximo da República previu que os partidos políticos tinham o poder de,

internamente26, disciplinar a fidelidade partidária, atribuiu-se importância supralegal a este

instituto jurídico. Logo, estamos diante de mais uma indicação no diploma constitucional de

que a fidelidade partidária é elemento fundamental do cenário político brasileiro, devendo ser

preservada à luz da Constituição.

Na mesma esteira interpretativa, colocaram-se os Eminentes Julgadores diante do

artigo 45 da Constituição Federal27 combinado com o artigo 108 do Código Eleitoral28. O

primeiro dispõe sobre o sistema eleitoral brasileiro, configurando-se através da representação

proporcional. O segundo está diante do estabelecimento do quociente partidário que

determinará a eleição de um candidato a Deputado Federal. A leitura destes dois dispositivos,

interpretados de forma sistemática, possibilita concluir que sopesou-se apenas um dos

aspectos do RPLA vigente no Brasil, o de que alguns (maioria) candidatos somente se elegem

em função do quociente eleitoral atingido pelo partido29. Não foi esquecimento a parcela que,

teoricamente, não dependeria do quociente eleitoral para ser eleito, mas entendeu-se que o

25 “Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos: (...)§ 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.” 26 Importante referenciar mais uma vez que, em que pese as interpretações dos Illmo Ministros, estamos diante de diferente tipo de fidelidade partidária, conforme já demonstrado pelo texto de Clèmerson Cléve transcrito acima. Essa diferenciação foi inclusive mencionada pelo Ministro Cezar Peluso durante seu voto. Não nos parece que se possa usar facetas diversas de um mesmo instituto jurídico como se fossem a mesma. 27 “Art. 45. A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal. 28 “Art. 108 - Estarão eleitos tantos candidatos registrados por um Partido ou coligação quantos o respectivo quociente partidário indicar, na ordem da votação nominal que cada um tenha recebido.” 29 Ilustra bem o comentário tecido pelo Ministro Relator Cesar Asfor Rocha: “Antes de dar por concluído este voto, quero registrar que mandei fazer um levantamento de todos os deputados eleitos nas eleições de 2006 e pude verificar que, dos quinhentos e treze deputados federais eleitos, somente trinta e um (cerca de 6,04%) obtiveram votos próprios para atingir o quociente eleitoral, sem que houvesse necessidade de receber votos conferidos à sua legenda atribuídos a outros candidatos do seu próprio partido ou de sua própria coligação”.

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sistema eleitoral consagra um procedimento de atribuição dos cargos eletivos de deputados

federais que impossibilita o enfraquecimento dessa instituição que é o partido político.30

Seria, na visão dos Tribunais, uma ofensa ao ordenamento jurídico e aos eleitores o candidato

que mudasse de partido após eleito, já que teve proveito do quociente partidário e do sistema

eleitoral para garantir seu cargo político.

Outro argumento aduzido nos votos seria a ponderação de que a Constituição Federal

secundariza essa participação direta do eleitor para colocar os partidos como verdadeiros

protagonistas do cenário político, sendo este o verdadeiro representante do povo nas Casas

Republicanas. Em tese, o candidato não existiria fora do partido político, sendo este a face de

sua identidade política, consagrando-se a ideologia na qual se fixou ao se eleger. Forma-se

então, para além de uma relação de dependência entre eleito e partido, uma relação de

simbiose e mútuo controle, que seria capaz de evitar uma “promiscuidade ideológica” capaz

de macular o vínculo entre eleitor e eleito.

Baseados em todas as premissas argumentativas dispostas e em outras mais que não

cabe desmembrar neste trabalho, o TSE e o STF consagraram a hipótese de perda de mandato

de candidato que, uma vez eleito, decida por trocar de legenda sem justa causa. Desta forma,

venceu a tese de que o mandato pertence ao partido, uma vez que a violação de todos os

valores e dispositivos constitucionais e legais mencionados acima seria a verdadeira quebra

do pacto eleitor – partido – candidato.

2.2. As teses vencidas e o precedente contornado

Inaugurando essa breve menção às opiniões adversas ao decisum explicado acima31, há

quem divirja por completo do entendimento consagrado pelos Tribunais Superiores.

Este excerto demonstra claramente a posição daqueles que não aceitam a recente

decisão dos tribunais por entendê-la como verdadeira normatização de punição que a

Constituição não previu. Por mais que se sustente que o mandato pertence ao partido, não há

como não se verificar sanção ao deputado que muda de legenda, afinal como encarar de outra

forma?

O dissenso entre o recente entendimento e o anterior posicionamento do Supremo

Tribunal Federal pode ser demonstrado no voto do Ministro Moreira Alves, citado no próprio

julgamento do MS 26.602/DF, voto proferido em precedente de 1989. O Ministro apresentou

30 Resolução nº 22.526 do TSE, 2007. Relator: Ministro Cesar Asfor Rocha. p. 3. 31 Como mencionado acima o objeto do artigo não é verificar a correção da decisão do STF, o que nos levará apenas a breve menção as teses dissenssoras, já que o ponto crucial do estudo será tratado em item posterior.

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a importância dos partidos políticos dada pela Carta Magna, porém explicou, claramente, que

a Constituição não desejou prever hipótese de perda de mandato por troca de legenda, o que

constaria no art. 5532, caso fosse de desejo33, Foi em virtude desse entendimento do STF que

se considerou a sua nova posição como mutação constitucional. Coloca-se em questão a

interpretação da Constituição, quando em ausência de disposição expressa, os precedentes

anteriores determinaram pela não perda do mandato parlamentar. O que agora se revela

conflitante, quando a nova proposição é de que, apesar de não haver previsão da hipótese,

depreende-se da Constituição que o parlamentar não pode manter o mandato por partido que

não se elegeu.

Em alegações, as partes trouxeram alguns argumentos interessantes, dentre eles o de

que o vínculo político é autônomo, ou seja, que o vínculo entre candidato eleito e instituição,

uma vez estabelecido, não é intermediado pelo partido, ao menos não em sua natureza

jurídica. De mesma forma, alegaram os deputados que tinham, à época, seu mandato

ameaçado, que não dependeram dos quocientes eleitorais para obter suas cadeiras, assim, não

deveriam carregar o fardo de permanecerem vinculados a seus partidos. Sustentou-se ainda

que, diante da possibilidade de voto na legenda e no candidato, a maioria dos eleitores escolhe

o candidato e não no partido34.

Dos três argumentos mencionados, os dois últimos merecem destaque, sendo que o

último será tema específico do próximo item. Importante se mostra a alegação de que alguns

Deputados não necessitam dos quocientes eleitorais para serem eleitos, porque foi a mesma

questão nodal que serviu a ambos os acórdãos. Curioso notar que, no voto do relator do

julgamento no TSE, foram apontados dados estatísticos para demonstrar que a maioria dos

deputados necessita do quociente eleitoral para serem eleitos. A questão que aqui causa

inquietude poderia ser formulada da seguinte forma: como podem os Plenários de ambos os

Tribunais basearem suas decisões em um dado que corresponde apenas, queremos ressaltar,

apenas à maioria? Como podem os Deputados que, em tese, não dependeram dos partidos

para se eleger, estarem também impedidos de trocar de partido durante o mandato? Deve-se

lembrar ainda, que para ser eleito sem depender do quociente partidário, os referidos

candidatos estão entre os mais votados do País. Estas problemáticas por si só seriam

facilmente respondidas pelos defensores da tese vencedora, entretanto o que se pretende aqui,

32“Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:(...)” 33MS 26.602/DF. Relator: Ministro Eros Graus, 2007. p. 44. 34“Alega que no Brasil pode-se votar tanto na legenda do partido como no candidato, individualmente, sendo essa última modalidade de votação a que prevalece entre os eleitores.” MS 26.602/DF. Relator: Ministro Eros Graus, 2007. p. 10.

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como já anteriormente indicado, não é a improcedência dos argumentos que prevaleceram,

mas que, conjugado com a alegação de que o eleitor, em sua maioria ou no que pese os

candidatos mais votados, vota pensando no candidato e não no partido (se pretende

demonstrar no próximo item), essas problemáticas revelam que a decisão não corresponde à

verdadeira vontade do povo.

Apenas para concluir os posicionamentos divergentes em relação à decisão do STF,

com o fim de demonstrar que o Pretório Excelso poderia ter decidido de forma diversa, surge

o posicionamento doutrinário que diverge por completo dos excessivamente mencionados

acórdãos. Considerando toda importância dada aos partidos políticos, ainda assim essa

corrente propugna pela autonomia e liberdade do parlamentar, afirmando que o mandato seria

do mesmo em função do partido. A contrario sensu do entendimento jurisprudencial que

coloca o mandato como do partido, exercido pelo Deputado.35

3. VOTO NOMINAL VERSUS VOTO PARTIDÁRIO

A conclusão a que se pretende chegar nesta seção será demonstrar que o eleitor não

equaciona somente a ideologia partidária ao decidir seu voto. O fator nominal36, isto é, a

pessoa do candidato, é elemento que sobressai no momento dessa escolha.

Não é demais enfatizar que há existência de significativa parcela da população que

não considera a conjuntura ideológica. Hodiernamente, pode-se verificar que os Deputados

Federais mais votados nos Estados são, normalmente, exemplos dessa escolha.

Ab initio, veja-se os resultados das últimas eleições de São Paulo para Deputado

Federal, considerados os candidatos com grande número de votos37:

Eleição Candidato (Partido) Número de Votos

2002 Enéas Ferreira Carneiro (PRONA – sem coligação) 1.573.642

2006 Clodovil (PTC) 493.951

2010 Tiririca (PR) 1.353.820

Os candidatos listados foram os mais votados do Estado e do País38 no respectivo

período eleitoral. Dos três candidatos listados, pode-se extrair uma característica comum aos

35 CLÈVE. Op. cit., p. 31. 36 O fator nominal nada mais é do que a importância do nome, do pessoal, do individual, isto é, das características que tornam o candidato singular em relação aos outros e ao partido. 37Tabela preparada pelos autores. Dados disponibilizados no sítio eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral, em “estatística das eleições”.

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dois últimos: Clodovil e Tiririca encontram-se projetados em uma nova tendência partidária e

eleitoral, de eleição de figuras públicas com grande exposição na mídia, forte apelo popular e

que não demonstravam, até o momento, nenhuma aptidão política. Diametralmente oposta é a

situação em que se encontrava o candidato Enéas Ferreira, vez que possuía história política

conquistada paulatinamente no cenário nacional, muito antes do sobredito período eleitoral.

Diante de tais premissas, podem-se analisar dois elementos indispensáveis para caracterizar o

recrudescimento do voto personalizado: (i) as crises de representatividade do Poder

Legislativo, haja vista os escândalos de corrupção rompantes nas décadas anteriores e; (ii) a

frágil mobilização ideológica partidária.

Como já diversas vezes ressaltado, a lista aberta oferece um maior grau de liberdade

ao eleitor. No final do processo eleitoral, o parlamentar, representante eleito para ser

responsável pelas decisões legislativas, será uma escolha feita por meio do voto

personalizado. Nesta esteira, tradicionalmente se vislumbra o cenário brasileiro como avesso a

partidos. A conexão eleitoral, desta forma, seria amplamente personalista, pois os eleitores

estariam notadamente identificados com candidatos39.

Ademais, não obstante esta enraizada personalização eleitoral, também não se pode

afastar que no período democrático o país viveu situações de intenso descontentamento do

eleitorado em face de escândalos políticos – tais como casos de corrupção. Desta forma, o

voto preferencial funciona como “válvula de escape que trabalha a favor da legitimidade do

sistema político e é inexistente no sistema de lista fechada. Na lista aberta, os eleitores tem a

chance de punir o mau parlamentar. Na lista fechada, essa é uma prerrogativa exclusiva do

partido”40.

Apontadas tais premissas, pode-se verificar que o quadro acima traz a indicação de

Deputados Federais de grande apelo midiático, com vida anterior de presença em programas

de televisão, carreira artística e identificação com público. É importante destacar que nenhum

dos dois candidatos apresentados tinha história de liderança política, nem relação clara com

qualquer partido. Clodovil se candidatou pelo Partido Trabalhista Cristão – PTC (antigo

Partido da Juventude que elegeu o Presidente Fernando Collor, posteriormente, denominado

Partido da Reconstrução Nacional, antes se firmar com a sigla atual). Tratamos de um partido

que teve o nome alterado por três vezes. Apesar do sucesso nas eleições presidenciais do

38 O candidato Clodovil, em 2006, ficou atrás dos Deputados Paulo Maluf e Celso Russomanno, mas como evidenciava mais claramente nossa tese, trouxemos seus dados para o artigo. 39 V., por todos, MAINWARING, Scott. Políticos, partidos e sistemas eleitorais – o Brasil numa perspectiva comparada. Novos Estudos Cebrap, n.29, 1991. 40 Cf. explica KLEIN, Cristian. Op. cit., p.53.

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início dos anos 90, não se pode atribuir ao partido grande conhecimento ou identificação da

massa popular. Junto a esse fato, o partido já demonstrou afeição por candidatos sem carreira

política, vez que, além de Clodovil já foi candidato pelo PTC José Mojica Marins, o famoso

“Zé do Caixão”.

Não se pode – nem pretende a análise em tela - questionar a utilização de candidatos

sem carreira política anterior. O que se pretende demonstrar é que a pequena projeção do

partido e o sucesso de votação do então Deputado Clodovil são indicadores claros de que a

eleição do terceiro Deputado Federal mais votado de São Paulo não se atribuiu ao projeto

político do partido. Fosse isso, os então eleitores de Clodovil iriam dirigir novamente grandes

votos ao PTC, possibilitando o aumento de sua bancada na Câmara dos Deputados, o que não

ocorreu.

Pode-se vislumbrar idêntica situação quanto à eleição do Deputado Federal Francisco

Everaldo Oliveira Silva. Este nome pouco conhecido, na verdade, carrega um significante sem

valor se comparado ao seu nome artístico: Tiririca. Eleito Deputado Federal mais votado no

Estado de São Paulo nas eleições de 2010, segundo deputado mais votado da história do país.

Qual a ideologia política de partido apresentada pelo candidato durante as eleições?

Sua plataforma política era a ética, honestidade e a aproximação da política que acontece em

Brasília com a base eleitoral que pretendia atingir. A campanha pautou-se na ironia para

questionar a política brasileira41, inteligência publicitária (e/ou política) que lhe rendeu

representação junto ao Ministério Público por afronta ao Congresso Nacional, sem quaisquer

desdobramentos posteriores.

Neste caso, poder-se-ia atribuir a campanha publicitária do candidato a uma ideologia

partidária? Obviamente a resposta é negativa. Provavelmente, muitos eleitores sequer sabiam

que estavam votando em um candidato do Partido da República.

Desta forma, torna-se fato notório que as candidaturas de Clodovil e Tiririca não

encontraram respaldo na apresentação de um partido político, mas sim, predominantemente,

no voto nominal, isto é, aquele dirigido única e exclusivamente ao candidato, não ao partido.

Não obstante, tais candidaturas funcionam como verdadeiros dínamos propulsores dos

partidos, haja vista que essas votações contribuem em larga escala para o aumento do

quociente partidário e, consequentemente, da bancada na Câmara dos Deputados.

De outro giro, vislumbra-se exemplo de personalismo: a eleição do Deputado Federal

Enéas. O famoso político iniciou sua carreira nas primeiras eleições presidenciais diretas após

41O candidato utilizou bordões do tipo: “O que faz um deputado federal? Na realidade, eu não sei. Mas vote em mim que eu te conto” e “ Vote Tiririca, pior que tá não fica”.

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fundar o Partido de Reedificação da Ordem Nacional – PRONA, onde obteve uma

surpreendente votação, considerando seu tempo de exposição no horário eleitoral. Após

seguidos insucessos em eleições presidenciais, Enéas decidiu candidatar-se a Deputado

Federal.

O PRONA elegeu junto com Enéas mais cinco Deputados Federais que atingiram

votações inferiores aos mil votos, dentro do colégio eleitoral de São Paulo esses números

sequer podem ser expressos em porcentagem considerável. Portanto, não estamos diante de

um partido que encontrava apreço ou identificação popular, mas somente de um nome que

alavancou a representação partidária na Câmara dos Deputados.

Fica claro nas situações apresentadas acima que o sucesso dos três candidatos não se

deveu à confiança sobre um projeto de partido como instituição representativa indispensável

ao sistema eleitoral. Ao inverso, o que se demonstrou foi a força de grandes nomes de

visibilidade nacional, seja através de sua carreia artística, jornalística ou política, nomes que

representaram a vontade do povo brasileiro que o elegeu, representação que certamente não

encontrava tamanho respaldo se colocada em função do partido político. Considerando o

colégio eleitoral de São Paulo, tão representativo no cenário brasileiro, estamos diante de forte

indicador da hipótese apresentada, de que o eleitor brasileiro não vota, em sua maioria,

pensando no partido, mas sim no candidato.

Não fosse o demonstrado acima, é ainda de se mencionar que alguns estudos

demonstraram a recrudescente necessidade de um candidato se individualizar de seus

companheiros de partido e a grande autonomia conferida aos candidatos a deputado federal

em suas campanhas são pontos determinantes para uma votação centrada no candidato e não

no partido42. Importantíssimo ainda mencionar que, em dados apresentados pelo TSE, foi

possível identificar clara queda nos votos nas legendas43.

Para que fique ainda mais clara a questão, é interessante apresentar os dados da

pesquisa IUPERJ-2002, que em coleta de opinião procedeu à seguinte pergunta: “na escolha

para deputado Federal, o que foi mais importante, o candidato ou o partido ao qual ele

pertence?” O resultado aponta que noventa e dois por cento (92%) dos eleitores responderam

que o candidato havia sido mais importante, enquanto quatro por cento (4%) disseram que a

42 NICOLAU, Jairo. O sistema eleitoral de lista aberta no Brasil. In: NICOLAU, Jairo e POWER, Timothy J.. Instituições representativas no Brasil. Balanço e Reforma. Belo Horizonte: Editora UFMG e Rio de Janeiro: IUPERJ, 2005, p. 105. 43 Temos no Brasil um chamado sistema misto, onde o eleitor pode votar no candidato ou na legenda do partido. O percentual de votos nas legendas é menor hoje, apesar das variações, se comparado aos anos anteriores, o que é fator crucial nessa verificação da personalização do voto do eleitor e falha na credibilidade dos partidos.

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escolha se pautava no partido e, por fim, a mesma porcentagem atribuiu a decisão aos dois

fatores44.

Não resta dúvida que se apresentou aqui o desejado, o eleitor em cenário pátrio vota

pensando principalmente nas características pessoais do candidato e não no partido ou na

ideologia partidária. Todos os fatores acima respaldam essa posição e consagram a hipótese

ventilada de que a identificação se dá entre eleitor-candidato, logo o requisito de filiação

partidária, em tese, poderia ser reconsiderado e interpretado como elemento meramente

formal e procedimental para a eleição de diversos candidatos (como, de fato, aconteceu em

alguns momentos). A realidade eleitoral brasileira, em panorama geral, não consagra os

partidos políticos como fortes instituições ideológicas e de reconhecimento popular a influir

determinantemente nas decisões de voto da população.

4. O DESCOMPASSO ENTRE A DECISÃO DO STF E A A REALIDADE DAS

URNAS

Em face das conclusões anteriormente traçadas, pode-se ressaltar uma premissa que

recrudesce ao longo da análise empreendida: o posicionamento do STF, in casu, aparenta não

estar em perfeito encaixe com as engrenagens fáticas sociais. Em outras palavras, não

obstante a justaposição normativa se fazer presente em todo o arcabouço argumentativo

traçado para sustentar o pertencimento do mandato ao partido e não ao agente político, as

ferramentas interpretativas utilizadas parecem não considerar como o eleitor percebe

individualmente o candidato e, por diversas vezes, não atrela seu voto a qualquer ideologia

partidária. Tal constatação aponta para diversas consequências delicadas, notadamente quanto

ao distanciamento da Corte Constitucional para como parcela significativa da sociedade

concebe o voto personificado. Há, aparentemente, ausência de compreensão institucional

quanto ao fenômeno que, de tão nítido, pode beirar o senso comum.

Somente a titulo de esclarecimento, deve ficar consignado que, hodiernamente, a

construção de democracias constitucionais estão articuladas sob dois eixos: (i) autogoverno do

povo e (ii) direitos fundamentais. É nítido o recrudescimento popular na esfera pública,

moldando-se como legitimador dos atos/omissões praticados pelo Poder Público, bem como

igualmente límpido a necessidade de manutenção de um governo que proteja minorias.

44 NICOLAU, Jairo. Op. cit., p. 110.

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O crescimento do judicial review nas democracias constitucionais suscitou a

inquietude em alguns teóricos que, angustiados com os rumos da atuação judicial, propuseram

paradigmas criativos em contraposição ao judicial review sem que se determinasse o status de

supremacia judicial. Dentre eles, surge o Constitucionalismo Popular45.

Tendo em Larry Kramer um dos seus teóricos expoentes, sua premissa centra-se no

que denomina de “constitucionalismo popular”46, onde o povo é quem deveria ser o intérprete

final do texto constitucional, e não a Corte Constitucional. Para instrumentalizar sua

participação, são várias as formas de manifestação da vontade popular, notadamente o direito

de petição, o voto direto e as mobilizações populares. 47

Em breve contextualização, esta proposta esteve bastante difundida entre os séculos

XVIII e XIX. À época, o direito constitucional estava intrinsecamente atado a questões

políticas. A instância jurisdicional não parecia adequada para apreciar aquela espécie de

direito tão relacionada à atividade política, já que seus integrantes não eram eleitos e,

portanto, não poderiam ser responsabilizados pelos seus atos. Em principio, as questões

políticas seriam decididas pelos representantes do poço e, em úlçtima instancia, pelo próprio

povo diretamente, ao eleger ou não aqueles representantes que defendessem as posições de

sua preferência.

Em síntese, o constitucionalismo popular e o judicial review são colocados sob a

perspectiva da soberania popular, utilizando-se o teórico dos debates e embates entre

federalistas e republicanos para justificar e consolidar a revisão judicial tal como por ele

idealizada48.

O conflito político entre Federalistas49 e Republicanos se torna problema crônico no

cenário político norte-americano. É nesse contexto de tensão que se dão as discussões acerca

45 Dada a extensão do tema e as diversas nuances das teorias trabalhadas, é interessante ler as sintéticas e densas considerações feitas em BOLONHA, Carlos; EISENBERG, José; RANGEL, Henrique. Problemas institucionais no constitucionalismo contemporâneo. Direitos Fundamentais & Justiça, ano 5, n.17, 2011. 46 "O ponto em que o constitucionalismo popular difere do entendimento atual está em segundo plano. Ele não presume que a interpretação jurídica autorizada possa acontecer apenas nos tribunais, mas, antes, pressupõe que um processo de interpretação igualmente válido possa ser empreendido nos poderes políticos e pela comunidade geral. (...). " KRAMER, Larry. Democracia deliberativa e constitucionalismo popular: James Madison e o 'interesse do homem". Limites do controle de constitucionalidade. BIGONHA, Antonio Carlos; MOREIRA, Luiz (org.). Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2009, p.89. 47 V. KRAMER, Larry. Foreword: We The Court. Harvard Law Review, v. 115, n.1, 2001. 48 A digressão ora trabalhada debruça-se principalmente nos capítulos 4 e 5, p. 93 – 143, da obra de de KRAMER, op. cit.,. Como o que se pretende nessa seção é reproduzir a tese apresentada nesses dois capítulos do livro, nos reservamos o direito de não introduzir as referências a cada página... 49 Os Framers ficaram assim designados após sua contribuição ao debate que antecedeu a promulgação da Constituição dos Estados Unidos e, posteriormente publicados sob o título: HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. The federalist papers. Electronic Classics Series Publication: Pennsylvania State University, 2001. Em contraponto, no entanto, os antifederalistas criticavam principalmente o sistema de checks and balances, aludindo-se naturais entraves causados pelas próprias desavenças políticas da Democracia.

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das instituições do Estado e dos papéis a que se caberiam aos Poderes, aos partidos e ao povo.

O que importa principalmente são as discussões que se detiveram acerca do controle judicial

sobre atos de outros Poderes, vamos além da perspectiva de Marbury vs Madison, tida

erroneamente como marco inicial do judicial review50.

Após a perda do poder dos Federalistas para os Republicanos e uma série de

estratégias utilizadas pelos perdedores para se manterem no jogo de governabilidade através

dos órgãos Judiciários, surge a discussão sobre a independência dos Poderes e sobre a

soberania/supremacia do Judiciário. As Cortes justificavam a necessidade de controle de leis e

atos inconstitucionais por serem elas representantes do povo, guardiãs da Constituição e que

por isso deveriam se negar a aplicar normas contrárias a mesma, porque qualquer cidadão

deveria agir deste modo, sendo o principal mecanismo para manter a vontade do povo

manifesta no texto magno.

De um lado temos os Federalistas, preocupados e amedrontados com as participações

populares no Estado, fortalecendo a ideia de um governo forte, que não se confunde com o

povo. Pensamento que coloca a soberania popular como elemento criador do Estado, ao passo

que, uma vez escolhidos os representantes para governar, na forma estabelecida pela

Constituição, não seria mais o povo chamado a resolver qualquer problema de competência

governamental. Seria uma democracia “tradicional” de escolha, onde a soberania popular

estaria alienada aos seus representantes após a nomeação dos mesmos, dessa forma a

soberania não é perpetuamente popular, mas do povo deriva. A posição federalista acerca do

controle judicial se coloca nesse sentido, baseada na necessidade de decisões

intragovernamentais, caberia ao poder judiciário controlar os atos parlamentares que

violassem a Constituição, porque este seria a instituição com a devida imparcialidade e

formação para tanto. A tese aqui vai além de um simples controle: consiste, em verdade, na

grande jogada da supremacia do Judiciário em relação aos outros Poderes, vez que ele teria

prerrogativa inclusive para declarar inconstitucionais leis promulgadas pelo Parlamento51. O

Poder Judiciário finalmente foi consagrado como instituição máxima de proteção da

Neste sentido, “Entretanto, convém notar que, apesar da habitualidade com que são confundidas, não existe identidade entre a proposta de adotar um sistema de ‘freios e contrapesos’ e um sistema de (simples) divisão de poderes. Mais ainda, nos anos de debate constitucional, nos Estados Unidos, federalistas e antifederalistas se distinguiram entre si fundamentalmente pela posição que adotaram frente a tais questões”. GARGARELLA, Roberto. “Em nome da Constituição: o legado Federalista dois séculos depois”. Filosofia Política Moderna: de Hobbes a Marx Boron. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006, p. 176. 50 De acordo com o autor, não se pode utilizar o caso supracitado como defesa para a supremacia judicial, vez que o objetivo do judicial review, à época, era outro. Para uma melhor aprofundamento quanto ao ponto, v. SNOWISS, Sylvia. The Marbury of 1803 and the Modern Marbury. 51 Para além de um projeto de Estado, as posições federalistas nesse sentido relacionam-se intimamente com seu interesse em manter o poder após derrota nas eleições pelo país.

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Federação, isto porque seria ele o único capaz de guardar a Constituição dos ataques do

parlamento e do próprio povo. Este que poderia, segundo os Federalistas, ser considerado seu

maior inimigo nessa questão.52

Instaurou-se então à discordância republicana. Questionou-se primeiramente a

inexistência de um princípio que concedesse ao Judiciário esse poder de revisão que estava

sendo deferido. À resposta federalista de que a indecisão de umiapoder para dar a palavra

final seria o estabelecimento de uma indecisão perpétua em caso de conflitos, os republicanos

diziam que a interpretação final reside no povo53. A seu turno, Jefferson e Madison defendem

que não há melhor segurança de controle do que aquela colocado nas mãos do povo, para o

arrepio dos Federalistas. Com ações públicas (leia-se ações deflagradas pelo Governo) e

determinadas de cada órgão governamental, configuraram-se vários sentinelas nas figuras dos

cidadãos. Afinal de contas todos estão subordinados a vontade da comunidade. A

argumentação trazida alude inclusive à possibilidade de o Judiciário cometer violações em

nome da constituição, contra ela mesma54. Desta feita, não estaríamos nunca seguros, se não

nas mãos do povo. Aqui reiteram o principal ponto: people can take care of themselves – o

povo é capaz de tomar conta de si mesmo (tradução nossa).

Em que pesem as extremidades defendidas, os Republicanos não desejavam expurgar

o controle judicial ou ainda questionar as qualidades e qualificações do Judiciário para tomar

decisões relativas ao direito. O que se colocava em questão era o exacerbado enaltecimento de

um dos Poderes do Estado, a colocação do Poder Judiciário como supremo, posição de

superioridade essa não aceita pelos Republicanos, pois se entendia que a verdadeira

supremacia só poderia revelar-se no povo e em ninguém mais.

Dito isto, pode-se afirmar que há uma relação íntima entre os impasses destacados no

cenário norte-americano e a problemática trazida por meio das decisões do STF e do TSE

sobre fidelidade partidária. A revisão e o controle judicial são questões consagradas no direito

sobre diversos aspectos, entretanto não se pode esquecer os ensinamentos trazidos pelos

republicanos com tanta assertividade: por mais que seja necessário um Poder capaz de

resolver os conflitos emergentes entre os próprios Poderes do Estado, não deveria a Corte

Constitucional arrogar-se nessa qualidade para interpretar a Constituição em manifesta

contraposição à vontade manifesta do povo.

52 KRAMER. Op. cit., p. 132. 53 Apenas é importante destacar essa colocação como proposição chave: em caso de indecisão, a interpretação final da constituição fica com o povo. 54 Destaca-se aqui também algo que se adequa perfeitamente a nossa proposição de relação entre as discussões relatadas e ao nosso caso.

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Baseados em métodos interpretativos , o TSE e o STF alteraram o entendimento

jurisprudencial para dizer que o mandato do parlamentar eleito no regime proporcional não

pertence ao candidato, mas ao partido. Há, a nosso sentir, manifesta contradição: demonstrou-

se até o presente momento que, na realidade, o povo concede o mandato para o candidato e

não para o partido. A contrario sensu, como pode a Corte Constitucional, que deveria agir em

nome do povo, proferir decisão que contraria diretamente sua vontade?

Não se pode negar que a tese vencedora no STF é inteiramente aceitável do ponto de

vista argumentativo, mas não há na Constituição disposição expressa que determine a perda

do mandato parlamentar em caso de mudança de legenda, tendo a decisão se baseado em

métodos de interpretação da Constituição55, como diversas vezes mencionado nos votos dos

Ministros. E é nessa esteira que se defende a inadequação do novo entendimento

jurisprudencial, totalmente afastada daa verdadeira vontade do eleitor. Cabe aqui ponderar o

esquema apresentado pelo Ministro Cezar Peluso onde coloca a relação eleitoral como eleitor

– partido – candidato. Entendemos que a Constituição, ao admitir um sistema misto de

eleição56, estabeleceu uma relação triangular e não em linha. E os elos desse triângulo podem

se verificar mais fortes e mais fracos entre si. Todo o exposto acima nos leva a visualizar um

elo mais forte entre eleitor e candidato do que entre eleitor e partido. Portanto, os três fatores

são imprescindíveis (o eleitor, o candidato e o partido político), mas o vínculo entre eleitor e

candidato se mostrou mais representativo. Por vezes então será inclusive baseado na

confiança do eleitor que o eleito deverá mudar de partido, para não macular esse pacto com o

mesmo, ao contrário do que determinaram os Ministros.

A situação de inadequação do controle judicial é tamanha que é possível remontar ao

defendido pelos Republicanos a mais de um século atrás. Não há controle mais seguro do que

aquele que reside com o povo.

Para que fique claro, o posicionamento aqui defendido não é a necessidade de consulta

ou verificação popular a cada decisão da Corte Constitucional57. No entanto, não se pode

negar a existência de questões de cunho eminentemente político e que podem ser defendidas

nas lacunas normativas posição justaposta à realidade social subjacente. Se a vontade popular

55 Resolução nº 22.526 do TSE, 2007. Relator: Ministro Cesar Asfor Rocha. p. 7. 56 Possibilidade de voto no candidato ou na legenda nas eleições proporcionais para Deputados Federais. 57 "Ademais, sem responsividade popular o Judiciário representa o povo apenas de forma paternalística, pois se o agente protege os interesses do titular segundo o seu julgamento (e não o do titular), atua como espécie de superego de uma sociedade que se infantiliza pela incapacidade de tomar decisões que afetam a sua vida." BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição? Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2012, p.216. Para maior aprofundamento, v. MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade – o papel da atividade jurisprudencial na ‘sociedade-órfã’. Novos Estudos Cebrap, n. 58, p. 183-202.

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determina a eleição de determinado agente para o cargo de Deputado Federal, confiando em

suas características pessoais, não parece certo uma decisão judicial ter a prerrogativa de

constranger esse exercício.Configura-se aqui verdadeira usurpação da soberania popular.

Para ilustrar as assertivas acima traçadas, é pertinente trazer quadro estatístico sobre a

migração partidária e accountability eleitoral58. O quadro está baseado nos dados processados

pelo TSE em relação a levantamento realizado com dados obtidos na Câmara dos Deputados,

tangenciando estatísticas de reeleição de políticos que migraram de partido durante o mandato

em comparação com os que se mantiveram fiéis.

1987-1990 1991-1994 1995-1998 1999-2002 2002-2006

Fidelidade 35,9 45,2 54,5 54,8 72,5

Migração 27,5 38,2 44,7 45,2 53,3

Reeleição por grupo de deputados (%)

O autor utiliza o quadro para afirmar sua tese de que os eleitores estão preocupados

com a fidelidade partidária e que não votam somente pelo candidato, mas o partido tem

extrema importância nessa escolha.59 Não temos dúvida que tais conclusões refletem alguma

parcela da população, mas já foi demonstrado eleitores que só levam em conta o elemento

pessoal e que são a aparente maioria. Com a devida vênia, há motivos para se discordar das

correlações feitas entre as conclusões exaradas pelo autor e das estatísticas apresentadas, vez

que não parece ser razoável inferir desse quadro elementos que contrariem a mencionada

pesquisa de opinião com pergunta direta que foi exposto mais acima.

Em perspectiva diversa, é verificável que, não obstante as diferentes proporções

indicadas, a taxa de reeleição aumentou em ambos os casos, , o que demonstra um aumento

no apreço dos eleitores pelos candidatos ainda que os mesmos alternem de partido.

Não obstante o uso engendrado pelo autor, as informações trazidas neste quadro

também servem para verificar outra premissa: admitindo-se que há eleitores votantes em

partido e candidato (sem distinção de maioria ou minoria) e que, supostamente, há

insatisfação dos eleitores quando seus candidatos mudam de legenda (representada pela taxa

de 46,7% de deputados “infiéis” que perderam a eleição – conforme os dados da tabela),

ainda assim a decisão de conferir os mandatos parlamentares aos partidos foi inadequada.

Inadequada porque essas considerações demonstram o que se pretendeu neste item, que o

58 MARENCO, André. Desempenho Eleitoral, Voto Partidário e Responsabilização nas Eleições Legislativas Brasileiras. In: INÁCIO, Magna e RENNÓ Lucio. Legislativo Brasileiro em Perpectiva Comparada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 301. 59 MARENCO, Op. cit., p. 298-303.

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povo é capaz de tomar conta dele mesmo, ele é o verdadeiro controlador dos poderes

constituídos da República.

Mais uma vez coloca-se questão central do Estado e de Constituição dos Poderes e é

nesse ponto que a revisão judicial deve se limitar a violações manifestas e expressas da

constituição, sob pena de violar a vontade do povo, entendimento colocado pelos republicanos

nos debates sobre o tema.60 Soma-se a isso a questão de maior importância, evidenciada nesse

caso específico da fidelidade partidária: o povo é capaz de tomar conta de si mesmo e exercer

controle. O exercício desse controle se faz a cada legislatura nas urnas e seria eficaz e

legítimo, demonstrando claramente a vontade do povo em punir com a perda do mandato os

candidatos que trocassem de legenda contra os anseios de seus eleitores e ao inverso, ratificar

o ato daqueles que trocaram de legenda em favor de seus eleitores. O maior remédio para a

alegada “imoralidade” da infidelidade partidária é o voto61.

5. ALTERNATIVA À DECISÃO DO STF E A CANDIDATURA SEM VINCULAÇÃO

PARTIDÁRIA

O arcabouço argumentativo até então construído demonstra sua total pertinência para

concluirmos pela viabilidade de duas premissas: (i) a tentativa de consonância entre o

posicionamento das Cortes Superiores e os anseios sociais e (ii) a predisposição parlamentar

na propositura do Projeto de Emenda Constitucional nº 7 de 2012 – PEC nº 7/2012 – do

Senador Cristovam Buarque62.

Quanto ao primeiro ponto, pode parecer simples – e beirando a ingenuidade – suscitar

que bastaria às Cortes que se predispusessem a incutir nas suas equações decisórias elementos

extraídos das situações sociais. É uma questão de vontade institucional63.

Ademais, a questão também perpassa pelo olhar institucional crítico. Não é necessário

se estender em relação ao posicionamento que deveria ter sido tomado pelos tribunais que

figuram nesse imbróglio jurídico. Alternativamente ao posicionamento inadequado, o STF e o 60 KRAMER. Op. cit., p. 102-103. 61 KRAMER. Op. cit., p. 141-142. 62 De pronto deve ser assinalado que não se pretende analisar os aspectos técnicos e econômicos derivados da PEC, mas tão somente o proposto mecanismo de desfiliação partidária para candidatura. 63 Vontade institucional é um elemento utilizado pela teoria neoinstitucionalista de matriz histórica-interpretativa para designar o elemento subjetivo das instituições, sua força-motriz, caracterizada pela combinação de perspectiva coletiva de indivíduos que participam da instituição e da cultura institucional da organização.V. MILLER, Mark C. The view of the courts from the hill: a neo-institutional perspective. In: MILLER, Mark C. & BARNES, Jeb (Ed.). Making Policy, Making Law: an interbranch perspective. Washington, DC: Georgetown University Press, 2004, p. 53/71.

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TSE poderiam não ter alterado o entendimento anterior, não necessariamente baseando-se no

fato de que o partido não tem importância, mas colocando a clara e forte posição de que é o

povo o verdadeiro soberano do Estado e que ele exercerá o controle relativo a esta questão.

Demonstrar ainda que o judiciário não deve sub-rogar-se em tão importante decisão do povo

em relação aos seus representantes, sob pena de colocar em conflito e em confusão os

verdadeiros papéis de Estado e cidadão. São mais do que plausíveis os argumentos

apresentados pelos Ministros em relação à fidelidade partidária, mas não deveriam os mesmos

ter se prestado a jurisdição nesse ponto, afirmando que a Constituição concede o poder

máximo ao povo e que em questões de Constituição do Estado que não sejam manifestamente

infringentes do Texto Magno, não deve a Corte se posicionar em lugar do povo. Seria um

posicionamento adequado com a realidade e menos controverso, que neste liame não geraria

tensão entre os poderes, mas principalmente não afastaria a identificação do cidadão com as

instituições republicanas.

Quanto ao segundo ponto, a Proposta de Emenda à Constituição nº 7/2012 pretende

alterar a redação do §3º, V do art. 14 da Constituição Federal64, para acrescentar a

possibilidade de candidatura sem vinculação a Partido Político, apenas com a subscrição de

determinado número de eleitores65. A justificativa elaborada debruça-se sobre a necessidade

de afastar do ordenamento jurídico o monopólio partidário e, consequentemente, oportunizar

ofortalecimento da soberania popular. Não se quer com isso defender qualquer argumento que

tente denegrir ou marcar como nocivas as instituições partidárias, pelo contrário. Não se pode

afastar a importância da manutenção partidária brasileira e a motivação para o seu paulatino

fortalecimento ideológico. Entretanto não se pode esconder o abismo existente entre o papel

ideal dos partidos políticos – que proporcionaria a conexão representativa direta com o

cidadão –, diferente do que se apresenta na prática, inclusive no momento das urnas.

64 Assim determina o artigo 14 da Constituição Republicana: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: (...)§ 3º - São condições de elegibilidade, na forma da lei: (...)V - a filiação partidária”. Pretende-se alterar este inciso, que passaria a ter a seguinte redação: “ V – a filiação partidária ou, na forma da lei, a subscrição do pedido de registro de candidatura por certo número de eleitores.” 65 Conforme se extrai do sítio eletrônico do Senado Federal, a PEC encontra-se estagnada desde 29 de fevereiro de 2012, aguardando pronunciamento da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. É interessante ainda transcrever breve excerto da justificativa traçada pelo Senador Cristovam Buarque: “(...) A mudança proposta é facilmente aplicável ao sistema eleitoral atualmente praticado, seja para cargos do Poder Executivo ou do Legislativo, bem como adaptável a eventuais mudanças no sistema vigente, como, por exemplo, a adoção de um modelo distrital puro ou misto. Questões como a suplência e o funcionamento parlamentar podem ser resolvidas mediante a aplicação das regras constitucionais já vigentes e alterações no ordenamento infraconstitucional. Com certeza de que essa medida permitirá o aprimoramento da representação política e a aproximação entre mandantes e seus mandatários, (...).”

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Nesta linha de raciocínio, é notável o esforço deflagrado pela iniciativa parlamentar

consciente de que não pode o ordenamento jurídico se distanciar por completo da vontade

popular ou excluir parcela representativa da população. E talvez seja este o ponto mais

interessante que há para se mostrar: há verdadeiro movimento político e a real possibilidade

de alteração constitucional quanto ao tema, que ganhou a pauta permanente nas discussões

políticas. Obviamente que ao campo das ciências sociais deve ser atribuída tarefa para

investigar melhor o tema e suas prováveis consequências no sistema eleitoral e na democracia

representativa.

6. CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto, pode-se concluir que, apesar da correção de alguns

argumentos apresentados nas decisões questionadas (objeto deste trabalho), o resultado

deveria ser divergente do ocorrido diante da completa inadequação com a realidade eleitoral

brasileira. As posições e decisões acerca da interpretação constitucional devem ser cautelosas,

principalmente quando concernentes a questões de constituição do Estado. Em verdade, não

podem os Poderes assumir posicionamento à revelia do povo sem prejuízo de sua própria

vontade. O povo é capaz de tomar conta de si mesmo e exerce controle das instituições

parlamentares através do voto. Não pode ter frutado esse direito com base em interpretação

valorativa da Constituição (ainda que supostamente correta).

Reconhecemos a inadequação da decisão do STF e a crise institucional e de

legitimidade que pode se agravar nessa perspectiva. Se a decisão do STF contraria a soberania

popular, como pode este órgão ter sua legitimidade incontestável? Se um deputado, eleito pelo

povo, perde o mandato com base em nova interpretação do judiciário, como vai o povo

compreender a instituição parlamentar que não o representa? Essas perguntas pairam sobre a

cabeça de todos aqueles atentos às repercussões das decisões do STF na área política e as

dúvidas jamais serão interessantes para uma verdadeira compreensão das instituições e seus

papéis no jogo político brasileiro.

A legitimidade das instituições brasileiras, a identificação e sua compreensão pelo

povo são fatores essenciais à existência da verdadeira democracia e à consolidação do Estado

de Direito.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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