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MEM— ÓRIAS DE UMA TRAV— ESSIA

TFG | Memórias de uma travessia, Pedro Giunti

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TFG FAUUSP | Memórias de uma travessia: Projeto para o Memorial da Retirância em São Paulo | Pedro Giunti

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  • MEMRIAS

    DEUMA

    TRAV ESSIA

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO

    MEMRIAS

    DEUMA

    TRAV ESSIA

    PROJETO PARA O MEMORIAL DA RETIRNCIA EM SO PAULO

    PEDRO GABRIEL GIUNTIJUNHO DE 2016

    TRABALHO FINAL DE GRADUAOORIENTADOR PROF. DR. LUS ANTNIO JORGE

  • Quando eu vim do serto,seu mo, do meu BodocA malota era um sacoe o cadeado era um nS trazia a coragem e a caraViajando num pau de arara

    Eu penei, mas aqui cheguei!

  • Luiz Gonzaga, Pau de arara

  • Vejo este no apenas como o trabalho final de uma graduao, mas sim outro passo de um caminhar que h muito comeou, e que segue. Ao longo desse caminho, muitos foram aqueles que o abriram e seguiram comigo. Assim, guardo comigo a gratido a todos que aqui e por mim passaram, com o desejo que continue a t-los presentes ao longo dessa travessia.

    Agradeo ao professor Lus Antnio Jorge, pela sbia, generosa e precisa orientao, mostrando que sem fantasia no se inventa - o inimaginvel possvel e permiti-lo o maior dos atos.

    A Marcelo Ferraz e Angelo Bucci por, de imediato, aceitarem participar da banca.

    Pelas contribuies nem sempre diretas ao trabalho mas cruciais para que eu o realizasse, agradeo aos professores Myrna Nascimento, Fbio Mariz, Alexandre Delijaicov, Anlia Amorim, Antonio Carlos Barossi, Oreste Bortolli, Francisco Segnini, Ana Lanna, Mrio DAgostino e Nilce Aravecchia. E aos que em diferentes e breves momentos tambm foram essenciais minha formao: Jaqueline Galuzzi, Priscilla Goya, Maria Lcia Motta, Rafael Urano, Mirtes Luciani e Vera Luz.

    A toda equipe do 23 Sul Arquitetura, pelo aprendizado dirio sem o qual este trabalho nada seria e pela abertura para que eu pudesse finaliz-lo.

    Aos companheiros de FAUUSP, em dias de estdio e noites em claro, sobretudo os caros Bruno Mentone, Andressa Hernandez, Jaime Solares, Aline Bravo, Sheila Quilice, Tatiane Teles, Stephanie Abe, Gabriela Villas Bas , Evelin Vieira e Vitor Arajo.

    Aos amigos da Federal, com quem sigo h tantos anos e com o desejo de que muitos ainda compartilhemos, em especial Ricardo Pizcioneri.

    Aos queridos Mona Lindenbojm, Renato Rodrigues e Marina Magliocca pelas aventuras e bons momentos em terras lusitanas, e aos que fizeram essa oportunidade possvel: os tios Mrio e Srgio Giunti, Natlio Ferreira, Elencia e Arlindo Dantas, e os amigos Maria Jos Bolvia e Edson Furlanetto.

    A minha famlia, em seu esforo contnuo para que eu pudesse me fazer. A minha av Valderina Teixeira, motivao desse trabalho, em todo seu vigor e ternura. Ao meu pai Umberto Giunti, por despertar o olhar curioso atravs do qual vejo o mundo. Ao meu irmo Matheus Giunti e a Mariana Bazzoli, por toda companhia e entusiasmo. A minha me Vanda Janet, por me permitir o sonho e sonh-lo em conjunto, apoiando-o sempre incondicionalmente.

    E a Mariane Gondim, pela compreenso em minhas ausncias e pelo amor, que alegra o meu viver.

  • Para Valderina e Nelson, em memria.

  • Introduo

    A TERRAInveno

    CondioJornada

    O HOMEMOralidade

    Relato

    A LITERATURAPaisagem

    SecuraSeveridade

    Travessia

    O DESTINOSo Paulo

    SentidoErrar

    PermeabilidadeArquitetura

    Desenlace

    Bibliografia

    12

    151924

    3334

    43455257

    6365728286

    139

    140

  • 12

    INTRODUO

    1. Michaelis. Moderno Dicionrio da Lngua

    Portuguesa.

    migrar mi.grar [Do latim migrare] 1 v.int Passar de uma regio para outra. 2 zool Passar periodicamente de uma regio ou clima a outro, para procurar alimentao ou desenvolver-se.1

    Caracterstica de todos os povos, em diferentes partes do mundo e fases da histria. Nos lembra que o homem retoma um carter nmade pela necessidade de sua sobrevivncia, pois no local em que est essa no mais possvel. xodo e dispora. Refugiados, dekasseguis e retirantes. Em diversos contextos, o mesmo processo. Em todos o migrante algum partido, pois uma vida permanece em sua origem enquanto outra se lana a um novo destino. O destino que escolho So Paulo, onde muitos so os fragmentos, que somam-se para integrar-se. Um mosaico de diferentes retalhos, que nos trazem a pergunta: quem somos ns, paulistas de origem ou vivncia? Em resposta, este trabalho busca no desfazer injustias, apenas tenta encontrar nosso lugar em meio essa quebra e reconstituio. Assim, acredita-se na possibilidade de encurtar as distncias culturais, provar a descoberta do outro em ns mesmos, e reconhecer que essa diversidade historicamente a maior riqueza paulista, e brasileira o que nos faz iguais em nossas diferenas.

  • 13

    2. Colocao feita pela professora Ana Lanna,

    fundamental a este trabalho como diretriz

    metodolgica.

    3. O fao tambm guiado pelo ensaio fotogrfico

    de Marcelo Ferraz, intitulado Arquitetura

    rural na Serra da Mantiqueira.

    Como abordar o outro e como ele se constitui em tema? A partir de quais referncias e escalas de aproximao ele define-se como objeto de estudo?2

    Uma interpretao do processo migratrio nordestino implica em uma caracterizao da especificidade do que o Nordeste no contexto brasileiro, em sua complexidade e riqueza, para ento chegarmos aos seus agentes, os retirantes. Indivduos que se retiram de uma condio que lhes aprisionam e privam, e que em So Paulo buscam uma vida propriamente dita mas que custosamente a encontram.

    Como estrutura, o trabalho segue num percurso como o que esses retirantes percorrem, numa travessia que parte do Nordeste e chega So Paulo. Em referncia a Os Sertes, de Euclides da Cunha, realizo uma leitura do Nordeste e do retirante por meio de trs aproximaes sucessivas: A terra, O homem e, ao invs da luta, A literatura, onde a luta tambm se manifesta3.

    Em A terra, busco delinear o que o foi, e ainda , esse processo em sua conjuntura ambiental, poltica, econmica, social e cultural. Num segundo momento, em O homem, enfoco na experincia subjetiva, individual, na viso daquele que tenha testemunhado e sido agente desse processo, buscando na fora de sua expresso a riqueza que universal condio de retirante. Admiro os poetas. O que eles dizem com duas palavras a gente tem que exprimir com milhares de tijolos. Compartilhando do fascnio de Artigas, em A Literatura encontro a fora do Nordeste na releitura de obras vitais literatura brasileira, bem como seu cruzamento com outras artes, como sensibilizao e amparo potica do espao proposto. Chegando ao destino, parto em busca do lugar, em suas evidncias obliteradas pelo explosivo desenvolvimento da cidade, numa travessia que j se faz projeto ainda na leitura de So Paulo, para ento direcionar esses traos arquitetura.

  • A TERR A

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    O Nordeste fechado.1

    Se o brasileiro nasce a partir do ndio, do europeu e do negro, no Nordeste que este encontro tem o mximo de sua expresso cultural. Abelardo da Hora defende que enquanto ao sul influncias externas seriam mais facilmente absorvidas e adaptadas ao modo de vida, no Nordeste encontra-se um obstculo: a fora da prpria cultura. A mais autntica regio brasileira, alm de conservar os valores sobre os quais se apoiariam o carter nacional, tem em si esta particularidade fechada, autossuficiente, cuja riqueza e vigor caractersticos poucas brechas abrem a novos traos. O Nordeste basta-se. Porm, um duplo vis esta regio ainda carrega: de um lado a vida de sua cultura rica e de fundamental importncia para a chamada brasilidade; de outro, uma severa estrutura econmica e social, que obriga sua populao a migrar, fugir, se retirar de uma condio que lhe tira a vida. Assim, entre essa dualidade que caminham as pginas a seguir, em uma primeira aproximao problemtica do Nordeste, seus agentes e a condio que lhes imposta: a de retirante.

    Escrever aqui Nordeste, com maiscula, na realidade a conquista de um esforo que h pouco mais de um sculo iniciou-se. No entanto, acostumamo-nos de tal modo a ela que fcil nos esquecermos que todo o imaginrio que a palavra nos traz nem sempre existiu. O entendimento de sua origem e formao remonta a um questionamento que inicia-se ainda no sculo XIX: afinal, quem somos ns, brasileiros? A crise de identidade que se estabeleceu aps os movimentos de independncia encontrou em diferentes momentos, diferentes agentes sobre os quais seriam apoiados os pilares da nacionalidade. Assim, narrar a histria da inveno do Nordeste , guardadas as devidas propores, narrar a histria da inveno do Brasil.

    INVENO

    1. HORA, Abelardo da. In: BARDI, Lina Bo (org.).

    Tempos de Grossura: o design no impasse. So

    Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1994, p.61.

    Bahia, Marcel Gautherot.

  • 16

    Durante os trs sculos da presena estrangeira, o curso da vida dos diversos povos que aqui habitavam e foram trazidos mudaram radicalmente. Compelidos a novos costumes, religio e lngua, seus traos culturais originais foram borrados, apagados, mesclados. Como nos conta Darcy Ribeiro em sua pesquisa pela formao e o sentido do Brasil2, desafiados a sarem de sua ninguendade de no-ndios, no-europeus e no-negros, os filhos dessa unio buscaram uma identidade grupal reconhecvel, e viram-se forados a inventar sua prpria: a brasileira.

    Todo passado que nos outro merece ser negado3, observou posteriormente Haroldo de Campos, resumindo o sentimento ante a herana europeia imposta pelos colonizadores, com a qual se queria romper. Assim, a crise poltica e os interesses que culminaram na emancipao poltica, trouxeram tambm a demanda de uma emancipao cultural.

    A identidade do brasileiro viu-se frgil, precisando de novas bases para se apoiar. Obteve voz na literatura, e na autoafirmao pela reviso de sua histria e agentes encontrou sustento. A construo de um carter nacional pode ser observada atravs do Romantismo, cujo sentimento fez surgir pela memria uma espcie de elo para a formao de uma identidade verdadeiramente brasileira. Usaria um misto de realismo e fico para criar um conjunto de tradies culturais locais, surgindo, ento, miticamente ligado ao mais remoto passado brasileiro e tornando-se um smbolo da origem do povo o ndio, lendrio e heroico, bravo e belo. exemplo dos romances de Alencar, o ndio assume o protagonismo no processo de identificao nacional, alm de servir de base para a imagem da nova nao aos olhares externos, agora em igualdade.

    A tradio inventada foi aos ganhando contorno, formando uma espcie de esprito nacional, ainda que ficcional. Entretanto, a imagem e identidade de um povo enquanto processo que se constri historicamente, encontra-se em constante transformao, perdendo aos poucos este carter fixo e estvel. Entre continuidades e rupturas, a imagem romntica do brasileiro cedeu a outra mais prxima da realidade de um todo, a partir do reconhecimento de sua diversidade e particularidade.

    O sculo XX trouxe um esforo de reconhecimento desse processo histrico em transformao, cuja tomada de conscincia torna- se o anseio primeiro do Modernismo, assim como seu projeto: a criao de uma identidade nacional autnoma, livre dos excessos do passado. Com a preocupao em delinear um carter que refletisse a realidade nacional, uma mudana do olhar foi essencial. Renuncia-se pureza e essencialidade romntica em prol de um reconhecimento e valorizao de uma cultura miscigenada, marcada pelas diversas contribuies tnicas, suas bagagens culturais, e seu heterogneo desenvolvimento ao longo do espao e do tempo.

    2. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: A formao e o sentido do Brasil. So

    Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.126133.

    3. CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e

    outras metas. So Paulo: Perspectiva, 2004, p.235.

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    De um lado, a conscincia da riqueza de seu amlgama cultural. De outro, o agravamento do desequilbrio regional, geopoltico e econmico. Nos, ento, Estados Unidos do Brasil, a unio do ttulo perdeu-se para o abismo social entre as diferentes regies. Com o deslocamento do eixo poltico e econmico do pas para o Sudeste, centralizou-se tambm as discusses a respeito da identidade nacional, atravs sobretudo dos ecos da Semana de Arte Moderna de 1922. Em busca do redirecionamento do debate surge no Nordeste e para o Brasil um esforo de valorao de uma cultura perifrica e popular. O Nordeste coloca-se legitimando-se tanto como emblema identitrio quanto ideolgico, cujo vigor afirmou-se como bastio da cultura nacional. E para isso, a importncia de Gilberto Freyre foi vital.

    O trabalho do socilogo pernambucano tem dois momentos proveitosos a esse estudo: o Manifesto Regionalista, em 1926, e Casa-grande e Senzala, em 1933. Dos engenhos escravistas, Freyre extrai um paralelo de modo que sua arquitetura a segregao hierrquica da casa-grande em relao senzala expressaria a organizao social e poltica brasileira, ainda enraizada ao forte patriarcalismo. Contudo, a mais oportuna contribuio e que instiga o trabalho, a derrubada da ideia de que a miscigenao seria responsvel pelo aparente atraso social do Brasil, sendo na realidade, sua diversidade tnica e cultural, sua maior ddiva. Sobre essa nova construo do carter nacional, Renato Ortiz nos escreve: Gilberto Freyre transforma a negatividade do mestio em positividade, o que permite completar definitivamente os contornos de uma identidade que h muito vinha sendo desenhada4.

    Ainda que anterior a publicao de Casa-grande e Senzala, o Manifesto Regionalista surge como resposta direta e contraposio a tendncia predominante entre os intelectuais paulistas da Semana de Arte Moderna. Nasce fruto do Congresso Regionalista de 1926, porm, sua verso escrita publicada apenas em 1952, na qual Freyre sustenta ser a nao o produto de uma soma de territrios regionais, sendo uma destas a regio nordestina, distinta da do Norte, a maior portadora dos caracteres fundantes da brasilidade5. Freyre destaca que seu regionalismo no tinha conotao separatista mas, sim, conciliatria, acreditando que o Nordeste a chave para a compreenso do pas. Seu modo de ver a nao vem de uma percepo talvez mais histrica que geogrfica e certamente mais social que poltica6. Assim, o Brasil deveria ser administrado a partir de critrios regionais, que ponderassem e valorizassem as peculiaridades culturais do pas.

    Este esforou transformou o Nordeste em palco de discusso sobre a questo agrria no Brasil, alm da disperso de sua populao pelo pas, denunciando a emergncia do enfrentamento deste problema estrutural. Assim, a noo de regies particulares e interdependentes foi fundamental para que o Estado intervisse.

    4. ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e identidade

    nacional. 5 edio. So Paulo: Brasiliense,1994,

    p.41.

    5. AMARAL JR., Acio. Sensualismo e conscincia regional: o Nordeste freyriano.

    Revista Razes, Campina Grande, v.2 1, n. 2, p.227-

    232, julho/dezembro, 2002.

    6. FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista. 7 edio. Recife: FJN/

    Massangana, 1996, p.48.

  • 18

    Nesse contexto, organizaes importantes surgiram: em 1952 foi criado o Banco do Nordeste do Brasil; e em 1956 fora institudo o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste que culminaria na fundao em 1959 da Superintendncia de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE).

    Como parte desse processo de construo do carter nacional, um nome tambm essencial ser mencionado: Lina Bo Bardi. No Brasil, a arquiteta italiana encontrou abrigo ao fugir das dificuldades do ps-guerra, e na cultura popular, encontrou o motor de sua produo. Enquanto aqui a sensibilidade frente a riqueza de nossa cultura foi fruto de um grande esforo em aprender a olhar para ns mesmos, para a nova realidade da imigrante recm chegada lhe era natural. Movida pelo desejo de fazer arquitetura em um pas novo e sem vcios7, ela reconheceu o frtil terreno para suas ideias e ideais modernos. Nem todas as culturas so ricas e herdeiras diretas de grandes acumulaes histricas, de modo que a arqueologia scio-cultural de Lina vai a fundo numa civilizao, a mais simples e pobre, at chegar em suas razes populares onde reside a histria de um pas. Como afirma Marcelo Ferraz, Lina redescobre o Brasil para os brasileiros8 ao resgatar a produo artesanal, ou pr-artesanal, como condio favorvel ao desenvolvimento de um design original moldado na medida do homem brasileiro, a fim de atender suas reais necessidades e anseios. E com o olhar atento s potencialidades da vida popular cotidiana, sua produo inaugura uma nova postura dentro da arquitetura moderna brasileira.

    Os nomes aqui citados so apenas alguns dos muitos cuja contribuio foi fundamental na inveno do Nordeste e da chamada brasilidade. Reconhecer a aparente fraqueza como potncia foi fato decisivo que abriu caminhos para que pudssemos nos construir. Caminhos atravs dos quais percorre-se at hoje, num esforo contnuo de entendimento e legitimao de quem ns, brasileiros, realmente somos. Caminhos esperanosos pois como ainda nos lembra Lina, um pas cuja base est na cultura do povo um pas de enormes possibilidades9.

    7. RUBINO, Silvana, GRINOVER, Marina (org.).

    Lina por escrito, textos escolhidos de Lina Bo

    Bardi. So Paulo: Cosac Naify, 2009, p.19.

    8. FERRAZ, Marcelo Carvalho. Arquitetura

    Conversvel. Rio de Janeiro: Beco do

    Azougue, 2011, p.49.

    9. BARDI, Lina Bo (org.). Tempos de Grossura: o design no impasse. So

    Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1994, p.20.

  • 19

    10. RIBEIRO, Darcy, op. cit., p.345362.

    Por mais anos ou geraes que permanea numa terra, o sertanejo sempre um agregado transitrio, sujeito a ser desalojado a qualquer hora, sem explicaes ou direitos. Por isso, sua casa o rancho em que est apenas arranchado; sua lavoura uma roa precria, s capaz de assegurar-lhe um mnimo vital para no morrer de fome, e sua atitude a de reserva e desconfiana, que corresponde a quem vive num mundo alheio, pedindo desculpas por existir. [...] Assim, que os currais se fizeram criatrios de gado, de bode e de gente: os bois para vender, os bodes para consumir, os homens para emigrar.10

    Secas constantes e uma economia exploradora. Especificamente sobre o serto, Darcy Ribeiro aponta que o agressivo meio-ambiente se torna ainda mais violento pela estrutura econmica exploratria, sendo, assim, a maior responsvel pela fuga dos nordestinos. Nascem, vivem e morrem em terras alheias, cuidando do gado, de casas e de lavouras que j tm outros donos. At o prprio lugar que vivem com suas famlias, no lhes pertencem. Ento, na tentativa de uma vida propriamente sua, se retiram.

    Uma diversidade e riqueza cultural mpar, comparvel apenas a outras poucas, mas uma estrutura que lhe seca, mais do que o prprio clima. O desequilbrio regional acaba por gerar vetores de deslocamento dessa patrimnio cultural e humano, de modo que alm de abrigar os valores sobre os quais se sustentam a identidade nacional, tambm a terra que mais expulsa seus homens. Assim, para o nordestino, migrar assume o significado de retirar-se de um meio no qual a vida no possvel. Passa a ser uma condio de sobrevivncia que em diferentes fases teve, e ainda tem, diferentes destinos.

    CONDIO

  • Levas de flagelados emergem do serto esturricado pela seca e pelo sol causticante, enchendo, primeiro, as estradas, depois as vilas e cidades sertanejas com a presena sombria de sua misria.

  • 22

    Retirantes, Candido Portinari, 1944, leo sobre tela, 190x180cm, Museu de Arte de So Paulo Assis Chateaubriand (MASP).

    RIBEIRO, Darcy, op. cit., p.348.

    11. WEINSTEIN, Brbara. A Borracha na Amaznia: Expanso e Decadncia. So Paulo: Edusp, 1993.

    12. IBGE. Censo Experimental de

    Braslia: populao e habitao,1959.

    Cartaz do SEMTA, 1943.

    Braslia, Marcel Gautherot.

    Num primeiro momento, como revela Weinstein11, o ltex da Amaznia torna a regio o destino de muitos. O chamado Primeiro Ciclo da Borracha se d a partir de meados do sculo XIX, com a crescente demanda que a Revoluo Industrial trouxe aos pases europeus do que, at ento, era um produto exclusivo da regio amaznica. Posteriormente, em 1943, motivado tambm pela vontade de ocupar os vazios geogrficos do pas, Getlio Vargas cria o Servio Especial de Mobilizao de Trabalhadores para a Amaznia (SEMTA), com a finalidade de alistar, treinar e transportar trabalhadores nordestinos para extrao do ouro branco da Amaznia, agora, sob a grande demanda dos aliados da Segunda Guerra Mundial. Assim, os cerca de 60 mil soldados da borracha partiam rumo s florestas em busca das seringueiras, e aps o declnio da atividade, muitos ali firmaram-se, sobretudo em Manaus.Uma dcada depois, para o Planalto Central que estes trabalhadores direcionam sua jornada. Com o governo de Juscelino Kubitschek, o Plano de Lcio Costa, e os traos de Oscar Niemeyer, surge Braslia, construda com as mos dos quase 70 mil candangos. Termo que nasce depreciativo, referindo-se s origens pobres dos trabalhadores braais mas, com as obras terminadas, muda-se de conotao tornando-se smbolo de herosmo, como pioneiros e povo fundante da nova capital. Estima-se que mais de 30 mil desses trabalhadores eram nordestinos.12

    De um lado, a agricultura precria, a estagnao econmica, os grandes latifndios, a concentrao de renda, a indstria pouco diversificada e o fenmeno constante das secas. De outro, efervescncias econmicas que atraem essa populao como mo de obra sob promessas de prosperidade e condies mais favorveis sua sobrevivncia. Entre ambos, o nordestino, cuja condio de retiro historicamente o obriga a buscar e sobrevivncia em outras regies. Apesar de sua vivacidade cultural, tambm lhe inerente uma explorao econmica que lhes roubam a existncia. Sob esta perspectiva, surge a rota da travessia e seu percurso como objeto de estudo desse trabalho, em um retiro rumo ao Sudeste, com destino final cidade de So Paulo.

  • 24

    Como revela Paulo Fontes13, dois fatores foram fundamentais no estabelecimento do fluxo migratrio em direo So Paulo: a Lei de Cotas para Imigrao da Constituio de 1934 que restringiu a entrada de imigrantes estrangeiros no pas; e a criao em 1939 da Inspetoria de Trabalhadores Nacionais, rgo ligado ao Departamento de Imigrao e Colonizao, atravs do qual o prprio governo passou a assumir a responsabilidade pela contratao e transferncia dos trabalhadores, substituindo companhias especializadas. Assim, com o declnio a partir de 1920 da imigrao europeia como mo de obra para as plantaes de caf do interior paulista, a migrao de outros estados, apesar de ser um fenmeno antigo, passou a ser oficialmente estimulada.

    As garantias trabalhistas inexistentes no Nordeste, na capital paulista significavam o escape s relaes de dominao e explorao a que estavam sujeitos. Emprego, salrios mais elevados, direitos trabalhistas, melhor infraestrutura hospitalar e educacional compunham o atrativo cenrio de So Paulo ao olhos dos retirantes, bem como a noo de uma evoluo socioeconmica que reduziria geraes a alguns meses, saindo de uma condio de atraso rural rumo ao progresso da cidade grande.

    Assim, a partir dcada de 1930, com o intenso desenvolvimento econmico e industrial, So Paulo tornou-se palco de um processo comparvel apenas poucas cidades em mbito mundial. O fluxo migrante foi redirecionado da rea rural para a metrpole, das lavouras para as indstrias, construes e os mais diversos postos de trabalho, passando a compor a massa da classe trabalhadora de So Paulo.

    JORNADA

    13. FONTES, Paulo. Um nordeste em So Paulo:

    trabalhadores migrantes em So Miguel Paulista. Rio de Janeiro: Editora

    FGV, 2008, p.4350.

  • 25

    comum uma viso da migrao como um movimento desordenado, irracional, feito s pressas, entretanto, importante ressaltar que esta no corresponde experincia de grande parte dos retirantes. Como constata Paulo Fontes14, os retirantes no foram apenas reflexo de foras econmicas determinadas externamente, embora nela estivessem imersos. Tambm foram agentes de si prprios e dessa forma, atravs de estratgias diversas, contriburam na moldagem de seu processo migratrio.

    A mudana, decisiva para a vida desses homens e suas famlias, era na maior parte das vezes meticulosamente pensada e preparada tanto no mbito familiar como no da comunidade a qual pertenciam, tendo, essas redes sociais, uma importncia central. Com a distncia e dificuldade da jornada, a mudana para So Paulo demandava uma complexa articulao, de modo que um familiar ou amigo abria caminho e fazia as conexes necessrias para abrigar novas pessoas. Muitas vezes isso significava o fracionamento provisrio da unidade familiar, com parte tentando se firmar antes de receber outros. Em alguns casos a possibilidade de migrao para cidades menores ou para regies agrcolas antes de uma eventual vinda para So Paulo era quase sempre levada em conta. Tal estgio no processo migratrio era considerado como uma alternativa segura ao risco e instabilidade que uma vinda direta poderia significar.

    Alm das vises extremadas, preconceituosas ou at mesmo pretensamente caridosas de tcnico governamentais, jornalistas, estudiosos, governantes ou parlamentares, a figura do retirante miservel e faminto, premido pelas condies econmicas e ecolgicas do serto nordestino, fugindo desesperada e desorganizadamente da seca prevaleceu no imaginrio social do perodo como a mais representativa do migrante, embora, como vimos, ela corresponda a uma parcela razoavelmente minoritria do total de trabalhadores que se deslocaram para as capitais do centro do pas.15

    Ao refazer a trajetria dos flagelados da seca rumo ao sul, surge o Rio So Francisco, crucial para o Nordeste e os nordestinos. Assim como Herdoto afirma que o Egito uma ddiva do Nilo, Luiz Gonzaga nos canta D um jeito meu So Francisco, Foi assim que pedi com f, De repente choveu bonito, O rio encheu de fazer mar, revelando a importncia do rio no cuidado com seu povo humilde do serto.

    14. Ibid. p.5461.

    15. Ibid. p.75.

  • Eu vi terra fumaarVi graveto estalando ao solEu vi o rio virarUm deserto de pedra e pA noite se avermelhouDe to quente o cu e o choMeu povo se encomendouEsperando o, fim do serto

    D um jeito meu So FranciscoFoi assim que pedi com fDe repente choveu bonitoO rio encheu de fazer mar triste se acompanharO serto secar e morrerCompensa a graa de DeusO milagre do renascer

    S pode mesmo julgarQue no exagero meuPessoa de boa fOu ento quem por l viveu

    Obrigado meu So FranciscoLouvo a Deus sua sagraoTenha sempre ao seu cuidadoO povo humilde do meu serto

    No precisa prometerEle ajuda a quem tem fFazer bem seu poderSo Francisco em Canind

  • 28

    Nasce na Serra da Canastra em Minas Gerais, e segue atravessando a Bahia, depois faz a divisa com Pernambuco, em seguida entre Sergipe e Alagoas at chegar no Atlntico. Alm de fonte de riqueza, o Velho Chico tornou-se smbolo de vida como rota de escoamento da populao retirante rumo ao Sul, como ainda demonstra de Paulo Fontes16. Seu trecho navegvel inicia-se nas cidades de Petrolina e Juazeiro, na divisa entre Pernambuco e Bahia, bem como a jornada de muitos dos retirantes, que subiam o Rio em barcos a vapor at Pirapora, em Minas Gerais, cidade terminal da Estrada de Ferro Central do Brasil. Muitas vezes conduzidos vagarosamente pelos trechos secos do rio, o percurso de 1300km chegava a demorar 15 dias.

    Alm de Pirapora, na cidade prxima de Montes Claros, estabeleceram-se escritrios da Inspetoria de Trabalhadores Nacionais ITN, que se responsabilizaram por organizar a chegada, processar a seleo de trabalhadores e o fornecimento de passagens para a capital paulista. Mais tarde, a inaugurao do ramal at Monte Azul e depois at Salvador, o Expresso do Serto ou Trem Baiano, passou a trazer os retirantes at So Paulo. Chegando na Estao do Brs e sua famosa Hospedaria, hoje convertida no Museu da Imigrao, iam para os lugares e vagas de trabalho j arranjadas, seguiam para fazendas no interior do estado, ou, ao sabor da prpria sorte, buscavam se instalar e estabelecer na cidade.

    A inaugurao da rodovia Rio-Bahia em 1949, a BR-116, diminuiu as dificuldades de deslocamento entre o Nordeste e as regies ao sul do pas. As melhorias do sistema rodovirio no pas na dcada de 1950 contriburam para o incremento do processo migratrio, agora por outras rotas.

    Em busca da terra prometida, os meios da travessia dos retirantes eram muitas vezes tidos como navios negreiros por sua precariedade e superlotao. Com pranchas de madeira colocadas transversalmente em suas carrocerias, como num poleiro, os caminhes paus-de-arara se transformaram no transporte smbolo dos retirantes nordestinos. Cruzando centenas de quilmetros, com a precariedade dos veculos e sua superlotao, os acidentes eram frequentes, muitas vezes terminando a jornada desses homens antes de seu destino final. Entretanto, a jornada no terminava quando se chegava a So Paulo. Aqui, por um custoso processo de estabelecimento e aceitao muitos ainda passariam.

    Com o aquecimento da economia cafeeira e o posterior desenvolvimento industrial, So Paulo adquiriu o ttulo de capital econmica do Brasil. Fontes ainda nos lembra que, alheio a ideia do Nordeste como reduto do mais puro esprito nacional, o desenvolvimento e a profunda diferenciao econmica acabou por criar um imaginrio novo da capital paulistana frente ao restante do pas.

    Rio So Francisco, Marcel Gautherot.

    Luiz Gonzaga, So Francisco de Canind.

    16. Ibid. p.5461.

    Rotas do Nordeste So Paulo.

  • Rio So Francisco BR-116Estrada de Ferro Central do Brasil

  • 30

    17. Ibid. p.6881.

    Vapor, Marcel Gautherot.

    Entretanto, com um planejamento deficiente e uma articulao falha da nova e complexa dinmica urbana que emergia graas ao explosivo crescimento desde o incio do sculo XX, um alto preo nos foi colocado. Dficit habitacional, o nmero crescente de favelas, problemas de mobilidade e transporte, aumento dos ndices de criminalidade e misria. Uma condio social, poltica e econmica custosa aos recm chegados, muitas vezes no muito diferente daquilo que encontravam no Nordeste. No limite, como explicita o autor17, aos olhos de muitos setores da sociedade paulistana, passou-se a considerar os retirantes nordestinos culpados e eventuais bodes expiatrios pelos problemas da nova conjuntura urbana da metrpole. Ainda mais reforado pelas condies em que os retirantes chegavam aps dias da severa jornada, o conflito entre campo e cidade cresceu na medida da considerao urbana como uma forma superior de existncia sobre os matutos, caipiras e jecas, sendo mais tarde o adjetivo baiano acrescentado aos dizeres pejorativos.

    Assim, um longo caminho percorreu-se ato entendimento do Nordeste e sua riqueza cultural, cujo vigor tem-se como fundador da brasilidade. Contudo, a regio guarda em si uma estrutura que, historicamente construda, pouco favorece sua populao, obrigando-os a se retirar. Assim, em outros locais esse patrimnio humano buscou abrigo, e custosamente o encontrou. Posto isto, fundamental refazer seus passos, buscando a origem e sentido de ns mesmos, paulistas e brasileiros, que nos fizemos a partir da soma de origens diversas, e ao invs de ninguns, temos nesta amlgama a fora mpar de nossa cultura.

  • O HOMEM

  • 33

    A memria, na qual cresce a histria, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memria coletiva sirva para a libertao e no para a servido dos homens.1

    Jacques Le Goff nos lembra que os gregos antigos fizeram da memria a deusa Mnemosine, me de nove musas que inspiravam as chamadas artes liberais, entre elas a histria Clio e a eloquncia Calope. Sob esta tica, vemos que a histria e a expresso oral so filhas da memria. Intimamente ligada a contos populares antigos, a histria surgiu contada at constituir-se na escrita do depoimento realizado. Contudo, a oralidade e sua fluidez intrnseca no se pe contrria a histria escrita, mas sim busca registrar e perpetuar impresses, vivncias e lembranas dos indivduos que se dispem a compartilhar sua memria individual com a coletividade, permitindo o acesso a um conhecimento vivido mais rico e dinmico que, de outra forma, no conheceramos.

    Entende-se memria como a presena do passado no presente, como uma construo a partir de fragmentos representativos deste passado. Estes retalhos guardam em si a parcialidade do que apresentam, mas a universalidade do como apresentam. Tomando como exemplo a tradio oral, a expresso de um tambm a de muitos, possibilitando recuperar a evidncia de fatos coletivos. Como afirma Paul Thompson, apesar da subjetividade a que esta fonte est sujeita, a evidncia oral pode conseguir algo mais penetrante e mais fundamental para a histria [...] transformando os objetos de estudo em sujeitos.2

    Assim, a expresso a oral vem aqui, na segunda aproximao, no apenas ao amparo da histria, mas tambm recupera uma nova dimenso, mais vvida, refazendo a memria do processo migratrio nordestino por uma perspectiva direta de seus agentes, os retirantes.

    ORALIDADE

    1. LE GOFF, Jacques. Histria e memria.

    7 edio. Campinas: UNICAMP, 2013, p.471.

    2. THOMPSON, Paul. A voz do passado. So Paulo: Paz e Terra, 1992, p.137.

    Bahia, Marcel Gautherot.

  • 34

    REL ATO

    Valderina no sabe ao certo sua idade, mas pelas contas acredita ter em torno de 80 anos. me de trs filhos, av de seis netos e bisav de outros sete. Nasceu no interior da Bahia e, ainda menina, embarcou em uma jornada que levaria anos e diversas paradas at encontrar seu destino final, So Paulo. Busquei aqui preservar a textura de suas palavras, bem como reorganizei alguns trechos da conversa que, pela espontaneidade da oralidade, desviou-se em alguns momentos.

    Mas v, em qual lugar do Nordeste vocs viviam?

    Ento, a gente morava numa cidadezinha da Bahia. Chamava Limoeiro, perto de Remanso3. Mas eu nem lembro de l. No tem mais famlia nem ningum. Os que ficaram l ou saram ou j faleceram todos.

    Como foi sua infncia l?

    Minha mocidade? O jeito da gente era p no cho. A gente corria, pulava janela, pulava porteira, brincava naquele areio, aquela areia branca que afundava os p, igual de praia, mas era a beira do rio, do Vio Chico. A gente brincava bastante, jogava gua, fazia de tudo. Eu sempre fui danada! A gente no tinha dificuldade de nada. Fomo criado em uma infncia que tudo o que voc queria voc tinha. Tudo. Ia l na loja do papai e pegava. Na loja vendia peixe, mantimento, roupa, sapato. A gente pegava tudo l. No precisava comprar nada. O papai era um dos homem mais rico do pedao. Era como se fosse um coronel, mandava e desmandava na cidade. A famlia dele j vinha rica sabe, tinha terra, tinha loja, trazia de barco as coisa de Salvador pra vender em Limoeiro. Como infncia no faltava nada...

    3. A cidade no existe mais, pois estava

    dentro do permetro de alagamento da Usina de

    Sobradinho.

    Rio So Francisco, Marcel Gautherot.

  • 36

    A quando eu fiquei com doze ano, eu conheci seu av. Ele morava perto de mim, numa viela que subia assim perto de casa. E l a gente se viu e se gostou. Voc no ouve dizer de amor primeira vista? Com ns foi. Pra onde eu ia tinha que passar l antes pra v ele. A famlia dele vivia de peixe, era tudo pescador. Era famlia bem simples sabe, mas muito trabalhadora. A comeamo a ficar junto. E depois eu engravidei... O tempo foi passando e eu fui engordando. Minhas roupa no servia, mas o papai no sabia. E os boato correndo. Quando chegou no ouvido do meu pai... Pra qu?! Correu atrs de mim com um faco na mo e me colocou pra fora de casa! Me jogou na rua s com as roupa do corpo. A meu padrinho me acolheu, fiquei na casa dele, e minha v passava l pra cuidar de mim. Meus irmo tentaram ajudar eu numa poca, mas papai soube e brigou com todo mundo. Ele no queria saber. Tem que casar!. Ou casa, ou aqui no entra!. A ele arrumou o casamento por um parente dele que trabalhava no cartrio. E quando eu casei minha gente, eu casei com doze ano! Pra casar, tinha que aumentar um ano, ento menti que tinha treze ano. Seu av tinha dezoito. Mas o cartrio era em outra cidade, chamava Tabuleiro Alto. A fomo, eu e seu av de canoa. Ele remando uma distncia que s Deus... 1 dia de remo pra ir e mais outro pra voltar! Fomo remando, e l no fazia medo no! Eu tinha tudo quando tava com o papai. Mas a casei seu av... e sofri! Voltamo e comemo uma peixada na casa da minha sogra, e l eu fiquei. Morei na casa dela e l passamo necessidade sabe. Era muita gente. Tinha cinco filho, com ela e o marido ainda. Na casa era s dois quarto. A gente em sete e na vspera de outro beb ainda. Ns ficava que nem farinha no saco. A foi indo, foi indo. A gente morando com meus sogros, at arranjar uma casinha. A mudamo pra essa casa, mas chegamo l e no tinha nada. Tava toda vazia! Vou pra So Paulo! Vou pra So Paulo!. Seu av queria vir pra levantar um dinheiro pra gente n. E foi...

    E vocs ficaram l?

    Quando ele veio, ficamo s eu mais as criana, mas ns no tinha nada, passando s com farinha. No era nem po, s farinha e gua. Ns tinha que plantar. Da tinha umas terra, uma roa emprestada mais afastada da cidade. A eu levava um dos menino pela mo, outro nos brao, grvida do terceiro e a enxada nas costa, pra andar trs hora at chegar na roa que eu plantava. Plantava feijo e mandioca. E no dia seguinte tornava a vir, pra poder ter o que comer e dar pra eles. Era o que dava pra poder sobreviver. No fim eu plantei, plantei, mas vinha a enchente... O que a terra dava, a gua levava! No tinha tempo de colher. Perdi muitas vez a roa toda.

    Mas eu no me arrependo no. Ningum manda no corao. Eu tinha uma vida, vamos dizer, rica, e depois passamo tempos difcil sabe. S que quando voc gosta da pessoa voc no v nada disso. E foi o que aconteceu comigo.

    Bahia, Marcel Gautherot.

  • 38

    Quantos filhos a senhora teve?

    Era um filho por ano. No total foram trs vivo e sete morto. Eu tive duas menina e oito homem, mas desses dez s sobreviveu trs n. Desculpe t falando isso.

    Mas eles morreram do qu?

    A gente mora no interior e at chegar e procurar recurso... Quando chegasse l no mdico j tinha empacotado, j tinha morrido. E morreram assim, novinho. Dois ms, quatro ms, um ano, e a foi indo. s vez nem nascia. Teve um que quando tava grvida, fui lavar as roupa no rio, com aquela cabaa cheia de gua na cabea. Mas ela caiu, bateu na minha barriga assim, e o beb morreu. E ainda fiquei mais de ms com ele morto na barriga, porque ns no tinha as condio de procurar um mdico n. Mas era normal. A gente meio que acostuma.

    Conta como foi quando vocs saram de l.

    Vou falar com meu portugus porque, voc sabe, eu tinha meus filho e no queria deixar, ento no consegui estudar. Como eu falei, quem veio primeiro foi seu av e eu fiquei l na minha terra mais as criana. A quando foi dando o tempo e o dinheiro ns viemo embora. De Limoeiro a gente pegava um barco e ia at Remanso. L navegava um barco, no sei se voc j ouviu, mas chamava vapor. Era muito cheio, mas a gente colocava as rede pra dormir de noite. A ia subindo o Vio Chico at Pirapora. Ns chegamo l e ficamo quase um ms esperando seu v vir buscar. A me dele tinha uma famlia conhecida, e ficamo l hospedado todos. Quando foi pra vir pra So Paulo, os marido iam l, dava o nome e faziam a ficha. Depois a gente pegava um trem, chamava Maria Fumaa. De Remanso pra Pirapora tomava mais de 10 dia. E de Pirapora pra c no longe, mas as condio... Nesse trem, Nossa Senhora do bom Jesus! Nunca mais! Ainda bem que agora acabou n?! No trem era um banco, com todo mundo sentado. E quando chegava no lugar certo ningum enxergava se voc era preto ou branco, de tanta fumaa! Mas saa todo mundo alimentado, os grande comendo e os pequeno tambm. Mas era um po que se voc bate na cabea, j viu. E aquele virado de farinha, que jogava na boca com a mo, porque colher no tinha, e o vento levava metade! Foi muito sofrido sabe...

    E como foi chegar em So Paulo?

    Difcil demais... Aqui eles punha a gente pra dormir numa casarona grande4. Os homem tinha que tomar banho com os outro homem, e era tudo ali, no podia tomar um de cada vez. E as mulher tambm. Ficava aquela multido. E quando abria aquele chuveiro j era pra tudo. Era horrvel. Horrvel. E eu pensava: so s meus ano. Isso tudo faz parte da gente n. Ento, reclamar pra qu?

    4. A Hospedaria do Brs, atual Museu da

    Imigrao.

    Brasil 19811983, Sebastio Salgado.

  • 40

    O que vocs fizeram depois?

    Ento, l em Limoeiro tava correndo a fama que em Epitcio5 tava dando muito dinheiro. Tava dando muito peixe por causa do rio n. Ento depois de uns dia nessa casarona pegamo o trem e fomo pra l. E foi todo mundo, minhas irm e toda famlia que chagaram depois. Uns foram pescar, e eu comecei a plantar na roa. Por isso que eu no gosto de mato! No nasci pra isso no... E seu av era piloto de barco. Passava pela cidade, subindo e descendo. Dirigia aqueles barco com tora, com madeira. A o tempo foi passando e todo mundo foi procurar um lugar que entrasse mais dinheiro n, e foi aqui. Seu av queria muito que seu tio viesse, que era pra ele estudar pra ser militar n. A ele veio antes de todo mundo e morou um ano aqui. Depois vieram as irm, e foram trabalhar como domstica. Mas as patroa no queria que sasse pra rua, muito menos pra estudar. Elas estudavam escondidas! A seu tio mandava umas carta falando que tava com saudades... Voc no sabe como seu filho t n, no sabe como to tratando seu filho, e aquilo mexe n. Ento resolvemo: seu av foi l, pediu as conta donde ele trabalhava. Nem trouxemo as coisa, deixamo tudo l, e viemo pra c. Inda bem que ele teve sorte. Mal chegamo aqui e ele j arranjo emprego. Foi naquela indstria.

    Como era a vida aqui?

    Primeiro ns ficamo no vio meu irmo, e depois arrumamo uma casa, na rua do mercado. Tinha sala, quarto, cozinha e banheiro. A fia dormia no quarto comigo e seu av. E os menino mais os dois primo dormia na sala, naquelas caminha de dobr. E a noite toda fazia um nhc nhc danado. Depois quando viemo pra essa casa que eu moro, que ns compramo, eu escutava sempre: Ah seus favelado, vem de l pra arrumar seus cortio aqui!. Na casa no tinha um tanque bom pra lavar as roupa. No tinha ferro de passar, tinha que ser ferro a brasa. No tinha tv. E era um frio, um frio... Ns no tinha coberta, no tinha nada. O que eu tinha eu deixei em Epitcio. Ah vocs vo pra So Paulo e logo vocs compra tudo. Que compra nada... iluso! Mas com trabalho fomo comprando devagarinho. Trabalhar no defeito no...

    Mas pra terminar hoje eu me sinto feliz. Eu t muito feliz. No t mais porque no aprendi a andar s. Queria andar por a mas tenho medo. Tenho muito medo dessa cidade doida. Mas a vida. Porque os trs fizeram faculdade, e se defendem. E vocs to a, conquistando. E isso o que eu agradeo a Deus.

    5. Presidente Epitcio uma cidade na divisa do

    estado, s margens do Rio Paran.

    Chegada do trem baiano Estao do

    Brs. Acervo Museu da Imigrao.

  • A LITER ATUR A

  • 43

    De que modo nossa percepo da paisagem se converte em percepo esttica, de que modo se adquire conscincia da qualidade figurativa da paisagem?1

    Com essa questo em mente parte-se terceira aproximao em busca da paisagem do Nordeste. oportuna a colocao de Vittorio Gregotti do termo paisagem antropogeogrfica, que alm de revelar a importncia entre homem e meio, nos leva ao entendimento da paisagem como objeto mutvel e esteticamente opervel. Operao esta que se d atravs de sua leitura e representao, e que aqui elenca a literatura como fora motriz ao estudo. Assim posto, faz-se necessrio o entendimento de como criada, uma vez que a literatura que a aborde como objeto, detm um duplo vis: ao passo que parte de uma realidade, contribui para sua conformao. Sobre isto, Gregotti ainda sinaliza que o ambiente circundante o produto dos esforos da imaginao e da memria coletiva que se explicam e realizam por meio das obras que o sujeito constri quando se defronta com o mundo e portanto tambm com a sociedade.2

    Milton Santos nos esclarece sua dimenso ttil, de modo que tudo aquilo que ns vemos, o que nossa viso alcana, a paisagem. Pode ser definida como o domnio do visvel, aquilo que a vista abarca. No formada apenas de volumes, mas tambm de cores, movimentos, odores, sons, etc3. Nesse sentido, no somente a vemos, mas tambm a assimilamos a partir dos diversos fatores ela intrnsecos, de modo que um espao seja formado por inmeras paisagens.

    PAISAGEM

    1. GREGOTTI, Vittorio. Territrio da arquitetura.

    3 edio. So Paulo: Editora Perspectiva,

    2010, p.65.

    2. Ibid., loc. cit.

    3. SANTOS, Milton. Metamorfoses do espao

    habitado: fundamentos tericos e metodolgicos

    da Geografia. So Paulo: Hucitec, 1988, p.2126.

    A joo Guimares Rosa, Maureeen Bisilliat.

  • 44

    Entre estes fatores, o humano tambm lhe fundamental. A figura do homem est contida na natureza pois, antes de tornar-se o ser social que , relacionando-se com outros e formando um contexto de sociedade, ele animal, biolgico, parte integrante do natural. Assim, natural e no-natural, se fundem, interagindo entre si, de modo que a natureza no se faz apenas por sua dimenso fsica, mas tambm pela interao com o ser humano. Ainda em Santos, o homem muda e transforma seu espao a todo momento, e a cada modificao influencia a si mesmo a partir do espao resultante, conformando o que o autor denomina como sistemas de natureza sucessivos, onde esta continente e contedo do homem, incluindo os objetos, as aes, as crenas, os desejos, a realidade esmagadora e as perspectivas.4

    A paisagem como produto do encontro entre ambiente e homem, recupera tambm sua importncia na conformao de sua cultura e identidade, uma vez que no ambiente que as relaes entre seus pares se do,t nascendo a noo do coletivo. Se reconhece na paisagem, no apenas sua lgica ambiental, mas tambm humana e social, tornando-se a projeo cultural de uma sociedade em um espao determinado. Paisagem esta repleta de lugares que encarnam as experincias e aspiraes de uma populao, assim como centros de significados e smbolos que expressem ideias e sentimentos traduzidos, por exemplo, na noo de pertencimento a um coletivo determinado, ao qual chama-se identidade. E desta densa e complexa trama de aspectos que conformam a paisagem, evidente que estes se reorganizem, se substituam, de modo que adquiram maior ou menor valor conforme o olhar de quem os observa. Santos evidencia como a paisagem uma construo histrica, sujeita s foras condicionantes dos diferentes momentos pelos quais passou, bem como seu registro.

    Tanto a paisagem quanto o espao resultam de movimentos superficiais e de fundo da sociedade, uma realidade de funcionamento unitrio, um mosaico de relaes, de formas e sentidos. [...] A paisagem no se cria de uma s vez, mas por acrscimos, substituies. Uma paisagem uma escrita sobre a outra, um conjunto de objetos que tm idades diferentes, uma herana de muitos diferentes momentos. Precede a histria que ser escrita sobre ela ou se modifica para acolher uma nova atualidade. [...] A paisagem sempre o passado, ainda que recente.5

    Isso remete a uma ideia de atualizao da paisagem por parte daqueles que a observam e a registram, de modo que o registro tambm afeta o que registrado, como um novo carter que adquirido somando-se ao momento passado. Esta tica nos autoriza a pensar que um estudo sobre a paisagem, sem reduzir sua essncia e rigor, pode, e deve, buscar insumos em outras fontes que tambm a tenham como objeto, de modo que observ-los observar seus objetos. A interdisciplinaridade enriquece o suporte, ampliando o campo de percepo de uma realidade complexa, densa de aspectos

    4. SANTOS, Milton. Tcnica, espao, tempo:

    globalizao e meio tcnico cientfico

    informacional. So Paulo: Hucitec, 1997, p.15.

    5. SANTOS, Milton. Metamorfoses do espao

    habitado: fundamentos tericos e metodolgicos

    da Geografia. So Paulo: Hucitec, 1988, p.2126.

  • 45

    to numerosos quanto diversos. Assim, o aporte na literatura surge aqui da possibilidade de se identificar e construir uma paisagem, esta enquanto representao literria projetada para e na realidade. Entre concreto e imaginrio, Antonio Candido nos lembra que precisamente a fico que possibilita viver e contemplar tais possibilidades, graas ao modo irreal de suas camadas mais profundas e graas qualidade de referir-se a realidades sem realmente se referir a seres reais, cuja sensibilidade acaba por construir seu carter universal.6

    Ao ler Ilada, de Homero, como obra histrica, descobre-se que est repleta de fico, bem como lendo-a como fico descobre-se sua riqueza histrica. Histria ou estria. Real ou imaginrio. Verdade ou criao. Todos esses temas no limitam as caractersticas da literatura. A arte influencia e, ao mesmo tempo, influenciada pela sociedade, transformando as paisagens e colaborando na formao do espao potico. Sobre este duplo vis, Flvio Kothe, baseado em Walter Benjamin, reconhece a literatura como uma espcie de historiografia inconsciente de uma poca, e sintetiza como ela abre-se a um horizonte de infinita riqueza e possibilidades. Eis Kothe:

    As obras literrias, mesmo no pretendendo ser e no sendo um mero registro histrico, acabam sendo tambm uma historiografia inoficial. Na mesma medida em que no querem ser documento, seu carter autnomo lhes permite uma liberdade de registro e transmisso que escapa historiografia oficial, comprometida com as omisses, cortes e deformaes que as relaes de produo lhes impem.7

    Aberto esse caminho, parte-se releitura de escritores fundamentais para a compreenso da problmtica, cuja literatura alm de nos apresentar essa realidade, explodem em sua fora potica a partir de pormenores que escapam a outras escritas. A partir do j enunciado Regionalismo, decidiu-se por trs obras: Vidas Secas, no qual Graciliano Ramos revela como o serto exaure-se tambm em seus personagens; Morte e Vida Severina, no qual Joo Cabral de Melo Neto apresenta sujeitos que penosamente seguem suas vidas; e Grande Serto: Veredas, no qual Guimares Rosa nos guia por riqussimas paisagens externas e internas. Alia-se estas leituras, o cruzamento de outros olhares ao Nordeste, retratados em msica, filme e fotografia, que potencializam o descobrimento dessa realidade. Assim, almeja-se a reconstruo dessa paisagem do Nordeste atravs das diferentes linguagens que conversam entre si, e em sua fora a arquitetura encontra amparo.

    Como toda paisagem, a nordestina uma criao narrativa, uma criao da e na linguagem. espao que se conta mais do que se v, espao que se mostra mais do que se cr, espao que se sente mais do que se pensa. um conjunto de signos que se articulam em torno de uma imagem e sua fora.8

    6. CANDIDO, Antonio; GOMES, Paulo Emlio

    Salles; PRADO, Dcio de Almeida; ROSENFELD,

    Anatol. A Personagem de Fico. 11 edio. So

    Paulo: Perspectiva, 2005, p.46.

    7. KOTHE, Flvio. Para ler Benjamin. Rio de Janeiro:

    Francisco Alves, 1976, p.78.

    8. ALBUQUERQUE JNIOR, Durval Muniz.

    Nordeste: uma paisagem que di nos olhos e

    nas mentes. 2009. Ver bibliografia.

  • 46

    SECURA

    Publicado em 1938, o romance Vidas Secas pode ser visto como o maior expoente da chamada Segunda Fase Modernista, a Regionalista, graas ao apuro tcnico do autor Graciliano Ramos, cuja estrutura e linguagem da obra contribuem para uma percepo mais profunda do que o serto e o Nordeste. Associado ao livro, traz-se tambm o filme homnimo de Nelson Pereira do Santos, de 1963, que, a partir de uma traduo intersemitica, transmutou o escrito em imagem acentuando ainda mais a atmosfera j fortemente colocada em texto.

    O livro denuncia as mazelas sociais do serto, acompanhando uma famlia errante ao longo do serto em busca de condies mais dignas para suas vidas. Fabiano que, entre homem e bicho, no consegue se expressar e impor frente ao mundo. Sinh Vitria, mulata esperta que sabia fazer contas com gros. Menino mais velho, curioso por significados de palavras no ditas e pela capacidade de diz-las. Menino mais novo, com o desejo de saber tratar os animais como o pai. Baleia, cadela mais humana das personagens. E o papagaio, que s sabia latir pois era o nico som que escutava.

    De imediato, o ttulo j demonstra como a secura do serto invade a vida desses sujeitos que, desumanizados, expressam-se de forma to estril quanto a natureza da regio. Como na cena do filme de Nelson Pereira na qual o menino mais velho questiona sobre o inferno e ento percebe que est nele, vendo o mundo ao seu redor e dizendo o que observa, quase como a declamao de um poema, com uma linguagem crua, fragmentada e enxuta, mas riqussima na expresso do lugar de condenado, lugar ruim, e em resposta Sinh Vitria alerta: o serto vai pegar fogo.

  • 47

    A misria causada pela seca soma-se misria imposta pela condio social, subalterna queles que detm o poder poltico e econmico, transformando a paisagem em um ambiente inspito e hostil tambm socialmente. Das relaes de poder, entre aqueles que no podem responder nem fazer contas e os que ditam as regras, possvel compreender a realidade do sertanejo, e tambm do brasileiro.

    Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avanou pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapu de couro. Governo governo.9

    Assim, por entre as matas acinzentadas da caatinga, as vidas de Fabiano e sua famlia seguem fugindo das condies severas do clima, do arbtrio dos donos da terra e do poder, de modo que suas realidades se organizem em funo da paisagem e com ela se confundem. Graciliano nos passa esta atmosfera atravs de sua linguagem econmica, sinttica, concisa, cuja custosa comunicao de seus personagens transmite a aridez do ambiente e seus efeitos sobre os que ele esto sujeitos.

    As luzes ofuscantes das cenas do filme, alm de sugerir a elevada temperatura e enfatizar a implacvel paisagem que persegue o sertanejo, define a forma e localiza as coisas no espao. Pelo jogo sbio, correto e magnfico dos volumes sob a luz de Le Corbusier, evidencia-se a arquitetura do lugar e tambm o tempo, uma vez que a temporalidade s pode ser percebida nos efeitos que a luz produz na superfcie das coisas. medida que o tempo flui, a variao da luz e da sombra faz-nos perceber a sucesso dos momentos: os diversos perodos do dia e as estaes do ano.

    A fotografia tambm notvel, cujos planos longos acompanham os passos de Fabiano e de sua famlia, numa caminhada lenta e cansativa, sugerindo o longo caminho que ainda se tem a percorrer, enfatizando o drama desses personagens, do ambiente e transportando o telespectador para dentro do serto.

    A trilha sonora aqui a msica do ambiente, os sons da natureza que os rodeiam, compartilhando da mesma secura de palavras que faltam boca das personagens, sublinhando o espao do serto: o melanclico, montono e incmodo rudo do carro de bois que na primeira cena j sinaliza a aflio do ambiente; o chape chape das sandlias revelando o solo seco da caatinga e a distncia percorrida; o barulho da chuva nos telhados da nova casa encontrada contando a esperana da passagem da estao seca para a chuvosa.

    9. RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 126 edio.

    Rio de Janeiro: Record, 2015, p.107.

  • -Inferno, espeto quente, inferno, lugar ruim.Inferno, lugar ruim, lugar ruim, condenado. Onde que tem espeto quente?Inferno, inferno, inferno...

    -Mau sinal, o serto vai pegar fogo. Vai pegar fogo, no adianta esperar!

  • 50

    Essa poca chuvosa, contada no captulo Inverno, ilustra o nico momento de alvio, que alimenta a expectativa de uma vida melhor, mais digna, uma vez que nessa poca em que a esperana sertaneja floresce, seja atravs de uma nuvem no cu que se transforma em motivo de inquietao. Porm, esse sonho de uma existncia menos rida e miservel esboa-se no horizonte s at as chuvas cessarem, quando a seca retorna, implacvel.

    Fabiano espantou-se: uma sombra passava por cima do monte. Tocou o brao da mulher, apontou o cu, ficaram os dois algum tempo aguentando a claridade do sol. Enxugaram as lgrimas, foram agachar-se perto dos filhos, suspirando, conservaram-se encolhidos, temendo que a nuvem se tivesse desfeito, vencida pelo azul terrvel, aquele azul que deslumbrava e endoidecia a gente.10

    Destaca-se tambm a importncia do juazeiro, rvore caracterstica da caatinga e um dos elementos mais marcantes dessa paisagem, pois no perde a folhagem durante a seca e aparece ao longo de todo o romance com uma dupla funo: assinala um ponto de referncia no espao e indica uma possibilidade de pausa na jornada graas sua sombra.

    Tanto o texto quanto o filme se constroem semelhana de uma espiral, num percurso cclico que inicia-se com uma mudana e termina com uma fuga. E do final que se reencontra com o princpio e fecha a ao em um processo contnuo, vem a impossibilidade de se pensar a construo de um futuro o qual ser igual ao presente e ao passado, cuja inrcia extingue a liberdade sobre a deciso da prpria existncia. Dessa paisagem miservel e inspita, vem o ser humano reificado que se move sem noo de tempo e sem perspectiva de vida. Ausncia de tempo esta que se traduz no carter desmontvel do romance, cuja linearidade pode ser rompida e fragmentada, sem alterar o entendimento do todo, uma vez que esta realidade contnua. Assim, vem a condio de retirante desses sujeitos, que saem, fogem, se retiram da precariedade qual esto fadados. Ou, pelo menos, tentam, pois o serto continuaria a mandar gente para l. O serto mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinh Vitria e os dois meninos.

    Fala do filme Vidas Secas, Nelson Pereira dos Santos.

    Brasil 19811983, Sebastio Salgado.

    10. RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 126 edio.

    Rio de Janeiro: Record, 2015, p.13.

    Cenas do filme Vidas Secas.

  • 52

    O auto Morte e Vida Severina, de 1955, engrossa o estudo a partir da fora da construo pela paisagem do homem, no qual Joo Cabral de Melo Neto nos coloca uma obra que apresenta um espao real, e que por meio da criao imaginria, representa toda uma estrutura e conjuntura social. Esta paisagem que cerca o poema uma criao literria que no s descreve o Nordeste mas, tambm, articula em seus versos um processo histrico com imagens que se desenham ao leitor. O rio se verbaliza para mostrar sua real condio, tanto ambiental quanto humana, e seu curso revela diferentes paisagens em suas riquezas e contradies.

    Atravs do percurso de Severino ao longo do Rio Capibaribe, um mosaico de paisagens se delineia: do serto de Pernambuco, pelo agreste e zona da mata, at o litoral. Paisagens, aqui, no apenas naturais, mas tambm humanas, polticas e sociais. Uma srie de conflitos so mostrados a partir das claras dicotomias entre morte e vida, luta e fuga, identidade e identificao, incluso e excluso, postura essa que se alinha com a de outros autores ditos regionalistas, que veem o estado degradante do homem no como resultado de seu destino individual, mas sim como consequncia da explorao qual no conseguem escapar.

    Partindo da Serra da Costela, lugar que metaforiza e personifica a realidade do homem, Severino encarna todos os retirantes, iguais em tudo na vida, de modo que viver a vida severina o que os une, e que no rido serto trabalham duramente para abrandar estas pedras suando-se muito em cima e tentar despertar terra sempre mais extinta. Sem apoio suficiente do estado, submetidos ao domnio, violncia e explorao dos coronis do serto, sem meios de produzir para sua subsistncia, esses severinos veem-se obrigados a sair de suas terras em busca de vida, esta de privaes e misria. com a peregrinao de Severino, que se percebe e desenha a realidade de um povo, que luta por mais um dia, mesmo que seja severino.

    SEVERIDADE

  • 53

    O Capibaribe e Severino: paisagem e homem que se confundem em um s. Tanto homem naturalizado quanto o rio humanizado lutam por suas sobrevivncias, enfrentando as adversidades do serto desde seus nascimentos na Serra da Costela at o litoral. Assim, partem do interior pernambucano em busca de melhores dias: o encontro com o Recife e o mar de vida. Elemento central, a gua que permeia a histria no apenas em sua presena mas, sobretudo, em sua ausncia d vida ao olhar de Severino que, como metfora e imagem, percebe as diferentes paisagens como as condies adversas desses homens. Em torno da gua e sua liquidez se passam essas vidas, valendo aqui recuperar Bauman: A vida lquida uma vida precria, vivida em condies de incerteza constante.11

    Essa paisagem como projeo social e cultural nos convida ainda a pensar por que em paragens to ricas o rio no corta em poos como ele faz na Caatinga, pois o rio vive a fugir dos remansos j que desviado pelos latifundirios para a irrigao de suas plantaes. A terra que lhes sobra pouca, de modo que a que cobre suas covas ser enfim sua roa, podendo s morto trabalhar para si e no mais a meias, como antes em terra alheia, como canta Chico Buarque em Funeral de um lavrador. E o que que acontecer contra a espingarda?12. Nada, pois esses homens no mais se indignam com as injustias, situao contra a qual os severinos no tem como lutar.

    Em uma terra onde sempre h uma bala voando, desocupada, a violncia norma que domina a realidade do serto. Violncia esta tanto entre homens ou da natureza, faz a morte adquirir um novo valor. Severino conversa com uma mulher que lhe explica como l a morte tanta ela vive de a morte ajudar. Assim, nascem profisses que se relacionam com a misria, a doena e a morte como fonte de renda, nica alternativa em um lugar onde s possvel trabalhar nessas profisses que fazem da morte ofcio ou bazar. Como as fotografias de Sebastio Salgado revelam: a aproximao entre a vida e a morte, pois no mesmo lugar em que vende-se frutas, aluga-se sapatos e caixes para velrios, uma vez que era mais barato do que compr-los aos numerosos mortos; e o impacto da imagem da criana sendo enterrada com os olhos abertos, pois como morreu muito jovem, antes de ser batizada, os olhos eram mantidos assim para que pudesse encontrar o caminho at o cu, caso contrrio vagaria pela eternidade.

    O coveiro, ento, o alerta: vindo por essas caatingas, vargens, ai est o seu erro: vem seguindo seu prprio enterro. Severino percebe, ento, que no tem como fugir de sua vida severina e que seu destino forte demais para que possa lutar contra. Depois do rosrio de cidades e vilas que caminhou no seria diferente a vida de cada dia, embora tenha tido a esperana de que ao menos aumentaria na quartilha, a gua pouca, dentro da cuia, a farinha, o algodozinho da camisa, ou seu aluguel com a vida. Assim, decide apressar a morte jogando-se da ponte de um dos cais do Capibaribe.

    11. BAUMAN, Zygmunt. Vida Lquida. Rio de

    Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p.8.

    12. MELO NETO, Joo Cabral de. Morte e

    vida Severina, e outros poemas. Rio de Janeiro:

    Objetiva, 2007, p.96.

  • Esta cova em que ests com palmos medida a conta menor que tiraste em vida

    de bom tamanho nem largo nem fundo a parte que te cabe deste latifndio

    No cova grande, cova medida a terra que querias ver dividida

    uma cova grande pra teu pouco defuntoMas estars mais ancho que estavas no mundo

    uma cova grande pra teu defunto parcoPorm mais que no mundo te sentirs largo

    uma cova grande pra tua carne poucaMas a terra dada, no se abre a boca

  • 56

    Joo Cabral nos mostra no apenas as privaes de Severino, mas tambm uma esperana de vida. Enquanto pensava em saltar para a morte, uma criana nasce e salta para dentro da vida. Carangueijos, leite de outra me, papel de jornal, gua da bica, canrio-da-terra, bolacha dgua, boneco de barro, pitu, abacaxi, rolete de cana, tamarindos, ostras, jaca, mangabas, cajus, peixe, carne de boi, mangas, goiamuns. Pontua-se aqui a origem e a natureza dos presentes dados ao recm nascido, nos revelando tambm a condio social, econmica e cultural daqueles homens.

    Como o subttulo Auto de natal pernambucano, o sentido religioso, prprio de um auto, encontra-se na gnese da vida que se renova a cada dia, a cada nascimento. O ato final da obra o grito de esperana que movem todos esses homens: se cada severino tem como sina lutar constantemente contra seu destino de pobreza, aceita-se esta vida severina pelo simples motivo de ser vida.

    E no h melhor respostaque o espetculo da vida:v-la desfiar seu fio,que tambm se chama vida,ver a fbrica que ela mesma,teimosamente, se fabrica,v-la brotar como h poucoem nova vida explodida;mesmo quando assim pequenaa exploso, como a ocorrida;mesmo quando uma explosocomo a de h pouco, franzina;mesmo quando a explosode uma vida severina.13

    Funeral de um lavrador, Chico Buarque.

    Brasil 19811983, Sebastio Salgado.

    13. MELO NETO, Joo Cabral de. Morte e

    vida Severina, e outros poemas. Rio de Janeiro:

    Objetiva, 2007, p.113.

  • 57

    Grande Serto: Veredas chegou ao estudo, primeiro, por compartilhar do espao do serto, e faz-lo amplo esbarrando nas obras anteriores, e sua desafiante leitura traz uma nova perspectiva ao trabalho. A erudio da obra de Guimares Rosa, esta publicada em 1956, alm de trazer a cultura popular in natura, inverte os modos tradicionais de representar o serto. Na literatura regionalista anterior, em geral os narradores so tipos ilustrados que ocupam o lugar de fala do sertanejo, falando por ele, sobre ele e contra ele, para constitu-lo como homem primitivo e tipo alienado pela lgica do capital. J em Grande Serto, o narrador um sertanejo que fala diretamente sobre a experincia sertaneja: Riobaldo passa de objeto a sujeito absoluto da matria narrada. Assim, das pginas de Guimares Rosa, descortina-se um serto geopoltico e ficcional, concomitantemente regional e transregional, nacional e estrangeiro, divino e profano.

    Se no mapa brasileiro a definio da regio semi-rida do Nordeste corresponde a uma rea que se estende do norte de Minas Gerais ao Piau, no dicionrio14 essa definio dilui-se, sendo a regio agreste, terreno coberto de mato, afastado do litoral, toda regio pouco povoada do interior e zona mais seca que a caatinga, no fornecendo uma localizao precisa. Embora o Grande Serto: Veredas faa diversas aluses a lugares geogrficos existentes reais da regio em torno do norte de Minas Gerais, como o Rio So Francisco, cidades como Januria, e da fronteira com Gois e Bahia o serto de Rosa est muito alm de um espao objetivo, pois ele se insere no dilogo em que Riobaldo tenta, ao mesmo tempo, compreender e transmitir o que o serto para aquele que o l. Diz respeito, portanto, a uma experincia do narrador, a uma memria subjetiva.

    TRAVESSIA

    14. Michaelis. Moderno Dicionrio da Lngua

    Portuguesa.

  • 58

    A riqueza de significados que o serto nos coloca e seu carter interior, encontra uma explicao possvel na medida que enquanto a face litornea do Brasil abre-se s trocas, intercmbios e facilidades de mudanas, a face interna fecha-se em si mesmo, refugiando-se na conservao e explorao de suas particularidades, sentimento contrastante que perceptvel em pases de grande extenso.

    O interesse pelo espao j est revelado no prprio ttulo do livro. Espao geogrfico num primeiro momento o qual transcendido pela amplitude em busca de sua atmosfera, chegando a sugerir um outro espao, simblico por seus signos e sentimentos. O serto se faz grande pela transformao de aspectos e smbolos regionais em sentimentos e percepes de Riobaldo, da dimenso universal do indivduo sertanejo. Assim, inmeras variaes de sentido surgem ao longo da obra, atrelando-se mais ao modo de ser e pensar, do que localizao fsica, abolida com a interiorizao desse espao: Serto: dentro da gente. Ou, diante da dificuldade de determinar o lugar, vem seu carter imensurvel: O serto do tamanho do mundo. O espao assume uma extenso infinita que atinge, no limite, a absoluta ausncia de espao: O serto sem lugar. E culmina numa ausncia de palavras, tornando-se uma pura indicao: O serto: o senhor sabe.

    Esse mapa, constitudo de locais geogrficos e de passagens da vida, seria o registro no apenas de um caminho linear, mas do errar e perder-se pelo serto. Construindo-se em movimento com esse lugar impreciso, as paisagens de lugares reais sobrepe-se a outros sem registro, seguindo a mesma lgica da narrao e do processo de rememorao de Riobaldo: uma lgica fragmentada, desordenada, na qual distintas camadas do tempo e do espao se sobrepem. Lembrando Merleau-Ponty15, segundo o qual a construo de uma paisagem envolve uma pluralidade de sentidos, atravs do corpo como um todo, que, a partir do sensvel, chega a atingir o invisvel.

    Nessa tica, a percepo geogrfica desta paisagem no se reduz apenas a meno fragmentria dos espaos sertanejos, nem a uma descrio reduzida s generalizaes daqueles que o vivenciam. Guimares Rosa guia nosso olhar ao longo das trilhas que ele prprio traou neste serto, despertando nossos sentidos para a redescoberta desta realidade. A expresso chamativa Mire e veja, to comum durante a fala de Riobalbo, um convite para atravs do olhar estabelecermos relaes entre a diversas etapas de transformao interiores do ser humano, refletida na identificao homem-natureza.

    Desta forma, em todo o romance podemos observar que os nveis de referncia sobre o espao narrado se estendem, fundamentalmente, sobre dois planos: o geogrfico e o simblico. O plano geogrfico se apresenta com valores referenciais, informativos, sobre as localizaes, sendo a origem da criao das imagens mentais, levando-nos a situar os acontecimentos em determinada regio real,

    15. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepo. 4 Edio.

    So Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

  • 59

    16. ROSA, Guimares. Primeiras estrias. 49 edio. Rio de Janeiro:

    Nova Fronteira, 2001.

    ROSA, Guimares, op. cit., p.5180.

    Menino perto de forno para queima de carvo

    de lenha, Maureen Bisilliat.

    concreta. J o plano simblico apresentado como reorganizador desta realidade geogrfica, revalorizando o espao encontrado e vivenciado. Assim, na construo da histria, fundem-se o homem, a natureza e a lngua, residindo nesta fuso a fora lrica da obra.

    As travessias dos personagens, alm de serem concretas, enquanto jornada pelos caminhos inspitos do serto de Minas Gerais, transcendem este plano, passando a significar as transformaes da vida, dos sentimentos do indivduo e, por consequncia, das suas vises de mundo. A travessia de Riobaldo assemelha-se trajetria humana. Nela cabem as lutas, os sonhos, a busca e a fuga do outro, a imprevisibilidade, a vulnerabilidade e as frustraes de estar vivo e de morrer.

    Assim, a existncia humana do homem labirntica, sendo uma travessia incerta e eterna na qual o destino desconhecido. Um itinerrio errante.

    O serto conhecido, percebido, interpretado e representado por Guimares Rosa atravs de Riobaldo, nos leva a um outro ponto, Terceira Margem do Rio16, relembrando seu outro conto. Deste modo, sua paisagem sertaneja nos apresenta perspectivas para outras travessias, por entre paisagens exteriores e interiores, ao nos mostrar um serto que assume significados e ressignifica-se, evocando para o personagem, ora o sentido de lugar, ora o de espao exterior e interior. Assim como aos seus personagens, somos levados a questionar o sentido das coisas e muitas vezes pondo em xeque os prprios atos e viso de mundo, assim como todos os seres, imersos numa longa travessia, cujo sentido ltimo jamais alcanado. Esta travessia existencial a fora motriz que induz o homem ao e lhe revela a beleza presente nas coisas simples, ao mesmo tempo que o faz perceber o mal e abismo da prpria existncia. A experincia de travessia deste serto labirntico vivida pelo protagonista serve como uma viagem de formao e da busca de si mesmo.

    Ao encontrarmos os sentidos da travessia deste serto por meio da transformao simblica, alcanamos a multiplicidade deste espao vivenciado. Adquire significado no a partir de uma ideia esttica, mas sim a partir do percurso e processo de depurao de seus valores. A travessia de Riobaldo do serto ambiental e interior, a mesma pela qual este trabalho passa, em busca da essncia primria do ato de migrar dos retirantes nordestino. Como amparo ao projeto proposto, surge no apenas a origem, o Nordeste, nem o destino, So Paulo, mas sim a travessia destes homens. As origens so to distintas quanto ricas, e infrutfera seria a tentativa de, apenas, representar esse mosaico cultural, bem como os percursos e destinos finais diversos. Assim, entende-se a condio de retirantes como o elemento que os une, cujas jornadas por diversas paisagens externas e internas o que rememora este processo, seguindo-se, aliado a ideia da travessia, rumo ao projeto e a representao pela arquitetura desse processo.

  • Eu atravesso as coisas e no meio da travessia no vejo! s estava era entretido na ideia dos lugares de sada e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda num ponto mais embaixo, bem diverso do que em primeiro se pensou. [...] Digo: o real no est na sada nem na chegada: ele se dispe para a gente no meio da travessia.

  • O DESTINO

  • 63

    Em uma cidade historicamente construda por correntes migratrias internas e externas, por uma urbanizao e crescimento demogrfico explosivos, por um amlgama de costumes conviventes nos mesmos espaos, indagar a presena persistente das representaes de identidades estrangeiras uma forma de entendimento de uma relao singular entre espao urbano e cultura. So Paulo pode ser vista como um mosaico de lembranas de outros lugares que cada imigrante ou cada grupo social trouxe como valor de cidade ou de urbanidade. Memrias de outros lugares e memrias do que j fora destrudo nutrem os valores desta cidade que concreta, mas , tambm, representao de outras cidades e culturas. Alguns grupos sociais procuraram, na sempre-nova cidade, seus lugares de autoreconhecimento, mas, dada a dinmica urbana, a prpria ideia de identificao com o espao urbano e de permanncia sobretudo para as classes populares, muito vulnerveis ao processo de espoliao urbana no pde perdurar.1

    O trecho do artigo So Paulo: transformaes e permanncias para uma cultura cosmopolita, do arquiteto e professor Lus Antnio Jorge, traz uma densa trama de traos e valores da cidade no mbito sobre o qual me debruo: a relao entre espao e representao cultural. Assim, chego em So Paulo tendo-o como guia, que problematiza a cidade entre suas complexidades e contradies, tomando emprestado o ttulo venturiano, na busca da converso dessas incertezas em arquitetura, indefinies que guiaram a travessia dos tantos retirantes, e tambm a deste estudo.

    SO PAULO

    1. JORGE, Lus Antnio. So Paulo:

    transformaes e permanncias para uma

    cultura cosmopolita. 2013. Ver bibliografia.

    Implantao sobre imagem area, Google Earth.

  • 64

    Como mosaico ou como palimpsesto, cuja realidade constantemente substituda por outra2, a cidade de So Paulo no curto perodo de tempo de apenas um sculo, reconstrui-se trs vezes, deixando de ser a pequena vila acima do porto de Santos para se tornar uma das maiores metrpoles do mundo. Em nmeros, a surpresa: em 1872 tinha pouco mais de 30 mil habitantes, j em 1890 essa populao dobra chegando a 65 mil, em decorrncia da abolio da escravatura e a expanso do caf. Em 1900 salta para quase 240 mil e em 1920 para 580 mil habitantes. J em 1940 o nmero de mais de 1,3 milhes. Hoje a cidade conta com quase 12 milhes de habitantes, e sua regio metropolitana tem mais de 20 milhes.

    Um olhar mais atento a esse crescimento revela a dimenso humana e a riqueza cultural desses nmeros. Nos 20 anos que separam 1950 de 1970, a capital Paulista triplicou seu tamanho, enquanto no mesmo perodo, a populao de origem nordestina cresceu 10 vezes. Dessa forma, o censo de 1970 j apontava que a grande So Paulo apresentava a maior concentrao de populao migrante no pas. O censo de 1970 tambm apontava que quase 70% da populao migrante economicamente ativa da cidade havia passado por algum tipo de experincia migratria3. Sobre o crescimento explosivo de So Paulo e a dificuldade de apreenso dessa realidade urbana, a colocao de Nicolau Sevcenko bastante oportuna:

    De tal modo o estranhamento se impunha e era difuso, que envolvia a prpria identidade da cidade. Afinal, So Paulo no era uma cidade nem de negros, nem de brancos e nem de mestios; nem de estrangeiros e nem de brasileiros; nem americana, nem europeia, nem nativa; nem era industrial, apesar do volume crescente das fbricas, nem entreposto agrcola, apesar da importncia crucial do caf; no era tropical, nem subtropical; no era ainda moderna, mas no tinha mais passado. Essa cidade brotou sbita e inexplicavelmente, como um colossal cogumelo depois da chuva, era um enigma para seus prprios habitantes, perplexos tentando entend-la.4

    Em uma cidade que se desenvolvia com tal rapidez que a cada semana necessitaria de um novo mapa5, como sinalizou Claude Lvi-Strauss ainda em 1935, periferizao e degradao tornaram-se termos chave de caracterizao desse espao urbano que se expandia mais rapidamente do que a capacidade de entend-lo e orden-lo. Da a adoo do modelo rodoviarista livre especulao imobiliria, muitas foram as medidas que acabaram por reforar a fragmentao e desarticulao da cidade, de modo que a violncia do crescimento passou tambm nova dinmica urbana, tornando-se o princpio que rege o desenvolvimento de So Paulo. Surge ento a chamada cidade informal, em reas distantes, irregulares e de risco, onde servios bsicos e iniciativas do estado custosamente chegam, assim como seus moradores, aqueles que por sua condio social no encontram lugar legal na cidade.

    2. A cidade de So Paulo um palimpsesto um

    imenso pergaminho cuja escrita raspada

    de tempos em tempos, para receber outra

    nova. LIMA DE TOLEDO, Benedito. So Paulo: trs cidades em um sculo. 2

    edio. So Paulo: Duas Cidades, 1983, p.67.

    3. IBGE, Censos Demogrficos entre 1872

    e 2010.

    4. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu exttico na

    metrpole: So Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. So

    Paulo, Companhia das Letras, 2003, p.31.

    5. LVI-STRAUSS, Claude, apud FONTENELE,

    Sabrina. Relaes entre o traado urbano e os edifcios modernos no Centro de So Paulo Arquitetura e Cidade (1938/1960). Tese de

    Doutorado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

    da Universidade de So Paulo, 2010, p.78.

    Origem da populao residente em So Paulo,

    entre 1872 e 2010. Baseado nos Censos

    Demogrficos, IBGE.

    Evoluo da Mancha Urbana de So Paulo,

    entre 1881 e 1995. Banco de Mapas, CESAD-

    FAUUSP.

  • TOTAL

    NORDESTE

    SUDESTESUL / ESTRANGEIROSNORTE / CENTRO OESTE

    2000 20101991198019701960195019401920190018901872

    31.3

    85

    64.9

    34

    239.

    820

    579.

    033

    1.326

    .261

    2.19

    8.09

    6 3.7

    81.4

    46

    5.9

    24.6

    15

    8.4

    93.2

    26

    9.64

    6.18

    5

    10.4

    34.2

    52

    11.2

    53.5

    03

    1881 1905 1914

    1930 1952 1962

    1972 1983 1995

  • 66

    Frente essa sensao de desconhecimento e no-aceitao numa cidade sempre-nova, cujo amlgama de realidades, costumes e memrias se fazia mais contrastante e rico a cada dia, vale recuperar a ninguendade, apontada por Darcy Ribeiro, para um questionamento do que So Paulo e quem so seus agentes. Somos tantas misturas, tantas culturas, ninguns em um lugar que nos foge o controle, de modo que esse esvaziamento da existncia nesse espao urbano violento nos obriga a encontrar em nossos pares um refgio. Se o Nordeste pode ser visto como a regio que guarda os valores fundantes da brasilidade, tem-se So Paulo como um retrato hiper-fiel do nacional, cujo espao acaba por reunir contrastes crticos e magnficos de outras paisagens. Assim, se construiu um cosmopolitismo de raiz popular, onde compartilhar vivncias era escapar da dor do exlio na cidade grande. O conhecimento da experincia do outro, do estrangeiro, era tambm uma forma de se reconhecer nas mesmas condies, invariavelmente, adversas.6

    Nesse sentido, atentar-se ao carter diverso que constitui o homem e a cidade de So Paulo hoje, olhar para si mesmo, reconhecendo o outro no prprio eu, e em que medida somos uma soma de outrem em ns mesmos. Encontrar a representao dessas identidades estrangeiras um meio que recupera essa relao entre cidade e cultura, to ativa e intensa se tomarmos como exemplo o Centro de Tradies Nordestinas.

    Entre a carncia de um espao de encontro dos imigrantes nordestinos em So Paulo e a iniciativa do poder pblico Federal, criado em 1991 o CTN, como um ponto de encontro, diverso, meio de divulgao e preservao da cultura nordestina.

    O CTN nasceu tambm para lutar contra um grave problema enfrentado pelos nordestinos, o preconceito. Mo de obra abundante nos canteiros das grandes obras que transformavam So Paulo na maior metrpole da Amrica Latina, constantemente os imigrantes sofriam com o preconceito. Longe da terra natal e da famlia e com baixa autoestima, o CTN transformou-se no refgio ideal dos imigrantes e aos poucos passou a mostrar aos paulistas os valores trazidos da terra natal.7

    Encontra-se em uma rea de 27 mil metros quadrados, no Bairro do Limo, prximo Marginal do Rio Tiet, e conta com: um parque de diverses; loja com objetos vindos de artesos nordestinos; uma rea para eventos, onde ocorrem apresentaes e shows de forr, baio, e outros ritmos reunindo pblicos de mais de 7 mil pessoas; uma igreja, cuja populao muito apegada a sua f, encontra nela a fora de superao frente s intempries da vida8; e restaurantes com sabores tpicos e temperos fortes, como o baio de dois, carne de sol, e acaraj, at a cocada, tapioca, canjica e rapadura. Assim, o CTN recebe cerca de 100 mil pessoas por ms, e revela como esse patrimnio cultural tem e d vida So Paulo.

    6. JORGE, Lus Antnio, op. cit.

    7. Trecho extrado da apresentao do site

    do CTN. Disponvel em: .

    8. Ibid.

    Centro de Tradies Nordestinas, Salo

    principal e Vila do Forr, Acervo pessoal.

  • 68

    Contudo, questiona-se o CTN enquanto espao representativo da memria desses nordestinos enquanto retirantes, cuja jornada se alonga mesmo aps a chegada ao destino. Recuperar o patrimnio imaterial, intangvel, da memria desses retirantes a servio da cultura cosmopolita de So Paulo, o ideal o qual busco alcanar atravs da arquitetura. Assim, em sua materialidade, o final dessa travessia se faz no projeto do Memorial da Retirncia, como complemento ao atual CTN, em busca do cultivo dessa memria e sua cultura fundante em So Paulo.

    Partindo da cultura como um fenmeno social, possvel entender a produo da arquitetura e da cidade como manifestaes do homem em seu contexto especfico. Assim, trago aqui dois trechos de obras escritas do arquiteto Marcelo Ferraz, e do gegrafo David Harvey, que acredito serem pertinentes a questo da arquitetura como resposta ao anseio de grupos sociais em sua representaes na cidade, esta conformada a partir de to numerosos valores quanto diversos interesses.

    Ns, arquitetos, urbanistas, terapeutas do sofrimento humano urbano, trabalhamos na busca do conforto e, por que no dizer, da felicidade das cidades. Lutamos por planos que apontem vocaes e caminhos compatveis com nossa gente e nossa cultura. E devemos acreditar que, na falta de planos nacionais, regionais, urbanos, podemos atuar pontualmente.9

    Do mesmo modo como produzimos coletivamente as nossas cidades, tambm produzimos coletivamente a ns mesmo. Projetos que prefigurem a cidade que queremos so, portanto, projetos sobre nossas possibilidades humanas, sobre quem queremos vir a ser - ou, talvez de modo mais pertinente, em quem no queremos nos transformar.10

    9. FERRAZ, Marcelo Carvalho. Arquitetura

    Conversvel. Rio de Janeiro: Beco do

    Azougue, 2011, p.79.

    10. HARVEY, David. Spaces of Hope. Berkeley & Los Angeles: University

    of California Press, 2000, p.159, traduo prpria.

  • 69

    SENTIDO

    Como propor projetos numa cidade que parece j ter perdido o sentido? [] Como elaborar o pensamento arquitetnico quando o abrigo fecundo das imagens poticas, que antecedem o prprio pensamento, parecem j ter deixado de existir?11

    Compartilhando da mesma inquietude, trago aqui o questionamento de Angelo Bucci sobre a dificuldade em se pensar arquitetura a partir da cidade atual e sua complexidade, no caso So Paulo. Como afirma o arquiteto e professor, vivemos em uma poca de abundncia de recursos e carncia de sentidos, de modo que cabe ao arquiteto buscar a essncia e coerncia das coisas que nos rodeiam, para ento encher de significado aquilo que traamos. Assim, pensar a e na cidade contempornea prescinde um novo olhar para que possamos assimilar a ordem que se estabeleceu.

    Em um mundo de cidades genricas12, globais13 e no-lugares14, procura-se bases slidas para firmar uma postura em meio ao pantanoso terreno da contemporaneidade. Quando tudo que slido desmancha no ar15, a atividade do arquiteto se v em crise na medida em que to difcil quanto encontrar insumos, pensar espaos que guardem a contradio de serem slidos em sua materialidade mas lquidos em sua apropriao. Parte da angstia em se atuar hoje no vem da objeto urbano como o problema em si, mas sim na necessria renovao do suporte terico e sensvel atravs do qual se l esta cidade.

    11. BUCCI, Angelo. So Paulo, razes

    de arquitetura: Da dissoluo dos edifcios

    e de como atravessar paredes. So Paulo:

    Romano Guerra, 2010, p. 2021.

    12. KOOLHAAS, Rem. A cidade genrica In. Trs

    textos sobre a cidade. Barcelona: Gustavo Gili,

    2010.

    13. SASSEN, Saskia. The Global City. New Jersey:

    Princeton University Press, 1991.

    14. AUG, Marc. No-lugares: introduo a uma antropologia da supermodernidade.

    Campinas: Papirus, 1994.

    15. BERMAN, Marshall. Tudo o que slido

    desmancha no ar. So Paulo: Companhia das

    Letras, 2007.

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    Apoiando-se nas hipteses formuladas por Bucci, de que quando esta cidade parece no ter mais sentido, no lugar que reside um sentido propriamente humano para a atividade da prtica de projetos de arquitetura16. Esse lugar como espao de resistncia, o ideal que o projeto busca, valendo-se recuperar Christian Norberg Schulz em seu esforo de constituio de uma teoria do lugar: O propsito existencial do construir (arquitetura) fazer um stio tornar-se um lugar, isto , revelar os significados presentes de modo latente no ambiente dado.17

    Atenta-se aos significados que a palavra sentido adquire: sentido como faculdade de sentir, da percepo dos objetos exteriores; sentido como faculdade intelectual, de entendimento, julgamento e razo; e sentido como direo, e orientao de um deslocamento. Assim, a travessia a qual percorro em busca de um sentido em So Paulo, j se faz projeto enquanto processo de interpretao do lugar. Interpretao esta que se d atravs das trs naturezas da palavra, primeiro pelo campo sensvel, em busca dos elementos que se perderam em seu desenvolvimento desgovernado, depois recuperando as razes que a fizeram, para em seguida com uma viso ativa encontrar o gesto que opere e direcione essas evidncias arquitetura, ao Memorial da Retirncia.

    Assim, um mergulho sensvel no lugar se d a princpio guiado pelos passos de Bucci que tem o Centro de So Paulo como objeto, e com um caminhar errante investiga-se e reconstitui-se a nitidez perdida dos traos e da memria da cidade.

    O termo errar nos vale uma breve observao. Errncia como arquitetura da paisagem, segundo Francesco Carreri18, de modo que se transforme numa interveno urbana. Careri desmistifica o nomadismo como anti-arquitetura e o coloca como prprio produtor de arquiteturas espaciais, como forma de arte e prtica esttica que pode reconstruir evidncias perdidas por onde se passa. Constri seu argumento desde a errncia pr-histrica como arquitetura da paisagem que modifica os significados do espao atravessado, at deriva urbana, que revela zonas inconscientes e silenciadas do espao percebidas a partir da construo de situaes de experimentao ldica nos ambientes, ao buscar a compreenso da insero do caminho propriamente dito feito ao longo histria.

    Analisando as relaes entre percurso e arquitetura tendo essa como construo simblica do territrio Careri divide o prprio caminhar em trs partes: a travessia, como a prpria ao do caminhar; a linha, criada pelo percurso como objeto; e o relato, a narrativa desse caminhar. A partir disso coloca no tensionamento das bordas entre os espaos vazios e os espaos construdos, do devir e de estar, o caminhar como interveno esttica que descreve e modifica espaos urbanos que precisam ser preenchidos de significados, ant