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Tribunal da Relação de Lisboa Processo nº 214/19.0JDLSB.L1-5 Relator: VIEIRA LAMIM Sessão: 02 Dezembro 2020 Número: RL Votação: UNANIMIDADE Meio Processual: RECURSO PENAL Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO SÍNDROME DE MUNCHAUSEN POR PROCURAÇÃO VIOLÊNCIA SOBRE CRIANÇAS HOMICÍDIO QUALIFICADO CRIME TENTADO DOLO EVENTUAL DESISTÊNCIA DANOS NÃO PATRIMONIAIS Sumário - O Síndrome de Munchausen por Procuração, constitui uma forma especí ca de violência sobre crianças, caracterizada pela prática de atos para fazer a criança car doente, gerando procedimentos de diagnóstico desnecessários e potencialmente danosos, num processo moroso até à detenção, com intenção de conseguir a simpatia para o perpetrador. - O crime de homicídio quali cado, na forma tentada, é compatível com o dolo eventual. - O instituto da desistência, é um instrumento de política criminal, de prevenção da criminalidade, que tem em vista a redução de resultados criminosos, com ele se estimulando o criminoso a retroceder nos seus intentos, mas apenas uma desistência voluntária e reveladora de negação da lesão do bem jurídico merece relevância, o que não acontece num caso em que o agente usou a violação do bem jurídico para satisfazer intentos censuráveis e egoístas (atrair sobre si a atenção e sentir-se valorizado) e em que, depois de cada tentativa, se decidiu por outra, só terminando a repetição desses comportamentos quando foi descoberto. - O quadro psicopatológico da arguida (Síndrome de Munchausen por Procuração), impelindo-a para a ação (no sentido de atrair sobre si a atenção 1 / 51

Tribunal da Relação de Lisboa Processo nº 214/19.0JDLSB.L1

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Tribunal da Relação de LisboaProcesso nº 214/19.0JDLSB.L1-5

Relator: VIEIRA LAMIMSessão: 02 Dezembro 2020Número: RLVotação: UNANIMIDADEMeio Processual: RECURSO PENALDecisão: PARCIALMENTE PROVIDO

SÍNDROME DE MUNCHAUSEN POR PROCURAÇÃO

VIOLÊNCIA SOBRE CRIANÇAS HOMICÍDIO QUALIFICADO

CRIME TENTADO DOLO EVENTUAL DESISTÊNCIA

DANOS NÃO PATRIMONIAIS

Sumário

- O Síndrome de Munchausen por Procuração, constitui uma forma específica

de violência sobre crianças, caracterizada pela prática de atos para fazer a

criança ficar doente, gerando procedimentos de diagnóstico desnecessários e

potencialmente danosos, num processo moroso até à detenção, com intenção

de conseguir a simpatia para o perpetrador.

- O crime de homicídio qualificado, na forma tentada, é compatível com o dolo

eventual.

- O instituto da desistência, é um instrumento de política criminal, de

prevenção da criminalidade, que tem em vista a redução de resultados

criminosos, com ele se estimulando o criminoso a retroceder nos seus

intentos, mas apenas uma desistência voluntária e reveladora de negação da

lesão do bem jurídico merece relevância, o que não acontece num caso em que

o agente usou a violação do bem jurídico para satisfazer intentos censuráveis

e egoístas (atrair sobre si a atenção e sentir-se valorizado) e em que, depois de

cada tentativa, se decidiu por outra, só terminando a repetição desses

comportamentos quando foi descoberto.

- O quadro psicopatológico da arguida (Síndrome de Munchausen por

Procuração), impelindo-a para a ação (no sentido de atrair sobre si a atenção

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das pessoas e sentir-se valorizada como mãe), deve ter-se como fator redutor

da culpa, o que aliado ao dolo eventual com que agiu, torna adequada a pena

de seis anos de prisão para cada crime de homicídio qualificado na forma

tentada e, em cúmulo jurídico, a pena única de dez anos de prisão.

- Esta pena representa já um castigo severo para uma mulher próximo dos

trinta anos de idade (assim se assegurando a proteção dos bens jurídicos

violados e a confiança da comunidade na validade da norma), ao mesmo tempo

que, não esquecendo a pessoa do agente afetado por um quadro

psicopatológico facilitador da ação e carente de adequado tratamento,

contribui para a sua reintegração na sociedade.

- A doutrina tem-se pronunciado no sentido de apenas poder peticionar uma

indemnização o lesado que sofreu danos diretos na sua própria esfera jurídica

e que é titular do direito violado ou interesse legalmente protegido, prevendo

a lei a reparação de danos não patrimoniais de terceiros só em caso de morte

da vítima direta (art.496, nº3, CC).

- A jurisprudência, em especial após o AUJ nº 6/2014 (Diário da República n.º

98/2014, Série I de 2014-05-22), tem vindo a admitir a reparação de danos não

patrimoniais de terceiros familiares próximos da vítima de lesão corporal

grave não fatal, mas tão só em caso de lesão do relacionamento familiar ou de

lesão do relacionamento conjugal.

- O demandante, enquanto pai do lesado direto, sofreu pelo que viu o menor

padecer, mas esse sofrimento, não tendo afetado a normal relação de

parentalidade, não constitui um dano próprio e direto em consequência do ato

ilícito da demandada que justifique reparação.

- A fixação equitativa da indemnização, sem prejuízo de algum grau de

subjetividada e da ponderação prudencial e casuística das circunstâncias do

caso, deve ter presente a necessidade de uniformização, respeitando critérios

jurisprudenciais generalizadamente adotados, de modo a não pôr em causa a

segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.

Texto Parcial

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

Iº 1. No Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº214/19.0JDLSB, da Comarca

de Lisboa (Juízo Central Criminal de Lisboa - Juiz 15), foi julgada P. ,

pronunciada pela prática de 7 crimes de homicídio qualificado, na forma

tentada (arts.131, 132, nº2 alíneas a), c), e), i) e j), 22 e 23 do Código Penal), 7

crimes de ofensa à integridade física grave qualificadas (arts. 144, nº 1 alínea

d, 145, nº1 alínea c, e nº2 com referência ao 132.º n.º 2 alíneas a), c), e) i) e j)

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todos do Código Penal) e um crime de violência doméstica (art.152, nº1 alínea

d, e nº2 do Código Penal).

O tribunal, após julgamento, por acórdão de 20Julho20, decidiu:

"...

A – Condenar a arguida P. pela prática, em autoria material e em concurso

real de infracções, das seguintes penas parcelares:

- 7 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada

(1.º episódio), p. e p., nos artigos nos artigos 132.º n.º 1 e n.º 2 alíneas a), c), e

j), por referência ao 131.º n.º 1, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal;

- 7 anos e 3 meses de prisão pela prática de um crime de homicídio, na forma

tentada (2.º episódio), p. e p., nos artigos nos artigos 132.º n.º 1 e n.º 2 alíneas

a), c), e j), por referência ao 131.º n.º 1, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal;

- 7 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de homicídio, na forma

tentada (3.º episódio), p. e p., nos artigos nos artigos 132.º n.º 1 e n.º 2 alíneas

a), c), i) e j), por referência ao 131.º n.º 1, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal;

- 7 anos e 9 meses de prisão pela prática de um crime de homicídio, na forma

tentada (4.º episódio), p. e p., nos artigos nos artigos 132.º n.º 1 e n.º 2 alíneas

a), c), i) e j), por referência ao 131.º n.º 1, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal;

- 8 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada

(5.º episódio), p. e p., nos artigos nos artigos 132.º n.º 1 e n.º 2 alíneas a), c), i)

e j), por referência ao 131.º n.º 1, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal;

- 8 anos e 3 meses de prisão pela prática de um crime de homicídio, na forma

tentada (6.º episódio), p. e p., nos artigos nos artigos 132.º n.º 1 e n.º 2 alíneas

a), c), i) e j), por referência ao 131.º n.º 1, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal; e

- 8 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de homicídio, na forma

tentada (7.º episódio), p. e p., nos artigos nos artigos 132.º n.º 1 e n.º 2 alíneas

a), c), i) e j), por referência ao 131.º n.º 1, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal.

B – Condenar a arguido P. em cúmulo jurídico de penas, nos termos do artigo

77.º do Código Penal, na pena única de 17 (dezassete) anos de prisão.

C – Absolver a arguida P. da prática de 7 (sete) crimes de ofensa à integridade

física grave qualificadas, p. e p., nos artigos 144.º n.º 1 alínea d), 145.º n.º 1

alínea c) e n.º 2 com referência ao 132.º n.º 2 alíneas a), c), e) i) e j) todos do

Código Penal.

D – Absolver a arguida P. da prática de um crime de violência doméstica, p. e

p., no artigo 152.º n.º 1 alínea d) e n.º 2 do Código Penal.

Condeno a arguida no pagamento de 5 UC de taxa de justiça e nas demais

custas.

E – Condenar a demandada P. a pagar ao demandante MM , representado

pelo seu pai LT , a quantia de € 300.000,00 (trezentos mil euros), a título de

danos não patrimoniais.

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Custas da parte cível a cargo da demandada.

F – Condenar a demandada P. a pagar ao demandante LT a quantia de €

25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais.

Custas da parte cível a cargo do demandante.

G – Condenar a demandada P. a pagar à demandante "Centro Hospitalar do

Oeste, E.P.E." a quantia de € 2.477,85 (dois mil quatrocentos e setenta e sete

euros e oitenta e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e

vincendos, contados à taxa anual de 4% e devidos desde a data de notificação

do pedido de indemnização cível até integral pagamento.

Custas da parte cível a cargo da demandada.

H – Condenar a demandada P. a pagar à demandante "Centro Hospitalar

Universitário Lisboa Norte, E.P.E." a quantia de € 20.137,52 (vinte mil cento e

trinta e sete euros e cinquenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora

vencidos e vincendos, contados à taxa anual de 4% e devidos desde a data de

notificação do pedido de indemnização cível até integral pagamento.

Custas da parte cível a cargo da demandada.

*

I – Não condenar a arguida P. na pena acessória da proibição de contacto com

a vítima MM .

J – Declarar a incompetência material do tribunal criminal para apreciar e

decidir da inibição do exercício do poder paternal da arguida P. em relação ao

menor MM .

....”.

2. Desta decisão recorre a arguida P. , tendo apresentado motivações, das

quais extraiu as seguintes conclusões:

2.1 Quanto ao episódio ocorrido em 17 de Abril de 2019 os factos

considerados provados em 12 e 13 resultam de uma “interpretação extensiva”

não fundamentada dos depoimentos analisados; ora, se o MM se encontrava

sozinho com a arguida nas instalações da escola de mergulho e se,

considerando a queda do menor no tanque e a sua incapacidade de nadar, a

conclusão que se impõe é que só poderá ter sido a arguida a retirá-lo da água

e a impedir o resultado morte.

2.2 O douto acórdão refere que “a morte do menor só não aconteceu por

motivos alheios á vontade da arguida”, porém, conforme supra se demonstrou,

a morte do menor não aconteceu apenas pela intervenção da arguida.

2.3 Assim, torna-se imprescindível concluir que a conduta da arguida foi

adequada, suficiente e determinante para impedir a verificação do resultado

morte.

2.4 Em consequência e considerando o disposto no art. 24° n°1 do Código

Penal “A tentativa deixa de ser punível quando o agente voluntariamente

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desistir de prosseguir na execução do crime, ou impedir a consumação, ou,

não obstante a consumação, impedir a verificação do resultado não

compreendido no tipo de crime”, uma vez que a intervenção da arguida foi

determinante no sentido de impedir o resultado.

Pelo exposto, nunca a arguida deveria ter sido condenada pela prática de um

homicídio qualificado na forma tentada.

2.5 Ainda, sem conceder, caso se entenda que a não produção do resultado

morte não resultou única e exclusivamente da conduta da arguida, pelo que

sempre seria atendível o disposto no n°2 do mesmo art.24°: “ Quando a

consumação ou verificação do resultado forem impedidas por facto

independente da conduta do desistente, a tentativa não é punível se este se

esforçar seriamente por evitar uma ou outra”, tendo em conta que foi a

arguida a retirar a criança do tanque, a prestar-lhe os primeiros socorros, a

chamar o INEM, para além de ter alertado o pai. Recorde-se quando o SIV de

Peniche chegou ao local, já o MM se encontrava a salvo, fora do tanque e

consciente, conforme testemunho de ED em audiência.

Pelo exposto, também verificando-se esta situação nunca a arguida deveria ter

sido condenada pela prática de um homicídio qualificado na forma tentada.

2.6 O douto acórdão recorrido, dá como provado no ponto 13 supra referido

que “ A morte do menor só não aconteceu por motivos alheios à vontade da

arguida”. Salvo melhor opinião esta consideração não pode proceder uma vez

que se trata de um juízo conclusivo, sem qualquer suporte factual e totalmente

desfasado da realidade.

Sintetizando, no dia e local da prática dos factos imputados à arguida apenas

estavam presentes a própria e o filho MM , que não sabe nadar; em

circunstâncias não apuradas o menor caiu à água, sendo retirado do tanque

pela única pessoa presente para além do menor- a mãe!

2.7 Assim, face ao supra referido considera a arguida a existência de um erro

notório na apreciação da sua conduta, que efectivamente foi determinante – e

ÚNICA- para impedir a produção do resultado morte, termos em que sempre

seria de considerar o disposto no n.° 1 do artigo 24.° do Código Penal.

2.8 Quanto ao episódio ocorrido em 11/12 Junho de 2019, e após análise dos

depoimentos supra transcritos, respeitantes às declarações da arguida, do

menor MM e da testemunha BG , e que traduzem a única prova produzida em

audiência não é possível atribuir à arguida a prática de um crime de homicídio

na forma tentada, pelo que estamos perante insuficiência para a decisão da

matéria de facto provada, nos termos do art. 410° n°2 al.a) do CPP.

2.9 O Ministério Público acusa e o tribunal a quo condena a arguida, quanto a

este episódio, pela prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada,

sem fazer qualquer referência ao elemento subjectivo do tipo de crime.

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Como é sabido, o facto típico é composto por elementos objectivos e

subjectivos, sendo que o primeiro corresponde à conduta e o segundo traduz a

relação existente entre a atitude do agente e o facto material.

2.10 In casu, importa-nos analisar o dolo, cuja verificação é essencial nos

crimes na forma tentada (cfr. Art.° 22.° n.° 1 e art.° 14.°, ambos do Código

Penal).

2.11 a. Nos termos do art.° 14.° n.° 1, só existe dolo quando o agente,

“representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção

de o realizar”.

Daqui se conclui que, num primeiro momento, terá que existir uma

representação do facto que preenche o tipo de crime, desde logo porque “nada

pode querer-se que não tenha sido primeiramente previsto ou conhecido” (in

Direito Penal, Apontamentos das Lições do Professor Cavaleiro de Ferreira ao

5.° ano jurídico de 1956-1957, compilados por Eduardo Silva Casca, p. 52).

b. Num segundo momento terá que existir uma resolução criminosa seguida

de um esforço dirigido à representação do facto representado. Portanto, para

haver dolo não basta que o agente preveja mentalmente a realização do facto,

sempre terá que haver, adicionalmente, uma intenção de praticar o acto que

representa e uma actuação nesse sentido.

c. O dolo é, assim, um facto jurídico relevante (cfr. Art.° 124.° CPP) e é,

também, um elemento subjectivo do facto. Na falta do mesmo não há crime,

conforme decorre do art.° 13.° do Código Penal. Como facto juridicamente

relevante que é, carece de prova, uma vez que fundamenta a aplicação à

arguida de uma pena, ao mesmo tempo que constitui um pressuposto da

responsabilidade criminal.

2.12 Nestes termos, a total omissão do dolo na acusação constitui desde logo

fundamento para a rejeição da mesma, conforme bem explica o Acórdão de

Uniformização de Jurisprudência n.° 1/2015 do STJ: “a falta de descrição, na

acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se

traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as

circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na

vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não

pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art.

° 358.° do Código de Processo Penal”.

Efectivamente a acusação quanto a este crime não foi rejeitada (seria nula) e

também não foi suprida pelo tribunal a quo (nem poderia sê-lo). No entanto,

ainda assim, a arguida foi condenada pela prática do mesmo, o que desde logo

afronta as suas garantias de defesa, consagradas constitucionalmente.

2.13 Salvo melhor opinião, se um crime é um comportamento típico, ilícito e

culposo, constituindo o dolo um elemento subjectivo do facto típico, sem a

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presença deste, deixa de existir crime, o que claramente sucede in casu. A

consequência só pode ser uma: a absolvição da arguida quanto aos factos

ocorridos na noite de 11 para 12 de Junho.

2.14 Quanto aos episódios ocorridos em contexto hospitalar, nos dias 13, 16,

18, 21 e 25 de Junho de 2019 sempre a intervenção da arguida de forma

rápida e diligente foi determinante para o sucesso das manobras de

reanimação, impedindo que ocorresse o resultado morte.

2.15 Se a arguida quisesse a produção do resultado morte, certamente teria

agido de forma diferente, ou ausentando-se do quarto ou, simplesmente,

deixando que fosse a equipa médica a aperceber-se, per se, do agravamento

do estado do MM .

Efectivamente nunca a arguida actuou com dolo de homicídio.

2.16 Nos termos do art.° 14.° n.° 1, do CP só existe dolo quando o agente,

“representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção

de o realizar”.

2.17 Para se verificar a existência de dolo não basta que o agente preveja

mentalmente a realização do facto, sempre terá que haver, adicionalmente,

uma intenção de praticar o acto que representa e uma actuação nesse sentido.

2.18 A arguida não representou a morte do filho como o resultado desejado,

nem como necessário nem sequer como possível.

2.19 O objectivo que norteou a conduta da arguida era que o MM se

mantivesse internado e dependente de cuidados médicos, de forma a que a

sua resiliência como mãe sofredora e sempre presente fosse notada por todos.

Sempre foi essa a motivação da arguida, motivação essa justificada pelo

“quadro psicopatológico enquadrável numa perturbação factícia por

procuração (síndrome de Munchausen por Procuração) numa estrutura de

personalidade de características estadolimite (Borderline)” (cfr. Ponto n.° 53

do douto acórdão recorrido), diagnosticado à arguida e que se encontra

devidamente esclarecido no relatório de clinica forense junto aos autos.

2.20 Pelo exposto, sempre terá de se afastar a presença do dolo, em qualquer

uma das suas formas, na base da actuação da arguida.

2.21 Na ausência de dolo, cuja verificação é essencial nos crimes na forma

tentada (cfr. Art.° 22.° n.° 1 e art.° 14.°, ambos do Código Penal), sempre a

arguida terá que ser absolvida dos crimes de homicídio na forma tentada.

2.22 Ainda que assim não se entenda, e sem conceder, concluindo-se pela

existência de dolo, apenas se poderia considerar o dolo eventual, nos termos

do art.° 14.° n.° 3 do Código Penal e nunca o dolo necessário, conforme julgou

(erradamente) o tribunal a quo.

2.23 Para além dos motivos supra explicados que suportam este raciocínio,

atendamos ainda à manifesta contradição entre a decisão de que agora se

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recorre (considerar dolo necessário) e a fundamentação da mesma, conforme

pontos 12.°, 17.° e 61.°, onde são utilizadas expressões como “(...) a sua

conduta era susceptível de provocar a morte (...)”, “(...) dependendo da dose

pode causar a morte (...)” e “(...) a sua conduta podia provocar a morte (...)”,

que introduzem um grau de incerteza não compaginável com o dolo necessário

previsto no art.° 14.° n.° 2 do Código Penal.

Pelo exposto, deve a arguida ser absolvida da prática dos cinco crimes de

homicídio na forma tentada praticados em contexto hospitalar, enfermando a

decisão recorrida dos vícios constantes da al. c) do n° 2, e das al. a) e b) do n°

3 do 412° do CPP.

Da Medida da Pena:

2.24 A aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração

social do agente e, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa

(cfr. art.° 40.°, n.° 1 e 2 do CP).

2.25 A prevenção e a culpa são instrumentos jurídicos obrigatoriamente

atendíveis e necessariamente determinantes para balizar a medida da pena

concreta a aplicar.

2.26 A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela

consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração) é a

finalidade primeira que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta,

entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas

comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente

consente; entre esses limites, satisfazem-se quanto possível, as necessidades

de prevenção especial positiva ou de socialização.

Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador,

as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança

colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime e em

última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal. (Figueiredo Dias,

Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, pág. 55 e

seguintes e Ac. STJ 29.4.98 CJ, T. II, pág. 194).

2.27 Feito o enquadramento jurídico-penal dos factos há que determinar a

medida concreta da pena, tendo em conta os limites mínimo e máximo

apontados pela moldura penal abstracta, devendo o tribunal ter em conta a

culpa do agente e as exigências de prevenção, conforme os trilhos apontados

pelo art. 71.°, n.° 1, do CP.

2.28 E a concretização desse critério para determinar a pena concreta que se

pretende justa e adequada a cada caso concreto tem desenvolvimento, na

ponderação que o tribunal deve ter, de todas as circunstâncias que, não

fazendo parte do tipo legal, deponham a favor e/ou contra o agente do crime,

conforme art. 71.°, n.° 2, do CP.

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2.29 Prevê ainda aquele preceito, “nomeadamente”, nas al. a) a f), que o

julgador deve ponderar o grau de ilicitude do facto, o seu modo de execução, a

gravidade das suas consequências, a grau de violação dos deveres impostos ao

agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados

no cometimento do crime, a motivação do agente, as condições pessoais e

económicas do agente, a conduta anterior e posterior ao facto, e a falta de

preparação do agente para manter uma conduta lícita.

2.30 A lei ao referir que se deve atender nomeadamente àquelas

circunstâncias, por serem as mais comuns, mais não diz que o tribunal deve

atender a outras ali não especificadas, isto é, a todas as circunstâncias

susceptíveis de influenciarem a determinação da pena concreta.

2.31 Nesta conformidade, na determinação concreta das penas há qua atender

às diversas circunstâncias influenciadoras da pena a aplicar:

- O grau de ilicitude é considerado elevado, atendendo ao bem jurídico cuja

tutela a pena visa assegurar, isto é, o bem jurídico que é a vida.

2.32 Tipo de dolo e exigências de culpa: in casu, foi considerado dolo

necessário. Contudo, atenta toda a explanação supra, entende a defesa ser de

concluir pela não verificação de dolo de homicídio. Ainda, sem conceder, caso

se entenda a existência de dolo, pelos motivos já mencionados, o mesmo

sempre teria que ser eventual, nos termos do art.° 14.° n.° 3 do CP.

Concluindo-se pela inexistência de dolo ou pela verificação de dolo eventual, o

que nos parece óbvio e necessário, a pena sempre terá que ser ajustada.

- O modo de execução do crime. Nesta situação teremos de atender ao facto

de que no modo de execução do crime releva sempre a actividade da arguida

na desistência do mesmo, e a consequente não verificação do resultado.

- Os motivos determinantes da conduta da arguida terão sempre de ser

entendidos no “quadro psicopatológico enquadrável numa perturbação factícia

por procuração (síndrome de Munchausen por Procuração) numa estrutura de

personalidade de características estadolimite (Borderline)”. A arguida apenas

pretendia que as suas valências enquanto mãe fossem reconhecidas.

2.33 As necessidades de reprovação e de prevenção destes tipos de crime que

são particularmente elevadas. No entanto, é manifesto que a pior pena a

cumprir pela arguida será viver com este arrependimento e mágoa, até ao

final da sua vida, e com o afastamento, provavelmente para sempre, do filho.

2.34 Registo criminal do arguido: a arguida não tem qualquer averbamento ao

seu registo criminal, sendo que pautou a sua vida pelos mais elevados padrões

de correcção e conforme o Direito. Particularmente e no que respeita à

relação com o filho MM , a arguida sempre foi uma mãe exemplar, carinhosa e

preocupada, qualidades reconhecidas por todos e corroboradas pelos

depoimentos do pai do MM , e de todos os outros que privavam com a família.

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2.35 Na consideração da personalidade devem ser avaliados e determinados

os termos em que a personalidade se projecta nos factos, isto é, se a

personalidade unitária do agente é reconduzível a uma tendência ou

eventualmente mesmo “uma carreira” criminosa, ou antes se se reconduzem

apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do

agente, só no primeiro caso sendo de agravar especialmente a pena por efeito

do concurso, cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências

Jurídicas do Crime pág. 29. In casu não está evidenciada nem comprovada

uma tendência delituosa da arguida. Acresce ainda que a arguida demonstra

profundo e sincero arrependimento.

2.36 Em suma,

1ª- As penas parcelares impostas à ora recorrente são excessivas e devem ser

reduzidas para medidas que se aproximam dos respectivos limites mínimos,

E, em consequência,

2ª- A pena única resultante do cúmulo jurídico deverá, consequentemente, ser

reformada e substancialmente reduzida.

3. Admitido o recurso, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito

suspensivo, o Ministério Público e o assistente responderam, concluindo:

A) O Ministério Público:

1 - Em primeiro lugar cumpre, em nosso entender, pronunciarmo-nos sobre a

inobservância do disposto no artigo 412°, nºs 3 e 4, do Código de Processo

Penal relativamente ao recurso sobre a matéria de facto;

A prova produzida durante o julgamento foi gravada, em observância do

estatuído no artigo 363° do Código de Processo Penal, pelo que os poderes de

cognição do tribunal de recurso abrangem a matéria de facto e a matéria de

direito – artigo 428° do referido diploma legal;

3 - Porém, sendo jurisprudência assente nos tribunais superiores que os seus

poderes de cognição se limitam pelas conclusões da motivação de recurso, é

manifesto que essas conclusões têm de, por si só, habilitar o tribunal superior

a conhecer dos pontos e das razões de discordância do recorrente em relação

à decisão recorrida, seja no plano de facto, seja no plano de direito. Só assim

ele dará cumprimento aos deveres de lealdade processual para com os demais

intervenientes processuais e de colaboração para com os tribunais superiores;

4 - A arguida indica os pontos de facto que considera incorrectamente

julgados, porém não específica quais os factos que, em alternativa, deveriam

ter sido dados como provados e com base em que meios de prova;

5 - Assim, o recurso em apreço deve ser rejeitado nesta parte, nos termos das

disposições legais citadas, visto que as deficiências do recurso em matéria de

facto se não limitam às conclusões da motivação;

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6 - E, pelas razões expostas, a matéria de facto dada como provada no acórdão

condenatório haverá de ter-se por definitivamente fixada;

7 – Caso, assim, não se entenda:

A arguida coloca em causa os pontos seguintes da matéria de facto dada como

provada e que existe contradição, entre, nomeadamente os pontos 5 e 12 e 13

alega contradição entre os factos 5 e 13;

8 - Que contradição, relativamente aos pontos 5, 7, 12 e 13?

9 - Como refere o douto acórdão na sua fundamentação “as reanimações

efectuadas pela arguida não revelam qualquer intenção de evitar a morte do

filho, mas, tão só e porque contraditórias com a colação da vida em risco, uma

conduta destinada a mostrar o seu empenho e zelo de mão aos olhos dos

outros”;

10 - É um facto que a arguida retirou o MM de dentro da piscina e efectuou

manobras de reanimação, contudo, não existem qualquer desistência

relevante por parte da arguida, que apenas o fez porque pensou que já tinha

concretizado a sua intenção, que era retirar a vida ao seu filho MM , pois a

arguida teve sempre a intenção de actuar de forma a atentar contra a vida do

MM ;

11 - E, efectivamente, o resultado morte somente não aconteceu por razões

alheias à sua vontade, devido á intervenção atempada dos médicos, que

puseram termo ao processo que levaria á morte do menor MM ;

12 - Sublinhe-se que o que foi dado como provado no ponto 4 foi “O ofendido

MM caiu dentro do tanque com água, três metros de profundidade,

completamente vestido, ali permanecendo por tempo indeterminado, e só

quando se encontrava inconsciente foi retirado da água pela arguida” (negrito

nosso);

13 - Em parte alguma foi dado como provado que o MM já estava salvo!

Antes foi dado como provado o “MM deu entrada no serviço de urgência

pediátrica do Hospital das Caldas da Rainha, chegando prostrado e com

dificuldade em falar, apresentando um quadro grave, decorrente de paragem

cardiorrespiratória” (ponto 7, sublinhado nosso);

14 - Assim, a arguida apenas retirou o MM , seu filho de dentro do tanque de

mergulho quando este já estava inconsciente, pensando que tinha alcançado o

seu propósito, ou seja, que já o tinha morto;

15 – O testemunho do MM , que com a sua idade nos descreve, sem o menor

resquício de contradição, os factos por si vivenciados;

16 - Confrontada com os factos a arguida, referiu que “sente no seu íntimo que

lhe fez mal, alguma coisa lhe fez mal”, todavia refugiou-se numa conveniente

amnésia selectiva, dizendo que não se lembrava do que tinha acontecido em

concreto, só se recordando dos factos convenientes à sua pessoa, sendo que,

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por isso, não merecem qualquer credibilidade, pelo que nos ficam apenas as

declarações do MM , simples e concretas, assim como o depoimento da

testemunha ED ;

17 - Quanto aos factos ocorridos em 11/12 de Junho de 2019

Ora, quem haveria de ter tapado a cabeça ao MM ?!

18 - Pretende a arguida, dada a globalidade dos factos, por em causa somente

este facto, quando, na verdade, o filho MM , afirmou que foi a mãe, pois

estavam ambos sozinhos em casa, o que, até por intuição deduziria que era

aquela;

19 – Há que apreciar, não de forma isolada, quer os factos, quer as

declarações do MM , mas vê-las na sua globalidade:

20 - O MM disse, tal como acima referimos, no dia 24.09.2019, cerca do

minuto 18,47 até minuto 24,14 muito mais do que aquilo que a arguida alega

no recurso, ressalte-se o MM , no alto dos seus 7/8 anos de idade revelou uma

enorme maturidade, depondo com clareza, de forma simples, mas totalmente

credível e verdadeira, sem subterfúgios, pois se estivesse a mentir porque o

faria contra a sua própria mãe?!;

21 - No que respeita aos factos ocorridos nos dias 13, 16, 18, 21 e 25 de Junho

de 2019, destacaremos, em sede de conclusões, pois acima outros

testemunhos elencamos, o de VA , testemunho restado no dia 26.06.2020,

minuto 09.00, 10.35, “O ambiente hospitalar ..., o estado clínico grave, somos

uma equipe muito jovem, todos temos filhos, facilmente aquelas crianças são

nossos filhos e ele sangrava por todo o lado, a gravidade da doença acho que

nunca fica muito descrita no processo, sangrava pelo tubo respiratório, onde

se associa a mortalidade de que falei (superior a 50%), sangrava pelo

estômago, profusamente, sangue e sangrava pela urina, mucosas a sangrar,

uma emoção clínica muito forte, sabíamos que era um quadro clínico muito

grave”;

A mãe “entrou no quarto, com este contexto do sangue e, eu pesarosa, porque

eu tenho filhos, e a mãe fala comigo sobre uma receita de panquecas,

completamente desajustado“;

mãe fala comigo sobre uma receita de panquecas, completamente

desajustado“;

22 - É caso para perguntar diligente em que? Só se for no sofrimento infligido

ao filho e indiferente a este, com intuito de levar a cabo a sua intenção, com

uma insensibilidade que revele uma personalidade que revela uma malvadez

sórdida relativamente ao sofrimento do seu próprio de sete anos de idade!;

23 - Vejamos também o testemunho de AL , enfermeira, relativamente ao

comportamento da arguida, a testemunha referiu “parecia que estava tudo

bem; não havia uma preocupação quando a situação clínica piorava”;

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24 – A testemunha AC , enfermeira, testemunho prestado no dia 26.06.2020,

minuto 10,16, uma das vezes em que o MM entrou em paragem

cardiorrespiratória, ter dito “ele portou-se mal outra vez, parou outra vez,”

referindo, a arguida, que a testemunha devia pensar: ”eu aqui a investir, a

querer apreender e ele pará outra vez”, estando a arguida tranquila e (minuto

11.05) “falou num tom até gracioso”, como quem diz, “portou-se mal, fez esta

trapalhice e lá vamos nós ter que ficar aqui”;

25 - A testemunha afirmou que existiram, minuto 12.22, “múltiplas paragens

cardiorrespiratórias, com necessidade de ser reanimada; a criança morreu e

foi reanimada várias vezes”; “criança a necessitar de ventilação invasiva,

mecânica, por um tempo prolongado, com lesões renais com lesões hepáticas,

caso de cuidados intensivos, altamente complexo”;

26 - Pasme-se, a arguida, no ponto 15° do recurso, afirma que actuou, “de

forma diligente” e eficaz! Diligente?! A arguida havia atirado o MM , seu filho,

com sete anos de idade, para dentro do tanque de mergulho! Sabia que o MM

não sabia nadar!;

27 - Usar o adjectico “diligente” para descrever a conduta da arguida, quando,

já o MM se encontrava inconsciente e o retira do tanque de mergulho, parece-

nos atroz;

28 - No ponto 41°, de novo, a arguida utiliza o adjectivo “diligente” para

descrever a sua conduta, no que concerne aos factos ocorridos nos dias 13,

16, 18, 21 e 25 de Junho, quando o MM se encontrava internado no Hospital

Dona Estefânia, em Lisboa, “donde se conclui que a intervenção da arguida de

forma rápida e diligente foi determinante para o sucesso das manobras de

reanimação, impedindo que ocorresse o resultado morte”;

29 - Estará a arguida a olvidar que foi ela quem administrou clorofórmio, via

intravenosa, ao seu filho MM de sete anos de idade?! Que o fez por cinco

vezes? E a arguida apelida a sua conduta de “diligente”!;

30 - Pretende a arguida que, face ao raciocínio por ela apresentado, se

considere que houve lugar a uma desistência voluntária da sua parte! O que

sucedeu foi uma persistência, resiliência da arguida da realização dos seus

intentos, de matar o seu filho! E a fazê-lo de forma absolutamente cruel, com

enorme sofrimento para o mesmo, quer físico, quer psicológico, com sequelas

para o resto da vida do MM ! A arguida actuou com frieza e malvadez;

31 - Não constituindo “erro na apreciação da prova a discordância do

recorrente acerca da valoração que o Tribunal fez da prova, no exercício do

seu poder dever de livre apreciação.” (Acórdão da Relação de Lisboa proferido

no processo 31203 de 12.06.2002, acessível em www.dgsi.pt);

32 - Ora, o que a arguida P. não aceita, apenas porque a decisão não lhe é

favorável, é que o Tribunal tenha valorado as provas por recurso às regras da

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experiência comum e a livre convicção do julgador, com respeito pelo disposto

no artigo 127º do Código de Processo Penal, como se extrai do teor do acórdão

em causa;

33 - A prova que foi produzida no decurso da audiência de discussão e

julgamento, conduziu de forma clara e inequívoca, o Tribunal à decisão de ter

a arguida P. , com a sua conduta, praticados os factos dados como provados e

subsumíveis aos crimes pelos quais foi condenada, pelo que não se verifica

quaisquer resquícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto

provada alegada pela arguida;

34 - A arguida não contrariou as regras de experiência, nem demonstrou que,

por recurso a esta, a fixação factual, bem como a motivação e decisão vertida

na sentença, deveria ter sido diversa daquela que foi;

35 - Donde, é forçoso concluir que o resultado probatório a que chegou a

decisão recorrida se mostra consentâneo com a prova produzida, pois os

Meritíssimos seguiram um processo lógico e racional, observando as regras de

experiência comum, pautadas pela probabilidade e razoabilidade, sendo a

decisão convincente pela explicitação dos fundamentos em que alicerçou a sua

convicção;

36 – Tendo em conta todos os factos dados como assentes, a gravidade dos

mesmos, o grau de ilicitude e culpa da arguida, densa, a ausência de

arrependimento, pois não existem factos que o sustentam e permitam fazer-se

essa leitura, é, assim, nossa convicção que a pena aplicada é adequada e justa,

não merecendo, por isso, qualquer reparo;

37 - Permitam-nos realçar, no que tange a este aspecto, o constante do douto

acórdão “este aumento progressivo da pena de prisão aplicável a cada

renovação da decisão criminosa da arguida revela um maior grau de culpa,

tanto mais que, de cada vez, a vida do filho mais fragilizada se mostrava”;

38 - Aqui trazemos à colacção o referido pela testemunha MO , recorda-se que

a penúltima paragem foi a mais grave, “com mais tempo de paragem

cardiorrespiratória, cada uma foi sempre um bocadinho mais grave, até pela

fraqueza do próprio MM , que estava ventilado há mais tempo, que tinha mais

fragilidade e cada situação ia sendo cada vez mais grave”;

39 – Consta do relatório a perícia de avaliação do dano corporal, a fls. 429

verso “datada de 13/7/2019 ... repete Rx.torax-agravamento do pneumotórax

com colapso quase total do pulmão esquerdo;

40 - Venerandos Desembargadores, brada-se aos Céus!

Alguém fazer isto a uma pessoa é terrível, alguém fazer isto a uma criança é

brutal, uma mãe fazer isto a um filho, é horripilante!

Em face do exposto, entendemos que deverá ser negado provimento ao

presente recurso interposto pela arguida P. , mantendo-se o douto acórdão!

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B) O assistente:

a) O presente recurso está centrado na impugnação da decisão sobre a

matéria de facto e de direito por a Arguida considerar que foram

incorretamente julgados alguns pontos de facto e por algumas provas

imporem decisão diversa da recorrida, por ser sua convicção a existência de

insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição

insanável entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da

prova, que a pena aplicada se revelava excessiva, assim como a parte em que

a condena na indemnização arbitrada.

b) Salvo o devido respeito, a decisão do tribunal a quo não merece qualquer

reparo, quer por as declarações da Arguida em audiência de discussão e

julgamento constituírem praticamente uma confissão de todos os factos de que

vinha acusada, quer pelas lacunas ou inconsistências que ainda se verificavam

terem sido supridas pelas declarações para memória futura prestadas pelo

Ofendido, pelas declarações do Assistente, demais prova testemunhal, com

relevância para as testemunhas que socorreram o menor, os médicos e

enfermeiras que o acompanharam nos 44 dias de internamento, assim como

toda a documentação clínica e prova pericial constante do processo.

c) A fatualidade referente à compra do clorofórmio também foi confirmada

pela Arguida, embora já existisse prova documental que a corroborava.

d) Face ao exposto decidiu muito bem o tribunal a quo dando como provados

praticamente todos os factos de que a Arguida vinha acusada e condenando-a

em autoria material pela prática de 7 (sete) crimes de homicídio, na forma

tentada, p.p. pelos arts. 132º, nº 1 e nº 2, alíneas a), c), i) e j), por referência

ao art. 131º, nº 1, 22º, 23º e 73º do Código Penal. Sendo condenada em

cúmulo jurídico de penas, nos termos do art. 77º do Código Penal, numa pena

única de 17 (dezassete) anos de prisão.

e) Relativamente ao pedido de indemnização cível por parte do Demandante/

Assistente LT , que a Arguida considera que não foi apresentado qualquer

suporte testemunhal ou documental que o justificasse, muito bem esteve o

tribunal a quo ao arbitrar a seu favor uma indemnização pelos danos não

patrimoniais sofridos, dando como provada a prova produzida, tendo em

consideração a gravidade do sofrimento psicológico, o medo, a ansiedade e a

angústia do Demandante/Assistente, fundamentando jurídica e doutrinalmente

a sua decisão.

f) Quanto ao pedido de indemnização civil por parte do Ofendido MM , a prova

dos danos sofridos em consequência das agressões de que foi vítima, quer

físicas, quer psicológicas, que constam nos autos (prova documental e prova

testemunhal) é tão vasta, que apenas poderemos fazer uma súmula da mesma.

g) O Ofendido MM passou por um enorme sofrimento físico em consequência

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dos tratamentos e intervenções clínicas, dolorosas e invasivas a que foi sujeito,

suportando intensas e fortes dores, conforme consta na prova documental dos

autos e que em audiência de discussão e julgamento foi confirmado através

das declarações das testemunhas: MO, Médica pediatra, AL, Enfermeira, AC,

Enfermeira e VA, Médica.

O Ofendido MM também passou por um grande sofrimento psicológico, pois

com exceção do período passado no hospital, estava consciente do que lhe

estava a acontecer.

h) Quanto ao que a Arguida nos diz, que no que respeita às alterações da vida

do menor provocadas pelo seu comportamento, e confrontando com o ponto

135 dos factos provados que refere expressamente que “não é possível prever

as consequências ou sequelas que daí poderão advir”, não entende como pode

relevar esse critério para efeitos de determinação de montante

indemnizatório, apenas poderemos apresentar factos concretos para que se

entenda.

i) Conforme foi testemunhado pela Dra. VA, Médica na Unidade de Cuidados

Intensivos Pediátricos do Hospital Dona Estefânia em Lisboa, existem já

sequelas verificáveis no MM , nomeadamente nos seus pulmões, e sendo esse

um facto comprovado é expectável que num futuro próximo outras sequelas

poderão aparecer e nesse caso o menor terá de recorrer aos cuidados e

tratamentos que forem necessários o que acarretará novas despesas médicas

que terão de ser suportadas pela sua família.

j) Para além disso, em consequência das agressões de que foi vítima, MM

ficou com a sua vida limitada e não será mais a criança saudável que era

anteriormente e que podia brincar livremente e sem quaisquer limitações. O

MM terá de ser alvo no futuro de maiores cuidados e vigilância.

k) Por tudo isto isto e não havendo outra forma o Ofendido apenas poderá ser

compensado através de indemnização cível.

l) Face ao exposto decidiu muito bem o tribunal a quo ao determinar o

pagamento de uma indemnização ao Ofendido MM pelos danos não

patrimoniais sofridos tendo em consideração a gravidade do seu sofrimento

físico e psicológico, medo, lesões físicas passadas, presentes e futuras e

alterações de vida, sendo que, atento o estatuto socioprofissional da

Demandada/ Arguida e a sua capacidade futura de ganho, o quantum

indemnizatório, de acordo com os Meretíssimos Juízes a quo, poderia até ter

sido fixado num montante superior.

Termos em que deve o Acórdão objeto de recurso ser confirmado, negando-se

provimento ao recurso interposto, fazendo-se assim a habitual e necessária

JUSTIÇA

4. Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-geral Adjunto, em douto parecer,

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pronunciou-se pelo não provimento do recurso.

5. Realizou-se a conferência.

6. O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas

conclusões, reconduz-se à apreciação das seguintes questões:

-Vícios do art.410, nº2, CPP;

-Impugnação da matéria de facto;

-Qualificação juridica dos factos;

-Medida da pena;

-Indemnização civil;

*

IIº A decisão recorrida, no que diz respeito aos factos provados, não provados

e respectiva fundamentação, é do seguinte teor:

3.1.1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA

De relevante para a discussão da causa, resultou provada a seguinte matéria

de facto:

Da acusação/pronúncia

1. O ofendido MM nasceu em 09 de Maio de 2012 e é filho da arguida P. ,

tendo residindo com a mesma na Rua …, em Óbidos.

2. No período temporal compreendido entre o mês de Abril de 2019 e 25 de

Junho de 2019, o ofendido MM deu entrada, várias vezes, em urgência

pediátrica de hospitais.

3. Em 17 de Abril de 2019, nas instalações da empresa "C.– Actividades

Marítimas, Lda.", sita na Rua …em Peniche, após o almoço, quando se

encontrava sozinha com o filho MM , num momento em que este se

encontrava sentado num sofá e distraído com o telemóvel, a arguida puxando-

o pelos pés, arrastou-o pelo chão para o tanque de treino de mergulho com

três metros de profundidade ali existente que se encontrava cheio de água e

empurrou-o para dentro.

4. O ofendido MM caiu dentro do tanque com água, com três metros de

profundidade, completamente vestido, ali permanecendo por tempo

indeterminado, e só quando se encontrava inconsciente foi retirado da água

pela arguida.

5. O ofendido MM vomitou, entrou em paragem cardiorrespiratória tendo

então a arguida procedido a manobras de reanimação e suporte básico de

vida, tendo conseguido a sua reversão, após o que substituiu ao menor a roupa

exterior molhada por outra seca e chamou o INEM para o local, alegando que

o menor estava com alterações do estado da consciência, tinha vomitado e

apresentava dificuldades respiratórias.

6. Quando os enfermeiros do INEM chegaram ao local, cerca das 13 horas e

30 minutos o ofendido MM encontrava-se consciente, agitado, chorando,

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apresentando a pele fria, tinha as cuecas molhadas de água, apresentava-se

em situação de hipotermia com temperatura rectal de 33.º e com sinais de

hipoperfusão ( diminuição do aporte sanguíneo aos tecidos periféricos e

consequente falta de oxigenação das células), o que determinou a aplicação de

máscara de oxigénio e a condução de MM de imediato para o Hospital das

Caldas de Rainha.

7. O ofendido MM deu entrada no serviço de urgência pediátrica do Hospital

de Caldas da Rainha, chegando prostrado e com dificuldade em falar,

apresentando um quadro grave, decorrente de paragem cardiorrespiratória.

8. Nesta primeira circunstância, os clínicos do Hospital de Caldas da Rainha

que observaram o ofendido MM administraram adrenalina IM (2ex) e soro EV

quente por suspeitaram de quadro anafiláctico ao frio.

9. O ofendido MM foi ainda observado por cardiologia pediátrica no Hospital

de Santa Marta, em Lisboa, não evidenciando causa cardíaca óbvia para a

situação.

10. O ofendido MM teve alta clínica ao 7.º dia de internamento, com

observação à data de alta sem quaisquer alterações, medicado com adrenalina

injectável (Epipen 0,3 mg) para situações de urgência – SOS.

11. O ofendido MM quando chegou ao Hospital das Caldas da Rainha

verbalizou ao seu pai que a mãe o tinha empurrado para a piscina com água,

informação relatada à equipa médica daquele hospital, que a desvalorizou por

poder ser atribuída a uma reacção de confusão associada a hipotermia ou

hipoxemia.

12. A arguida quis praticar tais factos bem sabendo que a sua conduta era

susceptível de provocar a morte por afogamento e paragem

cardiorrespiratória do seu filho com sete anos de idade, o que representou e

aceitou conformando-se com a mesma.

13. A morte do menor só não aconteceu por motivos alheios à vontade da

arguida.

14. Sabia a arguida que a sua conduta era proibida por lei.

15. No dia 2 de Maio de 2019, a arguida P. , após ter efectuado uma pesquisa

na internet sobre produtos "químicos/clorofórmio/compra", adquiriu uma

embalagem de um litro de clorofórmio e três embalagens de luvas

descartáveis na empresa "Laborspirit", sita na Estrada de Pinteus, n.º 15,

fracção P, em Santo Antão do Tojal, em Loures, empresa dedicada à

comercialização de reagentes e material de laboratório, tendo como clientes

empresas, faculdades, indústria farmacêutica, indústria com laboratório de

controlo de qualidade e também particulares

16. Fê-lo com intenção de administrar aquele produto tóxico ao filho.

17. Sabia que a ingestão, inalação ou contacto dérmico de tal substância

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tóxica, dependendo da dose, pode causar a morte e provocar lesões graves na

saúde, nomeadamente, alteração nos ritmos respiratórios e cardíaco, paragens

cardiorrespiratórias, hipotensão, náusea, vómito, lesões hepáticas e renais,

entre outras.

18. A arguida efectuou o pagamento em dinheiro, gastando € 83,83 (trinta e

três euros e oitenta e três cêntimos) indicando o número de identificação

fiscal, morada e conta de correio electrónico de MB, aluna do curso de

mergulho ministrado pela empresa "C. – Actividades Marítimas, Lda.", onde a

arguida trabalhava.

19. Na noite do dia 11 e madrugada de 12 de Junho de 2019, tendo o filho MM

ao seu cuidado na sua residência, sita na …, em Óbidos, a arguida P. , quando

o mesmo já se encontrava deitado, dirigiu-se ao mesmo e tapou-lhe a cabeça

com o lençol, segurando-o com as mãos por detrás da cabeça do menor,

fazendo-o com força por tempo indeterminado.

20. O menor vomitou e teve perda de conhecimento, com paragem

cardiorrespiratória.

21. A arguida administrou-lhe então a adrenalina que tinha na sua posse e que

lhe tinha sido receitada no hospital para situações de emergência, para

reverter os efeitos da paragem cardiorrespiratória provocada por ela e para

fazer crer que o filho tinha sido acometido de novo episódio, de causas

inexplicadas, semelhante ao ocorrido em 17 de Abril de 2019.

22. O ofendido MM foi transportado para o Hospital das Caldas da Rainha

com diagnóstico de provável convulsão, à admissão apresentava-se consciente,

com febre, baixa oxigenação, frequência cardíaca alta e glicémia alta, no

decurso do dia 12 de Junho de 2019, foi avaliado pela cardiologia pediátrica do

hospital de Santa Marta em Lisboa, não apresentando sinais de síncope de

causa cardíaca, sugerindo investigação neurológica.

23. A equipa médica não conseguiu diagnosticar a causa da paragem

cardiorrespiratória verificada.

24. No dia 13 de Junho de 2019, o ofendido MM foi transferido para o

Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, para internamento e estudo, estando vígil

e orientado no espaço e tempo, tendo sido feitos uma bateria alargada de

exames de natureza cardiovascular e neurológica, electroencefalograma e TAC

craneoencefálica, não tendo sido detectado qualquer problema susceptível de

constituir a causa da doença que o menino vinha apresentando.

25. Face às melhoras registadas no seu estado de saúde a equipa médica

informou a arguida deste facto, referindo-lhe ainda a forte possibilidade de o

filho vir a ter alta médica no dia seguinte.

26. No dia 13 de Maio de 2019, pelas 23 horas e 20 minutos, a arguida P.

administrou clorofórmio ao filho, usando uma seringa que acoplou ao cateter,

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o que provocou alterações do estado hemodinâmico do ofendido MM , tendo

ido depois dar o alerta e informar os médicos que o seu filho estava com

dificuldades respiratórias.

27. A equipa médica encontrou a criança MM em paragem

cardiorrespiratória, inconsciente, em hipotermia e com vómito alimentar/

biloso, sendo necessária a colocação de sonda nasogástrica.

28. Os médicos realizaram manobras de reanimação com administração de

adrenalina, revertendo a situação, tendo feito TAC craneoencefálica, que não

mostrou alterações relevantes.

29. O ofendido MM seria depois transferido para a Unidade de Cuidados

Intensivos Pediátricos do Hospital, internado num quarto individual-cama 1,

em coma induzido, tendo-se observando na sonda conteúdo escuro compatível

com sangue, sinal de provável hemorragia digestiva e efectuada entubação,

iniciou sangramento pulmonar abundante.

30. Foi algaliado com saída de urina escura, com teste positivo para sangue e

bilirrubina.

31. Com dificuldades, a equipa médica conseguiu restabelecer novamente o

ofendido MM , registando-se melhoras progressivas nos dias seguintes.

32. Porém, no dia 16 de Junho de 2019, cerca das 3 horas e 30 minutos, a

arguida P. interrompendo uma evolução positiva do quadro clínico, usando

uma seringa que acoplou ao cateter, efectuou nova administração de

clorofórmio ao filho, produzindo a sintomatologia evidenciada nos episódios

anteriores, com diminuição da frequência cardíaca e hemorragia pulmonar,

seguida por hemorragia digestiva e presença de sangue na urina.

33. E voltou a informar os médicos que o seu filho MM estava com

dificuldades respiratórias, tendo o mesmo voltado a entrar em paragem

cardiorrespiratória.

34. No dia 18/06/2019, usando uma seringa que acoplou ao cateter, efectuou

nova administração de clorofórmio ao filho MM , tendo sido, cerca das 11

horas, detectado que o prolongamento de cateter de acesso intravenoso

colocado no braço direito de MM apresentava uma coloração diferente do

habitual (mais baça), e um cheiro a cola, sustentado as suspeitas junto dos

médicos que o agravamento do estado de saúde da criança teria de ser

motivado por qualquer intervenção de terceiros, através da administração de

qualquer substância tóxica que causava os sucessivos agravamentos do estado

de saúde da criança.

35. Perante estes indícios, por decisão da equipa médica, o ofendido MM foi

transferido do quarto individual-cama 1, para um quarto múltiplo – cama 5,

próximo do local de permanência do pessoal clínico e sujeito a maior

vigilância.

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36. No dia seguinte, 19 de Junho de 2019, a Polícia Judiciária, através da

"Secção de Homicídios" é alertada para estas ocorrências e inicia as

diligências relativas à investigação das circunstâncias relacionadas com os

sucessivos agravamentos do estado de saúde da criança.

37. A arguida P. não demonstrava muita preocupação com o estado de saúde

do filho e sobretudo com a origem dos problemas sucessivos.

38. O cateter com coloração diferente foi recolhido e apreendido, tendo sido

submetido a perícia de natureza toxicológica pelos serviços do Laboratório da

Polícia Científica, que vieram a determinar a presença de uma substância com

características macroscópicas semelhantes às de um polímero (plástico/

borracha) que provocou o entupimento do cateter e que terá entrado na

circulação sanguínea da vítima antes da ocorrência do entupimento.

39. Nos dias seguintes o ofendido MM voltou a recuperar relativamente ao

estado de saúde bastante débil em que ficara.

40. No dia 21 de Junho de 2019, pelas 20 horas e 40 minutos, aproveitando a

pausa para jantar do pessoal de enfermagem, quando a vigilância era menor, a

arguida efectuou novamente a administração de clorofórmio ao filho

provocando novo episódio de paragem cardiorrespiratória a MM , que durou

três minutos, com novo surgimento de sangue no conteúdo gástrico (vómito),

na urina e também nas fezes.

41. Foi feita a recolha de amostra do conteúdo gástrico expelido pelo vómito e

da sua análise pelos serviços de "toxicologia" do Laboratório da Polícia

Científica veio a ser possível determinar que o "PH" do conteúdo gástrico da

criança apresentava um valor alcalino de 9, quando o normal se situa entre 3 e

4 pelo que tinha sido administrado à criança, por via oral, uma substância

tóxica que teria provocado o agravamento do estado de saúde com a

ocorrência de paragem cardiorrespiratória.

42. No dia 25 de Junho de 2019, a hora não concretamente apurada, a arguida

que se encontrava no quarto com o seu filho, administrou-lhe novamente

clorofórmio através de uma seringa, que acoplou ao cateter colocado no pé

esquerdo do filho, que originou que o menor entrasse em braquicardia.

43. A arguida atirou a seringa para o caixote do lixo do quarto do ofendido

MM .

44. Foi detectado pelos elementos clínicos que o prolongamento colocado no

cateter do pé esquerdo de MM apresentava uma cor branca estranha, tendo

sido removido de imediato.

45. Questionada a arguida a mesma disse que tinha ministrado ao filho "soro

abençoado".

O ofendido MM , de 7 anos de idade, esteve internado 44 dias e teve alta

hospitalar no dia 14 de Agosto de 2919, com indicação de continuar os

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tratamentos no Hospital de Dona Estefânia, em regime ambulatório, não

sendo ainda previsíveis o tempo de doença ou as consequências que advirão

dos actos violentos a que foi sujeito.

47. Do exame médico legal de clínica forense de fls. 427-437, consta:

"...2 episódios de alteração do estado de consciência (Abril de 2019 e 12/6)

associadas a hipotermia e vómitos + 2 episódios de paragem

cardiorrespiratória em contexto hospitalar (14.6 e 21.6) hemorragia pulmonar/

alveolar (justificando agravamento) respiratório e necessidade de ventilação

invasiva – aspiração de secreções hemáticas arejadas no TET; hemorragia

renal, gástrica e rabdomiolise – aspiração de secreções hemáticas pela SNG e

TET, hematúria macroscópica. Recuperação total entre os episódios.

Observado e discutido por varias especialidades destaca-se: - Rx. tórax com

hipotransparência heterogénea no campo pulmonar dto – cardiologia – ... não

se identifica causa cardíaca, o que se reforça mais ainda neste episódio, que

foi presenciado por Enf. e Med. ... sem alteração do ritmo cardíaco ou da

morfologia do QRS (apenas bradicardia e agora taquicardia) – Angio -TAC

pulmonar (14.6.2019) – "hidropneumotorax sob tensão á dta, que condiciona

desvio do mediastino para o lado contralateral. Marcada redução do volume

do pulmão dto. Este pulmão assim como o esquerdo, apresentam no seu

parênquima varias áreas de consolidação dispersas, poupando apenas parte

da língula. Esta distribuição torna pouco provável aspectos pós aspiração.

Estão em mais provável relação com contexto clinico de hemorragia pulmonar.

Pequena lâmina de ascite perihepatica dta... RM cerebral sem alterações

significativas. EEG (Abril de 2019) sem alterações... EEG prolongado

(24.6.2019) – períodos de aplanamento de provável etiologia medicamentosa,

sem actividade paroxística durante o período de registo. ... - criança sedada

com Midazolan... Alfentanil... rocuronio... tem reflexo de tosse e reage à dor...

conectado a prótese ventilatoria, hemodinamicamente estável, pupilas

mióticas, simétricas, pouco reactivas à luz ...." ... Rx. Torax – agravamento do

pneumotórax com colapso quase total do pulmão esquerdo..." No dia

18/07/2019, a signatária do presente exame pericial, constatou em termos de

exame externo, que MM de 7 anos, internado na UCIP do Hospital de Dona

Estefânia, encontrava-se com drenagem de pneumotórax à esquerda e sonda

nasal bilateral para aporte de O2".

Concluiu o relatório que os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de

causalidade entre os episódios clínicos referenciados na documentação clinica

com a administração do clorofórmio e que do evento resultou, em concreto,

perigo para a vida do menor MM .

49. Viria a ser recolhida, no balde do lixo do quarto de internamento, uma

seringa envolta por uma luva, e na sala dos pais, no interior do cacifo que

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estava afecto à arguida e onde a mesma guardava os respectivos pertences,

um frasco de vidro que estava dentro de um saco térmico, contendo um

líquido incolor que submetido a exame no Laboratório de Polícia Científica foi

identificado como "clorofórmio", substância esta, susceptível de provocar no

menor todos os sintomas acima descritos e que o menor apresentava.

50. Submetida a exame pericial a seringa encontrada no caixote do lixo

revelou a presença de clorofórmio.

51. Na seringa encontrada no caixote do lixo do quarto do ofendido MM foi

obtido um perfil único idêntico ao da arguida P. .

52. Foi identificado um vestígio palmar da mão esquerda da arguida P. no

plástico preto que envolvia o frasco de clorofórmio que se encontrava no

cacifo que lhe estava afecto no Hospital Dona Estefânia.

53. A arguida foi sujeita a exame pericial psiquiátrico que revelou um quadro

psicopatológico enquadrável numa perturbação factícia por procuração

(síndrome de Munchausen por Procuração) numa estrutura de personalidade

de características estadolimite (Borderline) estando presentes os pressupostos

médico-legais de imputabilidade.

54. A arguida administrou o clorofórmio ao filho MM enquanto este esteve

internado no hospital por via oral e intravenosa, usando uma seringa que

acoplava aos cateteres, alternado o acesso, não o fazendo sempre no mesmo

local para evitar suspeitas.

55. A arguida tinha perfeita noção das consequências da administração do

clorofórmio, tendo pesquisado na internet sobre os efeitos e decidido pela sua

aquisição.

56. A arguida sabia e conhecia os efeitos daquela administração,

consubstanciando paragens cardiorrespiratórias.

57. Sabia que a ingestão, inalação ou contacto dérmico de tal substância

tóxica, dependendo da dose, pode causar a morte, alteração nos ritmos

respiratórios e cardíaco, hipotensão, náusea, vómito, lesões hepáticas e

renais, entre outras.

58. Em consequência das condutas acimas descritas, a arguida causou graves

problemas de saúde ao seu filho, cardiorrespiratórias, pneumotórax com

colapso quase total do pulmão esquerdo, hemorragia pulmonar/alveolar,

hemorragia renal, gástrica e rabdomiolise, que lhe provocaram doloroso

sofrimento e intervenções clínicas graves, dolorosas e invasivas que que se

não tivessem sido revertidas a tempo teriam originado a morte da criança.

59. A arguida quis praticar os actos acima descritos, bem sabendo que destes

poderia resultar a morte do filho, e mesmo assim não se absteve de os

prosseguir, sabendo de cada vez que os repetia, aumentava o perigo para a

vida do filho, tanto mais que se tratava de uma criança, com um organismo

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mais frágil.

60. A arguida queria atrair sobre si a atenção das pessoas que lhe estavam

mais próximas pois sabia que de cada vez que MM era acometido de um

agravamento súbito do estado clínico se sentia valorizada como mãe.

61. A arguida sabia que a sua conduta podia provocar a morte do filho, mas tal

não a demoveu de praticar os factos descritos, possibilidade que representou e

quis e com a qual se conformou e que só não aconteceu por motivos alheios à

sua vontade.

62. A morte do ofendido MM só não ocorreu porque assistido clinicamente foi

possível reverter a situação clínica.

63. Sabia a arguida P. que MM era seu filho de menor de idade, e que ao

praticar os factos da forma descrita o fazia em completo desrespeito daquele e

da relação familiar que os unia e une.

64. Mais sabia que tinha o dever de respeitar o seu filho, com quem residia,

pessoa particularmente indefesa em razão da idade e que ao tratá-la do modo

supra descrito, o impedia de ter um crescimento saudável e harmonioso, o que

conseguiu.

65. A arguida actuou livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a

sua conduta era proibida e punida por Lei Penal.

Factualidade relativa à inserção familiar, socioprofissional e antecedentes

criminais da arguida.

66. O processo de desenvolvimento da arguida foi condicionado

negativamente pela disfuncionalidade do sistema familiar de origem.

67. Com apenas 9 meses de vida, a arguida, filha única do casal, é entregue

aos cuidados dos avós, em virtude de os progenitores se encontrarem em

ruptura conjugal e a mãe ter decidido ir trabalhar para a Suíça, à procura de

melhores condições de vida.

68. A partir de então, a arguida divide-se entre a casa dos avós paternos e

maternos e as viagens que fazia ao estrangeiro para se encontrar com a

progenitora.

69. Os pais, só anos mais tarde é que terminam a relação que culminou com a

separação dos mesmos em 1999.

70. O clima era conflituoso, caracterizado por episódios de agressividade do

progenitor para com a mãe da arguida.

71. A relação com a mãe é próxima e cúmplice apesar da distância geográfica

e distante com o progenitor, chegando a estar mais de três meses sem o ver

apesar de viver a 800 metros de distância, traduzindo assim o desinvestimento

afectivo e educativo desta figura parental.

72. Aos seis anos de idade iniciou o percurso escolar que prosseguiu até ao

12.º ano de escolaridade, com inúmeras participações pró-sociais, com a sua

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integração em grupos desportivos, religiosos e de voluntariado, sendo disso

exemplo facto de ter sido Vice-Presidente da Associação de Estudantes, ter

frequentado aulas de surf, ser catequista e voluntária no Hospital das Caldas

da Rainha e, posteriormente, no Bombeiros.

73. Terminou o ensino secundário e iniciou Curso de Práticas Administrativas

e Relações Públicas no Instituto Politécnico de Leiria – Pólo das Caldas da

Rainha, que frequentava em regime nocturno, trabalhando de dia num

supermercado em part-time, à revelia do progenitor que pretendia que a

mesma se dedicasse somente aos estudos.

74. Abandonou os estudos superiores com o nascimento do filho.

75. À revelia do progenitor, com quem sempre manteve uma relação distante e

conflitual, voluntariou-se para os Bombeiros e, posteriormente, casou-se com o

pai de seu filho.

76. Por volta dos 14-15 anos de idade, a mãe da arguida apercebeu-se da

primeira manifestação de mal-estar da arguida, quando vai passar as férias

com a mãe e viajaram juntas para Itália, tendo a arguida tentado atirar-se de

um ponto alto, em Roma, tendo sido agarrada pela progenitora.

77. Pouco tempo depois, antes de passado um ano, a arguida foi localizada

num apartamento de que a mãe é proprietária, com uma carta escrita e com a

intenção de se suicidar, planeando atirar-se do 7.º andar.

78. É neste contexto que começa a ser acompanhada pelos Serviços de

Psicologia e Orientação do Agrupamento, com quem a mãe ia contactando

regularmente.

79. Estes episódios perpetuaram-se no tempo e eram mais frequentes e com

um início mais precoce do que a família considerava, situando-os por volta dos

10-11 anos, quando engoliu um cocktail hemorrágico para controlar pragas de

roedores, tendo vomitado de seguida.

80. No ano em que completou 18 anos de idade, inscreveu-se nos Bombeiros

de Óbidos, tendo frequentado ao longo de um ano o Curso de Formação para

Ingresso na Carreira de Bombeiro Voluntário.

81. Nesse período mantinha uma relação marital há um ano que veio a

terminar e pouco tempo depois iniciou relacionamento afectivo com o pai de

seu filho, dez anos mais velho, com quem foi viver pouco tempo depois.

82. Um ano após o nascimento do filho, o companheiro, socorrista dos

bombeiros, cansado de "ver situações limite" demonstra vontade de mudar de

vida.

83. É neste contexto que viajam para a Suíça com o filho à procura de

emprego, durante 15 dias, no período de férias da Páscoa.

84. O companheiro não conseguiu encontrar trabalho, atendendo à baixa

escolaridade do mesmo e à barreira linguística.

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85. Por seu turno, quando planeavam regressar, sua mãe, conseguiu emprego

para a arguida, como doméstica em casa do patrão.

86. A arguida decide aceitar este trabalho, já depois de terem regressado a

Portugal.

87. Assim, inicia actividade laboral na Suíça, em casa de um casal que têm

uma filha recém-nascida, trabalhando por períodos de 15 dias e folgando 4

dias, que aproveitava para os gozar em Portugal, junto do companheiro e filho.

88. Três meses depois, em Agosto, a família decide ir viver para a Suíça,

passando a arguida a ser ama a tempo inteiro, mediante contratualização da

prestação de serviços com o patrão, viajando regularmente com esta família

para Londres, o que a motivou a iniciar o curso de Maternity Nurse.

89. Ao longo dos dois anos seguintes, exerceu actividade de ama, junto desta

família.

90. O seu companheiro nunca se adaptou ao estrangeiro, não conseguindo

manter as actividades laborais que surgiram, passando períodos cada vez

maiores em Portugal, com o filho de ambos.

91. O conflito conjugal aumenta e é nesta fase que o casal decide regressar

definitivamente a Portugal, tendo a arguida mantido a sua actividade laboral

na Suíça, regressando ao trabalho por períodos de 15 dias com pausas de 4

dias em Portugal.

92. Um ano depois, em 2016, separam-se.

93. Após esta data o filho passa a viver uma semana em casa de cada

progenitor, situação que se manteve aquando da regulação do poder paternal

após o divórcio em 2017.

94. É nesta etapa do seu ciclo de vida que inicia apoio administrativo numa

empresa de mergulho, cujo sócio-gerente é amigo da família e padrinho do

filho da arguida.

95. É neste período também que reencontra TR, um colega de liceu e inicia

relacionamento afectivo com o mesmo, classificando a relação, nos primeiros

tempos, como muito gratificante e que depois se vai deteriorando até que TR

decide, em Abril de 2019, terminar a relação contra a vontade da arguida.

96. À data dos factos, a arguida vivia com elevados níveis de stress que

começaram com a gestão administrativa da empresa de mergulho, com a

gestão dos períodos que tinha de viajar em trabalho para a Suíça,

desempenhando a actividade de ama durante as viagens de férias do casal

com quem sempre trabalhou no estrangeiro, da gestão dos períodos em que

seu filho vivia consigo e da ansiedade de poder vir a terminar a relação com

TR.

97. A arguida encontra-se ininterruptamente presa, no Estabelecimento

Prisional de Tires, desde o dia 26/06/2019.

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98. Após um período de internamento no serviço de psiquiatria do Hospital

Prisional São João de Deus, por tentativa de suicídio, ocorrido no segundo dia

de reclusão, tem vindo a ser acompanhada, desde a sua entrada no sistema

prisional, regularmente nas valências de psiquiatria e psicologia, com boa

adesão à prescrição psicofarmacológica.

99. A arguida considera que o apoio psicológico tem sido essencial para o seu

equilíbrio psicoemocional.

100. De acordo com os serviços da DGRSP, em termos pessoais, a arguida

"aparenta revelar uma tendência para estabelecer relações superficiais,

mostrando-se como uma pessoa extrovertida, sociável e amigável, omitindo,

todavia, emoções/sentimentos negativos (em termos relacionais), parecendo

procurar alguma desejabilidade social".

101. E, "o seu discurso denota capacidade de compreensão e de adaptação a

situações diversas, revelando um raciocínio pragmático e funcional".

102. A situação de reclusão da arguida é conhecida pela população local.

103. Para além da projecção nacional que a situação em causa teve, a nível

local, os habitantes de Óbidos conhecem a família, não só por ser um meio

relativamente pequeno como também pela actividade de voluntariado e

profissional que a arguida desempenhava.

104. A arguida tem alguma dificuldade em projectar-se no futuro, contudo,

refere que gostaria de refazer a sua vida e que o filho a perdoasse, receando

poder ser proibida de o contactar ainda que na presença de terceira pessoa,

facto que a angustia.

105. A arguida conta com o apoio da mãe a quem telefona diariamente, sendo

um importante elo de estabilidade psicoemocional.

106. A separação do filho, e, por conseguinte, do seu projecto de vida, é-lhe

penosa, não deixando, no entanto, de se apresentar conformada à situação em

que se encontra, bem como ao diagnóstico que resultou da perícia, parecendo

vivê-la com resignação.

107. A arguida não tem antecedentes criminais.

Factualidade referente ao pedido de indemnização cível do demandante LT .

108. Entre 17/04/2019 e 25/06/2019, período de tempo em que o seu filho MM

deu entrada por várias vezes, em urgência, pediátrica de hospitais, LT

presenciou esses factos, impotente, desesperado e aterrado, por temer pela

vida do seu filho, tanto mais que as próprias equipas médicas não conseguiam

descobrir o motivo das perdas de conhecimento, reincidentes paragens

cardiorrespiratórias e agravamento do seu estado de saúde.

109. Após receber alta, do primeiro internamento no Hospital das Caldas da

Rainha, MM ficou aos cuidados do pai, regressando às suas rotinas habituais

sem que houvesse nenhum problema.

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110. No dia 10/06/2019, ao final do dia, depois de uma semana ao seu cuidado,

o demandante MM entregou MM na casa da arguida, sendo que a criança

estava bem e apresentava um comportamento normal em relação à

progenitora.

111. No dia 11/06/2019, por volta das 21 horas, o demandante LT recebeu

diversos telefonemas da arguida informando que MM estava deitado, mas

apresentava-se irrequieto.

112. Por volta das 23-24 horas, o demandante LT recebeu urna chamada da

arguida, que aos gritos dizia que estava a acontecer um novo episódio idêntico

ao de Abril e que não sentia o pulso do MM .

113. O demandante LT telefonou de imediata para a corporação dos

Bombeiros de Óbidos, informando o sucedido e procurando obter ajuda o mais

rápido possível para o seu filho, que se encontrava em paragem respiratória

na casa da mãe, em Usseira, Óbidos.

114. De seguida deslocou-se para a casa da arguida acompanhado pelo

comandante dos Bombeiros, encontrando o seu filho agonizante e a arguida

transtornada aos gritos.

115. Perante este cenário o demandante LT ficou muito nervoso, aflito e com

medo de que o seu filho pudesse morrer.

116. No dia 13/06/2019, o demandante LT recebeu um telefonema da arguida

a informá-lo que MM tivera um episódio de paragem cardiorrespiratória,

apresentando-se a arguida extraordinariamente calma e tendo inclusive dito

que só tinha feito o telefonema pois tinha estado a acalmar-se.

117. O demandante LT deslocou-se ao Hospital Dona Estefânia. constatando

que o seu filho se encontrava ventilado, sedado e a fazer medicação, havendo

indicação de que iria realizar um conjunto de exames.

118. Face a esta situação o demandante LT não conseguia deixar de estar

preocupado e simultaneamente ansioso, nervoso e receoso, com medo de que

o seu filho tivesse uma doença muito grave.

119. Situação que se iria agravar ainda mais, quando o demandante LT foi

informado, cerca de quarenta e oito horas depois, que o seu filho tinha feito

uma nova paragem cardiorrespiratória.

120. O demandante LT teve conhecimento que a equipa médica tinha

conseguido reverter a situação, embora com muitas dificuldades, sendo que a

situação que o seu filho apresentava era idêntica à das situações anteriores,

com diminuição da frequência cardíaca e hemorragia pulmonar, seguida por

hemorragia digestiva e presença de sangue na urina.

121. No dia 18/06/2019, durante urna visita ao filho, o demandante LT

observou que o cateter de acesso intravenoso colocado no braço de MM

apresentava uma coloração esbranquiçada diferente do habitual, tendo

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abordado uma enfermeira estagiária que também achou estranho e chamou

outra enfermeira que inicialmente pensou tratar-se de um fenómeno de

cristalização do medicamento, tendo-o substituído por outro e recolhido o

referido acesso de cor esbranquiçada.

122. Transmitiu o que se tinha passado à arguida, ficando esta impassível

perante o que tinha acabado de suceder.

123. No dia 22/06/2019, o demandante LT foi, de novo, informado que o seu

filho tinha sido de novo acometido de uma paragem cardiorrespiratória, com

graves consequências para a seu estado saúde, com surgimento de sangue no

conteúdo gástrico (vómito), na urina e também nas fezes.

124. Situação que aumentou a ansiedade do demandante LT .

125. No dia 25/06/2019, o demandante LT foi informado que o seu filho tinha

tido outro episódio de características idênticas aos anteriores, tendo entrado

em bradicardia.

126. Durante o período de internamento no Hospital Dona Estefânia, o

demandante LT , enquanto pai, passou por um enorme sofrimento psicológico,

porquanto viu o seu filho padecer em consequência de uma doença que as

equipas médicas não conseguiam descobrir as causas, chegando mesmo a

pensar que podia morrer, o que lhe causou depressão, tristeza e desespero.

127. Durante os 44 dias em que o seu filho esteve internado, o demandante LT

passou a andar ansioso, transtornado, em virtude da preocupação e com

insónias, deixando de conseguir dormir, e quando isso sucedia devido ao

cansaço, logo acordava subitamente, o que acontecia frequentemente a meio

da noite.

128. MM era uma criança saudável, com toda uma vida a viver pela frente.

mas que em consequência dos actos violentos a que foi sujeito não é possível

prever as consequências ou sequelas que daí poderão advir.

129. Tudo isso causa um enorme desgosto ao demandante LT , pai de MM .

Factualidade referente ao pedido de indemnização cível do demandante MM .

130. A arguida ao atirar o filho para o tanque provocou-lhe um enorme

sofrimento físico e psíquico.

131. Ao agir como agiu a arguida provocou um enorme sofrimento físico e

psíquico a MM .

132. A arguida planeou os actos atentatórios da vida e saúde de MM e

cometeu-os conscientemente, com frieza de ânimo, motivada por um objectivo

fútil.

133. Em consequência das agressões de que foi vítima, MM passou por um

enorme sofrimento físico em consequência dos tratamentos e intervenções

clínicas, dolorosas e invasivas a que foi sujeito, suportando intensas e fortes

dores.

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134. MM passou por um enorme sofrimento psicológico, pois, com excepção

do período passado no hospital, estava consciente do que lhe estava a

acontecer.

135. MM era uma criança saudável, com toda uma vida a viver pela frente.

mas que em consequência dos actos violentos a que foi sujeito não é possível

prever as consequências ou sequelas que daí poderão advir.

3.1.2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA

De relevante para a discussão da causa, não resultaram provados os seguintes

factos:

Da acusação/pronúncia

1. No dia 14/04/2019, a arguida manietou MM , tapando-lhe os olhos com uma

fita, depois agarrou-lhe as mãos e prendeu-as com outra fita.

2. Na noite do dia 11 e madrugada de 12/06/2019, em circunstâncias não

apuradas, a arguida administrou clorofórmio por via oral ao filho MM .

3. A arguida queria atrair sobre si a atenção do ex-namorado TR, o qual se

apressava-se a estar junto de MM a cada agravamento do estado de saúde.

4. A arguida P. quis e conseguiu ofender MM na sua dignidade enquanto ser

humano e seu filho, o que igualmente conseguiu.

Factualidade referente ao pedido de indemnização cível do demandante MM .

5. A arguida agiu mais uma vez sem que tivesse sido acometida de qualquer

emoção, sentimento, ou medo de que o menor pudesse morrer ou ficar com

graves sequelas em consequência dos seus actos.

6. A arguida nunca demonstrou qualquer arrependimento, antes pelo

contrário, pelo reiteração do seu comportamento mais parecia regozijar-se

com o intenso sofrimento do seu filho MM .

7. No dia 16/06/2019, com nova administração de clorofórmio, a arguida

demonstrou possuir uma completa aversão pelo seu filho, bem como uma

frieza de sentimentos e sadismo extremo.

8. A arguida revelou possuir uma crueldade obsessiva, face, por exemplo, aos

tratamentos a que a criança era submetida, sem que isso a afectasse

minimamente.

3.1.3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

(…)

*

IIIº 1. Antes de entrarmos na apreciação das questões suscitadas pela

recorrente, importa tecer algumas considerações sobre o quadro

psicopatológico da arguida, tal como resulta dos factos dados como assentes

pelo acórdão recorrido, não impugnados nessa parte, o que poderá ser

relevante para melhor compreensão e enquadramento da conduta penalmente

relevante.

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No nº53, dos factos dos factos foi dado como assente:

“53. A arguida foi sujeita a exame pericial psiquiátrico que revelou um quadro

psicopatológico enquadrável numa perturbação factícia por procuração

(síndrome de Munchausen por Procuração) numa estrutura de personalidade

de características estadolimite (Borderline) estando presentes os pressupostos

médico-legais de imputabilidade”.

O Síndrome de Munchausen por Procuração é uma forma relativamente rara,

mas grave, de violência sobre crianças exercida pelo(a) cuidador(a) que induz

sinais e sintomas de doença numa criança.

O Síndrome de Munchausen por Procuração foi identificado pela primeira vez

por Roy Meadow, em 1977, e tem sido caracterizado, tendo em conta a

atribuição deliberada e repetida, por parte de um elemento da família ou

cuidador, de vários sinais e sintomas na criança, com o intuito de convencer os

serviços médicos da existência de uma doença, gerando procedimentos de

diagnóstico desnecessários e, por vezes, potencialmente danosos, num

processo moroso até à detenção. Na maioria dos casos diagnosticados com

este síndrome, quem perpetua a falsa doença na criança é a progenitora[1].

O nome Münchausen foi retirado de uma figura real, um barão alemão, que

lutou pelo Império Russo na Guerra Russo-Turca de 1735- 1739, conhecido

nos círculos aristocráticos pelas suas histórias mirabolantes, dizia que tinha

lutado com um crocodilo de 12 metros, que voou montado numa bola de

canhão, que tinha ido à lua, daí que com o tempo o seu nome, sem surpresa,

se tenha tornado sinónimo de engano, por isso sendo hoje usado para discutir

a prática criminosa de fazer outros – quase sempre crianças – ficarem doentes

para conseguir simpatia para o perpetrador[2].

O Síndrome de Munchausen por Procuração é uma variação da síndrome de

Munchausen, em que o agente provoca doença em si mesmo para convencer

os médicos da sua necessidade de cuidados, enquanto naquela situação, em

causa nos presentes autos, a necessidade de cuidados médicos é provocada na

criança, representando o termo por procuração o responsável, pois é ele que

fornece a falsa informação, ou seja, ele estimula (ou provoca) sintomas para

outro (criança).

O agente assume a doença indiretamente (por procuração), exacerbando,

falsificando ou produzindo histórias clínicas, evidências laboratoriais,

causando lesões físicas e induzindo a hospitalizações com procedimentos

terapêuticos e diagnósticos desnecessários.

Para a criança podem resultar consequências gravosas, nomeadamente

mortalidade, decorrentes da ação direta do cuidador ou das intervenções

médicas invasivas justificadas pelas descrições daquele[3].

É, indiscutivelmente, uma forma específica de violência contra as crianças e

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como tal identificada no nosso país, pelas entidades vocacionadas para a

defesa da criança contra todas as formas de violência e pelos serviços de

saúde[4].

Passemos à apreciação das questões suscitadas pela recorrente.

2. Imputa ao acórdão recorrido os vícios do art.410, nº2, do CPP.

Este preceito legal admite o alargamento dos fundamentos do recurso às

hipóteses previstas nas suas três alíneas, desde que o vício resulte do texto da

decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum[5].

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (al.a) consiste em

não bastarem os factos provados para justificarem a decisão proferida, pois,

havendo factos nos autos que o tribunal não investigou, embora o pudesse ter

feito e ainda ser possível apurá-los, tornam-se necessários para a decisão a

proferir.

Tributário do princípio acusatório, tem este vício de ser aferido em função do

objeto do processo[6], traçado naturalmente pela acusação ou pronúncia. Isto

significa que só quando os factos recolhidos pela investigação do tribunal se

ficam aquém do necessário para concluir pela procedência ou improcedência

da acusação se concretizará tal vício.

A recorrente refere-se a este vício a propósito do crime de homicídio na forma

tentada, pelos factos de 11/12 junho de 2019, afirmando que não se provaram

factos integradores do respectivo elemento subjectivo e alegando que tal facto

também não constava da acusação.

Tais factos, porém, constam dos nºs59 e 61 dos factos provados,

correspondendo ao alegado nos nºs59 e 61 da acusação, factos que dizem

respeito à conduta da noite de 11 para 12 de junho e às condutas posteriores

em contexto hospitalar (dias 13, 16, 18, 21 e 25 de junho de 2019).

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a

decisão (al.b), respeita antes de mais à fundamentação da matéria de facto,

mas pode respeitar também à contradição na própria matéria de facto,

ocorrendo este vício quando se dá como provado e não provado o mesmo

facto.

No caso, vê a recorrente contradição entre os factos provados nºs5 e 13, onde

foi considerado assente que arguida procedeu a manobras de reanimação e

suporte básico de vida, tendo conseguido a sua reversão e chamou o INEM

para o local (nº5) e o que consta do nº13, que a morte do menor só não

aconteceu por motivos alheios à vontade da arguida.

Contudo, o considerado assente no ponto 13, tem de ser visto em relação a

momento anterior às manobras de reanimação encetadas pela arguida, altura

a que também se reporta o facto do ponto 12 (quis praticar tais factos bem

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sabendo que a sua conduta era susceptível de provocar a morte por

afogamento e paragem cardiorrespiratória do seu filho com sete anos de

idade, o que representou e aceitou conformando-se com a mesma), o que é

compatível com a restante matéria de facto provada (nomeadamente o quadro

psicopatológico supra descrito e dado como assente no nº53 dos factos

provados) e o provado no ponto 60 (a arguida queria atrair sobre si a atenção

das pessoas que lhe estavam mais próximas pois sabia que de cada vez que o

MM … era acometido de um agravamento súbito do estado clínico se sentia

valorizada como mãe).

O erro notório na apreciação da prova (al.c) caracteriza-se como o erro

ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos

observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se

dá conta.

Ocorre quando a matéria de facto sofre de uma irrazoabilidade passível de ser

patente a qualquer observador comum, por se opor à normalidade dos

comportamentos e às regras da experiência comum[7].

Este vício, como é sabido, tem de resultar do texto da decisão recorrida, por si

só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas sem recurso a

elementos estranhos a ela, ainda que constantes do processo[8].

O vício, para ser notório, tem de consubstanciar uma falha grosseira e

ostensiva na análise da prova – facilmente percetível numa leitura

minimamente atenta e ponderada, levada a cabo por um juiz com a cultura e

experiência da vida que deve pressupor-se num juiz normal chamado a

apreciar a questão – denunciadora de uma violação manifesta das regras

probatórias ou das legis artis, ou ainda das regras da experiência comum, ou

que aquela análise se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo

contraditórios.

A recorrente refere-se a este vício na conclusão 7ª, alegando não ter sido

valorada a sua conduta de retirar o menor do tanque de água, que segundo ela

justificaria que tivesse sido dado como provado que a morte só não aconteceu

devido a essa intervenção.

No entanto, como se referiu a respeito do vício de contradição insanável, a

relevância penal da conduta tem de ser aferida em relação a momento

anterior às manobras de reanimação encetadas pela arguida, quando a

arguida empurrou o menor para o tanque de água e aí o deixou por tempo

indeterminado, até que ficou inconsciente, representando e conformando-se

ela com o facto de o menor poder morrer em consequência desses factos.

Não se reconhece, assim, qualquer erro, muito menos erro notório, ou

qualquer outro dos referidos vícios.

3. De acordo com o art.428, nº1, do Código de Processo Penal, “as relações

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conhecem de facto e de direito”.

O Ministério Público, na resposta apresentada em 1ª instância, defende a

rejeição do recurso nesta parte, alegando que a recorrente não cumpre as

exigências do nº3, do CPP.

De facto, a recorrente não é rigorosa na cumprimento das especificações

exigidas por aquele preceito legal. Contudo, lidas em conjunto as motivações e

conclusões, é possível compreender quais os pontos concretos da matéria de

facto que merecem a sua discordância e as provas que, na sua perspetiva,

justificam decisão diversa, o que permite o seu conhecimento.

Impugna os nºs3 a 7,12,13,19, 20 e 21, dos factos dados como provados.

Em relação ao nº13, alega que se trata de matéria conclusiva, mas dessa

alínea consta um facto concreto e preciso “A morte do menor só não

aconteceu por motivos alheios à vontade da arguida”, que nada tem de

conclusivo. A morte constitui um resultado adequado à conduta da arguida e

que ela representou como possível, com ele se conformando, resultado esse

que podia ter ocorrido apesar da conduta da arguida descrita no nº5 dos

factos provados.

Alega que a prova não permite concluir que o menor ficou inconsciente, mas a

testemunha ED (enfermeiro do INEM, integrava a tripulação da ambulância

que foi ao local), referiu que se deslocaram ao local na sequência de uma

chamada para uma ocorrência de uma pessoa inconsciente e a situação que

descreve ter visto quando aí chegou (criança muito gelada, em hipotermia com

32º,33º de temperatura) é compatível com um estado de inconsciência

anterior à sua chegada.

Por outro lado, o menor, em relação a esse espisódio, referiu que estava

sózinho com a mãe, lembra-se de ter caído à água, mas não de ter saído e de

quem daí o retirou, o que é compatível com o estado de inconsciência dado

como provado.

O tribunal ponderou, ainda, as declarações da arguida “…praticamente

admitiu a prática da maioria dos factos dados como provados”, referindo ela

não se recordar de alguns pormenores do primeiro episódio ocorrido nas

instalações da "C.– Actividades Marítimas, Lda.", o que não se compreende

quando não há dúvida que ela era a única pessoa que estava com o menor

nesse momento.

Quanto aos nºs12 e 13, o conjunto da prova, em particular as declarações da

arguida e do menor, não deixam dúvidas que a queda do menor à água (o

enfermeiro ED encontrou-o com a roupa interior molhada e em hipotermia) se

deveu a ato voluntário da arguida, não existindo também dúvidas que aí foi

deixado por algum tempo (até que ficou inconsciente e atingiu o estado de

hipotermia em que foi encontrado pela equipa do INEM), não apresentando a

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arguida qualquer justificação para a queda e para o menor ter ficado na água

atá ficar inconsciente, apesar de ser ela a única pessoa que aí o acompanhava

e de ter referido na chamada para o INEM que a assistência era para pessoa

inconsciente, factos estes que, numa análise objetiva, não permitem conclusão

diversa da considerada provada (a arguida representou como possível que em

virtude da queda do menor à agua e da sua permanência aí até ficar

inconciente, era susceptível de provocar a morte do menor por afogamento e

paragem cardiorrespiratória, o que representou e aceitou conformando-se

com a mesma).

A morte do menor podia ter ocorrido em consequência da queda e

permanência na água até ao estado de inconsciência, o que os dados da

experiência comum permitem aceitar não ter ocorrido apenas por um acaso,

ou seja, por por motivos alheios à vontade da arguida.

Impugna, ainda, os nºs19, 20 e 21 dos factos provados,

Alega que a testemunha BG não tinha conhecimento direto dos factos, o que

corresponde à realidade.

Alega, ainda, que o depoimento do menor MM não permite considerar esses

factos provados.

Contudo, o depoimento do menor foi muito além do transcrito pela recorrente,

tendo afirmado que a mãe apareceu no quarto onde ele já estava deitado,

tapou-o com o cobertor, ela colocou-se em cima do cobertor, ele não conseguia

respirar, depois ela arrastou-o para a sala, vomitou na casa de banho e a mãe

ligou ao pai, depois uma ambulância foi buscá-lo.

Assim, é manifesto que os elementos de prova indicados pela recorrente não

impõem decisão diversa da recorrida.

Da análise da prova produzida em audiência resulta que o tribunal recorrido

se apoiou em critérios objetivos, motivando adequadamente a decisão relativa

à matéria de facto, da fundamentação decorrendo que se norteou pelo

cumprimento do dever de perseguir a verdade material, o que corresponde ao

cumprimento adequado do princípio da livre apreciação da prova, consagrado

no art.127, do CPP., não existindo qualquer dúvida em relação aos factos

provados.

Improcede, deste modo, a impugnação da matéria de facto, considerando-se a

mesma fixada nos termos descritos pelo acórdão recorrido.

4. Provaram-se ações voluntárias da arguida em relação à pessoa do menor

MM , em sete ocasiões:

- 17 de abril de 2019 (empurrou o menor para um tanque de treino de

mergulho com três metros de profundidade, cheio de água e aí o deixou

permanecer até o mesmo ficar inconsciente, não se encontrando no local

qualquer outra pessoa além dela e do menor);

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- noite de 11 para 12 de junho (na casa onde vivia com o menor, dirigiu-se ao

quarto do mesmo, tapou-lhe a cabeça com o lençol, segurando-o com as mãos

por detrás da cabeça do menor, fazendo-o com força por tempo indeterminado,

o menor vomitou e teve perda de conhecimento);

- dias 13, 16, 18, 21 e 25 de Junho de 2019 (em cada uma destas datas, no

Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, onde o menor estava internado,

administrou clorofórmio ao filho, usando uma seringa que acoplou ao cateter);

Em todas estas descritas sete situações o menor MM entrou em paragem

cardiorrespiratória.

A voluntariedade de cada um destes actos da arguida não suscita dúvidas, o

que é corroborado pela exame pericial psiquiátrico constante dos autos, que

reconheceu verificarem-se os pressupostos médico-legais de imputabilidade e

resulta da matéria de facto provada (nºs12 e 59), pretendendo a arguida com

essa sua conduta “… atrair sobre si a atenção das pessoas que lhe estavam

mais próximas pois sabia que de cada vez que MM era acometido de um

agravamento súbito do estado clínico se sentia valorizada como mãe” (nº60,

dos factos provados), como é próprio do quadro psicopatológico que lhe foi

reconhecido (Síndrome de Munchausen por Procuração).

O Síndrome de Munchausen por Procuração leva o agente a praticar atos de

violência sobre a criança, no caso atos repetidos de violência extrema, mas em

cada um desses atos há voluntariedade do agente, justificativa da sua

responsabilidade penal, caso se verifiquem os restantes elementos típicos.

Em cada uma daquelas sete situações foram praticados atos idóneos a

produzir o resultado morte (o facto de o menor em cada uma dessas sete

situações ter entrado em paragem cardiorrespiratória afasta qualquer dúvida

sobre essa idoneidade).

Não se provou que a arguida tenha agido com intenção de provocar a morte,

assim se afastando o dolo directo (nº1, do art.14, CP), nem que tenha

representado a morte do menor como consequência necessária da sua

conduta, o que também afasta o dolo necessário (nº2), ao contrário do que

entendeu o tribunal recorrido.

Na verdade, o que consta da matéria de facto provada é que a arguida, em

cada uma daquelas sete situações, sabia que dos seus atos podia resultar a

morte do menor, o que representou como possível e aceitou conformando-se

com aquela realização (nºs12 e 61 dos factos provados), o que se reconduz a

ação com dolo eventual (nº3, do citado art.14, CP).

Estão, assim, preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos de cada

um dos sete crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, por que a

recorrente foi condenada.

A recorrente, revelou absoluta insensibilidade à violaçao do bem jurídico

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(vida), de que era titular o seu próprio filho de menoridade, apesar de

representar essa violação como possível, sobrepondo de forma clara e

censurável a sua vontade (de atrair sobre si a atenção das pessoas e se sentir

valorizada como mãe) ao desvalor do ilícito, conformando-se com a realização

do tipo objectivo (provocar a morte), o que é revelador de uma culpa

agravada, própria do crime agravado por que foi condenada (art.132, CP).

A compatibilidade do dolo eventual com uma forma superior de culpa exigida

pelo homicídio qualificado, tem justificado algumas divergências[9].

Contudo, como refere o Prof. Figueiredo Dias, o que o aplicador do direito tem

de fazer é partir da situação tal como foi representada pelo agente, para saber

se ela corresponde a um exemplo padrão e se comprova uma especial

censurabilidade ou perversidade do agente, o que não ocorre a nível do

elemento subjectivo do ilícito, mas em último termo a nível do tipo da culpa[10].

Ora, perante as circunstâncias concretas das condutas em causa, com a

recorrente no seu papel de mãe a praticar sobre a pessoa do filho menor e

indefeso os atos dados como provados, sempre com frieza de ânimo e em cinco

dos casos utilizando veneno, é indiscutível a especial censurabilidade e

perversidade do agente, subjacente ao tipo criminal de homicídio qualificado[11].

Questiona alguma doutrina, também, a possibilidade de condenação por crime

tentado, praticado com dolo eventual.

O Prof. Figueiredo Dias[12], porém, entende que “não existe nenhuma

incompatibilidade lógica e dogmática entre o tentar cometer um facto doloso e

a representação da realização apenas como possível, conformando-se o agente

com ela”, admitindo, consequentemente, sua punição.

Leal-Henriques e Simas Santos[13], em anotações ao Código Penal Português,

aduzem que a tentativa seria compatível com quaisquer das formas de dolo,

seja ele directo, necessário ou eventual e, “assim, o requisito ‘decidir cometer

um crime’ (art. 22.º, n.º 1, do C. Penal de 1982) pode satisfazer-se com a

representação da realização de um facto como consequência possível da

conduta, tendo o agente actuado conformando-se com aquela realização”.

Para Maria Fernanda Palma[14], há compatibilidade, pelo menos em certos

casos, entre o dolo eventual e a decisão criminosa, concluindo que “na

perspectiva do desvalor da acção, do ilícito, não há qualquer razão para

diferenciar qualitativamente o dolo eventual”.

No caso, a nível subjetivo a ação ficou completa (representou a possibilidade

de morte e conformou-se), falhando só a verificação objetiva do resultado, mas

por mero acaso, pois dúvidas não se suscitam em relação à idoneidade dos

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atos praticados para o provocar.

Praticou, pois, os crimes por que foi condenada (arts.132 nº1 e nº 2, als.a,c,j, e

também i, nas últimas cinco situações, por referência ao 131, nº1, 22, 23 e 73,

do Código Penal).

5. O resultado representado (morte) não se concretizou, em todas as situações

tendo ocorrido ações da arguida contrárias à produção desse resultado

(procedeu a manobras de reanimação, chamou o INEM, alertou os médicos

quando o menor estava internado).

Estas ações da arguida apresentam-se compatíveis com o seu quadro

psicopatológico (Síndrome de Munchausen por Procuração), o que a levava a

querer atrair sobre si a atenção das pessoas que lhe estavam mais próximas e

a sentir-se valorizada como mãe, para o que as sucessivas necessidades de

assistência médica do menor e consequentes oportunidades para ela ser vista

como mãe extremosa se apresentavam mais adequadas do que o resultado

morte (por isso não o quis, mas representou-o como possível e com ele se

conformou).

Defende que tais ações revelam desistência do crime, relevante nos termos do

art.24, CP, que prevê a não punibilidade da tentativa quando o agente desistir

voluntariamente de prosseguir com a conduta criminosa de modo a evitar a

efectiva lesão do bem jurídico.

Trata-se de um procedimento de política criminal, de prevenção da

criminalidade, com vista à redução de resultados criminosos, estimulando-se o

criminoso a retroceder nos seus intentos.

Com a desistência, o agente acabará por deixar uma última imagem de uma

personalidade conforme ao ordenamento, afastando a sua perigosidade e a

necessidade de uma intervenção punitiva.

Contudo, como resulta do citado art.24, apenas uma desistência voluntária é

digna de acolhimento no seio da regra da desistência, só com a voluntariedade

há material valorativo para se isentar o infrator de uma pena pela regra.

Se se exigisse apenas e tão-só uma qualquer desistência, a impunidade ficaria

entregue a um destino que seria benéfico a quem não prossegue com o intento

porque é impedido, porque simplesmente o falhou, ou porque tem outro

interesse para si mais importante que a consumação do crime (no caso

realização do interesse egoísta de atração de atenção e sentir-se valorizada

por outros como mãe).

A atitude desistente tem que revelar negação da lesão do bem jurídico, o que

no caso não acontece, pois a arguida quis aproveitar-se da violação do bem

jurídico para satisfazer aquele interesse egoísta, no fundo, era a tentativa o

que mais satisfazia os seus interesses censuráveis e egoístas.

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A não punibilidade de uma conduta como a que está em causa seria,

manifestamente, contrária ao instituto da desistência, já que com este se

pretende a promoção de reversões de intentos criminosos de modo a reduzir a

lesão dos bens juridicos e a prevenção da criminalidade quando, no caso em

apreço, depois de cada tentativa, a arguida se foi decidindo por outra, só

terminando a repetição desses comportamentos quando foi descoberta e

houve intervenção de órgão de polícia criminal.

Não ocorreu, pois, desistência relevante.

6. Como refere o acórdão recorrido, a cada um dos sete crimes de homicídio

qualificado, na forma tentada, praticado pela recorrente, corresponde pena de

prisão de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão.

Condenada em penas concretas graduadas entre sete anos de prisão e oito

anos e seis meses de prisão, por cada um daqueles sete crimes, a recorrente

qualifica essas penas de excessivas, reclamando a redução das penas

parcelares para próximo dos limites mínimos e a redução substacial da pena

única.

Como é sabido, a determinação da medida concreta da pena faz-se em função

da culpa do agente e entrando em linha de conta com as exigências de

prevenção de futuros crimes.

A culpa é um referencial que o julgador nunca pode ultrapassar. Até ao

máximo consentido pela culpa, é a medida exigida pela tutela dos bens

jurídicos que vai determinar a medida da pena, criando-se uma moldura de

prevenção geral, cujo limite máximo é a proteção máxima pensada para os

bens jurídicos da comunidade e cujo limite mínimo é aquele abaixo do qual já

não há proteção suficiente dos bens jurídicos. Dentro destes limites intervêm,

para a concretização, a prevenção geral e a ideia de ressocialização[15].

Quanto às exigências de prevenção geral, dizem respeito à confiança da

comunidade na ordem jurídica vigente que fica sempre abalada com o

cometimento dos crimes, têm a ver com a proteção dos bens jurídicos, com o

sentimento de segurança e a contenção da criminalidade, em resumo, visam a

defesa da sociedade.

Já as exigências de prevenção especial se prendem com a capacidade do

arguido de se deixar influenciar pela pena que lhe é imposta, estão ligadas à

reintegração do agente na sociedade.

No caso, o grau da ilicitude é muito elevado, com uma mãe a atentar contra a

vida do próprio filho, aproveitando-se da fragilidade e indefesa deste, agindo

com frieza de ânimo e, em cinco situações, num contexto de internamento

hospital, utilizando veneno.

Em relação ao grau da culpa, reconhecemos que não atinge o nível atribuído

pelo acórdão recorrido, pois, como vimos, não agiu com o dolo necessário aí

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referido, mas com dolo eventual, que corresponde ao menor nível de culpa do

agente que atua dolosamente.

Ao nível da culpa tem de ser valorado também o quadro psicopatológico da

arguida (Síndrome de Munchausen por Procuração), considerado assente na

matéria de facto provada, mas a que o tribunal recorrido não faz qualquer

referência em sede de fundamentação de direito.

Este quadro psicopatológico, impelindo a arguida para a ação (no sentido de

atrair sobre si a atenção das pessoas e sentir-se valorizada como mãe), terá de

ser reconhecido no caso como um fator redutor da culpa.

Atribuiu o acórdão recorrido um maior grau de culpa a cada renovação da

decisão criminosa, refletido num aumento progressivo da pena de cada novo

crime, considerando que, de cada vez, a vida do filho mostrava-se mais

fragilizada.

Com o devido respeito, porém, não vemos em que essa maior fragilidade tenha

sido relevante na renovação da decisão criminosa.

Na verdade, em todos os atos, a arguida aproveitou-se da fragilidade da vítima

(menor de sete anos de idade, vivendo com a arguida e aos cuidados dela).

Por outro lado, em cada ato que se repetia ela via alcançado o seu objetivo

egoísta (atrair sobre si a atenção das pessoas e sentir-se valorizada como

mãe), sem que os prestadores dos cuidados médicos a que sujeitava o menor,

incluindo quando ele estava em contexto hospitalar, disso de apercebessem e

evitassem nova decisão criminosa, o que tem de ser visto como facilitador de

nova resolução, ou seja, a repetição de situações não pode deixar de ter levado

a um certo enturpecimento da capacidade de se decidir de uma outra maneira,

desse modo não podendo tal repetição conduzir a um agravamento da culpa,

ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido.

Deste modo, considerando a medida abstrata da pena prevista para cada um

dos crimes (2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão), tendo

presente que se reconhece na conduta da arguida um grau de culpa inferior

ao subjante à decisão recorrida (dolo eventual, quando aquela decidiu em

função de um dolo necessário) e o efeito do quadro psicopatológico da arguida

como facilitador da resolução criminosa (ignorado pela decisão recorrida), a

pena concreta tem de ser graduada abaixo da medida fixada no acórdão

recorrido, apresentando-se adequada a pena de seis anos de prisão, para cada

um dos sete crimes.

Na determinação da pena única importa ponderar, em conjunto, os factos e a

personalidade do agente (art.77, nº1, CP).

O elemento aglutinador da pena aplicável aos vários crimes é a personalidade

do delinquente, a qual tem, por força das coisas, carácter unitário[16].

Na avaliação da personalidade, como refere o Prof. Figueiredo Dias[17], “…

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revelará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é

reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira»)

criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na

personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à

pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.

De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o

comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de

socialização)”.

No caso, a repetição aconteceu sem qualquer alerta à arguida que dificultasse

nova resolução criminosa, facilitada pelo quadro psicopatológico de que

padecia, o que justifica que não seja atribuído efeito agravante à repetição

dentro da moldura penal conjunta, no caso, 6 a 25 anos de prisão (art.77, nº2,

CP).

Ponderando todos estes fatores, a pena única de 17 anos de prisão fixada pelo

tribunal recorrido, com o devido respeito, apresenta-se algo exagerada,

ultrapassando o limite consentido pela culpa (foi fixada considerando o dolo

necessário, quando a arguida agiu com dolo eventual e ignorou o quadro

psicopatológico da arguida como facilitador da resolução criminosa),

apresentando-se adequada e proporcional[18] a uma avaliação global dos

factos, a pena única de dez anos de prisão.

Esta pena de dez anos de prisão, representa já um castigo severo para uma

mulher próximo dos trinta anos de idade (assim evidenciando o adequado juízo

de reprovação), ao mesmo tempo que, não esquecendo a pessoa do agente

afetado por um quadro psicopatológico facilitador da ação e carente de

adequado tratamento (na adolescência terá beneficiado de acompanhamento

de Serviços de Psicologia e Orientação, na sequência de episódios suicídas –

nºs76 a 79 dos factos provados, o que não terá sido suficiente para evitar o

quadro psicopatológico agora apresentado), se adequa a pena à personalidade

que nos factos se revelou, por forma que a mesma contribua para a

reintegração do agente na sociedade, como estatui o art.40, nº1, do Código

Penal.

Nesta redução da pena, face à fixada em 1ª instância, não pode ser visto

qualquer juízo de menorização da gravidade da conduta em causa,

reconhecida como uma forma gravíssima de violência sobre uma criança, com

ofensa de direitos constitucionalmente protegidos (arts.24 e 69, CRP), cuja

defesa incumbe aos tribunais assegurar (art.202, nº2, CRP), mas tão só a

necessidade de individualização da pena considerando o concreto condenado,

o que também constitui um direito e uma garantia fundamentais num Estado

de Direito.

Estão em conflito as necessidades de proteção de bens jurídicos (apontando

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para uma punição severa) e as necessidades de reintegração do agente na

sociedade, para o que o tratamento do quadro psicopatológico da arguida se

apresenta essencial, impondo-se na gestão deste conflito a prevalência do

juízo de culpa, porque, como vimos, em caso algum a medida da pena pode

ultrapassar a medida da culpa. Não pode ser ignorado, ainda, que o princípio

da dignidade da pessoa humana e o princípio da culpa impedem que o agente

sirva de instrumento, numa lógica de bode expiatório, para intimidar e

combater a criminalidade através de penas exemplares e desproporcionais em

relação à sua culpa em concreto.

Acresce que, no caso, não se reconhece qualquer risco de continuação da

atividade criminosa, ou perigo para a vítima, pois quando a arguida recuperar

a liberdade depois do cumprimento da pena agora imposta, já a vítima não

terá a fragilidade (decorrente da idade) que permitiu a execução do crime.

7. Condenada a pagar ao demandante MM , representado pelo seu pai LT , a

quantia de €300.000,00, a título de danos não patrimoniais e ao demandante

LT a quantia de €25.000,00, a título de danos não patrimoniais, a recorrente

insurge-se contra os montantes fixados, alegando que foram fixados de forma

arbitrária[19].

É indiscutível a verificação dos pressupostos de responsabilidade civil

extracontratual (art.483, do Código Civil), em relação ao pedido formulado

pelo MM .

Contudo, em relação ao pedido do LT , a verificação desses pressupostos não é

líquida.

Com exceção das situações previstas nos nºs 2 a 4 do art.496, e no art.495, o

Código Civil não dispõe de uma regra geral que delimite expressamente o

círculo de sujeitos a quem cabe a titularidade do direito à indemnização pelos

danos decorrentes de um facto lesivo.

O critério para determinar essa titularidade tem sido elaborado pela doutrina,

no sentido de que apenas pode peticionar uma indemnização o lesado que

sofreu danos diretos na sua própria esfera jurídica e que é titular do direito

violado ou interesse legalmente protegido (art.483, CC)[20].

Ou seja, o direito à reparação cabe, em regra, apenas aos designados lesados

imediatos.

Esta regra é válida para danos patrimoniais e danos não patrimoniais, razão

por que em relação a estes, em regra, não podem terceiros reclamar a sua

reparação em caso de a vítima direta ter sofrido lesão corporal não fatal, pois

a lei só prevê a reparação de danos não patrimoniais de terceiros em caso de

morte e a favor das pessoas enunciadas no citado art.496, nº3, CC.

No caso, o demandante LT, enquanto pai do lesado imediato, é terceiro em

relação à ação ilícita, não tendo sofrido um dano próprio causado diretamente

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pelo ato ilícito, mas danos reflexos que a doutrina e jurisprudência

tradicionais têm entendido não serem suscetíveis de indemnização.

O argumento mais frequente consiste na invocação do elemento histórico de

interpretação. Vaz Serra, no Anteprojeto do CC, propôs uma disposição legal

referente às situações em que o lesado imediato sobrevivia, apesar de sofrer

uma lesão corporal, prevendo essa disposição a ressarcibilidade dos danos dos

familiares do lesado, solução legislativa que não passou para a redação

definitiva do Código Civil, levando a que os defensores desta tese afirmassem

que foi intenção do legislador prever o direito de indemnização dos familiares

da vítima direta em caso de morte desta, mas não em caso de sobrevivência da

mesma[21].

Invoca-se também o argumento literal, segundo o qual a letra da lei não prevê

a reparação dos danos não patrimoniais dos familiares do lesado imediato que

não falece, ao contrário do previsto para os familiares do lesado falecido, no

nº3, do citado art.496.

Argumenta-se, ainda, que sendo os regimes daqueles arts.495 e 496

excecionais, não podem ser aplicados analogicamente (art.11, CC), nem alvo

de uma interpretação extensiva[22].

Esta orientação tradicional tem vindo a ser posta em causa quanto a situações

particulares, nomeadamente pelo Cons. Abrantes Geraldes, defendendo a

ressarcibilidade dos danos não patrimoniais dos familiares mais próximos da

vítima de lesão corporal grave, em caso de lesão do relacionamento familiar

ou de lesão do relacionamento conjugal, referindo que, para fundamentar a

indemnização, pode recorrer-se às normas gerais que tutelam a personalidade

(art.70) ou que regem as relações familiares (arts.1672 e 1878) e às normas

constitucionais que protegem a família, designadamente as relações de

casamento ou de filiação (arts.36, nº5 e 67, CRP)[23].

Esta solução, de ser merecedor de proteção o sofrimento da pessoa que

mantém uma relação de muita proximidade e afetividade com a vítima, tem

em determinados casos merecido acolhimento nos nossos tribunais superiores,

sendo de destacar o AUJ nº 6/2014 (Diário da República n.º 98/2014, Série I de

2014-05-22), que decidiu «Os artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1 do Código Civil

devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais,

particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida

de modo particularmente grave».

O Pleno das Secções Cíveis do STJ situou a problemática no âmbito da

responsabilidade civil e dos danos não patrimoniais, afastando, desde logo, o

argumento da separação de poderes: “Este Tribunal, contudo, está a mover-se

dentro do círculo de abrangência traduzido pelas várias interpretações

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possíveis das normas vigentes – concretamente do nº1 do artigo 483º e do nº1

do artigo 496º – e não a criar “ex novo” norma que tutele o direito da autora”,

referindo que, naquele caso concreto (a vítima sofreu amputação de um

membro inferior, que lhe determinou uma i.p.p. de 80%, passou a padecer de

stress pós-traumático, diminuição da autoestima, oscilações de humor,

diminuição da capacidade de relacionamento afetivo conjugal, a esposa que o

ajudava diariamente peticionou uma indemnização por danos não patrimoniais

devido ao sofrimento e alteração da sua vida quotidiana como decorrência do

acidente), era necessária uma interpretação atualística, no sentido da

ressarcibilidade dos danos não patrimoniais sofridos pela A., pois “Casos há,

efetivamente, em que a relação entre o dano provocado a uma pessoa que se

mantém viva e o sofrimento também infligido a outra é tão estreita, que se

pode dizer que o atingimento desta tem lugar, se não necessariamente, pelo

menos em regra”.

O acórdão do TRL de 26-01-2017 (Relator Jorge Leal, Pº

2922/14.2TBOER.L1-2, acessível em www.dgsi.pt), reconheceu direito a

indemnização a um filho pelos danos não patrimoniais sofridos em virtude do

estado de saúde do pai, que após um acidente grave ficou em estado

semivegetativo, não conseguindo, posteriormente, reconhecer o próprio filho,

considerando que “… a visão dita tradicional está desajustada face ao espírito

e às necessidades atuais…”, tendo exposto algumas considerações sobre a

proteção da família a nível legal e constitucional, entendendo que tal proteção

se deve ao facto de os vínculos familiares constituírem a base estrutural da

identidade do ser humano e do seu desenvolvimento, podendo até dizer-se que

a paternidade/maternidade e a filiação se albergam na cláusula geral de

proteção da personalidade consagrada no art.70º. Acrescentou ainda: “… a

lesão grave de um pai ou de um filho, comprometendo séria e

irremediavelmente essa dimensão essencial da vivência da pessoa, constitua,

em regra, um dano direto, a lesão de direito absoluto ou interesse

juridicamente tutelado, que, verificados que estejam os restantes pressupostos

da responsabilidade civil, merece ser compensado, a título de dano não

patrimonial, ao abrigo do disposto nos artigos 483º nº 1 e 496º nº 1 do Código

Civil.”

No mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de

20/10/2015 (Relator Jorge Arcanjo, Pº 335/09.7TBNLS.C1, acessível em

www.dgsi.pt), salientou a necessidade de ultrapassar a categoria tradicional

de dano moral, de forma a abranger não apenas a simples dor ou perturbação

emocional, mas erigindo “(...) um novo modelo centralizado no “dano pessoal”

correspondendo ao “dano ao projeto de vida”, como núcleo do “dano

existencial”, reconhecendo à esposa do lesado direto de ato grave o direito a

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ser indemnizada por dano próprio integrador do seu direito de personalidade.

Em todos estes casos estão em causa danos graves com implicações

relacionamento familiar ou conjugal.

No caso, os danos não patrimoniais alegados pelo demandante LT e provados

(nºs108 e segs, dos factos provados) reconduzem-se ao sério sofrimento de um

pai que vê o filho padecer por doença ou lesão grave provocada por outrem

(sentimento de impotência face à situação evidenciada pelo filho, desespero,

aterrado por temer pela vida do seu filho, ficou muito nervoso, aflito, passou a

andar ansioso, transtornado, com insónias, deixando de conseguir dormir).

É inegável o sofrimento do demandante, como é próprio de um pai normal que

sofre com os infortúnios e se regozija com os êxitos do filho.

Contudo, nada se provou que permita admitir que o sofrimento do

demandante tenha ído além do que é próprio de um pai que vê o filho afetado

por doença grave de prognóstico reservado e que depois se sente aliviado pela

cura, sofrimento suscetível de integrar a categoria tradicional de dano moral,

mas insuficiente para ser reconhecido como dano próprio integrador do seu

direito de personalidade por afetação da sua relação de parentalidade com o

lesado direto.

Ultrapassados os factos, a relação do demandante com o filho continuou

idêntica à que era antes, constituindo os factos para o demandante um

obstáculo na vida do filho (sem dúvida muito sério e com implicações na

personalidade e desenvolvimento do menor), mas que ele viu ultrapassado e

que não tem implicações na afirmação do demandante como pai, nem na sua

relação com o filho, relação essa que só pode ter ficado mais forte e próxima.

Não se reconhece, assim, um dano próprio do demandante LT, equiparável aos

verificados nos últimos acórdãos citados, que justifique reparação em virtude

da atuação ilícita da demandada.

Em relação aos danos sofridos pelo demandante MM , os mesmos decorrem

dos terríveis atos que suportou descritos nos factos provados e inerente

sofrimento, agravado pela circunstância de terem sido perpetrados pela

própria mãe, com os consequentes traumas que o afetarão ao longo da vida.

A lei impõe a fixação do respetivo montante segundo critérios de equidade,

mas esta, sem prejuízo de algum grau de subjetividada e da ponderação

prudencial e casuística das circunstâncias do caso, não dispensa a

necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que

implica a procura de uniformização de critérios, com ponderação de critérios

jurisprudenciais que generalizadamente vêm sendo adotados, de modo a não

pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade

[24].

Ora, com o devido respeito, tendo em conta estes critérios e as decisões

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publicadas dos nossos tribunais superiores, o valor fixado pelo tribunal

recorrido apresenta-se exagerado.

Não questionando que os danos não patrimoniais sofridos pelo menor MM

possam ser valorados em valor superior ao habitualmente atribuído pelo dano

morte[25], o valor de €300.000 é manifestamente desproporcional face aos

critérios adotados pelos nossos tribunais superiores[26].

Tendo presentes estes critérios, numa avaliação equitativa e atualista,

consideramos adequada a quantia de €100.000, como reparação dos danos

não patrimoniais sofridos pelo menor MM .

8. Concluindo:

O Síndrome de Munchausen por Procuração, constitui uma forma específica

de violência sobre crianças, caracterizada pela prática de atos para fazer a

criança ficar doente, gerando procedimentos de diagnóstico desnecessários e

potencialmente danosos, num processo moroso até à detenção, com intenção

de conseguir a simpatia para o perpetrador;

No caso, a arguida, lançou o filho de sete anos a uma piscina, aí o deixando

permanecer até ficar inconsciente, noutra ocasião tapou a cabeça do menor

com um lençol até o mesmo perder a consciência e em cinco ocasiões

posteriores, quando o menor estava em internamento hospitalar, administrou

clorofórmio ao filho, usando uma seringa que acoplou ao cateter colocado

pelos serviços hospitalares, em todas estas sete situações tendo o menor

entrado em paragem cardiorrespiratória, sabendo a arguida que dos seus atos

podia resultar a morte do menor, o que representou como possível e aceitou

conformando-se com essa realização, assim tendo praticado sete crimes de

homicídio qualificado, na forma tentada, agindo com dolo eventual;

O crime de homicídio qualificado, na forma tentada, é compatível com o dolo

eventual;

O instituto da desistência, é um instrumento de política criminal, de prevenção

da criminalidade, que tem em vista a redução de resultados criminosos, com

ele se estimulando o criminoso a retroceder nos seus intentos;

Apenas uma desistência voluntária e reveladora de negação da lesão do bem

jurídico merece relevância, o que não acontece num caso em que o agente

usou a violação do bem jurídico para satisfazer intentos censuráveis e egoístas

(atrair sobre si a atenção e sentir-se valorizado) e em que, depois de cada

tentativa, se decidiu por outra, só terminando a repetição desses

comportamentos quando foi descoberto;

O quadro psicopatológico da arguida (Síndrome de Munchausen por

Procuração), impelindo-a para a ação (no sentido de atrair sobre si a atenção

das pessoas e sentir-se valorizada como mãe), deve ter-se como fator redutor

da culpa, o que aliado ao dolo eventual com que agiu, torna adequada a pena

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de seis anos de prisão para cada crime de homicídio qualificado na forma

tentada e, em cúmulo jurídico, a pena única de dez anos de prisão;

Esta pena representa já um castigo severo para uma mulher próximo dos

trinta anos de idade (assim se assegurando a proteção dos bens jurídicos

violados e a confiança da comunidade na validade da norma), ao mesmo tempo

que, não esquecendo a pessoa do agente afetado por um quadro

psicopatológico facilitador da ação e carente de adequado tratamento,

contribui para a sua reintegração na sociedade.

A doutrina tem-se pronunciado no sentido de apenas poder peticionar uma

indemnização o lesado que sofreu danos diretos na sua própria esfera jurídica

e que é titular do direito violado ou interesse legalmente protegido, prevendo

a lei a reparação de danos não patrimoniais de terceiros só em caso de morte

da vítima direta (art.496, nº3, CC).

A jurisprudência, em especial após o AUJ nº 6/2014 (Diário da República n.º

98/2014, Série I de 2014-05-22), tem vindo a admitir a reparação de danos não

patrimoniais de terceiros familiares próximos da vítima de lesão corporal

grave não fatal, mas tão só em caso de lesão do relacionamento familiar ou de

lesão do relacionamento conjugal.

O demandante LT , enquanto pai do lesado direto MM , sofreu pelo que viu o

menor padecer, mas esse sofrimento, não tendo afetado a normal relação de

parentalidade, não constitui um dano próprio e direto em consequência do ato

ilícito da demandada que justifique reparação.

A fixação equitativa da indemnização, sem prejuízo de algum grau de

subjetividada e da ponderação prudencial e casuística das circunstâncias do

caso, deve ter presente a necessidade de uniformização, respeitando critérios

jurisprudenciais generalizadamente adotados, de modo a não pôr em causa a

segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.

*

IVº DECISÃO:

Pelo exposto, os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência,

dando parcial provimento ao recurso da arguida/demandada, P. , acordam:

a) Em confirmar a condenação da recorrente por sete crimes de homicídio

qualificado, na forma tentada, com a qualificação jurídica feita pelo acórdão

recorrido, mas fixando a pena parcelar por cada um desses crimes em seis (6)

anos de prisão;

b) Em condenar a recorrente, em cúmulo jurídico dessas penas, na pena única

de dez (10) anos de prisão;

c) Em absolver a arguida/demandada, do pedido de indemnização formulado

pelo demandante LT ;

d) Em reduzir a indemnização arbitrada ao demandante MM , representado

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pelo seu pai LT , para €100.000 (cem mil euros);

e) Em confirmar o acórdão recorrido no restante;

f) Sem tributação na parte criminal.

Custas do pedido civil formulado pelo demandante LT , pelo demandante;

Custas do pedido civil formulado pelo demandante MM , na proporção do

decaimento.

Lisboa, 2 de dezembro de 2020

Vieira Lamim

Artur Vargues

_______________________________________________________

[1] Retirado da Dissertação apresentada à Universidade Católica Portuguesa

para obtenção do grau de mestre em Psicologia por Vanessa Marques Oliveira

(Julho de 2016), com o título SÍNDROME DE MUNCHAUSEN POR

PROCURAÇÃO NA PERSPETIVA DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE, acessível

em:

https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/20733/1/Disserta%C3%A7%C3%

A3o%20Vanessa%20Oliveira.pdf

[2] Retirado de:

https://www.vice.com/pt/article/xwepv3/o-anjo-da-morte-que-matou-as-

criancas-que-ela-deveria-salvar

[3] Síndrome de Münchausen por Procuração, in REVISTA ENFERMAGEM

ATUAL IN DERME - 88-26, Brasil, acessível em: file:///C:/Users/MJ01032/

Downloads/145-Texto%20do%20artigo-1404-1-10-20190807.pdf

[4] Cfr. - Manual – Crianças e Jovens vítimas de violência, APAV, acessível em:

https://www.apav.pt/pdf/Manual_Criancas_Jovens_PT.pdf

-Coleção Formação Contínua –Prevenir ou Promover. Uma solução para cada

criança, CEJ, Maio de 2019, acessível em:

http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/

eb_PrevenirPromover2019.pdf

- VIOLÊNCIA INTERPESSOAL ABORDAGEM, DIAGNÓSTICO E

INTERVENÇÃO NOS SERVIÇOS DE SAÚDE, Dezembro 2014. Documento

elaborado pela DGS – ASGVCV (Ação de saúde sobre género, violência e ciclo

de vida), acessível em:

http://cite.gov.pt/pt/destaques/complementosDestqs2/Manual_DGS.pdf

[5] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol.III, pág.339/340.

[6] Cfr., no sentido de que «o vício da insuficiência da matéria de facto

contemplado no artigo 410º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal só

pode ocorrer em correlação com o legítimo objeto do processo», pelo que ele

«não se verifica se os factos que o recorrente pretende ver investigados não

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foram objeto da acusação», o Ac. da Rel. do Porto de 26/5/1993, proferido no

Proc. nº 9350062 e relatado pelo então Desembargador PEREIRA MADEIRA

(cujo sumário pode ser consultado no site http//www.dgsi.pt).

[7] Neste sentido, Ac. do S.T.J. de 06-04-00, no B.M.J. nº496, pág.169.

[8] Germano Marques da Silva, ob. cit., pág.367; Ac. do STJ de 4Dez.03, Pº

nº3188/03, in verbojuridico.com/jurisprudência/stj;

[9] Como decidiu o Ac. do STJ de 12Jun.03, Conselheiro Carmosa da Mota (Pº

03P1671, acessível em www.dgsi.pt) “ … IV - Se a agravação preconizada pelo

art. 132.° pressupõe uma forma superior de culpa» (isto é, uma culpa

especialmente grave), dificilmente se compatibilizará um mero dolo eventual

com uma culpa agravada: «A conceção legal do dolo eventual incompatibiliza-

se com as formas superiores de culpa» (margarida silva pereira, Textos,

Direito Penal II, Os Homicídios, II, AAFDL, 1998)”.

[10] Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I,

pág.343.

[11] Como decidiu o Ac. do STJ de 2015-04-09 (Pº 331/12.7JALRA.S1, Relator

Isabel Pais Martins, acessível em www.dgsi.pt “ … VIII - O homicídio

qualificado é, tal como o homicídio simples, um tipo punível a título de dolo,

em qualquer das suas modalidades inscritas no art. 14.º do CP – direto,

necessário ou eventual. Para a afirmação do dolo, o que o aplicador tem de

fazer é partir da situação tal como ela foi representada pelo agente e, a partir

dela, perguntar se a situação, tal como foi representada, corresponde a um

exemplo-padrão ou a uma situação substancialmente análoga. E, em caso

afirmativo, se ela é suscetível de revelar a especial censurabilidade ou

perversidade do agente. Para que possam afirmar-se certos motivos ou

finalidades, o agente tem de estar consciente desses motivos ou finalidades.

Tal como tem que ter conhecimento das circunstâncias em que executa o

facto. …”.

[12] Direito Penal – parte geral – questões fundamentais – a doutrina geral do

crime, tomo I, 2ª ed., Coimbra: 2012, pág. 695.

[13] Código Penal anotado – volume I (art.ºs1.º a 130.º). 3ª ed. Lisboa: Rei dos

Livros, 2002, pág. 28.

[14] Da “tentativa possível” em Direito Penal. Coimbra: Almedina, 2006, pág.

8081.

[15] Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, 1993, págs.227 e segs.

[16] Atas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, II, pág.152.

[17] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra

Editora, 2005, pág.291.

[18] O princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso da restrição

da liberdade, consagrado no art. 18.º, n.º 2, da CRP, deve estar sempre

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presente na determinação da pena por forma a que esta não elimine, pela

duração, as possibilidades de ressocialização do agente. No mesmo sentido,

prevê o art.49, nº3, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia “3.

As penas não devem ser desproporcionadas em relação à infração”.

[19] A recorrente manifesta discordância contra a decisão relativa a estes

pedidos civis nas motivações, omitindo qualquer referência a essa questão nas

conclusões, contudo, optou-se por não proferir despacho de aperfeiçoamento,

o que só retardia o conhecimento do recurso e é de evitar em processo de

natureza urgente, tendo-se com conta o alegado apenas nas motivações.

[20]ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, p.620; PIRES DE

LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., Coimbra Editora,

Coimbra, 1987, p.498.

[21]Neste sentido, cfr. voto de vencido do Conselheiro Silva Salazar ao AUJ nº

6/2014 (Diário da República n.º 98/2014, Série I de 2014-05-22): “(…) apenas

poderia ter lugar uma interpretação extensiva atualista, no sentido de incluir

familiares de lesado direto sobrevivente no número dos titulares de direito a

indemnização por danos não patrimoniais indiretos, se o próprio legislador

tivesse manifestado abertura nesse sentido, o que não se verificou, nem

mesmo aquando de alteração feita em 2010 ao disposto no dito art.º 496º,

altura que podia ter aproveitado para o efeito se fosse essa a sua intenção,

pelo que não se pode concluir que uma tal interpretação fosse de encontro ao

espírito, mesmo atual, da lei.”.

[22] Neste sentido decidiu o Ac. do STJ de 26-06-2003, Relator Duarte Soares

“III- O universo das pessoas não lesadas directamente com direito à

indemnização por danos morais são apenas as previstas na norma do nº. 2 do

artº. 496º do CC e apenas no caso de morte da vítima. Não pode aplicar-se

essa norma, extensivamente, ou por analogia, a outras situações para além da

morte da vítima porque a restrição em vigor constitui uma opção consciente

do legislado”, assim como o Ac. do TRP de 19-03-2012, Relator Ana Paula

Amorim Amorim “Atento o disposto no art. 496°/2 CC, não assiste à Autora o

direito de reclamar da ré-seguradora a indemnização peticionada a título de

danos morais, pois a indemnização não resulta de danos próprios, uma vez que

se reporta aos danos sofridos em consequência do padecimento do autor, seu

cônjuge e pelo facto de o acompanhar e assistir ao sofrimento que padeceu

durante o período em que esteve em tratamento e recuperação”, acessíveis em

www.dgsi.pt.

[23] Temas da responsabilidade civil – Indemnização dos Danos Reflexos,

pág.87.

[24] Ac. do STJ de 05-11-2009 - Revista n.º 381/2002.S1 -7 .ª Secção – Relator

Cons. Lopes do Rego, acessível em www.stj.pt.

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[25] Como decidiu o Ac. do STJ de 28-02-2008 ( Revista n.º 388/07 - 7.ª Secção

– Relator Custódio Montes, sumário acessível em www.stj.pt) “I - Nada impede

que, em face do caso concreto, se arbitre indemnização por danos não

patrimoniais, a uma vítima sobrevivente de um acidente de viação, superior ao

montante médio atribuído pela jurisprudência ao dano morte”.

[26] Em relação ao direito à vida os nossos tribunais não se têm afastado

muito dos critérios apresentados pelo Provedor de Justiça para indemnização

dos danos causados pela tragédia da queda da ponte de Entre-os-Rios, que

apontou para um valor de €50.000 (v. Resolução do Conselho de Ministros n.º

29-A/2001, DR, I-B, de 9 de Março de 2001 e Anúncio n.º 50/2001, da

Secretaria-geral do Conselho de Ministros, DR, II, de 24 de Abril de 2001).

Mais recentemente, o Ac. do STJ de 24Out.19 (Proc. n.º

4258/17.8JAPRT.S1G1.S1 - 5.ª Secção Carlos Almeida), fixou em € 80 000 é um

valor adequado para compensar a perda do direito à vida de uma pessoa de 42

anos de idade.

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