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    Entrevista 279

    eNTREVISTAS

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    AUGUSTO DE CAMPOS

    O leitor encontrar aqui um dos mais importantes artistas-tra-dutores de nossa, e de qualquer, literatura recente, abordando um

    fenmeno ainda mal explorado, em termos tericos, mas muitopraticado em diversas reas traduo intersemitica. O tpicoainda fornece um nmero pequeno de publicaes queles real-mente interessados no assunto. No Brasil, o nico livro acadmicointeiramente dedicado ao tema o de Julio Plaza, TraduoIntersemitica (Ed. Perspectiva, 1987). Jlio Bressane publicou umlivro bastante ensastico,Alguns (Ed. Imago, 1996), que tambmmerece referncia. H o nmero especial da revista Versus, edita-do por Dusi & Nergaard (2000), e Umberto Eco (Ed. Record, 2007)dedicou um captulo de seu Quase a mesma coisa ao tpico. O fen-meno foi inicialmente descrito como transmutao de signos (cf.Jakobson 1959) de um sistema semitico (verbal) para outro siste-ma, de diferente natureza.

    Cuidadosamente atento s diversas camadas de organizao edescrio do signo traduzido, Augusto de Campos tem desenvolvi-

    do projetos de traduo intersemitica em colaborao com artis-tas visuais, msicos e compositores, tericos e cientistas da com-putao. Nesta entrevista, ele trata com a acuidade de um tericoexperimentado detalhes importantes das principais colaboraes quetravou nos ltimos anos.

    Joo Queiroz (Instituto de Artes e DesignUFJF; www.semiotics.pro.br)

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    Joo Queiroz: Voc o poeta de sua gerao que mais sistematica-mente recriou material lingstico em outros sistemas semiticos,operao definida por Roman Jakobson (1959) como traduointersemitica. Seu interesse por projetos de traduointersemitica cobre um perodo de mais de 50 anos de experimen-tos, e inclui exemplos de colaborao com msicos, artistas visu-ais, e cientistas da computao. Ao mesmo tempo, reconhecida

    sua prtica de traduo interlingstica de muitos idiomas e tradi-es literrias. Gostaria de comear pedindo para que voc relaci-one estas atividades, traduo interlingustica e traduointersemitica, em termos gerais, e em sua prpria obra.

    Augusto de Campos: Diferentemente de meu irmo Haroldo, ou deDcio Pignatari (que introduziu o estudo da semitica entre ns),

    ou, mais adiante, de Julio Plaza, no sou um terico da disciplina.Sou antes um praticante de uma potica que envolve diversas ar-tes, e que, certamente por isso, pode interessar aos estudiosos doassunto. Beneficiei-me, claro, dos conceitos da semitica, namedida em que me esclareceram sobre o meu modo de fazer poe-sia. Mas no tenho maior preciso conceitual, alm da genrica,sobre o assunto. Se por traduo interlingustica se entende a tra-duo de um idioma para o outro, sou algum que atuou muito nes-se campo, especialmente no da traduo artstica transcriao,na conhecida expresso cunhada por Haroldo, ou na minha, tra-duo-arte. Se com o termo traduo intersemitica se quersignificar, em especfico, a traduo de um sistema sgnico paraoutro, exemplificando, da literatura para a pintura ou para a msi-ca, no propriamente, ou usualmente, o meu caso, j que me fixosempre no territrio da poesia, que o que julgo dominar melhor,

    trazendo para ele, sim, linguagens no-verbais que dialogam como sistema literrio, e s raramente produzindo poemas sem pala-vras, como OLHO POR OLHO ou PENTAHEXAGRAMAPARA JOHN CAGE, que, no obstante, encerram valores semn-ticos definidos ou conceituais. A variedade de traduo

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    intersemitica com que trabalho inclui, geralmente, a passagemda poesia de um idioma para outro, sob forma de traduo criativa,com introduo de elementos icnicos no existentes no original,de natureza verbal ou no-verbal.

    J.Q.: Ezra Pound (Litterary Essays) reservava prtica de tradu-o interlingustica um lugar de destaque: Uma grande poca lite-

    rria talvez sempre uma grande poca de tradues. Voc con-fere tal importncia as tradues intersemiticas?

    A.C.: Certamente concordo com Pound, o grande nome da traduocriativa de poesia, e ele prprio um exemplo da sua afirmao:inventor da poesia chinesa para o ocidente (segundo o dictumeliotiano) e at certo ponto, da provenal, como responsvel pelo

    aggiornamento da linguagem de Guido Cavalcanti (que transfor-mou num dos seus prprios Cantos), pela intertraduo da Odissia(Canto XI de Homero, 1 dos Cantos de Pound), mediada pela tradu-o latina renascentista de Andreas Divus em associao com oidioleto do Seafarer, um dos mais antigos poemas da literaturaanglo-saxnica (sculo X). Pound tambm fez convergir outros sis-temas sgnicos para a sua poesia, especialmente com a freqente e

    extraordinria incluso de vrios idiomas e do ideograma chins nosCantos. A traduo intersemitica, em minha viso, amplia o hori-zonte da fruio artstica e, ao mesmo tempo, segundo os prpriosconceitos poundianos, pode constituir uma modalidade de crtica,em especial quando uma traduo no meramente literal, constitu-indo-se num proposta que exige do tradutor um approach molecular,que abranja a forma sem perder a tenso emocional do poema departida, o que no deixa de implicar num conhecimento do repert-

    rio artstico e at de biografemas do seu autor original.

    J.Q.: Apenas recentemente o fenmeno da traduo intersemiticatem recebido maior ateno da crtica. Mas ainda h pouca publi-

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    cao a respeito, especialmente em comparao com a tradio deestudos sobre traduo interlingustica. Alm do livro de Jlio Plaza(Traduo Intersemitica), que um marco, h muito pouco mate-rial publicado. H o nmero especial da revista Versus, editado porDusi & Nergaard, em 2000, que merece referncia, e UmbertoEco (2007) recentemente dedicou um captulo de seu livro Quase aMesma Coisa, ao tpico. A que voce atribuiria to parca produo

    terica sobre um fenmeno to praticado?

    A.C.: Como disse, no sou um terico do assunto e no tenho acom-panhado de perto a evoluo da ensastica especializada na mat-ria. Trata-se, evidente, de um olhar crtico relativamente recen-te, e que devido ao seu jargo peculiar no ultrapassa com muitafreqncia as publicaes especficas. Posso testemunhar que os

    crticos da minha prpria gerao encontraram enorme dificulda-de para abordar a poesia concreta, dada a formao unidisciplinarcaracterstica do ensino dominante no mbito universitrio. Foi talo descompasso, que, durante muitos anos, nos vimos na situaode encontrar maior compreenso e resposta em crticos de outrasmodalidades artsticas, como Mrio Pedrosa, alm de pintores,escultores, designers e msicos. Os manifestos da poesia concre-ta, em 1956, saram na revista AD (Arquitetura e Decorao). Asprimeiras reflexes significativas, entre ns, da perspectiva dasemitica vieram dos prprios poetas concretos. Lembrar que olivroInformao, Linguagem e Comunicao, de Dcio Pignatari,com um captulo intitulado Semitica ou teoria dos signos, tevea sua primeira edio em 1968 (Ed. Perspectiva). Em 1971, apare-ceu Contracomunicao. E em 1974, saiu, sempre pela Perspecti-va, o livro-tese Semitica e Literatura, em que o poeta afirma:

    este livro completa, com os dois que o precederam, algo assimcomo uma perseguio a Charles Sanders Peirce, iniciada a porvolta de 1959. O ingresso dele e de Haroldo como professores naPUC de So Paulo foi fundamental para o desenvolvimento dosestudos relacionados com a semitica e para a prpria

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    institucionalizao da disciplina no Brasil. Creio que, hoje, com oinstrumental da semitica mais assimilado e sob a presso mesmados avanos tecnolgicos e das novas mdias comunicativas, o ho-rizonte se abriu mais e a tendncia para uma formaomultidisciplinar, interabrangente, bem maior do que a do passa-do (inclusive da minha gerao) e por certo no pode dispensar acontribuio da semitica. Preconceitos sociolgicos impediram,

    por exemplo, que no s Peirce, mas algum to perceptivo paraas conseqncias dos novos meios de comunicao, como McLuhan,fosse minimizado por grande parte da crtica universitria, presa alimitaes da abordagem poltico-social os que Oswald de Andrade

    j denunciava, premonitoriamente, em 1943, como os homens dasociografia.

    J.Q.:Muitos de seus textos foram alvo de projetos de traduo paramsica, de Gilberto Mendes a Caetano Veloso. Pode-se supor queo motivo pelo qual tantas vezes isso aconteceu deve-se a certaspropriedades (semiticas) de suas criaes e recriaes?

    A.C.: As modificaes introduzidas pelos novos procedimentos dapoesia concreta fragmentao de palavras, espacializao dos

    textos, nfase em valores sonoros (paronomsias, aliteraes) evisuais despertaram, nos anos 60, o interesse dos msicos con-temporneos brasileiros (como Gilberto Mendes e Willy Correade Oliveira), que procuraram encontrar isomorfismos estruturaispara o uso de textos verbais na linguagem musical de suas prpriascomposies. Dcio, Haroldo e eu freqentvamos, como ouvin-tes, as aulas e conferncias de J.H.Koeulreuter, na Escola Livrede Msica, em 1954, e l conhecemos Damiano Cozzella, Diogo

    Pacheco e Julio Medaglia, entre outros. Aps uma conferncia dePierre Boulez, ainda muito jovem, fomos com ele ao apartamentodo pintor Waldemar Cordeiro e fizemos at uma leitura a vriasvozes de um dos poemas em cores de Poetamenos. A evoluo dasestruturas musicais, bem mais lenta no quadro convencional da

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    msica popular, no podia dar conta da sintaxe radical da poesiaconcreta. S veio a incorpor-la, depois dos contactos com oTropicalismo, em poucos exemplos, como Pulsar, Dias DiasDias (em 1973) e, mais adiante Circulad, composies e in-terpretaes de Caetano, sobre textos meus (os dois primeiros) ede Haroldo. Mas a linguagem da poesia concreta incentivou as ino-vaes lingsticas das letras e vingou, com mais fora, na rea

    das tradues criativas, um desdobramento das nossas prticas dematerializao da linguagem, desde, por exemplo, Elegia, dobarroco John Donne, traduo musicada por Pricles Cavalcanti einterpretada por ele e por Caetano, entre outros. Com relao aostextos propriamente experimentais, assintticos, ou para-sintti-cos, a partir da dcada de 80 voltaram a propiciar abordagens no-vas, em algumas produes de Arrigo Barnab, de Arnaldo Antunese outros, e, mais sistematicamente, em trabalhos como o de CidCampos, que produziu e musicou o CD Poesia Risco, o CDRClip Poemas, alm dos seusNo Lago do Olho eFala da Palavracom numerosas tradues musicais de poemas concretos, entreelas a do meu poema visual (tambm animado digitalmente), publi-cado na quarta-capa do meu ltimo livro,No (2003), como a sairdele. Refiro-me a Sem Sada, que Cid gravou em Fala da Pala-vra e Adriana Calcanhotto vem de gravar emMar, seu novo CD.

    A converso dos textos poticos, de intrnseca musicalidadevocabular, em composies musicais, melodizadas ou sob trata-mento sonoro, um procedimento que, sem dvida, tanto quanto odos casos de interpretao plstico-pictrica, pode ser consideradode carter intersemitico. Num artigo que escrevi, denominadoCUMMINGS ENTRE MSICOS, e que veio a ser publicado em10 de outubro de 2004 no Caderno Mais da Folha de So Paulosob um ttulo para mim ininteligvel (Tons de Ameaa), eucomparava algumas modalidades diversas de abordagem dos tex-tos tipogrficos mais experimentais do poeta E.E. Cummings peloscompositores Cage, Feldman, Berio e Boulez, todas, composiesrelevantes. As mais antigas, dos anos 40, de John Cage, adotaram

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    uma frmula minimal e asctica da linha meldica: duas a cinconotas em tessituras curtssimas e escala pentatnica, que as apro-ximam da fala. o caso de Forever and Sunsmell, de Cummings,processo que Cage usou tambm em The Widow of the 18thSprings, texto extrado do Finnegans Wake de James Joyce. JMorton Feldman , ao musicar quatro dos mais arrojados poemasde Cummings, como air e black!, a composio da sua

    primeira fase adotou melodias webernianas e pontilhistas, comgrandes saltos da altura, para pontuar fonicamente osestilhaamentos da linguagem visual de Cummings, o que torna oentendimento do poema menos perceptvel, apesar da beleza e doisomorfismo da linguagem musical. Pierre Boulez, optando pelopoema birds) inventing air, na composio Cummings is DerDichter(Cummings o poeta), um dos poemas mais radicais eespaciais de Cummings, parece no se importar com o fato de queas areas massas corais que utiliza bloqueiem o entendimento dopoema. Isso est de acordo, alis, com o pensamento que Boulezmanifesta no estudo Som e Verbo, segundo o qual no estariainteressado em disputar com a musicalidade intrnseca dos textos,antes os tomaria como propulsores de idias estruturais para a suamsica. Ele parece pressupor que o ouvinte deva conhecer o texto out-lo mo ao ouvir a msica. Mesmo assim, o poema dificilmen-

    te compreensvel. Em sua composio Pli selon Pli, Boulezmusicaliza um soneto de Mallarm e no o mais arrojado e espa-cial Um Lance De Dados embora tanto este quanto o esboo delivro permutvel, Le Livre, que o poeta deixou incompleto lhesirvam de inspirao musical. Diversamente de todos os outros,Luciano Berio. em Circles, d aos poemas de Cummings a di-menso de uma cantata. Sem perder de vista a clareza da enunciaovocabular e seu entendimento, explora ao mximo as virtualidadesfonmicas sugeridas pela fragmentao vocabular, a ponto de in-cluir as pontuaes no-ortodoxas e at mesmo os parnteses na trans-posio sonora. Numerosos instrumentos de percusso respondemgestualmente s provocaes do texto, articulando e desarticulandoo discurso musical em fase com o discurso verbal.

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    Essas abordagens, todas importantes, desenham um quadro de con-tradies no-antagnicas que mapeia o campo, no mbito da m-sica contempornea, e pode servir de subsdio discusso de ou-tras tentativas, que, no Brasil, passaram a constituir itens tambmrelevantes para a poesia concreta e experimental. Mais prximada fala, a msica popular, nem sempre to popular, e muitas vezes

    j utilizando processos sofisticados de composio eletroacstica,

    se aproxima das composies que deixam os textos inteligveis.quando no os utiliza em sua integridade, acolhendo at mesmo asua leitura original ou explorando as suas virtualidades demultileitura. Cito o caso de Pulsar, musicado por Caetano, queemprega apenas trs notas num intervalo de nona produzindo

    um estranhamento de leitura que combina extraordinariamente coma estrutura do texto e o deixa falar. Uma frmula muito prxima da

    utilizada por John Cage. Quando Cage esteve em So Paulo, em85, eu tive oportunidade de fazer com que ouvisse a pea de Cae-tano, sincronizada com uma animao video-digital, e ele mani-festou-se entusiasmado por ela. Em plo oposto ao da posio deBoulez, tanto o Ezra Pound msico, da pera O Testamento deVillon, como o seu suposto antagonista Virgil Thomson, o composi-tor da pera Quatro Santos emTrs Atos, de Gertrude Stein, pre-feriram abordagens no-ortodoxas que se aproximavam muito mais

    da idia de fazer entender os textos e a sua musicalidade intrnse-ca. Thomson usou canes elisabetanas, valsas e at hinos do exr-cito da salvao para captar, com grande nitidez de articulao, astorrentes monossilbicas dos santos de Gertrude Stein. Poundapoiou-se nas linhas meldicas dos trovadores medievais quesabiam como poucos casar palavra & melodia para compor asua pera anti-belcanto, de instrumentao inslita e fragment-ria, mas dominantemente homofnica, de modo a sublinhar aprosdia e o significado dos textos. Sua pretenso era a de que amsica no perturbasse a compreenso da poesia. Numa carta sua colaboradora, a musicloga Agnes Bedford, ele dizia: pri-meiro princpio, NADA que interfira com as palavras ou com a

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    mxima clareza do impacto das palavras nos ouvintes. No casobrasileiro, com certa analogia, complexos textos barrocos, deGregrio de Mattos e John Donne a Quirinus Kuhlman foram assi-milados pela linguagem oralizada da msica de consumo ou deprodussumo, para usar a expresso de Dcio Pignatari. Parece-me, assim, que a idia de uma homologia estrutural estrita entrepoesia e msica, que prevalecia nos anos 60, se atenuou muito. No

    meu modo de ver, deu-se uma hibridizao de estratgiascompositivas, e o campo das poticas experimentais se abre, hoje,sem preconceitos, a vrios tipos de abordagem musical. O CDintitulado verbiVOCOvisual, que foi produzido por Cid Campos paraa exposio POESIA CONCRETA - O PROJETOVERBIVOCOVISUAL ocorrida em fins de 2007 em So Paulo eem Belo Horizonte, documenta significativamente esse campo mag-ntico de possibilidades. As peas podem ser ouvidas no disco queintegra o livro-catlogo da exposio, recm-sado, e no site.

    J.Q.: Gostaria de me deter em alguns de seus trabalhos de colabo-rao. A construo de objetos tridimensionais, por exemplo,POEMBILES, com Jlio Plaza. Minha questo est relacionadaao modo como a introduo de variveis associadas ao espao

    tridimensional afetam o sistema (lingstico), produzindo processoshbridos (escultrico-grfico-lingstico). Foi colaborativa a con-cepo destes objetos? Voc poderia descrev-la?

    A.C.: Ao emergir na 2 metade do sculo passado, a poesia con-creta repotencializou propostas das vanguardas histricas, trans-pondo os limites tradicionais que amarravam a poesia ao verso e

    este ao livro. Radicalizando a experincia pioneira do marginali-zado poema-partitura de Mallarm (Un Coupde Ds, 1897), a queaquelas vanguardas, consciente ou inconscientemente, se filiavam,criou uma sintaxe grfico-espacial, no-discursiva, atritando o ver-bal e o no-verbal, e caminhando para o conceito de uma poesia

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    entre, interdisciplinar, intermdia, na expresso de DickHiggins, que veio a inclu-la nesse conceito. Teses e propostas queagora se renovam, dentro e fora do livro, sob a pulso das tecnologiasdigitais. No meio da caminhada, em 1968, conheci Jullo Plaza,artista espanhol, h pouco chegado ao Brasil, justamente quandoele estava no processo de criao de OBJETOS, o seu primeirono-livro chamemo-lo assim , encomendado pelo editor Julio

    Pacello, e que seria publicado em abril do ano seguinte em tiragemde apenas 100 exemplares: um lbum de serigrafias sobre papelcartonado, em grande formato, 40 X 30 cm, com impresso nastrs cores primrias, azul, vermelho e amarelo. Os objetos,serigrafados pelo prprio Plaza, consistiam, cada qual, em duasfolhas de papel superpostas e coladas, com um vinco central, for-mando pginas, que ao serem desdobradas revelavam formastridimensionais ao mesmo tempo geomtricas e orgnicas, medi-ante um jogo estudado de cortes. Algo que ficava entre o livro ea escultura. Convidado para fazer um texto crtico sobre a novaexperincia, mostraram-me um lbum-prottipo com as serigrafiaspop-up de Plaza; a seguir, ele me forneceu, em branco, um deseus objetos, que eu fiquei de estudar: do centro, desdobradas asfolhas, projetava-se um losango, com recortes escaliformes, paracima e para baixo. Olhando e reolhando as enigmticas pginas-

    objeto, ocorreu-me, associar-lhes um poema em vez de um textoem prosa. Um poema que tivesse alguma analogia com a propostaplstica do artista. Assim nasceu, nas duas verses que fiz, emportugus e em ingls, ABRE e OPEN, o primeiro poembile,como o batizei mais tarde um poema-objeto, que ao se abriremas pginas, tem as suas palavras projetadas para a frente, emdiversos planos, sugerindo mltiplas relaes de significado. Maisadiante, pensamos, Plaza e eu, em fazer mais trabalhos desse tipo.Basicamente, ele me fornecia maquetes em branco, emdiversificadas variantes tridimensionais, que eu usava como ma-trizes para colocar os textos. Eu transpunha para papel quadricula-do as formas tridimensionais de Plaza, para maior controle das

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    letras, e sobrepunha as palavras, atento s possibilidades de leitu-ra. Em SUBVERTER, por exemplo, na folha externa voc l ape-nas ENTRE, vocbulo que se divide ao se abrir as pginas; na in-terna, de baixo para cima, SUB, VER (na mesma altura de EN-TRE), TER. A partir das maquetes de Plaza eu fazia pequenasrplicas com as prprias folhas quadriculadas e recortadas e aslevava para o Julio proceder a arte-final. Felizmente para ns, os

    militares no liam poesia (estvamos em plena ditadura e at OVERMELHO E O NEGRO de Stendhal era suspeito).Reeditando o primeiro poema-objeto e reunindo as novas cria-es, POEMBILES foi publicado pelos autores em 1974, em for-mato mais reduzido, 15 X 21 cm, com tiragem de 1000 exempla-res, em edio de autor, e mais adiante republicado pela EditoraBrasiliense, com o mesmo formato e a mesma tiragem, em 1984.Tentava-se refugir tanto obra de luxo, quanto obra decorativa,ocorrente na maioria dos casos de livros de poemas ilustrados porartistas ou de livros de arte comentados por poemas. Buscvamos

    um verdadeiro dilogo interdisciplinar, integrado e funcional, en-tre duas linguagens, o verbal e o no-verbal, capaz de suscitar,num nico movimento harmnico, o curtocircuito da imaginaoentre o sensvel e o inteligvel, o ldico e o lcido. POEMBILESfoi a primeira de uma srie de iniciativas de que participamos,

    juntos, nas quais o conceito de interdisciplinaridade foi posto emprtica. Seguindo as diretrizes da obra anterior, CAIXA PRETA(1975) reuniu outros trabalhos artsticos e poticos, rompendo como suporte tradicional do livro. A caixa continha obras individuais objetos visuais de Julio Plaza e poemas concretos de minha autoria e ainda poemas-objetos resultantes da colaborao dos dois ar-tistas. As obras adotavam os suportes mais variados, poemas re-cortados, objetos e poemas-objetos (cubogramas) que, monta-dos, construam cubos de formas tridimensionais, em deforma-es angulares que tornavam o texto tanto menos legvel quantomais agudos os ngulos. A interdisciplinaridade se estendia m-sica com a incluso de um disco onde Caetano Veloso interpretavaos poemas dias dias diase pulsar.

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    Espanhol de nascimento, brasileiro por escolha, Jlio Plaza, que amorte inesperada colheu, em 2003, aos 65 anos, engajou-se prati-camente em todos os desenvolvimentos tecnolgicos das artes, dovideotexto arte digital, pioneiro que foi em muitos dessas experi-ncias envolvendo novos suportes, a partir da prpria reconfiguraodo livro. Foi ele tambm, como se sabe, um importante estudioso eterico da traduo intersemitica. O nosso, foi um encontro de

    irmos de alma. O seu radicalismo o afastou do mercado artsticoe o manteve em nobre isolamento. Mas o seu pioneirismo se tradu-ziu em experincias que consubstanciam o esforo de colocar aarte no limite do olho e da forma, e a poesia na aventura extremado entre uma terra incgnita ainda a explorar.

    J.Q.: Em EXPOEMAS, o trabalho de colaborao tem lugar com o

    tipgrafo, sergrafo e editor Omar Guedes. Como a colaborao,em termos de concepo e elaborao, se distingue daquela dePOEMBILES?

    A.C: A colaborao com Omar Guedes, em 1985, na realizaodo lbum serigrfico EXPOEMAS, e tambm em cartazes e pos-tais serigrafados, foi uma experincia marcante para mim, mas

    at certo ponto diferente, em termos prticos. Plaza me dava osobjetos tridimensionais de sua criao, em branco, para que neleseu apusesse os textos, escolhidos e desenhados por mim. Em doiscasos, luxo e viva vaia, ele props as adaptaes dos textos depoemas pr-existentes e as apresentou para minha aprovao eescolha final das cores, com mais de uma opo. Os poemas queinclu em CAIXA PRETA tinham layout e/ou letra-set que eu mes-mo produzia (inclusive a capa do disco de Caetano). Julio se in-

    cumbia da arte-final. No caso dos cubogramas montveis, o pro-cesso foi semelhante ao do POEMBILES. Os cubos deformadosem ngulos agudos constituam j uma obra de Julio, na qual euinscrevi, a partir do design que eu criara para TUDO EST

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    DITO, uma variante, TUDO TEM UM FIM (IM)PREVISTO, que,repetida em todos os cubos, adquire vrios graus de (i)legibilidade.Nascido em 1947 e falecido prematuramente em 1989, OmarGuedes dominava como poucos a tcnica do silk-screen, produ-zindo, alm dos seus prprios trabalhos, serigrafias de Volpi,Charoux e muitos outros. Guedes recebeu, para serigrafar, todosos meus poemas em letra-set, pr-executados por mim.

    Perfeccionista e competentssimo, fazia vrias provas de cor. EmCORAO CABEA, sugeri que usasse letras verdes (em vez debrancas) sobre fundo vermelho, para acentuar a vibrao colorsticaentre as cores complementares, com vista ao cone da pulsaodas letras. ANTICU, que usa o Braille entre as letras, foi com-posto duas vezes. A impresso em Braille foi feita no Instituto doCego de So Paulo, mas o registro das letras em corpo futura e odas interlineares em Braille, s ficou perfeito quando se inverteu oprocesso, isto , primeiro a impresso em Braille e depois aserigrfica. Eu havia feito uma impresso anterior, no Instituto doCego, em tiragem parte de menor tamanho, com as letras pretasentremeadas s linhas em Braille. Com os recursos da serigrafiapensei em utilizar as letras em branco, em todo o conjunto, ou nofinal, mas Omar, um virtuose do sillkscreen, props e realizoucom perfeio um degrad do azul para o branco diferenciado

    do branco do fundo, que expandiu a iconicidade do poema. Comov, da colaborao entre ns surgiam idias e propostas novas,resultantes, por vezes dos recursos postos em prtica e dacriatividade dos autores. Profundamente chocado com a morte deOmar, por leucemia, ainda to jovem (fui uma das ltimas pessoasa falar com ele, pois ele me pedira, por telefone, a indicao de

    um mdico, e nesse mesmo dia veio a ser hospitalizado; morreuem poucas semanas). Fiz pouco tempo depois, pensando nele, opoema No: usei no ttulo as mesmas letras que utilizara nacapa do EXPOEMAS, mas desta feita para produzir uma ediointencionalmente povera, um livrinho datilografado, de 6 por 6cm e tiragem ilimitada, que eu xerocava, recortava e clipava a

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    mo. Uma espcie de protesto mudo (quem sabe intersemitico,pois trocava a nobreza da nossa finssima edio, com tiragem de300 exemplares, capa em pano especial e papel opaline, de gran-des dimenses, pela mais pobre possvel, sinalizando a precarie-dade das coisas humanas). Tnhamos j engatilhados projetos denovos lbuns com PROFILOGRAMAS e INTRADUES, almde novos poemas-postais e poemas-cartazes, entre os quais o de

    PULSAR, trabalho depois completado pela viva, Teresa Guedes.Ele chegara a fazer uma bela serigrafia em cores vermelho-ama-relo (sugesto dele) do meu profilograma DP, dedicado a DcioPignatari.

    J.Q.: Voc afirma (1986: 21), sobre a poesia de Cummings: Ora,acontece que precisamente o aspecto visual, ou mais que isso, a

    estrutura grfico-espacial das composies de Cummings,indissocivel de toda uma tecnologia especfica (afixao e monta-gem de palavras, nmero de letras e de linhas, deslocamento sint-tico, microrritmia), constitui o ponto de partida para a compreen-so dessa poesia, ou seja, o elemento material, objetivo, capaz defornecer a chave de uma experincia que visa, acima de tudo quelapreciso que cria o movimento, segundo a expresso do prpriopoeta. Em sua prpria prtica de traduo, interlingstica e

    intersemitica, o trabalho tende a comear pela seleo de nveisespecficos, e relevantes, de organizao/descrio do texto traduzi-do? Se afirmativo, isso envolve o isolamento de nveis (por exemplo:estrutura grfico-espacial das composies de Cummings)? H umaordem, temporal ou metodolgica, em termos de abordagem? Ou aseleo dos nveis se submete, todo o tempo, ao material traduzido,forando qualquer mtodo a formas distintas de operao?

    A.C.: Do incio da dcada de 90 para c trabalho diretamente nocomputador. s vezes claro, tendo tomado nota de algumapalavra ou frase que me despertou a ateno, ou tendo esboadoalgum texto ou traduo. Conforme o projeto se vai desenvolven-

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    do, posso recorrer a fontes diferenciadas, das quais j tenho umbom estoque, sendo o futura bauhausiano, ainda hoje, o meu tipo-base. Dependendo de como se delineia um possvel poema, possotransform-lo em tipos diversos para ver como fica o material doponto de vista icnico, acrescentar imagens, partir, ou no, para

    uma animao digital. sempre uma elaborao ao mesmo tempointuitiva e racional, algumas vezes at com interveno do acaso.

    Posso errar uma soluo grfica e perceber que o resultado me-lhor obtido com outra tipologia. Exemplifico: no caso de PUL-SAR (eu usava ainda letra-set), eu fiz uma primeira verso emfutura light; depois, insatisfeito, consultando catlogos, me de-parei com o letra-set que era disponibilizado como baby teeth,tipos geometrizados, cheios. Refiz a verso com esse letra-set,que se revelou muito mais propcio para a ambigidade de leituraque eu pretendia (e que culminava com a impresso em negativo),criando um campo icnico que sugeria uma noite estrelada comletras que confundiam a leitura primeira vista, onde os o eramsubstitudos por letras cheias (que associavam sis, luas, ou plane-tas) e os e eram trocados por estrelas. Anos depois, soube, comsatisfao, que esse alfabeto (que usei com algumas alteraes)havia sido criado pelo grande designer norte-americano pop-bauhasiano, Milton Glaser, inspirado pelo letreiro de uma alfaiataria

    que vira no Mxico. J no domnio da informtica, reencontreifontes muito semelhantes, com as quais fiz uma verso digital dopoema. Paradoxalmente, elas se denominavam shark toothOutro exemplo. Quando Arnaldo Antunes transpunha o texto domeu poema BRINDE para fontes digitais futura bold, em seucomputador (eu ainda no tinha o meu), a impressora dele engas-gou e borrou todo o poema. Quando eu vi o que resultara, pedi queno jogasse fora essa cpia: para mim era a boa. Depois, retornandopara casa, percebi que tinha omitido uma linha: cansado de can-es. Voltei ao Arnaldo e pedi que inserisse essa linha, em preto,entre a quarta e a quinta linhas do papel borrado, que haviam sidografadas em branco e tinham adquirido uma sombra deformante,

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    por causa do defeito de impresso o ltimo poema do meu livroDESPOESIA (1994).

    J.Q.: Haroldo de Campos refere-se ao seu livro Rimbaud Livrecomo uma experincia intersemitica (Rimbaud intersemitico)ao incluir um excurso surpreendente no cristal lquido do compu-tador-grfico, desta feita acompanhado pelo criativo tit-concre-

    to Arnaldo Antunes. Embora muitas vezes delicado o limiar entretraduo intersemitica e intersemiose, parece-nos uma boa idiaestabelecer uma distino entre os dois fenmenos. Os casos deRimbaudgrafites, Profilogramas, Rimbaud Rainbow, emRimbaud Livre, mais parecem experimentos de intersemiose, ouexperimentos em que dois sistemas, de tradies, histrias e pro-priedades independentes, ou semi-independentes, so associados

    criativamente. Este tambm parece ser o caso da srie poetamenos(1953), e sua interpretao dos experimentos de Webern,Klangfarbenmelodie, quando propriedades timbrsticas so cro-maticamente tratadas o poema, sua estrutura grfico-cromtica,comportando-se como uma notao prescritiva de uma dinmicaverbivocal que inclui qualidades timbrsticas. Interessa-nos saberse voc identifica esta distino (traduo intersemitica eintersemiose); se as conseqncias tem importncia em seus mto-

    dos de trabalho.

    A.C.: Parece-me justificvel a distino que voc faz entre tradu-o intersemitica e intersemiose, quanto aos trabalhos que men-ciona, porque eles cruzam a linha do texto e j se inscrevem nocampo das artes visuais. este o caso das fuses da xilogravuraA Grande Onda de Hokusai com a Mscara de Rimbaud, de

    Valloton, introjetadas na traduo de Bateau Ivre. tambm ocaso, mais complexo, de Rimbaud Black or White, que alude aoclip e trip famosos de Michael Jackson, invertendo o seupercurso facial, ao traar um biografema no-verbal do itinerrioenigmtico e imprevisvel de Rimbaud; so imagens morfogrficas

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    em que o rosto claro, suave e feminil do adolescente Rimbaud, talcomo aparece no guache de Fantin-Latour, vai-se desfigurando aospoucos at se obscurecer na renncia e no sofrimento do exlioafricano atravs da explorao em blow up da sua ltima foto-grafia, combinada com a fuso do desenho do rosto do poeta feitopela sua irm, na mesma poca, imagens nas quais ele apareceenegrecido e irreconhecvel. No dispondo ainda de computador,

    contei com a colaborao extremamente sensvel de ArnaldoAntunes, para criar o que chamei de iluminaescomputadorizadas, a partir de imagens extradas da iconografiarimbaldiana. Poderia ser uma animao digital, como a que fizcom O Verme e a Estrela, poema do simbolista baiano PedroKilkerry, com fotos dele e imagens dos seus manuscritos e do muroda Rua do Cabea, onde morava, em sincronizao com a inter-pretao musical do texto, de Cid Campos, e a minha leitura de umtrecho do poema. De fato, a se trata de uma abordageminterdisciplinar, de categoria vdeo-digital, e que veio a se inte-grar, mais tarde, em apresentaes ao vivo no espetculomultimiditico Poesia Risco. Seguramente, j no estamos maisnos domnios de uma traduo intersemitica comum, mas de umprocesso complexo, que pode configurar o que voc distingue, emacepo mais ampla, como intersemiose. Quanto ao

    POETAMENOS, houve, reconhecidamente, a influncia da me-lodia de timbres weberniana, assim como a dos pintores concre-tos de So Paulo, que usavam muito as cores complementares comque campus os poemas, e a de artistas como Mondrian e Calder,que me impressionaram muito quela poca (os mbiles de Calderestavam inclusive na duas primeiras Bienais de So Paulo, em 1951e 1953, na segunda, com uma grande representao).

    J.Q.:Em TRANSERTES, voc faz algo que chama de operaocrtico-pragmtica de explorao prospectiva da linguagem poticavirtual da prosa de Euclides da Cunha, uma leitura verso-espectralde Os Sertes, cujo propsito demonstrar o quanto as estrutu-

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    ras poticas no seu adensamento rtmico, plstico e sonoro con-triburam para dar ao texto o tonus peculiar que a sua marcaimpressionante (1997: 33). Poderia considerar este experimento,surpreendente, um caso preciso do que voc chama de intraduo?Interessa-nos saber como esta operao, crtico-pragmtica, podeser relacionada prticas de traduo intersemitica e intersemiose.

    A.C.: No associei o termo intraduo diretamente a trabalhoscomo TRANSERTES, que vi, acima de tudo como uma apropri-ao de cunho crtico-pragmtico, para mostrar a incidncia daversificao em passagens privilegiadas do livro de Euclides daCunha; este, a propsito, escrevia poesia e conhecia bem a mtri-ca, embora nada tivesse escrito de relevante como poeta. Ao cons-tatar esses padres rtmicos definidos na sua obra em prosa, achei

    que seria interessante e til anot-los e acentu-los. Pesquisando otema, deparei-me, no meio do caminho, com os artigos de Gui-lherme de Almeida, que embora no tivesse proeminncia em suapassagem pelo nosso Modernismo, era um versificador de primei-ra. Esses estudos tiraram-me a prioridade do achado crtico, mas,ao mesmo tempo, confirmaram-no, mostrando-me que no estavasozinho nas minhas elucubraes; homenageei o meu predecessorno livro que escrevi sobre o tema. A diferena que eu aprofundeia pesquisa e a levei a uma demonstrao objetiva, recortando su-postos poemas na prosa euclidiana. No contexto em que uso otermo intraduo, a rigor, eu s enquadraria o poema que fizimprimir na quarta capa (onde aparece com um ponto final que euno tinha colocado em minha arte-final) um fragmento euclidianoao qual acresci diagramao espacializada de linhas e letras, queinconicizavam o texto original, implicando uma radicalizao do

    processo. Mas, assim como o metatexto dos Dodecasslabos,que sonetiza linhas coincidentes com versos, extradas de pontosdiferentes de OS SERTES, quem sabe tambm o recorte dessepoema visual euclidiano possa caracterizar alguma forma deinterveno intersemitica.

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    J.Q.: Haroldo de Campos (1972: 46), em um influente ensaio, afir-ma: Se a traduo uma forma privilegiada de leitura crtica,ser atravs dela que se podero conduzir outros poetas, amadorese estudantes de literatura penetrao no mago do texto artstico,nos seus mecanismos e engrenagens mais ntimos. Mais recente-mente Umberto Eco (2003: 156), avaliando o papel da crtica e dasemitica afirma: Portanto, se fazer crtica de verdade entender

    e fazer entender como um texto feito, e se a resenha e a histrialiterria, enquanto tais, no podem faz-lo por completo, a nicaverdadeira forma de crtica uma leitura semitica do texto. Gos-taria de lhe pedir para desenvolver a idia de traduo como cr-tica, no contexto das tradues intersemiticas

    A.C.: Diversamente da traduo literal, que requer apenas uma

    transposio ponto a ponto dos significados do texto potico, inseri-dos geralmente em algum arremedo literrio do original, a tradu-o criativa impe maior profundidade na anlise da estilstica po-tica, um close reading celular das palavras. preciso buscarequivalncias formais no idioma de chegada, atacar o poema sompor som, cor por cor, como eu j disse muitas vezes, e aindacaptar-lhe o pathos, a alma (o que Garcia Lorca chama deduende). No pode deixar de resultar numa espcie de crtica,por vezes mais eficaz at do que um longo arrazoado. Aprende-semais com a meia-dzia de poemas de Cathay, por Pound, do quecom muitos tratados sobre a literatura chinesa do passado. A me-lhor forma de criticar um poema com outro poema, no diziaele? claro que nenhuma dessas colocaes diminui o valor dacrtica-crtica, quer dizer, o estudo, a pesquisa, a interpretao,em suma, o discurso metalingstico que ilumina o poema e,

    freqentemente, o prprio poeta

    J.Q.: Tecnologias digitais lhes permitiram realizar,computacionalmente, processos verbivocovisuais anunciados,dcadas antes, no programa-piloto da poesia concreta. Refiro-me

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    a, ao menos, dois experimentos: Pulsar, de 1984, e SOS, eBomba, desenvolvidos no Laboratrio de Sistemas Integrveis(LSI, Escola Politcnica da USP), entre 1992 e 1994, como partede um projeto intitulado Vdeo Poesia Poesia Visual. Quais so,em sua opinio, os vetores de desenvolvimento mais interessan-tes que podem resultar da relao literatura-computao? Aprovei-to para estender a pergunta ao escopo mais abrangente das novas

    tecnologias, por exemplo BioArt ou Arte Transgnica, envolvendoengenharia gentica, e engenharia tecidual. Voc v frteis cami-nhos de cooperao envolvendo novas tecnologias?

    A.C.: Sem dvida, em pouco mais de vinte anos, as novas tecnologiasalteraram profundamente, sob diversos aspectos, o universo da li-teratura, em termos de comunicao, j que, especialmente no

    que toca poesia, o espao extraordinrio que teve esta, desde adcada de 1940, nos cadernos culturais da grande imprensa e nasrevistas interestaduais, encolheu de forma drstica. Com rarasexcees, pode-se dizer que a poesia foi expulsa da repblica

    jornalstica das grandes capitais, onde pulsa ainda, entre poucos, oSuplemento Literrio do Minas Gerais, que d amplo espao publicao de poemas, mas sai apenas mensalmente. Assim, apoesia e a crtica literria vm encontrando, cada vez mais, umaopo nos portais e blogs literrios da internet. Em termos de in-formao tambm as novas mdias digitais representam um turningpoint, uma virada sensacional, porque, na internet, em meio banalidade generalizada, h nichos especializados nos quais voc,com o recurso da imagem combinada ao texto e um espao ilimita-do, disponibiliza informaes mais minuciosas e completas do queas encontradas enciclopdias e, por vezes, at em monografias.

    Pode-se, hoje, fazer um download da primeira edio do UNCOUP DE DS, ou ainda assistir ao pianista Glenn Gould execu-tando as VARIAES PARA PIANO de Webern, versorobotizada do BALLET MCANIQUE de Antheil ou ao filmeCINEMANEMIC de Duchamp, e at arquiv-los em seu compu-

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    tador. Na prtica artstica, ainda, as novas tecnologias tiveramenorme inflexo, porque multiplicam a desteridade individual, fa-cilitando as propostas interdisciplinares e independizando a produ-o. At o artista conservador, limitado ao livro, beneficiadopela tecnologia digital, que facilita tanto a sua divulgao como aprpria produo e edio (j h, inclusive, livros digitalizados, detiragem ilimitada e baixo custo). Os livros, claro, continuam a

    ter a sua vida prpria, constituindo um veculo materialinsubstituvel. Para os artistas que se sentirem inclinados s prti-cas multidisciplinares ou intersemiticas, a informtica ofereceferramentas extraordinrias de execuo para projetos. Seu futuro imprevisvel. Rien ou presque un art, como prenunciaraMallarm. Computadores domsticos sofisticados tm hoje maisrecursos do que o Sistema Intergraph de alta resoluo, que ge-rou o texto de PULSAR, em 1984, e a superestao SiliconGraphicsdo Laboratrio de Sistemas Integrveis (LSI) da Escola Politcni-ca da USP, em que foram produzidos os poemas animados SOS eBOMBA em 1992. Mas como tenho incansavelmente repetido, omero domnio da tecnologia no assegura, por si s, grande arte ougrande poesia. Como dizia Pound, citando Duhamel e Vildrac:Mais dabord il faut tre un pote. Quanto bio art ou artetransgnica, no sou versado no assunto. Por enquanto, parece es-

    capar ao mbito da poesia, e situar-se mais propriamente no cam-po das experincias cientficas ou das artes visuais de cunhotecnolgico ou conceitual.

    Entrevista concedida a Joo QueirozUFBA, UEFS

    Sobre Augusto de Campos, e para ter acesso s obras menciona-

    das abaixo, ver:http://www2.uol.com.br/augustodecampos/home.htm

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    Referncias

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    CAMPOS, A. 1985.Expoemas. Entretempo.

    _____. 1986. e.e.cummings 40 poemas. Editora Brasiliense.

    _____. 2002.Rimbaud Livre. Editora Perspectiva.

    CAMPOS, A. & CAMPOS, H. 1997. Os Sertes dos Campos.Sette Letras.

    CAMPOS, H. 1972. A Arte no Horizonte do Provvel. EditoraPerspectiva.

    CAMPOS, H. & PAZ, O. 1986. Transblanco. Editora Guanabara.

    DUSI, N. & NERGAARD, S. (eds) 2000. Sulla traduzioneintersemiotica. Versus 85/87.

    ECO, U. 2007. Quase a Mesma Coisa. Editora Record.

    JAKOBSON, R. 1959 (2000). On linguistic aspects of translation.The Translation Studies Reader. (ed. Lawrence Venuti). Routledge,pp. 113-118.

    PLAZA, J. 1987. Traduo Intersemitica. Editora Perspectiva.