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RODOLFO ANDRADE DE GOUVEIA VILELA DESAFIOS DA VIGILÂNCIA E DA PREVENÇÃO DE ACIDENTES DO TRABALHO: A Experiência do Programa de Saúde Do Trabalhador de Piracicaba; Construindo Prevenção e Desvelando a Impunidade CAMPINAS 2002

TeseRodolfoVilela Acidentes Trabalho p353

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RODOLFO ANDRADE DE GOUVEIA VILELA

DESAFIOS DA VIGILNCIA E DA PREVENO DE ACIDENTES DO TRABALHO:A Experincia do Programa de Sade Do Trabalhador de Piracicaba; Construindo Preveno e Desvelando a Impunidade

CAMPINAS 2002

RODOLFO ANDRADE DE GOUVEIA VILELA

DESAFIOS DA VIGILNCIA E DA PREVENO DE ACIDENTES DO TRABALHO:A Experincia do Programa de Sade Do Trabalhador de Piracicaba; Construindo Preveno e Desvelando a Impunidade

Tese de Doutorado apresentada Ps-Graduao da Faculdade de Cincias Mdicas da Universidade Estadual de Campinas para obteno do ttulo de Doutor em Sade Coletiva.

ORIENTAO: PROF. aDra. APARECIDA

MARIIGUTI

CAMPINAS 2002

iii

FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DA FACULDADE DE CINCIAS MDICAS UNICAMP

V71 ld

Vilela, Rodolfo Andrade de Gouveia Desafios da vigilncia e da preveno de acidentes do trabalho: A experincia do programa de sade do trabalhador de Piracicaba; construindo preveno e desvelando a impunidade / Rodolfo Andrade de Gouveia Vilela. Campinas, SP: [s.n.], 2002 Orientador: Aparecida Mari Iguti Tese (Doutorado) Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Cincias Mdicas.

1. Acidentes do trabalho. 2. Sistema nico de Sade. 3. Investigao. 4. Responsabilidade civil. 5. Responsabilidade penal. 6. Impunidade. I. Aparecida Mari Iguti. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Cincias Mdicas. III. Ttulo.

IV

Banca examinadora da tese de Doutorado

Orientador: Profa. Dra. Aparecida Mari Iguti

Membros:1, Profa. Dra. Aparecida Mari Iguti 2. Prof. Dr. Ildeberto Muniz Almeida 3. Prof. Dr. Luiz Carlos Morrone 4. Prof. Dr. Nelson Rodrigues dos Santos 5. Profa. Dra. Marlsa Bert de Azevedo Barros

Curso de ps-graduao em Sade Coletiva da Faculdade de Cincias Mdicas da Universidade Estadual de Campinas.

Data: 20/12/2002

DEDICATRIA Dedico este trabalho minha filha Julia da Silva Vilela Pela sua forma doce de superar obstculos e romper os maiores desafios.

AGRADECIMENTOS

Agradeo companheira e esposa Reginalice pelo estmulo e pela ajuda, pela solidariedade e acalento indispensvel nos momentos de angstia. Agradeo tambm aos meus filhos pela compreenso e pela ajuda tcnica operacional; aos familiares pela compreenso nas ausncias. Agradecimentos a todos que participam deste esforo coletivo que resulta nesta experincia, com destaque aos membros da equipe de Sade do Trabalhador de Piracicaba, pela solidariedade, trabalho conjunto e pela compreenso: Clarice Aparecida Bragantini; Eliete Sabino Santin; Ecla Spiridio Bravo; Joo Augusto Scarazatti; Maria Valria de Andrade Alvarenga; Sandra Renata C. Duracenko; Silvana Mara Rasera Ferreira, aos estagirios e amigos, bem como aos profissionais do Ministrio do Trabalho e Emprego que acreditam nesta proposta. Agradeo aos amigos e companheiros Gil Vicente Fonseca Ricardi (Ministrio do Trabalho de Piracicaba) e Marcos Oliveira Sabino, perito do Ministrio Pblico Federal do Trabalho (XV Regio) pelo estmulo, idias, informaes e atuao conjunta em diversos momentos que fazem parte da prtica aqui analisada. Agradecimentos ao Francisco Pinto Filho, Presidente do Sindicato dos Trabalhadores do Setor de Papel e Papelo de Piracicaba e Joo Augusto Ribeiro e demais membros participantes das atividades de negociao e dos eventos promovidos pelo Conselho Municipal de Preveno de Acidentes e Doenas Profissionais - COMSEPRE. Um agradecimento especial Dra.Aparecida Mari Iguti pelo atencioso e dedicado trabalho de orientao, e aos professores Ildeberto Muniz de Almeida e Dra Mariliza Berti de Azevedo Barros, pelas sugestes durante a qualificao do projeto. Agradeo CAPES pelo apoio na forma de bolsa durante o primeiro ano da ps-graduao. A todos muito obrigado!

SUMRIO

PG. RESUMO ABSTRACT APRESENTAO 1. OS ACIDENTES DO TRABALHO NO CONTEXTO DA PRODUO - A MAGNITUDE DO PROBLEMA 1.1. O modelo flexvel, a organizao do trabalho e os impactos na sade e segurana do trabalhador 1.2. Concepo e mtodos de investigao de acidentes do trabalho 1.3. Acidentes e mtodos de investigao 1.4. Risco de acidente e risco grave e iminente 1.5. Causas e responsabilidade nos acidentes do trabalho 1.6. Responsabilidade civil e penal nos acidentes do trabalho 1.7. Responsabilidade penal no acidente do trabalho 2. DESAFIOS DA VIGILNCIA EM SADE DO TRABALHADOR NO SUS 2.1. Alguns aspectos conceituais 2.2. O movimento pela sade do trabalhador 2.3. Vigilncia sade e vigilncia em sade do trabalhador 2.4. Vigilncia em sade do trabalhador 2.5. A atuao dos programas e dos centros de referncia em sade do trabalhador 142 115 117 124 129 134 ':. 44 60 83 88 95 97 107 37 xix xxiii 27

xi

2.6. Aspectos legais da atuao do SUS em sade do trabalhador 2.7. Sobre as estratgias de ao e de interveno 2.8. Informao em sade do trabalhador - as bases para a ao 2.9. A experincia americana de vigilncia com base nos Eventos Sentinela 2.10. Algumas observaes sobre a atuao do Ministrio Pblico na vigilncia em sade do trabalhador 2.11. Uma reflexo sobre a Vigilncia Sanitria 2.12. O municpio em cena 3. A CONSTRIO VIGILNCIA NA PRTICA DO PST DE

156 167 171 174

185 188 191

PIRACICABA 3. Apresentao 3.A. O contexto local / cenrio da atuao - o municpio de Piracicaba 3.A.I. Resgate de um primeiro perodo de implantao 3.B. Elementos centrais de construo interinstitucional de aes preventivas 3.B.I. As necessidades B.l.l. Necessidade de base legal para atuao B.1.2. Necessidade de respaldo poltico: a construo da articulao interinstitucional B. 1.3. A necessidade da equipe mnima e de meio s de trabalho 3.B.2. As demandas 3.B.3. A construo do sistema de informaes 3.B.4. A priorizao de aes: interveno nos casos de acidentes fatais B.4.1. 1998: Acidente fatal em elevador de carga. B.4.2. 1.999: Acidente fatal - Elevador de carga IIxiii

195 197 198 207 208 208 208

210 214 215 217 224 224 233

B.4.3. 1999: Acidente fatal em empresa de papel - manuteno de telhado B.4.4. 2.000: Acidente fatal em mquina de papel 3.C. Os impactos das aes do PST 3.Cl. Impactos 2 - 2001: A negociao setorial nas empresas de papel e papelo de Piracicaba 3.D. A construo do Sistema de Vigilncia em Acidentes do Trabalho SIVAT 3.E. Estudo comparativo dos acidentes do trabalho investigados pelo PST&MTE e Instituto de Criminalstica 3.E.I. Acidente fatal em elevador de carga. 3.E.I.I. Anlise comparativa das duas investigaes 3.E.2. Acidente fatal em mquina de papel 3.E.2.I. Anlise comparativa das duas investigaes 3.E.2.2. O questionamento da impunidade: anulao do laudo do IC... 3.F. A dimenso da impunidade - estudo descritivo de 71 laudos do IC 4. DISCUSSO 4.1. Discusso sobre o estudo dos laudos do IC 4.2. Discusso sobre a vigilncia em sade do trabalhador e sobre a experincia do PST de Piracicaba 5. CONCLUSES 6. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 7. ANEXOS 7.1. Io

242 250 264

266

269

274 276 280 283 289 294 298 305 307

310 315 319 345 347

Acordo Municipal de Preveno de Acidentes do Trabalho na

Construo Civil

XV

7.2. PIRACICABA EM DEFESA DA VIDA. Declarao de Compromisso pela Preveno de Acidentes do Trabalho 7.3. Comisso tripartite de negociao em sade e segurana do trabalho no setor de papel, papelo e artefatos de Piracicaba. Declarao de Princpios da Negociao em Sade e Segurana no Setor de Papel e Papelo de Piracicaba 7.4. DECRETO MUNICIPAL N 9.951 de 08 de Agosto de 2002 - Dispe sobre a Notificao Obrigatria de Acidentes do Trabalho atravs do Relatrio de Atendimento aos Acidentados do Trabalho - RAAT 7.5. Ofcio SCPG - SC n 178/00 de 13/09/2000 solicitando acesso aos Laudos do Instituto de Criminalstica de Piracicaba 7.6. Quadro Resumo dos 71 Laudos de Investigao do Instituto de Criminalstica

xvu

RESUMOXIX

A tese tem como objetivos colaborar na elaborao de polticas pblicas, discutindo as estratgias de implantao de Programas de Sade do Trabalhador, especialmente na vigilncia, investigao de causas e preveno de acidentes do trabalho. Tem ainda como objetivos especficos reconstruir a estruturao do Programa de Sade do Trabalhador (PST) de Piracicaba, buscando atravs da sua histria (1997-2002) identificar os elementos centrais que permitiram a construo de um espao privilegiado interinstitucional para a efetiva atuao preventiva. Quanto ao mtodo utiliza-se de abordagem qualitativa, por meio de pesquisa documental junto aos materiais produzidos pelo PST de Piracicaba, relativos ao perodo de 1997 a 2002; apresenta estudo de 04 casos de acidentes do trabalho fatais ocorridos nos anos de 1998, 1999 e 2000 e seus desdobramentos preventivos; apresenta o estudo comparativo de dois casos investigados tanto pelo PST como pelo Ministrio de Trabalho e Emprego de Piracicaba e pelo Instituto de Criminalstica (IC), verificando as diferenas de abordagens entre os laudos; por fim realiza pesquisa documental e estudo analtico descritivo junto aos 71 Laudos do IC de Piracicaba referentes aos anos de 1997, 1998, 1999 e 2000. So identificados quatro elementos centrais da construo interinstitucional de Aes Preventivas no Municpio de Piracicaba: necessidades, demandas, sistema informaes e priorizao de aes. Na investigao de quatro casos de acidentes fatais dos setores da construo civil e da fabricao de papel e embalagens, utilizando-se o mtodo da Arvore de Causas (ADC), constata-se a falta de medidas bsicas de segurana em mquinas e equipamentos bem como em elevadores de carga em obras da construo civil. Aps a aplicao de penalidades administrativas, os casos do origem a processos de negociao tripartite setorial, para a preveno de novos acidentes. efetuada ainda a comparao dos relatrios e laudos oriundos da investigao dos acidentes efetuada tanto pelo Programa de Sade do Trabalhador como pelo Instituto de Criminalstica, visando avaliar os resultados e comparar as duas abordagens. de

Resumo

xxi

A pesquisa revela a importncia de aes interinstitucionais, a parceria entre o Programa de Sade do Trabalhador da Secretaria Municipal de Sade de Piracicaba, com membros do Ministrio do Trabalho e Emprego, a integrao do servio com as universidades locais e com representantes da sociedade civil na preveno e promoo da sade. Prope-se ao final um sistema de vigilncia aos acidentes graves e fatais, nos moldes de eventos sentinela, que inclui um sistema de informao com vrias fontes, a busca ativa de casos (locais de atendimento, sistemas de resgate, delegacias de polcias) e o registro das ocorrncias na rede de pronto atendimento desencadeando posteriormente aes preventivas ou negociaes coletivas tripartites e setoriais para preveno dos riscos mais relevantes. Revela ainda que o Instituto de Criminalstica utiliza na investigao dos acidentes mtodos e concepes tendenciosas para a apurao das causas, com base num modelo terico ("ato inseguro" das vtimas) que serve para descarregar no trabalhador toda a responsabilidade por estes eventos, descompromissando os empregadores com a ocorrncia destes eventos, em detrimento de uma poltica de preveno e apurao mais aprofundada de suas causas e das responsabilidades decorrentes dos mesmos. Palavras chave: Acidentes do trabalho. Sistema nico de Sade. Investigao.

Responsabilidade civil. Responsabilidade penal. Impunidade.

Resumo xx

ABSTRACTxxiii

CHALLENGES

OF THE

SURVEILLANCE

AND PREVENTION

OF

WORK

ACCIDENTS - The experience of the Worker's Health Program of Piracicaba Promoting Prevention and Unveiling Impunity The aim of this dissertation is to cooperate in the elaboration of public policies, discussing implantation strategies for Worker's Health Programs (WHP), especially regarding the surveillance and prevention of work accidents, as well as contributing to the discussion of methods for investigation of causes and prevention of work accidents. Other specific objectives are to reconstruct the structure of the Worker's Health Program of Piracicaba, trying, through its history (1997-2002), to identify the central elements that allowed the construction of a privileged inter-institutional space for effective prevention. The qnalitative approach is used by means of a documental research among the materiais produced by Piracicaba's WHP within the period of 1997 and 2002; four cases of fatal work accidents which happened in the years of 1998, 1999 and 2000 and their preventive outcomes are studied; the comparative study of two cases investigated by the WHP as well as the Labor Ministry of Piracicaba and the Criminal Studies Institute was done, verifying the different approaches used in the reports. Finally, a documental research and a descriptive analytical study was done in 71 reports from the Criminal Studies Institute of Piracicaba from the years of 1997, 1998, 1999 and 2000. Four central elements are identified in the inter-institutional construction of Preventive Measures in the city of Piracicaba, which are grouped as needs, demands, information systems, and actions priorities. In the investigation of four fatal accidents in the civil construction and paper manufacture reas by the Causes Tree method, we found a lack of basic safety measures for machines and equipment as well as load elevators in civil construction. After the application of interdiction and fine penalties, the cases originate processes of sectorial negotiations for the prevention of more accidents in each respective rea. A comparison of the reports from the accidents investigation is done both by the Workefs Health Program and the Criminal Studies Institute in order to evaluate the results and compare both approaches.

AbstracXXV

The research shows the importance of inter-institutional actions, the partnership among the Worker's Health Program and the Municipal Health Secretary of Piracicaba and members of the Labor Ministry, the integration of the service with local universities and representatives of the civil society in the prevention and promotion of health. Finally, a system is proposed for the surveillance against severe and fatal accidents in form of sentinel events, which includes a information system with several sources, the active search of cases (rescue systems, police stations, emergency rooms) and the reporting of incidents in the emergency rooms, resulting in preventive actions and collective and sectorial negotiations for the prevention of the most relevant risks. The study also shows that the Criminal Studies Institute uses partial methods and conceptions in its investigations, which are based on a theoretical model (the victim's insecure action) which puts the worker as the sole responsible for the events, favoring employers instead of a prevention policy and a more accurate investigation of the causes and responsibilities resulting from these events. Key Words: work accidents, public health system, investigation, civil responsibility, penal responsibility, impunity.

Abstract xxvi

APRESENTAO27

De quando em tempos tenho que explicar o que faz um engenheiro mecnico na Sade Coletiva. Coisas da vida. uma histria antiga. J na Escola de Engenharia de So Carlos - USP a inquietao era grande. O que fazer depois de formado? Atuar como capataz de produo? Como projetar uma mquina se no tivemos na graduao nenhuma matria sobre os problemas que esta mquina poderia causar para o ser humano que vai utiliz-la? Os problemas decorrentes do rudo, os riscos de amputao... Estes assuntos sempre foram literalmente ignorados no curso de graduao. Os resultados deste tipo de formao esto nas empresas para serem vistos1. J naquela ocasio, na poca do milagre brasileiro, comeava a circular que os acidentes do trabalho estavam pela hora da morte. "Brasil: Campeo Mundial dos Acidentes do Trabalho!" Estas inquietaes tiveram prosseguimento na atuao profissional. Recm - formado, ingressei na CETESB (1978-1984) como engenheiro na Diviso de Controle da Poluio, na fiscalizao de empresas da Grande So Paulo. Desta experincia pude depreender as fragilidades de um sistema de fiscalizao solitria e burocrtica, uma vez que a CETESB sempre teve como atuao uma interveno que privilegiava a interlocuo de mo nica com as empresas, no existindo at ento para aquele rgo qualquer iniciativa de aliana com entidades ambientalistas ou dilogo com outros setores da sociedade. A fragmentao, a viso dicotomizada, que separa o ambiente interno de trabalho do ambiente externo empresa, levava a situaes paradoxais: admitia-se poluir dentro do local de trabalho, desde que a poluio no chegasse vizinhana, pouco importando o resultado deste confinamento de poluentes no ambiente de trabalho para a sade do trabalhador. Aps o desencantamento e as desiluses institucionais com a CETESB ingressei na assessoria Tcnica do Sindicato dos Metalrgicos de Santo Andr e do ento Sindicato dos Qumicos de So Paulo. Nesta atuao tive o privilgio de testemunhar a realizao deA formao tecnocrtica e o desprezo por disciplinas que possibilitem uma viso humanista e crtica de sua prpria formao e posio social, leva as escolas de engenharia e afins a transmitir simultaneamente conhecimentos e o seu modo de emprego prtico, e a domesticar os indivduos de maneira a que se insiram rapidamente como dirigentes na ordem hierrquica e autoritria da fbrica, do laboratrio ou da burocracia. (KAWAMURA, 1979)Apresentao1

29

mobilizaes e assemblias de trabalhadores de fbrica para discutir os riscos e reivindicar melhoria nos ambientes de trabalho. Aplicando questionrios junto aos operrios metalrgicos de Santo Andr fazamos levantamentos dos principais riscos e queixas ocasionadas pelo processo produtivo, que iriam subsidiar aes de fiscalizao e de negociaes junto s empresas. So Paulo 1986. Junto ao Sindicato dos Trabalhadores das Indstrias Qumicas de So Paulo, pude participar da assessoria-tcnica-militante partilhada com Hlio Neves e outros companheiros que trouxe tona, por meio de avaliao ambiental, as precrias condies de sade dos trabalhadores da empresa Nitroqumica, Grupo Votorantin. Os resultados mostraram o que j era percebido pelos trabalhadores: a situao de risco grave e iminente na seo de fiao de rayon, onde operavam 600 trabalhadores, devido exposio excessiva ao dissulfeto de carbono e gs sulfdrico. Trabalhadores com conjuntivite qumica eram mantidos em quartos fechados dentro da fbrica para no caracterizar afastamento do trabalho. Esses resultados foram levados ao Ministrio do Trabalho. Com a recusa da assinatura do termo de interdio pelo ento Delegado Regional do Trabalho, a fiao entrou em greve. O sindicato moveu ao cautelar em Braslia que obrigou a DRT/SP a interditar a fiao. A empresa conseguiu uminar na justia caando a interdio. Aps 15 dias de mobilizao a empresa apresentou um cronograma de melhoria das condies de trabalho na fiao (REBOUAS, 1989). Com a vinda do assunto para a campanha eleitoral, o ento candidato a Prefeito de So Paulo - Ermrio de Morais, presidente do grupo Votorantin, perdeu as eleies. Os trabalhadores ganharam vida. Sade Luta! Sade no se Vende! Essa era uma conjuntura de emergncia do trabalhador como sujeito na defesa da sua sade, questionando o papel das instituies pblicas e das prticas servis da maioria dos profissionais dos SESMTs das empresas. Surgiram com o movimento sindical e com os Programas de Sade do Trabalhador novas prticas que iriam dar base para a formulao dos conceitos de sade do trabalhador. Na dcada de 90 a atuao na assessoria sindical junto ao Sindicato ento unificado dos Trabalhadores Qumicos e Plsticos de So Paulo resultou em uma experincia positiva, de carter preventivo, que foi a negociao para preveno de acidentes do trabalho com a assinatura, em 1996, da Conveno Coletiva de Segurana em Mquinas Injetoras de Plstico do Estado de So Paulo. Esta conveno coletiva foi o resultado de uma experinciaApresentao

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de "vigilncia" em sade do trabalhador, no a partir de uma iniciativa governamental, mas do movimento sindical organizado na tentativa de minimizar e encontrar resposta a uma situao gritante: levantamento efetuado pelo Sindicato dos Plsticos constatou que um nico tipo de mquina respondia, em 1992, por cerca de metade dos casos de reabilitao no INSS de So Paulo, devido s mutilaes e esmagamento de braos e mos. O estudo desta conveno foi objeto de minha dissertao de Mestrado, apresentada em Junho de 1998, na rea de Sade Coletiva da FCM/UNICAMP. So Paulo, 1998- 2002. Junto Superintendncia de Controle de Endemias SUCEN.SP - tenho a satisfao de acompanhar a implantao e o desenvolvimento de um servio de sade do trabalhador que busca seguir os princpios democrticos que inspiram o SUS. A despeito das dificuldades tpicas do servio pblico, estamos implantando, atravs de convnio mantido com a Faculdade de Medicina da Santa Casa de So Paulo, Centro de Estudos CEALAG, um sistema de gesto participativa em sade do trabalhador. A equipe tcnica e a direo da SUCEN se somam atuao da representao dos trabalhadores nas 11 COMSATs (Comisses de Sade do Trabalhador eleitas regionalmente, que atuam em substituio s CIPAS) com resultados importantes no controle e minimizao dos riscos decorrentes do trabalho. O aprendizado da vida, das negociaes sindicais, da atuao intersetorial junto cmara negociai das injetoras, da atuao na assessoria coletiva em elaborao de projetos de lei na rea da sade do trabalhador e meio ambiente junto aos Deputados Eduardo Jorge e Roberto Gouveia (PT-SP) e o aprofundamento terico obtido nas atividades da PsGraduao, serviram de subsdio para o desenvolvimento de uma nova experincia profissional, quando ingressei, em 1997, por meio de concurso pblico como Engenheiro de Segurana do Trabalho, nos quadros do Programa de Sade do Trabalhador de Piracicaba. Com a municipalizao da Vigilncia Sanitria e contratao de novos profissionais, o ento Ambulatrio de Sade do Trabalhador dava incio em 1997 a uma nova fase, iniciando atividades de vigilncia aos ambientes de trabalho. Esta tese resulta ento de uma reflexo sobre a experincia do Programa de Sade do Trabalhador de Piracicaba, que inicia, a partir daquele ano, atividades conjuntas e articuladas de vigilncia de acidentes do trabalho no municpio.Apresentao

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Roteiro da tese No captulo I abordamos a questo dos acidentes de trabalho no interior dos processos de produo, no contexto atual das relaes de trabalho e das novas formas de gesto que surgem com a globalizao da economia. Apresentamos ainda os dados nacionais de acidentes do trabalho que se baseiam na parcela dos trabalhadores segurados pela Previdncia, no sentido de visualizar a dimenso do problema. Os nmeros frios obviamente no traduzem o sofrimento e a tragdia humana dos indivduos e famlias que se defrontam com estes acontecimentos. Servem, no entanto, para mostrar a importncia da vigilncia em sade do trabalhador, como instrumento de poltica pblica em defesa da vida e de melhores condies de trabalho. Questionamos: o que so acidentes do trabalho? So eventos previsveis ou so fatalidades? Como identificar suas causas? Existe possibilidade de se evitar o acontecimento destes eventos? Existe responsabilidade sobre sua ocorrncia ou existe impunidade, acobertamento de responsabilidades? Quem e como os atores sociais e institucionais participam deste jogo? O captulo II se destina conceituao e apresentao de aspectos tericos sobre a sade do trabalhador, vigilncia sade, e sobre as estratgias de vigilncia sade do trabalhador, como prticas que vm gradualmente se implantando no contexto do SUS. No captulo Dl apresentamos as caractersticas da atuao e as estratgias usadas pelo Programa de Sade do Trabalhador (PST) de Piracicaba, em articulao com outros rgos pblicos como o Ministrio do Trabalho e com entidades da sociedade civil, para realizar as aes de Vigilncia em Acidentes do Trabalho. A partir de casos concretos de mortes e leses ocorridas que so investigadas em profundidade, comea a ser montado um sistema de vigilncia que apresentado com o objetivo de contribuir nesta discusso do como e do que fazer. So apresentadas propostas para aprimoramento da atual experincia desenvolvida em Piracicaba, no sentido de abrir o dilogo com outras experincias e Programas de Sade do Trabalhador que crescem e se fortalecem no pas. Neste processo de aprendizado e de experincias nos deparamos com uma realidade complexa de atores pblicos e privados que fazem outro jogo (!)... Na surdina aparecem uns Laudos e outras abordagens sobre as causas dos Acidentes que merecem serApresentao

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trazidos superfcie para que a sociedade lance um olhar sobre eles. So os Laudos da Polcia Tcnica e Cientfica - Instituto de Criminalstica, que reproduzem, reforam o discurso oficial lanando sobre as vtimas a inteira responsabilidade sobre seu infortnio.

Objetivos - mtodos e hipteses iniciais A tese tem como objetivo geral colaborar na elaborao de polticas pblicas, discutindo as estratgias de implantao de PSTs, especialmente na vigilncia e preveno de acidentes do trabalho e contribuir para a discusso de mtodos de investigao de causas e preveno de acidentes do trabalho. Como objetivos especficos pretende-se primeiro reconstruir a estruturao do PST de Piracicaba, buscando atravs da sua histria (1997-2002), identificar os elementos centrais que permitiram a construo de um espao privilegiado interinstitucional para a efetiva atuao preventiva e segundo analisar a concepo e os mtodos de investigao de Acidentes do Trabalho do Instituto de Criminalstica nos anos de 1998-2000. Como Fontes de Informao e Mtodos, tendo em vista o objetivo do estudo de analisar e compreender a experincia de implantao de aes de vigilncia em sade do trabalhador, na preveno de acidentes do trabalho, no municpio de Piracicaba, bem como o papel dos laudos do Instituto de Criminalstica na investigao de causas de Acidentes do Trabalho, optou-se por utilizar na pesquisa uma abordagem qualitativa. A pesquisa qualitativa trabalha com um universo de significados, crenas, valores e atitudes, o que corresponde a um espao das relaes, dos processos e dos fenmenos que no podem ser reduzidos operacionalizao de variveis (MENAYO, 1994). Optou-se pela abordagem de pesquisa qualitativa atravs de mtodo de anlise em profundidade do fenmeno, de modo no isolado em sua complexidade, mas como fenmeno histrico, procurando entender suas relaes estruturais fundamentais. Este mtodo tambm denominado de 'anlise situacional', quando se aplica ao estudo de eventos sociais que envolvem vrios sujeitos de uma comunidade ou organizao (BECKER, 1997; TRIVINOS, 1995).

Apresentao 33

Como forma de acessar as informaes, optou-se por pesquisa documental. Para LDKE e ANDR (1986), documentos so todo tipo de material escrito que informem sobre o comportamento humano, como leis, regulamentos, normas, pareceres, cartas, memorandos, dirios pessoais, autobiografias, jornais, revistas, discursos, roteiros de rdio e televiso, livros, estatsticas e arquivos. Para alcanar o primeiro objetivo especfico, ser realizada pesquisa documental junto aos arquivos do Programa de Sade do Trabalhador de Piracicaba, acessando os relatrios estatsticos, planos de trabalho e propostas de ao desenvolvidas a partir do ano de 1997. Para estudar as aes desenvolvidas na vigilncia e preveno de acidentes graves e fatais, foram selecionados quatro casos de acidentes fatais ocorridos nos anos de 1998, 1999, 2000, que tiveram repercusso tanto na fase de investigao das causas, quanto nas etapas de apcao de penalidades administrativas e nos desdobramentos seguintes em aes coletivas de negociao para preveno de acidentes. Como fonte de dados e informaes sero acessados os processos administrativos abertos na Vigilncia Sanitria do Municpio de Piracicaba, onde se encontram os relatrios de investigao dos acidentes, as penalidades administrativas e os principais desdobramentos dos casos selecionados. Para alcanar o segundo objetivo especfico foi efetuado, atravs de requisio formal do Departamento de Medicina Preventiva e Social da FCM - UNICAMP, o pedido de acesso aos laudos emitidos pelo Instituto de Criminalstica de Piracicaba

(OFCIO - ANEXO 4). Em ateno ao pedido, foram fornecidos 104 Laudos no formato eletrnico, atravs de CD, relativos a acidentes dos trs ltimos anos (1997, 1998, 1999 e 2000). Deste total foram selecionados somente laudos que se referiam a acidentes tpicos do trabalho e apresentavam dados mais completos sobre os casos de modo a propiciar a anlise dos mesmos. Desta forma, foram escolhidos 71 laudos para o estudo, dos quais foram retiradas informaes de carter epidemiolgico, buscando compreender os enfoques, os significados e as repercusses da abordagem desta instituio, verificando o que ela representa do ponto de vista de responsabilizao e coibio de eventos semelhantes.

Apresentao

34

Dos 71 laudos do IC, foram selecionados dois casos para estudo comparativo, uma vez que foram investigados tanto pelo IC como pelo Programa de Sade do Trabalhador a fim de se perceber as diferenas de enfoque e desdobramentos das duas investigaes. Em sntese realizou-se: 1. Pesquisa documental junto aos materiais produzidos pelo PST de Piracicaba (planos de trabalho, processos administrativos, relatrios de investigao de Ats, negociaes e acordos produzidos, relativos ao perodo de 1997 a 2002); 2. Estudo de 04 casos de AT fatais ocorridos nos anos de 1998, 1999 e 2000 e de seus desdobramentos preventivos; 3. Estudo comparativo de 2 casos investigados tanto pelo PST& MTE como pelo IC, verificando as diferenas de abordagens entre os laudos 4. Pesquisa documental e estudo analtico descritivo junto aos 71 Laudos do IC de Piracicaba, fornecidos em forma de CD, referentes aos anos de 1997, 1998, 1999e2000. Na pesquisa de abordagem qualitativa a hiptese deixa de possuir uma "dinmica formal comprobatria para servir de caminho e baliza no confronto com a realidade emprica" deixando de ter a conotao positivista que cr na possibilidade do conhecimento e comprovao objetiva da realidade somente atravs de provas estatstico-matemticas (MTNAYO, 1992). No nosso caso, as hipteses podem ser vistas, portanto, como um conjunto de pressupostos que permitem encaminhar a investigao emprica qualitativa e que vo sendo geradas a partir dos dados e informaes obtidas num processo indutivo - analtico (BETANCOURT, 1995). Em primeiro lugar entendemos que na atual conjuntura do SUS, existe o potencial de desenvolvimento de prticas que sejam efetivas para a preveno de acidentes do trabalho, com controle social que superam os modelos tradicionais tecnicistas da Sade Ocupacional. Em segundo lugar, entendemos que por suas facilidades de interlocuo e obteno de informaes, o nvel local um espao estratgico para a articulao de iniciativas entre instituies que so fundamentais para enfrentar os desafios da preveno, na relao entre sade e condies de trabalho.Apresentao

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Por final a investigao em profundidade dos Acidentes do Trabalho, associada a um sistema de vigilncia com as caractersticas de permanncia, sistematicidade e envolvimento da sociedade civil tende a desvelar/coibir/inibir o clima de impunidade que predomina em decorrncia da no responsabilizao civil e criminal dos acidentes do trabalho, criando um clima mais propcio preveno destes eventos.

Apresentao

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1. OS ACIDENTES DO TRABALHO NO CONTEXTO DA PRODUO A MAGNITUDE DO PROBLEMA

Uma poderosa energia transformadora abre novos caminhos para nossa sociedade. Nessa onda est o drama, mas tambm a possibilidade de outro desfecho. Est o ne afaa. O grito e o desafio. A morte, mas tambm a vida No limite que ocorrem os partos. J passamos muitas vezes do limite. A vida est na hora de nascer. Herbert de Souza, Betinho.

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No Brasil coexistem mltiplas situaes de trabalho caracterizadas por diferentes estgios de incorporao tecnolgica, diferentes formas de organizao e gesto, relaes e formas de contrato de trabalho, que se refletem sobre o viver, o adoecer e o morrer dos trabalhadores. H, portanto, um verdadeiro mosaico nas relaes entre trabalho e sade. Essa diversidade de situaes de trabalho, padres de vida e de adoecimento tem se acentuado em decorrncia das conjunturas poltica e econmica. O processo de reestruturao produtiva, em curso acelerado no pas a partir da dcada de 90, tem conseqncias, ainda pouco conhecidas, sobre a sade do trabalhador, decorrentes da adoo de novas tecnologias, de mtodos gerenciais levando precarizao das relaes e das condies de trabalho (MINISTRIO DA SADE, 2001). O Brasil, nas ltimas trs dcadas, consolidou-se enquanto uma sociedade industrial. Impulsionado pela indstria, acentuou seu perfil urbano e sua economia cresceu mais de trs vezes, muito embora as graves diferenas sociais entre regies e cidados, presentes anteriormente industrializao, tenham-se mantido. A indstria brasileira avanou na sua modernizao com nfase na informatizao, robotizao e racionalizao organizacional. Isso tem gerado taxas de desemprego ascendentes, caracterizando o que os economistas classificam como

"desemprego estrutural". A flexibilizao acompanhada da desregulamentao, reduzindo 0 percentual de trabalhadores com emprego formal. O perfil da atividade econmica se inverte: o setor secundrio, que participava em 1980 com 40,6% do Produto Interno Bruto PIB, cai para 34,3 em 1990, com o crescimento do setor tercirio (OLIVEIRA et ai, 19951; ANTUNES, 19972 citado por WNSCH FILHO, 1999). O movimento recessivo da economia, registrado principalmente na dcada de 80, associado aos fatores relacionados reestruturao produtiva, provoca umOLIVEIRA, J. S.; PORCARO, R. M. & JORGE, A. F., Mudanas no perfil de trabalho e rendimento no Brasil. In: Indicadores Sociais: Uma Anlise da Dcada de 1980 (FIBGE). Rio de Janeiro: FIBGE. 1995. p. 145-762 1

ANTUNES, R., 1997. Globalizao em debate. Estados Avanados, 11:362-349.Os acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema

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deslocamento da mo de obra para o setor de comrcio e servios. Com a crescente flexibilizao das relaes de trabalho, os trabalhadores so obrigados a aceitar empregos no mercado informal, sem garantias trabalhistas e previdencirias. Ocorre uma transferncia de risco de empresas maiores para empresas menores, de cunho familiar e com caractersticas de trabalho autnomo. No ncleo estvel, os que restaram nas empresas so submetidos a uma intensificao do trabalho, com maior carga de horas extras, sendo possvel associar estes fatores estruturais a um maior risco de acidentes entre estes trabalhadores (DIEESE, 1994; MATTOSO, 1995; WNSCH FILHO, 1999). No plano mundial, o modelo global de desenvolvimento capitalista assume uma hegemonia no momento em que se torna evidente que os benefcios gerados continuaro confinados a uma pequena minoria da populao mundial, enquanto os seus custos (a includos os custos dos acidentes e doenas relacionados ao trabalho) sero distribudos por uma maioria. A lgica e a ideologia do consumismo se globaliza enquanto o acesso ao consumo continua impossvel a grandes massas populacionais. As desigualdades sociais entre o centro e a periferia do sistema mundial tendero a agravar-se (SANTOS, 1995). Segundo RIGOTO (1998 citando RATTNER, 1997) 358 grandes conglomerados e grupos transnacionais controlam 40% da riqueza mundial e cerca de 80 a 90% das tecnologias. Os acidentes de trabalho constituem a face visvel de um processo de desgaste e destruio fsica de parcela da fora de trabalho no sistema capitalista. Segundo estimativas da OIT no plano mundial, os acidentes do trabalho causaram em 1994 um total de 335.000 mortes em acidentes tpicos, que se somam a um total de 158.000 mortes por acidentes de trajeto e 325.000 mortes por doenas relacionadas ao trabalho; os trs totalizam 818.000 mortes. Alm destes dados estima-se que ocorrem anualmente 250 milhes de acidentes e 160 milhes de doenas ocupacionais (TAKALA, 1998). Os principais problemas com que se confronta o sistema mundial, como o aumento das populaes, a globalizao da economia e a degradao ambiental, a precarizao do trabalho e os problemas decorrentes, exigem solues globais atravs de uma solidariedade dos pases ricos para com os pobres, bem como pela solidariedade das geraes presentes para com as geraes futuras. Os recursos econmicos, sociais, polticosOs acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema

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e culturais que tais medidas pressupem parecem hoje menos disponveis que antes, uma vez que a globalizao da economia deu uma proeminncia sem precedentes a sujeitos econmicos poderosssimos, que no se sentem devedores de lealdade ou de responsabilidade para com nenhum pas, regio ou localidade do sistema mundial. Alm da contradio entre a fora de trabalho e o capital, desenvolve-se a contradio entre a sociedade e a natureza, dinamizada pela reproduo ampliada do capital, em mbito global. Esta segunda contradio causada pelo "uso e pela apropriao autodestrutiva da fora de trabalho, do espao e da natureza externa ou do ambiente" (SANTOS, 1995). Na base do desenvolvimento capitalista est o lucro, cuja existncia est no processo ou movimento, como um circuito. O sistema opera na busca de expanso do capital, obtida na produo de mercadorias, cujo valor de troca suplante o despendido na produo. Tanto o capital financeiro quanto o capital comercial apropriam-se de parcela excedente gerada na produo, estando integrados no processo de produo como um todo. A busca de expanso constante , assim inerente ao prprio capitalismo. "A circulao de dinheiro como capital, ao contrrio, tem sua finalidade em si mesma, pois a expanso do valor s existe nesse movimento continuamente renovado. Por isso, o movimento do capital no tem limites" (STAHEL, 1998). O carter destrutivo intrnseco do sistema de produo capitalista decorre da taxa de utilizao decrescente de bens e servios, instalaes e mquinas e de fora de trabalho, apresentando, como uma das conseqncias, o desemprego em massa (estima-se 1 bilho de desempregados em todo o mundo). O sistema produtivo industrial trabalha atualmente com a reduo da massa de consumidores substitudos por uma pequena elite, com alto padro de consumo dissipativo, de modo a manter o crculo econmico. Outro recurso utilizado a produo no para o consumo e sim para a destruio: a produo de armamentos para a guerra (MESZROS, 1995). Fala-se ento de um conjunto de mltiplas crises, onde no se pode destacar um nico problema que subordine os demais; no h um s, mas vrios problemas vitais, e esta interelao complexa dos problemas, antagonismos, crises, processo incontrolado, crise geral do planeta, que constitui o problema vital nmero um. A situao agravada pelas caractersticas deste processo que se auto-alimenta, se auto-amplifica e se autoOs acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema 41

acelera, desestruturando as sociedades tradicionais, os seus modos de vida e as suas culturas. Este estado definido pelos autores como de agonia, ou seja "um estado trgico e incerto onde os sintomas de morte e nascimento lutam e se confundem. Um passado morto no morre, um futuro nascente no chega a nascer" (MORIN e KERN, 1993). Em termos econmicos, vivemos hoje o 'paradigma societaF do liberal produtivismo definido por LIPIETZ (1991) como sendo um sistema onde temos: A nfase do imperativo tcnico-econmico produtivista, tornado

"categrico" com o enfraquecimento da prpria idia de uma escolha explcita de sociedade, decorrente da democracia onde se investe porque preciso exportar e exporta-se porque preciso investir; Uma fragmentao da sociedade, onde a empresa desempenha diretamente o papel atribudo outrora ptria onde todos (patres e empregados) devem se ajudar contra os concorrentes no ambiente do mercado mundial; Uma grande variedade de formas de integrao do indivduo com a empresa, indo da pura disciplina at a ampliao da participao negociada, mas sempre a nvel individual, com o desaparecimento de toda noo coletiva como a solidariedade de classe e de profisso; Um recuo geral das "solidariedades" de tipo administrativo (estatal), ligadas ao fato de pertencer a uma coletividade nacional, devendo a sociedade civil (ou seja, a famlia) encarregar-se do que o Estado Providncia no pode mais garantir. RIGOTO (1998) observa os seguintes reflexos decorrentes deste modelo de produo: Flexibilizao das relaes de trabalho, com tendncia a retrocessos dos direitos conquistados e reconhecidos na legislao trabalhista, como as formas de contratao e a jornada de trabalho, com a possibilidade de intensificao do desgaste dos trabalhadores.Os acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema

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Terceirizao - cresce o nmero de trabalhadores ligados ao setor de servios, onde esto expostos a riscos ocupacionais mais relacionados carga mental e psquica, agentes ergonmicos etc. Introduo de novas matrias-primas, produtos, tecnologias e formas de organizar o trabalho ainda no suficientemente avaliados quanto aos efeitos nocivos sade, segurana e ao ambiente. Maior dedicao do trabalhador ao trabalho: exigncia de qualificao permanente, de participao na construo da competitividade da empresa. Relaes sociais, principalmente no trabalho, mais competitivas. Quebra dos laos de solidariedade, maior individualismo, maior solido. Maior dificuldade para a ao coletiva e sindical, quanto s iniciativas dos sujeitos em defesa da sade no trabalho e do meio ambiente. Tendncias na terceirizao predatria J no segmento das "terceiras", o que se observa a implantao do padro predatrio de terceirizao, deixando de cumprir at mesmo os preceitos da CLT e precarizando as relaes e condies de trabalho. Vrias categorias tm denunciado a proposta empresarial de parceria de mo nica, voltada para a flexibilizao de direitos sem negociao de ganhos tambm para os trabalhadores. O desemprego crescente pressiona o trabalhador empregado a aceitar quaisquer condies de trabalho. Os sindicatos vo se enfraquecendo, fragmentados entre diversas categorias/entidades numa mesma empresa. Condies de trabalho j precrias, agravadas pela reduo de custos com pessoal, segurana, preveno, treinamentos. Tendncia reduo dos benefcios sociais, como fornecimento de transporte, alimentao. Os convnios de assistncia mdica podem ser revistos, em favor de grupos que ofeream menores preos, em detrimento da qualidade do servio prestado. H a possibilidade de suspender tambmOs acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema

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este tipo de benefcio, empurrando os trabalhadores para o sistema pblico, no qual a prestao de servios encontra-se prejudicada pelas dificuldades de financiamento. Intensificao de ritmos de trabalho, prolongamento das jornadas,

aumentando o tempo de exposio aos riscos ocupacionais e ao desgaste dos trabalhadores.

1.1. O MODELO FLEXVEL, A ORGANIZAO DO TRABALHO E OS IMPACTOS NA SADE E SEGURANA DO TRABALHADOR. O controle sobre o trabalhador continua sendo o elemento central das novas polticas de recursos humanos desenvolvidas ao longo do Sculo XX (gesto flexvel, gesto da qualidade total, modelo japons, etc) que visam um aprimoramento dos controles exercidos pelo taylorismo tradicional (LIMA, 1996). Para Taylor" "a vadiagem" ou "cera" no trabalho tinha que ser controlada por uma administrao cientfica que vigiasse de perto os trabalhadores. Segundo o autor a "indolncia ou preguia no trabalho provm de duas causas. Primeiramente, da tendncia ou instinto nativo de fazer o menor esforo, o que pode ser chamado de indolncia natural. Em segundo lugar, das idias mais ou menos confusas, provenientes de intercomunicao humana a que cabe a denominao de indolncia sistemtica" (TAYLOR, 1995:55). Um dos princpios da "administrao cientfica" a diviso de trabalho entre a gerncia e os trabalhadores, cabendo a estes ltimos a execuo de tarefas estudadas e comandadas pela administrao. O autor justifica o mtodo alegando que a "cincia que estuda a ao dos trabalhadores to vasta e complicada que o operrio, ainda mais competente, incapaz de compreender esta cincia, sem a orientao e auxlio de colaboradores e chefes, quer por falta de instruo, quer por capacidade mental insuficiente (grifo do autor) (TAYLOR, 1995: 55).3

W.F, TAYLOR, Engenheiro Americano que publicou em 1911 o livro Princpios da Administrao Cientfica que prev entre outros: a padronizao das atividades e superviso rgida do trabalhador; afastamento dos trabalhadores das tarefas de planejamento; o estudo de tempos e movimentos em cada atividade de produo e a premiao individual dos trabalhadores mais obedientes e produtivos.

Os acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema 44

Com a diviso de trabalho, os processos fsicos so agora executados mais ou menos cegamente, no apenas pelos trabalhadores que os executam, mas com freqncia tambm pelos empregados supervisores imediatos. As unidades de produo operam como a mo vigiada, corrigida e controlada por um crebro distante. A separao de mo e crebro a mais decisiva medida na diviso do trabalho tomada pelo modo capitalista de produo. inerente a esse modo de produo e se desenvolve, sob a gerncia capitalista, por toda a histria do capitalismo (BRAVERMAN, 1981). Outro princpio a seleo cientfica de pessoal. Em seus experimentos na rea de siderurgia, Taylor afirma que somente um entre oito trabalhadores do setor de carregamento estava apto a realizar a tarefa de carregar 47,5 toneladas de lingotes de ferro por dia. Apenas o homem do "tipo bovino" (TAYLOR, 1995). Dividindo, simplificando e desqualificando o trabalho, a organizao taylorista do processo de trabalho visou fundamentalmente dobrar a resistncia do operrio de ofcio, fortemente organizado, a fim de substitu-lo pelo "operrio-massa" representado pelo migrante no qualificado e menos organizado (LEITE, 1994). Segundo LEITE (1994), a partir do final dos anos 60, assiste-se a uma crise da "organizao cientfica do trabalho" enquanto estratgia social, enquanto tcnica de dominao do capital sobre o processo de trabalho. Alm da resistncia operria que se expressou nas greves, surgem tambm novas manifestaes como o desinteresse pela produo, as sabotagens, o absentesmo, a super fragmentao da produo e o aumento do tempo morto, alm de outros fatores como a crise econmica e a crise do petrleo. Segundo MONTEIRO e GOMES (1998), na busca pelo aumento de produtividade e melhoria da qualidade, muitos pases tm adotado princpios de administrao oriundos do Japo. A origem desta forma de organizao praticada naquele pas d-se no final da II Guerra e nos anos 50, quando ocorre uma forte escassez de trabalhadores adultos qualificados e uma abundncia de mo-de-obra jovem e de pouca formao (CORIAT, 19934 citado por MONTEIRO e GOMES, 1998).4

CORIAT, B. Ohno e a escola japonesa de gesto da produo: um ponto de vista de conjunto. In: HIRATA, H. (org.) Sobre o modelo japons; trad. R. Eichemberg et ai. So Paulo: EDUSP, 1993, pp. 79-94.

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Nesse contexto o mesmo autor compara os caminhos seguidos pelos Estados Unidos e Japo diante do mesmo problema: o da resistncia da mo-de-obra qualificada e de suas organizaes racionalizao do trabalho. Segundo ele, o caminho para os americanos foi o da fragmentao e da repetitividade do trabalho mediante, os protocolos taylorizados do estudo do tempo e dos movimentos; j para os japoneses, a sada foi a "desespecializao" dos trabalhadores qualificados, por meio da instalao de uma certa polivalncia e "plurifuncionalidade" dos homens e das mquinas. Destaca ainda, como ncleo central da nova escola japonesa, o sistema Toyota, desenvolvido com as contribuies de Ohno; para o autor este sistema "constitui um conjunto de inovaes organizacionais cuja importncia comparvel ao que foram em suas pocas as inovaes organizacionais trazidas pelo Taylorismo e pelo Fordismo" (CORIAT 19945 citado por MONTEIRO e GOMES, 1993). Segundo MONTEIRO e GOMES (1998) o modelo japons subentendido pela busca gerencial de maior eficincia do aparelho industrial em um contexto de produo flexvel, com sries curtas e crescente diversificao. Um novo paradigma surge ento baseando-se na flexibilidade da produo, nas inovaes organizacionais, na

descentralizao e na abertura do mercado internacional; ele pressupe o fim da diviso do trabalho baseada na prescrio das tarefas e no relacionamento autoritrio na empresa. Este novo paradigma bem representado pelo Modelo Japons, que inspirou a construo do mesmo. HIRATA (1993, citada por MONTEIRO e GOMES, 1998) apresenta as caractersticas do Modelo Japons, quanto s relaes industriais: ele um sistema de emprego vitalcio, com promoo por tempo de servio, sindicato de empresa e baixa taxa de desemprego para os assalariados do sexo masculino contratados regularmente, no tendo validade para mulheres bem como para os empregados temporrios de empreiteiras e trabalhadores de pequenas e mdias empresas. No que diz respeito organizao do trabalho, uma forma de diviso social do trabalho que pressupe a polivalncia, mediante a rotao de tarefas e a no-alocao do trabalhador a um local especfico de trabalho; o predomnio do grupo de trabalho sobre os indivduos; a diviso de trabalho menos clara entre operrios de manuteno e de fabricao; as prticas de gesto, como just-in-time,5

CORIAT, B. Pensar pelo avesso: o modelo japons de trabalho e organizao. Rio de Janeiro: REVAN/UFRJ, 1994Os acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema

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Kanban e crculos de controle de qualidade (CCQS), que permitem que o trabalhador conhea e domine melhor o processo global de produo (HIRATA, 1993, citada por MONTEIRO e GOMES, 1998). So as formas de organizao do trabalho japonesas, como os crculos de controle de qualidade, que so exportadas para outros pases e no as relaes de trabalho, como o sindicalismo de empresa. A flexibilizao da produo uma das bases do Modelo Japons e entre as estratgias utilizadas para alcanar este objetivo est a terceirizao. Ela possibilita a diminuio dos custos fixos para a empresa, mas pode trazer efeitos deletrios sobre o nvel de emprego e as condies de trabalho para os terceirizados (MONTEIRO e GOMES, 1998). Segundo LIMA (1996), os sistemas flexveis que surgem operam com base nas seguintes diretrizes e prticas: - Ateno exclusiva ao cliente e ao exterior como a via mais rigorosa da autodisciplina; - A presso exercida pelos pares, definida como o mais rigoroso dispositivo de controle; - O tamanho reduzido das divises que facilita sua gesto; - A autonomia autorgada considerada como produto da disciplina; - A individualizao dos salrios e dos assalariados; - A tentativa de criar o consenso e um ambiente homogneo (valores, regras e princpios compartilhados); - O autocontrole visando substituir a coero; - A conjugao da exigncia e da preciso com a flexibilidade; - A conjugao de dispositivos de controle implcitos com outros explcitos (avaliao e estabelecimento de objetivos)Os acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema

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A organizao do trabalho sofreu modificaes importantes da verso original para os mtodos mais sofisticados atuais. Os controles explcitos e autoritrios do taylorismo cederam lugar ao controle exercido pelos pares e, sobretudo ao mais eficaz dos controles, o auto controle. As novas polticas de pessoal tentam, sua maneira, normalizar os comportamentos e o pensamento. Os mtodos atuais para conseguir esta normalizao podem ser ainda mais perniciosos pela sua maior sutileza e pela sua forte impregnao ideolgica. Enquanto o taylorismo original esperava dos homens o uso mximo do seu corpo, o que condiz com o tipo de tarefa e de tecnologias disponveis naquele perodo - o corpo era seu alvo mais importante - a verso atual das polticas de recursos humanos visa atingir a adeso dos indivduos, agindo agora sobre sua vida psquica, com importantes repercusses na sade mental. As estratgias para atingir a psique so muito mais sutis e manipuladoras do que as que visam obter a produtividade do corpo (LIMA, 1996). A gesto flexvel, ao mesmo tempo em que introduz novas modalidades de organizao do trabalho, com as clulas multi-funo, com disputas internas entre grupos de trabalhadores, autovigilncia e mudanas nos sistemas hierrquicos inferiores, tentando ganhar os trabalhadores enquanto "colaboradores" da empresa, com promessas de participao nos "resultados", traz perplexidade e dificuldades adicionais ao movimento de representao dos trabalhadores, tanto no pas como no plano mundial. Segundo a Organizao Internacional do Trabalho (ILO, 1997) os nveis de sindicalizao caram em quase todos os pases do mundo entre 1985 a 1995. Agregam-se ainda os problemas decorrentes da terceirizao e precarizao do trabalho e transferncia de riscos de setores mais organizados para setores desorganizados. Estes podem ser exemplificados pela precarizao das condies de trabalho via terceirizao, ou atravs da intensificao do trabalho em setores de organizao tipicamente tayloristas / fordistas, trazendo, entre outros, a ocorrncia de verdadeiras epidemias de LER ou a perda de emprego em carter estrutural. Verifica-se ento o agravamento das condies de trabalho, trazendo reduo nos nveis salariais, e danos sade dos trabalhadores. Segundo MATTOS et ai. (1995), a introduo do modelo de acumulao flexvel vem se dando em coexistncia com outros modelos atrasados,

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marcados por baixos salrios e por sua concentrao econmica e regional, trazendo resultados contraditrios e conseqncias geralmente perversas em nosso pas. Analisando estas mudanas estruturais da economia no ltimo quarto de sculo e as correlaes encontradas nos dados de acidentes do trabalho no Brasil, WNSCH FILHO (1999) indica que a vigilncia em sade do trabalhador deve, sem perder de vista os acidentes que ocorrem no mercado formal, fixar o foco de suas aes nas situaes de trabalho legalmente precrio e autnomo, onde os acidentes j devem apresentar uma maior freqncia, sendo necessrias para este setor novas estratgias e novas abordagens. Mesmo no mercado formal de trabalho e em grandes empresas tm sido registrados acidentes graves e fatais, mostrando que persiste no pas uma malha de tecnologias novas que coexistem com tecnologias antigas, resultando numa mistura de situaes de riscos onde os problemas bsicos de segurana no foram solucionados. O Brasil, depois de ocupar durante a dcada de 70 o ttulo de campeo mundial de acidentes de trabalho, continua apresentando nos dados de 1995, posicionado entre os dez piores no plano mundial, conforme relatrio da OIT divulgado pela imprensa, em 10 lugar ao lado da ndia quanto ao ndice de acidentes em relao ao nmero de trabalhadores empregados na indstria (ISTO - 1997). FREITAS (1996) pesquisou sobre os acidentes qumicos ampliados, uma faceta 'moderna' do processo de industrializao, que provoca o surgimento de riscos tecnolgicos de acidentes ampliados, que atingem no s os trabalhadores, mas tambm a comunidade e o meio ambiente. Seu estudo revelou que o Brasil ocupa a 2 a pior classificao quanto ao nmero de bitos por acidente, sendo registrados 815 bitos devido ocorrncia de 13 acidentes no perodo de 1945 a 1991, sendo superado somente pela ndia, onde trs acidentes vitimaram 4430 pessoas. Os coeficientes de 1998 mostram que o Brasil apresenta taxas de mortalidade por Acidente de Trabalho acima da mdia dos pases da Amrica Latina que ficou em 13,5/100.0000, s perdendo para a os pases da frica que de 21/100. 000 e da sia 23.1/100.000, segundo os ltimos dados da Organizao Internacional do Trabalho - OIT, com base nos dados de 1.9946 (TAKALA, 1998).

Cabe ressaltar que os diferentes pases trabalham com sistemas e bases de dados bastante distintos, o que em tese dificulta uma comparao entre os mesmos.Os acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema

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De 1970 a 1995 foram registrados oficialmente no pas 105.698 mortes decorrentes do trabalho, conforme dados oficiais do INSS - representando uma mdia anual de 4.228 trabalhadores/ano (CARMO, 1996). Um paralelo pode ser feito com a quantidade de baixas de soldados americanos na guerra do Vietn, onde morreram 45 mil soldados em quatorze anos de conflito, o que perfaz uma mdia anual de 3.214 soldados / ano (DE LUCCA, 1992). As empresas brasileiras gastaram cerca de 5,8 bilhes de dlares no ano de 1997 em despesas decorrentes de acidentes e doenas do trabalho, levando a Confederao Nacional da Indstria - CNI - a organizar campanha "Preveno vida", voltada prioritariamente para os setores da construo civil e metalrgico (CNI, 1999). Embora o nmero absoluto e relativo de acidentes registrados tenha reduzido com a estabilizao do nmero absoluto de mortes, houve um aumento da letalidade. A mortalidade de 20/100.000 trabalhadores segurados ainda o dobro dos ndices da maioria dos pases desenvolvidos. Cabe ressaltar que se trata dos dados oficiais que cobrem unicamente a populao segurada, baseados nas informaes fornecidas pelas empresas, onde ocorre a subnotificao, e que exclui cerca de 60% do total dos trabalhadores sem vnculo formal bem como categorias como o funcionalismo pblico, no cobertos pela previdncia (ALVES e LUCHESI, 1992; DE LUCCA, 1992; PROTEO, 1997). Na interpretao destes dados associa-se a queda da incidncia de AT subnotificao dos acidentes de menor gravidade, questionando-se a efetividade das melhoras nos ambientes de trabalho, conforme estudo de diversos pesquisadores (BUSCHINELLI, 1993; CARMO, 1996; NEVES et ai. 1999). Observando a tabela 1 e o grfico 1, notamos a tendncia de queda das freqncias e da proporo de incidncia anual de AT no perodo de 1988 a 2000. Esta queda no entanto no acompanhada pela reduo na mesma proporo dos coeficientes de mortalidade7, que se mantm em torno de 2 mortes por 100.000 trabalhadores segurados, no mesmo patamar desde 1988, enquanto os coeficientes de letalidade dos acidentes de trabalho apresentam ntida tendncia de aumento no perodo referido.Proporo anual de Incidncia de AT = n de AT no ano/ populao segurada CLT x 100 Letalidade por AT = n de mortes por AT/n de AT x 1000 Mortalidade por AT = n de mortes por AT/ Pop. Segurada CLT x 10.000Os acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema7

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Tabela 1: Populao segurada CLT , total de acidentes do trabalho (inclui tpicos, trajeto e doenas do trabalho), incidncia de acidentes do trabalho, n total de bitos, letalidade e mortalidade por acidentes do trabalho no Brasil. Perodo: 1988 a 2000.ANO POPULAO SEGURADA CLT 1988 1989 1990 199! 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 19992000

AT/DT REGISTRADOS (TOTAL) 992.737 .343 693.572 532.514 412.293 388.304 295.789 424.137 395.455 421.343414.341

PROPORO DE INCIDNCIA AT/DT (X 100) 4.31 3.75 3.05 2.76 2.34 1.81 1.69 1.79 1.62

BITOS

MORTALIDADE

LETALIDADE

(x 10.000) 4.616 4.554D.333

(X1000) 4.65

23.045.901 23.678.607 22.755..875 22.792.858 22.803.65 22.722.008 23.016.637 23.614.200 24.311.448 23.275605 22.344.580 19.407.732 20.374.176

2.00

.2 92.35 7.72 7.09 6.82 7.54 8.06 9.35

4.464 3.634 3.110 3.129 3.967 4.488 3469

.6 91.59 1.37 1.36 1.68 1.84 1.49 .692.00

.4 38.29 9.15 10.04 9.00

1,852.00

3.793

387.820 343.996

3.896 3.094

1.68

1.52

Fontes: CARMO (1996); PROTEO (1997); INSS (2001); MINISTRIO DO TRABALHO E EMPREGO (2002) Elaborao do autor

Antes de 1996 os dados disponveis no deixam claro se esta populao inclui tambm segurados autnomos no includos no regime CLTOs acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema

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Fontes: CARMO (19%); PROTEO (1997); MINISTRIO DO TRABALHO E EMPREGO (2002) elaborao nossa.

Grfico 1: Proporo de incidncia anual, Letalidade e Mortalidade por Acidente e Doenas do Trabalho - Brasil: 1988-2000

Comparando-se a mortalidade por acidente de trabalho com relao Populao Economicamente Ativa - PEA (n de mortes por 1.000.000 PEA) o Brasil ficou com ndice de 203,0 - a Espanha com 92,0 - Estados Unidos com 30,8 e a Sucia com 29,2 no perodo de 1980 a 1990, segundo dados da OIT, o que coloca o pas na pior posio mundial quanto s mortes por acidentes de trabalho (MENDES e DIAS, 1994). Outro aspecto a ser considerado diz respeito gravidade das leses que geram incapacidade parcial ou permanente para o trabalho, com graves repercusses sociais. Os dados divulgados pelo Ministrio do Trabalho para o ano de 1995 revelam que 3.296Os acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema

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pessoas sofreram leses graves e foram afastadas permanentemente do trabalho, e outras 9.894 pessoas tiveram leses com limitao definitiva para o trabalho. A distribuio destes eventos nos diversos ramos de atividade de fundamental importncia para uma anlise setorial e definio de polticas de preveno. Os ramos da indstria extrativa, da construo civil, e do setor de transportes respondem pelos mais altos ndices de acidentes fatais, respectivamente 57,20 por 100.000; 44,50 por 100.000 e 41,20 por 100.000, ficando a indstria da transformao em 6 lugar com ndice de 15,32 por 100.000 (PIZA, 1997). Segundo GAWRYSZEWSKI et ai. (1998), ocorreram no Estado de So Paulo 155 acidentes do trabalho fatais tpicos no ano de 1995, cujas causas foram agrupadas pelo Cdigo Internacional de Doenas - cdigo E (CID). A queda aparece com 49 casos (31,8%) sendo que 51% destes casos ocorrem nas indstrias da construo civil e o restante em outros ramos de atividade, com destaque para a indstria de transformao e o setor de comrcio. Esta 'diversificao' de acidentes fatais por queda de altura, para alm do setor da construo civil, est associada, segundo os autores, ao crescimento do trabalho marginal, informal e terceirizado, exigindo uma vigilncia dos servios pblicos, dos trabalhadores e da sociedade. O segundo fator relacionado com acidentes fatais tpicos o impacto por queda de objetos que totalizou 24 casos (15,6%). O setor de atividades predominante do transporte (37,5%), seguido pelo ramo da indstria da construo civil (20,8%). Os acidentes causados por mquinas, com 13 casos, foram o 3 o grupo mais relevante, representando 8,4% em relao ao total, com predominncia nos setores de transformao e da construo civil. Nestes setores os acidentes com mquinas representaram 38,5% das causas de Acidentes fatais. Em seguida esto os acidentes causados por energia eltrica, com 13 casos (8,4% do total dos acidentes fatais). Este grupo ocorreu principalmente no setor de transformao (46,2%), seguido pelo setor de construo civil (23,1%) e pelo de prestao de servios (15,4%). O ramo de "servios prestados" ocupa um papel importante em relao ao total de ocorrncias, sendo notificados 32.642 acidentes em 1998, comprovando a importncia crescente do trabalho terceirizado no conjunto dos acidentes do trabalho do pas (MINISTRIO DA SADE, 2001).Os acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema

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Observamos que predominam estudos que tm como base as informaes obtidas junto ao INSS, a nica instituio que mantm um registro sistemtico da ocorrncia de acidentes e doenas do trabalho no Pas. Este registro mantido com finalidade de pagamento dos benefcios acidentados, cobrindo unicamente a populao segurada. Outras fontes de dados sobre a questo acidentaria surgem na literatura especializada com menor freqncia como os dados obtidos junto Polcia Civil. Estudando os Laudos do Instituto de Criminalstica na Grande So Paulo de 922 acidentes do trabalho fatais, no perodo de 1979 a 1982, OLIVAN FILHO et ai. (1984) selecionaram para anlise um total de 187 casos. Conclui-se que a atividade responsvel pelo maior nmero de acidentes fatais a da Construo Civil (41,76%). Neste setor, o grupo de queda foi o grupo de causas mais importante, com 44,87% dos bitos do setor respondendo por 29,4% do total dos bitos no universo estudado. Ainda no setor da Construo Civil, somando-se as quedas de edificaes e quedas de escadas, andaimes e outros, conclui-se que as quedas acidentais respondem por 58% dos bitos no setor. Em segundo lugar surgem os acidentes causados por mquinas, em terceiro os acidentes causados por corrente eltrica. No grupo de acidentes fatais causados por Mquinas, na Regio da Grande So Paulo, em primeiro lugar surgem os guindastes e elevadores de carga, seguido por mquinas para trabalho em metal, mquinas de transmisso, mquinas de minerao e perfurao de terra e mquinas para trabalho em madeira. Dos bitos ocorridos por choque eltrico, 50% aconteceram em instalaes industriais / ou mquina de acionamento eltrico e os outros 50% ocorrem por contato acidental com linhas de transmisso. Pesquisa de BARATA et ai. (2000), utilizou base populacional nas moradias de cidades do interior do Estado de So Paulo com populao maior que 80 mil habitantes.Realizada no ano de 1994, identificou uma taxa de 41,20 trabalhadores acidentados por 1000 trabalhadores ocupados, sendo 34,93 % acidentes tpicos e 6,28% acidentes de trajeto. Observou que existe uma subnotificao de 42% para os trabalhadores com carteira assinada e de 71% tendo como base a populao economicamente ativa.

Os acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema

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Na rea da sade, os acidentes do trabalho e doenas ocupacionais foram includos na lista de doenas de notificao compulsria para o Estado de So Paulo, em 1992. No ano de 2001 foi emitida a Portaria Ministerial 1969/01 que dispe sobre o preenchimento de Autorizao de Internao Hospitalar - AIH, em casos de quadro compatvel com causas externas e com doenas e acidentes relacionados ao trabalho, tornando obrigatrio o preenchimento do CID, o campo da ocupao (conforme o Cdigo Brasileiro da Ocupao) do paciente e o ramo da atividade econmica do empregador. Este esforo normativo supramencionado no resultou ainda na implantao de um sistema unificado de informaes e de vigilncia epidemiolgica relacionada a estes agravos. A partir das iniciativas municipais, comeam a surgir sistemas de vigilncia e gerao de informaes que extrapolam o mercado formal (PREFEITURA DO MUNICPIO DE SO PAULO, 2002). Em 1997, as doenas de notificao compulsria, no Estado de So Paulo somaram cerca de 63.000 notificaes, sem incluir os casos de AIDS. Neste mesmo perodo, foram registrados no INSS 194.862 acidentes do trabalho, nmero trs vezes maior do que a totalidade dos casos de doenas de notificao compulsria, sem levar em conta o mercado informal e as subnotificaes. Na cidade de So Paulo, estudos realizados em Pronto-Socorros da Zona Norte e Zona Oeste do Municpio, incluindo os Hospitais do Mandaqui, Vila Penteado e o Pronto Socorro da Lapa, mostraram que cerca de 1,8% de todos atendimentos realizados correspondem a acidentes e doenas relacionados com o trabalho. Estes estudos tambm apontam que um pouco mais da metade dos trabalhadores acidentados encontram-se formalmente empregados e cerca de um quarto corresponde a empregados sem registro em carteira (PREFEITURA DO MUNICPIO DE SO PAULO, 2002, citando MARINS e NEVES, 2000; CRST LAPA, 2000 e 2001; CRST F s/d). Mesmo sem possuir ainda estudos aprofundados que alcancem o mercado informal, os dados apresentados j mostram a magnitude do problema dos acidentes e doenas do trabalho no Brasil, o que requer a adoo de polticas pblicas e a articulao de foras sociais e polticas para tamanho desafio.

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Mesmo com avanos significativos obtidos no processo da redemocratizao ocorrida a partir da dcada de 80, que consagrou direitos e conquistas na Constituio Federal, resultando em prticas pblicas avanadas como a instituio de programas de sade do trabalhador, observa-se que a correlao de foras amplamente favorvel ao capital, dificultando a participao efetiva do trabalhador no controle das condies de trabalho. No interior das empresas impera livre e desimpedido um sistema patronal de gerenciamento das condies de trabalho, com vistas ao aumento da produtividade. O modelo de atuao em sade e segurana, em vigor no Brasil, ainda apresenta as seguintes caractersticas gerais: 1) A sade e a segurana do trabalhador constituem um campo de saber tcnico - cientfico, de domnio de profissionais que compem os Servios de Segurana e Medicina do Trabalho (SESMTs) das empresas. 2) O Estado, atravs do Ministrio do Trabalho, delega s empresas a tutela da sade dos trabalhadores. Cabe aos profissionais dos SESMTs o papel de reconhecimento e a definio das medidas de preveno dos riscos e o controle mdico dos agravos sade. Os SESMTs no possuem autonomia de ao frente ao empregador, mas gozam, paradoxalmente, de plena autonomia de ao frente ao sistema pblico de sade, agindo de forma dissociada deste sistema, e de forma avessa a qualquer controle social por parte dos trabalhadores e seus rgos de representao. Dentro da mesma poltica os Programas de Controle Mdico e Sade Ocupacional - PCMSO-, bem como o Programa de Preveno de Riscos Ambientais - PPRA-, reeditam e reproduzem todos os defeitos dos SESMT's das empresas via compra de servios de consultoria. 3) As CIPAs possuem, de modo geral, papel passivo, no lhes cabendo qualquer papel de representao ou de negociao sobre melhorias nos ambientes de trabalho. O papel do trabalhador e seus representantes o de coadjuvantes dos SESMTs, sem nenhum poder de deciso quanto s polticas e meios preventivos a serem adotados. 4) Ao Estado cabe o papel de supervisionar o cumprimento da lei. Com a tendncia de esvaziamento do aparato estatal, o sistema tradicional de comando-controle entra em falncia, no sendo substitudo por um sistema negociai lastreado pela organizao e negociao permanente nos locais de trabalho. Ocorre ento um processoOs acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema

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deliberado de precarizao e esvaziamento de direitos, que se restringem letra fria de normas e legislaes no aplicadas. 5) No plano federal, a atuao das instituies na rea de sade do trabalhador, como Ministrio da Sade, Ministrio do Trabalho e Ministrio da Previdncia Social marcada pela dicotomia e pulverizao de aes. A Previdncia Social, empenhada em reduo de custos, via o corte de benefcios dos trabalhadores lesionados por acidentes e doenas ocupacionais, mantm sua tendncia conservadora - hermtica ao controle social, dificultando a formao de nexo de causa para acidentes e doenas do trabalho e se omite em agir enquanto seguradora pblica, taxando progressivamente as empresas com maior ndice de acidentes e doenas, facilitando o curso para a privatizao do seguro acidente do trabalho. A ao centralizada no plano federal contraria os pressupostos de funcionamento descentralizado, da autonomia em nvel local e do controle social que so preconizados pelo SUS (FALEIROS, 1992; LACAZ, 1997; VILELA, 1999). Do lado do movimento social dos trabalhadores, recuados diante do desemprego em massa decorrente do processo de globalizao subalterna da economia nacional, os sindicatos no mximo mantm espaos institucionais conquistados na gesto dos programas de sade dos trabalhadores, mas as lutas por sade e condies de trabalho so diminudas diante da nova conjuntura. O controle sindical - social das condies de trabalho e sade ou a implantao de um modo participativo de preveno de acidentes do trabalho enfrenta ainda uma srie de obstculos tanto culturais como estruturais (VILELA, 1998). De um lado implica na dificuldade / incapacidade de aproximao do movimento sindical para a disputa da organizao e da gesto do trabalho, assunto visto com desconfiana pelas lideranas, como terreno de interesse do capital, e de outro pela dificuldade crnica de implantao da representao autntica e livre nos locais de trabalho. A contratao coletiva do trabalho e a implantao de um sistema democrtico de relaes de trabalho - pr-requisitos para a autotutela da sade e segurana nos locais de trabalho, requer a existncia de uma estrutura sindical livre e autnoma, totalmente distinta do modelo sindical brasileiro que mantm, intactos h mais de 60 anos, os pilares do corporativismo getulista. Suas principais caractersticas so: o monoplio da representao sindical, atravs de sindicato nico porOs acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema

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categoria; a existncia do imposto sindical obrigatrio; a ausncia de representantes nos locais de trabalho e a interveno da Justia do Trabalho interrompendo, como poder normativo, os processos de negociao. Acresce-se ainda a falta de cultura de negociao e de soluo alternativa de conflitos. (MARTINS RODRIGUES, 1992, SIQUEIRA NETO, 1994, RIGOTTO, 1994). A estas dificuldades agrega-se a alta rotatividade da fora de trabalho no pas. Segundo dados oficiais da RAIS, a taxa de demisso nacional de 50% da fora de trabalho, enquanto que outros pases apresentam taxas bem menores como a Argentina, com 7%; os EUA, com 12%; Chile, com 25%; Paraguai, com 28% e Uruguai, com 10%. A alta flexibilidade do mercado de trabalho, com facilidades para as empresas demitirem funcionrios, leva a um pequeno tempo de permanncia na mesma empresa ou setor econmico, criando relaes extremamente instveis, dificultando a organizao no local de trabalho e a representao dos interesses dos trabalhadores, especialmente os de menor nvel salarial, sujeitos s piores condies de trabalho e maiores riscos (POCHMANN, 1996). Aliado dificuldade decorrente da alta rotao e uma flexibilidade extrema do emprego, o desemprego deixa de estar associado s crises cclicas do processo de produo. Surge ento o fenmeno do desemprego estrutural. B ALT AR e PRONI (1996) constatam que a queda do emprego formal na indstria, no perodo de 90-92, foi mais pronunciada que a queda de produo. O aumento da produo, em 1993, foi observado sem provocar elevao no emprego no setor industrial. Os autores identificam neste ponto o papel da terceirizao que deslocou, principalmente para a prestao de servios, uma srie de atividades antes localizadas na grande empresa industrial alm da importao de bens intermedirios, que antes eram fornecidos por empresas nacionais. O sindicato continua com escasso poder de barganha e representao no local de trabalho. A empresa tem toda a liberdade para contratar, dispensar, fixar horas extras e definir o contedo das funes e a intensidade do trabalho. A chefia intermediria continua extremamente autoritria e o trabalhador no se envolve nas tomadas de deciso sobre a organizao da produo. A estrutura de cargos e salrios prossegue muito diferenciada, com nveis muito baixos para as remuneraes da base da pirmide salarial. Segundo os autores, o emprego continuaOs acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema

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marcadamente instvel, impedindo maior especializao e treinamento por parte dos trabalhadores. Mesmo ocorrendo avanos nas prticas sindicais, no tocante priorizao de campanhas preventivas, persiste a cultura da monetarizao da sade, atravs dos adicionais de insalubridade e periculosidade previstos na CLT (REPULHO JR, 1997). A democracia e cidadania, conquistadas nas ruas e em espaos pblicos, no adentram os "sagrados" muros da empresa capitalista no Brasil. A experincia de negociao iniciada com a Cmara Setorial Automotiva no ABC Paulista no incio de 90, deu incio a outras cmaras e processos de negociao que pautaram temas como as questes de sade e segurana no trabalho e resultaram em negociaes tripartites com resultados importantes no campo preventivo. Segundo RODRIGUES e ARBIX (1996), o funcionamento e as decises da cmara setorial automotiva, que ocorrem principalmente no governo Itamar Franco, possibilitam a realizao de acordos duradouros, com impactos positivos sobre o conjunto do ambiente econmico. Estas experincias, no entanto, so gradualmente interrompidas com a entrada do ento Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, culminando com uma opo de recusa estratgica da concertao aps sua vitria como presidente. Todas as cmaras setoriais so deliberadamente esvaziadas de suas atribuies. O relacionamento tripartite foi deslegitimado pela ao do Estado, que deu sobrevida ao relacionamento bipartite atravs de "cmaras escuras", entre setores empresariais e o Estado. Segundo os autores, a poltica atual do governo referente s relaes de trabalho pode ser caracterizada como sendo a recusa de uma poltica de relaes industriais baseada no compromisso; a construo de barreiras legais restritivas ao sindical, em particular no que tange ao direito de greve; a afirmao das empresas (principalmente as grandes), como o nvel mais adequado para a definio de novas relaes de trabalho, distante do sindicato e distinto dos nveis setorial, categorial, estadual ou nacional; mudana ou flexibilizao da legislao trabalhista, de modo a permitir rearranjos nas empresas particularmente no que se refere jornada, encargos, frias, produtividade, terceirizao, contratos coletivos; diminuio do poder normativo da Justia do Trabalho; e diminuio da proteo estatal aos sindicatos.Os acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema

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Diante da flagrante 'rigidez' das relaes de trabalho, os empresrios tm apontado repetidamente para a sua "flexibilizao", como a grande alternativa para a modernizao do parque produtivo brasileiro. Mas em sua grande maioria, no incluem na "sua" flexibilizao o direito organizao por local de trabalho, aceitando, quando muito, a liberdade sindical, desde que seja do porto da fbrica para fora (RODRIGUES e ARBIX, 1996). Mesmo enfrentando estas dificuldades conjunturais, alguns rgos de

representao dos trabalhadores, em conjunto com tcnicos das instituies como o Ministrio do Trabalho e Emprego, Ministrio da Sade, tm conseguido articular negociaes coletivas na rea de sade e segurana do trabalho, principalmente as negociaes tripartites com a presena de rgos pblicos, sindicatos dos trabalhadores, dos empregadores, resultando em normas ou acordos nacionais, regionais, municipais ou convenes coletivas. Entre as experincias podemos citar o acordo nacional sobre utilizao do Benzeno, a conveno coletiva de segurana em mquinas injetoras de plstico do Estado de So Paulo, o acordo sobre proteo de cilindros de massa na Cidade de So Paulo, o acordo de segurana em prensas mecnicas e equipamentos similares na regio da Grande So Paulo. Estas negociaes representam formas alternativas de soluo de conflitos nas relaes entre capital e trabalho, criando comisses permanentes de negociao entre as partes envolvidas. Alm da soluo direta dos problemas identificados, as negociaes tm produzido normas e padres de sade e segurana, seja atravs da Associao Brasileira de Normas Tcnicas - ABNT ou na criao de normas de sade e segurana dos rgos pblicos envolvidos (RIGOTO, 1994; BONCIANI, 1996; COSTA, 1996; COELHO, 1996; MELLO E SILVA, 1997; VILELA, 1998; MAGRINI, 1999).

1.2. CONCEPO E MTODOS DE INVESTIGAO DE ACIDENTES DO TRABALHO No perodo medieval, as doenas e acidentes eram entendidos e explicados como "fatalidade", "obra do azar", ou como causas desconhecidas, e predominavam prticas mdicas de carter mgico - religioso. Amuletos, oraes e cultos a santosOs acidentes do trabalho no contexto da produo A magnitude do problema

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protetores da sade materializavam a ideologia religiosa, de salvao da alma e danao do corpo individual. (ROUQUAYRIOL, 1994). "Acidente" uma palavra de origem latina (accidente) definida segundo o Novo Dicionrio da Lngua Portuguesa, como um "acontecimento casual, fortuito, imprevisto; acontecimento infeliz, casual ou no e que resulta em ferimento, dano, estrago, prejuzo, avaria, runa, desastre". "Desastre" significa em desacordo com os astros, numa conotao de fatalidade associada s causas do evento, justificando um melhor embasamento conceituai (FERREIRA, 1986). Para fins legais, o conceito de "acidente" de trabalho no Brasil abrange doenas profissionais, leses de todos os tipos dentro do ambiente e de trajeto do trabalhador entre a residncia e o local de trabalho. A legislao vigente no Brasil - Lei n 8213 de 24/7/1991 define o Acidente do Trabalho como sendo "aquele que ocorre pelo exerccio do trabalho, a servio da empresa, provocando leso corporal, ou perturbao funcional que cause a morte, ou a perda, ou a reduo permanente ou temporria da capacidade de trabalho". Os acidentes de trabalho tm sido estudados sob vrios enfoques, sendo que cada um traz suas concepes, representa interesses e tem repercusses na preveno e na eventual responsabilizao pela ocorrncia destes eventos. A definio de acidente de trabalho tem sido "fortemente influenciada pelos objetivos de quem a formula ... que nem sempre se d conta das conseqncias prticas que as diferentes concepes adotadas tm em relao ao estabelecimento de estratgias e medidas tcnicas de preveno"(CARMO et ai. 1995). CORRA FILHO (1994 a, b), mesmo reconhecendo a consolidao do termo "acidente", recomenda o uso do termo LESO, como sendo: "dano funcional ou estrutural ao organismo decorrente da transferncia excessiva, localizada ou sbita de energia por agentes ou processos externos". A utilizao do termo "leso", segundo o autor, tira do evento seu carter acidental uma vez que "na produo, a possibilidade de preveno existe, desde que se tenha como objetivo impedir a ocorrncia de leses que nada tm de acidentais". Reconhece que existe um uso consolidado do termo "acidente", e que a produo cientfica poder ainda reelaborar tais conceitos no sentido de uma melhor preciso.Os acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema

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Os acidentes de trabalho e doenas profissionais ocorrem em determinadas condies, num contexto de relaes estabelecidas entre os agentes no processo de produo. So influenciados por fatores relacionados situao imediata de trabalho, como o maquinrio, a tarefa, o meio tcnico ou material, e tambm pela organizao do trabalho em sentido amplo, ou seja, pelas relaes de trabalho (DWYER, 1991; DWYER, 1994; LAFLAMME, 1990). Tanto nas catstrofes de maior proporo como nos casos "menores", a concepo que nos orienta a de que os acidentes do trabalho so fenmenos complexos, socialmente determinados, previsveis e prevenveis. Eles indicam mau funcionamento do sistema em que ocorrem. Aceitar que os acidentes do trabalho so previsveis, implica em abandonar a crena de que so obra do acaso, fatalidade, ou que sejam acidentais como, infelizmente a prpria palavra acidente sugere (BINDER e ALMEIDA, 2000). O carter no acidental do evento pode tambm ser observado em pesquisa clssica feita nos Estados Unidos. Nela foi encontrada uma proporo em que, para cada acidente com leso grave, ocorreram 10 acidentes com leses leves, 30 acidentes com danos propriedade, e 600 acidentes sem leses9 (REIS, 1981). Mesmo em catstrofes de maior proporo - como a de Bhophal, na ndia, com o vazamento de Metil Isocianato (MIC) na fbrica da Union Carbide e que provocou 2000 mortes por intoxicao pulmonar e das vias respiratrias alm de contaminao de cerca de 200.000 pessoas no ano de 1985- percebe-se um encadeamento de fatores que leva ao acidente (YASSI e KJELLSTRN, 1998). Neste caso a empresa americana apresentava um nvel de segurana abaixo das antigas fbricas indianas. Inclusive, o estudo de WISNER (1997) descartou definitivamente a predominncia do comportamento dos operadores como causa do acidente. O autor mostra a existncia de uma rede de causas internas conexa a uma rede de responsabilidades maiores e que dizem respeito a determinaes econmicas, de responsabilidades dos que conceberam, instalaram e colocaram a fbrica em funcionamento. "Assim passamos do registro das responsabilidades funcionais dos operadores e de seus dirigentes ao registro das responsabilidades do pessoal que concebe e instala o dispositivo tcnico, e depois ao registro de responsabilidades dos que determinam

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Pesquisa da Insurance Co. North America de 1969 em 297 empresas que totalizaram 1.753.498 acidentes em 3x10(9) horas-homens trabalhadas.Os acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema

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as condies econmicas e sociais ou at polticas - nas quais o dispositivo perigoso foi concebido, instalado e explorado." (p.54) A empresa de Bophal, ndia, cometeu erros de origem que prejudicaram seu desempenho econmico, que levou a uma poltica cega de corte de despesas. Na sua origem fora mal concebida; as autoridades pblicas negligenciavam medidas de vigilncia e classificavam o empreendimento como no perigoso; a prefeitura local no adotava medidas de planejamento urbano permitindo que as favelas se amontoassem prximo aos muros da fbrica. No dia do vazamento do gs a populao foi informada do ocorrido somente duas horas depois. O servio mdico local no estava preparado para o ocorrido. Do ponto de vista da segurana, no existia praticamente nada de redundncia tcnica nesta fbrica perigosa e as tcnicas de controle eram antigas. Faltavam registradores em pontos fundamentais. O nmero e o local dos alarmes e dos sistemas de emergncia no eram convenientes. No mesmo painel, encontravam-se indicadores de presso em (psi) ao lado de indicadores em (kg/cm2). O termmetro de indicao de temperatura do reservatrio de Tolueno Diisocianato no funcionava!! O indicador de nvel de presso s podia ser lido at a presso de 2,5 Kg/cm2 - nvel de alarme. Alm de falhas de concepo, foram observados cortes significativos no efetivo de manuteno e em outras equipes tcnicas. A proporo de operrios qualificados caiu de 90% para 25%. Em 1982, a empresa preparara uma Semana de Segurana que teve que ser cancelada pelo alto ndice de acidentes ocorridos: 10 acidentes em 7 dias. A festa de encerramento teve que ser cancelada devido a trs acidentes no dia da cerimnia. Os trabalhadores da empresa estavam h muito conscientes dos perigos da usina. Depois da morte de um operrio por intoxicao com fosgnio em 1981, os responsveis sindicais fizeram greve de fome durante quinze dias para obterem melhores condies de manuteno. Vrios dirigentes sindicais foram despedidos. Alm de contatos com dirigentes polticos locais, os sindicatos se dirigiram aos diretores americanos e fizeram inclusive campanha com cartazes pela cidade alertando para os perigos da empresa. Em 1983 quatro dirigentes sindicais foram trancados numa sala durante as horas de trabalho para evitar contato com outros trabalhadores e impedir a verificao de falhas de segurana. Trs meses antes um outro acidente levou mutilao de um operrio. O sindicalista que denunciou a negligncia da direo da empresa fora demitido sem protesto por parte dos sindicatos.Os acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema

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Segundo DWYER (1999), fica evidente no caso de Bophal e em outros acidentes de grandes propores, que as pessoas haviam dado passos concretos para advertir, alertar seus superiores hierrquicos de todos os meios possveis, antes da ocorrncia das tragdias, o que sugere que os sinais de alarme destes acidentes existiram e foram visveis nas organizaes1 . O que indica que poderiam ter sido antecipadas, no fossem as relaes internas de poder das organizaes que ocasionaram a cegueira, impedindo a preveno destes eventos. LLORY (1999) caracteriza estas diferentes falhas como uma patologia comunicacional entre operadores e executivos, como sendo a impossibilidade de discutir e negociar situaes de trabalho; a impossibilidade de fazer chegar aos nveis hierrquicos competentes certos aspectos crticos da realidade do trabalho cotidiano, devido reduo de pessoal, a uma organizao deficiente do trabalho: em suma a impossibilidade de se fazer ouvir, com o passar do tempo, acaba provocando o afastamento, a desmobilizao, a desconfiana e o fatalismo. Por outro lado a existncia de documentos assinados por operrios, comunicando a ocorrncia de problemas, pressupe um clima de confiana e tambm que se defina com muita clareza a diviso de responsabilidades, o que no se consegue fazer sem negociaes e deliberaes com os responsveis hierrquicos. DWYER (1999) sugere que situaes como as do acidente de Bophal indicam que existe um rol de medidas preventivas que podem ser detectadas por consultores e inspetores governamentais, que deveriam ser formados adequadamente, equipados com o conhecimento tcnico apropriado e com a capacidade de dedicar-se anlise documental, a tcnicas de observao e de entrevistas, de modo a possuir habilidades que lhes permitam detectar a produo iminente de muitos riscos importantes, sejam de natureza sbita ou de longo prazo antes de suas ocorrncias. Diante da pergunta se os acidentes em sistemas complexos podem ser previsveis, LLORY (1999) pondera que os eventos so previsveis medida em que existe uma relao de causa e efeito relativamente simples e absolutamente segura. Para o autor, se, em teoria, possvel identificar todas as causas necessrias e suficientes para aO autor se baseia em estudo de LLORY, M. Accidents industrieis: le cout du silence. Paris: L'Harmattan,1996.Os acidentes do trabalho no contexto da produo - A magnitude do problema10

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ocorrncia de um evento, ento podemos prever com toda certeza sua ocorrncia. Estaramos ento diante de uma situao de causalidade pura, rigorosamente determinista. No caso de acidentes em sistemas complexos, estaramos diante de um contexto de causalidade probabilstica, de uma ocorrncia cuja probabilidade no possvel examinar facilmente e com preciso; trata-se de uma causalidade "impura", caso em que inmeros fatores "secundrios" ou "parasitas" podem modificar mais ou menos profundamente o curso dos acontecimentos. Neste caso poderemos ento no mximo emitir conjecturas, examinar diferentes