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Tiago Timponi Torrent
O HOMEM VAI BOTAR UMA CASA PARA MIM MORAR UMA ABORDAGEM
SOCIOCOGNITIVISTA E DIACRNICA DA CONSTRUO DE DATIVO COM INFINITIVO
Juiz de Fora
2005
Tiago Timponi Torrent
O HOMEM VAI BOTAR UMA CASA PARA MIM MORAR UMA ABORDAGEM
SOCIOCOGNITIVISTA E DIACRNICA DA CONSTRUO DE DATIVO COM INFINITIVO
Dissertao apresentada ao programa de Ps-Graduao em Letras da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Letras Lingstica. Orientadora: Professora Doutora Maria Margarida Martins Salomo
Juiz de Fora
2005
Tiago Timponi Torrent
O HOMEM VAI BOTAR UMA CASA PARA MIM MORAR UMA ABORDAGEM
SOCIOCOGNITIVISTA E DIACRNICA DA CONSTRUO DE DATIVO COM INFINITIVO
Dissertao de Mestrado submetida Universidade Federal de Juiz de Fora como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Letras e aprovada pela seguinte banca examinadora:
_______________________________________________________
Professora Doutora Maria Margarida Martins Salomo (Orientadora)
Universidade Federal de Juiz de Fora
______________________________________________________
Professor Doutor Mario Roberto Lobuglio Zgari
Universidade Federal de Juiz de Fora
______________________________________________________
Professora Doutora Maria Luiza Braga
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Juiz de Fora
2005
AGRADECIMENTOS
Muitos so os que merecem figurar entre aqueles que, de alguma forma,
contriburam para a realizao deste trabalho. Assim sendo, para evitar injustias e lapsos
de memria, registrarei a seguir meus agradecimentos a todos eles, em ordem cronolgica,
fazendo um levantamento diacrnico da minha formao acadmica.
Isto posto, agradeo quele que ministrou minha primeira aula na Universidade
Federal de Juiz de Fora, ainda na Graduao em Letras, Professor Mrio Roberto Zgari,
ou, simplesmente, Professor, dadas suas caractersticas que, se listadas, preencheriam toda
esta pgina. Ao senhor, que me iniciou na pesquisa cientfica e que colaborou imensamente
em minha formao como aluno e como pessoa, muito obrigado.
Agradeo tambm a todos os professores do Departamento de Letras que
despertaram em mim um interesse cada vez maior pelos estudos da linguagem. Obrigado a
Geysa Silva, Neiva Pinto, Edmilson Almeida, Luciana Teixeira, Vincius Mariano,
Cndida Georgopoulos, Gilvan Procpio, Petra Cristina, Jos da Costa Paiva e Laura
Silveira.
Gostaria tambm de registrar meus sinceros agradecimentos aos professores do
Departamento de Letras Estrangeiras Modernas: Ana Cludia, Snia, Irene, Mrcia,
Wanda, ngela e Silvana.
Aos professores do Mestrado em Letras, agradeo pela excelente formao que me
foi oferecida, no apenas na rea que escolhi como pressuposto terico desta dissertao,
mas tambm em todas as demais. Meu muitssimo obrigado aos doutores: Neusa Salim,
Snia Bittencourt, Nilza Dias e Maria Cristina Name.
Obrigado tambm Professora Maria Clara Castelles, coordenadora do Programa
de Ps-Graduao em Letras e ao seu Secretrio Rafael Pitanga, por todo o apoio fornecido
e pela confiana depositada em mim.
Aos meus colegas de turma do Mestrado, agradeo pelas discusses tericas e no
to tericas nos domingos noite, quando nos reunamos por telefone na busca de solues
para os problemas propostos pelos professores. Obrigado por todos os momentos de riso e
reflexo proporcionados e compartilhados.
Faz-se necessrio registrar aqui um agradecimento a todos aqueles que participaram
do Projeto Censo de Variao Lingstica, do Programa de Estudos sobre Os Usos da
Lngua, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, por terem me dado a possibilidade de
trabalhar com um corpus to rico.
A Natlia Sigiliano e Alice Frascaroli, bolsistas de Iniciao Cientfica, que me
auxiliaram no levantamento do corpus e me forneceram apoio em muitos momentos.
Professora Margarida Salomo, pessoa que foi, de fato, a grande responsvel
pelos caminhos trilhados nesta dissertao. Agradeo por todas as intervenes,
orientaes, sugestes e reflexes s quais tive acesso ao longo, no s da orientao, mas
tambm das brilhantes aulas. Obrigado por ter me ajudado a construir minha capacidade de
anlise lingstica e por ter descortinado para mim, de forma to fantstica, os pressupostos
tericos do Sociocognitivismo.
Por ltimo, agradeo a todas aquelas pessoas que, mesmo no estando inseridos na
rede da universidade, so elementos vitais nesta conquista. Obrigado a todos os meus
amigos, familiares e namorada, que foram colocados por ltimo no por respeito ordem
cronolgica, mas pela atemporalidade do apoio que tm me dado ao longo da minha vida.
RESUMO
Neste trabalho propomos a existncia, em Portugus, da Construo de Dativo com
Infinitivo, DCI, com base em uma anlise sociocognitivista e diacrnica de dados de fala
da VBP e de dados escritos do Latim. Desenvolvemos nossa anlise em contraste com a
descrio gerativa do fenmeno, que apresenta uma argumentao circular e restrita a
aspectos formais da Construo. Em nossa hiptese, argumentamos que o DCI uma
Construo que produto de Herana por Mesclagem de construes Transitivas
Transferenciais e Transitivas Bsicas, sendo caracterizada sintaticamente pelo esquema
para x infinitivo, em que x pode ser substitudo por um Nominal qualquer, e
semanticamente caracterizada pela a existncia de um elemento formal em que so
comprimidos e mesclados os papis de Beneficirio e Agente, ou Experienciador; por um
esquema de significado que aponta para um evento que se constitui em uma resultante
virtual de uma ao ou de um contexto e pela a noo de finalidade emergente neste
esquema de significado.
ABSTRACT
In this paper we hypothesize the existence, in Portuguese, of the Dative With Infinitive
Construction, DWI, based on a sociocognitivist and diachronic analysis of speech data
from Brazilian Portuguese and written data from Latin. We have developed our analysis in
contrast with the gerativist description of the phenomenon, which presents arguments
which are circular and restrict to formal aspects of the Construction. According to our
hypothesis, the DWI Construction is a product of a Blending Link between the
Transferential Transitive Construction and the Basic Transitive one, being syntactically
characterized by the scheme para x infinitivo, in which x can be replaced by any Noun or
Pronoun. On the other hand, this Construction is semantically characterized by the
existence of one formal element which can blend the roles of Beneficiary and Agent, or
Experimenter; by one semantic frame which points to an event which consists in a virtual
resultant of an action or a context and by the sense of finality which emerges in this frame.
SUMRIO
1- INTRODUO 9
1.1- Sobre Dados, Diacronia e Sociocognitivismo 9
1.2- Objeto de Estudo 10
1.3- Metodologia e Organizao dos Captulos 10
1.4- Corpora 11
2- ARQUELOGIA DOS TRATAMENTOS DADOS CONSTRUO PARA
+ MIM + INFINITIVO
13
2.1- A Gramtica Tradicional e A Insistncia no Erro 13
2.2- A Gramtica Esclarecida e A Ponta do Iceberg 20
2.3- A Descrio Gerativista e Apenas Ela 23
3- ELEMENTOS DE LINGSTICA COGNITIVA A LINGUAGEM VISTA
COMO UM PROCESSO DE PROJEES ENTRE DOMNIOS
29
3.1- Os Processos Cognitivos como Projees entre Domnios 30
3.2- A Gramtica das Construes 39
3.3- Integrao de Construes Lingsticas 43
3.4- A Questo da Mudana Semntica 47
4- A CONSTRUO DE DATIVO COM INFINITIVO UMA
ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVISTA
50
4.1- O Processo de Herana do DCI 52
4.1.1- A Escolha Inicial pelas Construes com Mim 58
4.2- Uma Perspectiva Sincrnica sobre O DCI: Suas Diversas Instanciaes no
Portugus Brasileiro
60
4.3- Uma Perspectiva Diacrnica sobre O DCI 65
4.4- Contraposies Anlise Gerativista 68
5- CONCLUSO 72
BIBLIOGRAFIA 75
1- INTRODUO
No incomum ouvirmos, nos mais diversos ambientes em que ocorre a Variedade
Brasileira do Portugus, pessoas fazerem uso dos Pronomes Dativos de primeira e segunda
pessoas do singular mim e ti como Sujeitos de oraes infinitivas introduzidas pela
preposio para.
(1) Sabe que eu nunca pensei assim em botar uma casa. O homem vai botar uma casa para mim morar. Eu nunca pensei nisso. (PEUL/UFRJ 06f18a4efcomp)
(2) Eu acho que eu botaria, assim, numa caderneta de poupana, a prazo fixo, para mim no poder tirar o dinheiro, somente o juro, ! (PEUL/UFRJ 03m56a4efcomp)
(3) Pode doer um pouco correr o risco, mas deve ser melhor do que ficar esperando por uma carta que nunca vem para ti fazer a canastra limpa, sendo assim a gente fecha o jogo com uma "suja", com o coringa no lugar daquilo que se queria de verdade. (WEB)
Frente a ocorrncias como as acima, h, basicamente, duas posturas possveis a
serem adotadas pelos falantes da VBP: dar prosseguimento conversa, j que nada de
anormal aconteceu, ou atentar para o fato de que, segundo os postulados da Gramtica
Tradicional, o enunciador empregou erroneamente o Pronome.
De forma semelhante, as posturas adotveis pelos estudiosos da lngua frente a
esses exemplos podem ser duas. Caso trate-se tal estudioso de um partidrio da Gramtica
Tradicional, o mesmo afirmar que os enunciados acima contm erros no que tange ao uso
dos Pronomes, afinal, se o Pronome vem representando o Sujeito, o mesmo deve ser
nominativo. Por outro lado, caso o estudioso seja um lingista, este deve buscar uma
explicao para tal fenmeno, dada a sua recorrncia na lngua.
Neste trabalho, optamos pela segunda possibilidade.
1.1- Sobre Dados, Diacronia e Sociocognitivismo
Dentre as diversas abordagens tericas hoje oferecidas pela Lingstica, resolvemos
adotar a Lingstica Cognitiva como orientao principal, porm com alguns elementos,
seno novos, pouco comuns em trabalhos desta linha. Isto porque tambm cogitamos os
aspectos da linguagem que esto ligados no apenas cognio, mas tambm aos
elementos culturais que identificam a sociedade humana.
Esta mesclagem de elementos cognitivos e culturais, j prevista pela Hiptese
Sociocognitiva sobre a Linguagem (SALOMO, 1997), se d neste trabalho de uma forma
tambm nova, na medida em que, acrescentamos, alm dos fatores culturais, uma
perspectiva diacrnica anlise, j que buscamos no Latim evidncias que elucidem e
reforcem nossa hiptese analtica.
Ao contrrio dos estudos gerativistas, nossa fonte de dados no um falante-
ouvinte idealizado, mas sim pessoas de verdade, que esto inseridas no eixo do tempo e da
herana cultural, e justamente por este fato que acreditamos ser a anlise que
desenvolvemos ao longo deste trabalho mais satisfatria do que as apresentadas pelas
outras abordagens tericas, em especial o gerativismo.
1.2- Objeto de Estudo
O objeto de estudo desta dissertao comeou sendo o esquema sinttico para +
mim + infinitivo, to estigmatizado por aqueles que falam a variedade padro do
Portugus. Porm, ao longo de nossas anlises prvias, notamos que este esquema era
apenas uma das possveis formas de realizao de uma Construo mais ampla, qual
demos o nome de Dativo com Infinitivo, ou, apenas, DCI, na qual h um elemento
qualquer Pronome Dativo, Pronome Nominativo, Nome, Sintagma ou mesmo um
elemento PRO que selecionado como Sujeito do Verbo Infinitivo.
Ao longo das anlises, pudemos notar tambm que a ocorrncia desta Construo
no estava limitada apenas queles casos em que ocorria um Verbo Finito Ditransitivo,
conforme o que foi apontado em anlises anteriores realizadas por uma leva de gramticos
normativistas, ou por Marcus Bagno e por Carlos Mioto e sua equipe de gerativistas. Pelo
contrrio, postulamos que o DCI uma Construo autnoma que pode se mesclar a
outras, inclusive quelas com Verbo Ditransitivo.
1.3- Metodologia e Organizao dos Captulos
Uma vez que nosso objeto j foi estudado sob as ticas da Gramtica Tradicional,
da Lingstica Estrutural e do Gerativismo, comearemos este trabalho por apresentar, no
captulo 2, os pontos de vista destas trs abordagens, assinalando nossas crticas em relao
aos mesmos.
Feitas as crticas e demonstradas as insatisfaes, passaremos no captulo 3 a
apresentar nossa perspectiva terica, a do Sociocognitivismo, pela qual julgamos ser
possvel explicar o problema. Trataremos neste captulo daqueles elementos que julgamos
necessrios para a nossa anlise. Dentre eles, esto a Teoria da Mesclagem
(FAUCONNIER & TURNER, 2002), a Gramtica das Construes (GOLDBERG, 1995)
(MANDELBLIT, 1997) (FAUCONNIER & TURNER, 2002) e a noo de Mudana
Semntica tal como definida por Sweetser (1990) e Fauconnier e Turner (2002).
Aps apresentarmos nossas crticas e nossa proposta terica, faremos, no captulo 4,
nossa anlise da Construo, a qual contempla um percurso histrico, tentando encontrar,
nos caminhos da deriva do Latim ao Portugus, pistas que possam apontar para uma
explicao satisfatria do problema, considerando dados sincrnicos de produes reais de
falantes tambm reais, contrastando nossa proposta de anlise com as vistas anteriormente.
Por fim, no captulo 5, apresentaremos nossas concluses.
1.4- Corpora
Para que pudessem ser feitas as anlises, selecionamos trechos do corpus do Censo
de Variao Lingstica do Programa de Estudos sobre Os Usos da Lngua da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PEUL/UFRJ).
Alm deste projeto, levantamos dados ainda em alguns sites da Internet nos quais
encontramos ocorrncias freqentes de DCI, no apenas com Pronome de Primeira Pessoa,
mas tambm com o de Segunda.
Os dados utilizados no corpo do texto trazem, entre parnteses, quando possvel, a
identificao dos informantes, organizada da seguinte forma:
- Nome do projeto e da instituio na qual foi desenvolvido. Para os casos em
que a ocorrncia tenha sido encontrada na Internet, a palavra web vir entre
parnteses e esta ser a nica referncia ao informante;
- Nmero do informante na base de dados;
- Sexo do informante, representado pelas letras f e m, para o feminino e
masculino, respectivamente;
- Idade do informante, indicada sempre por dois algarismos seguidos da letra a;
- Grau de escolaridade do informante, de acordo com a seguinte legenda:
Nmeros de 1 a 8: indicam as sries do ensino fundamental e do
ensino mdio;
EF: ensino fundamental;
EM: ensino mdio;
SUP: ensino superior;
CURS: estgio escolar em curso, quando da entrevista;
COMP: estgio escolar completo, quando da entrevista.
Os dados utilizados neste trabalho tm a funo de verificar, com exemplos reais de
fala e, para os casos dos textos da Internet, de escrita, as anlises que iremos nos propor a
fazer.
2- ARQUELOGIA DOS TRATAMENTOS DADOS CONSTRUO PARA + MIM
+ INFINITIVO
2.1- A Gramtica Tradicional e A Insistncia no Erro
Para fazermos a reviso das anlises propostas pela Gramtica Tradicional em
relao Construo para + mim + infinitivo pesquisamos ao todo treze obras, as quais
citaremos a seguir em ordem de publicao1:
- Gramtica Histrica da Lngua Portugusa, de Said Ali (1931);
- Dificuldades da Lngua Portuguesa, de Said Ali (1950);
- Gramtica Elementar da Lngua Portuguesa, de Said Ali (1953, no mximo)2;
- Gramtica Secundria da Lngua Portuguesa, de Said Ali (1953, no mximo)3;
- Moderna Gramtica Expositiva da Lngua Portugusa, de Artur de Almeida
Trres (1959);
- Pontos de Gramtica Histrica, de Ismael de Lima Coutinho (1962);
- O Idioma Nacional, de Antenor Nascentes (1964);
- Gramtica Normativa da Lngua Portuguesa, de Rocha Lima (1972);
- Gramtica Metdica da Lngua Portuguesa, de Napoleo Mendes de Almeida
(1980);
- Estudos de Lngua Portuguesa Gramtica, de Douglas Tufano (1985);
- Nossa Gramtica, de Luiz Antnio Sacconi (1989);
- Moderna Gramtica Portuguesa, de Evanildo Bechara (1999);
- Gramtica Reflexiva Texto, Semntica e Interao, de William Roberto
Cereja e Thereza Cochar Magalhes (1999);
Analisando as quatro obras de Said Ali, pudemos notar que, em nenhuma delas, h
qualquer referncia explcita ao emprego do Pronome Dativo como Sujeito de Verbos
Infinitivos. O autor limita-se a diferenciar, em suas trs Gramticas, os Pronomes Pessoais
1 Para efeitos de anlise, consideramos, com exceo feita quelas obras cujas edies analisadas tenham sido publicadas postumamente, sempre a data de publicao da edio analisada e no a da primeira edio. Isto se deve ao fato de que quase todas as obras trazem, na capa ou na primeira pgina, os dizeres revista e atualizada. Para as obras cujas edies analisadas sejam pstumas, consideramos a data da ltima edio alterada pelo autor. 2 A ltima data de publicao desta obra pelo autor no informada na edio analisada. 3 Idem.
retos dos Oblquos, afirmando que aqueles empregam-se quando em funo de Sujeito,
enquanto estes aparecem em funo de complemento (SAID ALI, 1931).
Da mesma forma, a obra de Trres (1959) no faz qualquer tipo de meno a esse
emprego, sendo que as nicas referncias a empregos indevidos dos Pronomes Pessoais
referem-se ao uso dos Pronomes Retos pelos Oblquos em construes com a preposio
entre.
Porm, com exceo destas cinco obras, todas as demais pesquisadas trazem
alguma referncia explcita Construo em anlise. Interessante o fato de que, dentre as
obras pesquisadas neste trabalho, apenas aquelas que foram editadas aps a dcada de 60
trazem alguma referncia ao uso, pelas camadas populares, vale ironicamente lembrar, do
Pronome Dativo como Sujeito de Infinitivo. Apesar de tal fato ter nos chamado a ateno,
no nos preocuparemos, neste momento, em investig-lo, deixando tal tarefa para trabalhos
posteriores.
Passando agora a levantar as anlises propostas para a Construo para + mim +
infinitivo pela Gramtica Tradicional, continuaremos a seguir a ordem cronolgica
estabelecida no incio deste captulo.
Em Pontos de Gramtica Histrica (COUTINHO, 1962) h um captulo intitulado
O Portugus do Brasil, ao longo do qual so arroladas as particularidades do emprego da
Lngua Portuguesa na Amrica. Coutinho agrupa as peculiaridades da VBP em trs
conjuntos distintos: aquelas que ocorrem no mbito da fontica, as que so verificadas na
morfologia e as que se do no campo da sintaxe.
No que tange aos dois primeiros conjuntos, limita-se o autor a citar as variaes
verificadas em territrio brasileiro, sem emitir qualquer juzo de valor sobre a ocorrncia
das mesmas. Todavia, ao introduzir a lista das particularidades do Portugus em uso no
Brasil no tangente sintaxe, Coutinho assume uma postura de rgida crtica, trazendo
tona a noo de erro gramatical, conforme pode ser observado no trecho transcrito a seguir:
Enquanto no domnio do vocabulrio, da fontica e da morfologia, achamos que as nossas discordncias da linguagem portuguesa so perfeitamente legtimas, a ponto de no recearmos crtica, de outro modo julgamos as que se do no da sintaxe. Raras so as pessoas ilustradas entre ns que, falando ou escrevendo, no se esforcem por evitar os casos em que a nossa sintaxe popular diverge da portuguesa. Os gramticos brasileiros, secundando os seus colegas de Portugal, anatematizam essas prticas, tachando-as de erronias graves, verdadeiros solecismos. Da o cuidado dos nossos escritores. (...) O literato, acoimado de incorreto entre ns, s vezes por um simples descuido na colocao dos Pronomes, encontrar sempre cerrada a porta que poderia conduzi-lo glria da popularidade. Depois de um leve cochilo gramatical, todas as boas qualidades lhe so negadas. Nas camadas populares, porm, onde no se conhecem as leis
da gramtica, as discordncias neste ponto so patentes. (COUTINHO, 1962:334-35)
Conforme podemos notar claramente, Coutinho critica de forma contundente o
emprego, por parte dos falantes do Portugus Brasileiro, de construes que contrariem a
norma gramatical portuguesa, taxando-os de desconhecedores das leis gramaticais.
Dando prosseguimento ao texto, enumera as principais construes que devem ser
banidas da Lngua Portuguesa dado seu alto grau de subverso em relao aos padres.
a) a colocao irregular dos Pronomes Oblquos: Me disseram, no dou-te; b) a preposio em com Verbos de movimento: Vou na janela, cheguei na estao;
c) o Pronome reto ele, ela, eles, elas como Objeto Direto: Vi ele; d) o uso de mim como Sujeito de Infinitivo: Para mim ver; (grifo nosso) e) o Verbo ter empregado pelo impessoal haver: Tem gente nesta casa; f) o Verbo impessoal haver no plural: Houveram festas;
g) o Verbo no plural com Sujeito coletivo: O povo foram. (COUTINHO, 1962:335)
Note-se que todos os temas enumerados, se j no o foram, com certeza sero temas
de muito interesse para estudos lingsticos. No h no texto de Coutinho, contudo,
qualquer tipo de explicao para o uso de tais construes, ou seja, apesar de criticar
duramente seu uso, o gramtico apenas indica qual forma deveria ser utilizada, no se
preocupando em descrever ou explicar o uso classificado como incorreto.
De forma muito semelhante, aborda a questo Antenor Nascentes em seu O Idioma
Nacional (NASCENTES, 1964). Aps arrolar as principais diferenas tangentes
colocao pronominal nas duas variedades da Lngua Portuguesa em questo a brasileira
e a europia , escreve o gramtico que
Fora destes casos [aqueles relativos colocao pronominal] as divergncias que se notam so capituladas como solecismos e portanto evitadas pela classe culta. No vem fora de propsito apontarmos mais uma vez alguns destes solecismos para combat-los. (NASCENTES, 1964:84)
A partir deste momento, Nascentes passa a enumerar, de forma muito semelhante a
Coutinho, os ditos solecismos e, entre eles, encontra-se a Construo de Dativo com
Infinitivo, que exemplifica da seguinte forma: este livro para mim ler, em vez de este
livro para eu ler (NASCENTES, 1964:85). Por outro lado, diferentemente de seu
contemporneo, Nascentes ainda esboa alguma tentativa de explicao para estes erros
de Lngua Portuguesa, atribuindo alguns deles quais no sabemos, uma vez que o autor
no os cita explicitamente s influncias negras e indgenas na VBP.
Podemos notar que, semelhantemente ao que ocorre com a obra anterior, no h
qualquer tentativa de descrio ou explicao do fato, limitando-se ambos os gramticos a
caracterizar o uso da Construo para + mim + infinitivo como erro, o que, veremos mais
adiante, parece ser a nica opo de anlise, ou melhor, o nico rtulo apresentado pela
gramtica tradicional que no o da exceo e o da norma culta.
Seguindo em nossa linha do tempo, passaremos a analisar agora as consideraes
de Rocha Lima (1972) sobre a referida Construo. Afirma o gramtico tratar-se nosso
objeto de estudo de um erro comum, de fato da linguagem coloquial menos cuidada que
no se fixou na lngua culta (ROCHA LIMA, 1972:318). Mais adiante, a Gramtica
Normativa da Lngua Portuguesa traz um item sobre os Pronomes Oblquos que servem de
Sujeito ao Infinitivo. Tal item se refere no ao uso do mim como Sujeito de Infinitivo, mas
ao ACI Acusativo com Infinitivo e apresenta-se da seguinte forma:
Podem os Pronomes Oblquos o (a, os, as), me, te, se, nos, vos desempenhar a funo de Sujeito de um Infinitivo, em conexo com um dos Verbos fazer, deixar, mandar, ouvir e ver, aos quais servem cumulativamente de Objeto Direto: Mandei-o entrar. No exemplo, o Pronome o acumula a funo de Sujeito de entrar com a de Objeto Direto de mandei. (...) o que os latinos chamavam accusativus cum Infinitivo, ou seja, uma palavra em Acusativo (caso do Objeto Direto), servindo de Sujeito a um Infinitivo. (ROCHA LIMA, 1972:319)
Neste ponto cabe um comentrio mais aprofundado do que os expostos
anteriormente. Alm de apenas classificar como erro o uso do Pronome mim, Rocha Lima
ainda apresenta, como Construo validada para a norma padro da Lngua Portuguesa,
aquela em que o Pronome Acusativo serve de Sujeito ao Infinitivo, acumulando, conforme
aponta o prprio gramtico, as funes de Sujeito e Objeto Direto.
Ora, dadas essas consideraes, a abordagem da gramtica tradicional para o
problema por ns estudado torna-se ainda mais problemtica. Como possvel que a
Construo do ACI seja perfeitamente aceitvel para a norma padro enquanto a do para +
mim + infinitivo tratada como um erro? Afinal, em ambas, um Pronome Oblquo
funciona como Sujeito de Infinitivo. Mesmo o argumento colocado por Rocha Lima
relativo latinidade da Construo do Acusativo com Infinitivo no procedente j que,
em Latim, conforme veremos no captulo 4, o Dativo tambm era utilizado como Sujeito
de formas nominais.
Tambm nas obras Gramtica Metdica da Lngua Portuguesa (ALMEIDA, 1980),
Estudos de Lngua Portuguesa Gramtica (TUFANO, 1985) e Nossa Gramtica
(SACCONI, 1989) o tratamento proposto para o problema semelhante ao de Rocha Lima,
ou seja, condena-se o uso do Pronome Dativo ou Oblquo Tnico como Sujeito de
Infinitivo porque, por ocupar a funo de Sujeito, ele deveria ser Nominativo ou Reto
mas, prescreve-se o uso do Pronome Acusativo ou Oblquo tono para a mesma
funo, afirmando-se ainda que este acumula as funes de Sujeito do Infinitivo e
Complemento do Verbo Finito causativo ou sensitivo anterior conforme o que ocorria
no Latim.
Sendo assim, para o exposto nas trs obras s quais fizemos referncia no pargrafo
anterior, nossa anlise da abordagem proposta aponta para as mesmas questes relativas
Gramtica Normativa da Lngua Portuguesa (ROCHA LIMA, 1972), ou seja, aponta para
a total incoerncia em condenar o uso do Pronome Dativo como Sujeito de Infinitivo
enquanto se valida o do Acusativo. Principalmente levando-se em considerao que o
argumento para validar o ACI e no o uso do mim a latinidade da Construo, argumento
este que ser desconstrudo em breve.
Finalizaremos nosso percurso pelas gramticas tradicionais analisando duas obras
relativamente recentes as duas foram publicadas em 1999 que, conforme o que consta
em seus prefcios, prope-se a realizar um estudo da lngua diferente, que busque no
apenas a prescrio de regras que visam a guiar o estudante do vernculo pela estrada sem
curvas da norma padro, mas tambm o tratamento da lngua em uso.
Comeando por Bechara (1999), ocupa-se o discpulo de Said Ali, no prefcio 37
edio revista, ampliada e atualizada de sua Moderna Gramtica Portuguesa, de explicar
ao leitor que a obra que lhe apresentada fruto de uma reanlise, com base nas
contribuies dos estudos lingsticos, da gramtica de mesmo nome publicada em 1961.
Escreve o autor:
Amadurecido pela leitura atenta dos tericos da linguagem, da produo acadmica universitria, das crticas e sugestes gentilmente formuladas por companheiros da mesma seara e da leitura demorada de nossos melhores escritores, ver facilmente o leitor que se trata aqui de um novo livro. (...) O arcabouo terico desta obra poderia bem orientar-se por outros modelos vlidos, seguidos pelos nossos melhores lingistas em atuao nos centros universitrios brasileiros. A orientao aqui adotada resulta da nossa convico de que ela tambm pode oferecer elementos de efetiva operacionalizao para uma proposta de reformulao da teoria gramatical entre ns, especialmente quando aplicada a uma obra da natureza desta Moderna Gramtica Portuguesa, que alia a preocupao de uma cientfica descrio sincrnica a uma viso sadia
da gramtica normativa, libertada do rano do antigo magister dixit e sem baralhar os objetivos das duas disciplinas. (BECHARA, 1999:19-20)
Por mais que tenha feito as devidas ressalvas no concernente ao fato de no tratar-
se a sua obra de uma gramtica lingstica, Bechara prope-se realizar uma descrio em
certa medida inovadora da Lngua Portuguesa. Baseando-nos no prefcio, espervamos
encontrar de fato uma descrio da Construo para + mim + infinitivo, to comum na
sincronia da lngua, que no se limitasse a, parafraseando o autor, ditar as normas.
Na pgina 566, entretanto, o que encontramos, sob o ttulo de regncia foi apenas
mais uma prescrio normativa, assim como as tantas outras que levantamos at aqui.
Bechara apenas reitera o que afirmam os demais gramticos, ou seja, que se a preposio
para rege a orao reduzida de Infinitivo, o Pronome deve vir na forma reta por se tratar do
Sujeito da orao, a qual pode ser desenvolvida para uma orao formada com Verbo no
subjuntivo. Expostos tais fatos, s nos resta concluir que, mesmo tendo se proposto fazer
uma descrio adequada da lngua, despida das prescries tradicionalistas, Bechara
apenas repete o que j foi dito por tantos outros gramticos que se negam a tratar os fatos
da lngua que, por algum motivo, se desviaram daquilo que consta nas obras clssicas da
literatura em Lngua Portuguesa.
Por fim, chegamos nossa ltima obra analisada com a esperana de encontrar nela
um outro tipo de tratamento para o problema. Esperana esta que foi reforada aps a
leitura do prefcio, no qual Cereja e Magalhes (1999) afirmam, em relao sua
Gramtica Reflexiva, que:
A lngua estudada nesta gramtica a Lngua Portuguesa viva, isto , a utilizada em suas variedades oral e escrita, culta ou coloquial, formal ou informal, regional ou urbana, etc. a lngua que circula nos jornais, na tev, nos quadrinhos, nas canes, nos textos literrios, nos anncios publicitrios, enfim, nos textos que circulam socialmente. (CEREJA & MAGALHES, 1999)
Porm, quando chegamos a ler, no captulo O Pronome, o item Eu ou mim?,
nos deparamos com uma anlise muito prxima das demais gramticas, conforme
podemos ver no trecho transcrito a seguir, em que os autores tentam explicar a Construo
da sentena voc t dizendo pra eu ficar aqui sentado, presente em uma tira de
quadrinhos:
Os Pronomes pessoais eu e tu desempenham a funo de Sujeito, enquanto os Oblquos tonos mim e ti desempenham outras funes. (...) De acordo com o padro culto seria adequado empregar mim no lugar de eu? No, porque o Pronome reto eu na frase do balo funciona como Sujeito do Verbo ficar, que se encontra no Infinitivo. Se desenvolvssemos a frase, teramos,: para que eu
fique. O mesmo ocorre com o Pronome pessoal tu, por exemplo, na frase Trouxe o livro para tu leres, que no admite o emprego de ti. (CEREJA & MAGALHES, 1999:130-31)
Apesar de se proporem no prefcio analisar a Lngua Portuguesa viva, Cereja e
Magalhes restringem-se, assim como os demais gramticos levantados por ns, a
prescrever o uso da Construo com o Pronome Nominativo, sem ao menos se preocupar
em mencionar o uso freqente da Construo com o Pronome Dativo. Alm disso, a
explicao dada pelos autores para justificar o uso da forma nominativa a mesma
apontada por Bechara (1999) no deveria ser considerada vlida do ponto de vista de um
estudo srio da linguagem, afinal, desenvolver a orao reduzida de Infinitivo alterar
profundamente a estrutura sinttica da Construo analisada.
De tudo o que foi proposto no prefcio, resta, no tratamento da Construo para +
mim + infinitivo, apenas uma tentativa de, atravs do emprego de termos com o perdo
do trocadilho lingisticamente corretos, tais como seria adequado empregar,
disfarar a mesma postura de prescrio de qualquer gramtica tradicional.
Conforme pudemos notar ao longo das anlises que fizemos das gramticas que
levantamos, percebemos que todos os seus respectivos autores parecem insistir duas vezes
no erro. Insistem, num primeiro momento, no erro do falante, ou seja, em afirmar que o
falante descuidado da Lngua Portuguesa comete erros de gramtica que deturpam a
lngua. E, num segundo momento, insistem no erro de pensar que falantes nativos de uma
lngua erram com tamanha freqncia.
Atravs da insistncia no erro, a gramtica tradicional, mesmo em suas verses
mais recentes, mantm-se isolada, assim como a lngua abstrata da qual trata. Os usos reais
da lngua continuam, apesar de todos os estudos sobre a linguagem desenvolvidos no
sculo XX, servindo, muitas vezes, apenas como contra-exemplos norma prescrita. No
h uma explicao convincente para tais usos e nem mesmo descries adequadas que
possam ao menos nos relatar o que est ocorrendo nas outras variedades da Lngua
Portuguesa que no essa inexistente, a qual a gramtica insiste em chamar de norma.
importante ressaltar, por fim, que normativistas mantm-se isolados dos estudos
lingsticos no por inocncia ou por desconhecimento, mas por cultivarem uma viso da
lngua como um forte elemento de segregao. Seu discurso valida uma viso de que a
Lngua Portuguesa bem falada e bem escrita privilgio de uma elite que conta cada vez
mais com um nmero menor de membros. As tentativas de validao das prescries na
volta histria da lngua so, alm de uma ofensa aos srios estudos diacrnicos, apenas
uma forma de reafirmar a viso decadentista destes estudiosos em relao lngua, ou
melhor, queles que a utilizam e no fazem parte da pequena elite que eles representam.
2.2- A Gramtica Esclarecida e A Ponta do Iceberg
No satisfeitos com a tendncia prescritivista da gramtica normativa, partimos
para as gramticas esclarecidas pela teoria lingstica a fim de verificar se aqueles que
adotam esta forma de olhar os problemas da linguagem j haviam feito estudos sobre a
Construo analisada nesta dissertao. Encontramos um trabalho nesta temtica, de
autoria de Marcos Bagno.
Tal estudo o captulo ndio, sim, com muito orgulho uso do pronome mim
como sujeito de infinitivos do livro A Lngua de Eullia Novela Sociolingstica, em
que o referido autor se prope a, segundo o que diz a epgrafe da obra em questo, de
autoria de William Labov, acabar com a idia de que exista deficincia verbal e criar uma
noo mais adequada do que sejam os dialetos-padro e os no-padro e das relaes
existentes entre eles. Neste sentido, cria uma espcie de gramtica descritiva do Portugus
em forma de romance, ou novela, como nos diz o ttulo, na qual trs amigas vo para o
interior visitar a tia de uma delas, professora de Lngua Portuguesa e Lingstica, que vive
na companhia de uma senhora de nome Eullia, a qual de fato a personagem chave da
novela por no usar a variante padro do Portugus e ser um poo sem fundo de exemplos
para as aulas que a tia lingista ministra sobrinha e s amigas.
Em uma destas aulas captulos Bagno prope-se a explicar porque as pessoas
usam com freqncia a Construo com Pronome mim ao invs daquela com o Pronome
eu, validada pela norma padro. Para tanto, prope trs hipteses, as quais analisaremos a
seguir.
A primeira delas seria a do cruzamento sinttico, ou seja, segundo Bagno, o falante
usa a Construo para + mim + infinitivo quando quer enunciar duas coisas ao mesmo
tempo. Isto significa que ele quer dizer, usando o mesmo exemplo do autor, ao mesmo
tempo, que
(1) Joo trouxe um monte de livros para mim. (2) Joo trouxe um monte de livros para eu escolher. (BAGNO, 2001:182)
Ento, faz um cruzamento das duas sentenas, formando uma s que seria Joo
trouxe um monte de livros para mim escolher. At aqui, poderamos dizer que a hiptese
no seria de todo ruim, no fosse a explicao para o processo que dada logo a seguir
quando o autor afirma que a soma das duas frases seria Joo trouxe um monte de livros
para mim, para eu escolher mas que, pelo princpio da economia, fora reduzida para a
que citamos no incio deste pargrafo. Continuando a explicao, o autor prope que o
fenmeno seja um caso de braquilogia e que a opo pelo mim e no pelo eu se deve
tonicidade daquele, trao este que seria responsvel pela atribuio de uma certa nfase
pessoa.
O primeiro grande problema est na palavra soma. No se trata de somar duas
construes e obter uma terceira que seja capaz de representar tudo o que as outras duas
so. Se o falante de fato quisesse falar a sentena em (2), ento no haveria razo para
enunciar outra que no ela. No se trata de querer dizer que algum trouxe um monte de
coisas para eu fazer. Neste caso, o eu j est inserido na Construo como Agente. Esta j
uma Construo em que o falante optou pelo Pronome nominativo.
Ainda, no tangente questo da tonicidade, por que ento no so recorrentes em
Portugus construes outras em que o Pronome mim venha ocupando o lugar do Pronome
eu que no esta da qual tratamos? Se de fato a tonicidade fosse um trao determinante
nesta escolha, grande parte dos falantes do Portugus falaria coisas do tipo ele tem medo
de mim ir embora ou mim fui expulso de l ontem. O fato que h algo alm daquilo
que Bagno enxerga na Construo em estudo, o que ele v apenas a ponta do iceberg. H
uma srie de processos cognitivos que esto submersos e que s podem ser vistos com
instrumentao terica adequada.
Continuando com suas hipteses que visam a explicar o uso do Pronome Dativo
como Sujeito, o autor em questo apresenta uma segunda hiptese que se baseia no fato de
que h duas regras de regncia atuando ao mesmo tempo nesta Construo. A primeira
delas seria a que pede o uso de Pronome Oblquo aps as preposies e a segunda seria a
que pede Pronome Reto antes dos Verbos dos quais sejam Sujeitos. Segundo Bagno, o que
ocorre neste caso que a regra da Preposio surge antes da do Verbo e, como toma
conhecimento dela primeiro, o falante a segue, usando o Pronome Oblquo.
Ora, temos aqui dois problemas graves. O primeiro a absoluta linearidade
pressuposta para a formao de sentenas em qualquer lngua. Sem entrar nos pressupostos
tericos da Lingstica Cognitiva, estudos gerativistas h que mostram a centralidade do
Verbo na gerao de sentenas e todas as operaes de movimento que ocorrem para que
se chegue forma enunciada. O segundo , novamente, o fato de o uso do Pronome Dativo
se restringir s construes com a preposio para.
Por fim, a terceira hiptese proposta por Bagno a dos deslocamentos possveis. O
autor afirma haver construes validadas pelo padro da Lngua Portuguesa em que o para
mim + infinitivo no seria um exemplo de Pronome Dativo como Sujeito de Infinitivo e
sim um caso em que a expresso preposicionada serviria como indicadora de uma opinio,
sendo o Verbo Infinitivo Sujeito da cpula, em sentenas como difcil para mim fazer
isso. Continuando a explanao de sua hiptese, Bagno afirma que, nesses casos,
possvel deslocar o para mim para vrios pontos da sentena, o que no se verifica com os
casos em que ocorre a Construo para + mim + infinitivo. Porm, h casos em que no
possvel precisar se o Pronome Dativo preposicionado indica uma opinio ou se ele
Sujeito do Verbo Infinitivo.
Sendo assim, afirma o autor que como a Construo d certo em alguns casos, ela
passa a ser produtiva para outros, ou seja, como h posies coincidentes ocupadas pelo
para + mim + infinitivo em que o Pronome Sujeito do Infinitivo e em que a orao
infinitiva funciona como Sujeito do Verbo ser, o falante toma as duas por aceitveis na
lngua e as emprega indiscriminadamente, sem refletir porque as utiliza.
O problema desta hiptese reside no fato de que Bagno de fato no explica porque
o falante faz essa escolha. A questo da produtividade no uma causa e sim um efeito. O
que estamos tentando dizer que o falante no usa uma construo apenas porque ela
recorrente na lngua. Pelo contrrio, se ela se torna recorrente esse fato se relaciona sua
alta capacidade de indicar eventos que sejam relevantes para os falantes da lngua,
conforme veremos mais adiante.
Bagno, por mais que sua didtica e sua tentativa de transformar a lingstica em
algo popular sejam dignas de elogio pelas boas intenes, no faz jus aos mesmos elogios
no que tange qualidade terica de suas explicaes. O autor limita-se a tocar na ponta do
iceberg. Ele fala de efeitos e no de causas e, alm disso, peca tambm por focar demais
uma nica ocorrncia inventada e esquecer que para uma boa anlise lingstica
indispensvel olhar para os lados e tentar buscar no restante do sistema uma boa explicao
para o problema em questo.
2.3- A Descrio Gerativista e Apenas Ela
Finalizando nossa busca por abordagens tericas que tratassem do fenmeno em
questo neste trabalho, fizemos uma incurso pela teoria gerativa visando a encontrar
descries e explicaes convincentes para o uso do para + mim + infinitivo, que no
encontramos nas obras analisadas at ento. Para tanto, buscamos obras que tenham tratado
tal Construo sob a tica da teoria lanada por Chomsky e constantemente revisitada por
ele e seus discpulos.
Para discutir o tratamento dado pelo gerativismo ao problema, selecionamos o
Manual de Sintaxe (MIOTO ET AL, 1999), o qual foi escolhido por usar como exemplo do
problema em anlise uma sentena bem prxima de algumas das que encontramos em
nosso levantamento de dados. Alm desta obra, utilizamos ainda as obras Syntax A
minimalist introduction de Radford (1997) e The Minimalist Program do prprio Chomsky
(1995) para nos fornecer um embasamento maior no que tange ao Programa Minimalista.
Mioto et al. discutem, no captulo IV de seu Manual de Sintaxe (pp. 111-144), a
Teoria do Caso, comeando por definir a que se refere tal termo na lingstica gerativa.
Afirmam, assim, que a palavra Caso no se refere, nos estudos de orientao chomskiana,
nem aos papis atribudos pelo Verbo aos seus argumentos conforme sabemos, estes
papis recebem, na teoria em questo, o nome de Papis , nem aos morfemas casuais
presentes em lnguas como o Latim. Segundo os autores, Caso, para o gerativismo,
sinnimo de caso abstrato, ou seja, uma categoria gramatical universal que independe de
marcao morfolgica. Tal categoria seria responsvel por tornar possvel que os Verbos
atribuam papis aos Sintagmas Determinantes doravante SDs sendo portanto mais
abrangente que a noo de caso morfolgico, vez que, mesmo as lnguas, como o
Portugus, que no apresentam marcao morfolgica de caso nos nomes a possuem. O
caso abstrato , portanto, uma espcie de ponte, que permite que os SDs se tornem
visveis e interpretveis pelo parser, o que possibilita aos Verbos atribuir-lhes os Papis
correspondentes a cada instncia, como, por exemplo, o papel de Agente aos
Nominativos, ou o de Tema aos Acusativos.
Sendo assim, os autores propem que a Teoria do Caso deve se constituir como um
dos mdulos da gramtica gerativa, devendo preocupar-se em estabelecer:
- quantos e quais so os casos abstratos; - quais so os elementos que atribuem os casos abstratos; - quais so os constituintes que os recebem;
- quais as formas de atribuio de Caso; - quais os princpios que regulam a atribuio de Caso. (MIOTO ET AL, 1999:115)
A aplicao desta teoria ao Portugus resulta no postulado de que os SDs desta
lngua podem receber os Casos Nominativo, Acusativo e Oblquo, sendo que os Ncleos
atribuidores dos mesmos so: (a) o Verbo ncleo lexical [-N, +V] , que atribui Caso
Acusativo; (b) a Preposio ncleo lexical [-N, -V] , que atribui Caso Oblquo, e o
ncleo funcional F de flexo que atribui o Nominativo. A teoria reza ainda que cada
um dos Ncleos citados tem apenas um Caso para ser atribudo.
Para que se faa completa a aplicao da Teoria do Caso ao Portugus, os autores
ainda afirmam que a atribuio dos Casos se d sob Regncia4 e que esta pode apresentar-
se de duas formas: cannica ou excepcional.
Na Marcao Cannica de Caso, o Verbo e a Preposio atribuem, respectivamente,
aos seus complementos, os casos Acusativo e Oblquo, enquanto a Flexo atribui ao seu
especificador o caso Nominativo. A diferena na atribuio dos Casos Acusativo e
Oblquo so atribudos numa relao Ncleo-Complemento, enquanto o Nominativo
atribudo numa relao Spec-Ncleo no problema para a teoria, afinal, tanto o
Especificador quanto o Complemento so regidos pelo Ncleo e, conforme o exposto
anteriormente, a atribuio de Caso se d via Regncia.
Porm, pouco nos interessa a Marcao Cannica, uma vez que nosso objeto de
estudo configura-se no gerativismo justamente como um exemplo de Marcao
Excepcional de Caso (ECM da sigla em ingls para Exceptional Case Marking5). Neste
ltimo tipo, o Sujeito tem seu Caso excepcionalmente da o nome checado fora do SF
que o contm (RADFORD, 1997:86-87), ou seja, os argumentos de um dado Ncleo so
checados por outro Ncleo diferente (MIOTO ET AL, 1999:122-23).
Um dos exemplos de ECM no Portugus so as construes em que o Sujeito do
Verbo Infinitivo vem no Acusativo, tendo seu Caso checado pelo Verbo Finito anterior,
conforme podemos ver em (4) abaixo. Tais construes so comumente chamadas pelas
gramticas tradicionais de Acusativo com Infinitivo, ou ACI.
4 Os autores definem a Regncia como sendo uma relao em que um ncleo N, A, V, P ou F m-comanda um outro que no esteja protegido por uma barreira, sendo o m-comando definido como uma relao de no dominncia de um ncleo sobre o outro, em que cada projeo mxima dominante de um dos ncleos tambm domina o outro. (MIOTO ET AL, 1999:139-40) 5 Resolvemos adotar a sigla em ingls para a marcao excepcional de caso, diferentemente do que temos feito para os demais rtulos do gerativismo tais como SFs e SDs por no havermos encontrado na literatura referncias mesma sigla em portugus.
(4) Tenho at um amigo a que viajou pra Frana e me viu abrir ostra e disse: eu vou trazer de l um abridor de ostra. E trouxe. (PEUL/UFRJ 03m56a4efcomp)
O outro exemplo so as construes em que o Sujeito do Verbo Infinitivo vem no
Caso Oblquo, checando o Caso com a Preposio anterior, qual seja, a Preposio para.
Mioto et al. tratam o problema a partir de um par de exemplos em que aparecem tanto o
Pronome Nominativo como Sujeito do Verbo Infinitivo, quanto o Oblquo. Vejamos:
(23) a. A Maria fez palhaadas para eu rir.
b. A Maria fez palhaadas para mim rir. Embora gramticos tradicionais policiem severamente os falantes para no produzirem (23b), esta sentena gramatical. O que incomoda profundamente esses gramticos o fato de o Pronome Sujeito do Verbo rir aparecer na forma oblqua mim. Em termos mais tcnicos, o incmodo resulta de uma atribuio de Caso que envolve a preposio como ncleo atribuidor e o DP preenchido pelo Pronome como receptor. O Pronome no consegue disfarar que se trata do Caso Oblquo. (23a) no traz desconforto porque evidencia uma marcao cannica de Caso: o ncleo I do Infinitivo pessoal marca casualmente o Pronome cuja forma deixa ver o Caso nominativo. Em (23b), temos em mos uma marcao casual que no cannica, no sentido de que ela no acontece na configurao ncleo-complemento, como fazem normalmente as preposies e os Verbos. Observe que no exatamente o complemento que est recebendo o Caso da preposio em (23b); o complemento da preposio no o Pronome mim mas uma sentena infinitiva, que em princpio no necessita de marcao casual. Porm, o Pronome mim, argumento externo de rir, que est sendo marcado por Caso pela preposio. Esta a razo pela qual dizemos que a marcao excepcional. (MIOTO ET AL, 1999:125)
Descrita a situao da ECM, os autores passam a se preocupar em explicar porque,
j que a construo com o Pronome Oblquo considerada gramatical, a construo com o
Nominativo tambm o . Assim, propem que haja, para (23a), um SC vazio entre o ncleo
P e o SF que tem como Spec o Pronome de Primeira Pessoa, o qual seria responsvel por
quebrar a localidade da atribuio de Caso. A existncia de tal SC seria comprovada pelo
fato de que a orao infinitiva em questo poderia ser desenvolvida em uma orao com
Verbo no Subjuntivo, introduzida por um ncleo C (o que).
Alm disso, postulam que o Infinitivo de sentenas em que o Pronome aparece no
Nominativo seria pessoal, enquanto que o de sentenas em que o Pronome aparece no
Oblquo seria impessoal. Visto que o caso Nominativo s pode ser atribudo por um
Ncleo [+ agr], o fato de o Infinitivo do exemplo (23a) de Mioto ser pessoal corrobora a
existncia do SC vazio no sentido de impedir a ocorrncia de ECM, pois, caso ela
ocorresse, nessa configurao da sentena, feriria no s a localidade da atribuio de
Caso, mas tambm a minimalidade, j que h um Ncleo no SF, o qual tem o Sujeito como
Spec, que garante a relao de Regncia.
Assim sendo, temos na verdade duas estruturas totalmente diferentes para os
exemplos em (23) do Manual de Sintaxe. Uma primeira em que h no SF2 um Infinitivo
pessoal, capaz de atribuir Caso Nominativo ao Pronome por ser [+ agr] e um SC vazio,
entre o ncleo P e o spec-SF, que quebra a adjacncia entre eles, impedindo a ocorrncia
de ECM. E uma outra em que o Complemento do ncleo P o SF2, ficando o Pronome
adjacente preposio, o que restaura a localidade, e sendo o Infinitivo impessoal, portanto
[- agr], o que impede que ele atribua ao Pronome Caso Nominativo.
As duas estruturas descritas acima seriam gramaticais na Lngua Portuguesa e
poderiam ser representadas pelas seguintes rvores que se seguem nas figuras 1 e 2.
Figura 1 Marcao Cannica de Caso.
Figura 2 Marcao Excepcional de Caso
Sem dvida a descrio proposta pela teoria gerativa bem mais consistente do que
as prescries da gramtica normativa, porm, mesmo assim, ela ainda no satisfaz o
objetivo deste trabalho, que o de buscar uma explicao para o uso da Construo para +
mim + infinitivo. A proposta de Mioto de fato muito bem estruturada e muito bem
amparada pelos princpios postulados por Chomsky no Minimalismo (CHOMSKY, 1995),
mas no passa de uma descrio do fenmeno.
Se buscarmos nessa proposta uma explicao para o problema, chegaremos a uma
argumentao circular. Afirmaremos que o Infinitivo nas construes com o Pronome
Nominativo pessoal porque atribui Caso Nominativo ao Pronome e que o Pronome est
no Nominativo porque o Infinitivo pessoal e, portanto, [+ agr]. Ou ento, afirmaremos
que h um SC vazio entre o ncleo P e o SF2 porque a Preposio no est atribuindo Caso
Oblquo ao Pronome e que a Preposio no atribui Caso Oblquo por estar o SF2
bloqueado por um SC.
Mesmo que consideremos as outras evidncias da existncia do SC vazio
principalmente aquela que diz haver para a orao infinitiva uma contraparte desenvolvida
com Verbo Finito no Subjuntivo e com um C que veremos que trata-se de uma
construo completamente diferente que, definitivamente, no indica o mesmo sentido da
construo que analisamos. E mesmo que nos satisfizssemos com as justificativas para
conceber as estruturas que representamos nas figuras 1 e 2, ainda assim tais explicaes
no nos diriam nada sobre os aspectos semnticos destas construes.
A descrio gerativista se apresenta como uma tima descrio, como o prprio
nome j diz, mas no como uma explicao satisfatria para o problema porque se
concentra em suas caractersticas formais e em razes profundamente internas prpria
teoria. Conforme veremos no captulo 4, a proposta da existncia de duas construes
diferentes insustentvel quando trocam-se o falante-ouvinte ideal e os exemplos
inventados pelos dados reais de fala, enunciados por pessoas de carne, osso e capacidade
sociocognitiva exercida, de fato, na vida.
3- ELEMENTOS DE LINGSTICA COGNITIVA A LINGUAGEM VISTA
COMO UM PROCESSO DE PROJEES ENTRE DOMNIOS
Dada nossa insatisfao com as formas at aqui expostas de tratar nosso objeto de
estudo, chegada a hora de apresentarmos o instrumental terico que sustentar nossa
abordagem para o tratamento da Construo para + mim + infinitivo. J sabemos que essa
abordagem no pode trazer consigo o carter prescritivista da gramtica tradicional,
duramente criticado neste trabalho, e nem restringir-se descrio formal do fenmeno.
Sendo assim, buscamos uma proposta terica que seja capaz tanto de oferecer uma boa
descrio para a Construo quanto de tratar das questes semnticas e histricas
envolvidas em sua gnese.
Frente s nossas necessidades, optamos por trabalhar a anlise do nosso objeto de
estudo sob o foco da Lingstica Cognitiva, mais especificamente, sob o foco da Hiptese
Sociocognitiva da Linguagem (SALOMO, 1997; 1999). Para tanto, faz-se necessrio que
revisitemos alguns conceitos desenvolvidos por essa corrente do pensamento lingstico,
quais sejam aqueles que empregaremos diretamente em nossas anlises ou que subjazam a
elas. No nossa inteno fazer uma reviso terica completa da Lingstica Cognitivista
da Califrnia podendo quem a busca encontr-la, realizada sob diversos olhares, em
inmeras outras excelentes dissertaes de mestrado na perspectiva cognitivista,
produzidas pelo Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal de Juiz de
Fora.
Dessa forma, passaremos a apresentar os elementos tericos da Lingstica
Cognitiva que embasam nossas anlises, comeando pela Teoria da Integrao Conceptual
ou Mesclagem conforme desenvolvida em Fauconnier e Turner (2002) e suas
implicaes para os demais aspectos tericos a serem discutidos neste trabalho. Faremos
ainda um percurso pela noo de Construes Gramaticais, comeando pelo texto de
Goldberg (1995), no qual veremos a sistematizao no processual de tal noo e chegando
tese de Mandelblit (1997), que, aliando a noo de Construes de Integrao
Conceptual, prope uma viso mais interessante para o problema. Revisitaremos, tambm,
abordagens da Mudana Semntica, conforme definidas por Sweetser (1990) e Fauconnier
e Turner (2002), que abriro as portas para nosso tratamento analtico da expresso para +
mim + infinitivo.
3.1- Os Processos Cognitivos como Projees entre Domnios
Processos cognitivos so projees entre domnios6, sejam eles de natureza
conceptual, simblica ou comunicativa. Quando processamos algum tipo de informao
em um processo de interao, ativamos espaos mentais e realizamos projees seletivas
entre eles, criando, com base em domnios previamente ativados, novos domnios. A esse
processo chamamos de mesclagem e sobre ele que nos ocuparemos de falar agora.
J em 1996, Fauconnier e Turner escrevem sobre a centralidade do processo de
mesclagem em relao gramtica no artigo Blending as a central process in grammar,
mas em 2002 que publicam uma obra definitiva sobre o assunto. Em The Way We Think
Conceptual Blending and The Minds Hidden Complexities, os autores postulam que os
processos cognitivos humanos se do atravs da ativao de espaos mentais em redes que
se constroem pela projeo seletiva de elementos advindos de certos espaos para outros.
Cada rede formada por, no mnimo, quatro espaos mentais, sendo um espao genrico,
dois espaos-fonte e um espao-mescla.
No espao genrico aparecem as caractersticas compartilhadas pelos espaos-
fonte, ou seja, o esquema geral do processamento a ser realizado. Dessa forma, ele se
apresenta como uma forma de domnio estvel, configurado de maneira mais abstrata que
os demais espaos, uma vez que se baseia, de acordo com Salomo, em expectativas
bastante desencarnadas e por isso muito mais flexveis em suas aplicaes (SALOMO,
1999:30).
Nos espaos-fonte encontra-se a estrutura dos dois elementos a serem integrados.
Tratam-se de dois espaos mentais, que podem consistir em domnios estveis, tais como
os Modelos Cognitivos Idealizados7, ou de domnios locais, ativados no momento da
interao. a partir desses espaos que sero realizados os mapeamentos entre os
domnios e as projees seletivas que geraro o espao-mescla.
neste ltimo, no espao-mescla, que surge o resultado dessa integrao
conceptual. Por ser produto de uma integrao dos espaos-fonte, o espao-mescla possui
6 Na literatura considerada, domnio designa grosso modo aquilo que tambm se trata como frame: estruturas organizadas de memria, na forma de cenas conceptuais (mais especificadas ou mais genricas); enquadramentos comunicativos destas mesmas cenas; molduras interacionais. No trivial que o termo frame seja usado por Minsky (para tratar de esquemas conceptuais), por Fillmore (para tratar, irrespectivamente, de esquemas lexicais ou semnticos) e por Goffman (para referir arranjos entre papis comunicativos, no curso de uma interao). 7 Para uma boa definio de MCIs vide MIRANDA, op. cit.
elementos de ambos combinados de forma diferente, o que o torna distinto dos outros
espaos da rede. Essa mesma combinao dos diferentes elementos faz surgir na mescla o
que os autores chamam de estrutura emergente, a qual no se encontra em nenhum dos
espaos-fonte. importante ressaltar que nem todos os elementos dos espaos-fonte sero
obrigatoriamente projetados para a mescla, sendo as projees seletivas algo de
importncia central para a teoria.
Acompanhando os processos de mapeamento e projeo entre domnios, temos
ainda processos de estabelecimento e Compresso de Relaes Vitais, as quais podem ser
definidas como sendo relaes conceptuais de grande importncia que regulam nossos
processos de Integrao Conceptual. So elas que guiam os processos de Mesclagem,
possibilitando-nos atingir uma viso global em escala humana dos processamentos
conceptuais, o que nos torna mais eficientes e criativos (FAUCONNIER & TURNER,
2002:92)
As Relaes Vitais aparecem assim rotuladas pela primeira vez na obra de 2002,
mas no podemos dizer que no tenha havido intuies prvias sobre as mesmas em
trabalhos anteriores de Fauconnier e Turner. A nica diferena reside no fato de que
anteriormente, tais relaes eram tratadas como conexes entre os espaos e no haviam
sido definidas ainda com tamanha exatido.
So quinze os tipos de relaes vitais, quais sejam, Mudana, Identidade, Tempo,
Espao, Causa-Efeito, Parte-Todo, Representao, Papel, Analogia, Desanalogia,
Propriedade, Similaridade, Categoria, Intencionalidade e Unicidade. E o mais
interessante a se dizer sobre todas o fato de que podem passar e, freqentemente, passam
por processos de compresso, os quais podem envolver uma ou mais de uma delas.
Cabe aqui um exemplo que possa demonstrar como realizamos compresses de
relaes vitais e como tais compresses nos tornam mais eficientes e criativos. Sendo
assim, transponhamos o abismo que tende insistentemente a ser colocado entre os estudos
literrios e os lingsticos e analisemos Dom Casmurro, de Machado de Assis, como um
timo exemplo de Compresso de relaes vitais.
Pois bem, qualquer pessoa minimamente iniciada na Literatura Brasileira sabe,
mesmo que tenha apenas lido o resumo do livro, que o mesmo escrito por um homem, o
prprio Dom Casmurro, que se prope contar sua histria de vida junto com sua amada
Capitu, partindo de sua infncia at chegar idade adulta. Nossa hipottica pessoa
minimamente iniciada sabe tambm que a grande questo discutida no livro o adultrio
supostamente cometido por Capitu e que, na verdade, todo o texto uma argumentao
muito bem construda que visa a demonstrar que, desde pequena, ela j apresentava
indcios de que trairia Bento Santiago.
Eis a a grande Compresso de Relaes Vitais que estrutura todo o romance. Bento
Santiago, autodenominado Dom Casmurro, conta sua histria no intuito de encontrar
razes que justifiquem sua crena na traio de Capitu e Escobar, comeando por busc-las
ainda na infncia. Ora, nesse caso a compresso de Mudana em Identidade fica bastante
clara: se acredita-se que uma atitude na idade adulta tenha suas causas na infncia, logo,
assume-se que o indivduo em questo continua o mesmo, apesar de todos os anos que o
separam nos dois momentos. Dessa forma, as mudanas pelas quais o indivduo passou
durante seu amadurecimento, as quais j so um resultado da compresso da Desanalogia
entre as vrias fases da vida em Mudana, so comprimidas em Identidade e Unicidade.
Ou seja, h um nico indivduo que ao mesmo tempo um adulto adltero e uma criana
em cujas aes da infncia esto as indicaes dos atos posteriores.
No captulo final do livro, h uma passagem que demonstra como essa compresso
de relaes vitais, acima demonstrada, em relao a Capitu de fato organiza o romance.
Escreve Dom Casmurro que
O resto [do livro] saber se a Capitu da praia da Glria j estava dentro da de Mata-cavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso ou incidente. (...) Mas eu creio que no, e tu concordars comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hs de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca. (ASSIS, 1996:160)
Vez que j demonstramos a questo da compresso das relaes de Mudana,
Identidade e Unicidade em relao Capitu, passemos agora a analis-las em relao a
Bento Santiago, personagem principal e narrador da histria. Vejamos, da mesma forma
que faz em relao sua infiel esposa, o personagem Dom Casmurro tambm busca na sua
infncia causas e justificativas para acontecimentos de sua vida adulta.
Algo que chama muito a ateno em relao ao personagem-narrador Dom
Casmurro justamente o fato de ele o ser, ou seja, ser ao mesmo tempo personagem e
narrador. Note-se que o prprio ttulo de personagem-narrador j uma enorme
compresso de Identidade em Unicidade, afinal, temos dois entes um narrador e um
personagem que interagem e se sobrepe ao contar a histria. Por isso no nos possvel
afirmar se quem narra os fatos em Dom Casmurro de fato um simples narrador ou um
personagem advogando em causa prpria. Em termos bakhtinianos, a polifonia presente
nesta obra machadiana demonstra claramente a compresso de identidades distintas em
uma nica.
Alm disso, e agora falamos mais do personagem do que do narrador, Bento
Santiago em si uma grande mescla, sendo que muitas vezes deixa escapar
conscientemente no texto suas projees seletivas. Observemos este trecho do captulo 2:
Um dia, h bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as indicaes que lhes fiz: o mesmo prdio assobradado, trs janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. (...) O mais tambm anlogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poo e um lavadouro. Uso loua velha e moblia velha. Enfim, agora, como outrora, h aqui o mesmo contraste da vida interior, que pacata, com a exterior, que ruidosa. O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescncia. Pois, senhor, no consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto igual, a fisionomia diferente. Se s me faltassem os outros, v; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna tudo. (ASSIS, 1996:18)
possvel notar claramente neste trecho que o personagem de Bento tenta
recuperar sua adolescncia atravs de uma compresso da Relao Vital de Espao ao
reproduzir sua casa. Trata-se de um personagem que afirma ter lacunas em sua identidade e
que reconhece as mudanas ocorridas ao longo de sua vida como desanalogias. Enquanto
apresenta incrvel facilidade em comprimir a Desanalogia em Mudana e esta em
Identidade no caso de Capitu, Dom Casmurro tem dificuldades em fazer isso em relao a
ele mesmo. Sua sensao de falta de si mesmo deve-se ao fato de no conseguir comprimir
os vrios momentos de sua vida em Mudana e tal Mudana em uma Identidade nica: ele
mesmo. Dom Casmurro a busca de Bento Santiago pelas compresses no realizadas e
por um sentido para seu atual estado de vida.
O sucesso e a grandeza dessa obra residem no brilhantismo do escritor em
representar os complexos processos que corroboram na formao de nossa identidade sob
diversos focos, desde a compresso total da Identidade de Capitu, passando pela unicidade
polifnica de narrador-personagem, at os questionamentos interiores do desanlogo Dom
Casmurro.
Alm das Compresses das Relaes Vitais, os processos de mapeamento entre os
espaos e de projeo para a mescla sero responsveis pela configurao das redes de
integrao conceptual em cinco tipos diferentes: Redes Simplssimas; em Espelho; de
Escopo nico; de Escopo Duplo e de Escopo Mltiplo. A partir de agora veremos cada
uma delas atravs de exemplos, o que nos ajudar, no s a entender melhor tal
classificao, mas tambm contribuir para familiarizar o leitor com as representaes
grficas de tais processos.
Comeando pela Rede Simplssima, tomemos como exemplo uma sentena
cotidiana do tipo Luiz pai de Paulo representada na Figura 3.
Figura 3 Rede de Integrao Conceptual Simplssima
Conforme explicamos anteriormente, cada rede deve possuir, no mnimo, quatro
espaos mentais e, no caso das simplssimas, so apenas quatro os espaos envolvidos.
Cada espao acima representado por uma elipse, sendo que, no espao genrico, temos o
esquema geral do processamento, ou seja, o campo semntico no qual vai se desenvolver a
mesclagem. Nos dois espaos-fonte temos os elementos a serem mesclados. Nesse caso, e
isso o que caracteriza esta rede como sendo uma rede simplssima, temos em um dos
espaos apenas os valores, ou seja, os elementos concretos envolvidos, enquanto no outro
aparecem apenas o esquema conceptual evocado, neste caso, o da paternidade, que se
constitui de dois lugares: dois papis funcionais, pai e filho. O segundo papel (filho)
evocado do esquema inferencialmente. O mapeamento ocorrido se d de um valor para
uma funo do esquema. Esse tipo de mapeamento caracterstico das redes simplssimas.
Na ltima elipse est representado o espao-mescla, no qual os valores Luiz e Paulo j se
encontram mapeados aos papis de pai e filho, respectivamente.
As linhas que h entre os espaos demonstram as projees realizadas durante o
processo de mesclagem. Podemos notar que elas representam o mapeamento valor-papel
Ser humano
pai
filho [w]
Luiz
Paulo
paiy Luiz
filho[w] Paulo
valores Esquema de parentesco
genrico
mescla
entre os inputs, o que indica a principal relao vital existente nesta rede. As linhas que
ligam os espaos fonte mescla mostram as projees que foram feitas daqueles para esta
e as que os ligam ao espao genrico demonstram que os espaos-fonte compartilham com
o genrico o campo semntico em questo. No h choques entre os espaos e nem
compresses realizadas entre os mesmos, vez que h apenas um esquema organizador e o
mapeamento feito de valores para papis na proporo de um para um.
Passemos agora a analisar um outro tipo de rede: a rede em espelho. Em tais redes,
tanto o espao genrico, quanto os espaos-fonte e tambm a mescla compartilham um
esquema ou frame organizacional (FAUCONNIER & TURNER, 2002:122).
Diferentemente das redes simplssimas, em que h um espao que contm o esquema e
outro com os valores, o que temos agora so dois espaos em que h um esquema e os
respectivos valores. Como exemplo para tal tipo de rede, podemos citar um famoso slogan
de uma antiga campanha publicitria da Vodka Orloff, em cujas propagandas televisivas
sempre ocorriam encontros inusitados entre um determinado indivduo e ele mesmo. Em
tais encontros, o indivduo em questo sempre se apresentava de duas formas bem
distintas, uma, a do presente, em que poderia ser apontado por qualquer um como uma
pessoa qualquer, com indcios de fracasso, e a outra, a do futuro, em que aparentava ser
uma pessoa de sucesso, sempre rodeado de belas mulheres. Surpreso com o encontro
consigo mesmo, o indivduo sempre perguntava nas propagandas quem era aquele que
compartilhava sua aparncia, ao que o outro respondia: Eu sou voc amanh.
Tal mudana de status era atribuda na propaganda ao consumo da vodka e recebia
o nome sugestivo de o efeito Orloff. Ora, temos claramente neste exemplo o recrutamento
de dois espaos-fonte que compartilham um mesmo esquema organizador e valores
distintos, uma vez que um deles retrata o momento presente enquanto o outro demonstra
uma situao no futuro. Quando mesclados, temos acesso projeo que explica o referido
efeito, ou seja, temos os dois indivduos comprimidos em um s, naquele do futuro, que j
colheu os frutos do consumo da bebida. Atravs dessa projeo, o indivduo do presente
pode tambm atingir o status de sucesso, desde que tenha consumido a vodka.
H ainda que se considerar neste ponto o fato de quem consome bebida alcolica,
no dia seguinte tende a acordar pior do que estava antes. A sugesto aqui de que,
consumindo Orloff, o indivduo acordar melhor. Eis outra mescla, esta por Desanalogia.
Vejamos, por fim, a representao grfica da rede:
Figura 4 Rede de Integrao Conceptual em Espelho
Outro tipo de rede de integrao conceptual que podemos encontrar so as de
escopo nico. Neste tipo de rede, cada espao-fonte apresenta um esquema organizador,
mas, no momento da integrao, apenas um deles prevalece, enquadrando o outro. As
redes de escopo nico so muito comuns em metforas tais como aquelas que encontramos
na obra de Lakoff e Johnson (2002) [1980]. Quando dizemos, por exemplo, Ao longo da
minha vida, encontrei muitas pedras no caminho estamos usando uma dessas metforas,
mais especificamente aquela atravs da qual o tempo conceptualizado como espao e a
vida conceptualizada como uma viagem. Vejamos a representao dessa rede abaixo:
Homem Futuro
Beber Vodka Sucesso
fonte 2 fonte 1
genrico
mescla
Identidade Tempo Status
Homem Presente
Bebe Vodka Fracasso
Homem Futuro
Sucesso
Figura 5 Rede de Integrao Conceptual de Escopo nico
Podemos notar acima que temos em cada um dos espaos-fonte um esquema de
escalas, sendo uma de tempo e outra de espao. Porm, ao realizarmos as projees
seletivas para o espao-mescla, notamos que o espao-fonte 2 quem fornece o esquema
organizador, apesar de ser possvel fazer referncia aos dois espaos.
Por fim, o ltimo tipo de rede de integrao conceptual proposto por Fauconnier e
Turner (2002) seria a de escopo duplo. Segundo os autores a nossa capacidade de realizar
as integraes conceptuais deste tipo que nos diferencia dos outros animais, que nos faz
viver como vivemos e que nos permitiu desenvolver evolutivamente a capacidade da
linguagem. As redes de escopo duplo caracterizam um processo de integrao conceptual
em que os dois espaos-fonte contribuem com esquemas organizadores que se mesclam,
para construir um novo enquadre.
Um excelente exemplo deste tipo de rede, dado pelos autores supracitados no
captulo 13, a nossa forma de conceptualizar os vrus de computador. Se olharmos com
ateno, veremos que este conceito organizado por dois enquadres diferentes, o da
informtica e o da biologia. Um vrus de computador um programa desenvolvido por
algum iniciado em linguagens de programao que serve para danificar o computador de
Vida/Caminho Tempo/Espao
Envelhec./Desloc. Probl./Pedras
fonte 2 fonte 1
genrico
mescla
Escala
Vida Tempo
Envelhec. Problemas
Viagem Espao
Desloc Linear Pedras
algum, ou torn-lo vulnervel a outros tipos de ataque. Em ltima anlise, trata-se de uma
seqncia de nmeros e algoritmos que, interagindo com outros algoritmos do sistema
operacional acabam por gerar as conseqncias que todos conhecemos.
Porm, mesmo sendo um algoritmo, um vrus de computador da o nome vrus
guarda muitas semelhanas com os vrus biolgicos, quais sejam sua capacidade de invadir
um sistema, sua replicabilidade, sua capacidade de desordenar o sistema invadido e
tambm a de causar-lhe danos.
Essa semelhana to grande e a mesclagem dos enquadres to evidente que todo
o vocabulrio utilizado no mundo da informtica para se referir a este tipo de algoritmo
advindo da biologia. Voc pode instalar um programa antivrus no seu computador para
proteg-lo dos vrus, ou aplicar vacinas contra os mesmos. Caso no seja possvel
desinfectar o arquivo, o programa pode coloc-lo em quarentena, at que se descubra uma
soluo para a infeco.
Outro excelente exemplo de redes de integrao conceptual de duplo escopo o
signo lingstico. Signos tambm so projees entre domnios, quais sejam um fnico-
articulatrio e um conceptual. A mesclagem entre as diversas instanciaes destes dois
domnios d origem aos diversos signos que compem uma dada lngua. E neste caso no
estamos nos restringindo apenas aos signos lxicos, mas tambm a qualquer estrutura
sinttica, uma vez que acreditamos que toda regra sinttica nada mais que um signo
lingstico aberto, em que os valores que ocuparo os domnios envolvidos no processo de
mesclagem podem ser preenchidos a partir da seleo de outros signos mesclas que
existam no inventrio da lngua.
A tese da centralidade da mesclagem de duplo escopo em nosso processamento
lingstico no se restringe a esta breve explanao que fizemos acima sobre o signo.
Fauconnier e Turner (2002) dedicam um captulo inteiro de seu livro mais recente o de
nmero nove postulao de uma hiptese para a origem da linguagem humana
totalmente centrada no desenvolvimento de nossa capacidade de realizar integraes desta
natureza.
A partir deste postulado, passaremos a definir melhor a noo de construes
gramaticais que podem ser vistas, nessa nova perspectiva, como signos lingsticos, uma
vez que so formadas por pares de forma e sentido que so integrados em um esquema
lingstico.
3.2- A Gramtica das Construes
Toda vez que nos referirmos a construes neste trabalho, o faremos com base nos
conceitos apresentados por Goldberg (1995), que, seguindo o caminho terico previamente
trilhado por Fillmore, Kay, Lakoff e outros partidrios da Lingstica Cognitiva, define o
que seja uma Construo da seguinte forma:
C uma Construo sse C um par foma-sentido de tal forma que algum aspecto de Fi ou algum aspecto de Si no estritamente preditvel a partir das partes componentes de C ou a partir de outras construes previamente estabelecidas. (GOLDBERG, 1995:4)8
Atravs desta definio to sucinta, Goldberg firma a pedra fundamental de onde
derivaro as implicaes tericas da Gramtica das Construes. Salta aos olhos, a partir
desta definio, o ponto principal de dissidncia desta abordagem em relao s outras
gramticas, ou seja, a negao da Hiptese Forte da Composicionalidade. Ao dizer que os
aspectos do sentido no so preditveis a partir das partes que compem uma Construo,
esta proposta rompe com este paradigma e inaugura um novo, em que a soma dos
significados das partes, definitivamente, no igual ao significado do todo. O que no
significa porm dizer que no seja possvel fazer generalizaes. A diferena aqui que,
por no serem os elementos lexicais os nicos a contribuir com os significados, e por
reconhecer-se tambm a parcela de significado trazida pela prpria Construo, no
preciso postular n significados diferentes para uma mesma entrada lexical. Basta
considerar que um dado Verbo, por exemplo, possui um sentido bsico que ser adequado
Construo em que o mesmo figurar.
Dentro desta perspectiva, surgem outros aspectos de diferenciao terica, tais
como a adoo de uma viso de continuidade entre o lxico e a sintaxe: dentro da
Gramtica das Construes os elementos lxicos tambm so vistos como Construes,
pois, assim como as seqncias sintticas, compem-se de pares forma-sentido, sendo
porm menos complexos e menos extensos fonologicamente.
Outro ponto diferencial desta abordagem a negao da diviso absoluta entre
semntica e pragmtica: fatores tradicionalmente pragmticos, como topicalizao, so
considerados juntamente com os tradicionalmente semnticos, como os papis .
Alm disso, a abordagem construcional da gramtica evita a circularidade que
postula regras lexicais para explicar a seleo argumental de Verbos ao mesmo tempo em 8 Todas as tradues de citaes deste trabalho so de autoria e responsabilidade do autor.
que define quais sejam tais regras a partir da prpria seleo argumental. Na Gramtica das
Construes trata-se a seleo argumental como algo que no depende exclusivamente do
Verbo, mas que est tambm associado ao esquema da Construo. Cabe ao Verbo, com
base em seu ou seus significado(s) bsico(s) integrar-se ao significado da Construo
(GOLDBERG, 1995:11).
Desta forma, pode-se dizer que em cada Construo ocorre uma integrao entre o
esquema de significado9 do Verbo e o esquema de significado da Construo. Entre os
elementos que fazem parte do esquema de significado do Verbo, temos a definio dos
papis de participante, ou seja, aqueles envolvidos no significado bsico do mesmo.
Assim, por exemplo, no Verbo chutar teramos dois papis de participantes: o chutador e o
objeto chutado. Tais papis de participantes no devem ser confundidos com os papis
argumentais, ou papis-. Estes so definidos pela Construo e tm como exemplos os
papis de Agente, Paciente, Tema, Experienciador etc.
Quando da produo de uma dada Construo estes esquemas se integram para que
o esquema final de significado possa ser formado. Assim, imaginemos que algum dissesse
O menino chutou a bola na janela. Teramos portanto a integrao de dois esquemas: (a) o
do Verbo chutar, que, conforme vimos, envolve um chutador o menino e um objeto
chutado a bola e (b) o da Construo de Movimento Causado que envolve um
Agente, um Paciente e um Alvo. Assim, a representao de tal Construo segundo
Goldberg (1995) seria da seguinte forma:
Figura 6: Representao da Construo de Movimento Causado
Na primeira linha vem representado o esquema semntico da Construo, com seus
papis temticos; na segunda o esquema do Verbo e seus papis de participantes e, na
9 Ao nos referirmos esquemas de significado, estamos, assim como Goldberg, adotando a noo de esquema encontrada em Fillmore (1977b) de que toda designao semntica feita com base em referncias a um enquadre que envolve conhecimentos prvios em relao ao mundo organizado segundo a cultura a que o indivduo pertence.
Sem: CAUSAR-MOVER < agente paciente alvo > R: chutar < chutador chutado direo > Sint: V Suj. Obj. Obl.
ltima, o lado formal do pareamento forma-sentido da Construo, ou seja, a configurao
sinttica que a mesma assume.
Ora, sem dvida esta representao merece algumas explicaes que ainda no
foram dadas por ns. Pois bem, j dissemos que h uma integrao entre os papis
argumentais trazidos pela Construo e os de participantes, trazidos pelo Verbo. Tal
integrao se d obedecendo a dois princpios: (a) o da Coerncia Semntica e (b) o da
Correspondncia. O primeiro reza que apenas papis que sejam semanticamente
compatveis podem ser integrados, ou seja, os papis de participantes devem ser
instanciaes dos papis argumentais aos quais sero integrados; desta forma, o chutador
s poderia ser integrado ao Agente, vez que aquele uma instanciao deste. J o segundo
princpio afirma que todos os participantes selecionados pelo Verbo devem ser integrados a
papis argumentais da Construo.
interessante notar na Figura 6 que a Construo contribui com um papel
argumental que no possua correspondncia direta e imediata com algum papel de
participante do esquema bsico do Verbo. Isso perfeitamente possvel. Muitas vezes as
construes contribuem com papis argumentais que sero preenchidos ou no, quando da
fuso, por elementos selecionados pelo Verbo. Quando dissemos mais acima que o Verbo
tem um significado bsico que se integra ao da Construo nos referamos tambm a essa
questo. Muitas vezes uma Construo pode alterar o esquema bsico de um Verbo, o qual
modifica o seu significado ao integrar-se a ela.
Uma vez postulado ento que as construes podem contribuir com papis
argumentais que no sejam previstos em suas instanciaes no esquema bsico do Verbo,
faz-se necessrio postular a existncia de esquemas construcionais anteriores sua
amalgamao aos esquemas verbais. Segundo Goldberg (1995:39) as construes derivam-
se de um conjunto finito de cenas ou eventos bsicos que delineado para cada lngua.
Assim, surge a Hiptese da Codificao das Cenas, segundo a qual:
Construes que correspondem a tipos bsicos de sentenas codificam, como seus significados centrais, tipos de eventos que so bsicos para a experincia humana. (GOLDBERG, 1995:39)
As construes bsicas esto associadas aos Verbos mais bsicos de uma dada
lngua, justamente queles que so aprendidos em primeiro lugar pelas crianas. Neste
sentido interessante mencionarmos o item 2.3.2 da obra de Goldberg, em que a autora
retoma estudos da Psicolingstica que visavam a demonstrar quais Verbos eram
aprendidos em um primeiro momento pelas crianas. Ela nos mostra que estes Verbos
representam cenas cotidianas relevantes para a experincia humana, ou seja, representam
uma construo bsica. O que a criana faz , portanto, associar um conceito bsico que ela
j domina a uma dada forma verbal (GOLDBERG, 1995:41-43).
Prosseguindo com seu tratamento terico das construes, no captulo 3 de seu
livro Constructions, Goldberg (1995) prope a noo de Links entre Construes, para
explicar o surgimento de novas construes a partir daquelas mais bsicas, existentes na
lngua. Nesse sentido, afirma que construes que possuem algum tipo de semelhana
sinttica, ou seja, que guardam algum tipo de relao entre suas formas, esto ligadas entre
si por um dado link de herana. Alm disso, Goldberg tambm afirma que tais relaes
entre as construes seguem quatro princpios organizacionais.
O primeiro princpio o da Motivao Maximizada, segundo o qual, se uma dada
Construo sintaticamente relacionada a outra, ento, seu sistema motivado, ou seja,
ela tambm se relaciona com a outra semanticamente. J o segundo princpio, o da No-
Sinonmia, reza que, se uma Construo diferente da outra sintaticamente, ento, ela
tambm o ser semanticamente ou pragmaticamente. Como exemplo, temos a variao
entre as vozes ativa e passiva que, se por um lado, mantm uma equivalncia semntica,
diferem pragmaticamente.
O terceiro princpio, o da Mxima Fora Expressiva, diz que o nmero de
construes existentes em uma lngua ser maximizado para atender aos propsitos
comunicativos. Ou seja, caso seja necessrio indicar ao interlocutor eventos cujas
particularidades no sejam prontamente acessveis via projees entre os domnios que
compem os signos existentes, um novo signo ou Construo ser criado na lngua
visando a atender esta necessidade. Por fim, o quarto princpio aquele que funciona como
um limitador ao terceiro. O Princpio da Economia Maximizada diz que possumos todas
as construes de que precisamos em uma lngua, mas apenas elas. Este o princpio que
evita a criao de novas construes que no sejam absolutamente necessrias, ou seja, que
no se diferenciem semntica ou pragmaticamente de suas contrues-mes.
Expostos os Princpios que regulam as relaes entre as construes, passamos a
explicar como podem-se dar essas relaes. Quatro so os tipos de Links propostos para as
relaes de herana entre construes. O primeiro so os Links Polissmicos, que ocorrem
quando novas construes so criadas como extenses de um sentido bsico. As
construes herdeiras mantm a configurao sinttica da construo base. Como exemplo
desse tipo de Link, temos as vrias construes derivadas da noo bsica de transferncia,
tais como Joo prometeu um carro pro Pedro, na qual est claro que a transferncia
considerada virtual e no real como seria o caso de Joo deu um carro pro Pedro.
Os Links de Subparte so os que ocorrem quando novas construes herdam parte
da estrutura de uma Construo-base. Como exemplo, podemos citar as Construes
Incoativas, tais como A roupa secou, que nascem de processos de herana de subparte de
Construes Causativas Resultativas, como O sol secou a roupa. J os Links de
Instanciao se do se uma dada Construo for considerada como uma realizao especial
de uma outra: exemplos deste tipo de Link so as Construes Transitivas Agentivas em
relao s Construes Transitivas Genricas.
Por fim, os Links de Extenso Metafrica so os que ocorrem quando uma dada
Construo criada atravs de um mapeamento metafrico para outra, ou seja, quando
conceptualiza-se metaforicamente algum elemento em uma dada Construo com base em
outro, de uma Construo mais bsica. Exemplos de tais links incluem sentenas como
Fulano levou toda a culpa em que levar a culpa mapeado metaforicamente para
construes em que as coisas levadas so objetos concretos (e.g. O caminho levou toda