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Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

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Adrian Regis é um adolescente extraordinário. Dotado com a incrível e - ao mesmo tempo - assustadora capacidade de ver anjos e demônios, o jovem Arcano sempre foi considerado ''esquisito'' pelos outros garotos de sua idade. Acostumado a uma vida reclusa e sem grandes atrativos, o rapaz viu o seu mundo mudar por completo com a inesperada chegada de dois fascinantes - e misteriosos - irmãos à melancólica cidade de Ventura, o levando a embarcar na mais apavorante e perigosa aventura da qual já sonhara participar. . Combinando ação, suspense, comédia e uma boa dose de romance, Terra das Sombras é o primeiro romance escrito por Henri B. Neto.

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Adrian Regis é um adolescente extraordinário. Dotado com aincrível e - ao mesmo tempo - assustadora capacidade de ver anjos e demônios, o jovem Arcano sempre foi considerado ''esquisito'' pelos outros garotos de sua idade. Acostumado a uma vida reclusa e sem grandes atrativos, o rapaz viu o seu mundo mudar por completo com a inesperada chegada de dois fascinantes - e misteriosos - irmãos à melancólica cidade de Ventura, o levando a embarcar na mais apavorante e perigosa aventura da qual já sonhara participar.

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LIVRO UM: O GUARDIÃO

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Todos os direitos reservados; nenhuma parte destapublicação pode ser reproduzida ou transmitida pormeio eletrônico, mecânico, fotocópia ou de outra formasem a prévia autorização do autor.

Copyright2010, Henri B. Neto

O Direito moral de Henri B. Neto foi assegurado por ele.

Arte da Capa e DiagramaçãoHenri B. Neto

Neto, Henri B. (Henrique Batista) 1989 -Terra das Sombras – Livro Um: O Guardião Rio de Janeiro, 2012.

Continua com: O Inimigo

1. Literatura de Ficção/Juvenil 2. Sobrenatural3. Anjos/DemôniosI. Neto, Henri B. - II. Título

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09 P R Ó L O G O

''Ser diferente é normal...'' - Mas quanta bobagem!

Ser diferente não é ser normal.

Acredite, sei bem do que estou falando.

Desde pequeno, todos me consideram bastante

peculiar - o que na verdade é só um jeito bonitinho e

eufemista de dizer que sou estranho. Por qualquer lugar que

eu procurasse estar, não havia jeito, sempre encontraria

cabeças que se viravam e cochichos que me seguiriam aonde

fosse. Na escola, a maioria dos estudantes mantinham uma

espécie de distância segura de mim; já os professores me

olhavam de uma forma mais humanitária, me tratando como

se eu fosse um portador de alguma coisa digna de pena.

O que não deixa de ser verdade.

Mas a grande questão é que ninguém nunca soube

realmente o que acontece comigo. É de domínio público que

eu não sou como os outros da minha idade, mas é fato

também que não fazem a mínima idéia do que eu possa ter...

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ou melhor dizendo, do que eu possa ser. Pois se todas as

pessoas que conheci durante esses meus 18 anos tivessem

uma pequena idéia das coisas que eu sei, das coisas que eu

secretamente posso fazer, garanto que a minha vida chata e

sem grandes preocupações se transformaria em uma

gigantesca dor de cabeça num estalar de dedos.

Na verdade, acho que esta é uma descrição perfeita

para o que tenho: Uma Grande Dor de Cabeça! Algo que

simplesmente acontece com a gente, sem que tenhamos

sequer o direito de escolha. Por que, se eu tivesse o direito de

poder escolher ser ou não ser o que sou, provavelmente eu

escolheria a segunda opção. Afinal, entre ser um adolescente

comum e um adolescente peculiar, quem seria o idiota que

ficaria com o que eu tenho?

Bom, me desculpem, acho que até agora não me

apresentei.

Olá, eu me chamo Adrian, e sou um Arcano.

Assim como outros poucos iguais a mim, sou mais

ágil, mais forte e tenho uma resistência maior do que a de

uma pessoa comum... Mas, acima de tudo, a particularidade

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que nos define é justamente por podermos ver coisas que a

maioria das pessoas acreditam que não existem.

Coisas que por serem tão surreais, tão malignas ou

assustadoras, somente alguém com as minhas habilidades

pode lidar.

Mas, voltando ao que interessa, a história que vou

lhes contar a seguir se passa justamente no momento em que

a minha vida (pobre e sem grandes atrativos) definitivamente

começou...

E que, de um jeito irônico e cruel, tentaram arrancá-

la de mim para todo o sempre.

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19 1. O S O N H O

Acordei completamente assustado.

Minha camisa estava encharcada de suor e o meu

coração martelava desvairado contra o peito. Mesmo estando

na segurança de minha cama, sentia como se o pesadelo

ainda não tivesse acabado... Como se o ser produzido pelo

meu subconsciente pudesse estar ali, escondido nas sombras

da madrugada, só esperando para me atacar.

Fechei os olhos novamente e procurei respirar fundo.

Eu sabia que estava sendo irracional. Eu sabia que não

havia um motivo real para entrar em pânico e começar a

pirar. Tudo aquilo não passava de um sonho... Um sonho

aterrorizante que – noite sim, noite não – me tirava o sono

há mais de um mês.

- Se controle, Adrian – sussurrei para mim mesmo,

enquanto me encolhia feito uma bola por de baixo do

cobertor – Você está sendo um medroso!

No mesmo instante, a porta do quarto foi aberta com

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energia e se chocou contra a parede lateral do cômodo,

provocando um ligeiro tremor no piso. Sob a luz fraca do

corredor se encontrava um homem alto e esguio, seus cabelos

escuros emaranhados de uma forma estranha no topo de sua

cabeça, o rosto magro e bonito deformado em uma careta

dura de preocupação.

- Filho, você está bem?!

-Estou sim, pai - murmurei, sentido o sangue se

concentrar em minhas bochechas - Foi só um maldito

pesadelo.

-Ah, claro! - no mesmo instante, a face de Cirus se

descontraiu e ele conseguiu abrir um sorriso – Nossa, garoto,

você me assustou!!!

- Me desculpe.

Isto era tudo o que eu podia falar sem entregar o

medo que me consumia por dentro. Eu estava mais

apavorado do que queria realmente demonstrar, e isto era

ridículo, ainda mais considerando o que de fato eu era.

- Mas o que é isso, Adrian? - perguntou meu pai, uma

de suas sobrancelhas erguida em incredulidade - Você sabe

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que não tem pelo o que se desculpar!

Mas é claro que eu tinha. Afinal, se não fossem por

minhas ''particularidades'', talvez aquele sonho fosse menos

assustador. Talvez eu nem tivesse esse tipo de sonho.

Percebendo a minha expressão preocupada, Cirus

deixou a sua posição protetora na porta do quarto e se

aproximou de onde eu estava, se sentando na beirada de

minha cama e me avaliando com com um ar cansado e

abatido.

- Afinal, filho, que sonhos são esses que você anda

tendo ultimamente? - instigou ele, um dos cantos de seus

lábios se crispando deliberadamente - Você realmente acha

que são apenas sonhos?

Naquele pequeno segundo de antecipação, senti o

meu sangue gelar.

Pois, assim como eu, meu pai também era um Arcano.

E, assim como eu, ele tinha certeza que eu não acabara de ter

um sonho comum.

Acho que é necessário dizer: às vezes, para um

Arcano, os sonhos podem dizer bastantes coisas. Coisas que

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não fomos capazes de ver durante o dia, e que a noite nosso

subconsciente tentava nos alertar sobre o que estávamos

deixando passar despercebido. Mas por mais que eu pensasse,

nada estava me passando despercebido. A vida em Ventura

continuava a mesma - pacata e sem atrativos, com cada um

tentando bisbilhotar ou inventar alguma coisa sobre a

vidinha monótona do outro.

Então, por que essa droga de sonho não me deixava

em paz?

- Eu... Eu não sei... Quero dizer, sim! - Menti, com a

minha melhor cara de inocente - Pelo menos, acho que sim.

Sabe como sou, provavelmente não deve ser nada demais.

- Hum, então você deve estar certo - replicou meu

pai, com um olhar que dizia ''Você é o Pior Mentiroso do

Mundo''. - Acho que realmente está na hora de voltarmos à

dormir. Afinal, amanhã é dia de escola, não?

- Nossa, ótimo lembrete! - resmunguei entre os

dentes, com uma alegria claramente fingida.

Sem dúvida alguma, esta deve ser a melhor maneira

de se terminar um dia: acordar no meio da noite devido a um

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pesadelo assustador e voltar a dormir pensando na ''grande''

manhã que teria na Academia Constantine.

‘’São só mais seis meses’’, eu pensei. ‘’Só mais seis

meses, e você vai estar livre daquele lugar!’’

Bom, não era pedir muito de mim, era? Afinal, depois

de Onze anos de total apatia e exclusão, esperar por apenas

mais um semestre não seria nada. Acho que no fim, o

purgatório até poderia ser um lugar acolhedor e com pessoas

amáveis, não é mesmo?

Tudo bem, a quem estava enganando - Não consigo

mentir nem pra mim mesmo.

- Isso aí, garoto, pensamento positivo! - sussurrou

Cirus, ignorando por completo a minha encenação óbvia. -

Agora, feche esses olhos... e não se preocupe com nada!

Aproveitando o fim repentino que dei em nossa

''conversa'', meu pai se levantou pesadamente da beirada da

minha cama e caminhou de volta para o seu quarto sem olhar

para trás, me deixando completamente sozinho e perturbado.

Sabe, eu gosto muito do Cirus, e reconheço todo o

trabalho que ele teve para me criar sozinho, mas

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definitivamente nós não estávamos na mesma sintonia. Isto

era um fato triste, porém irrefutável.

As horas se passavam e eu não conseguia voltar a

dormir. Mesmo quando eu queria me distrair com

pensamentos estúpidos, minha cabeça trabalhava à mil por

hora. Todas as vezes que tentava fechar os meus olhos, como

o meu pai havia mandado, visões indistintas do meu pesadelo

vinham à tona. Já eram 1h da manhã, e a única coisa que se

fixava em minha mente era que eu tinha que fazer alguma

coisa.

Com um salto, me pus de pé e fui para o banheiro.

Ironicamente, sempre achei o banheiro um ótimo

lugar para se clarear as idéias. Talvez fosse a cor, talvez

fossem as luzes, quem sabe poderia ser a acústica, mas

qualquer que fosse a explicação, era lá que eu encontrava as

respostas para as minhas perguntas. E foi isso que eu fui

fazer. Encontrar a resposta para uma pergunta que nem eu

sabia qual era.

Completamente exausto, tirei a minha roupa e me

enfiei debaixo do chuveiro. Por mais gelada que estivesse a

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água, aquilo estava me deixando mais relaxado. Quase pude

ver os meus músculos se descontraindo sob a pele e a minha

pulsação acelerada se acalmar. Depois de cinco minutos, saí

do Box renovado. E o melhor, meu cérebro parecia estar

trabalhando de uma forma tranqüila, e não alucinada como

estava antes da ducha.

Sentindo-me mais calmo, me enrolei na toalha e segui

em direção ao grande espelho sobre a pia. Já que estava no

banheiro e sem um pingo de sono, iria aproveitar a ocasião

pra fazer a droga da minha barba - o que me pouparia o

trabalho na manhã seguinte, me dando mais tempo livre para

ficar em casa antes de ir para a escola.

Foi então que o meu cérebro deu um click.

Só ao me olhar no espelho eu me dei conta que o

antagonista do meu sonho era extremamente parecido

comigo. Não com a minha aparência, é claro - ela não tinha

os olhos cinzentos e os cabelos escuros como eu, muito

menos a minha altura ou meu porte físico de nadador. Ao

contrário, o ser era comprido ao extremo, passando de longe

os meus 1,80. E diferente de mim - que devido a minha

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condição, sou forte, porém magro - cada centímetro dele

parecia exalar uma força bruta e cruel, quase que invencível.

Na verdade, o que me fez lembrar dele foi algo que

me perturbou durante todo o tempo em que estive

inconsciente, e só agora parecia brotar do fundo da minha

mente.

O vilão que me atacava quase todas as noites e me

fazia despertar de medo era um homem... Ou, ao menos,

parecia ser um.

E era isto o que me preocupava.

Esquecendo-me por completo do que iria fazer,

recoloquei as minhas roupas e voltei para o meu quarto. Com

um movimento rápido, abri a janela e me pus a observar a

cidade.

Tudo continuava no seu devido lugar... Ao fundo, eu

podia enxergar as belas colinas de Ventura recortando o

horizonte, a luz da lua resplandecendo no topo das árvores

mais altas. Já as ruas desertas eram iluminadas apenas pelos

lampiões, e os antigos prédios góticos do centro estavam no

escuro, sua arquitetura antiquada sempre me lembrando uma

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catedral gigantesca que não parava de crescer.

Por mais calmo que parecesse a paisagem, aquela

visão não me deixou nenhum pouco tranqüilo. Pelo

contrário, observar a cidade mergulhada no silêncio me

deixou ainda mais apreensivo.

Definitivamente, a calma que eu havia recuperado

com o banho estava se esvaindo pelos poros, pouco à pouco.

Minha mente era tomada de assalto por uma enxurrada de

perguntas - e as mais preocupantes pareciam grandes

letreiros de néon diante de mim.

Será que os meus sonhos estavam sendo realmente um

sinal? Ou melhor, será que o ser aterrador poderia estar

naquele exato momento em algum beco escuro de Ventura,

oculto pela sua falsa humanidade, só esperando para atacar?

Sem sombra de dúvidas eu gostaria de ter as respostas para

essas perguntas, mas infelizmente não tinha.

Então fiz a única coisa que me parecia cabível naquela

hora: fechei a janela do meu quarto, voltei para debaixo das

cobertas, e obriguei o meu cérebro a se desligar de tudo e

tentar dormir... De nada adiantaria eu continuar acordado,

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me forçando a encontrar algo que ainda estava inacessível a

mim.

Por enquanto, eu sabia de tudo que era para saber.

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29 2. N O V A T O

Naquela manhã, antes mesmo do despertador tocar, eu já

estava acordado - o que não era nada bom, levando-se em

conta de que eu havia tido apenas 4 horas de sono na noite

anterior.

Durante algum tempo, tudo o que eu fiz foi ficar

deitado em minha cama, observando o teto escuro do quarto

ir clareando aos poucos com as primeiras luzes do dia,

pedindo secretamente que o sol não chegasse. Como

consequência da minha ''pequena'' vigília por respostas, meu

organismo cobrava à juros altos as horas de sono

desperdiçadas. Cada centímetro do meu corpo parecia arder

em chamas, minhas pernas pesavam mais que um saco de

concreto e eu tinha a estranha sensação de que minha cabeça

estava a ponto de explodir. Isso, sem falar no vazio que se

apoderava de mim.

Por mais cansado que estivesse, nada parecia ser capaz

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de tirar da minha cabeça a terrível imagem do ser no meu

sonho. O sorriso maligno, o olhar feroz... tudo tinha sido tão

real, tão assustador, que por mais que eu tentasse esquecer,

aquilo não saia da minha mente.

''Você está começando a ficar neurótico'', disse para

mim mesmo.

O que não deixava de ser verdade. Simplesmente

tinha perdido as contas de quantas vezes, nas últimas horas,

eu havia me sobressaltado com o mínimo ruído. Qualquer

coisa naquele momento, desde uma buzina de carro até a

minha própria sombra, parecia ter o poder de me assustar.

Após meia hora de pura apatia, tomei coragem

suficiente para me levantar. Enquanto caminhava sem pressa

em direção ao armário, repassava mentalmente os

acontecimentos do último pesadelo. Não sabia como, mas

tinha a impressão de que me esquecia de um detalhe, algo

além da aparência do antagonista. Era estranho, pois só agora

percebia que eu nunca me lembrava do sonho em si, apenas

o momento em que o ser surgia diante de mim. O momento

que me fazia acordar assustado.

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- Já está de pé? - perguntou uma voz masculina, bem

atrás de onde eu estava.

Meu coração quase saltou pela boca. Ao virar, me

deparo com meu pai, desta vez com seus cabelos negros

perfeitamente arrumados, vestido por completo com seu

uniforme de trabalho. Cirus era chefe da Brigada de

Paramédicos de Ventura, o que era bastante irônico, se

considerarmos o que ele secretamente podia ver e fazer.

-Meu Deus, o que está acontecendo?

-Não foi nada. Só levei um susto com o senhor...

-Anh?! - Depois de um segundo de incompreensão, o

rosto de Cirus se contorceu em uma careta de preocupação. -

Adrian, por que você não me conta logo sobre o que é esses

seus sonhos?

Sem dizer mais nada, peguei o uniforme horroroso da

Constantine e comecei a trocar de roupa. Não estava

preparado, nem com a mínima vontade de discutir sobre

aquilo com meu pai. E pelo visto, ele também percebera isso,

pois no instante seguinte, não estava mais no meu quarto.

Depois de uma rápida passada no banheiro, onde

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tentei (sem sucesso) me afogar na pia, resolvi ir tomar café.

Desci rapidamente pelo poste de emergência, e corri em

direção a cozinha. Este era um dos detalhes que me fazia

gostar tanto da minha casa. Antes de meu pai e eu morarmos

aqui, o prédio era na verdade a antiga sede do Corpo de

Bombeiros da cidade. Quando viemos para cá, Cirus

reformou o lugar todo, mas manteve algumas características

como a faixada, o poste e o sino de alerta.

Nossa, não está no gibi o quanto que meu pai teve que

usar o sino para me obrigar a ir para escola, quando eu era

menor.

Ao chegar na cozinha, percebi que Cirus já estava

terminando de comer. Sua testa estava frizada, enquanto lia

com uma estranha concentração as manchetes do jornal em

suas mãos. Outra coisa que também vi foi que ele me olhou

brevemente por sobre as folhas abertas, e aquele era um claro

sinal de que algo que eu fiz o incomodava - e muito.

Obviamente, o meu silêncio sobre o pesadelo estava

começando a irritá-lo. Mas, por mais que eu quisesse ajuda

para desvendá-lo, falar com mais alguém significava que

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havia uma possibilidade de tudo aquilo ser verdade... E no

fundo, não era bem isso o que eu queria.

Após meio minuto de um silêncio constrangedor,

resolvi quebrar o gelo.

- Hum, muita notícia ruim hoje?

- Não, nada grave - murmurou Cirus, olhando-me

novamente por sobre o jornal - Só a coclusão das

investigações daquele acidente do mês passado envolvendo

adolescentes em Dumont...

- Ah, sim! - respondi, tentando demonstrar interesse.

Do lado de fora do periódico, eu podia ver a manchete da

matéria encabeçando uma grande foto de um dos envolvidos,

um rapaz ruivo e simpático, que deveria ter no mínimo a

minha idade quando a imagem fora tirada. Não sabendo o

por que, aquilo me fez tremer ligeiramente... e me obrigou a

continuar perguntando - Mas então, já sabem o resultado de

tudo?

- O de maior estava alcoolizado, é claro... -

resmungou meu pai, ainda sem tirar os olhos do papel - Pelo

o que a polícia apurou, na velocidade em que o garoto vinha,

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os passageiros do táxi atingido tiveram muita sorte de terem

conseguido sair dessa sem um arranhão.

A resposta fria e direta de Cirus me fez encolher aos

poucos na cadeira. Estava claro e bastante nítido que o

assunto macabro não estava ajudando em nada no desenrolar

da coisa.

E eu não podia deixar o barco continuar.

- Me desculpe, pai! - explodi, sem um pingo de

coragem para encará-lo -Tudo bem, eu sei que eu errei em

não falar nada para o senhor, mas... eu sinto que ainda não

estou pronto...

- Claro, claro - com um movimento longo, Cirus

devolveu o jornal à mesa e passou a mão sobre seus cabelos,

seu rosto demonstrando pura frustração - É só que... eu quero

que você saiba que pode contar comigo! Pra qualquer coisa!

- É claro que eu sei que posso contar com o senhor

pra qualquer coisa - resmunguei, começando a sentir o

sangue fluir sobre a minha face - além do mais, quem

acreditaria em mim se eu dissesse o que eu vejo, na verdade?

Estamos condenados a morar juntos pelo resto de nossas

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vidas.

Por um breve instante, pude ver a expressão de Cirus

se descontrair e a sua risada gutural começar a ser formar no

fundo do peito. Quando ela finalmente atingiu a superfície,

toda a tensão que parecia pairar sobre as nossas cabeças veio

abaixo, como se as gargalhadas produzidas pelo meu pai

fossem a única coisa capaz de expulsá-la. E aquilo me

contagiou também. Sem perceber, eu já estava caindo de rir,

as lágrimas incontroláveis rolando pelas minhas bochechas.

- Nossa garoto, esse seu... ''otimismo''... é um

verdadeiro estimulante – disse Cirus, enquanto enxugava os

cantos de seus olhos com os punhos da camisa - Devia usá-lo

em sua escola.

- Escola... ?! - perguntei aéreo, olhando por puro

instinto para o grande relógio pendurado na parede da

cozinha - Droga, perdi a hora!

- Pode deixar... - Cirus gritava para mim, enquanto

voava de volta para o meu quarto para pegar o casaco e o

material - ... eu te levo até lá antes de terminar a palavra

''atrasado''.

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Dito e feito. Foi só eu meu encostar no banco do

carona de nosso velho Mustang 64, que me pai disparou pela

rua como um louco alucinado, os pneus do carro chiando

perigosamente contra o asfalto. E assim como prometera,

antes que eu pudesse soletrar qualquer coisa, estávamos

derrapando em frente ao portão principal da Academia

Constantine.

Confesso que, mesmo depois de todos esses anos, eu

não conseguia me acostumar ao jeito ''adolescente'' que Cirus

dirigia. Muita das vezes, em situações iguais a esta, eu me via

como o pai racional e reacionário, e ele como o filho rebelde

e cabeça dura.

- Destino final!

Com uma piscadela marota, Cirus puxou o freio de

mão e abriu a porta do carona, seu típico meio sorriso

estampando suas feições. Ele nem parecia abalado por ter

quase atingido um lampião de rua com a traseira do Mustang,

e nem um pouco culpado por ter ultrapassado o limite de

velocidade em uma área escolar - algo bem diferente de mim.

Eu precisei de uns dois minutos para me recuperar,

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murmurar um fraco ''obrigado'' e sair do automóvel. Assim

que coloquei os pés na calçada, o Mustang avermelhado

acelerou e partiu, se transformando em um borrão até

desaparecer na esquina.

- Tchau pra você também - falei, enquanto fechava o

meu agasalho e seguia na direção do antigo prédio a minha

frente.

Era mais uma manhã fria como de costume, mas

diferente do que se pode esperar, o céu estava claro e azul,

pontuado por gigantescas nuvens repolhudas. A fraca

claridade produzida pelo sol dava a Ventura um colorido

estranho, como se a cidade toda fosse uma enorme aquarela

viva. Sempre que eu via aquela imagem, logo me lembrava

do que o nosso cartão-postal costumava dizer: ''A beleza da

Primavera combinada com o clima do Inverno, durante todo

o ano''. Mas nem a paisagem mais bela do mundo poderia me

fazer esquecer do horror que teria que enfrentar durante

metade do meu dia.

Assim que me aproximei dos portões da escola, avistei

a pessoa que eu menos queria encontrar logo pela manhã:

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Oliver Nigro, rodeado por seus asseclas, encostados

preguiçosamente no corrimão da escadaria de entrada,

enquanto exibiam para todos os seus agasalhos caros por

sobre o paletó vermelho da Constantine. Oliver, único filho

do Diretor Nigro, sempre se achou o dono da escola. O pior,

parecia que a maioria dos alunos também achavam. Desde

pequeno, ele parecia ter me escolhido como seu ''saco de

pancadas'' preferido, me constrangendo na frente dos outros

e me extorquindo pelos cantos, sempre ladeado por seus

amigos mais intimidadores.

É claro que, se eu quisesse, já teria dado um fim nesta

situação a muito tempo. Mas o que aconteceria se eu,

finalmente, desse o troco em Oliver? Sem sombra de dúvidas,

era uma idéia tentadora. Mas não seria nada ''legal'' de se ver.

Então, tudo o que eu podia fazer era abaixar a cabeça e aturar

tudo calado, como um bom garoto. E Deus sabe o quanto eu

tive que me controlar para não perder a controle e fazer uma

besteira.

Seguindo a risca o meu plano de passar o último

semestre na escola da forma mais indolor o possível, evitei de

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passar na frente do ''Sr. Meu Cabelo Loiro-brilhante é

Natural'' e me encostei no tronco de uma árvore próxima.

Ainda faltavam três minutos para a sineta tocar, e cada vez

mais a calçada frontal da escola se enchia de alunos e

professores esperando o começo das aulas.

Foi quando o que ninguém esperava aconteceu.

Cruzando a rua em direção ao pátio da Constantine,

um garoto nunca visto antes seguia lentamente na direção de

Oliver e seu grupo. Era um tipo que, só de olhar, você sabia

que não tinha nascido na cidade, e era o único em toda a

quadra que usava um par de tênis Converse ao invés dos

sapatos antiquados do uniforme.

O rapaz era alto e magricela, sua cabeleira lanzuda

caía desgrenhada sobre a testa e sua pele morena tinha um

tom pálido doentio, como se não tomasse um banho de sol à

tempos. Não fazia o tipo das pessoas que andavam com

Oliver, isso eu tinha certeza. Mas não havia uma alma viva

que eu conhecia que se aproximava dos Privilegiados sem ser

convidado.

Além de todos esses detalhes, parecia que eu conhecia

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o novato de algum lugar. E, não sabendo bem o por quê,

aquilo chamou minha atenção. Acho que foi a ousadia do

garoto, ou o espanto de Oliver ao vê-lo se aproximando, mas

de uma forma ou de outra, eu precisava saber o que

aconteceria.

Sabe, eu podia reclamar bastante desta coisa de ser um

Arcano - tenho os meus motivos. Mas quando eu precisava,

ter nascido com isto realmente era uma mão na roda. Hoje é

um exemplo. Se eu fosse um garoto normal, não poderia

escutar nada: a barulheira juvenil de pré-aula era quase

ensurdecedora. Mas como eu não era, tudo o que eu tinha a

fazer era me concentrar e localizar o ponto onde o som ao

qual eu estava procurando era produzido e... ''voilá''! Eu

estaria ouvindo tudo da forma mais nítida, como se estivesse

participando da conversa.

E foi exatamente isto o que eu fiz.

O estranho se aproximou tão rápido de Oliver que eu

quase perdi o começo da cena. Pelo visto, aquele era o

primeiro dia de aula para o rapaz, e tudo o que ele estava

fazendo era pedir ajuda para o primeiro veterano que

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encontrava - que por acaso era O Veterano. Um engano fatal.

- Você está me perguntando aonde é a secretaria? -

perguntou Oliver, a voz carregada de irônia e falsa surpresa -

Vem cá, está me achando com cara de Balcão de

Informações?

Os Privilegiados caíram na gargalhada. Alguns

soltavam piadinhas ofensivas para o novato. A maioria das

pessoas que estavam perto da escada pareciam ter parado

para ver Oliver se fartar com a sua mais nova presa. Porém,

novamente contrariando a lógica local, o rapaz também ria

com a situação.

- Ai, Droga! Mil desculpas - murmurou o estranho,

com uma voz que indicava nenhum tipo de arrependimento

- é sério, como eu pude ser tão estúpido e não reconhecer

vocês?

Subitamente, as risadinhas pararam.

- Ah, por favor, poderiam me dar um autógrafo?

- Um...um autógrafo?! - gaguejou Oliver, desta vez

realmente surpreso.

-Mas é claro! - exclamou o novato, um sorriso

Page 44: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

brilhante iluminando seu rosto - Sabe, eu achava que esta

história era puro clichê de filme adolescente, mas conhecer o

Rei do Baile Sem Coração e os seus Capangas Descerebrados

em carne e osso realmente é uma honra!

No mesmo instante Oliver se levantou, o punho

preparado para desferir o soco. E no mesmo instante, o

Diretor Nigro apareceu no topo da escadaria, salvando o

novo aluno com um ''timing'' que ele nunca teve com

nenhuma outra vítima de seu filho.

- Líon, aí está você, meu rapaz! - exclamou o Diretor,

abrindo os braços na direção do jovem - Pelo visto, já está se

enturmando! Não é mesmo, Oli?

Tive que me controlar para abafar o riso.

Era óbvio que Oliver e o garoto chamado Líon nunca

seriam amigos. E mais óbvio ainda era a patética tentativa do

Dir. Nigro de parecer simpático ao aluno. Ele não era

simpático. Pelo contrário, parecia haver uma competição

entre ele e o filho para saber quem conseguia ser mais

intragável. Só podia haver um motivo para essa repentina

mudança de personalidade, e qualquer que fosse, não deveria

Page 45: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

ser nem um pouco nobre.

- Venha, eu mesmo irei apresentar as instalações da

Constantine para você... Ou prefere que o meu filho o guie?

Durante um milésimo de segundo, pude ver a

hesitação iluminar os olhos castanhos de Líon. Eu

compreendia bastante. O Dir. Nigro não era exatamente o

tipo de pessoa que você confiava a primeira vista. Nem à

segunda vista, falando com sinceridade. Seus cabelos

grisalhos e desgrenhados, a barba por fazer, as imperiosas

feições leoninas – todo o conjunto parecia refletir uma

esperteza com um quê de maligna. Porém, por mais suspeita

que fosse a impressão que o Diretor estava causando,

qualquer coisa no momento seria melhor do que a fúria

invisível que Oliver emanava.

Sem escolha, Líon subiu rapidamente a escadaria e se

postou diante do administrador geral da Academia.

- Muito Bem - Com um gesto largo, o homem enlaçou

os ombros do rapaz, o conduzindo de uma forma imperiosa

para dentro do prédio ainda vazio - Então, como está se

sentindo? Onde está a sua irmã?

Page 46: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

- Serina não pode vir hoje - respondeu Líon, o

desconforto transparente em sua voz - Acho que ela acordou

pouco disposta.

Com um leve aceno de compreensão, o Dir. Nigro

indicou o caminho à frente e levou o garoto para longe de

todos.

Quando voltei a minha atenção para Oliver, ele

continuava parado no mesmo lugar - chocado pelo

comportamento do pai, enraivecido pela perda de sua

primeira vítima. Só depois de um cutucão de um dos amigos

brutamontes ele pareceu voltar a si, justo quando eu me

recuperava de um ataque de riso que acabava de ter.

- Está sorrindo por quê, Mestre dos Esquisitos?

A sineta impediu a resposta mal criada que eu estava

prestes a dar. Mas não me importava. De uma forma

inesperada, aquele meu último semestre na Academia

Constantine prometia.

44

Page 47: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

45 3. S A L V A V I D A S

Antes de tomar coragem para entrar no prédio principal da

escola, decidi conferir mais uma vez os horários do meu

último semestre.

Segunda Feira:

1° tempo - Ed. Física.

Olhei para o papel em minhas mãos com extremo mal

humor. Eu não suportava as aulas de Ed. Física. De todas as

matérias, acho que ela era a única que ficava em primeiro

lugar na lista de ''Coisas Que Mais Parecem Uma Tortura

Diária''.

Mas não me leve a mal - eu não sou nemhum nerd

descoordenado. O principal motivo que me fazia odiar as

aulas de Ed. Física - logo, tudo relacionado a ela – era

bastante simples: por ser um Arcano, eu nunca pude

Page 48: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

realmente praticar coisa alguma.

Imagine correr, saltar, nadar e fazer outras coisas

melhor do que qualquer um em sua escola e não poder nem

ao menos demonstrar um terço disto... Era frustrante! Eu

poderia calar a boca de muita gente, principalmente de

Oliver e sua gangue, mas tudo o que eu podia fazer para não

dar bandeira era entrar lá e fingir ser um perdedor total.

Perfeito, não acha?

Por isso que, quando eu finalmente resolvi deixar o

meu abrigo debaixo da árvore, meu ânimo estava no chão. Eu

estava cansado de fingir ser algo que eu não era.

Logo que eu cruzei o portão de entrada, decidi seguir

com pressa para os vestiários. O corredor estava

completamente tomado por estudantes, e sem perceber, eu

era conduzido pelo fluxo de gente em direção a Ala Norte da

Academia Constantine.

A escola era formada por um conjunto de prédios

antigos, com direito à tijolos expostos e uma Torre do

Relógio na construção principal. As aulas de Ed. Física eram

realizadas no lado mais distante do campus, em uma área

Page 49: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

fechada a qual eu chamava carinhosamente de ''Pavilhão de

Tortura''.

Assim que eu cheguei ao portão do Pavilhão, fui

recebido pela bela - e nem um pouco simpática – Treinadora

Kara. Ela usava o agasalho oficial da escola por cima do que

pareciam ser roupas de banho. Seu cabelo negro estava preso

bem firme à um coque, e seus olhos rasgados estavam

contorcidos na costumeira carranca severa.

- Até que fim as primeira mocinha chegou para a aula

- disse a Treinadora, me olhando como se fosse capaz de me

fulminar vivo - Ande, vá se vestir... Hoje a aula vai ser na

piscina!

- Na.. na piscina? - gaguejei, sentindo o sangue se

concentrar furiosamente nas minhas bochechas.

- E você por acaso é surdo? - resmungou Kara.

Sem pensar duas vezes, fiz o que a treinadora havia

pedido. Esta era a exata reação de qualquer um depois de se

encontrar com a professora de Ed. Física. Sinceramente, eu

achava que ela teria se dado muito melhor seguindo carreira

em algum lugar mais rígido, tipo o Exército... mas é claro que

Page 50: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

não tinha intenção alguma de compartilhar esta minha

opinião com ela.

Com relutância, troquei o paletó vermelho pelos

trajes de banho da mesma cor, corando furiosamente só de

imaginar alguém me vendo vestindo estas coisas - o que me

lembrava que este era um dos motivos que não me faziam

gostar da aula: o uniforme.

Nem tanto o tradicional - feito para as atividades na

área poliesportiva - e sim o traje de banho. Ele é vergonhoso,

é sério. Toda vez que éramos obrigado a vestir estas ridículas

sungas pretas junto com a camisa regata cor-de-tomate, as

garotas se acotovelavam aos montes na porta do vestiário

para conferir nossas... habilidades. E quando digo conferir,

estou falando em conferir mesmo - sem pudor algum, e com

direito a comentários.

Arrepiado só de imaginar passar por esta situação

novamente, corri para a beira da piscina, tentando esperar

com paciência a hora que a aula iria começar. Só então

percebi que o meu desconforto era cada vez mais palpável. A

cada olhar que a Treinadora Kara lançava em minha direção,

Page 51: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

era um gemido que eu produzia.

Depois de mais cinco minutos, a turma se encontrava

pronta e em formação diante da Treinadora. Ela caminhava

imperiosamente a nossa frente, como um General em revista

às tropas. Seu andar era firme e duro, e eu podia jurar que a

cada passo que ela dava no piso de mármore, as águas na

beira da piscina tremeluziam.

- Ora, ora, ora... se não é a minha adorável turma de

formandos - a Treinadora Kara parou diante de nós, com

uma inegável expressão de satisfação sádica. Seus olhos

faíscavam de uma maneira sombria, e ela parecia pronta para

nos inflingir uma longa seção de dores e terror.

Porém, antes dela poder continuar com seu

terrorismo psicológico, as portas do ginásio aquático foram

abertas tão inesperadamente que surpreendeu não só a

professora como também toda a classe.

- Diretor Nigro!!! - exclamou a Treinadora, enquanto

admirava estarrecida a figura leonina que invadia o pavilhão

- Que visita inesperada... Como posso ajudá-lo?

Com um leve sorriso, o administrador se aproximou

Page 52: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

de onde estávamos e abrangeu a todos com um balançar de

cabeça que pretendia ser paternal.

- Ora, minha doce Kara, não se preocupe com nada...

- pigarreou o diretor com uma piscadela marota - Não estou

aqui para inspecionar suas aulas. Para falar a verdade, só

estava apresentando o maravilhoso campus da Constantine

para a nossa mais nova aquisição escolar!

Ainda sorridente, o homem se virou e fez um

pequeno sinal para a sombra escura que o esperava na porta

do ginásio. De início, eu não podia dizer quem era. Tudo o

que eu via era uma forma alta e magra recortada contra o sol

da manhã, que parecia não estar muito animada em se

aproximar do nosso grupo. Mas, depois que o diretor se

mexeu novamente e encorajou a pessoa a chegar mais perto,

eu pude reconhecer o novato sem nem olhar para o seu

rosto.

Líon, que já usava os trajes de banho vermelho-

tomate, caminhou incomodamente até parar entre a

treinadora e o administrador da escola. O constrangimento

parecia estar estampado na face do garoto, e como se pudesse

Page 53: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

ser possível, sua pele castanha parecia estar mais pálida do

que o normal.

- Treinadora... formandos... gostaria que vocês

conhecessem e cumprimentassem nosso jovem companheiro,

Líon Biel!

Sem disfarçar o movimento, o Dir. Nigro empurrou o

garoto para o centro do círculo formado, numa tentativa

mais do que furada de fazer o novato se enturmar com os

novos colegas de classe. Sem saber o que fazer diante da

situação, Líon reuniu toda a coragem que tinha, se

empertigou e tentou lançar um ''positivo'' para a turma a sua

volta - mas tudo o que conseguiu foi um olhar carrancudo de

Oliver e uma conferida de cima à baixo das garotas mais

próximas.

Percebendo tardiamente que não tinha como a cena

melhorar, o administrador abrangeu novamente a turma com

o olhar e começou a recuar lentamente do grupo.

- Bom, Kara, pelo visto o meu trabalho por aqui já

está feito! - comunicou o diretor, o rosto púrpura como uma

beterraba - Acho que nos veremos na Sala Reservada durante

Page 54: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

o intervalo, não? - sem nem esperar por uma resposta para a

pergunta, o homem acenou uma última vez para a professora

e virou-se sem cerimônia alguma para tomar o caminho de

volta para a saída do ginásio, o andar tão apressado que mais

parecia que ele queria fugir do local o mais rápido que podia.

No instante em que a porta de metal se fechou

novamente, a Treinadora Kara voltou a sua atenção para a

classe com força total - o seu ''olhar assassino'' mais poderoso

do que nunca.

O novato, que ainda não havia sentido a áurea letal

que emanava da professora, tremeu ligeiramente da cabeça

aos pés - acompanhado por todos os alunos, que pareciam ter

prendido a respiração ao mesmo tempo, como se pudessem

pressentir o que a mente engenhosa da professora poderia

estar maquinando.

-Como vocês devem saber - prosseguiu a Treinadora -

na minha matéria, o primeiro bloco do último semestre dos

formandos da Academia Constantine é dedicado para as

atividades aquáticas.

Atividades Aquáticas.

Page 55: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

Não sabia bem o por quê, mas eu não havia gostado

nem um pouco do tom que a professora usou para falar esta

frase. Era quase como um agouro... como se algo realmente

ruim nos esperasse na piscina.

Besteira, pensei, enquanto sacudia a cabeça e

continuava a ouvir o que ela dizia.

- E já que posso ver que vocês estão devidamente

preparados - ela inclinou-se brevemente para Líon, um

sorriso maligno iluminando seu rosto oriental - acho que

posso revelar que nossa primeira modalidade será: O Salto

em Altura!

Como esperado, a turma inteira se encolheu diante da

''novidade'' da professora.

Salto em Altura? No que ela estava pensando? Posso

afirmar com segurança que nenhum de nós - incluindo eu -

nunca havíamos pulado de lugar algum. Quanto mais de uma

plataforma de concreto gigante à beira de uma piscina ''não

tão'' funda.

- Hei, por que estas carinhas tão preocupadas? -

perguntou a Treinadora, com uma risada cristalina - Eu vou

Page 56: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

chamar um nome de cada vez, e aí, vocês só terão que subir

na plataforma e saltarem para água!

Uau, ela falando desse jeito fazia parecer tão simples...

uma pena que não era.

- Hum, Treinadora? - Oliver se destacou do grupo,

seus ombros rígidos denunciando o tremor que ele tentava

ocultar - Nós vamos ganhar algum... sei lá... bônus por tarefa

concluída?

-Bônus? - resmungou Kara, o rosto fechado – Superar

os próprios medos já vai ser um bônus e tanto. Andem,

formem uma fila descente!

Sem perder tempo, formamos uma fila única e por

tamanho diante da plataforma. A treinadora Kara se postou

próxima a escada que levava ao topo da área de salto, seus

olhos varrendo a longa lista com os nossos nomes, o papel

preso à uma prancheta vermelha com o símbolo da Academia

Constantine.

Depois de um tempo concentrada, ela ergueu os olhos

da listagem e anunciou o primeiro nome que iria se destacar

do grupo e realizaria a tarefa:

Page 57: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

- Alice Corvel!

Alice, uma garota baixa e magricela, saiu logo da

frente da fila e subiu na plataforma. Todos, até mesmo

Oliver, pareciam apreensivos diante do que estava por vir.

Sem se abalar, ela se posicionou à beirada do declive,

ergueu os braços esguios e pulou.

Durante o pequeno tempo em que o corpo frágil da

veterana esteve no ar, a turma inteira prendeu a respiração.

Só após que a cabeleira ruiva se destacou das bolhas

produzidas na água foi que o grupo se permitiu relaxar, e os

amigos mais chegados da garota esgueiraram para a beira da

piscina e à ajudaram a sair de lá.

- Ora, até parece que foi a coisa mais difícil do

mundo! - retrucou Oliver para os seus seguidores, a voz

abafada pelo barulho dos aplausos da turma.

- Muito bom, jovem Nigro... - a treinadora Kara

riscou o nome de Amanda da lista e virou-se para encarar o

filho do diretor - Isto mostra que o senhor deve estar

querendo ser o segundo candidato à enfrentar nossa pequena

prova, não?

Page 58: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

Oliver congelou no lugar. Estava claro que o seu

comentário não significava nada além de pura inveja. Mas

como a professora poderia ser tudo, menos injusta, era óbvio

que ele agora se via obrigado a se apresentar realmente como

segundo candidato para saltar.

Reunindo toda a dignidade que podia, Oliver se

encaminhou para a plataforma, seu olhar distante só

ressaltando seu arrependimento por ter falado na hora

errada. Com um ligeiro aceno de cabeça, ele se curvou e

saltou para o fundo da piscina.

Confesso que, por um milésimo, eu fiquei um tanto

preocupado com a segurança física dele. Mas logo depois que

o vi se erguer na beirada mais distante do tanque, com seu

habitual sorriso presunçoso no rosto, qualquer traço de

solidariedade que eu podia ter sentido se esvaiu pelo ralo

mais próximo.

- Eu disse que não era nada! - Oliver se vangloriou,

retirando o cabelo ensopado da frente de seus olhos, ao

mesmo tempo em que exibia-se para as garotas da classe.

Mais três alunos - mais três saltos. Com o passar do

Page 59: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

tempo, pude perceber que a tarefa não era tão assustadora

quanto eu imaginava.

Era difícil, sim, mas não impossível.

Cada vez mais nomes eram chamados e, aos poucos, a

fila diminuía. Sentia que o momento em que eu seria

escolhido estava se aproximando e, por mais envergonhado

que estivesse, estava pensando seriamente se não apelaria

para uns de meus dons. Sim, eu sabia muito bem que era

errado - uma trapaça - mas na verdade, estava começando a

ficar cansado de fingir ser um ''garoto tapado''.

A treinadora Kara terminou de cumprimentar Daniel

Maltha por seu salto espetacular e voltou a sua atenção para a

prancheta. Fiquei parado, a determinação em pessoa,

esperando escutar o meu nome se anunciado em voz alta.

Mas não foi isso que aconteceu.

A professora levantou a cabeça, inspirou rapidamente

e chamou: Líon Biel.

Foi inesperado. Líon piscou umas duas vezes até

perceber que era ele quem iria saltar. Sem acreditar, o novato

olhou para todos ao seu redor, uma súplica silenciosa por

Page 60: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

ajuda desfigurando-lhe o rosto. Tentei fazer uma careta

encorajadora, mas só o que consegui foi parecer estar em

choque. Desarmado, o rapaz caminhou lentamente para a

plataforma, os ombros caídos e o ânimo no chão. A cada

degrau que ele subia, a pouca cor que ele tinha se desvanecia.

Assim que o rapaz chegou ao topo da plataforma,

senti um calafrio estranho. Não era igual a nenhuma

sensação que eu havia sentido antes: era pior. Como um

cântico agourento, o medo chegou e me pegou, engolfando-

me em uma neblina cinza e gélida. O terror acelerou as

batidas de meu coração, e as sombras no ginásio se

atenuaram, transformando-se em formas estranhas e

tenebrosas na parede.

''Droga, o que está acontecendo?'', me perguntei,

sentindo o pânico correr pelas minhas veias.

Sacudi vigorosamente a cabeça, uma fraca tentativa de

recuperar a pouca sanidade que tinha. Minha visão estava

turva, a audição abafada, e o estranho palpitar no meu peito

parecia me puxar até o topo da plataforma, onde Líon se

preparava para pular.

Page 61: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

Sem me dar conta do que estava fazendo, olhei na

direção do novato, procurando pelo sinal que o meu corpo

emitia... E foi neste momento que eu o vi.

Para meu espanto, Líon não estava sozinho na

plataforma.

Logo atrás dele - parado com um olhar maligno -

havia um rapaz alto e forte, de cabelos tão vermelhos quanto

o fogo. Ele não usava nada além de uma calça comprida de

brim preta, e eu não sabia o por que, mas ele me parecia

terrivelmente familiar.

De início eu não conseguia encontrar uma razão para

aquele cara estar parado junto com o novato em cima da

plataforma. Mas, antes que eu pudesse fazer alguma coisa, a

minha ficha finalmente caiu.

No exato momento em que Líon tencionava os

joelhos, na beira da grande murada, o estranho se aproximou

e - com uma satisfação sombria - empurrou o garoto...

fazendo o corpo do novato se precipitar e cair erroneamente

em direção à piscina.

Sem pensar em nada, me libertei da força que me

Page 62: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

pregava ao chão e corri o mais rápido que pude. Para meu

desespero, vi o rapaz girar pelo ar como uma gigantesca

boneca de pano, suas mãos e seus braços balançado

estranhamente em volta do corpo.

Me joguei na piscina ao mesmo tempo em que

escutava o som aterrador do choque de Líon com a massa de

água gelada. Com um forte arrepio na espinha, prendi a

respiração e senti o impacto do meu próprio mergulho sobre

a pele.

Quando abri os olhos, tudo em minha volta era de um

azul celeste, surreal. Mergulhei mais à fundo na piscina, as

bolhas produzidas pelos meus movimentos atrapalhando a

minha busca. Então eu o encontrei - esparramado no chão do

tanque, o rosto sereno como se dormisse dentro da água.

Foi assustador o ver ali imóvel, seus cabelos revoltos

contra a água, sua cabeça balançando preguiçosamente sobre

o pescoço.

Com mais duas braçadas, cheguei perto o suficiente

para poder ergue-lo com minhas mãos. Ao tocar o seu pulso,

percebi que os batimentos de Líon ficavam cada vez mais

Page 63: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

lentos. Não perdendo tempo, o puxei para cima, lutando

internamente contra a sensação de derrota que me consumia.

Depois de abraçá-lo pela cintura, nadei com todas as

minhas forças para a superfície. Antes de chegar ao topo, eu

já podia ver os rostos da Treinadora Kara e dos outros alunos

debruçados na margem da piscina, a preocupação e o medo

visíveis mesmo com o rodopiar da espuma à minha frente.

Antes do esperado, a luz artificial do Pavilhão cegou

os meus olhos e uma algazarra de sons incompreensíveis

tapou os meus ouvidos. Incontáveis pares de mãos içaram o

meu corpo e o de Líon para fora do tanque, me fazendo

expelir ruidosamente todo o ar que havia prendido durante o

tempo em que ficara de baixo d'água - e me despertando por

completo to torpor momentâneo no qual estava envolvido.

Sem paciência, escapei rapidamente do grupo que se

inclinava sobre mim e me arrastei para o lugar onde Líon

recebia os devidos cuidados.

- Ele está bem? - perguntei à professora, minha

garganta seca como se estivesse sendo consumida por

chamas.

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- Eu não sei explicar - sussurrou a Treinadora Kara,

examinando o pulso do novato com uma expressão de

angústia.

Com o coração na mão, me levantei e procurei pelo

estranho que havia empurrado Líon da plataforma contra a

piscina. Girei o meu corpo em todas as direções, tentando

encontrá-lo aonde quer que estivesse, mas tudo o que via era

o olhar preocupado dos meus companheiros de classe.

Completamente vencido, praguejei uma maldição

para mim mesmo e me sentei novamente ao lado do garoto.

Seu rosto continuava com uma cor pálida estranha, e seus

olhos fechados eram como cadeados de um diário secreto. Eu

não podia imaginar quem poderia querer o mal dele, mas

qual fosse a identidade do estranho, eu iria encontrá-lo.

62

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63 4. E S P E L H O

- Acho que devemos levá-lo para a enfermaria, não? - Alice

Corvel espiava alarmada a cena por cima do braço de Daniel

Maltha, as mãos apoiadas ingenuamente no ombro

musculoso do rapaz.

- Boa sugestão... - concordou a Treinadora Kara,

avaliando cada aluno da turma com seus olhos puxados –

Mas deve ser alguém que consiga carregar o garoto daqui até

o Prédio Principal com o maior cuidado possível.

- Eu posso levá-lo - me ofereci, mandando a cautela às

favas.

Sem esperar o consentimento da professora, me

levantei em um pulo e ergui Líon como se segurasse um

recém-nascido. No mesmo ritmo, me desviei das pessoas ao

nosso redor e segui na direção da saída. Com um empurrão,

abri uma das folhas de metal que formavam o portão do

ginásio, andando tão apressado que nem parecia que

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carregava uma pessoa de quase 80 quilos no colo.

Mas eu carregava.

E por onde passava, as pessoas pareciam notar este

pequeno detalhe também. Com um suspiro, me esforcei para

fazer uma careta de cansaço enquanto atravessava às pressas

o campus da escola, indo em direção à Enfermaria no Prédio

Principal. Isto não devia importar agora, mas por mais

preocupado que estivesse com o bem estar do novato, não

podia de forma alguma deixar que alguém suspeitasse de

mim mais do que já era de costume.

Mesmo com os solavancos que eu dava pelo caminho

de pedra no pátio, o rapaz não se movimentava um

milímetro sequer. Seus olhos continuavam cerrados

melancolicamente e sua respiração ainda era pesada, como se

ele se esforçasse para fazer uma tarefa tão simples. Não

conseguindo mais conter a agonia, comecei a murmurar cada

vez mais alto os meus pensamentos, esperando

ingenuamente que aquilo ajudasse o garoto em meus braços

de algum jeito.

-Ah, vamos lá cara, reaja! - resmunguei, no momento

Page 67: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

em que eu entrava no corredor da enfermaria.

- Reagir a quê? - uma voz seca me interrogou, me

fazendo parar com o susto.

Olhei abismado para o novato, não acreditando no

que havia escutado. Mesmo conservando a palidez anormal e

respirando com clara dificuldade, Líon parecia cem por cento

melhor. Seus olhos, grandes e curiosos, agitavam-se em todas

as direções e seus braços magros e compridos tentavam

inutilmente se livrar do aperto inconsciente que eu dava.

- Hei, o que está acontecendo aqui? - perguntou Líon,

a confusão estampada em seu rosto redondo.

No mesmo instante, o prof. Novaz - responsável pela

enfermaria e pelas aulas de Biologia - veio correndo na

minha direção, obviamente já avisado por telefone pela

Treinadora Kara.

- Pode deixar, Adrian - ordenou ele, tomando o

novato dos meus braços e voltando para a sala às suas costas -

Eu cuidarei dele partir de agora.

- Não, eu vou com vocês - disse em voz alta, num tom

mais rude do que pretendia.

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O professor se virou brevemente e concordou com

impaciência. Sentindo um estranho puxão na beirada do

estômago, segui os dois pelo corredor e entrei sem

cerimônias na enfermaria. A sala era branca e contava com

apenas uma maca, um armário para os medicamentos e uma

pequena mesa cheia de papéis que deviam pertencer ao

socorrista.

Com uma habilidade impressionante, o jovem prof.

Novaz pôs Líon cuidadosamente sobre a maca, sem

demonstrar ter consciência de minha presença logo atrás

dele. Em poucos minutos, o homem examinou a garganta do

novato, mediu sua temperatura, verificou a pressão e escutou

seus batimentos cardíacos.

Líon observava tudo com uma feição curiosa,

parecendo extremamente encantado com a situação. Nem

parecia que aquele garoto havia quase partido desta para uma

melhor há poucos instantes. Percebendo a minha expressão

especulativa, o prof. Novaz se afastou do paciente, deu a

volta na pequena enfermaria e sentou-se pesadamente na

cadeira logo atrás de sua mesa.

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- Bom - suspirou ele, arrumando a papelada sob a

bancada - pelo visto, toda essa confusão não passou de um

susto.

- Um susto? - Eu mais uma vez falava com o socorrista

mais alto do que na verdade queria - Professor, o Líon

despencou de quase oito metros de altura!

- Eu sei muito bem de onde o aluno Líon caiu - o prof.

Novaz pareceu encontrar um papel pelo qual estava

procurando e se levantou - Mas, pelo exames preliminares,

tudo indica que ele está perfeitamente bem. Agora, se vocês

me permitirem, irei avisar ao responsável do jovem sobre o

ocorrido...

-Não! - Líon exclamou, a voz ainda seca, porém

demonstrando estar bastante consciente da situação.

- Não?...Mas por quê? - o professor se deteve à porta

da enfermaria, fazendo uma careta de espanto à reação

inesperada (e exagerada) do aluno.

- É que... é que... bem - o novato ergueu-se devagar,

encostando sua cabeça na parede branca e colocando suas

pernas para fora da maca - Meus pais devem estar acabando

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de descarregar as nossas coisas na casa nova e... acabamos de

chegar de Dumont... bom, não queria atrapalhar eles com

uma coisa tão boba.

O homem continuou parado, ainda sem entender

aonde o rapaz queria chegar.

- Senhor, acho que deve saber... - suplicou Líon,

passando as mãos pelos cabelos molhados, o constrangimento

estampado em cada gesto - Meu pai e minha mãe passaram

por bastante dificuldades nesses últimos tempos... A última

coisa que eu quero é estragar um raro dia de calmaria para

eles com uma coisa que, segundo o senhor, nem teve tanta

importância assim!

O discurso de Líon parecia ter pego o prof. Novaz de

calças curtas. Por um segundo, ele pareceu refletir sobre o

que o garoto dissera - como se decifrasse uma misteriosa e

difícil mensagem cifrada - até menear molemente a sua

cabeça, demonstrando ter perdido a pequena batalha mental

na qual travou consigo mesmo.

- Se é assim que você quer... - ele entrou de novo na

sala, detendo-se rapidamente na sua pequena bancada – Mas

Page 71: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

você vai me prometer uma coisa: enquanto eu estiver na

secretaria resolvendo alguns negócios, o senhor vai ficar aqui

descansando, O.k.?

- Tudo bem - concordou Líon, claramente

entusiasmado.

- Hum - resmungou ele, olhando com cautela para o

estranho entusiasmo do novato – Adrian, se não for pedir

muito, será que poderia ficar de olho neste rapazinho para

mim, por favor?

- Sim, professor, é claro que eu fico - me prontifiquei,

saindo de perto da parede e me postando perto da maca onde

Líon continuava sentado.

O prof. Novaz encarou mais uma vez o rosto abatido

de Líon, viu as horas e deixou a pequena enfermaria com

passos largos. Logo após, o novato levantou-se da cama e,

com uma determinação assustadora, se virou na minha

direção e me observou - como se os seus olhos fossem na

verdade um par de detectores de mentira humano.

- Como você fez aquilo? - ele me perguntou, sua voz

ainda seca soando muito mais sinistra do que se estivesse com

Page 72: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

o seu timbre normal.

- Fiz o quê? - devolvi com outra pergunta, sabendo

exatamente sobre o quê ele estava falando. Sem mistério

algum, eu podia ver a questão implícita bem diante de sua

testa castanha: Como eu tinha conseguido salvar ele, antes

mesmo que qualquer outra pessoa tivesse notado o que

realmente acontecera?

Bom, na verdade, nem eu sabia. É claro que

suspeitava que tivesse alguma coisa a ver com os meus dons

de Arcano. Mas a questão é que nunca havia sentido nem

presenciado algo como aquilo... nunca havia vivenciado uma

experiência que chegasse ao menos perto daquela. Pra ser

sincero, eu estava tão impressionado quanto Líon devia estar.

E era certo que ele estava.

Por um bom tempo ele me analisou. A sensação de ser

scaneado por inteiro, provocado pelo olhar inquisidor do

rapaz, permaneceu sobre mim no que me pareceu uma

eternidade. No fim, Líon me libertou do estranho poder de

seus olhos, parecendo - no mínimo - conformado com a

minha ''não resposta''.

Page 73: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

- Obrigado - ele disse simplesmente.

- Não à de quê - eu respondi, só agora percebendo que

havia atravessado a metade da escola com um garoto nos

braços e vestido apenas com os ridículos trajes de banho

vermelho-tomate.

Parecendo entender o meu embaraço, Líon sorriu e

voltou a se sentar na maca de vinil negro. Ele arriou a cabeça

e sem querer acompanhei o seu olhar pelo piso claro da

enfermaria, completamente marcado por nossos pés

descalços e molhados.

- Me desculpe, acho que estou sendo rude – disse o

garoto de repente, obviamente tentando acabar com aquele

silêncio constrangedor – Eu me chamo...

- Líon Biel – completei sem pensar, antes mesmo que

o rapaz terminasse de falar – Eu estava no Pavilhão... quero

dizer, no Ginásio quando você chegou.

Rapidamente, o novato se interrompeu, o seu rosto

pálido ganhando um leve tom de roxo ao se lembrar da cena

embaraçosa que o Dir. Nigro o forçou à passar.

- Sinto muito, acho que agora quem foi rude fui eu –

Page 74: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

continuei, percebendo na mesma hora a gafe que tinha

acabado de cometer – Por que não esquecemos estes últimos

instantes e começarmos do zero?... Bom, eu me chamo

Adrian.

- Prazer em conhecê-lo, Adrian – disse Líon,

meneando levemente a cabeça na minha direção como quem

faz uma reverência.

Assim que ele se reergueu, nós dois nos entreolhamos

e – sem nenhum motivo aparente – começamos a rir. Era

óbvio para os dois que nem ele e nem eu tínhamos muito

tato quando o quesito era ''relações interpessoais'', e se nós

continuássemos tentando, o estrago só seria maior. Como se

para provar esta teoria, aos poucos as nossas risadas foram

minguando. Ainda mantínhamos um riso cúmplice nos

lábios, porém a sombra do nosso silêncio pesado de pouco

tempo atrás começava a ameaçar reinar novamente na

enfermaria.

- Sabe, por que você não quis realmente chamar os

seus pais? - me ouvi interrogando, antes mesmo de pensar

em me refrear. Era algo estúpido para se perguntar, e eu

Page 75: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

tinha plena consciência que só estava fazendo aquilo para

que o silêncio não caísse de vez sobre nós. Só que, além disto,

havia algo que estava me incomodando. Eu sabia que ele não

havia simplesmente escorregado... Mas eu tinha que conter a

minha língua para não falar demais.

- Acho que você, assim como metade dessa cidade,

deve saber, não? - ele murmurou, os olhos ainda detidos no

chão - Meu pai e minha mãe mal se recuperaram do meu

último susto... Não quero que eles saibam de mais um erro

meu.

- Não foi um erro seu! - rebati, tentando descobrir o

que Líon achava que eu sabia, ao mesmo tempo em que me

lembrava com clareza do que tinha acabado de acontecer. -

Você estava apenas fazendo o que a doida da Treinadora Kara

havia pedido quando...

Antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, eu

calei a minha boca. Só pela cara do novato, dava para ver que

eu começava a falar demais. De alguma forma sinistra,

ninguém além de mim havia visto o cara estranho na

plataforma. E aquilo começava a me assustar ainda mais.

Page 76: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

Líon me encarou novamente, mas desta vez seu rosto

não indicava que ele me avaliava – e sim, indicava que ele

admirava o estranho fato de eu demonstrar estar preocupado

com o seu bem estar. O que, sem sombra de dúvidas, me fez

corar como um louco.

- Seus pais devem ter muito orgulho de você.

- Meu pai - corrigi, olhando tão atentamente para o

chão que podia vislumbrar as falhas nos rejuntes do piso.

- Droga, me desculpe - Líon se deu um forte tapa na

testa, esperando que isto soasse como uma forma de punição

para o seu deslize. Após um segundo, ele limpou a garganta e

prosseguiu - Se bem que... hoje em dia é muito normal

vermos pais separados. Em Dumont, eu tinha vários amigos

na mesma situação que a sua.

Mordi meus lábios com força, para tentar conter o

riso desenfreado que surgia de novo. Ele estava entendendo

tudo errado.

- Não Líon, meu pai não é separado... - expliquei,

conseguindo tirar minha atenção da trama de rejuntes – Ele

na verdade é viúvo.

Page 77: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

- Pausa para o momento ''me abra um buraco no chão

que eu quero fugir!''- Líon deitou-se na cama com força, a

mão esquerda na testa e a direita em seu pescoço, tentando se

matar de duas formas diferentes. - Deus, eu não dou uma

dentro!

Me encostei na parede e esperei o novato terminar de

se auto-flagelar. No fim, ele se recompôs, respirando

lentamente e murmurando mais mil desculpas para mim.

- Está tudo bem - respondi com sinceridade - Eu não

tive muito contato com ela.

O que era cruel de se dizer, eu reconheço, mas era a

mais pura verdade. Só que isto fez com que, mais uma vez,

nós ficássemos calados - só encarando um ao outro – sem

saber como continuar.

- Quando foi que ela... você sabe, se foi? - eu podia

ver todo o arrependimento de Líon por perguntar algo tão

pessoal através apenas de sua expressão. - Se não quiser

responder, eu entendo! - acrescentou ele de forma rápida.

- Assim que deu a luz à mim. - respondi, mesmo

sabendo que não tinha nenhuma obrigação de contar aquilo

Page 78: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

a ele.

Mas, no fundo, eu sempre quis contar aquilo.

Na verdade, eu sempre quis contar qualquer coisa

para alguém. E além do mais, Líon foi o único - além de

Cirus - a me fazer uma pergunta tão pessoal em todos esses

meus dezoito anos. Acho que ''devia'' essa resposta a ele,

como forma de gratidão por um momento tão incomum.

Ficamos em silêncio mais uma vez, os dois virados na

direção do armário de remédios, por um bom tempo. Assim

como acontecia todas as vezes que eu me recordava de minha

mãe, fechei os meus olhos e tentei puxar alguma lembrança

em que ela estivesse envolvida. E como sempre, só o nada

preenchia a minha mente - ocupado apenas pela imagem das

fotos espalhadas por nossa casa-de-bombeiros e pelo nome

presente em minha certidão de nascimento: Helena Regis.

- Acredite, se sua mãe soubesse o que você fez por

mim hoje, ela teria muito orgulho de você - a voz de Líon já

devia estar voltando ao normal, mas ao dizer aquilo, eu podia

jurar que ela havia falhado - Pode ter certeza disto.

Antes que eu pudesse agradecer, o prof. Novaz entrou

Page 79: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

na enfermaria a passos largos, se postando mais uma vez à

frente de Líon e o examinando rapidamente.

- E agora, como você está?

- Acho que bem melhor - o rapaz encolheu os

ombros, a careta de curiosidade e inocência de volta a sua

face.

- Hoje realmente foi um dia difícil para você – o

professor sentou-se em sua mesa, pegou um pedaço de papel

com o timbre da Academia e começou a escrever - Por que

nós não aproveitamos e lhe damos uma folga?

Líon fitou o socorrista sem palavras. Em um pulo, ele

se levantou e pegou a licença assinada pelo prof. Novaz com

as mãos trêmulas e uma expressão arrebatada.

- Obrigado, obrigado, obrigado - ele repetia enquanto

me acompanhava de volta para o corredor, o rosto afogueado

de adrenalina. Nós começamos a caminhar para a saída

quando, num surto de inspiração, ele parou, girou nos

próprios calcanhares e se inclinou de volta para a enfermaria.

- Ah, senhor... - O rapaz se dirigiu novamente à sua

bancada, a face tristonha e abatida. - Posso lhe pedir um

Page 80: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

outro favor?

- Claro que pode - O professor fitou Líon sem

entender.

- Hum, o senhor sabe que eu não quero fazer muito

alarde sobre o ''incidente da Ed. Física'' - ele revirou os olhos

deliberadamente, como se o seu quase afogamento estivesse

em um passado bem distante - Mas eu não tenho muita

certeza se consigo ir sozinho para casa...

Parecendo cansado e distante dali, o socorrista pegou

mais um papel timbrado, rabiscou de uma forma ligeira sobre

ele, e depois o entregou a Líon. Com um último sorriso, o

aluno agradeceu a ajuda e se voltou para mim, um brilho

triunfante iluminando o seu rosto.

- Aqui - ele me estendeu o papel, quando já estávamos

de volta ao corredor - sua carta de alforria por hoje.

Logo que eu terminei de ler o que havia escrito nele,

tive que parar de andar. Eu estava em choque. Não podia

acreditar no que estava em minhas mãos.

- Você arranjou para mim uma dispensa escolar? -

perguntei com a voz entrecortada pela surpresa. - Eu nunca

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tive uma dispensa escolar em, tipo, toda a minha vida!

- Bom, para isso, você vai ter que me levar para casa -

ele levantou as mãos, como se isso pudesse ser um impasse -

mas, como depois vai ter um dia inteiro de folga... Acho que

estou meio que pagando a minha dívida por... bom, por tudo

o que você fez hoje!

Continuei parado no corredor, olhando do papel para

Líon. Após uns segundos, o novato estalou os dedos diante de

mim, olhou ao redor e disse:

- Hei, cara... Acho que você não percebeu que

estamos no meio do corredor, usando apenas sungas e

camisetas!

Sentindo um grande sorriso tomar conta do meu

rosto, acompanhei o rapaz de volta para os vestiários do

Pavilhão da Tortura, mais apressado do que antes.

Mesmo usando aquela roupa ridícula, eu me sentia

bem. Pois, se houvessem mais pessoas como o Líon

estudando na Constantine antes dele chegar - sem duvida

alguma - a Academia não teria sido o lugar infeliz que foi

para mim nestes últimos onze anos.

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81 5. O A N J O

Líon e eu saímos do Prédio Principal da Academia

Constantine no exato momento em que o sino da torre do

relógio anunciava para todo o quarteirão o começo do

segundo período. O sol estava apino, mas como de costume,

o vento ártico varria a rua da escola, que se encontrava

deserta aquela hora do dia.

- E então - puxei assunto, enquanto terminava de

abotoar meu agasalho por cima do uniforme - você mora

muito longe daqui?

- Não muito - disse Líon - mas você não precisa

realmente me levar pra casa... Eu só estava brincando.

- Tudo bem, eu levo mesmo assim... - completei,

seguindo o caminho que ele tomava - vai que você atravessa

a rua sem a devida atenção e não tem niguém lá pra te salvar

do atropelamento iminente?

Olhei sarcasticamente para o novato, no mesmo

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instante em que ele se virava para mim e me mostrava o dedo

médio - o que foi muito grosseiro, não nego, mas me fez cair

na gargalhada. Afinal, mesmo quando estava aborrecido,

Líon era uma pessoa fácil de se lidar. E diferente dos outros

garotos de Ventura, ele não parecia esperar que eu lhe

transmitisse algum tipo de doença mortal ou qualquer coisa

do tipo.

- Bom, não pode negar que há uma possibilidade... -

continuei, logo depois de ter certeza que ele parecia não estar

mais irritado. - e que seria realmente útil se houvesse alguém

por perto.

- Sabe, você tem razão - concordou Líon de má

vontade - São poucas as pessoas que tem a oportunidade de

conferirem o meu ''pendor para desastres'' logo no dia em

que me conhecem.

- Então devo ficar honrado? - perguntei, a expressão

sarcástica ainda em meu rosto e em minha voz.

Só pela careta de Líon, percebi que ele estava falando

sério quanto a história de ''pendor para desastres''. Sem

sombra de dúvidas, eu havia encontrado um concorrente

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sério para o prêmio de Azarado do Ano. Só que tinha certeza

absoluta que a má sorte dele só não era maior que a minha

por um mero detalhe: Ele não precisava se preocupar em

esconde-la toda vez que botava os pés para fora da cama.

Depois de atravessarmos duas avenidas e percorremos

quatro blocos, entramos em uma rua calma e arborizada. Ela

era composta basicamente de residências altas e estreitas, os

jardins sem muro se resumindo a um quadrado na calçada, as

casas separadas umas das outras apenas por pequenos vãos

entre as paredes - assim como todas as áreas residenciais da

cidade.

Eu conhecia bem aquele lugar. Usando como

referência a vista panorâmica que eu tinha do meu telhado,

aquela parte de Ventura ficava atrás da minha casa, duas

quadras abaixo.

Era engraçado imaginar que, hoje pela manhã, eu não

estava com a mínima vontade de ir para a escola e, agora, eu

estava contando as horas para que o dia seguinte chegasse

logo. Como eu imaginaria que iria conhecer o primeiro aluno

decente da Constantine no meu último semestre lá?

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Antes do esperado, nós já havíamos chegado à

residência de Líon e estávamos parados em frente à pequena

escada de entrada da morada dos Biel. Eu estava prestes a me

despedir do garoto quando algo surreal me paralisou: um

vulto escuro e baixo surgiu no batente da porta, um silvo

agudo escapando de suas presas à mostra. Antes que pudesse

pensar em fazer alguma coisa, a sombra negra arqueou o

corpo e saltou na minha direção, suas garras longas e afiadas

prontas para perfurarem o meu rosto.

Me preparei psicologicamente para sentir a dor aguda

do ataque... mas não foi o que ocorreu. Com uma agilidade

inesperada, Líon aparou o vulto com as mãos e o aninhou em

seu colo. Foi só então que eu percebi que a coisa que havia

acabado de tentar me atacar não passava de um gordo e feio

gato preto de olhos amarelos.

- Ai, ai, ai! O que foi isso Sortudo? - Líon ralhava com

o animal, mas o bichano continuava a me observar irritado -

O papai já não disse que não se deve atacar às visitas?!

- Papai? Sortudo? - eu sabia que meu rosto devia estar

em choque. E o gato continuava me encarando ferozmente,

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os pelos da nuca eriçados e suas pequenas presas

arreganhadas como uma placa de aviso.

- Sim, ele é meu - respondeu o novato, ainda distraído

em sua tentativa de acalmar o felino - Ganhei de presente da

minha irmã, Serina... uma brincadeira com toda a história da

minha ''má sorte''.

Bom, se Líon estava tentando mudar a sua fortuna, eu

tinha absoluta certeza que ter um gato preto como bicho de

estimação não estava ajudando muito. Não que eu não goste

de gatos - pelo contrário, são eles que não gostam de mim!

Uma vez, quando eu era menor, um gato de rua

tentou arrancar os meus olhos só por que passei perto

demais. Depois do episódio, meu pai me explicou que

geralmente animais e insetos podiam reconhecer quando

uma pessoa era completamente normal ou era ''tocada'' por

algo sobrenatural. O único problema nisto estava no fato de

que geralmente os gatos (assim como a maioria dos seus

irmãos felinos) eram os únicos que não sabiam reconhecer

quando o ''toque'' significava ser algo bom ou ruim - o que os

deixam arredios e violentos sempre que se deparam com algo

Page 88: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

que não consideram natural.

Resultado: não importa se você é um Arcano ou algo

muito pior, gatos sempre irão querer acabar com a sua raça.

Enquanto Líon tentava inutilmente acalmar os ânimos de

Sortudo, resolvi admirar um pouco a faixada da casa dos Biel.

Assim como os outros prédios da rua, a construção era

de um tom escuro, com o telhado cor-de-chumbo em

diagonal, inclinado na direção da entrada, e o canteiro ao

lado da pequena escada repleto de flores coloridas. Eu não

podia enxergar muita coisa do seu interior - quase todas as

janelas estreitas estavam cobertas por finas camadas de

cortinas de seda clara.

Quase todas... exceto uma.

Logo acima da entrada, uma janela se encontrava

ligeiramente entreaberta. As cortinas pendiam livres atrás do

vidro, formando uma pequena brecha pela qual podia-se ver

o teto rebuscado de um quarto e a luminária delicada fixada

no centro. Sem saber muito bem o por que, fixei o meu olhar

naquela direção e não desviei mais. Parecia que uma estranha

força me conduzia naquela direção, como por encanto.

Page 89: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

Não era a mesma sensação que eu sentira na piscina

com o Líon. Muito pelo contrário. Era como se todo o meu

instinto quisesse ficar parado ali, só admirando aquele pedaço

do cômodo, sem ver o tempo passar.

E foi isto que eu fiz, por longos minutos. Parte de

mim ainda podia vislumbrar a pequena luta do novato com o

seu gato, e outra pequena parte parecia estar atenta ao fato de

eu estar parado no meio de um rua completamente estranha.

Porém, todo o conjunto dominante, desde os meus

nervos até a consciência, pareciam estar interligados àquela

janela - como se esperassem que algo grandioso e

surpreendente pudesse acontecer a qualquer instante.

E para o meu total espanto, aconteceu.

Detrás do véu de seda, um rosto belo e delicado como

o de um anjo surgiu, observando a rua deserta. Uma longa

cascata de cabelos cor-de-chocolate emolduravam a face

estranhamente perfeita, sua pele castanha irradiando

fracamente os raios de sol que se infiltravam para o quarto

pela brecha da janela. Seus olhos escuros e intensos

admiraram a rua de ponta à ponta, até que eles finalmente

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recaíram sobre mim - aprisionando-me por completo.

A ligação estava feita. A garota e eu nos encaramos

por um longo tempo, e eu já podia sentir no meu rosto o

fluxo repentino de sangue se formando. Ela me observava

com as sobrancelhas cerradas, como se tentasse me

reconhecer de algum lugar - a mesma sensação que eu sentia

parado na calçada. Para mim, nada ao redor importava. Tudo

o que eu precisava era ficar ali, admirando aquele ser

celestial à minha frente.

Nosso pequeno momento parecia estar durando uma

eternidade. A garota-com-rosto-de-anjo continuou a me

olhar e eu retribuía na mesma intensidade. Após mais um

minuto, ela mordeu os lábios rosados e balançou de leve a

cabeça, como se tentasse forçar a si mesma a voltar à

realidade. Com um movimento rápido, a menina se levantou

de onde estava e fechou as cortinas - assim quebrando

bruscamente o estranho elo que havia se formado entre nós.

Sem fôlego, fechei os olhos e também sacudi a cabeça.

- Hei cara, você está legal? - Líon me encarava

preocupado, o bichano em seu colo (apesar de ainda emanar

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uma áurea ameaçadora) muito mais controlado.

Balancei afirmativamente a cabeça como resposta. As

coisas ao meu redor já haviam voltado ao normal. Aquilo não

devia ter passado de um breve segundo, mas para mim foi

como se tivesse durado o dia inteiro. Mesmo estando ainda

descomposto, meu cérebro trabalhava a uma velocidade

surpreendente. Durante um breve instante para

considerações, acabei concluindo o óbvio: a garota na janela

só podia ser uma única pessoa - Serina, a irmã de Líon... Mas

isto não explicava o por quê da sensação de eu à conhecer de

algum lugar.

- Líon, por acaso você e a sua família já vieram para

Ventura alguma vez? - antes de terminar a pergunta, eu já

havia me arrependido de a ter feito.

- Hum, não - Líon franziu a testa com desconfiança,

mas continuou - Para ser sincero, mesmo morando em

Dumont, eu nunca imaginei vir para Ventura.

O novato acariciou ternamente o gato em seu colo e

suspirou. Estava na cara que se mudar para Ventura não

havia sido nada legal para o garoto. E eu não podia muito

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menos culpá-lo por se sentir infeliz aqui. Afinal, eu mesmo

queria meter o pé desta cidade - que apesar de linda – era

recheada de pessoas falsas e interesseiras.

- Acho que está na hora de eu entrar - disse Líon,

ainda acariciando Sortudo.

- É, você tem razão - concordei, satisfeito por ele não

ter maldado nenhum pouco a minha pergunta. - Acho que

nos vemos amanhã na escola, não?

- Com certeza! - o novato abriu um enorme sorriso, e

girou lentamente em direção a porta.

Esperei Líon entrar e trancar a porta de entrada para

dar uma última olhada na janela do quarto de Serina e voltar

para casa. Eu estava cansado e tinha a esquizita impressão de

que minha cabeça pesava mais do que o resto do meu corpo.

Flashes dos momentos na piscina e do rosto da irmã de Líon

iam e vinham na minha mente, e cada músculo meu parecia

estar esticado e retesado como se eu acabasse de percorrer

uma maratona.

Sem duvida alguma, aquele foi o dia mais

movimentado de todos os meus 18 anos em Ventura. Eu não

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entendia muito bem, mas parecia que a minha vida só havia

começado naquela manhã - como se todo o resto não passasse

de um pesadelo, uma sombra indistinta em meus

pensamentos.

Dei uma última olhada para a casa dos Biel e virei a

esquina. Por mais excitado, impressionado, desconfiado e

cansado que estivesse, tudo o que eu queria naquele ponto

era estar em casa - esparramado sobre o sofá da sala,

aproveitando cada segundo deste meu inesperado dia de

folga.

91

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93 6. Q U E B R A C A B E Ç A

Assim que cheguei em casa, corri para cozinha. Já se passava

de meio-dia, e eu podia sentir o meu estômago se

contorcendo, protestando com fome. Abri a geladeira e

procurei por algo que pudesse ser feito rapidamente. Por

sorte, havia um pouco da lasanha do jantar da noite anterior.

Peguei a vasilha, tirei a tampa e coloquei no microondas.

Enquanto o meu almoço esquentava, enchi um copo

com refrigerante e me sentei à mesa da cozinha. Não existia

uma boa explicação, mas a casa parecia mais colorida. Era

como se o sol iluminasse todas as janelas de uma vez, dando

um brilho dourado e uniforme para os cômodos. Fiquei tão

distraído com esta minha nova percepção do lugar, que quase

caí da cadeira quando o timer do microondas soou avisando

que a minha comida estava pronta. Ainda um pouco

estabanado pelo susto, retirei a vasilha do eletrodoméstico e

despejei a lasanha fumegante sobre um prato. A fumaça que

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se desprendia da massa borbulhante parecia formar para mim

vultos espiralantes, que se contorciam e se elevavam em

minha direção – iguais às sombras que eu havia visto um

pouco antes de Líon cair na piscina.

''Mais que bobagem'', pensei alto, levando a minha

refeição para a sala e ligando a televisão. Não havia nada de

interessante àquela hora. Depois de passar os canais umas

duas vezes, sem encontrar algo que me chamasse a atenção,

resolvi desligar o aparelho e comer o meu almoço em

silêncio. Apesar da lasanha estar extremamente quente, a

engoli com uma voracidade animalesca.

Logo depois da última garfada, me arrependi do meu

afobamento. A comida estava à tal temperatura que parecia

que a sala estava sendo consumida por um incêndio de

chamas invisíveis. Tentando consertar o estrago, bebi o

refrigerante de um só gole, ao mesmo tempo em que tirava o

paletó e a camisa do uniforme. Não adiantou nada – meu

corpo ainda transpirava e minha garganta parecia mais seca

do que nunca.

Sem pensar em nada, voei escada acima, na direção do

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banheiro. Eu só precisava de um banho... talvez aquilo

resolvesse. Terminei de tirar a roupa e me enfiei em baixo do

chuveiro. De início, a ducha diminuiu a minha temperatura

elevada - mais não melhorou em nada na minha agitação.

Mas isto realmente não me surpreendia.

Em uma única manhã havia acontecido mais coisas do

que em toda a minha vida em Ventura. Conhecer Líon, o

salvar de um afogamento iminente e ainda por cima ter uma

reação estranha só de ver a irmã dele não eram coisas que eu

esperava viver quando saí de casa pela manhã. Depois de

tudo aquilo, parecia surreal que até a noite passada minha

maior preocupação era um mísero pesadelo.

Coloquei meu uniforme e minha toalha no cesto de

roupas sujas e vesti meu velho moletom. Escovei os dentes

com força, sem realmente ver meu reflexo no espelho, e saí

do banheiro não pensando muito no que ia fazer. Deixei que

minhas pernas tomassem o controle do meu corpo, guiando-

me pelo corredor do 2º andar, me levando na direção do meu

quarto. Antes que eu percebesse alguma coisa, já havia

entrado no cômodo e me sentado de frente para o meu

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cavalete de desenho – um velho presente que meu avô,

desenhista de mão cheia, havia me dado um pouco antes de

morrer. Com uma reação natural, peguei um lápis esquecido

no móvel e repousei a minha mão sobre o papel em branco.

Foi automático. Assim que a ponta do grafite tocou a

superfície lisa, minhas mãos começaram a traçar linhas e

formas. Toda a minha agitação parceia fluir unicamente para

aquela zona do meu corpo, os movimentos cada vez mais

precisos e retos. Parte do meu cérebro sabia muito bem o que

eu estava desenhado, mais a outra parte - a consciente – se

surpreendia ao ver os detalhes se formando diante dos meus

olhos.

Trabalhei com afinco por horas, às vezes apagava um

canto e o redesenhava. A imagem tomava conta de todo o

papel, e assim que finalmente minha mão traçou a última

sombra, não pude deixar de arquejar - ao mesmo tempo

espantado e maravilhado. Pois, impresso à minha frente

como uma fotografia em preto-e-branco, estava a cópia exata

da janela do quarto de Serina, a figura perfeita da irmã de

Líon parcialmente oculta pelas cortinas.

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Por um curto espaço de tempo fiquei adimirando o

desenho, a sombra da estranha ligação daquela manhã me

conectando a imagem. Só o fato do rosto de Serina parecer

ter sido esculpido por anjos já era motivo suficiente para

prender a minha atenção... Mas algo naquele rosto não me

era estranho. A certeza disto martelava de forma insistente

em minha cabeça, o por que de minha agitação ficando mais

claro.

Ela era um enigma. E eu tinha que desvendá-lo.

O barulho da porta de entrada sendo forçada me

despertou do devaneio. Instintivamente, olhei para o relógio

luminoso na cabeceira da minha cama e pulei da cadeira. Já

eram seis da tarde, e eu não havia feito nada além do

desenho. Com pressa, guardei a ilustração da janela de Serina

em uma pasta que estava sobre a minha escrivaninha e corri

para a sala.

- E aí, garoto? Parece que o seu primeiro dia não foi

tão ruim quanto esperava - Cirus me encarou sorridente,

assim que aterrizei no piso sob o poste de emergência.

- É, mais ou menos isso - respondi baixo, encolhendo

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os ombros - Acho que fiz um colega.

que eu terminei de falar, meu pai congelou no lugar.

Com um movimento lento, ele girou nos calcanhares e me

observou estupefato.

- Vo.. você disse... um colega? - perguntou Cirus, os

olhos esbugalhados - Você está me dizendo que Adrian Regis

fez um colega?

- Bom, foi o que eu disse! - resmunguei, cruzando os

braços sobre o peito.

- Nossa, acho que estou vendo tudo girar!

Não pude deixar de revirar os olhos enquanto Cirus

fingia perder o equilíbrio e se apoiava na estante da televisão.

Era mais uma pérola dos nossos momentos de Filho versus

Pai. Sem perder tempo vendo a gracinha do meu responsável

crianção, cruzei a sala em passos largos e me sentei

pesadamente na poltrona ao canto.

- Se o senhor já terminou de me fazer de bobo...

Cirus se permitiu um último sorriso e pendurou suas

chaves no gancho ao lado da porta. Com passos firmes, ele

caminhou na direção do sofá à minha frente, acomodando-se

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pesadamente com um olhar ainda divertido.

- Tudo bem, tudo bem - murmurou ele, despenteando

os cabelos negros de uma forma marota - Então, o que você

quer saber?

Eu sabia que ele faria esta pergunta, mas como

sempre, a sua falta de rodeios ainda me impressionava. Me

controlei, respirando fundo, então resolvi explicar tudo -

desde o começo, nos mínimos detalhes. Contei como conheci

Líon no pátio, falei de como ele foi paparicado pelo Dir.

Nigro até chegar ao ponto principal da conversa: o incidente

no Pavilhão da Tortura.

Durante toda a minha descrição do atentado, o rosto

de Cirus se transformou de divertido para apreensivo.

Quando terminei minha breve narração, ele fechou os olhos

de forma concentrada e balançou vagarosamente a cabeça

para cima e para baixo, como se coloca-se engrenagens

invisíveis para funcionar só com a força do pensamento.

Continuei sentado na poltrona, meus braços

envolvendo minhas pernas, esperando pacientemente o

veredito dos fatos ocorridos naquela manhã - coisa que

Page 102: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

aconteceu meio minuto depois.

- Hum, interessante - começou Cirus, abrindo os

olhos - Você disse que sentiu algo parecido como um imã lhe

atraindo para o garoto Líon, um pouco antes dele escorregar

da plataforma?

- Sim...

- E também que viu um garoto... alguém que você

nunca viu na vida e que, pelo visto, só você o havia notado...

empurrando o seu colega do alto da plataforma?

- Sim... - respondi, desta vez mais nervoso do que

antes.

- Hum, interessante - repetiu Cirus, pondo-se de pé e

caminhando na direção da janela à minhas costas – Pode

parecer estranho, mais não exite outra explicação!

Meu pai se virou para mim e, desta vez, sua face trazia

uma expressão de surpresa. Sua boca se entreabriu

boquiaberta e seus olhos cinzentos pareciam querer saltar das

órbitas.

- Filho - disse ele, num tom mais baixo que um

sussurro - acho que o seu colega está sendo perseguido por

Page 103: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

um... demônio.

- O quê?! - exclamei, alarmado demais só de imaginar

algo como aquilo.

O que Cirus estava me dizendo não fazia o menor

sentido. Eu já havia visto um demônio antes. Para falar a

verdade, eu já havia visto uma dezenas deles. E uma coisa era

certa: todos, sem exceção alguma, não lembravam em nada o

garoto que empurrara Líon da plataforma da piscina.

- Pai, isto não pode ser possível – resfoleguei,

começando a sentir o ar me faltar nos pulmões - Eu já vi

demônios antes, e tenho certeza que saberia reconhecer um.

Mas o cara da Constantine... não, ele parecia tão

comum... tão humano!

Cirus meneou a cabeça em consentimento. Ao que

parecia, ele esperava que eu tivesse aquela reação.

- Eu sei, eu sei - concordou ele, ainda balançando a

cabeça - Eu prestei bastante atenção ao seu relato. Mas

Adrian, acredite, a maioria dos demônios que você já viu

nesses seus dezoito anos, por mais breve que foi o momento,

já foram exatamente como o rapaz misterioso da sua escola.

Page 104: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

Eu ainda não podia acreditar. Como se fosse possível,

expeli o pouco ar que me restava nos pulmões e apertei ainda

mais o abraço que dava em minhas pernas. Percebendo a

minha reação, Cirus se postou no braço da poltrona aonde eu

estava e começou a afagar ligeiramente o topo da minha

cabeça.

- Fica calmo, amigão, isto tudo pode ser resolvido bem

rápido - prometeu ele, agitando um pouco mais rápido os

meus cabelos, se esforçando ao máximo para demonstrar

confiança no que estava dizendo. - Afinal, ao que parece, o

demônio de Líon ainda está em um estágio inicial... E como

dizem, quando o mal é descoberto no começo, ele pode ser

neutralizado mais rápido.

- ''O demônio de Líon ainda está em um estágio

inicial'' - repeti , não entendendo patavinas sobre o que meu

pai estava falando - O que o senhor quer dizer com isso?

Avaliando a minha confusão, Cirus se levantou do

braço da poltrona e se postou na minha frente com os braços

cruzados. Eu reconheci aquele movimento. Significava que

meu pai estava pronto para me dar mais uma ''Lição de Como

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Ser Um Arcano''.

- Adrian - começou ele, sua voz já no modo

''professor'' - você sabe como ''nasce'' um demônio?

Mesmo tentando me controlar, tive que revirar os

olhos diante da pergunta. É claro que eu sabia como os

demônios haviam nascidos. Acho que até quem não era um

Arcano sabia. Porém, avaliando a minha rápida conclusão,

Cirus balançou a sua cabeça negativamente e continuou:

- Não, não estou falando dos Originais, muito menos

dos Semi-demônios ou os das Classes Inferiores... O que

estou perguntando é se você sabe como os demônios

Comuns, aqueles que nós enfrentamos no dia-a-dia, surgem?

Aquilo sim me pegou de surpresa. Que diferença

poderia haver entre os Originais e os outros tipos de

demônios? Mas uma vez naquele dia parecia que pai falava

uma língua que eu não conhecia.

- Eu acho que não estou entendendo aonde o senhor

quer chegar - confidenciei, a confusão crescendo cada vez

mais em minha mente.

Com outro aceno, Cirus se distanciou de mim e

Page 106: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

postou-se no sofá mais a frente, a resignação de ter que

explicar algo que parecia óbvio para ele estampada em sua

face.

- Filho - Cirus piscou, o meio sorriso brincando em

seus lábios - os seres que enfrentamos não são os mesmos das

Primeiras eras. Assim como o pessoal do nosso lado, eles

também se dividiram e formaram novas raízes. Os demônios

que chamamos de Comuns, e que nós enfrentamos tão

rotineiramente hoje em dia, só podem atuar no Mundo

Material... Diferente dos Originais, que são muito mais

poderosos e perigosos.

Assenti devagar, começando a entender o que ele me

falava.

- Então, como nascem esses ''demônios Comuns''? -

perguntei, já tentando imaginar qual seria a resposta.

- Bom, é uma história um pouco complexa - confessou

Cirus, encolhendo os ombros ligeiramente – Basicamente,

todos eles já foram humanos.

- Já foram o quê?! - exclamei, o choque cobrindo a

minha face.

Page 107: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

- Isso mesmo, já foram humanos - repetiu meu pai,

não alterando o seu tom calmo - Na verdade eles são

justamente isto: Humanos que morreram mas que não

completaram a passagem devido a algum empecilho.

Empecilho? Que tipo de empecilho poderia poderia

aprisionar alguém na forma eterna de uma criatura das

trevas?

- Geralmente, o rancor - continuou Cirus, antevendo

a minha pergunta antes mesmo de fazê-la - ou o ódio

extremo. Somente esses dois sentimentos poderiam ter o

poder de confinar uma alma aqui na terra e transformá-la em

um demônio, mesmo o corpo dessa pessoa estando morto.

- Mas isto é horrível! - exclamei, o choque e o medo

presentes tanto na minha voz quanto em meu rosto.

- Eu sei - concordou meu pai, o olhar mais penetrante

a cada palavra - Mas é a verdade. Quanto mais essa alma

guarda este rancor, ou este ódio, mas ele se transforma em

um ser negro. Por isso o jovem que você encontrou lhe

pareceu diferente dos outros demônios que encontramos. Ele

ainda está no começo do processo... ainda há chances de

Page 108: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

intervir sem danos piores.

''Danos Piores''. Agora eu conseguia enchergar o que

essas palavras significavam. E, tenha certeza, eu não desejava

esse destino para o meu pior inimigo - muito menos Oliver.

- O que vamos fazer? - questionei por fim, a pressão

em meus pulmões mais dolorosa do que nunca.

- Hoje, nada - afirmou Cirus, pondo-se de pé e indo

em direção à cozinha da nossa casa de bombeiros – Amanhã,

eu vou procurar no meu intervalo alguma peça que esteja

faltando nesse nosso pequeno quebra-cabeça. Enquanto isso,

quero que você fique de olho nesse Líon. Por mais que eu

ache que o garoto-demônio possa demorar um pouco para

agir novamente, é melhor estarmos preparados para qualquer

surpresa, não?

Concordei molemente com a cabeça, o cansaço e a

força das revelações desta noite fazendo um grande esforço

contra as minhas costas. Antes que eu pudesse pensar em

fazer alguma coisa, meu pai voltou a se sentar no braço da

poltrona ao meu lado, o olhar cintilando estranhamente à luz

do anoitecer.

Page 109: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

- Tudo vai ficar bem, O.k.? - murmurou ele, ao

mesmo tempo em que dava palmadinhas desajeitadas em

minhas costas - Acho que tivemos um longo dia, não? Por

que você não vai lá pra cima descansar um pouco enquanto

eu preparo o jantar para nós dois?

Era tudo o que eu precisava. Sem dizer uma palavra,

me levantei da poltrona e fui para o meu quarto. Assim que

entrei no cômodo, me atirei na cama e enfiei minha cara no

travesseiro, sem me preocupar em ascender a luz. Pelo o que

eu podia ver, o céu exibia profundos tons púrpuras e já estava

escuro o suficiente para que os lampiões de ruas estivessem

acesos.

Agora já estava bem explícito o que havia acontecido

no Pavilhão de Tortura. A questão era que a resposta havia

me deixado mais encucado do que a própria pergunta. Eu

não me sentia nem um pouco relaxado, muito pelo contrário,

estava ainda mais apreensivo.

Então Líon estava sendo perseguido por um demônio

psicótico? Como a única pessoa legal que eu havia conhecido

na Constantine poderia ser o objeto de ira de uma criatura

Page 110: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

tão maligna?

Com o passar do tempo, fui sentindo meu corpo mais

pesado e minha mente mais leve. Eu sabia que logo a

inconsciência iria chegar, mas será que eu queria realmente

dormir? Tentando não pensar no assunto, puxei minhas

cobertas e me acomodei na cama. Entre as dúvidas que eu

tinha sobre o presente e o meu pesadelo, eu ficava com o

segundo. Pelo menos, com ele eu só tinha tinha que me

preocupar durante a noite.

E foi assim que – ao tentar não me preocupar com

nada - minhas pálpebras foram ficando cada vez mais pesadas

e, junto com o sereno da noite, o sono chegou.

108

Page 111: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

109 7. V I S I T A N T E

Foi uma noite longa, com pouco descanso para mim.

Assim que os primeiros raios de sol cruzaram as

densas nuvens que cobriam os céus de Ventura, pulei da

cama sem cerimônia alguma e corri para o quarto de Cirus.

Para minha decepção, meu pai já não estava mais em casa.

Tudo que havia no cômodo dele era um pequeno pedaço de

papel recostado sob a cama arrumada e os simples dizeres

escrito às pressas:

Tive que sair...

Chamado de Emergência. Me desculpe.

Olhando desolado para o recorte dobrado em minhas

mãos, voltei para o meu quarto e me obriguei a vestir o

Page 112: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

uniforme antiquado da Constantine.

Por mais receoso que estivesse até o momento com o

dia que iria enfrentar, eu sabia que tinha dado a minha

palavra à meu pai - uma palavra de Arcano -, e não havia

chances de burlar o acordo. Além do que, por mais perigoso

que pudesse ser estar com Líon neste exato momento, uma

boa parte de mim realmente queria ver o garoto de novo...

(sem contar a outra parte que estava de fato fascinada e

intrigada pela irmã dele).

E foi neste estado de espirito pra lá de divido que eu

resolvi acabar com aquela lenga-lenga e me dirigir para a

escola de uma vez. E foi neste exato momento que eu escutei

o estranho barulho de algo caindo com estrépido no andar de

baixo.

Assim que o som alto e metálico chegou aos meus

ouvidos, todo o meu corpo se enregelou. Eu não sabia

explicar o por que, mas eu podia sentir o medo começar a

invadir a minha corrente sanguínea. ''Se meu pai saiu, quem

poderia ser?'', eu pensava, não querendo imaginar o que

poderia estar me esperando no 1° piso.

Page 113: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

Quase que involuntariamente, meu cérebro me levou

para o dia anterior - para ser mais preciso, a enfadonha aula

de Ed. Física, no Pavilhão de Torturas - e sem me dar conta,

o rosto glorioso e infernal do jovem demônio de cabelos cor-

de-fogo se materializou na minha frente, um sorriso maligno

lhe estampando os lábios.

Então era isto? Era ele que estava lá embaixo, me

esperando?

Não podia ser.

Eu não queria acreditar.

Tomado por um impulso de coragem extra e anormal,

saltei pela passagem do poste de emergência e aterrizei de

gatas no chão de linóleo da sala. Sem deixar brechas para que

o meu medo surgisse novamente, me coloquei de pé sem um

único ruído e me pus a escutar com atenção.

O barulho parecia estar vindo da garagem - e lá era o

pior local onde o demônio-em-treinamento poderia estar.

Era na garagem que Cirus guardava e produzia todos

os objetos que usávamos nas nossas Sessões de Exorcismo. E

se - de alguma forma - o intruso descobrisse para quê servia

Page 114: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

todas as coisas presentes nos armários embutidos do cômodo,

eu tinha certeza que o ''bicho ia pegar'' para o meu lado.

Ainda agindo unicamente pelo ''instinto Arcano'',

cruzei a distância de onde estava até a porta da garagem em

apenas duas batidas do meu coração. Com o máximo de

cuidado, me agachei e encostei o ouvido na fechadura,

cerrando os olhos para poder me concentrar em todos os

ruídos produzidos do outro lado da passagem de madeira

branca.

Como se adivinhasse o que eu estava fazendo,

subitamente o intruso ficou mortalmente silencioso. Tentei

olhar pelo buraco da fechadura, mas não havia nada para ver.

A via estava escura, com certeza obstruída pela chave presa

no verso oposto da porta.

Fiquei nesta posição - encolhido e imóvel como uma

estátua - por uns bons cinco minutos. Quando eu começava a

achar que toda aquela situação crítica não passava de

paranoia produzida pela minha imaginação, a maçaneta

prateada logo acima da minha cabeça começou a girar, e as

velhas dobradiças enferrujadas começaram a ranger e gritar

Page 115: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

melancolicamente.

Sem ter para onde fugir, saltei o mais rápido que

podia e me segurei igual a uma aranha nas paredes estreitas

do corredor, obrigando aos meus músculos à se fixarem o

mais firme que podiam. Um segundo depois de me esconder,

o chão de linóleo foi tomado pelo vasto rastro de luz amarela

que vinha da garagem, revelando - para o meu total

desespero - uma sombra longa e disforme.

- Mas que merda! - resmunguei baixo, quando uma

única gota de suor ameaçou escorregar da ponta do meu

nariz e cair inconvenientemente no chão. No mesmo

instante, o intruso apareceu abaixo de mim, vestindo um

estranho par de botas de cano-alto, uma calça de brim negra

surrada e um velho moletom com capuz.

Com um último e longo suspiro, me precipitei com

violência na direção do desconhecido, deixando que a

gravidade somada ao meu peso agisse por conta própria.

Percebendo o meu ato de insanidade, o intruso se

esquivou de meu ataque de forma ágil e fugiu pela porta da

garagem. Assim que meu corpo se chocou contra o concreto

Page 116: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

firme e gelado, todo o ar que eu havia segurado foi expelido

para fora dos pulmões, o impacto da batida ecoando em todo

o meu interior feito um sino de igreja. De imediato, meus

olhos se encheram de lágrimas e um terrível tremor

percorreu por toda a minha coluna - com certeza uma

consequência nada boa do meu erro de cálculo.

Eu sabia que com aquela burrada eu assinava o meu

próprio epitáfio. Machucado e desarmado, não conseguia

enxergar um palmo sequer diante de mim, e para completar,

o corredor parecia girar ao meu redor.

''Mas que situação, hein?'' pensei infeliz, tomando a

real consciência dos riscos que enfrentava e decidindo fazer a

única coisa que me restava: lutar até o fim - por mais idiota

que parecesse - como um verdadeiro Arcano.

Ainda vendo estrelas, tentei me levantar e atacar

novamente, o mais rápido que podia. Porém, antes que eu

pudesse alcançar a garagem, a porta de madeira se fechou

ruidosamente em meu rosto, estalando com um ruído

canhestro a minha cartilagem nasal e me atirando com um

baque surdo no piso encerado.

Page 117: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

Para mim, era o fim. O confronto havia acabado.

Sem chance alguma de defesa, limpei o filete de

sangue que escorria até os meus lábios e esperei a chegada de

minha hora mais sombria. Com um ruído baixo e seco, ouvi

meu carrasco se aproximar de mim lentamente, e para meu

completo estarrecimento, produzir um ruído alto e

estrangulado de preocupação.

- Adrian Regis! - exclamou o intruso, com uma voz

aguda e feminina estranhamente familiar – Mas que idiotice

foi essa?!

Atordoado, fiz força para focalizar o estranho logo

acima de mim, ao mesmo tempo em que ele - quero dizer, ela

- tirava o capuz do casaco de sua cabeça, deixando revelar

uma longa cascata de cabelos prateados escorridos, que

chegavam até o meio de sua cintura. Com a claridade que

irradiava da garagem, vi que seus olhos eram de um azul

profundo aterrador e sua pele clara parecia irradiar a luz

ambiente ao seu redor igual à uma fada gigante.

Em toda a minha vida eu só conhecera uma única

pessoa que corresponderia à estas singulares características

Page 118: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

físicas, e pensar que ela poderia estar ali na minha casa -

aquela hora da manhã - foi um choque e uma alegria tão

grande para mim que, mesmo tomado pela dor, me levantei

num salto e a agarrei no abraço mais apertado que eu podia

dar.

- Ti... tia Angelina! - gaguejei, não conseguindo

controlar a enxurrada de perguntas que tomavam o meu

cérebro de assalto - O que a trouxe aqui? Como você entrou

em casa? Quando chegou a Ventura? Quanto tempo vai ficar?

- Calminha aí, garotão... - esbravejou Tia Angelina

com a sua vozinha de vento - Do que é que foi que você me

chamou mesmo?

Só depois da pequena bronca que percebi a grande

gafe que eu havia acabado de cometer; eu acabara de chamar

minha tia Angelina de ''tia''... e, para ela, não poderia haver

insulto maior nem mais imperdoável.

Tentando reparar o meu erro, sorri da forma mais

inocente que podia, o pedido de desculpas implícito em meu

rosto. Afinal, desde que me conheço por gente, eu entendo

essa implicância que Angel (o apelido adotado por ela assim

Page 119: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

que começara a falar) tinha ao título que recebera. Pois, se eu

estivesse no lugar dela, e me deparasse com um sobrinho

apenas 3 anos mais novo e com 15 centímetros a mais de

altura, acho que me comportaria de uma maneira muito

menos delicada.

- Ah, que se dane - resmungou Angel, retribuindo o

sorriso, ao mesmo tempo que revirava os olhos de forma

deliberada - Desculpas aceitas! Mas então, onde está o meu

querido, rabugento e possessivo irmão mais velho?

Antes que eu pudesse responder algo a respeito, caí na

gargalhada. Isso era tão estranho. Só de pensar em Cirus

como alguém ''rabugento'' e ''possessivo'' eu me dobrava de

rir. Era engraçado, até irônico, ver a diferença de

tratamentos dele para com nós dois. Enquanto, na maioria

das vezes, Cirus se comportava como o meu irmão mais

velho idiota e irresponsável, quando o assunto era Angel, ele

era totalmente o oposto: um controlador ao extremo,

exatamente como um pai deveria ser.

- Cirus? - perguntei, ainda tentando controlar o riso -

Ele saiu muito cedo, pelo visto. Só me deixou um bilhete,

Page 120: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

que não dizia coisa nenhuma - então, quando parei de rir,

percebi algo mal explicado na pergunta dela - Hum, Angel...

Se você não viu o meu pai, como foi que você entrou aqui em

casa?

Por um momento, Angel congelou no lugar e me

lançou um olhar do tipo que vemos em pessoas pegas no

flagra. Mas, antes que perdesse por inteiro a compostura, ela

girou nos calcanhares tal qual uma ninfa dos bosques e

voltou-se para a garagem. Ainda esperando a sua resposta,

me apoiei na parede do corredor e a segui aos trancos e

barrancos.

- Acho que você me não respondeu - comentei de

forma incisiva, assim que entrei no cômodo, contendo a dor

que me queimava por inteiro - Por falar nisto, você ainda

não respondeu a nenhuma das minhas perguntas.

- Se quer saber mesmo - disse ela, sua atenção voltada

para uma pesada mochila aberta aos seus pés - Eu estava

tocando a minha vida como sempre faço, resolvendo um caso

de perseguição demoníaca em Dumont, não contando com a

ajuda de ninguém. Só que, antes que eu pudesse agir de

Page 121: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

alguma forma, as vítimas foram embora e, como uma formiga

abandonada pelas suas companheiras, eu me vi sozinha no

meio do nada. Então, sem ter o que fazer e sem um tustão

furado no bolso, me lembrei que o meu único irmão (e meu

sobrinho enxerido e encrenqueiro) moravam na cidade ao

lado de onde estava, e que isto era uma opção viável para

mim. Reunindo as poucas coisas que tinha, peguei a primeira

carona que arrumei na estrada e cheguei aqui hoje, antes que

o sol começasse a aparecer no céu ou que os lampiões da rua

se apagassem. Mesmo não tendo a chave da porta, eu (com

ajuda de umas habilidades que você, a essa altura do

campeonato, deve conhecer bem) consegui forçar a trinca do

portão da garagem, assim entrando aqui e não perturbando

ninguém logo cedo, como uma boa convidada deve ser... E,

antes que me esqueça - ainda sem olhar para mim, Angel

puxou algo pesado e comprido do fundo da sua mochila e o

jogou na minha direção - acho que isto pertence a você!

Com um movimento rápido, aparei o objeto lançado e

o coloquei diante dos meus olhos. Para minha surpresa e

espanto, era nada mais nada menos do que o meu velho skate

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de guerra, dado pelo meu pai no meu décimo segundo

aniversário. Os desenhos presentes na base de madeira eram

de uma ''sutileza'' ímpar: Céu e Inferno travando uma

batalha épica, com direito a nuvens carregadas, labaredas de

fogo e, é claro, anjos e demônios.

Há um ano e meio, desde que Angel partiu daqui de

casa pela última vez, eu vinha procurando por aquele skate

feito louco. E só agora, da forma mais idiota possível, eu

consegui ligar um fato ao outro e descobri aonde ele estava

esse tempo todo.

- Então - pigarreei, lutando para não demonstrar o

quão irritado estava por finalmente saber quem tinha pego o

meu skate emprestado sem a minha permissão - pelo visto,

você não viu o meu pai sair.

- Não, eu não vi - fechando sua bolsa mais

violentamente do que o necessário, Angel se levantou e

recostou-se sobre a máquina de lavar desligada - mas se por

acaso eu tiver chego em uma má hora, eu posso muito bem

sair e só voltar quando o Cirus chegar.

Mas uma vez, apenas naquele dia, percebi o quanto

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estava sendo rude com Angel, e mais uma vez tentei me

desculpar.

- Não seja boba - suspirei, andando até ela e pegando a

mochila de suas mãos - você sabe que esta casa é tão minha

quanto sua.

- Então você está dizendo que eu posso ficar?

Não respondendo a sua provocação, dei as costas a

Angel e segui para a cozinha. Eu sabia que ela deveria estar

com mais fome do que demonstrava, por isso não me

surpreendi quando, assim que joguei a sua mochila no tampo

de mármore da pia, ela já se encontrasse sentada à mesa -

como quem espera o seu pedido em um restaurante elegante.

Revirando os olhos, abri a geladeira e procurei por

algo que pudéssemos comer. Havia uma embalagem de ovos

fechada e um pedaço de queijo e outro de presunto. Sem

pensar em nada, peguei os três de uma única vez, coloquei o

que era necessário sobre a mesa e me agachei para procurar a

frigideira que meu pai guardava dentro do forno do fogão.

- Pelo visto, acho que teremos Omelete-Maluca no

café, não é mesmo Cheff Adrian?

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- NÃO É uma Omelete-Maluca - respondi entre

dentes, não conseguindo me refrear.

Desde quando éramos pequenos, Angel sempre me

achincalhava pelo fato de eu saber cozinhar. Bom, não foi ela

quem perdeu a mãe assim que nasceu, e cujo pai passava

metade do tempo fora de casa. Assim que o pensamento me

veio a cabeça, isto me fez lembrar de uma outra coisa – uma

coisa que eu tinha certeza que a irritaria profundamente.

- Mas, e aí, você por acaso falou com a vovó que vai

ficar por um tempo aqui em Ventura?

Como esperado, o rosto de Angel se transformou por

completo à minha frente - da forma exata como um felino se

comporta quando se encontra com um Arcano. Logo depois

de presenciar a sua reação, me arrependi de verdade de ter

feito o comentário.

A relação de Angel e Vovó era, no mínimo,

conturbada. Assim como a minha mãe não era uma Arcano

nem sabia nada sobre isso quando conheceu o meu pai, o

caso de Zoraia e Galadriel Regis foi bastante parecido. Só

que, enquanto a nora aceitava da melhor forma possível o

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fardo do marido, o mesmo não acontecia com a sogra.

Pelo o que eu sabia, no começo Vó Zora até aceitava,

mas tudo mudou quando ela descobriu que os ''dons'' eram

hereditários - e que, de uma forma incancelável, os seus dois

filhos estavam obrigados a seguir o mesmo destino perigoso

do esposo.

A única coisa que posso dizer é que ela não ficou nada

feliz ou satisfeita ao ver que meu pai e tia Angel não se

importavam tanto assim com o ''trabalho obrigatório'' que

eles receberam quanto ela; e acho que nem é preciso falar

que tudo foi de mal a pior quando o Vô Gal se foi em um

combate sangrento junto com o demônio mais maligno e

cruel que eu já vira em toda a minha vida.

De qualquer forma, citar as obrigações de filha para

minha tia era quase tão irracional quanto andar em uma

auto-estrada movimentada na contramão.

- Escute aqui - recitou ela, seus olhos azuis tão

brilhantes quanto fogo-fátuo em mato seco - se você pensa

que vai me irritar com isto, pode tirar o seu cavalo da chuva!

Angel me falou de forma baixa e clara, mas cada pelo

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do meu corpo se arrepiou tanto com cada palavra que parecia

que ela havia cuspido todas elas diante da minha cara. Sem

dizer nada, apenas assenti o mais breve possível e voltei toda

a minha atenção para o café da manhã.

Quando terminei de preparar os nossos omeletes,

separei dois pratos na mesa da cozinha e coloquei as porções

fumegantes em cada um, enquanto Angel ia até a geladeira e

trazia dois grandes copos de leite para nós.

- Olha bem - disse ela, colocando os copos na nossa

frente, sua voz no tom de sino novamente - Acho que

começamos o dia meio que com o pé esquerdo, não?

- Eu acho que sim - concordei, ainda não conseguindo

tirar os meus olhos do prato sobre a mesa.

- Então, e aí? - continuou Angel, o sorriso de fada

voltando a iluminar o seu rosto - Como vão as coias na

escola, na Constantine? Você já fez algum amigo? Por acaso

já conheceu alguma garota legal?

- Constantine? Amigo? Garota?! - entoei, tirando os

meus olhos como por encanto da mesa e os guiando para o

relógio da cozinha, dando um salto da cadeira ao ver a hora -

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Mas que droga, estou atrasado de novo!

Repetindo a manhã anterior de uma forma tenebrosa,

corri para o meu quarto em um piscar de olhos, apanhei todo

o material que precisava levar e voltei voando para o térreo,

sem tempo nem para ver como eu estava.

- Adrian, se acalme! - exclamou Angel para mim, seus

olhos azuis tentando acompanhar o borrão vermelho em que

eu me transformara.

- Me acalmar? - parei por um momento, não

acreditando no que eu havia acabado de escutar - Eu não

tenho tempo para me acalmar, a escola fica a três quadras

daqui de casa e eu só tenho 14 minutos para chegar lá!

Como se tivesse acabado de ter uma grande ideia,

Angel olhou para o molho de chaves jogado sobre a cômoda

da sala, depois voltou o rosto na direção da porta da garagem

e, do jeito mais maroto do mundo, disse:

- Acho que existe uma forma bem rápida de você ir

para a escola sem se atrasar, e se quiser, eu posso ajudá-lo...

Só de acompanhar o pensamento que surgia a minha

frente, eu pude sentir o meu sangue gelar. É claro que sabia

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sobre o quê Angel estava falando. Mas se ela estava

imaginando que eu ia dar autorização para ela mexer na

''sacro-santa'' moto de Cirus... Eu não estava pronto para ser

morto, muito menos nas mãos do meu próprio pai.

Se havia algo que Cirus amava mais do que tudo -

mais até que nossa Casa-de-Bombeiros ou o Mustang 64 - era

essa bendita moto. Foi o presente que o Vô Gal dera a ele no

seu décimo oitavo aniversário, e a sua adoração para com o

troço era tanto que ele nem andava com a máquina... Apenas

a lavava e a mantinha na garagem, em um espaço que mais

parecia um altar.

Eu nem queria saber o que Cirus poderia fazer com

quem tocasse na coisa, então logo tratei de cortar as asinhas

de Angel pela raiz.

- Ah, você nem é louca! - suspirei atordoado,

ajeitando as alças da minha mochila sobre os ombros - No dia

em que estiver com pensamentos suicídas tudo bem, mas

hoje nem pensar!

- Oras, mas se eu não te levar para escola na moto do

Cirus, como você vai conseguir chegar lá a tempo?

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Angel me acompanhava na direção da garagem, e eu

não podia acreditar que ela estava tentando me fazer

entregar os pontos usando a sua carinha de ''gato sem dono''.

Se eu não a conhecesse, já teria lhe dado as chaves da moto à

muito tempo; mas como eu conhecia, apenas dei as costas à

ela sacudindo a minha cabeça, entrando na garagem e

abrindo o portão.

- Sabe, eu acho que existe outra forma de chegar à

Constantine sem correr o risco de morrer hoje a noite -

respondi, me colocando com habilidade sobre o meu skate

recém-recuperado e partindo na maior velocidade que podia

sem dar bandeira para os vizinhos, deixando Angel e sua

carranca contrariada no batente da nossa Casa-de-

Bombeiros.

127

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129 8. S E R I N A

Como por milagre, consegui fazer todo o percurso da Casa-de

Bombeiros até a Academia em apenas 4 minutos. Quando

finalmente cheguei ao portão da escola, o pátio de entrada

ainda estava abarrotado de estudantes e a barulheira de

conversas que tomava conta de todo o ar parecia ainda pior

do que a do dia anterior.

Completamente cego pela forte claridade do sol

naquela manhã, desencavei do fundo da minha mochila o

meu velho par de óculos escuros e me encostei na mesma

árvore frondosa de sempre - brincando distraidamente com

as rodas gastas do meu skate enquanto observava o ir e vir do

corpo docente e discente da Constantine por detrás das

minhas lentes baças.

Sem prestar atenção em nada particular, percebi um

ligeiro burburinho se formar no canto mais distante da rua.

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Ouvindo a confusão de vozes que chegava até a mim,

me inclinei com cuidado na direção da algazarra e apurei a

minha audição o máximo que podia – distinguindo

claramente o tom insuportavelmente pretensioso de Oliver

Nigro, acompanhado pelas gargalhadas estúpidas de todos os

seus asseclas da turma Privilegiada.

- Vejam só, caras - cacarejou Antoni Pabin, o Capitão

''só-músculos'' da Equipe de Natação da escola, para quem

quisesse ouvir - acho que a gatinha aqui não tem língua!

Em resposta a provocação do amigo, todos os garotos

urraram e assobiaram com prazer. Ao que parecia, a horda de

desocupados da Constantine havia encontrado uma nova

vítima para atazanar e, não sabendo muito bem o por que,

aquilo não estava me cheirando nada bem.

- Hei, não precisa ficar com medo - disse Oliver

cauteloso, suas verdadeiras intenções disfarçadas em um tom

de voz cordial que eu nunca o vira usar com ninguém – Eu

não vou te machucar, acredite... nós só queremos, você sabe,

conhecer melhor nossa nova colega de classe.

Antevendo a confusão formada, contornei o tronco da

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árvore aonde eu estava escondido e encarei o famoso

grupinho de baderneiros, minhas sobrancelhas unidas só de

imaginar o que eles poderiam estar aprontando.

Para meu espanto, Oliver e todos os seus seguidores

formavam um círculo estranho e ameaçador ao redor de

ninguém menos que Serina Biel - cujo rosto perfeito estava

visivelmente lívido em uma mescla de impaciência e asco ao

ver um de seus cachos escuros se enroscarem entre os dedos

pálidos do malicioso filho do Dir. Nigro.

Sentindo um formigamento nada convencional me

subir pela coluna, caminhei à passos largos a pequena

distância que separava o gramado da Constantine da esquina

da rua e mergulhei no interior da roda de Privilegiados. Eu

sabia que estava cometendo um suicídio - não só no sentido

social - mas acotovelei todos os idiotas que me trancavam a

passagem até parar bem à frente do líder estúpido deles, a

vista embaçada e vermelha iguais à de um touro enfurecido.

- O que vocês pensam que estão fazendo com ela? -

perguntei, não reconhecendo o tom sombrio de minha

própria voz, tamanha a força que me controlava.

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Por um segundo, todos me encararam. Pelo visto, eu

não havia sido o único que fora pego de surpresa pela

''audácia'' dos meus instintos. Eliezer Mantiz e Lucas Darvel

trocaram uma longa e significativa olhada, enquanto a

maioria dos caras da Equipe de Natação - incluindo o

parrudo Antoni Pabin - deram meio passo para trás, como se

só a minha presença ali fosse capaz de lhes transmitir o vírus

ebola.

Eu estava pouco me lixando para a reação daqueles

acéfalos bombados e sobre o quê eles pensavam ou deixavam

de pensar sobre mim.

O que me importava - e me consumia pouco a pouco

por dentro como o veneno quente e pegajoso de uma víbora -

era o fato de que, por mais perturbado que pudesse parecer,

Oliver continuava com sua mão nojenta nos cabelos da irmã

de Líon. E que, além de repulsiva, a atitude parecia ser de

uma ousadia sem par - mesmo para brutamontes estúpidos

como os Privilegiados.

- O que vocês pensam que estão fazendo com ela? -

repeti a pergunta, mantendo os meus braços trêmulos bem

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colados junto ao corpo, contando de 1 até 100 para não fazer

nenhuma loucura.

Recuperando-se gradativamente do choque

momentâneo que minha entrada causou, Oliver se

desvencilhou de Serina e se virou para mim - a atitude

autoritária e de superioridade que ele sempre utilizava

quando falava comigo no seu nível máximo.

- E o que o Senhor Bizarro tem a ver com isso? -

devolveu o garoto, suas mandibulas tão tensas que eu seria

capaz de dizer quantos músculos haviam surgido em sua face.

- Pelo o que percebi, o assunto ainda não chegou na lixeira

que você mora...

Tive que respirar umas cinco vezes para não esmagar

o filho do diretor na frente daquelas hienas que ele chamava

de amigos. Foi um momento de perigo particular. Por mais

que o meu lado consciente e racional dissesse para mim que

qualquer tolice pudesse representar o fim da minha vida

''silenciosa'' em Ventura, o resto do meu ser gritava para

acabar com o falatório e ir para os finalmentes com o Rei dos

Bundões.

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Eu não sabia explicar minha reação – estava

encurtando ainda mais a distância que havia sido feita no

centro do círculo, minhas mãos cerradas em punhos e o meu

coração palpitando tanto que eu não conseguia escutar os

meus próprios passos. Era como se, naquela manhã, um

Adrian menos responsável e mais exibido tivesse se libertado

dentro de mim... e o seu primeiro desejo era esfregar a

carinha mais-que-simétrica de Oliver no asfalto quente até

não sobrar nada, só para ver como é que ficaria.

Porém, antes que o ''Adrian Rebelde'' pudesse agir e

ferrar com tudo, Serina saiu de seu estado de observadora e

se colocou no centro do círculo - suas mãos agarrando o meu

braço esquerdo ao mesmo tempo em que seus olhos escuros

fuzilavam o líder dos Privilegiados com uma indiferença

quase que mortal.

- Nossa, até que enfim... pensei que você não ia

chegar nunca!

Com um sorriso angelical, a garota me encarou e

piscou - e eu conseguia ler em cada traço de sua expressão

inocente as palavras de aviso: ''se acalme, não se encrenque e

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deixe tudo comigo''.

- Muito bem, acho que não preciso mais da ajuda de

vocês - continuou ela, reforçando a palavra ajuda como quem

dizia ''caiam fora da minha frente agora, ou vão me conhecer

de verdade!'' - Adrian, por que não me leva para conhecer a

Academia?

Não pensando duas vezes, puxei a novata pelo braço e

a tirei do círculo, sentindo os olhares incrédulos de Oliver e

seus cumpinchas perfurando as minhas costas de uma forma

bastante ofensiva. Eu poderia dizer que o meu ''Eu louco''

ainda rosnava para o grupo deixado para trás, mas a verdade

era que - assim que Serina colocou as suas mãos suaves e

delicadas sobre a minha pele - toda a raiva e a tensão que

parecia prestes a explodir de mim desapareceu, como se nem

tivesse existido.

- Obrigada - sussurrou Serina, quando estávamos

longe o bastante para não sermos ouvidos pelos Privilegiados

– Eu já ia resolver tudo com aqueles... otários, mas... Foi

muito legal você ter aparecido para me defender. Muito legal

mesmo.

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- Não precisa me agradecer - respondi, sentindo o

sangue fluir e se concentrar em meu rosto - Eu vi o que eles

estavam fazendo e não achei justo. Só fiz o que era o certo.

Por um milésimo, ela me encarou e sorriu.

- Líon tem razão - comentou a garota, assim que

chegamos às raízes da árvore onde eu havia largado minhas

coisas – Meu irmão acha que você deve ter algum tipo de

gene sobre-humano ou coisa assim. Depois do que você fez

hoje, tenho que concordar com ele.

Sentindo um forte aperto no peito, parei e olhei para

Serina um tanto assustado. Então Líon desconfiava de mim,

mesmo me conhecendo em menos de um dia... Será que eu

era tão estranho assim que ninguém acreditava no meu

disfarce de ''adolescente normal''?

- Bom, ele não fez nenhum tipo de fofoca - continuou

ela, percebendo minha reação e interpretando de forma

errada, como quem se desculpa por ter dito algo errado -

Líon só me contou o que aconteceu ontem na piscina, e devo

dizer que estava assombrado. Acho que notou que ele não é

exatamente o típico garoto que faz muitas amizades em uma

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escola; mas aí chega alguém como você e o trata como um

igual, com respeito... Eu não tenho nem palavras para

agradecer, de verdade!

Eu fiquei parado no mesmo lugar sem entender aonde

ela queria chegar.

Se Líon não desconfiava do que eu realmente era, por

que ele ficaria tão impressionado comigo? Eu não processava

nem um pouco como uma pessoa normal poderia se sentir

assim com relação a mim, e muito menos o que Serina queria

dizer com aquela história de ''alguém como você''. No

ranking para descobrir qual adolescente era o Mais

Deslocado do Mundo, eu tinha certeza que levaria o primeiro

lugar em disparada.

E foi tentando dizer isso a ela que eu acabei

percebendo o quão próximos nós dois estávamos. Meu rosto

deveria estar a uns dez centímetros acima do dela, e só de

olhar o meu reflexo naqueles seus olhos escuros e profundos,

uma sombra forte e embaraçosa da ligação que eu havia

sentido na manhã anterior tomou conta de todo o meu corpo

de assalto e se espalhou pelo ar igual á uma tempestade de

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verão. Eu tinha certeza, mais do que nunca, que a conhecia

de algum lugar – mas de onde era o mistério.

Em um tempo inestimável, ficamos congelados

naquela posição - um encarando o outro - até que um pigarro

alto e claro ao nosso lado nos despertou por completo.

- Pelo visto, acho que você e minha irmã se

conheceram muito bem...

Líon estava parado à uma pequena distância de nós, os

braços cruzados sobre o agasalho com capuz e a expressão

dividida entre a confusão e o divertimento. Rapidamente,

Serina e eu nos separamos, o que me deu a chance de me

virar e pegar o meu material no chão - evitando ao máximo o

olhar pra lá de inquisitivo do rapaz às minhas costas.

- Nossa garoto, mas você demorou! - ofegou Serina,

como se tivesse acabado de realizar a prova dos 200 metros

com barreira.

- O que eu podia fazer? - retrucou o novato, pegando

o meu skate com os pés e o segurando na minha direção -

hoje é o primeiro dia do papai no trabalho novo, e o

banheiro da suíte dele e da mamãe não está funcionando...

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Ainda um tanto afobado, me levantei da posição em

que me encontrava e peguei o skate das mãos de Líon, o

agradecendo pela ajuda sem ter coragem o suficiente de o

encarar nos olhos.

- E aí, será que eu preciso mesmo fazer as

apresentações? - perguntou o garoto, sua voz destilando

sarcasmo - Por que, se quiserem, eu faço com todo prazer:

Serina, este é o Adrian, de quem eu lhe falei ontem... Adrian,

esta é minha irmã-gêmea Serina.

Depois dessa, eu tive que levantar o meu rosto e

admirar o novato à minha frente.

- O quê? - soltei sem pensar, tendo certeza que a

minha expressão estava tão espantada quanto eu me sentia -

Ela é sua irmã-gêmea?

Sem cerimônia alguma, tirei os óculos escuros da

minha frente e me virei de um para outro umas cinco vezes.

Aquilo era inacreditável. Enquanto Serina era baixa e sua

pele castanha parecia resplandecer cada raio de sol, Líon era

um verdadeiro poste, cuja pele morena parecia não ter visto a

luz do dia por um longo tempo... Nem o cabelo dos dois eram

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iguais: o do novato era lanzudo e sem forma, caindo para os

lados de todas as direções - já o da garota era bonito e sedoso,

uma verdadeira cascata cacheada da cor do chocolate.

- Sim, infelizmente ele é o meu gêmeo - respondeu a

garota para mim, ao mesmo tempo em que empurrava com

força o ombro esquerdo do irmão - Porém eu sou a filha mais

velha.

- Só oito minutos mais velha! - protestou Líon,

massageando a clavícula de cara feia.

- Claro, mas isto não muda o fato que eu continuo

sendo a mais velha...

Antes que eu me recuperasse totalmente da surpresa,

o sinal da Academia ecoou pela calçada. Sem perceber, tanto

Serina quanto o novato me levaram escada acima para o

Portão de Entrada, os dois rindo até não poderem mais da

minha careta congelada de espanto.

Quando chegamos no pequeno patamar, Oliver e os

Privilegiados nos alcançaram, tirando Líon e eu do caminho

- ao mesmo tempo em que olhavam para a irmã do novato e

resmungavam para quem pudesse ouvir coisas como ''Que

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desperdício!''.

Foi então que o pequeno balão de entusiasmo que

havia crescido dentro de mim desde que Serina me tocara

começou a se esvaziar. Estava na cara que toda aquela

atenção que a garota estava tendo comigo logo iria acabar.

Era só olhar para o lado; por onde ela passava, não

importava quem fosse, todos a acompanhavam. Com o

tempo, finalmente Serina iria ver que existiam companhias

muito melhores e mais parecidas com ela na Constantine do

que o irmão-gêmeo e - é lógico - eu.

E com a cabeça cheia de tudo aquilo, nem notei o

vulto alto e ruivo que nos seguia à uma pequena distância ao

longo do corredor, seus olhos negros e malignos

transbordando em um prazer ofensivo.

141

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143 9. O C O N F R O N T O

Contrariando todo o bom senso, logo na primeira aula – que

foi no laboratório de Biologia - Serina dividiu a mesa com o

irmão e comigo. E verdade seja dita, oportunidade de se

esquivar de nossa companhia não lhe faltou.

Depois que entramos na sala, toda a turma de

veteranos nos encarou - ou melhor, encararam à ela -

estupefatos. Percebendo nossa chegada, o Prof. Novaz pediu

para que a garota se apresentasse à classe, antevendo que

Líon já deveria ter tido a oportunidade de fazê-lo no dia

anterior. Aceitando o convite com um meio sorriso tímido, e

uma naturalidade sem tamanho, ela o fez.

Pelos dois minutos em que falou, ela nos teve na

palma de sua mão. Nem mesmo Oliver e parte do grupo dos

Privilegiados que dividiam as aulas conosco pareciam ser

imunes ao poder que Serina irradiava. Secretamente,

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enquanto a observava à frente do quadro negro, percebia o

quanto ela se parecia com o sol lá fora - repleta com uma

força magnética, a garota era capaz de envolver quem quer

que seja ao seu redor.

Assim que terminou o seu pequeno discurso, metade

das garotas - incluindo Alice Corvel e suas amigas -

ofereceram suas mesas para Serina se sentar. Porém,

surpreendendo à todos, ela recusou educadamente os pedidos

e se acomodou entre Líon e eu (me lançando uma rápida

piscadela que quase fez meu estômago rodopiar).

Durante o resto do dia, os dois irmãos me seguiram

por todas as salas de aula. Mas, diferente de mim ou do

novato, a menina atraía a atenção das pessoas por onde

passava.

Sem dúvida alguma, o momento mais embaraçoso foi

na hora do intervalo. Metade dos grupinhos espalhados pelo

Pátio Central da Constantine pareciam ter separado um lugar

cativo para Serina ao meio deles. Só que, novamente

frustrando a expectativa geral, a garota preferiu se recolher

junto comigo e Líon em uma pequena banqueta na Galeria

Page 147: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

que ligava o Prédio Principal da Academia à velha

construção que nos servia como Biblioteca.

Por alguns minutos, tudo o que fiz foi ficar admirando

como a claridade que invadia a Galeria por entre as frestas

deixadas por suas colunas de tijolos vermelhos resplandecia

pela pele morena da garota. Eu tinha plena consciência que

Líon falava alguma coisa comigo, mas todas as palavras que

saíam de sua boca pareciam flutuar a minha volta, como se

eu estivesse usando potentes fones de ouvido no volume

máximo.

''Não fique encarando muito a novata, esquisitão!'', eu

me repreendia silenciosamente, quando Serina descansou o

sanduíche que comia em seu colo e virou-se na minha

direção, seus olhos castanhos repletos de uma preocupação

que não combinava com suas feições angelicais.

- Acho que aquele loirinho de hoje cedo está

encarando você... - cochichou ela, inclinando minimamente

o seu queixo na direção de Oliver Nigro, cujo a expressão

carrancuda parecia indicar que ele estava me fulminando

mentalmente.

Page 148: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

- Ah, não se preocupe - respondi, não conseguindo

controlar o riso que surgia em meus lábios - Ele e os

amiguinhos dele sempre fizeram isto... Não é agora que iriam

parar.

- Mas por quê? - continuou Serina, sua face

demonstrando todo o choque que sentia - Por que eles te

tratam desse jeito?

- Sei lá... Acho que não me encacho nos ''altos

padrões'' de aceitação dos Privilegiados.

Parecendo não acreditar no que havia acabado de

escutar, a garota chegou mais perto de mim e me

esquadrinhou por inteiro, igual às garotas que ficavam

espremidas na porta do vestiário masculino antes das aulas de

Ed. Física.

- Você só pode estar brincando! - disse ela, meneando

a cabeça em descrença, um breve sorriso surgindo em seus

lábios - Ou isso, ou você não deve ter um espelho sequer na

sua casa!

Agora quem não acreditava no que havia escutado era

eu. Foi isso mesmo que eu ouvi? Serina, a garota que

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praticamente parou a Constantine com a sua chegada,

acabara de dizer que me achava bonito?

- Hei, sobre o que vocês estão cochichando? -

interrompeu Líon, olhando de mim para a irmã com pura

suspeita.

- Nada - respondeu sua gêmea, pegando de volta o seu

sanduíche e o mordiscando de leve - Só estava dizendo para

o Adrian aqui que eu acho que aquele loirinho, da nossa sala,

está pensando em aprontar alguma coisa pra cima dele...

- O quê? O Oliver?! - exclamou o novato, não

disfarçando seu olhar de repulsa ao se inclinar para o outro

lado do pátio, onde os Privilegiados estavam - Tudo bem,

ontem ele se mostrou para mim um Otário com O

maiúsculo... Mas por que ele iria armar alguma coisa contra o

Adrian?

- Bom - começou Serina, claramente arrependida de

ter tocado no assunto na frente do irmão - Assim que eu

cheguei na escola, ele e o grupinho dele meio que... me

importunaram - na menor menção de Líon em se levantar, a

garota correu para apoiar sua mão esquerda sobre o peito

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dele, tratando logo de acrescentar - Mas eu tinha tudo sobre

controle! Só que... bem, o Adrian viu e interferiu.

- E? - indagou o novato, claramente nem um pouco

convencido com o final que sua gêmea havia dado ao

assunto.

- Ahn - continuou Serina, olhando para mim como

quem pedisse um pouco de apoio - Ficou meio óbvio que esse

tal de Oliver não ficou feliz com a interferência do Adrian na

nossa ''conversa''. Só que, antes que as coisas ficassem

realmente feias, eu consegui separá-los.

- Então era por isso que vocês dois estavam se

agarrando em baixo da árvore quando eu cheguei?

- Sim, quero dizer, não! - engasgou-se a garota, ao

mesmo tempo em que eu tentava afrouxar o nó da minha

gravata - Não seja idiota.

Depois que Serina me alertou sobre o comportamento

de Oliver, durante o resto do dia me vi observando o garoto

por cima do braço - sempre me esquivando quando percebia

que ele se virava para mim. Era bastante nítido para qualquer

um que nós dois nunca tivemos uma relação de grande

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camaradagem ao longo desses onze anos. Mas, até então, eu

nunca tinha visto o filho do diretor me encarar com tamanha

raiva - geralmente era só nojo.

Pois foi isso o que Oliver fez: me encarou com raiva

no intervalo... me encarou com raiva na aula de Cálculo...

Me encarou com raiva no Laboratório de Informática,

até que o último sinal do dia tocou, e toda a turma de

veteranos se dispersou, fugindo da sala como se houvesse

uma ameaça de bomba na escola.

Quando terminei de vestir o meu agasalho de

estimação por cima do paletó vermelho do uniforme,

acompanhei Líon e Serina na direção da entrada, fazendo

questão de ignorar o olhar persistente do rapaz sentado no

canto mais escuro do Laboratório.

- Então - eu disse, colocando minha mochila sobre os

ombros e subindo em cima do meu skate - tenho uma vaga

sobrando no meu automóvel. Quem quiser uma carona para

casa, é só subir. Mas vou avisando, as damas tem prioridade!

O Novato revirou os olhos deliberadamente, ao passo

que sua irmã se colocou entre nós dois e sorriu de forma

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marota para mim.

- Você é um palhaço, sabia? - riu ela, ajeitando uma

mecha escura que havia caído sobre o seu rosto - Mas hoje

vou ter que recusar. Papai vem buscar a gente de carro para

almoçar, sabe... Comemorar o novo emprego dele e tal.

- Tudo bem - comentei, tentando esconder a minha

decepção.

- Mas amanhã eu vou aceitar essa carona com todo o

prazer! - completou a garota, assim que chegamos ao Pátio de

Entrada da Constantine.

- Eu não vou me esquecer disso... - eu disse,

contemplando os dois se afastarem de mim e entrarem em

um carro preto e elegante do outro lado da calçada.

Líon, que não havia perdido a esportiva, abaixou a

janela ao lado do seu banco e gritou na minha direção:

- Hei, eu também não vou me esquecer que vocês dois

iam me deixar voltar para casa a pé!

Ao som de uma breve buzinada de despedida -

provavelmente do pai dos gêmeos - o automóvel negro

acelerou e partiu, me deixando sozinho junto com os outros

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estudantes que saiam da Academia e partiam para os seus

destinos.

Ainda rindo sem saber o por quê, dei impulso no meu

skate e segui à toda na direção da Casa-de-Bombeiros. O

trânsito pelas ruas de Ventura aquela hora estava bastante

movimentado, por isso resolvi pegar um atalho. Como

esperado, a passagem subterrânea que cruzava uma das

avenidas principais se encontrava vazia e mal iluminada,

então me dei ao luxo de continuar na mesma velocidade que

estava sem me preocupar em ''atropelar'' alguém.

Porém, antes que eu pudesse chegar ao fim da

pequena via, um vulto alto e forte bloqueou o meu caminho,

seu rosto oculto por um capuz e sua mão direita armada com

uma barra de ferro. Assustado, parei o skate de forma brusca

e tentei me equilibrar sem ver o chão, meus olhos congelados

na figura ameaçadora á minha frente.

Por um minuto, me lembrei do jovem demônio

perseguidor. Mas, assim como naquela manhã, eu estava

completamente equivocado. Com uma destreza particular, o

vulto girou a barra de ferro em sua mão e puxou o capuz do

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seu casaco para trás, revelando seus olhos claros cobertos de

rancor.

- Oliver - sussurrei, tentando manter a calma - o que

você está fazendo aqui?

Com um sorriso sem humor algum, o rapaz parou e

me encarou, o bastão metálico ainda girando em sua mão. O

eco seco de passos às minhas costas me mostravam que ele

não viera sozinho. Quando me virei com cautela, vi Antoni e

Thomas se aproximando de mim, o primeiro segurando um

taco de beisebol e o segundo alizando um longo pedaço de

madeira.

- Hei, caras, nós sabemos que não precimos disso tudo

- tentei apaziguar, mas tudo o que eu consegui foi fazer

Oliver acertar a parede ao seu lado com a barra de ferro.

O som correu pela passagem e me encheu de pânico.

É claro que eu já havia brigado - ou melhor, apanhado -

outras vezes com aqueles caras. Porém, das outras vezes,

foram carne contra carne. Eu podia suportar. Só que, alguma

coisa me dizia, daquela vez eles queriam deixar uma

mensagem bastante clara para mim.

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- Regis, Regis... - suspirou Oliver, chegando mais

perto de onde estava - cadê toda aquela bravura que você

demonstrou pra gente hoje de manhã? Foi embora com a

garota?

Antoni e Tomas riram atrás de mim. De fato, pela

primeira vez na vida, eu queria mesmo que o ''Adrian

Rebelde'' e sem medo de ser expor estivesse ali para me

controlar. Mas, como ele mesmo disse, parecia que o meu

espirito destemido havia ido embora naquele carro elegante

junto com Líon e Serina.

- Você sabe que seria mais racional se você

simplesmente me dissesse para que, da próxima vez, eu

ficasse fora do seu caminho, não? - perguntei, pegando

cautelosamente o skate dos meus pés e o segurando á minha

frente.

- É claro que eu sei... - respondeu o líder dos

Privilegiados - Mas hoje eu estou afim de tirar um pouco de

sangue dessa sua carinha.

Se não fosse pelos meus dons de Arcano, eu tinha

certeza que teria caído no chão sem pensar duas vezes. Assim

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que terminou de falar, Oliver girou o seu bastão tão rápido

na minha direção que tudo o que eu pude fazer foi me

esconder embaixo da prancha do skate. O choque do metal

com a madeira o desequilibrou, mas isto não impediu que

seus amigos viessem ao seu auxílio.

Antes que os dois pudessem me atingir, joguei o meu

skate para trás com toda a força. A prancha os atingiu em

cheio no meio do estômago, e tanto Antoni quanto Tomas

foram arremessados para trás iguais à duas grandes e

horrendas marionetes. Recuperado do choque, Oliver tentou

me acertar mais uma vez, porém eu consegui ser mais rápido.

Aparei a barra de ferro entre as minhas duas mãos e a

entortei, transformando-a em um enorme ponto de

interrogação.

Aterrorizado, o garoto tentou fugir, mas era tarde

demais. A adrenalina tomava conta do meu ser, e tudo o que

eu via na minha frente eram formas escuras e vermelhas.

Sem dar margem para escapatória, peguei o filho do

Diretor Nigro pelo colarinho do uniforme e o joguei na

mesma direção onde seus amigos tentavam se levantar. O

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choque fez os três caírem novamente, uma emaranhado

grotesco de braços e pernas se movendo em todas as direções.

- Que tipo de coisa é você? - bradou Oliver, assim que

conseguiu se levantar e limpou o pequeno filete de sangue

que escorria pelo canto de sua boca.

Eu não tive tempo de responder que tipo de coisa eu

era. Após ajudar os amigos a se levantarem, Oliver e seus dois

comparsas correram á toda velocidade na direção contrária

da passagem subterrânea - deixando para trás apenas o taco

de beisebol, o pedaço de madeira e os bastão de ferro

retorcido.

Assim que os três saíram do meu campo de visão, um

poderoso sentimento de culpa me tomou. O que eu havia

feito? Eu usara meus dons de Arcano para machucar outra

pessoa, drasticamente mais fraca e quebrável do que eu.

Respirando rápido, tentei reunir todas as minhas

coisas que haviam se espalhado durante o confronto.

Enquanto jogava tudo o que eu alcançava para dentro da

minha mochila, eu pensava que Oliver poderia estar neste

exato momento contando para todos que conhecíamos o que

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eu havia acabado de fazer à ele, Antoni e Thomas.

E foi neste instante que a luz da passagem se ascendeu

e voltou a se apagar. Confuso, olhei para os lados para tentar

ver o que havia acabado de acontecer. Para meu espanto,

parado contra a luz do sol - no lado oposto do vão - se

encontrava a sombra alta e descamisada de um rapaz ruivo e

musculoso. Seus olhos negros como a noite me avaliavam

com atenção, um dos cantos de sua boca levemente repuxado

em uma expressão de contentamento.

Contrariando a lógica normal, me levantei e segui à

passos largos na direção do demônio que perseguia Líon e

que o empurrara da plataforma do Pavilhão de Tortura no

dia anterior. Quando cheguei perto dele, tudo fez sentindo.

Foi ele!

Aquilo tudo, desde de manhã, havia sido armado por

ele! O aprendiz de assassino havia controlado a Oliver e a

mim para que nos confrontássemos, para que eu usasse os

meus dons de Arcano. Por isso a sensação de ser tomado por

uma personalidade que não era minha.

- O que você quer? - cuspi com raiva, tendo que

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inclinar a minha cabeça para poder olhar o rosto zombeteiro

à minha frente.

- O que eu quero? - disse ele, com uma voz grave e

divertida - Hum, eu acho que você sabe... Eu quero você fora

do meu caminho!

Eu o admirei, minhas mãos fechadas em punho. Ele

estava pedindo para eu sair de fininho e observar Líon

morrer? Só podia ser brincadeira.

- Acho que isso vai ser meio impossível – respondi,

meus dentes tão cerrados quanto os meus olhos.

- Impossível, é? Então acho que vou ter que preparar

muitas outras brincadeiras para nós dois!

Com um sorriso maligno, o jovem demônio

tremeluziu e desapareceu. Eu ainda girei nos calcanhares, na

vaga esperança de o encontrar atrás de mim, mas tudo o que

eu podia ver era minha mochila, meu skate e a luz do sol que

invadia a pequena passagem - sem dar pistas da aparição que

havia acabado de se materializar ali.

157

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159 10. P E S A D E L O

Mesmo sabendo que estava seguro na Casa-de-Bombeiros,

meu coração continuava martelando forte contra o peito.

Durante todo o relato do meu encontro com o

demônio de Líon, meu pai e Angel não trocaram uma só

palavra. Cirus, que continuava usando o seu uniforme da

Brigada de Paramédicos, parecia aturdido ao escutar cada

descrição que eu fazia. Já minha tia olhava para mim em um

estado de choque, sua expressão mudando para a indignação

assim que terminei de contar tudo o que aconteceu.

- Eu não acredito que ele te ameaçou, veja só! Ou ele

não faz a miníma idéia com quem está se metendo, ou ser um

Arcano hoje em dia não deve significar mais nada...

Ainda pensativo, Cirus se levantou da poltrona onde

estava sentado e começou a andar de um lado para outro. Eu

sabia muito bem o que ele estava fazendo, e também sabia

que estava prestes a enfrentar um breve interrogatório.

Page 162: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

- Você disse que o demônio controlou você e Oliver?

- perguntou ele junto a mim, os braços cruzados sobre o

peito e seus olhos cinzentos mais frios do que eu já havia

visto até então.

- Bom, foi mais ou menos o que ele deu a entender -

repliquei, não estando tão certo sobre isto quanto antes.

Com um balançar de cabeça, meu pai voltou ao seu

percurso rotativo em meio a sala de estar, enquanto Angel se

ajeitava sobre o braço do sofá em que eu estava sentado.

- Mano, isto não faz o menor sentido! - disse ela, seus

olhos azuis congelados de espanto e dúvida – Demônios

Comuns não podem atuar no campo espiritual... Muito

menos infligir seus poderes à um Arcano.

- Mas é aí que está a questão - respondeu Cirus,

parando novamente de caminhar - Acho que o que ele fez foi

interferir nas emoções presentes no ambiente ao seu redor, e

para isto, nem é preciso atuar no campo espiritual. É como

possuir um corpo: ele vai controlar seu organismo, mas não

sua alma. Poucos seres da classe Comum sabem como fazer

isto, mas pelo jeito, o que nós estamos enfrentando é mais

Page 163: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

inteligente do que esperávamos.

Angel pareceu entender muito bem a explicação de

seu irmão, porém, eu continuava perdido e assustado. Agora,

mais do que nunca, Líon corria perigo. E não só isso: todos ao

seu redor, incluindo Serina e quem quer fosse, também.

- Sei o que está pensando - disse meu pai, parando ao

meu lado e passando seu braço pelo meu ombro – mas

acredite, tudo vai ficar bem. Temos que ficar mais alerta,

sim... Mas nada vai acontecer com seu amigo; lhe dou a

minha Palavra de Arcano.

Por um momento, olhei atônito para Cirus. A Palavra

de Arcano era o maior juramento que alguém como nós

poderia dar. Depois disso, vi que meu pai estava realmente

empenhado em me ajudar nesta missão.

- E agora, o que vamos fazer? - inquiriu Angel,

reunindo rapidamente seus cachos platinados com as mãos e

os prendendo com um elástico no alto da cabeça.

- Para início de conversa - começou Cirus, sua postura

reta e autoritária, em uma posição que eu intimamente

chamava de ''Módulo Arcano em Ação'' - Você e eu iremos

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pesquisar qualquer coisa que possa ter acontecido com o

rapaz ou que esteja relacionado à ele... Vamos procurar nos

hospitais, na delegacia, no corpo de bombeiros e até no

cartório. Qualquer informação, por menor que seja, pode ser

valiosa para nós.

Angel meneou a cabeça em concordância, se levantou

do braço do sofá e deixou a sala, como se fosse partir em sua

busca naquele exato instante.

- Quanto a você...

Antes que meu pai me dissesse qual era a minha parte

ativa no plano, eu já estava consciente do que iria fazer. Para

falar a verdade, eu meio que já sabia a minha função desde

que vira o demônio de cabelo cor-de-fogo no Pavilhão de

Tortura da Academia.

Eu seria o guardião secreto de Líon Biel.

A partir daquele instante, eu o seguiria para qualquer

lugar, estaria atento à tudo ao nosso redor e o protegeria da

menor ameaça que surgisse no nosso caminho - igual à um

cão de caça treinado... ou à um Anjo da Guarda, olhando a

situação por um ângulo mais objetivo.

Page 165: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

E foi exatamente o que eu fiz nas três semanas

seguintes.

Todos os dias, eu buscava o garoto em casa, o levava

para a escola e o acompanhava em todas as aulas. A volta era

bastante parecida, e eu só me sentia tranquilo quando via que

a porta de entrada da moradia dos Biel estava sendo trancada

à chave. Não que isso pudesse de fato deter qualquer

manifestação sobrenatural, mas a simbologia que a cena

representava me deixava muito mais calmo pelo resto do dia.

Um bônus inesperado que recebi por esta dedicação

foi a presença de Serina. Assim como eu, a garota

acompanhava o irmão na ida e na volta para casa. E, mesmo

tendo que dividir a sua atenção entre as dezenas de

seguidores que conquistara na Constantine, ela sempre

arrumava uma brecha para ficar na nossa companhia por um

tempo. E não era só a amizade com Serina que estava

seguindo um rumo diferente do qual eu previra.

Para minha surpresa, nem Oliver - nem nenhum dos

seus amigos - comentou um detalhe sequer da nossa briga

sob a passagem subterrânea logo no segundo dia de aulas. Na

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verdade, depois que o assunto esfriou em minha mente, eu

comecei a suspeitar que admitir que apanhara como nunca

do ''Mestre dos Esquisitos'' não era exatamente algo que o

líder dos Privilegiados estivesse louco para fazer - por mais

que isto pudesse arruinar a minha vida.

Não que o ato não tivesse gerado uma consequência.

Se antes Oliver não me suportava, agora ele me odiava

com todas as suas forças. Estava escrito, desenhado e

estampado na cara dele. Sempre que me virava na sala de

aula, o garoto parecia me encarar, seus olhos claros me

enviando onda atrás de onda de tensão. Como se fosse

possível, a cada dia que passava, a raiva parecia consumir o

filho do diretor aos poucos: Sua pele começou a ganhar um

estranho tom pálido, sua barba estava sempre por fazer, e seu

cabelo – outrora brilhante e dourado – parecia opaco e

apagado.

Se as coisas pareciam estar indo de mal a pior para

Oliver, o mesmo eu não poderia dizer sobre mim. Uma das

grandes vantagens de eu ter, praticamente, começado a

seguir os gêmeos Biel foi que um terço dos estudantes da

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Academia Constantine pareciam ter perdido a ''aversão'' que

sentiam por mim. Eles deviam pensar: ''se Serina e o irmão

parecem gostar dele, por que não dar uma chance?''

Às vezes, quando a garota conseguia um tempo e se

sentava com Líon e eu na hora do intervalo, Alice Corvel

trazia todas as suas amigas para conversar conosco, formando

um gigantesco grupo para lá de peculiar. Quando elas não

estavam por perto, Daniel Maltha e seus companheiros da

Equipe de Lutas vinham se encostar ao redor de mim e do

novato, rindo e falando sobre qualquer coisa: desde esportes

até o clima, mangás, filmes, música e... bom, meninas, é

claro.

Era confuso, mas eu me sentia normal pela primeira

vez. Quando eu passava pelo corredor, as pessoas agora me

cumprimentavam. E, como se não bastasse, nessas três

semanas eu não tive um vislumbre sequer do aprendiz de

demônio.

Mas não pense que isto fez com que eu abaixasse a

minha guarda, não mesmo. De vez em quando, eu me pegava

pensando na criatura, no que ela poderia estar tramando para

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desaparecer por tanto tempo. Na sexta feira, quando

estávamos na Biblioteca no horário da Rede de Leitura,

Serina me flagrou desenhando distraidamente as feições

nebulosas do perseguidor.

- O que você está fazendo? - perguntou ela, pegando o

meu caderno e encarando o esboço de um par de olhos

negros e famintos.

- Não é nada - respondi rápido, tentando tirar a folha

de suas mãos - é só um desenho-de-treino.

- Nossa, é tão lindo e... assustador ao mesmo tempo -

disse ela, me devolvendo o caderno e colocando o seu queixo

sobre as mãos.

- Ih, se prepara que ela vai te pedir alguma! -

sussurrou Líon ao meu lado, enquanto corria os olhos pela

página do livro que lia.

Com um movimento, a garota jogou o volume que

segurava na cabeça do irmão e se voltou para mim, como se

nada tivesse acontecido.

- Então - continuou ela, deslizando o seus dedos pela

espiral do meu caderno até encontrar a minha mão -

Page 169: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

Amanhã, a Equipe do Daniel vai enfrentar o pessoal do

Instituto Delta aqui na escola, à noite. As meninas todas vão

vir, e eu gostaria de saber se você não quer vir comigo?

Em uma batida, meu coração parou. Tentando

compreender o que estava se passando ali, olhei por sobre o

ombro da garota à minha frente e vi suas colegas reunidas

atrás de uma estante, observando nós dois sem pudor algum e

dando altas risadinhas. Já em algumas mesas de distância,

Daniel e os outros garotos da Equipe balançavam os braços

para mim, amostrando pequenos cartazes-de-papel com

dizeres como ''Vai fundo, cara!'' e ''Você é nosso herói!''.

Por um milésimo, me imaginei passeando com Serina,

nós dois de mãos dadas e quem sabe, bem... Mas, assim que

imaginei isto, percebi a presença de Líon ao meu lado e tudo

veio abaixo. Eu não podia deixá-lo sozinho para poder sair

com a irmã dele. As consequências de um erro meu poderiam

ser terríveis, e eu nem queria pensar nelas. Foi então que eu

tive uma idéia brilhante para aproveitar aquela oportunidade

única, não esquecendo dos meus compromissos de Arcano.

- É claro que sim - respondi, abrindo o sorriso que eu

Page 170: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

usava quando queria pedir alguma coisa para Cirus - mas eu

tava pensando: Por que não levar o Líon?

- Ah, nem pensar! - arfou o novato, olhando de mim

para irmã de forma carrancuda - É ruim que eu vou sair com

vocês pra ficar de vela!

Mas uma vez, a irmã pegou o livro que segurava e o

bateu na cabeça do irmão.

- Tudo bem, eu entendi! - disse Líon a contragosto,

massageando o ponto em que o livro o acertou - Isso não é

um encontro, é só uma saída de ''amigos''...

Ao falar ''amigos'', o garoto fez questão de formar

aspas no ar com os dedos. Mas aquilo bastou para ela e para

mim. No dia seguinte, lá estava eu, acompanhando os dois

gêmeos pelas ruas de Ventura, na direção do campus da

Constantine.

Já eram seis e meia da noite, e todas as luzes da escola

estavam ligadas. Olhando de relance para a fachada dos

prédios, a Academia mais parecia um castelo do que outra

coisa - suas pequenas luminárias banhando as paredes de

tijolos vermelhos de baixo para cima. Do lado de fora, nós

Page 171: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

conseguíamos escutar com nitidez a algazarra que vinha do

Pavilhão de Tortura e enchia o ar crepuscular da rua.

Quando finalmente chegamos ao Ginásio

Poliesportivo, onde aconteceria o Desafio de Lutas, a banda

do Instituto Delta terminava de fazer sua apresentação um

tanto desafinada ao som do clássico ''Hey, Mickey!''. Ao que

parecia, antes dos membros de cada equipe se enfrentarem

na arena, o pessoal das bandas faziam o mesmo - só que com

seus instrumentos, ao invés de braços e pernas.

Assim que encontramos o nosso lugar junto das

colegas de Serina, Daniel e seus companheiros se viraram

para mim e piscaram deliberadamente. Eu tentei fingir não

ver os olhos de Líon rolarem para o céu como se dissesse

''eles pensam que me enganam'', por isso tentei prestar

atenção ao máximo na Equipe da Constantine.

Eu não sabia como Daniel e os outros conseguiam se

sentir tão confortáveis estando naqueles colantes vermelhos.

Eram constrangedores. As Garotas da Conferida estavam

posicionadas estrategicamente logo atrás da área de

concentração do time da Academia, e toda hora elas

Page 172: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

apontavam para os rapazes de vermelho e se abanavam.

Depois do Diretor Nigro ir até o centro da Arena e

cumprimentar o administrador do colégio adversário cheio

de pompas desnecessárias, o juiz chamou os capitães das duas

equipes e explicou as regras. Daniel e o outro garoto

pareceram concordar com os termos apresentados, então os

dois tomaram suas posições na área atapetada e o juiz assoou

o apito.

Eu gostaria de dizer como foi a luta, mas não posso. E

quando eu digo não, estou querendo dizer na verdade ''não

sei o que aconteceu''. Pois, logo após que escutei o eco do

apito chegar até mim, eu senti uma dor alucinante rasgar o

meu cérebro e desmaiei.

Ao acordar, eu não estava mais no ginásio. Na

verdade, nem na Constatine eu deveria estar. Tudo ao meu

redor parecia escuro, e os único ruídos que quebravam o

silêncio era o barulho fraco de um motor e duas vozes

familiares cantarolando despretensiosamente ''Bohemian

Rhapsody'' atrás de mim.

Tentei abrir os olhos, mas minhas pálpebras pareciam

Page 173: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

pesadas e lentas. Com um esforço digno de Hécules, consegui

despertar de vez. Em um esgar de espanto, percebi que estava

sentado no banco do carona de um Táxi - o automóvel, cujo

o rádio parecia estar no último volume, percorrendo uma

longa avenida ladeada por grandes eucaliptos. Eu reconheci o

lugar (era a autopista que ligava Ventura à Dumont), só não

sabia por que estava ali.

Ao meu lado, o taxista - um homem alto e jovem, com

grandes costeletas e olhos brilhantes - concentrava toda a sua

atenção na estrada à nossa frente, nem parecendo perceber

que eu havia acabado de acordar. Ainda sentindo a forte dor

de cabeça, me virei na direção das vozes alegres e estridentes

que quebravam o silêncio dentro do carro e tentei ver quem

me acompanhava naquela viagem... mas tudo que eu

consegui foi me olhar no reflexo de um vidro escurecido,

refletindo nas sombras as curvas sinuosas do caminho.

De repente, em sincronia com o clímax da música, um

par de luzes ganhou vida do nada e eu senti o mundo inteiro

perder o eixo. Som de pneus freando e o barulho de um

automóvel capotando cruzou os ares da noite. O Táxi girou

Page 174: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

mais três círculos perfeitos de 360°, até que atingiu em cheio

o tronco largo de um eucalipto, fazendo o vidro dianteiro se

estilhaçar em mil pedaços.

Atordoado, tirei o cinto de segurança que me prendia

e corri para ajudar o taxista, que estava desacordado. O

homem tinha uma feia marca roxa na testa, mas graças ao seu

cinto, nada mais tinha sofrido. A barulheira produzida pelos

passageiros atrás de mim havia morrido, porém não me

preocupei - o maior dano estava na frente do Táxi, não atrás.

Respirando fundo, tentei abrir a porta do lado do

carona, mas não consegui. Olhando para os lados, usei minha

força extra e ainda assim a passagem continuava emperrada.

Aquilo era ridículo. Como eu iria ajudar os outros se

nem a mim mesmo eu podia ajudar?

Sentindo um forte arrepio, me virei para frente e o

meu sangue ferveu. Do outro lado da pista, um conversível

negro e elegante se encontrava de cabeça para baixo, seu teto

removível jogado à uns oito metros de distância. Eu não

conseguia ver como o motorista do outro carro estava, e

aquilo estava me deixando aflito.

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Fazendo mais força para me libertar, percebi que cada

vez mais as cores ao meu redor pareciam se esvair, e uma

névoa gélida e cortante começou a se espalhar pela via, suas

formas se espiralando e ganhando dimensões estranhas. Um

rasgar cortante e espectral cruzou a autopista, e com o

coração na mão, vi o dono do outro automóvel se arrastar por

debaixo da carroceria - seus braços e suas pernas em ângulos

macabros e impossíveis.

Congelado, vi o motorista se erguer igual à uma

marionete, seus pés trás traçando uma reta na direção do

Táxi abatido. Eu queria gritar, mas minha voz não saía e

todos os meus movimentos pareciam mais lentos. Curvando-

se na minha direção, o homem arrancou a porta do carona e

o jogou para longe, o metal produzindo uma chuva de faíscas

ao tocar o solo asfaltado à mais de quinze metros.

Reunindo toda a minha coragem, encarei o estranho

que se agigantava sobre mim e senti o choque me abater.

Recortado contra lua, o rosto maligno do demônio que seguia

Líon me encarava com prazer, sua cabeleira ruiva

vergastando contra o vento ártico.

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- Acho que nos encontramos de novo, não? - disse ele,

seu hálito pesado me atigindo com um soco. Antes que a

criatura fizesse algo mais, consegui me livrar das amarras

invisíveis que vedavam a minha boca e gritei.

E foi o meu grito sufocado que me libertou e me fez

acordar de verdade, estatelado sobre a maca de vinil negro da

Enfermaria da Constantine.

Quando abri os olhos, Serina e Líon estavam ao meu

lado, acompanhados por toda a Equipe de Lutas, mais Alice e

suas amigas. O Prof. Novaz avaliava metodicamente a minha

pressão, até que percebeu que eu havia acordado, e me

encarou com seus olhos imensos e simpáticos.

- Vejam só, o dorminhoco acordou!

A tensão que sustentava o ar se dissipou rapidamente.

Pude perceber cada músculo do maxilar do novato se

descontrair, e com um pequeno suspiro, sua gêmea chegou

mais para perto da minha cama e passou as mãos pelos meus

cabelos úmidos de suor.

Eu sabia que aquele não era um momento apropriado,

mas um terço da ligação que me tomou à três semanas atrás

Page 177: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

percorreu com força todo o meu corpo. Por um segundo, eu

queria que nos deixassem sozinho, e que parassem de olhar

para mim daquele jeito assustador.

- Hei, o que foi que aconteceu, cara? - perguntou

Daniel, dando um leve tapinha na minha perna direita -

Você nem viu a nossa escola estraçalhando os babacas do

Delta!

Com um incontrolável bocejo, me levantei da maca e

olhei ao meu redor. Eu não havia desmaiado - na verdade, eu

havia mergulhado no sonho que me atormentava quase todos

os dias, mesmo estando acordado. Algo me fez ficar

inconsciente, e algo havia me revelado a cena inteira do meu

pesadelo.

Até aquele momento, a cena sempre acabava quando

o motorista do outro carro arrancava a porta do carona e a

jogava para trás, suas mãos retorcidas se aproximando de

mim e tentando me pegar. Porém, hoje, eu vira o rosto dele...

e eu não tinha nem palavras para descrever o que estava

sentindo.

Aquilo era ruim. Muito ruim.

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- Eu, eu preciso ir para casa - sussurrei, minha voz

engrolada e seca como se eu tivesse acabado de ser resgatado

de um deserto. - Se acalme, jovem Regis - disse o Prof.

Novaz, pegando um estetoscópio e o levando na direção do

meu peito - Seu pai já foi avisado, e ele está vindo aqui para

buscá-lo.

- Mas e Serina, e Líon? Quem vai levá-los para casa?-

perguntei, olhando de um rosto a outro, como se pedisse

ajuda.

- Não se preocupe - disse Líon, passando o braço pela

cintura da irmã - Nossos pais já chegaram, eles vão nos levar.

Só estávamos esperando para ver se você estava melhor.

Sem saída, fechei os meus olhos em concordância e

deixei o socorrista terminar o seu trabalho. Tudo não havia

passado de uma ilusão. Eu nunca seria normal, e nada

poderia mudar essa condição. Esse tempo todo eu estava

tendo sonhos com o demônio assassino, mas só agora eu

descobrira.

Que tipo de Arcano eu era?

Olhando para os rostos preocupados que me

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rodeavam, percebi que as coisas haviam mudado, sim. E por

três semanas eu me deixei acreditar que eram para melhor.

Só então eu entendi que tudo fazia parte de uma

estratégia, um plano maligno e cruel.

Pois, olhando para aquelas pessoas, finalmente vi que

o jogo das sombras havia começado. E logo eu, o garoto mais

solitário de Ventura, enfim tinha muito mais coisas a perder

do que antes.

177

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179 11. M E N S A G E M

Aquele foi o pior domingo da minha vida.

Deitado na minha cama, repassei mentalmente todos

os acontecimentos do dia anterior: O mergulho para o

inconsciente, a visão do jovem demônio sobre mim, os rostos

de preocupação me rodeando na Enfermaria da Constantine,

a mão de Serina alisando os meus cabelos... Era como andar

em uma Montanha-Russa de emoções.

No meio da manhã, Daniel me ligou, perguntando

como eu estava me sentindo. Ele parecia realmente

preocupado, mas parte do meu cérebro se questionava como

ele havia conseguido o número do meu telefone.

- Foi como o prof. Novaz explicou - disse eu,

agradecendo em silêncio a boa desculpa que o socorrista da

Academia tinha providenciado para mim - Com esse estresse

do último semestre, a pressão para a Faculdade... Sabe como

é, a gente acaba se alimentando mau e... resultou nisto.

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Desidratação.

Eu sei, estava contando uma mentira deslavada. Não

estava desidratado. Nunca em minha vida eu havia deixado

de comer por qualquer coisa e muito menos estava

preocupado com a escola. Porém, eu não podia simplesmente

contar para ele o que de fato aconteceu.

- É, eu seu como é - continuou Daniel, sua voz um

tanto paternalista - Mas isso não pode se repetir! E se a

Equipe de Lutas por acaso ficar desfalcada para as Regionais e

precisarmos de um substituto? O que iríamos fazer?

Precisei de meio minuto para entender o que o rapaz

do outro lado da linha estava me falando. E precisei de mais

um minuto para compreender boa parte das três semanas que

haviam passado.

A aproximação repentina de Daniel e dos garotos da

Equipe nada tinha a ver com os irmãos Biel. De alguma

forma, o capitão e os outros rapazes descobriram o meu

pequeno duelo contra Oliver Nigro e dois de seus

cumpinchas mais habilidosos. E agora, para meu espanto,

eles me queriam perto do time - como um verdadeiro reserva

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de luxo.

- Eu... eu não sei o que dizer.

- Não se preocupe com nada - disse Daniel – Apenas

se cuide, valeu? Nos vemos amanhã na escola.

Antes que eu me recuperasse da surpresa e

conseguisse recusar o convite de forma gentil, a ligação

acabou.

- Ótimo... agora sim ferrou tudo - murmurei para

mim, recolocando o aparelho no gancho e indo para a

cozinha preparar o almoço.

Como eu esperava, nem Cirus nem Angel estavam em

casa. E, mesmo se estivessem, seria eu mesmo quem iria

preparar a refeição de qualquer forma. Por isso, enquanto

remexia na geladeira da cozinha procurando algo que fosse

rápido e fácil, tudo o que eu fazia era pedir a Deus que

nenhum integrante da Equipe de Lutas da Constantine se

contundisse durante esse último semestre.

Já estava bastante difícil de me concentrar só nas

ações psicóticas de uma criatura das trevas vingativa. Acho

que não precisava também de um processo por Lesões

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Corporais Graves para arruinar a minha vida.

Foi pensando nisso que eu acabei me lembrando de

Líon e Serina. Eu queria ligar para os dois, saber como eles

estavam, mas sabia que seria esquisito se eu o fizesse.

Segundo os últimos acontecimentos, era eu quem

precisava de atenção, não os gêmeos. Perdido neste torpor,

escutei a porta de entrada da Casa-de-Bombeiros ser aberta e

os passos pesados de Cirus se aproximarem da cozinha, seu

estômago roncando ruidosamente.

- Hum, torta de queijo! - exclamou meu pai, pegando

uma garrafa de água e se escorando no mármore da pia, onde

eu preparava o almoço - E aí, garoto, como você está se

sentindo?

- Normal - respondi, olhando diretamente para o

tabuleiro untado de manteiga em minhas mãos.

Cirus me encarou, esperando que eu continuasse a

frase, porém eu não falei nada. Quando o meu pai me pegou

ontem na escola, não comentei sobre o sonho que tive – o

sonho que me fez desmaiar do nada. Entretanto, como

sempre, ele sabia que eu estava escondendo algo dele. E

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como sempre, eu me sentia culpado por isso.

- Onde está a Angel? - perguntei, tentando

desesperadamente mudar de assunto.

- Não sei - disse ele, levando mais uma vez a garrafa

de água a boca - Hoje de manhã, quando estávamos na

garagem, ela disse algo sobre ''a peça que estava faltando''...

Sabe como aquela menina é, no mínimo tá aprontando

alguma coisa.

Concordei com a cabeça, mas ainda assim não olhei

para ele diretamente.

Depois de alguns minutos, logo após eu ter colocado a

massa da torta no forno para assar, Cirus se esparramou em

uma cadeira e me avaliou, seus olhos cinzentos tão brilhantes

quanto o flash de uma máquina fotográfica.

- Será que já disse para você que eu te acho o pior

mentiroso do mundo?

Sentindo um arrepio na espinha, me virei para ele e

suspirei, obrigando os meus lábios a falarem tudo o que eu

estava ocultando desde a noite anterior.

- O que aconteceu na escola não foi um desmaio

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clínico - disse por fim, o peso que estava sobre as minhas

costas se agravando gradativamente - Algo me fez ficar

inconsciente...

- ... e eu acho que sei quem foi - completou Cirus,

suas feições duras e sérias.

- Pai, como isso é possível? - questionei, lutando para

que minha voz mantivesse o tom calmo - Eu não sei o que

ele está planejando, mas eu sinto como se estivesse

enlouquecendo!

- É esse o seu problema, Adrian - murmurou meu pai,

se colocando ao meu lado em um átimo de segundo, seu

braço esquerdo descansando de forma gentil nos meus

ombros tensos - Você se deixa abalar facilmente. De cara ele

percebeu isto, e está óbvio que o demônio está usando suas

emoções ao favor dele.

Mesmo eu não querendo admitir, Cirus estava coberto

de razão ao meu respeito. Por isso que, depois de servir o

almoço para nós dois (Angel ainda não havia aparecido) e

arrumar a bagunça que tinha ficado na cozinha, fui para o

meu quarto e me obriguei a pensar com clareza.

Page 187: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

Eu sabia que meu pai não iria me interromper pelo

resto dia - domingo era o ''Dia de Total Reclusão'' dele -

então não vi necessidade de trancar a porta. Durante a tarde

inteira, e boa parte da noite, vaguei de um lado para o outro -

forçando a mim mesmo a me controlar. Se aquela criatura

estava pensando que iria usar meus próprios medos contra

mim mesmo, ela podeira tirar o seu par de asinhas coráceas

da chuva.

Antes que desse por mim, a escuridão da madrugada

se dissipou e os primeiros tons do alvorecer iluminaram o

vasto céu aquarelado de Ventura. Fiquei um curto tempo

sentado na minha cama, observando a constelação de poeira

matinal atravessar a janela do quarto, até que o relógio digital

soou o seu alarme – ironicamente entoando a melodia

compassada de ''Bohemian Rahpsody'' - e eu me vi

levantando e me arrumando mecanicamente para o novo dia

de escola.

Não procurei por Cirus, muito menos por Angel. Para

falar a verdade, nem tinha a noção se minha tia havia voltado

para casa ontem. Tudo o que eu queria era sair dali e ver se

Page 188: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

Serina e Líon estavam bem. Se nada de ruim havia

acontecido com eles enquanto estava longe. Por isso que eu

acho que dá para imaginar de uma forma bastante clara como

eu fiquei surpreso quando abri a porta da Casa-de-

Bombeiros, pronto para partir, e me deparei com os gêmeos

empoleirados na soleira da entrada - os rostos idênticos

franzidos em apreensão.

- Vejam só, o Belo Adormecido finalmente saiu do

castelo! - exclamou Líon, ao mesmo tempo em que Serina me

estendia um grande copo de isopor repleto de chocolate

quente, seu sorriso solar se expandindo pelo rosto.

- Nós estávamos preocupados - disse ela, encolhendo

os ombros delicadamente assim que viu a minha expressão

confusa - Não paramos em casa ontem, mas não fiquei um

minuto tranquila. Você realmente nos assustou no sábado!

De forma inconsciente, a garota ergueu a mão direita

e passou pelo meu braço, como se para ter certeza que era eu

mesmo ali na frente dela. Em resposta ao seu toque, pude

sentir minhas orelhas ficarem quentes, e o velho rubor se

espalhando pelas minhas bochechas.

Page 189: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

- Eu... eu estou bem - disse por fim, assim que

consegui tomar o controle das minhas cordas vocais. - Foi só

um ataque de fraqueza. Não precisava se preocupar.

Muita mais poderosa do que da primeira vez, a

sensação da ligação que me tomava sempre que eu

encontrava Serina encheu o ar à nossa volta como uma

tempestade elétrica. Por um segundo, me permiti mergulhar

nos olhos escuros da garota, sua pele castanha

resplandecendo contra a minha, alva e pálida.

- Será que o dois já terminaram de flertar? - retrucou

Líon, esfregando suas mãos uma na outra - O dia está lindo

como sempre, mas aqui fora parece que está caindo neve!

Como se despertasse de um sono profundo, Serina

olhou envergonhada para a mão que continuava a alisar o

meu braço esquerdo. Assim que ela recolheu o seu toque,

minha pele protestou indignada. Fingindo não escutar o

martelar desvairado do meu coração, tranquei a porta às

minhas costas e acompanhei os dois na diração da escola.

- Então Adrian - começou Serina, passando o seu

braço sobre o ombro do irmão, tentando ao máximo disfarçar

Page 190: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

o que havia acabado de acontecer - Você soube? Já

começaram a planejar o nosso Baile de Formatura.

Em resposta à novidade, senti os meus ombros se

encolherem e minha garganta se fechar com um ruído fraco.

O Baile de Formatura da Academia Constantine era

mais uma tentativa frustrada e clichê do Diretor Nigro de

induzir cada veterano de sua instituição à se sentir em um

filmeco adolescente feito para a televisão. Como a cerimônia

era o auge do reinado dos Privilegiados, não precisava pensar

muito por que eu não gostava nem um pouco de me imaginar

pisando no salão de festas do Grand Hotel Ventura – onde

sempre aconteciam os eventos de gala da cidade - na noite do

Baile.

Para piorar as coisas (ou refrescar ainda mais a minha

memória), assim que chegamos ao campus da Academia, vi

um grupo de zeladores estendendo na Torre do Relógio uma

enorme faixa vermelha com os dizeres:

16º Baile Anual de Formatura ''UMA NOITE CELESTIAL''

Ingressos na Secretaria

Page 191: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

- Urgh, que tipo de tema é esse? - indagou Líon,

olhando tão exasperado para o cartaz quanto eu – ''Uma

Noite Celestial''?! Já posso imaginar as fantasias bizarras que

vão surgir no dia...

Serina pareceu indignada com o comentário do irmão.

Depois de olhar do novato para mim, ela meneou a cabeça

com reprovação e saiu apressada na direção do Pavilhão de

Tortura, não antes de murmurar um ''garotos...'' impiedoso

para nós dois.

- Mas o que foi que eu fiz? - resmunguei admirado, ao

passo que olhava o rastro deixado por Serina enquanto se

afastava de onde estávamos - Eu não disse nada de ruim

sobre esse maldito Baile!

O garoto se virou para mim com uma careta que dizia

claramente ''uma imagem vale mais do que mil palavras'',

mas no fim, ele acabou inspirando fundo e falando com uma

calma bastante fingida:

- Basta comprar os convites, levá-la para esta tal festa

e ela vai se esquecer de tudo... Eu garanto.

Já imaginando o sangue que deveria estar se

Page 192: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

concentrando em minha face, encarei Líon sem saber o que

fazer. Revirando os olhos deliberadamente, o rapaz girou nos

próprios calcanhares e me puxou para os vestiários, seus

passos tão apressados que quase me obrigou a correr atrás

dele.

Para nosso espanto, não se via o sinal da Treinadora

Kara em lugar algum da entrada do Pavilhão - o que era

bastante atípico, já que toda as segundas-feiras ela recebia os

alunos do último ano em frente ao portão de folhas duplas do

ginásio.

- Deus, esse lugar está tão escuro! Onde está todo...

Antes que Líon pudesse completar a pergunta, um grito alto

e agudo quebrou o silêncio do Pavilhão e se chocou contra a

parede atrás de nós, de forma fria e cruel. Não pensando em

nada, olhei brevemente para o novato ao meu lado e

corremos o máximo que podíamos - o máximo que eu podia

sem revelar o meu segredo - e irrompemos na área da

piscina, o sangue fervendo em minhas veias.

- Eu não estou enxergando nada! - exclamei, tateando

as cegas pela escuridão, à procura da caixa de força do

Page 193: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

Pavilhão de Tortura. Quando encontrei o interruptor certo,

puxei a alavanca para cima e cobri o meu rosto, esperando

que as minhas pupilas se dilatassem até que eu me

acostumasse com a forte luz artificial e pudesse ver alguma

coisa.

Parado á alguns metros na minha frente se encontrava

Líon. O garoto estava meio curvado e meio agachado sobre

uma forma emaranhada e um pouco estendida no chão de

mármore, seu rosto oculto pelas sombras produzidas por seu

cabelo lanzudo. Só pude distinguir os contornos outrora

elegantes e retos de Serina quando me aproximei da cena, o

corpo de seu gêmeo a cobrindo gentilmente - como se a

protegesse de algo que eu ainda não conseguia decifrar.

- O que foi que aconteceu? - sussurrei sem fôlego,

minha voz tomada pelo choque de ver as lágrimas de terror

escorrerem livremente pela face delicada da garota, seu

uniforme desalinhado e amarrotado.

Com um leve movimento, o garoto ergueu o queixo e

me indicou o que estava assustando sua irmã, seus grandes

olhos escuros denunciando todo o medo que ele estava

Page 194: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

sentindo no momento. Um pouco mais adiante, uma mancha

escarlate escorria pelo chão.

Foi o cheiro que denunciou tudo. Antes que eu

chegasse mais perto, o odor metálico e pungente me atingiu

em cheio. Respirando forte, olhei para o piso aos meus pés e

me deparei com uma única palavra escrita no chão, em

grandes letras vermelhas:

C H E Q U E

- Isto... isto é sangue - suspirou Serina com força, as

lágrimas ainda manchando o seu rosto - Isto foi escrito com...

com sangue.

Mas aquilo não era tudo.

Um pouco mais à frente, o corpo de um homem alto e

atlético boiava de bruços na piscina, uma horrenda mancha

carmesim tomando conta da água ao seu redor. Meu

estômago embrulhou na hora, mas nada teve haver com o

sangue espalhado por todo o lugar ou pelo grande buraco

escuro que se abria onde um dia foi um crânio humano... Era

Page 195: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

pelo simples fato de eu conhecer quem era o estranho,

mesmo estando de costas para mim.

Ele era o taxista.

O cara que estava ao meu lado todas as vezes em que

sonhava com o demônio que perseguia Líon.

- Temos que sair deste lugar. Agora!

Sem dar chances do novato ou sua irmã protestarem,

guinchei os dois pelos ombros e os levei à passos largos para

fora do Pavilhão de Tortura.

Eu tinha certeza, a mensagem escrita no mármore era

para mim. E, por mais que não parecesse, o seu significado

era bastante simples e claro: a primeira rodada do jogo havia

acabado. E se eu não corresse logo, esta seria apenas a minha

primeira derrota.

193

Page 196: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto
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195 12. A R Q U I V O M O R T O

- Não me mande ficar calmo! - bradou o Diretor Nigro, no

auge do seu descontrole - Um homem foi encontrado morto

na piscina da minha escola! O que esperava que eu fizesse?

- Eu não esperava nada - respondeu o Delegado

Maltha, sua voz baixa e cautelosa - só gostaria que o senhor

mantivesse um pouco de compostura na minha Delegacia, se

é que posso lhe cobrar isto.

Qualquer que fosse a resposta que o Dir. Nigro

esperava, certamente não era aquela. Com um suspiro

forçado, ele encarou por um segundo o homem de olhos

verdes por detrás da mesa atravancada de papéis à sua frente

e começou a caminhar de um lado para o outro no pequeno

escritório - parecendo mais do que nunca um velho leão

sufocado em uma jaula estranha.

Líon, Serina e eu havíamos tido o prazer de presenciar

uma verdadeira Disputa de Poder. E pelo o que eu conseguia

Page 198: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

entender, o pai de Daniel tinha acabado de levar a melhor.

Mas, por mais interessante que aquele duelo de egos poderia

parecer, eu não estava nem um pouco interessado.

Nós três já estávamos presos naquele escritório

pequeno e escuro à mais de quatro horas, tive que prestar

depoimento para o escrivão no mínimo umas duas vezes,

meu cérebro latejava forte e sem piedade contra o meu

crânio e tudo o que eu queria era poder ir embora dali o mais

rápido possível.

Não fazia sentido eu ficar parado, esperando, sem

fazer nada.

A polícia simplesmente não tinha meios, nem era

páreo para pegar o verdadeiro culpado. Somente um Arcano

poderia deter o assassino. Somente eu tinha que acabar com

a raça daquele demônio ruivo.

Alheia à confusão que se passava em minha cabeça,

Serina tentava se manter calma respirando com força – sua

cabeça recostada pesadamente no ombro de Líon, enquanto

sua mão direita segurava firme a minha mão esquerda. Se eu

não soubesse o motivo por detrás daquele gesto, eu teria

Page 199: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

amado a sensação de sua pele contra a minha, de nossos

braços se tocando levemente...

Mas eu sabia.

Muito mais do que os gêmeos poderiam suspeitar.

E aquilo me matava.

Do outro lado do sofá apertado que dividíamos, o

novato mantinha o seu olhar perdido, as mãos pálidas

acolhendo com energia um volume grosso e elegante de capa

dura, a luva envernizada do livro sem uma única marca de

dedo. Pode parecer maluquice, mas foi só neste momento

específico que percebi que Líon sempre vivia colado com

algum livro, o carregando para cima e para baixo.

- Ótima capa - sussurrei, me agarrando à idéia de uma

conversa furada com todas as minhas fibras - Pelo título

parece ser bom.

Líon ergueu seu olhar abatido para mim e se forçou a

sorrir, seu rosto mais velho do que ele realmente era.

- É fantástico - disse ele de volta, sua voz mais fraca

do que a minha, enquanto acariciava com ternura as

pequenas letras prateadas do título – Este é um dos meus

Page 200: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

preferidos.

- Legal - comentei, espiando de relance o caminhar

imperativo do Diretor Nigro - Então, ele fala sobre o quê?

Pela desenho desta fita e tal, eu diria que é um mistério... ou

romance.

Com um riso apagado e baixo, Serina tirou a cabeça

lentamente do ombro do irmão e me encarou, sua mão

pulsando marotamente contra os meus dedos.

- Você vai ser arrepender de ter feito essa pergunta -

cochichou a garota, indicando seu gêmeo com o queixo - Lí é

a maior ''traça-de-biblioteca'' que eu já conheci na vida, pode

confiar em mim.

Antes que ela percebesse, Líon se sacudiu e empurrou

a irmã para o lado, tentando se afastar dela. Em um dia

normal, eu teria certeza que aquela havia sido uma

implicância comum entre os dois, mas hoje não. Era visível o

nosso esforço para parecermos naturais, e eu não os culpava

por isso - eu mesmo me esforçava para parecer o mais natural

possível.

Assim que me recostei novamente no meu canto do

Page 201: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

sofá, a porta do escritório foi aberta e um jovem policial se

esgueirou para dentro, desviando-se da marcha metódica do

Dir. Nigro, até se aproximar da mesa onde o Delegado

Maltha estava.

- Senhor, os responsáveis das testemunhas já

chegaram.

- Muito bem - disse o delegado, retirando os olhos da

papelada que examinava e se virando para o sofá onde os

irmãos Biel e eu estávamos encolhidos - Agora já podemos

tomar o depoimento dos gêmeos. Garoto Regis, o senhor está

liberado.

Com um breve aceno de cabeça, me despedi de Líon

e, depois de apertar um pouco mais a mão de Serina,

acompanhei o policial para fora do escritório.

Logo depois de cruzar a porta, um casal se aproximou

de mim e eu tive que parar. Eles não eram pessoas

conhecidas, mas eu sabia muito bem de quem eles eram pais.

O homem, alto e forte, tinha os cabelos cor-de-bronze

cuidadosamente penteados e o rosto quadrado contrastando

de forma simétrica com a serenidade que exibia. Já a mulher

Page 202: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

era um pouco mais baixa que ele, com um rosto

perfeitamente redondo e delicado igual à de um anjo, sua

pele da cor do ébano parecendo ser tão macia quanto seda.

- Você deve ser o Adrian Regis, não?

Sem dar tempo para qualquer resposta, a mãe dos

irmãos Biel me puxou para mais perto e me enlaçou em um

longo e profundo abraço. Eu poderia ficar um pouco

embaraçado com a situação, mas só naquele gesto eu

conseguia sentir todo o amor e adoração que a mulher nutria

pelos filhos fluir para mim. Um pouco atrás da esposa, o pai

de Líon e Serina me examinava com inegável respeito, o

agradecimento mudo presente em seu olhar.

Mesmo depois de me separar do casal e observar os

dois entrarem juntos no escritório do Delegado Maltha, a

minha voz ainda não havia voltado. Agora que eu conhecia

pessoalmente os pais dos gêmeos, eu mais do que nunca me

sentia a maior fraude do mundo. Um Arcano completamente

incompetente, que não conseguia nem lidar com um

demônio Comum.

Como eu iria me sentir se aquela família fosse

Page 203: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

destruída, por uma falha minha?

O jovem policial que me acompanhava indicou o

caminho para a saída e eu o segui. Do lado de fora, Cirus e

Angel me esperavam, meu pai ainda vestindo o uniforme da

Brigada de Paramédicos. No início eu achei ótimo ter os dois

ali, assim eu falaria logo tudo o que tinha para contar, mas

depois de ver as expressões sérias tomando o rosto de cada

um, não sabia mais se aquela era uma boa ideia.

- Adrian, precisamos conversar.

Eu não disse!

Só por essa frase do Cirus eu sabia que vinha mais

bomba na minha direção. E foi com esse peso no estômago

que eu segui meu pai e minha tia até o estacionamento

deserto e entrei relutânte no nosso Mustang vermelho.

- Legal, podem acabar comigo de uma vez! - comecei,

meu sangue correndo à mil por hora nas minhas veias – Mas

eu só gostaria de lembrar que esta é a minha primeira

Missão, logo eu...

Não me dando chances de continuar a minha defesa,

Cirus virou-se para mim do banco do motorista e jogou no

Page 204: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

meu colo uma pesada pilha de jornais e recortes velhos. Por

um segundo, a única coisa que eu consegui fazer foi ficar

olhando para o bloco de papel àspero em minhas mãos, me

perguntando aonde o meu pai queria chegar. Era certo que

eu esperava o maior sermão que alguém já temera receber na

vida, mas aquilo com certeza não se enquadrava em

categoria alguma de punição.

- O que significa tudo isto?!

- Apenas leia as notícias, está bem?

Era isso, só ler as notícias. O que só podia significar

que a situação estava ficando pior do que eu imaginava.

- Será que você pode fazer isto um pouquinho mais

rápido? - disse Angel, remexendo-se com impaciência no seu

banco.

- Tá bom, tá bom. Não precisa ficar irritadinha! -

respondi com acidez, ao mesmo tempo que pegava o

primeiro jornal da pilha.

Antes mesmo de eu desdobrar a primeira página, o

choque me atropelou feito um trem desgovernado.

Encabeçando uma notícia de destaque, a foto de um rapaz

Page 205: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

ruivo e bonito, com profundos olhos negros, me encarava

sorridente e meio debochado - como se soubesse o salto

vertiginoso que o meu coração dera ao vê-lo ali.

- Mas... mas... é ele! É o demônio que está tentando

matar o Líon!

- Sim, foi o que Angel e eu supomos – comentou

Cirus, seus olhos cinzentos indo do papel nas minhas mãos

até o meu rosto - Agora vá até a página seis e leia a matéria

completa.

Obedecendo à meu pai com um profundo temor, corri

as folhas do jornal rapidamente e encontrei a notícia

relacionada à manchete, meu dedos tremendo tanto que eu

mal conseguia distinguir os parágrafos de forma correta:

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O CORREIO DE VENTURAPOLÍCIA DE DUMONT ENCERRA INQUÉRITO SOBRE ACIDENTE

Depois de três semanas de intensa investigação, o 12ª Departamento de Polícia dos

Três Estados finalmente concluiu o inquérito sobre o trágico acidente ocorrido na

rodovia que liga as cidades de Ventura e Dumont, envolvendo dois adolescentes e

um jovem universitário.

''Não foi um caso exatamente complicado'', declarou um dos detetives

responsáveis por conduzir o caso, ''mas haviam uma dúzia de fatores que

precisavam ser concluídos, antes que déssemos fim aos trabalhos e reuníssemos os

arquivos''.

Segundo o relatório oficial, o incidente ocorreu na noite de Sexta Feira

(21), pouco antes da meia-noite. De acordo com a perícia, o taxista Xavier Goldin

– de 29 anos - realizava sua última viagem acompanhando os irmãos Líon e Serina

Biel – ambos com 17 anos - , quando os três foram surpreendidos pelo estudante

de medicina Alexander Morton – de 24 anos - , que dirigia o seu conversível

importado na contra-mão e acima do limite de velocidade.

''O exames laboratoriais confirmaram que Alexander ingeriu uma grande

quantidade de álcool e drogas ilícitas antes de pegar o volante, o que contribuiu

para o acidente e, obviamente, o rápido falecimento do mesmo'', afirma o detetive,

salientando os fatores que causaram o óbito do universitário antes mesmo da

chegada da primeira ambulância no local do acidente.

Apesar de terem sofrido apenas ferimentos leves, fontes ligadas aos dois

passageiros e ao motorista do táxi informaram que os sobreviventes estão

constantemente recebendo consultoria psicológica de uma junta médica do

Hospital Geral de Dumont. Procurados pela nossa equipe de reportagem, nenhum

dos envolvidos no incidente quiseram prestar uma declaração sobre o

encerramento do inquérito.

Page 207: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

Mesmo tendo terminado de ler a notícia, por um bom

tempo eu encarei apenas o jornal na minha frente. Naqueles

poucos segundos de silêncio, o meu sonho se materializou

diante de mim e eu pude visualizar perfeitamente Xavier

Goldin ao meu lado, concentrado na estrada com todas as

suas fibras. No banco de trás, as risadas altas e alegres de Líon

e Serina eram liberadas aos borbotões, os dois nem

imaginando o que iria acontecer a seguir.

- Adrian, você está bem?

Angel me observava com cautela, seus grandes olhos

azuis me escaneando da cabeça aos pés.

Eu gostaria de dizer à ela que estava bem - que aquilo

me dera forças para continuar a minha missão - mas eu

saberia que era uma mentira. A verdade era que, a cada dia

que passava, as coisas pioravam mais. Descobrir que uma

parte do meu sonho fora real, que esse tempo todo eu ''via''

os irmãos Biel no meu subconsciente, só me deixou mais

arrasado ainda.

- Alexander Morton... então, esse é o nome do

demônio.

Page 208: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

Nem Cirus nem Angel falaram nada sobre o assunto.

Só menearam a cabeça em concordância, todo o peso do

mundo pairando sobre os dois. Eles nem precisavam se dar ao

trabalho de esboçar qualquer reação ao meu comentário, eu

estava cem por cento certo quanto a isto.

Com um lampejo, me lembrei do meu primeiro dia de

aula e de meu pai lendo o jornal na nossa cozinha, falando

sobre a conclusão das investigações de um acidente em

Dumont envolvendo jovens. Depois, a imagem do Dir. Nigro,

engolindo todo o seu autoritarismo e tratando Líon da forma

mais afável que podia me encheu a mente - só para ser

substituída depois pelo próprio novato, sozinho na

enfermaria e me confidenciando os problemas pelo qual a

sua família vinha passando nos últimos tempos.

- Como pude ser tão imbecil? Como pude ser tão

obtuso com relação aos sinais que me rodeavam?

Mais uma vez, nenhuma resposta oral.

Agora eu percebia que o demônio, Alexander Morton,

não estava perseguindo só o Líon - mas também Serina e o

taxista, Xavier. Alexander Morton queria vingar a sua morte.

Page 209: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

Se vingar das três pessoas que haviam sobrevivido ao seu

acidente fatal, que ele mesmo provocara.

Fora por isso que a família Biel resolveu se mudar

para Ventura. Eles estavam tentando reconstruir suas vidas

novamente, bem longe das lembranças daquele terrível dia.

Só que eles não contavam que a lembrança principal não

estava nem um pouco disposta a ser esquecida.

- Angel - comecei, me lembrando de algo que minha

tia dissera assim que chegou na Casa-de-Bombeiros – eram

eles, não eram? A família que você estava tentando ajudar em

Dumont, mas que foram embora antes de você poder fazer

qualquer coisa.

- Sim - confirmou ela, simplesmente - mas eu não

fazia idéia que eram eles quem você estava protegendo. Só

fiz a ligação dos fatos ontem de manhã, quando encontrei o

jornal na garagem. Infelizmente, ao que parece, foi tarde

demais.

- Não seja ridícula - a cortei, mais ríspido do que o

necessário.

- Como não? Eu não sabia da existência do taxista,

Page 210: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

nem imaginava que houvesse um acidente na história! Para

mim, Alexander só estava perseguindo a família Biel por uma

obsessão doentia... O pai dos garotos era tutor dele na

Faculdade.

- O quê?! - golejei, a confusão mais uma vez

fervilhando em minha mente.

- Você pode não saber, Adrian, mas Marcus Biel é um

renomado médico-cirurgião - enquanto falava, Cirus se

inclinou sobre mim e pegou a instável pilha de jornais em

meu colo - Há um mês ele pediu transferência para o

Hospital daqui da cidade, e só agora me dei conta do por quê

- depois de uma rápida conferida, meu pai estendeu sua mão

e colocou um pequeno recorte sobre a notícia que eu acabara

de ler - Essa matéria aqui fala justamente da grande ironia

causada pelo acidente: Um dos estagiários mais brilhantes

que o Dr. Biel monitorava no Hospital Geral de Dumont

quase causou a morte prematura de seus dois únicos filhos.

Eu olhei para a fotografia séria do pai dos gêmeos e

me lembrei do nosso pequeno encontro na Delegacia, à

poucos minutos atrás. Será que ele suspeitava que seu ex-

Page 211: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

protegido ainda estava tentando destruir a vida de sua

família?

- Eu não sei o que pensar - disse por fim, jogando tudo

que eu segurava no chão do Mustang - Parece que estou

mergulhando em queda livre para dentro de um grande filme

de terror.

- Então acho melhor você se preparar por mais -

recomeçou Angel, sua voz cantada e cristalina repinicando

misteriosamente - Ontem à tarde, enquanto procurava mais

informações sobre o Morton, acabei descobrindo algo que

pode nos ajudar.

Abrindo o porta-luvas do carro, a garota puxou duas

fotocópias amassadas e as passou rapidamente para Cirus e

para mim. Depois de uma rápida conferida na folha, percebi

que o papel era a reprodução de um documento hospitalar,

mais precisamente uma ficha de internação, no nome de

''Suzana N. Leniscky''.

- Quem é Suzana N. Leniscky?

- Ah, eu sabia que vocês iriam perguntar – Angel

recostou-se em sua poltrona, e um tímido sorriso de triunfo

Page 212: Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto

brincou em seus lábios - Suzana N. Leniscky nada mais é do

que a ''namorada-viúva'' de Alexander Morton.

Cirus e eu nos encaramos por um breve momento.

- Hum, claro - pigarreou meu pai, analisando mais um

vez a ficha com afinco - Mas aqui não diz por que ela foi

internada recentemente em uma ''Casa de Repouso''.

Desta vez, eu consegui ligar os pontos mais rápido do

que Cirus.

Afinal, o que um responsável ''normal'' faria se sua

filha chegasse em casa e falasse que estava tendo encontros

esporádicos com o namorado morto?

- Angel, acho que nós precisamos urgentemente

conversar com Suzana N. Leniscky.

210

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211 E P Í L O G O

O caos da cena era delicioso. Criava a quantidade perfeita de

desordem para que ele pudesse ficar completamente invisível

em meio à confusão.

Entretanto, todo este cuidado não era necessário. O

aprendiz de Arcano estava bem longe, protegendo de forma

inconveniente as suas presas, e só haviam humanos ao redor.

Mas era assim que Alexander Morton gostava de operar.

Exatamente indetectável.

Apesar da caçada ser a força motora principal que o

fazia continuar naquele jogo, secretamente, era este o seu

prazer culposo. Observar a sua obra – o resultado de um

assassinato – exposto ao mundo. Como deveria ser.

Afinal de contas, foi um despejo na água... Em uma

piscina de colégio. Alguém acabaria encontrando, mais cedo

ou mais tarde. A única surpresa, foi a rapidez com que a

mensagem foi entregue aos verdadeiros destinatários.

Mas estava tudo bem. Era este o objetivo. E, mais uma

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vez, o seu objetivo fora alcançado.

Perfeito.

Equipes de polícia e bombeiros trabalhavam em

conjunto para preservar a cena enquanto vasculhavam as

águas e varriam as margens em busca de provas. Algo

deliciosamente inútil.

Observou enquanto curiosos e estudantes se

empurravam e puxavam uns aos outros, tentando enxergar

melhor o que havia acontecido. Gostava da energia que

irradiavam, dos desejos insaciáveis pelos detalhes mais

sórdidos, não importando quão repulsivos ou perturbadores

pudessem ser.

E, agora, estavam vorazes.

Ele ficou mais próximo, ouvindo, deliciando-se com

aquele circo sinistro. Falavam sobre a sua obra, sobre o que

ele fizera, sem nem perceberem que o autor estava entre o

grupo.

Aquilo o animava. Sentia-se poderoso. Vivo.

Com isto, as chamas em seu peito se abrandaram, e ele

decidiu que já tinha visto tudo o que precisava para manter-

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se bem.

Hoje tinha sido um bom dia, e o demônio estava

satisfeito. Por enquanto.

FIM DO LIVRO UM.

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215 A G R A D E C I M E N T O S

Escrever um livro não é fácil. Começar uma série, então, é algo que

não tenho palavras para descrever. Por isto gostaria de agradecer uma

turma que me apoiou ao longo de todo este tempo, me dando forças

para continuar com este projeto e não me deixaram desistir, mesmo

ele sendo um pouco ambicioso demais para que um escritor em

treinamento bancasse praticamente sozinho.

Em primeiro lugar, não poderia falar de outra pessoa, se não a

minha super-incrível mãe, que me ensinou à ter paixão pelos livros e

que é tão incomparável que eu simplesmente não consegui criar uma

representante à altura de sua magnitude e personalidade para inserir

nesta história. Valeu, Dona Tininha!

Além da my fair lady, eu também tenho a obrigação de dar os

meus '' muito origado'' ao Senhor Carlos Henrique, que ainda pode

não ter um Mustang 64 vermelho irado (nem uma motocicleta), mas é

um pai tão ''garotão'', corajoso e irritante para mim quanto o Cirus é

para o Adrian.

Ainda na família, é lógico que eu tenho que agradecer à

minha irmã gêmea do mal, que mesmo não sabendo, foi a responsável

por uma das personagens mais importantes da trama. Viviane, você

pode negar à vontade, mas todos sabemos que a senhora foi o Sonho

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Adolescente de mais ou menos 95% dos meus amigos na adolescência.

Fora a minha turma de casa, eu preciso cumprimentar

também a todos os meus amigos, que sempre me fazem sentir como se

eu fosse alguém importante só por quê escrevo histórias - em especial

à...

Natália, valeu pelas nossas milhares de horas de ''papos

cabeças'', pelo Drumondzinho e por sempre ver o lado profundo de

tudo – mesmo até quando nem eu vejo! Patrícia, muito obrigado por

todas as vezes que você puxava a minha orelha para saber se os

manuscritos já estavam prontos (viu, agora estão!). Symathon, eu

nunca posso me esquecer da primeira pessoa que apostou em mim.

Yes, man, we can!

Também tenho que dividir este espaço com toda a galera do

blog ''Terra das Sombras'' e da comunidade ''Os Segredos de Uma

Noite'', que acompanharam (desde o comecinho) o nascimento de

uma fic que – com muita energia positiva – se transformou em um

livro. Peeps, palmas e reverências para vocês!

Muito, muito, muito obrigado ao pessoal que lota as paredes

do meu quarto de sonhos, aventuras e descobertas e obrigado à Deus

por ter colocado tanta gente do bem na minha vida.

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A SAGA DAS SOMBRAS CONTINUA COM

Terra das SombrasLIVRO DOIS: O INIMIGO

SAIBA O QUE VEM DEPOIS...

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1. O D E S P E R T A R

Era noite, e o bosque estava escuro como breu. O topo dos

grandes eucaliptos se escondiam no infinito negro à minha

cabeça, e uma névoa fina e rastejante impregnava-se no

musgo aos meus pés, formando um imenso oceano verde e

branco.

Eu sabia que estava na Reserva Florestal de Ventura.

Tudo naquele lugar, desde as árvores até o formato

das elevações do terreno mais à frente, me eram familiar. O

que não sabia, na verdade, era o que eu estava fazendo ali,

parado no meio do nada.

- Achei que nunca chegaria... - sussurrou uma voz

feminina, clara e musical, bem atrás de mim.

Sobressaltado, virei-me com pressa, preparado para

atacar o que estivesse à espreita. Só não contava encontrar

com Serina, sentada tranquila sobre as raízes de um

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imponente eucalipto, os cabelos cor-de-chocolate ondulando

ao seu redor. Mesmo nas sombras, sua pele morena irradiava

um brilho dourado e quente, intensificado pelo belo vestido

marfim que usava.

- Eu...eu... eu não esperava lhe encontrar aqui -

respondi, mal disfarçando minha surpresa.

Sem se deixar abalar pelo meu mau jeito, a garota se

levantou da base da árvore com tal leveza que me pareceu

que ela nem havia feito algum esforço. Antes que eu pudesse

pensar em alguma coisa, Serina já estava diante de mim, seu

rosto angelical apenas à centímetros de distância do meu.

- Você é bonito - disse ela simplesmente, erguendo a

mão direita com delicadeza e acariciando minha face.

Não posso descrever com palavras tudo o que senti

naquele momento. Para falar a verdade, acho até que não

tenho coragem de contar algumas coisas que pensei quando

ela me tocou. O que eu posso dizer é que meu corpo reagiu

das maneiras mais estranhas... Meu coração disparou como

cavalos em uma corrida, meu sangue ferveu como se eu

ardesse em febre e minha garganta se fechou - me obrigando

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a respirar por um breve e lento arquejo.

- Me desculpe - murmurei, enquanto ela continuava a

explorar o meu rosto com as mãos. Para meu espanto, Serina

aproximou-se mais um passo de mim e encostou a sua bela

cabeça em meus ombros.

Foi aí que entrei em parafuso.

Quase que tomado por uma força sobrenatural, apertei

a garota firmemente entre os meus braços e mergulhei o meu

nariz na base suave e perfeita de seu pescoço. Com um

profundo suspiro, inspirei todo o perfume adocicado que sua

pele castanha exalava, correndo os meus dedos com cuidado

pelos seus cabelos e por suas costas.

E assim ficamos os dois, por um tempo que me

pareceu uma eternidade... até que toda a cena mudou em um

piscar.

A névoa, que antes era alva e rasteira, começou a se

elevar perigosamente - ganhando um mórbido tom de

chumbo. Um vento frio e úmido vergastou os nossos cabelos,

ao passo que a estranha sensação que eu havia sentido à um

mês na piscina da Constantine começou a tomar conta do

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meu corpo novamente.

Rápido como um relâmpago, coloquei Serina sob a

proteção de minhas costas e me agachei, me preparando para

o ataque que estava por vir. Mesmo sem poder vê-la, eu sabia

que a garota deveria estar congelada no lugar - suas mãos,

apoiadas em meus braços, estavam gélidas e escorregadias.

- Não se preocupe, vai ficar tudo bem... - disse em um

tom baixo, mesmo sem ter plena convicção do mesmo.

Vasculhei a floresta à minha frente, procurando por

qualquer sinal da coisa que se aproximava. Mesmo forçando

os meus olhos ao máximo, eu não enxergava nada a não ser

as árvores e a neblina. Aquilo não me tranquilizou. Mesmo

não o vendo, eu sentia que havia algo por ali, espreitando a

mim e a garota - só esperando o momento certo para

aparecer.

E ele apareceu... mais cedo do que eu esperava, e

muito mais rápido do que eu julgava ser capaz.

Surgindo em meio a neblina, Alexander Morton

emergiu do espesso mar branco-pérola, caminhando

lentamente na direção da campina em que eu e Serina

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estávamos. O rapaz trajava apenas uma velha calça de brim

preta e seus cabelos ruivos ricocheteavam no alto de sua

cabeça como violentas chamas vivas. Os seus olhos, negros e

com as pupilas dilatas iguais à de uma fera em caça,

transmitiam uma frieza perversa que destoava por completo

do rosto bondoso; um verdadeiro lobo na pele de cordeiro.

Muito mais fatal e cruel.

- Quem é ele? - perguntou Serina, sua voz cantada

tomada de pânico.

- Não tenha medo... Tudo vai se resolver.

Ao escutar nosso pequeno diálogo, o demônio parou e

inclinou a cabeça para o lado. Seu rosto estava impassível,

livre de qualquer expressão. A esta altura, eu já podia

imaginar o que estava para acontecer. Com um último

impulso, me afastei brevemente de Serina, colocando-me

mais à frente - dando uma chance, por menor que fosse, para

a garota escapar.

Por um minuto, ficamos parados - apenas nos

encarando. Eu sabia que o momento do ataque estava para

chegar. E também sabia que ele seria letal. Assim, quando o

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ser se agachou, pronto para dar o bote, eu respirei fundo. Era

o meu fim, e não via como poderia terminar de outra

maneira. Sem pestanejar, Morton lançou-me um último

sorriso e saltou - tão alto quanto um gato e tão rápido quanto

uma pantera.

Não pensando em nada, fechei os meus olhos, me

preparando para a dor que viria me atingir... E ela veio.

Menos penosa do que eu podia supor, e muito mais gelada.

Despertei enroscado no meu cobertor e estatelado de

cara no chão. Minha cabeça martelava devido ao impacto da

queda e os meu tórax ardia com a falta de ar. Com os dentes

cerrados, inspirei profundamente e tentei me recompor. Sem

paciência alguma, puxei o lençol que me enrolava com força

e o joguei em cima da cama. O quarto ainda estava escuro, e

a rua lá fora não emitia um barulho sequer.

Acordado na madrugada de novo. Quanta novidade.

Ainda sentindo o meu corpo, me apoiei

desengonçadamente na janela e me pus a observar a cidade.

Diferente das outras noite, o céu estava nublado, coberto por

nuvens macabras de cores esverdeadas. Os velhos edifícios

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pontiagudos do centro recortavam a paisagem de um jeito

nem um pouco acolhedor. E ao fundo, os imensos eucaliptos

nas encostas das colinas agitavam-se furiosamente contra o

rotineiro vento ártico.

Sem pensar em nada, fechei a janela contra a friagem

que invadia o meu quarto e me virei na direção da cama.

Mesmo tendo uma visão apurada no escuro, não consegui

evitar o encontrão que dei na escrivaninha. Com o solavanco

inesperado, todas as coisas que estavam sobre a mesa se

esparramaram no piso do quarto, me obrigando a me abaixar

e arrumar tudo.

Bufando de contrariedade, peguei a maioria dos

papéis, meu player de mp3 e a luminária desligada e

empurrei tudo de uma vez só para o tampo do móvel.

Quando me preparei para guardar as folhas novamente

dentro da pasta onde deveriam ficar, me deparei com o

desenho de Serina que eu havia feito assim que as aulas

começaram.

Ao olhar para o rosto no papel em minhas mãos, senti

o meu estômago despencar. Desde a segunda feira retrasada,

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quando o corpo de Xavier Goldin foi encontrado boiando no

meio da piscina olímpica do Pavilhão de Torturas, eu não

tive mais notícias dos gêmeos.

Confesso que no começo achei que esta havia sido a

melhor forma dos dois lidarem com os acontecimentos -

afinal, não se falava em outra coisa nos corredores da escola

(pelo visto, eu era o único em toda a cidade que não sabia dos

motivos da mudança de Líon e Serina para Ventura), e vez

ou outra eu reconhecia um repórter-sensacionalista

rondando a porta de entrada do Dr. Biel e sua família atrás de

um furo jornalístico.

Mas depois de uma semana, quando a poeira - e as

fofoquinhas maldosas - finalmente começaram a baixar, vi

que a auto-reclusão obrigatória planejada pelos dois não era

nem um pouco temporária.

- Eles estão bem, Adrian - falava a mãe dos garotos,

toda vez que eu ligava para a casa dos irmãos em busca de

algum sinal de vida - Só precisam de um pouco de descanso...

Não precisa se preocupar.

''Tarde demais'', eu resmungava, assim que recolocava

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o aparelho no gancho. A questão na verdade era que eu,

enfim, havia despertado - e a cada dia que passava, via com

mais clareza o perigo real que Alexander Morton

representava.

Contrariando todas as expectativas, ele tinha plena

consciência dos poderes que estava ao seu dispor; aparecera

para um ser humano comum, quebrando todos os protocolos

e paradigmas; dera cabo de um homem, da forma mais cruel

possível - e ao que parecia, não iria sossegar (ou deixar ser

apanhado por um Arcano em Treinamento) enquanto não

superasse a sua morte...

... Enquanto não se vingasse de Líon e Serina.

Com a cabeça cheia de temores e preocupações, meu

humor na semana seguinte decididamente foi para o buraco.

Mesmo depois de descobrir um homem morto dentro do

campus restrito e vigiado da Constantine, as pessoas

(principalmente os alunos) não pareciam mais se perturbar

tanto com o assunto.

Se antes o tom da conversa girava em torno de

perguntas do tipo ''quem será que colocou o taxista aqui na

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Constantine, e por quê?'', agora o burburinho era sobre

futilidades como ''que tipo de fantasia eu devo usar na festa

de Formatura?'', ou ''Será que a minha mina vai deixar eu ir

para a faculdade virgem?''.

Acreditem, não inventei nenhuma das pérolas citadas.

O ápice da minha impaciência ocorreu na sexta-feira,

pouco antes das aulas acabarem. Daniel e eu guardávamos o

nosso material na mochila (o capitão da equipe de Lutas

ocupava o lugar que rotineiramente era de Líon), quando

Oliver Nigro se aproximou de nós, mais magro e pálido do

que nunca.

- Ora, vejam só - resmungou o rapaz ao meu lado,

assim que percebeu a presença do filho do Dir. Nigro - a que

devemos a honra de receber a visita do Rei da Academia

Constantine?

Por um segundo, pensei que Oliver fosse responder à

Daniel com a sua grosseria costumeira - mas, para minha

surpresa, tudo o que ele fez foi esboçar um sorriso apático

para o capitão e levantar as duas mãos, em sinal de rendição.

- Calma aí, amigão... Vim em missão de paz!

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''Missão de Paz''? Esse cara só podia estar querendo

tirar um sarro da minha cara...

Antes que eu desse por mim, uma risada sarcástica e

grotesca escapou da minha boca, paralisando no lugar o

restante da turma que ainda se retirava da sala de aula.

Impassível, Oliver me encarou demoradamente, seu rosto

congelado em uma expressão tão propriamente divertida que

(não sei por que motivo) me fez tremer por dentro.

- Como eu estava dizendo - continuou o rapaz, sem

tirar aquele olhar estranho de cima de mim - vocês devem

saber que o Baile de Formatura está se aproximando, não?

Eu me controlei para não responder. É claro que nós

sabíamos disso - se a pessoa fosse surda o suficiente para não

escutar o burburinho pelos corredores, bastava olhar para as

dezenas de flâmulas e cartazes coloridos espalhados

estrategicamente pela escola.

- Sim... E o que nós dois temos a ver com isso? -

perguntou Daniel, tirando as palavras da minha boca.

Sem pestanejar, Oliver abriu o seu paletó e tirou de

um bolso interno dois folders impressos em papel vermelho,

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do mesmo tom usado nos materias de circulação interna da

Academia.

- É que, para alguns, existe um evento muito mais

esperado do que o Baile organizado pela escola - o filho do

diretor Nigro olhou para os lados e diminui o seu tom em

duas oitavas - e, cai entre nós, não estou falando do última

dia de aula!

Por um breve momento, o capitão da Equipe de Lutas

e eu trocamos uma significativa mirada. Só a ideia de estar

tendo uma conversa ''conspiratória'' com Oliver me causava

arrepios... Ainda mais agora, quando o rapaz decididamente

resolvera explorar o seu lado mais sombrio.

- Você ficou maluco?! - esbravejou Daniel, picotando

rapidamente o folder em sua mão e pegando a mim e ao líder

dos Privilegiados de surpresa - Se o seu pai te pega com isso,

eu nem quero estar perto para saber o que vai acontecer!

- O que Arthur Nigro não sabe, não precisa saber -

retrucou Oliver, deixando transparecer em sua voz uma

ligeira ponta de amargura - Além do mais, a festa vai

acontecer fora do campus da Constantine...

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- Hei, do que vocês estão falando? - interrompi, me

sentindo mais perdido do que um cego em um tiroteio - E

que história é essa de festa?

Com um movimento rápido, Daniel puxou o encarte

remanescente da minha mão e o elevou na altura do meu

rosto. Depois de um minuto de leitura, meu estado de

espirito estava tão alterado quanto o do garoto ao meu lado.

- Vocês estão planejando uma ''Festa dos Veteranos''? -

perguntei, não acreditando no que estava escrito no papel.

Em resposta à minha exaltação, tudo o que Oliver fez

foi se virar novamente para mim e me lançar aquele olhar

estranho.

Oras, como ele esperava que eu reagisse?

A Festa dos Veteranos nada mais era que uma espécie

de preparação para o Baile de Formatura não supervisionada,

onde os estudantes tinham a oportunidade de se esbaldarem

até o dia raiar, entornando litros e mais litros de álcool e

fazendo coisas que não fariam nem em sonhos na frente do

pais.

Acho que nem preciso me dar ao trabalho de dizer que

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este evento era terminantemente abominado pela Junta de

Pais e Mestres da Academia Constantine - com direito a

suspensão registrada na ficha escolar em todo aquele que

ousasse pensar em realizar a festa.

Mas é claro que para Oliver e todos os seus seguidores

Privilegiados, esta regra não passava de uma lenda.

- Só queria deixar claro que eu informei pessoalmente

todos os alunos do último ano sobre essa nossa ''reunião'' -

dessa vez, toda a simpatia e humor que Oliver havia usado

até então foi substituída rapidamente pela sua usual ameaça

jovial - Então, se alguém der com a língua nos dentes, eu e

meus amigos saberemos exatamente quem foi.

Aquilo foi a gota d'água.

Se já não bastasse ter que me preocupar todos os dias

com os planos malignos de um jovem demônio perseguidor,

agora tinha que também ter o cuidado de não estragar a

bacanal proibida dos alunos do último ano... Quem eles

pensavam que eu era?

- Acho que você se esqueceu da nossa última

''conversa''! - explodi, o sangue pulsando em minhas orelhas.

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- Não me esqueci não - o filho do Diretor Nigro se

aproximou de mim de forma ameaçadora, nós dois separados

apenas pelo espaço ocupado por Daniel Maltha - E é

justamente por isso que estou lhe avisando...

Antes que eu pudesse pular em seu pescoço, Oliver

girou sobre os calcanhares e deixou a sala de aula, seu cabelo

louro ressecado fustigando à brisa do início da tarde e seus

ombros caídos, como se carregasse sobre si todo o peso do

mundo.

Era engraçado, mas mesmo eu estando ali no meu

quarto, um dia inteiro depois desse nosso encontro, aquela

vontade louca de esganar meu ''arqui-inimigo de colegial''

ainda não havia passado - e dessa vez eu nem podia colocar a

culpa em Alexander Morton por isso.

- Problemas para dormir?

Depois de quase dar um mortal de costas pelo susto,

me virei rapidamente na direção da porta e vi tia Angelina

parada na soleira do meu quarto, vestindo um leve robe de

seda rosa sobre seu pijama de mesma cor, os cabelos

prateados firmemente presos em um rabo de cavalo.

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- Escutei um barulho - disse ela, apoiando-se na

parede com seu jeito displicente - vim ver o que era.

- Não... não foi nada - me apressei a dizer, guardando

o desenho de Serina em minha pasta - só ''coisas da escola'',

sabe como é...

- Sim, acho que sei - num piscar de olhos, Angel

moveu-se da entrada do meu quarto e foi até a beirada da

minha cama, onde o folder vermelho da Festa dos Veteranos

jazia incólume - E aí, preparado para amanhã?

Sinceramente, não sabia o que responder.

Desde de segunda feira, quando por fim eu abri os

olhos e descobri toda a verdade sobre a história por detrás da

vinda dos irmãos Biel à Ventura, a coisa que eu mais queria

fazer era me encontrar com Suzana N. Leniscky e interrogá-

la de todas as formas possíveis para poder saber como

Aexander Morton apareceu para ela, e o que ele poderia estar

tramando. Porém, agora que faltava poucas horas para a

nossa visita à Casa de Repouso, eu não sabia muito bem o que

fazer por lá.

- Será que esta é uma boa ideia? - perguntei, uma

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estranha sensação de vazio se apoderando da boca do meu

estômago.

- Esta é uma ótima ideia - respondeu Angel com

simplicidade - Além do mais, você quer que algo de ruim

aconteça com o seu amigo? Quer que este tal de Morton

consiga aprontar alguma coisa com a Serina?

- É claro que não! - exclamei, minha voz mais feroz do

que o necessário.

- Então está esperando o quê para ir dormir?!

Aceitando o conselho com determinação, guardei

minha pasta de desenhos na gaveta da minha escrivaninha,

puxei os lençóis que estavam espalhados pelo chão e me

esgueirei para cima da cama, as molas do colchão

protestando ruidosamente sob o peso do meu corpo. Minha

tia estava certa; eu estava em uma missão... Uma missão cujo

o prêmio nada mais era do que a salvação de duas pessoas que

haviam deixado o meu mundo de cabeça para baixo. Não

havia tempo para eu ter um ataque de ''dilemas

adolescentes''.

- Angel - sussurrei, me dando conta de um detalhe

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somente quando me encolhi debaixo da proteção e do calor

dos meus cobertores - Por que você deu dois pesos diferentes

para a situação do Líon e da Serina?

- Bom, acho que todos nós sabemos muito bem o por

quê... - foi tudo o que ela disse quando apagou a luz do

corredor e se retirou de forma elegante e graciosa do meu

quarto, um sorriso conspiratório lhe tomando a face.

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H E N R I B. N E T O

Nasceu no Rio de Janeiro, no ano de 1989, assim como os

seus personagens. Apaixonado por livros desde pequeno,

é um ''escapista''de carteirinha, e tem como grande

paixão a Literatura de Fantasia e Sobrenatural.

Atualmente, ele divide o seu tempo entre a

Faculdade de Pedagogia, seu blog sobre romances para

o público Jovem-Adulto e na produção dos

novos volumes da ''Saga das Sombras''.

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