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PUBLICADO NO LIVRO – QUINTAS URBANAS Rio Grande do Sul – Rio Grande – 2007 – FURGS Pg.83 a 103 Movimentos Populares urbanos e as lutas contra a Segregação Socioespacial 1 Arlete Moysés Rodrigues 2 Introdução A desigualdade sócio-espacial, produto do modo de produção capitalista expressa a desigualdade entre classes sociais no processo de (re)produção ampliada do capital. Imbrica-se com a exploração e espoliação da força de trabalho, com a mercantilização da terra e edificações, com a venda da imagem da cidade-mercadoria. Conta com a presença e num aparente paradoxo com a ausência do Estado capitalista 3 . O Estado capitalista faz-se presente ao regular o valor do salário, definir as leis e normas de uso do solo tendo como premissa que a terra urbana é uma mercadoria. Também é verificável a atuação do Estado quando o mesmo implanta vias de circulação intra e interurbana, infraestrutura, equipamentos e meios de consumo coletivo, seguindo as normas de propriedade e do mercado. Atua, como diz, Topalov na socialização da produção capitalista.(Rodrigues, 1988) A socialização da produção capitalista atende sobretudo aos interesses do capital e secundariamente à reprodução da força de trabalho. O Estado capitalista parece estar ausente quando define um salário mínimo que não permite a reprodução da força de trabalho o que implica em tornar a cidade inacessível aos trabalhadores, mas é exatamente quando é presente ao 1 - As idéias aqui contidas foram apresentadas em junho de 2007 em Rio Grande – RS. Assertivas e afirmações, noções constam também de outros textos da autora. 2 - Prof.Livre Docente – UNICAMP – amoyses@ terra.com.br. 3 - Estamos nos referindo ao Estado capitalista e não a governos que se sucedem no tempo e que podem apresentar nuances de formas de atuação.

Texto desigualdades sociespaciais-

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PUBLICADO NO LIVRO – QUINTAS URBANAS

Rio Grande do Sul – Rio Grande – 2007 – FURGS

Pg.83 a 103

Movimentos Populares urbanos e as

lutas contra a Segregação Socioespacial 1

Arlete Moysés Rodrigues2

Introdução

A desigualdade sócio-espacial, produto do modo de produção capitalista

expressa a desigualdade entre classes sociais no processo de (re)produção

ampliada do capital. Imbrica-se com a exploração e espoliação da força de

trabalho, com a mercantilização da terra e edificações, com a venda da imagem

da cidade-mercadoria. Conta com a presença e num aparente paradoxo com a

ausência do Estado capitalista3.

O Estado capitalista faz-se presente ao regular o valor do salário, definir as

leis e normas de uso do solo tendo como premissa que a terra urbana é uma

mercadoria. Também é verificável a atuação do Estado quando o mesmo

implanta vias de circulação intra e interurbana, infraestrutura, equipamentos e

meios de consumo coletivo, seguindo as normas de propriedade e do mercado.

Atua, como diz, Topalov na socialização da produção capitalista.(Rodrigues, 1988)

A socialização da produção capitalista atende sobretudo aos interesses do capital

e secundariamente à reprodução da força de trabalho.

O Estado capitalista parece estar ausente quando define um salário mínimo

que não permite a reprodução da força de trabalho o que implica em tornar a

cidade inacessível aos trabalhadores, mas é exatamente quando é presente ao

1 - As idéias aqui contidas foram apresentadas em junho de 2007 em Rio Grande – RS. Assertivas e afirmações, noções constam também de outros textos da autora. 2 - Prof.Livre Docente – UNICAMP – amoyses@ terra.com.br. 3 - Estamos nos referindo ao Estado capitalista e não a governos que se sucedem no tempo e que podem apresentar nuances de formas de atuação.

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atender os interesses do capital. Assim a aparente ausência para atender as

necessidades da maioria é a presença para atender os interesses do capital. Mas

o Estado é ausente quando ações diversas possibilitariam a constituição de um

espaço de interesse público.

A “ausência” do Estado em suprir infraestrutura, moradia digna,

equipamentos de consumo coletivo, parece ser compensada pelo atendimento de

chamadas “demandas” dos trabalhadores como se fossem doações. Com o

predomínio da política neoliberal o atendimento de “demandas” constitui as

políticas focalizadas.

Analisar as desigualdades socioespaciais, a segregação social e espacial,

implica em utilizar um arcabouço teórico que permita compreender as

contradições inerentes ao modo de produção e como estas se manifestam no

território. Uma das possibilidades de entender a perpetuação da desigualdade

socioespacial está ligada as representações do urbano e da cidade, em especial

nas agendas governamentais tendo em vista a complexidade envolvida na

produção e reprodução do espaço.

Uma das representações é a que atribui ao crescimento populacional,

especialmente às migrações o que se chama de problemas urbanos. Embutido

nas representações está a idéia de “êxodo rural”, de “cidades inchadas” de

favelas como “câncer urbano”.4

A população urbana é utilizada como parâmetro para medir o tamanho das

cidades (grandes, médias, pequenas), mas ao mesmo tempo, é considerada

como problema porque não tem empregos, salários suficientes para lhe permitir

entrar no mundo do consumo. Atribui-se a responsabilidade de ter empregos,

salários decentes ao indivíduo e não ao modo de produção e ao seu progresso.

Como é possível compreender que a riqueza de uma cidade seja sua

população e ao mesmo tempo dizer que os pobres é que criam problemas?

Afirma-se que os problemas são causados porque a população urbana

cresce mais do que os investimentos do Estado o que implicaria na “ausência do

4 - Utilizar termos inchaço, câncer , entre outros, mostra que os discursos naturalizam a sociedade. O inchaço mostra um problema e um câncer um problema ainda maior. Na medicina procura-se a causa do edema para ser resolvido e câncer procura-se extirpa-lo.

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estado” e assim ele é chamado a resolve-los. Atribui-se assim a

“responsabilidade” a ausência do Estado e aos deslocamentos e crescimentos

populacionais.

Nas representações oficiais a expansão provocada pelos agentes

imobiliários é tida como progresso, urbanização, urbanidade. Mesmo quando a

expansão, por exemplo, ocorre além dos limites da área urbana, deixa espaços

vazios para especulação criando a necessidade de expandir a infra-estrutura que

implica em aumentar os custos para o poder público, é considerado progresso e

não uma forma de criar e recriar problemas. Atualmente é visível a implantação de

“condomínios murados”5 que provoca aumento do preço da terra, discrimina os

moradores de outras áreas, acirra a desigualdade sócioespacial e onera o poder

público com a implantação de infra-estrutura.

O movimento da sociedade tem, contudo, alterado a compreensão das

representações oficiais. Aponta que o Estado é ausente/presente ao lutarem para

obter a garantia de reconhecimento de seus direitos fundamentais. Mostram as

contradições da produção e reprodução do espaço urbano e da intensificação da

segregação e desigualdade socioespacial.

Valor de uso e valor de troca – Desigualdade socioe spaciais.

È possível, para um olhar atento, ver as desigualdades socioespaciais na

expressão dos extremos a riqueza e pobreza de áreas e da população que as

ocupam.

Em algumas áreas a riqueza é visível em edificações “modernas” e/ou

suntuosas, cercadas com grades e muros, tanto no setor residencial como onde

estão os equipamentos coletivos, de serviço e de comércio. Uma especificidade

das áreas “nobres” é o zoneamento de áreas exclusivamente residências em ruas,

avenidas asfaltadas, iluminação pública onde trafegam predominantemente

5 - Condomínios fechados não constam de legislação vigente. Utilizamos o termo “murados” por considerarmos que explicitam sua forma e sua ilegalidade urbanística. Mike Davis (Davis, M. 2006), também utiliza “murados” para tratar dessa forma de produção do espaço urbano.

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automóveis individuais modernos. Nas ruas poucas pessoas e muitos veículos de

último “tipo”.

Na maioria das áreas a pobreza aparece no conjunto de edificações

precárias, nas pessoas que circulam por ruas esburacadas, sem iluminação

pública. A circulação de automóveis, vans, ônibus lotados contrasta com a das

áreas “nobres”. Não há separação, zoneamento que estabeleça limites entre as

moradias e outras atividades, mesmo as que colocam risco de vida para os

moradores. Nas áreas mais pobres os moradores ficam segregados em seus

próprios lugares de moradia e exceto quando estão cumprindo a jornada de

trabalho, não circulam na área onde predomina a riqueza. Riqueza que ajudam a

produzir. 6

Nas áreas “pobres”, segregadas encontram-se as favelas, cortiços,

ocupações coletivas de terra, loteamentos precários, conjuntos habitacionais

precários. As áreas que foram segregadas são tidas como anomalias da

urbanização embora dela sejam decorrentes.

As favelas e as ocupações coletivas de terra e seus barracos representam,

na ótica do capitalismo e do estado capitalista, a ilegalidade jurídica (desrespeito

a propriedade privada) e urbanística (desobediência às regras e normas de

parcelamento do solo urbano). No imaginário coletivo criado pela ideologia

dominante a desigualdade social é difundida como resultado da falta esforço de

seus moradores, que são considerados causadores de sua própria miséria e

pobreza.

As casas precárias, os loteamentos irregulares, os conjuntos habitacionais

apresentam vários níveis de ilegalidade urbanística embora alguns deles possam

estar dentro das normas de apropriação e propriedade da terra, ou seja, têm

legalidade jurídica mas não conforme as normas urbanísticas e/ou edilícias.

Os conjuntos habitacionais, edificados e financiados pelo Estado

destinados à chamada população de baixa renda foram, de modo geral,

construídos em descontinuidade com o tecido urbano, em áreas sem infra-

estrutura e equipamentos de consumo coletivo. Financiados com recursos

6 - veja-se Rodrigues, 1988

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públicos (FGTS) atendem a um mercado “especial” dirigido aos que ganham

baixos salários. Ao comprar uma unidade que pagam em 25 anos ficam

prisioneiros da prestação do “imóvel”. Como diz Milton Santos o espaço pode ser

uma prisão. Em geral são urbanisticamente irregulares o que impede que os

moradores tenham a propriedade definida.7

Desde a criação do Banco Nacional de Habitação (BHN) em 1964 e do

Sistema Financeiro de Habitação (SFH) os trabalhadores passam a ser

classificados por faixas de renda salarial o que mostra o início de um processo de

deslocamento discursivo de classe social para faixas de renda. È bom lembrar

também o trabalhador perde sua estabilidade com a criação do Fundo de Garantia

por Tempo de Serviço (FGTS) em 1967 que altera as normas de contrato de

trabalho e fundamenta a precarização das relações de trabalho.

A pobreza da população e das áreas que ocupam se alastram pelo tecido

urbano. As áreas carentes de infra-estrutura e equipamentos de consumo coletivo,

que apenas permite precárias condições de vida para seus moradores, são

consideradas decorrentes de desvios do modelo da cidade ideal.

A solução para corrigir os desvios estaria em investimento do Estado nas

áreas e no atendimento individual. Contraditoriamente, na agenda neoliberal, o

Estado tem que diminuir suas atividades, tornar-se “mínimo”, mas ao mesmo

tempo tem que atender, de modo focalizado a população para resolver

problemas. O atendimento focalizado implica em atendimento setorial com

habitação, saneamento, transportes, urbanização de favelas, etc. e pagamento

pela população “beneficiada”, dos benefícios recebidos.

Para os loteadores dos conjuntos “fechados”, condomínios “murados”, não

há nenhuma referência de que devam pagar pelo “benefícios” de se apropriarem

da produção coletiva da cidade. Não há também “penalização” ou pagamento de

tributo por privatizarem áreas que deveriam integrar-se à área urbana, de acordo

com a legislação vigente. Também não se considera que recebem benefícios ou

7 - O parcelamento do solo e edificação é regularizado, via de regra, vários anos após a edificação, comercialização das unidades.

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que devam receber um atendimento focalizado para resolver a irregularidade. São

tidos como portadores do progresso.

Procura-se, assim, rapidamente regularizar as dissonâncias urbanísticas e

jurídicas com ocorre com parágrafos do Projeto de Lei 20/20078 no qual se

verifica que os objetivos são de promover a regularização urbanística de

condomínios fechados. Cria, o PL a figura de “condomínios urbanísticos” que visa

garantir a regularização “urbanística”. No Projeto de Lei sobre os condomínios

urbanísticos há propostas conflitantes.

O Fórum de Reforma Urbana defende que pelo menos os logradouros

públicos, áreas de uso comum, áreas institucionais, exigidas por lei, sejam

localizadas fora da área murada ou sejam que cumpram a legislação atual. Os

loteadores, em especial de loteamento já implantados, querem apenas o

reconhecimento da ocupação para não terem que compensar a privatização de

áreas públicas que estão dentro dos muros, em outros locais.

Por outro lado a regularização de áreas ocupadas pelos trabalhadores,

reivindicação antiga de movimentos populares, que significa o reconhecimento do

valor de uso das ocupações tramita desde o final da década de 80 do século XX e

a possibilidade de conseguir a regularização urbanística e fundiária esboça-se

com a Constituição Federal de 1988 mas só começa a se tornar efetiva com a Lei

10.257/01, Estatuto da Cidade e a Medida Provisória 2220/01. A regularização

fundiária tem sido realizada em terras da União desde 2005 e em áreas municipais

e estaduais, dependendo da determinação política, num processo lento e tortuoso.

O reconhecimento de usucapião depende de uma grande mobilização e

organização dos moradores e de estabelecer formas de resolver os tramites

burocráticos.

Comparando o tempo, para entrar na agenda política, da regularização de

áreas ocupadas por trabalhadores com o tempo para a regularização dos

condomínios murados verifica-se que o que importa é o valor de troca

contrapondo-se ao valor de uso, das áreas ocupadas como moradia, pois o

8 - O Pl 20 de 2007 (anteriormente 3027 de 2000) propõe a revisão da Lei 6766/79 que rege o parcelamento do solo urbano.

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progresso é atribuído aos agentes tipicamente capitalistas e os problemas

atribuídos aos trabalhadores.

Há que se destacar que a regularização fundiária com o Usucapião Urbano

(terras privadas) e a Concessão de Uso em Terras Públicas mostram o

reconhecimento da importância do valor de uso para os moradores, pelo Estado

Capitalista.

A intensificação da desigualdade socioespacial tem sido analisada por

vários autores em seus diversos aspectos para compreender o processo

(re)produção do espaço na reprodução ampliada do capital. No texto, damos

ênfase ao significado do valor (valor como um direito de viver) e do valor de uso

de troca, para aqueles que ocupam e vivem em áreas segregadas, e as

representações sobre a produção do urbano.

A terra urbana, as edificações, e a própria cidade são mercadorias do modo

de produção capitalista com valor de uso e valor de troca. Para a maioria dos

moradores, a moradia de qualquer classe social tem como predomínio para a sua

casa, o valor de uso. Representa um abrigo, uma morada, o lugar da reprodução

da vida. Embora como toda mercadoria tenha embutido o valor de troca que se

concretiza no momento de compra/venda e/ou no aluguel, estamos falando da

propriedade pessoa9 e de sua representação social.

O preço da mercadoria casa/terreno a ser obtido no momento de troca está

relacionado com as características do lugar e do imóvel, quando edificado. Os

imóveis, terrenos, glebas situadas em áreas segregadas, que contam com poucos

e/ou precários equipamentos de consumo coletivo, de infra-estrutura têm menor

preço no mercado quando comparados aos localizados nas chamadas áreas

nobres, equipadas com toda a infra-estrutura e serviços.

Nas áreas segregadas com ilegalidade jurídica, e/ou urbanística os lotes,

casas, glebas, terrenos não entram no mercado tipicamente capitalista e mesmo

quando entram no mercado, predomina o significado de valor de uso, dada a

singularidade desse mercado. Para os moradores o que importa é o valor de uso.

9 Sobre as características da mercadoria terra e da cidade veja-se Rodrigues, Arlete Moysés 1988

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Para o capital a irregularidade significa que não estão no mercado formal e, em

princípio, não tem preço e nem valor de troca.

Na lógica do Estado capitalista, que é incorporada no imaginário coletivo, a

desigualdade sócioespacial é o resultado, como já dito, de desvios do modelo de

urbanização. Considera-se que a forma de tentar resolver o desvio do modelo é a

de enquadrar as áreas nas normas urbanísticas e jurídicas e, assim, o Estado

mostra sua presença. Uma presença que implica em alterar a predominância do

valor de uso para o predomínio do valor de troca como se verifica na implantação

de conjuntos habitacionais, revitalização de áreas centrais, “urbanização” de

áreas, remoção de favelas para áreas distantes (removendo o câncer urbano)

distantes das áreas equipadas de infra-estrutura.

Na ótica de moradores, organizados em movimentos populares, enfatiza-se

o predomínio do valor de uso, com a necessidade de ter um teto, um abrigo de

poder freqüentar escolas, posto de saúde, poder recorrer a postos policiais,

contar com luz domiciliar e pública, água potável. A lógica é de garantir a

permanência dos moradores nas áreas ocupadas, nas áreas centrais, na

possibilidade de continuar pagando a prestação da casa financiada em conjuntos

habitacionais mesmo que distantes, ter reconhecido a compra que realizaram de

um lote/ casa, em loteamentos irregulares.

Os movimentos de Moradia e a luta contra a exploraç ão e espoliação

A desigualdade sócio-espacial, a precariedade para a reprodução da vida,

produto do modo de produção torna-se condição de permanência de pobreza

e de falta de urbanidade. É contra a condição de permanência na pobreza

absoluta que os movimentos se organizam. Querem alterar a desigualdade

espacial tornando o lugar de morada em possibilidade de mudança.

Possibilidade de mudança que está no reconhecimento do valor de uso e no

direito à urbanidade.

Objetivam o direito a ter direitos e um deles é o direito de usufruir na

cidade da riqueza que também produzem.

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No mundo do trabalho as lutas dos trabalhadores possibilitaram conquistas

nas relações de trabalho (carga horária, férias, direito à licença médica, direito à

maternidade, aumento de salários, organização sindical livre), que podem ou não

ter alterado as características da produção e reprodução do urbano onde

conseguiram se instalar.

Enquanto os trabalhadores, no âmbito das lutas na fábrica, dirigem-se

diretamente aos capitalistas, os movimentos de moradia dirigem-se diretamente

ao Estado, responsável, segundo as normas constitucionais, a garantirem a

reprodução da vida, estabelecer e fazer cumprir parâmetros para a ocupação do

solo, garantir a função social da cidade e da propriedade.

A luta contra a desigualdade é parte integrante da vida cotidiana dos

trabalhadores, no lugar de morar e no lugar de trabalho. No local de moradia

organizam-se para conseguir abastecimento de água, iluminação pública e

domiciliar, captação de esgotos, coleta de lixo irregular, acessibilidade, transportes

coletivos menos precários, escolas e postos de saúde e vários equipamentos de

consumo coletivo.

Na década de 70 10do século XX movimentos de favelas e de ocupações

coletivas de terras, lutaram para obter instalação de luz elétrica domiciliar e

pública mostrando que a iluminação à vela e querosene provocavam incêndios e

que a falta de iluminação pública dificultava o deslocamento para o trabalho e

escola e propiciava a violência; para obter água potável alegavam que se água

potável morreriam contaminados e poderia haver epidemias, endemias

provocáveis pela contaminação hídrica; locais para colocar o lixo evitando

epidemias e mais recentemente lugares para separar o lixo reciclável; transportes

coletivos para se deslocarem da casa para o trabalho; creches e escolas para

atender às crianças e jovens e possibilitar a condição de mudança; postos de

saúde e atendimento hospitalar para minorar as precárias condições de saúde e,

principalmente pelo direito de permanecer nas áreas ocupadas. Busca-se obter

uma vida decente.

10 - Fazemos aqui apenas uma breve síntese do processo de organização.

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Moradores que pagam aluguel e os cortiços organizaram-se para limitar o

preço extorsivo de aluguéis, morar com um mínimo de salubridade, ter banheiros

para um menor número de famílias, entre outras questões. Nas áreas centrais

“degradadas” onde há um número expressivo de cortiços, os moradores lutam

para que os centros antigos sejam utilizados também como moradia para

trabalhadores.

È bom lembrar que as propostas de intervenção de empresários e mesmo

de governos municipais são para transformar as áreas centrais em um lugar de

consumo visual e turístico. Mas os moradores lutam pela sua permanência nas

áreas centrais urbanizadas o que significa a possibilidade de diminuir a

segregação socioespacial. O Estado capitalista parece não compreender que a

ocupação mista de áreas urbanizadas diminui os custos de gestão do urbano.

Moradores das casas precárias de periferia, que compraram lotes em

loteamentos irregulares, lutam para conseguir a regularização dos terrenos e

garantirem sua permanência. Pagaram pela mercadoria terra-casa e podem

perde-las se não for realizada a legalização jurídica da propriedade. A organização

social dos moradores expressa também o direito ao reconhecimento de seu

direito de permanência e da compra que realizaram o que pode significar uma

condição de mudança de vida apesar de obterem o direito que já têm e do qual

foram usurpados.

Os moradores de conjuntos habitacionais se organizaram na década de 70

contra os aumentos das prestações do Sistema Financeiro de Habitação e para

que houvesse a implantação de equipamentos de consumo coletivo. Procuram

nos dias atuais, além disso, alterar a idéia de construção de grandes conjuntos

segregados que os isolam do trabalho e das demais atividades urbanas. Os

grandes conjuntos habitacionais localizados em áreas distantes e sem infra-

estrutura representam a condição de permanência da segregação e da

espoliação. As lutas pelas alterações em relação ao local onde devem se localizar

significa a possibilidade de pensar o espaço como condição de mudança.

O processo cotidiano de tentar minorar as agruras da vida é inicialmente

fragmentado em diversos bairros, em favelas, em cortiços e também por tipo de

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reivindicação. Mas, as idéias e experiências que alavanca mudanças nas

condições de vida se propagam. Amplia-se o leque de reivindicações dado o

conhecimento dos problemas, alterando as formas e os conteúdos de

organização coletiva. As cooperativas habitacionais passam a integrar o ideário

de alguns grupos, para outros interessa a auto-gestão de mutirões, ampliam-se

as ocupações coletivas de terra que antes da ocupação traçam ruas, demarcam

lugares para construção de escolas, creches, mostrando uma organização prévia

a ocupação, o que não ocorria com as favelas. O debate político se amplia com o

conhecimento da importância do espaço e do lugar de morar.

Isoladamente ou em conjunto, os moradores das chamadas áreas precárias

organizam-se para conseguir transportes adequados, escolas, creches, postos de

saúde, postos policiais. Um processo que significa o reconhecimento do direito a

ter direitos e a politização do espaço não apenas no sentido da propriedade mas

também no de pertencimento.

Os que se inserem em movimentos populares passam a ter conhecimento

das causas que modelam a morfologia e o conteúdo da exploração e espoliação.

Mas também há os que nela se inserem pela necessidade imediata de

reprodução da vida, o direito de morar, permanecer nas terras ocupadas, ter

emprego, salários dignos, infra-estrutura, equipamentos e meios de consumo

coletivo. Não há, nos movimentos, uma homogeneização mas divulgam

coletivamente uma condição libertária.

Um processo que constrói a utopia de direitos sociais coletivos cuja meta é

transformar o espaço segregado, produto da desigualdade social, em um espaço

com menor opressão, exploração e espoliação, onde esteja ausente o preconceito

de raça, classe, etnia, gênero. A intenção é tornar o lugar em que moram,

integrado na cidade.

As manifestações relacionadas às necessidades específicas inicialmente

fragmentadas expandem-se tanto na compreensão de direitos como em relação

ao espaço. No Brasil, no final da década de 80 do Século XX, com a instalação

do Congresso Constituinte, agregaram-se movimentos na defesa de princípios e

direitos fundamentais como a educação, saúde, reforma agrária, ambiente

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saudável, água potável, energia elétrica, reforma urbana, entre outros, propondo

emendas populares à Constituição.

Em relação a reforma urbana houve tentativas anteriores de aglutinação

como a que ocorreu na primeira metade da década de 60 no Congresso de

Arquitetos realizado em 1963 cuja proposta centrou-se em mecanismos de

intervenção do governo federal nos problemas habitacionais. Com modificações e

alterações a proposta do Hotel Quitandinha (local onde se reuniram os arquitetos)

foi apropriada pelos governos da ditadura milita com a criação em 1964 do Banco

Nacional de Habitação e do Sistema Financeiro de Habitação.11

Em 1967 o governo militar põe fim a estabilidade do trabalhador, criando

o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) transformando um direito

numa forma de obter recursos para “resolver“ problemas de habitação e ativar a

economia por meio da indústria da construção civil. Inicia-se, como já dito, o

processo de precarização do trabalho com o fim da estabilidade do trabalhador.

Nos discursos as classes sociais, os trabalhadores em geral desaparecem para

dar lugar a classes de renda.

No período da ditadura militar os movimentos sociais centram-se no

movimento contra a carestia e similares mas desde a década de 80 o movimento

da reforma urbana articula-se colocando em pauta problemas de habitação,

transporte, acesso a terra urbanizada, saneamento.12 As lutas para garantir o

direito à moradia, aos transportes coletivos, a permanência nas áreas ocupadas,

equipamentos e meios de consumo coletivo, ao emprego, a infra-estrutura são e

foram fundamentais para desvendar formas de opressão, de segregação, de

promessas nunca cumpridas pelo estado e pelo capital.

No final da década de 80 o movimento pela reforma urbana elabora a

Emenda Constitucional pela Reforma Urbana. Alguns princípios propostos na

Emenda pela Reforma Urbana constam da Constituição Brasileira, como a função

social da propriedade e da cidade (artigos 182 e 183). Contudo na Constituição a

11 - Contrariamente ao que pensam alguns intelectuais que querem atribuir ao congresso de arquitetos os pressupostos da reforma urbana, são os movimentos populares que estabelecem os princípios da reforma urbana. 12 - O movimento da Reforma Urbana conta com movimento sociais populares, trabalhadores da área urbana, arquitetos, geógrafos, urbanistas, Ongs, sindicatos de engenheiros, arquitetos entre outros.

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função social da propriedade é postergada pois se exige a elaboração de um

Plano Diretor onde se delimite as áreas que não cumprem sua função social. O

plano diretor é exigido para os municípios com mais de 20 mil habitantes.

As ”topias”, ou seja, as normas como lembra Henry Lefebvre, são

resguardadas com a definição e obrigatoriedade de um plano diretor que implica

em planejamento governamental do uso da terra urbana.

A regulamentação dos artigos 182 e 183 da Constituição ocorre em 2001

com a aprovação da Lei 10.257/01 – Estatuto da Cidade que trata da cidade

como produção coletiva e da função social da cidade e a Medida Provisória

2220/2001 que trata especificamente das terras públicas e criação do Conselho

das Cidades. A função social da cidade como expressa no Estatuto da Cidade

reconhece os direitos de ocupação com o usucapião individual e coletivo, tenta

impor limites à especulação imobiliária e ao mesmo tempo reafirma a propriedade

da terra.13

Em 1992, na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento e

Meio Ambiente (CNUMAD) organiza-se o Fórum das Organizações não

Governamentais e Movimentos Sociais que elaboram vários Tratados para

explicitar o que desejam. O Tratado da Questão Urbana é assinado por

representantes de movimentos populares de vários países, em especial pelo

Fórum Nacional da Reforma Urbana, HIC e FCOC. È bom lembrar que as

propostas do Fórum das Ongs e movimentos sociais não foram incorporadas na

Agenda 21, documento assinado pelos representantes de paises presentes na

CNUMAD.

Ao longo da década de 90 as lideranças dos movimentos estão presentes

em vários lugares do mundo para mostrar o significado do direito a ter direitos

debatendo o conteúdo do Tratado da Questão Urbana.

O preâmbulo da carta que veicula o Tratado da Questão Urbana resgata

como se processou o debate:

“Sin embargo, la promoción y difusión mundial de esta iniciativa, proveniente

inicialmente de la sociedad civil latinoamericana, la concibió en su origen como un

13 - veja-se Rodrigues, Arlete Moysés 2005

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documento político que sirviera para movilizar a amplios sectores sociales

potencialmente interesados en el tema. Se orientó principalmente a organizaciones

civiles y movimientos sociales y paulatinamente se ha abierto a la incorporación de

autoridades locales, organismos internacionales y otros actores públicos, privados y

sociales” (Carta sobre o Tratado da Questão Urbana)

Em 1996, a Conferência das Nações Unidas sobre os Assentamentos

Humanos (Habitat II) realizada em Istambul contou com ampla participação dos

movimentos populares reunidos também em Fórum próprio mas com a

possibilidade de assistir os debates, o que significou um novo marco em relação

aos direitos sociais e ao reconhecimento de formas de organização da sociedade.

A agenda Habitat II assegurou, com ressalvas, o direito a moradia como

direito humano e o fim dos despejos forçados. A construção coletiva dos

movimentos sociais se apropria do avanço técnico e computacional formam redes

internacionais 14 e divulgam os princípios e pressupostos pelo direito à moradia

como direito humano e constroem coletivamente o ideário do Direito à Cidade.

Os Fóruns Sociais Mundiais (Um Outro Mundo é Possível), fortalecem a

união de movimentos sociais populares que debatem o Direito à Cidade, ou

melhor a Cidade como Direito. Trata-se do movimento da sociedade que têm

como objetivo, objeto, meta, princípios a Utopia da Cidade como Direito.

Utilizamos Cidade como Direito para dar a dimensão espacial, territorial

que interessa sobretudo aos geógrafos.

A luta pelo direito à cidade é um germe da utopia para conquista do

reconhecimento que os que produzem a cidade querem dela também usufruir. È a

constituição de um direito coletivo. Direito coletivo que implica não apenas na

assimilação de direitos individuais mas em sua coletivização.

A luta pela Cidade como Direito surge e se explicita pelos que vivem nas

áreas segregadas e assim são os hipercarentes, ou seja aqueles que moram em

condições precárias, que não tem emprego permanente, que constroem um

contraponto as normas jurídicas, urbanísticas que regem a terra urbana e a vida

social nas cidades, que se opõem a cidade-mercadoria e que entendem que a

14 Rodrigues, Arlete Moysés - 2006

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cidade é produzida coletivamente e que deve ser usufruída por todos. Henrique

Ortiz15 afirma que:

“A iniciativa de formular os princípios do direito à cidade tem como principal

pressuposto lutar contra todas as causas e manifestações de exclusão:

econômicas, sociais, territoriais, culturais, políticas e psicológicas. È uma resposta

social, um contraponto à cidade mercadoria. A luta pelo direito à cidade é a

expressão do interesse coletivo”. (Ortiz, Enrique, 2006)

Assim a luta pelo direito à cidade não se restringe a construção, e

obtenção de direitos individuais. O objetivo central é tornar o valor de uso

predominante sobre o valor de troca e construir o direito coletivo.

O processo de mobilização internacional dos movimentos propõe a

coletivização dos direitos, como se verifica em trecho da Carta Mundial pelo

Direito à Cidade.

“O Direito à Cidade amplia o tradicional enfoque sobre a melhora da qualidade de

vida das pessoas centrado na moradia e no bairro até abarcar a qualidade de vida à

escala da cidade e de seu entorno rural, como um mecanismo de proteção da

população que vive nas cidades ou regiões em acelerado processo de urbanização.

Isso implica em enfatizar uma nova maneira de promoção, respeito, defesa e

realização dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais

garantidos nos instrumentos regionais e internacionais de direitos humanos”

“É um direito coletivo dos habitantes das cidades, em especial dos grupos

vulneráveis e desfavorecidos, que lhes confere legitimidade de ação e organização,

baseado em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do

direito à livre autodeterminação e a um padrão de vida adequado.”

Os direitos individuais, por mais importantes que sejam, foram capturados

pelo “mercado” dirigido para “escolhas” individuais com predomínio do valor de

troca. Foram e são importantes para a consciência coletiva dos trabalhadores e/ou

das classes populares e permitem avançar com a proposição de direitos coletivos

e predomínio do valor de uso como proposto na Carta Mundial pelo Direito à

Cidade.

15- Henrique Ortiz é diretor Presidente do HIC – Habitat Internacional Coalisation

Page 16: Texto  desigualdades sociespaciais-

A luta pelo direito à cidade diz respeito à sociedade urbanizada e não ao

limites das cidades mas ao processo de urbanização, como aponta a própria Carta

Mundial pelo Direito à Cidade.

Para os efeitos dessa Carta, o conceito de cidade possui duas acepções. Por seu

caráter físico, a cidade é toda metrópole, urbe, vila ou povoado que esteja

organizado institucionalmente como unidade local de governo de caráter municipal

ou metropolitano. Inclui tanto o espaço urbano como o entorno rural ou semi-rural

que forma parte de seu território. Como espaço político, a cidade é o conjunto de

instituições e atores que intervêm na sua gestão, como as autoridades

governamentais, legislativas e judiciárias, as instâncias de participação social

institucionalizadas, os movimentos e organizações sociais e a comunidade em geral.

Neoliberalismo - Contrapondo dos movimentos popu lares.

A separação “artificial” das lutas no local de trabalho e o de viver dificultou

que se compreendesse que fazem parte do mesmo processo de exploração e

espoliação.

Mas a separação do lugar de trabalhar e viver é produto da exploração,

dominação e espoliação dos trabalhadores que se concretizam na fábrica, no local

de moradia, no deslocamento da moradia para o trabalho. A força de trabalho é

uma mercadoria e preço não é suficiente para que a maioria consiga sobreviver

decentemente. Portanto são aspectos da luta pelo direito à vida.

As lutas no local de moradia foram, durante muito tempo, consideradas

secundárias porque não se referiam aos conflitos diretos entre capital e trabalho

ou tidas como reformistas na medida em que reivindicavam casa própria.

Entendemos que a casa própria para quem nela mora tem valor de uso, é uma

mercadoria de uso pessoal. Se os moradores pagarem aluguel estarão pagando a

renda da mercadoria terra-edificação em parcelas mensais. Não é possível

separar o lugar do viver do lugar de trabalhar sem incorrer em simplificações e não

é possível considerar que a sociedade se move como querem os intelectuais.

É verdade que a ideologia da casa própria foi o mito da ditadura militar

para movimentar o setor industrial e incentivar a compra da casa para quem não

pode pagar aluguel. O Brasil tem algumas singularidades, entre elas, a de que

Page 17: Texto  desigualdades sociespaciais-

quem não pode pagar aluguel compra casa com financiamento do seu próprio

dinheiro. Dinheiro público proveniente do Fundo de Garantia por Tempo de

Serviço (FGTS).

A acumulação flexível do capital, a alteração de grandes plantas industriais

com predomínio de produção dispersa no espaço, just-in time, o avanço de

tecnologias que substituem força de trabalho, o aumento do desemprego e

subemprego, a precarização das relações de trabalho expressam novas questões

e tornam mais evidente que as lutas do mundo do trabalho embora realizadas de

modos diversos têm o mesmo conteúdo: lutar contra as formas de dominação e

opressão.

O neoliberalismo aumenta e acelera a desigualdade socioespacial e a

segregação social e espacial e impõe a fragmentação de políticas públicas.

Conquistas históricas dos trabalhadores são desmanteladas com a hegemonia do

pensamento neoliberal que se torna a ideologia dominante. Reginaldo Moraes

aponta que “neoliberalismo constitui em primeiro lugar uma ideologia, uma forma

de ver o mundo social, uma corrente de pensamento” (Moraes, p.27). Ideologia de

um “consenso” forjado como mostra Francisco Fonseca. (Fonseca, 2005)

Os inimigos declarados dos neoliberais são o Estado em especial o que

propaga um bem estar social, a planificação, a intervenção estatal na economia,

os sindicatos, as centrais sindicais, a ideologia nacionalista e desenvolvimentista,

o populismo e os direitos coletivos.

Os neoliberais têm duas grandes exigências complementares: privatizar

empresas estatais e serviços públicos e desregulamentar as normas de estados

nacionais e o repasse da regulamentação para as organizações multilaterais como

o G-7, a OMC, Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, dominados pelas

corporações multinacionais e pelo pensamento neoliberal.

Na década de 80 do século XX generalizam-se os mercados financeiros

que tenta subtrair dos governos nacionais grande parte do seu poder. O novo

fetiche passa a ser as “contas nacionais”. Os países devedores tornam-se

prisioneiros das “contas” e não têm como garantir políticas de pleno emprego e/ou

diminuir a desigualdade sócio-espacial. O rebatimento do neoliberalismo

Page 18: Texto  desigualdades sociespaciais-

intensifica as desigualdades sócio-espaciais com a transformação da coisa pública

em privada, resolvível no mercado. A “public choise” é centro das propostas de

privatização:

“bens públicos não dependem clara e objetivamente de pagamento que é o

que vale no mercado- os economistas reconheciam aí a existência de atividades

geradoras de benefícios que não podem ser comercializados no mercado . Há

uma pseudodemanda não concretizável no mercado mas em disputa numa

determinada arena política, um simulacro de mercado” (Moraes, p. 56).

Esse quase mercado, um mercado específico, vira um “mercado” mesmo

quando a provisão de bens não coincide com a produção. O mercado capitalista

de terras e de edificações urbanas não é completamente conhecido como o são

outras mercadorias, depende de uma plêiade de proprietários privados mas se

constitui num mercado especifico16.

Quanto mais cidade de produz, na lógica do capital, maior o preço da terra

e das edificações, como se verifica no processo de expulsão explicitada ou

implícita dos trabalhadores.

A focalização em ações direcionadas, como preconizada pela agenda

neoliberal, delimita o receptor de benefícios e assim substitui a política de acesso

universal pelo acesso seletivo. Impede que os direitos sociais sejam atinentes aos

bens públicos e que se transformem em direitos coletivos. O que tem valor são os

“direitos individuais, seletivos” que se concretizam no mercado.

Enquanto o neoliberalismo insiste na focalização, as lutas dos movimentos

societários colocam o pressuposto que a produção do espaço é social, que a

desigualdade na obtenção de direitos sociais coletivos não pode ser resolvida no

e pelo mercado.

São os movimentos sociais de todos os matizes que recolocam o direito

universal do trabalho, educação, saúde, terra para plantar, terra para morar, da

igualdade entre etnias, do direito à cidade como direitos coletivos e que tendo

conhecimento ou não se colocam contra as políticas neoliberais.

16 - Veja-se Rodrigues, A. Moyses (1988)

Page 19: Texto  desigualdades sociespaciais-

Utopia do Tempo Presente

A luta pelo direito à cidade é uma demonstração de que para alterar a

desigualdade sócio-espacial é preciso construir novas utopias, que possibilitem

que a produção coletiva do espaço seja apropriada coletivamente. È necessário

também constituir novos instrumentais de análises sobre a produção reprodução

da cidade e da reprodução ampliada do capital, que permitam compreender as

contradições e os conflitos.

A Carta Mundial da Cidade aponta que se pretende obter a justa distribuição

da riqueza produzida:

“O objetivo é promover a justa distribuição dos benefícios e responsabilidades

resultantes do processo de urbanização; o cumprimento das funções sociais da

cidade e da propriedade; a distribuição da renda urbana; a democratização do

acesso à terra e aos serviços públicos para todos os cidadãos, especialmente

àqueles com menos recursos econômicos ou em situação de vulnerabilidade”

Fica explicito que se objetiva fortalecer e articular os movimentos sociais. E

que se pretende instituir como direito humano o direito coletivo.

“Por sua origem e significado social, a Carta Mundial do Direito à Cidade é, antes

de tudo, um instrumento dirigido ao fortalecimento dos processos, reivindicações e

lutas urbanas. Está chamado a constituir-se em plataforma capaz de articular os

esforços de todos aqueles atores – públicos, sociais e privados – interessados em

dar plena vigência e efetividade a esse novo direito humano mediante sua

promoção, reconhecimento legal, implementação, regulação e prática.”

O Direito a Cidade é definido como o usufruto eqüitativo das cidades dentro

dos princípios de equidade e justiça social. É um direito coletivo dos habitantes

das cidades, em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos, que lhes

confere legitimidade de ação e organização, baseado em seus usos e costumes,

com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito à livre autodeterminação e

a um padrão de vida adequado.

A utopia da Cidade como Direito busca, nos seus princípios, pressupostos,

propósitos, integrar e ultrapassar os direitos humanos internacionalmente

reconhecidos, ou seja, os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e

ambientais que contam nos tratados internacionais de direitos humanos buscando

Page 20: Texto  desigualdades sociespaciais-

o direito coletivo. O direito à Cidade inclui o direito ao desenvolvimento à

participação no planejamento e gestão urbanos e à herança histórica e cultural.

O direito à cidade, a cidade como direito constrói a utopia do tempo presente.

Não nega o que não existe porque quer alterar o que existe para melhor. Pretende

mudar a realidade da vida nas cidades. Mostra a realidade como ela é mas quer

ultrapassar a pobreza, a carência, não no futuro distante e num eldorado mas

desde já e no lugar onde se vive. Não se trata de uma sociedade e cidade

idealizadas mas da possibilidade de concretizar a melhora do que existe.

A utopia não é imaginar um eldorado separado da vida cotidiana mas

como todas as utopias há : “oposição da imaginação ao que existe, em nome de

algo radicalmente melhor que a humanidade tem direito de desejar e pelo qual

vale a pena lutar”. (Santos, p.323).

A luta pelo direito à cidade e todos aqueles que dela partilham, seja na

academia, seja nos movimentos sociais é uma plataforma de luta a construção da

utopia de ter a cidade como um direito com a idéia de que um outro mundo é

possível. È possível diminuir a desigualdade socioespacial se os direitos

individuais que constam nos tratados internacionais sejam efetivos e constitui a

Cidade como Direito.

Referencias bibliograficas

Carta Mundial pelo Direito à Cidade – 2006

Davis, Mark – 2006 - Planeta Favela – Boitempo Editora – SP- SP

Fonseca, Francisco 2005 - O Consenso Forjado : A grande imprensa e formação

da Agenda Neoliberal no Brasil – Editora Hucitec – SP-SP

Lei 10.257/01 – Estatuto da Cidade Estatuto da Cidade

Moraes, Reginaldo, 2001 – Neoliberalismo : de onde vem para onde vai?

Editora Senac – SP. SP

Ortiz, Henrique – pronunciamento como diretor Presidente do HIC – Habitat

Internacional Coalisation

Projeto de Lei 20/2007 – Projeto de Lei sobre Responsabilidade Territorial –

Câmara Federal – Brasília – DF.

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Rodrigues, Arlete Moysés 1988 Na procura do lugar o Encontro da

Identidade – As ocupações coletivas de terra – Osasco- São Paulo.

Tese de doutoramento.

2005 – Direito a Cidade e o Estatuto da Cidade – Revista Cidades

n.3 vol.2 –Presidente Prudente- SP.

2006 – Movimentos Sociais Urbanos in Sociedades em Redes,

Cidades Globais, Tecnologias Informacionais. CD do Encontro

Santos, Boaventura Souza – 1995 – Pela Mão de Alice – O social e o Político na

pós modernidade- Cortez Editora – SP SP