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Universidade Federal Fluminense Departamento de Estudos Culturais e Mídia Disciplina: Sociologia e Comunicação Professora: Ana Lucia Enne Aluna: Mariana Ramos Vieira de Sousa (10957029) Trabalho final: Análise do Episódio Piloto da Série de TV Veronica Mars Neste trabalho, analisarei o episódio piloto da série de TV americana Veronica Mars, exibida pelos canais de televisão aberta UPN e The CW entre os anos de 2004 e 2006, a partir de alguns conceitos apresentados pelo filósofo, economista e sociólogo alemão Karl Marx. A série narra a história da adolescente que dá o seu nome, uma menina de classe média que reside em uma cidade onde os extremos de riqueza e pobreza vivem em um clima de constante instabilidade. Após o assassinato brutal de sua melhor amiga, Lilly Kane, Veronica é ostracizada pelo seu grupo de amigos ricos e populares e passa a trabalhar junto a seu pai, antigo xerife da cidade, como investigadora particular. A série se passa na cidade ficcional de Neptune, no sul da California, e, como nos diz a narração da personagem principal já na primeira cena, essa é uma cidade sem classe média: “Se você estuda na minha escola, seus pais são milionário ou trabalham para milionários. Se você pertencer ao segundo grupo você arranja um trabalho: fast-food, cinema, pequenos mercados”. A sequência de abertura apresenta o colégio público da cidade, palco diário das disputas entre os diferentes extratos da sociedade. Vemos um menino negro, preso com fita adesiva a um poste do estacionamento da instituição e escutamos comentários de que esta é uma ação da gangue local de motoqueiros, um grupo de garotos de classe média baixa que vivem no “lado errado” da cidade e impõem respeito através de pequenos atos de vandalismo.

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Universidade Federal FluminenseDepartamento de Estudos Culturais e MídiaDisciplina: Sociologia e ComunicaçãoProfessora: Ana Lucia EnneAluna: Mariana Ramos Vieira de Sousa (10957029)

Trabalho final:Análise do Episódio Piloto da Série de TV Veronica Mars

Neste trabalho, analisarei o episódio piloto da série de TV americana Veronica Mars, exibida pelos canais de televisão aberta UPN e The CW entre os anos de 2004 e 2006, a partir de alguns conceitos apresentados pelo filósofo, economista e sociólogo alemão Karl Marx.

A série narra a história da adolescente que dá o seu nome, uma menina de classe média que reside em uma cidade onde os extremos de riqueza e pobreza vivem em um clima de constante instabilidade. Após o assassinato brutal de sua melhor amiga, Lilly Kane, Veronica é ostracizada pelo seu grupo de amigos ricos e populares e passa a trabalhar junto a seu pai, antigo xerife da cidade, como investigadora particular.

A série se passa na cidade ficcional de Neptune, no sul da California, e, como nos diz a narração da personagem principal já na primeira cena, essa é uma cidade sem classe média: “Se você estuda na minha escola, seus pais são milionário ou trabalham para milionários. Se você pertencer ao segundo grupo você arranja um trabalho: fast-food, cinema, pequenos mercados”. A sequência de abertura apresenta o colégio público da cidade, palco diário das disputas entre os diferentes extratos da sociedade. Vemos um menino negro, preso com fita adesiva a um poste do estacionamento da instituição e escutamos comentários de que esta é uma ação da gangue local de motoqueiros, um grupo de garotos de classe média baixa que vivem no “lado errado” da cidade e impõem respeito através de pequenos atos de vandalismo.

A narração de Veronica nos guiará tanto através de seu passado e presente, quanto nos informará dos segredos e mistérios dessa comunidade que, para quem olha de fora, é um exemplo de afluência econômica e modelo para os sonhos e expectativas que constroem e informam todo o projeto de nação dos Estados Unidos, mas que esconde - ou pretende esconder – com a cooperação de diversas das intuições sociais que compõem sua estrutura, as máculas de um processo de apagamento e opressão de suas classes mais baixas.

A classe média alta da cidade deve sua riqueza às Indústrias Kane, um conglomerado tecnológico criado pelo multimilionário Jake Kane que, quando de sua oferta pública na bolsa de valores, gerou quase que instantaneamente fortunas que sustentam o estilo de vida opulente dessa classe dominante.

A empresa é a maior empregadora do local e, portanto, dita a estrutura econômica e social da comunidade, bem como as condições materiais para a existência dentro dela. Aqueles que não são acionistas das Indústrias Kane ou que não possuem altos cargos na mesma, são relegados à cargos marginais ou empregados na rede de serviços da cidade – atendentes de

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supermercado, mecânicos, etc. Outros, são empregados domésticos dessas famílias, tendo de se submeter aos caprichos de seus membros sem poder emitir opinião ou se misturar com eles.

É gritante, portanto, a separação entre aqueles que possuem os modos de produção e aqueles que compõem a força de trabalho, e esta separação gera profundas rachaduras no edifício que representa essa sociedade: sendo a base material da comunidade fundada em princípios de propriedade e desigualdade entre seus membros, as demais instituições que a compõem tendem a refletir, reproduzir e sustentar essa mesma situação.

As superestruturas desse edifício reforçam a ideologia que sustenta no poder a classe dominante: o “proletariado” local recebe um atendimento diferenciado daquele fornecido às elites, mas deve, no entanto, se manter sob controle, alienados do processo histórico, ou, então, ser controlada a força através da ação repressora de outras instituições – delegacia do xerife, colégio, etc. - que foram cooptadas pelas falsas promessas de poder e/ou posses disseminadas pela própria ideologia.

O colégio público local, onde os filhos das classes dominantes e a prole do proletariado são obrigados a conviver, é um microcosmo onde explodem as lutas de classes que ocorrem/ameaçam ocorrer, em outros setores da sociedade. E é, também, o local privilegiado para a educação dos membros da comunidade e para a disseminação dos comportamentos sociais aceitos e esperados dentro das condições materiais presentes.

Os alunos são obrigados a conviver com inspeções corriqueiras de seus armários, implementadas pelo departamento do xerife e acatadas pela administração do colégio, sobre o falso pretexto da “luta contra as drogas”. Como a própria Veronica nos informa, essas inspeções, que deveriam ser aleatórias, não o são: elas fazem parte de uma tática da classe dominante de instaurar o medo nos demais e preterir ações potencialmente subversivas.

O Xerife Lamb, como representante do poder local e responsável por executar a “lei” vigente, é um dos personagens mais interessantes da série. Jovem e ambicioso, ele nem mesmo tenta esconder suas preferências e alianças. Ao invés de promover a justiça, ele age como força de repressão das massas e trabalha de modo a manter o status quo vigente.

O pai de Veronica, Keith Mars, antigo xerife da cidade, foi deposto do seu cargo há quase um ano, quando decidiu revelar ao público as incongruências da investigação do assassinato da jovem Lilly Kane, herdeira das Industrias Kane. Para ele, o principal suspeito, que fora condenado à morte pelo assassinato da menina, Abel Koontz, funcionário da empresa, fora comprado e incriminado pela família dela de forma a esconder uma verdade muito mais macabra e que ameaçaria o “reinado” dos Kane.

Tal revelação gerou grande insatisfação por parte da classe dominante; Keith foi deposto do seu cargo e Veronica perdeu todos os seus amigos e, também, seu namorado Duncan Kane, irmão de Lilly.

Percebe-se, portanto, que aqueles que tentam utilizar-se das instituições que sustentam a ordem desigual para desautorizá-la ou questioná-la têm seus discursos apagados e são severamente reprimidos, das mais variadas formas.

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Outro fator preponderantes para a manutenção da estrutura corrente na cidade de Neptune é, exatamente, a exposição e fetichização máxima dos bens materiais adquiridos com o dinheiro obtido através da exploração da mão de obra local.

As famílias ricas residem em mansões cinematográficas, verdadeiros parques de entretenimento para os abastados, e contam com um exército de empregados para lhes servir. No colégio, os jovens dessas famílias exibem seus carros de última geração, roupas de marca, cartão de crédito sem limite de uso.

A construção visual desse divisão é feita de forma muito inteligente pelo diretor da série: Veronica se senta sozinha em uma mesa, mexendo desanimada com seu garfo em um pedaço de bolo de carne que não parece muito apetitoso. Ao seu redor, jovens como ela passam rapidamente, a imagem foi acelerada, sem ser identificados. Mas o olhar fixo da personagem nos indica o local do fetiche, o local do poder: seus antigos amigos se sentam juntos em uma mesa pouco a sua frente e recebem duas caixas de pizza especialmente para eles. Aos olhos de Veronica a cena se dá em câmera lenta. E ela, apesar de tão próxima daqueles de quem um dia havia sido bastante íntima, parece não existir. De fato, no mundo desses jovens, os demais são meros borrões em um mundo que busca lhes apagar completamente.

No entanto, apesar de sofrerem com a desigualdade instalada, a ideia de consciência de classe e a possibilidade de uma revolução total que destruísse a própria base dessa sociedade e gerasse um novo e mais igualitário edifício social não parece possível.

Mesmo os habitantes mais oprimidos de Neptune parecem aceitar com certa naturalidade a ordem das coisas. Veronica se apresenta como uma força de desestabilização, alguém que se propõe a contestar o poder da família Kane. No entanto, ela ainda é deslumbrada pela felicidade que aparentemente viveu no passado, quando a própria fazia parte, mesmo que apenas por associação, da elite.

Suas ações visam recuperar um sentimento de justiça e até, quem sabe, destruir a família Kane e outros membros ricos/poderosos da comunidade que tenham se safado de seus problemas através da influência que acumulam na cidade. No entanto, ela não contesta a estrutura em si e, quando o faz, propõe meros ajustes que, talvez, criassem uma situação mais equitativa para os envolvidos, mas que seriam insuficientes dentro de um projeto revolucionário mais extremo.

A possibilidade de embate entre opressores e oprimidos esta sempre presente. E, por vezes, esses diferentes extratos entram mesmo em disputa. Exemplo claro é quando, ao final do episódio, um dos meninos ricos, Logan Echolls, cerca Veronica na praia e começa a destruir o carro dela. Isso porque Veronica havia colocado drogas no armário de Logan e armado para que o Xerife encontrasse o conteúdo e o menino fosse suspenso.

Logan, quebrando os faróis do carro de Veronica, lhe pergunta se ela sabe porque ele esta fazendo isso. Ela brinca e desconversa e ele diz que por causa do que ela fez ele ficou sem seu carro. Nesse momento, quando Veronica está claramente a mercê de seus “inimigos” a gangue de motoqueiros chega no local. Veronica tinha ajudado a gangue com um caso criminal no qual dois dos membros tinham se envolvido e, por isso, eles lhe deviam um favor. Weevil Navarro, um menino latino e líder da gangue, quebra a picape do amigo de Logan e bate nele.

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Fica claro que, apesar de usufruir das regalias e do poder proporcionados por seu dinheiro, quando em face da possibilidade de agressão física e sem poder recorrer à outras formas de assegurar seu lugar de dominação, como o Xerife, Logan precisa se curvar momentaneamente às ações de grupos dominados.

No entanto, as ações da gangue de motoqueiros tão pouco representam uma ameaça concreta à estrutura social vigente. Weevil e seus amigos se contentam com pequenas contravenções, figurando, boa parte das vezes, como o excluído que sustenta o local dominante, mais uma das forças que alimentam a ordem. Suas ações são realizadas e, portanto, vistas não como socialmente relevantes, potencialmente revolucionárias, mas como atos de vandalismo que apenas reafirmam o local marginal das classes sociais dominadas.

Para as classes dominantes é até importante que os dominados se rebelem dentro do espaço de contravenção que lhes é designado: pequenos roubos, furtos, destruição de propriedade privada, etc. Essas ações desorganizadas e que não contestam a ideologia reafirmam a necessidade da instituição policial que existe exatamente para reprimir tais atos, apagando, mais uma vez, os discursos do proletário e reafirmando a normalidade da norma: a naturalidade do estado das coisas.

Veronica Mars é, portanto, uma série que problematiza a questão da luta de classes. Semanalmente, seus episódios tratam de problemas que acontecem por causa da desigualdade instalada na cidade de Neptune. No entanto, ela não apresenta uma saída para a questão. Em momento algum é proposta uma reforma completa das condições materiais existentes.

Seja nos momentos de reflexão de Veronica ou quando outros personagens marginais explicitam sua insatisfação com a estrutura corrente, o que se sente é que pouco pode ser feito para mudar a situação. A personagem, com ironia e uma visão de mundo cética, não nos apresenta saídas. Para ela e para os demais, apesar dos problemas que existem, há uma certa naturalidade na ordem das coisas.

Se um dia Marx passasse pelas praias do sul californiano e observasse as comunidades que ali se desenvolveram ele, provavelmente, apontaria para o império da ideologia, a naturalização das circunstâncias da desigualdade, a a-historização dos processos sociais e a alienação das classes dominadas como sintomas e reflexos de um projeto de Estado contaminado pelo imaginário do sucesso pessoal, fincado na ideia de propriedade privada e na fetichização da mercadoria. Ele diria que, enquanto tal situação permanecesse sem ser contestada, enquanto o estado de desigualdade fosse tido como natural, enquanto aqueles que sofrem mais com a ordem imposta não percebem que a única forma de se libertar e obter o que lhes é devido pela mão de obra que fornecem é através da mais completa destruição do edifício social desigual, enquanto os oprimidos permanecerem sobre o encanto dos espólios de sua própria exploração, pouco irá mudar.

Talvez, para ele, mais do que uma força de contestação, Veronica Mars seja apenas mais um canal de cooptação e alienação. Eu adoraria que ele não fosse tão duro com a heroína da série, uma vez que para mim ela já apresenta uma grande evolução dentro das possibilidades para personagens femininos dentro do restrito sistema de representação da mulher nos meios de comunicação, contudo, teria de concordar com as partes mais obviamente repreensíveis do

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discurso proposto pela série. Seja por omissão, falta de entendimento, ou mesmo de forma proposital, a série perdeu a chance de colocar em pauta de forma muito mais contundente discussões importantes a respeito da sociedade americana.