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VIII EPEA - Encontro Pesquisa em Educação Ambiental Rio de Janeiro, 19 a 22 de Julho de 2015
Realização: Unirio, UFRRJ e UFRJ
1
Universalismo e Relativismo no Trabalho com Valores em Educação Ambiental
Lisiane Abruzzi de Fraga – E.E. Prof(a) Eugênia Vilhena de Morais
Dalva Maria Bianchini Bonotto – Unesp, Campus Rio Claro
Resumo:
Neste artigo encontram-se reflexões, a partir de análises que realizamos, acerca
da predisposição à universalização e/ou ao relativismo que possa estar presente nas
práticas pedagógicas envolvendo o trabalho com valores no campo da Educação
Ambiental. Discutimos o quanto as práticas pedagógicas podem predispor à
universalização e/ou ao relativismo com relação aos valores trabalhados em Educação
Ambiental, por meio da análise dialógica, que utiliza Bakhtin como referencial
metodológico. Os sentidos construídos a partir deste trabalho de pesquisa apontam para
necessidade de valorização dos encontros, em sua singularidade, no ambiente escolar,
como possibilidade de quebra tanto dos riscos de universalização como de relativismo
durante o trabalho com valores nas práticas de Educação Ambiental.
Palavras-chave: Valores, Educação Ambiental, Alteridade, Universalismo,
Relativismo, Construção de Sentidos
Abstract:
This article brings reflections from analysis I have performed about universalization
and/or relativism predisposition that is probably present in the pedagogic practices
involving the work with values in the Environmental Education field. We discuss,
through the dialogical analysis – based on Bakhtin’s methodology –, how much the
pedagogical practices may predispose the Environmental Education values to
universalization and/or relativism. The achieved meanings through this research indicate
the necessity of the valorization of the meetings, in their singularity, in the school
environment, as a possibility to overcome both universalization and relativism during
the work with values in the Environmental Education practices.
Keywords: Values, Environmental Education, Otherness, Universalism, Relativism,
Meanings Construction.
Introdução:
Considerando a crise ambiental que tem estado constantemente em pauta nos
debates em diferentes setores de nossa sociedade, reconhecemos nos trabalhos
envolvendo a temática ambiental um estímulo para a abertura da educação à construção
2
de valores na formação de seres sociais que somos, através da valorização do diálogo
com o Outro (humano e não humano).
Segundo Bornheim (1985, p.24):
a natureza deixou de ser o grande repositório, eternamente inesgotável, no
qual o homem exauriria indiscriminadamente a sua riqueza. Daí surgiu uma
nova necessidade, e consequentemente um novo tipo de compromisso.
Se estivermos dispostos a escutar, não nos abstraindo da relação com o outro em
sua alteridade, assumindo nosso compromisso com a vida e com a construção de nossa
história, a crise ambiental pode estar produzindo a necessidade que estimulará a
“reinvenção” de nossa liberdade, não mais desconectada da
responsabilidade/compromisso.
A opção por trabalhar com as questões ambientais mostra-se profundamente
ligada a questões valorativas, especialmente ao questionamento de valores que têm
predominado em nossa sociedade, tais como o consumismo, a razão instrumental, o
utilitarismo, o tecnicismo, a visão do outro – humano e não humano – como objeto.
Segundo Carvalho, M. (2006), a Educação Ambiental abarca três dimensões: dos
conhecimentos, dos valores e da participação política. É possível compreender a
impossibilidade de ocorrência de uma dessas dimensões sem as outras. Quando
escolhemos conhecimentos a serem trabalhados, estes estão pautados em nossos valores
e representam nosso posicionamento político. Quando optamos por uma ação
politicamente engajada, esta opção também está alicerçada em nossos valores e
construída a partir de nossos conhecimentos acerca de determinada situação. Quando
escolhemos trabalhar com valores, reconhecemos que são construídos a partir de nossas
experiências (ações) e compreensão (conhecimentos) da realidade em que estamos
inseridos.
Contudo, é possível que, em nossa prática pedagógica, seja dada ênfase a uma
das dimensões, sem que reconheçamos a presença das demais. Ou seja, embora estejam
presentes, nosso compromisso com uma ou mais dessas dimensões pode não ser
claramente assumido. Acreditamos que a priorização dos conhecimentos, dos valores
éticos e estéticos, ou da participação política de forma desarticulada favorecem,
respectivamente, a razão instrumental, o comportamentalismo e o ativismo.
Com a preocupação de trabalhar com os valores éticos e estéticos, sem
descomprometer-se com a relação destes com as dimensões do conhecimento e da
participação política, Bonotto (2008) aponta para três dimensões do trabalho com
valores: afetividade, cognição e ação (fig.1). Entende-se por afetividade o trabalho de
sensibilização, percepção e expressão dos sentimentos com relação aos valores a serem
construídos; por cognição, a reflexão acerca das ações e sentimentos envolvidos na
construção desses valores para sua melhor compreensão e apropriação; e, por ação, a
experiência do valor em construção.
Nesse modelo consideramos importante enfatizar a relevância de ultrapassarmos
a dicotomia entre razão e emoção. Nossa afetividade passa pela razão, por nossas
concepções de beleza; assim como nossa razão passa pela afetividade, pelo afeto que
temos em relação ao que se dirige nossa análise. Quando separamos afetividade e razão,
a primeira e a segunda desvinculadas ocultam nossos preconceitos e fechamento para o
3
diálogo, pois assumem imagens de aleatoriedade/espontaneidade e seriedade/verdade,
respectivamente. Isso desfavorece que sejamos surpreendidos, alterados e que
construamos novos sentidos nos encontros com o Outro.
Fig.1: Inserção da proposta de Bonotto (2008) na proposta de Carvalho (2006). (conforme BONOTTO e
CARVALHO, 2012, p. 51)
Se acreditamos que o trabalho com valores deve estar comprometido com a
formação de um sujeito que assuma constantemente sua responsabilidade com a
construção de sentidos que pautam suas escolhas, sem álibi (BAKHTIN, 2010),
precisamos pensar em propostas de trabalho pedagógico que não favoreçam o
universalismo nem o relativismo radicais com relação aos valores construídos, mas sim
valorizem seus processos de construção (com as dimensões anteriormente apresentadas
– afetividade, cognição e ação).
Se o valor construído for trabalhado como verdade, ou como o “bem” contra o
“mal”, ou apoiado pela ideia de que garantir o bem comum é obedecer a lei, ou ainda
apontado como uma resposta independente de sua vivência, corremos o risco de
contribuir para a formação de sujeitos que oferecem respostas padronizadas, “corretas”,
uniformes e indiferentes à presença real do outro e ao contexto em que se encontra.
Da mesma forma, se o valor construído nos parecer meramente uma questão
pessoal e/ou de gosto e/ou de crença, mutável a cada instante, completamente relativo,
corremos o risco de formar um sujeito igualmente indiferente com relação à presença
real do outro e ao contexto em que se encontra, à medida que se abstém de quaisquer
responsabilidades em suas escolhas.
Consideramos que na formação de sujeitos éticos que superem o relativismo e o
universalismo é de grande importância o papel das práticas pedagógicas que valorizem
o encontro, a experiência/vivência do Outro, que tentem ir além dos costumeiros limites
colocados pela história e cultura em que nascemos.
Bakhtin (2010) se posiciona criticamente com relação à herança racionalista que
considera que o verdadeiro se reconhece por sua universalidade e identidade, enquanto a
verdade ligada à singularidade seria artística e irresponsável. Este autor aponta que,
quanto mais estivermos próximos de uma unidade teórica, reduzidos a uma identidade
repetitiva, mais pobres e genéricas serão as experiências singulares, menor a abertura ao
diálogo e à experiência emotivo-volitiva, afastando-nos do ato na sua responsabilidade
sem álibi.
4
É importante enfatizar que a singularidade referida e/ou evento único não são
sinônimos de desconsideração da realidade histórico-social na qual os participantes do
diálogo estão inseridos. A constituição do sujeito em sua alteridade não está
desvinculada de sua realidade material, embora não se reduza a esta (constituindo-se do
diálogo com o diferente de si). Isso aparece claramente na perspectiva instaurada por
Levinas, descrita por Sidekum (2002), de um novo humanismo dentro da perspectiva
filosófica, principalmente no campo da ética, reconhecendo a alteridade do outro além
das perspectivas da subjetividade, do psiquismo (p.147); uma intersubjetividade que
acontece na existência humana através da relação intersubjetiva e na exigência infinita
de justiça para com o outro (p.149). Isso exige uma ética sensível. Uma ética sensível se
expressa, por exemplo, no pensamento de Ponzio (2010) quando defende que cada um
não tenha medo do outro, mas medo pelo outro, e não pense o outro, mas pense no outro
(p.29).
Com base nessas reflexões e no envolvimento com trabalhos de Educação
Ambiental que abarcam intencionalmente a dimensão valorativa no que diz respeito ao
estabelecimento de novas relações entre natureza e sociedade, realizamos uma pesquisa
direcionada à construção de sentidos relativos às experiências/vivências dos educadores
durante suas práticas pedagógicas envolvendo a temática ambiental e valores, em sua
relação com às questões da universalização, relativismo e dialogismo.
Encontros e Construção de Sentidos
Optamos por trabalhar com os dados coletados a partir dos encontros com os
professores que aqui serão apresentados por meio de análise dialógica, tendo como
referencial os textos de Bakhtin, os quais enfatizam a construção de sentidos por meio
dos diálogos estabelecidos, considerando a alteridade dos sujeitos da pesquisa e a dos
próprios pesquisadores, ambos participantes dessa construção.
A análise dialógica propõe um movimento entre a empatia e a objetivação, onde
a interpretação não surge do objeto nem do pesquisador, mas na construção de sentidos
que se dá no decorrer da relação estabelecida entre pesquisador e sujeitos de pesquisa. É
necessário buscar compreender como o outro interpreta a realidade a partir de sua
própria visão (e não de um eu no outro), para depois observá-lo a partir do meu modo
de ver, e construir a partir dessa ação uma interpretação que considere ambas as vozes.
Não se trata de uma mescla das vozes, mas de algo que apresente claramente as vozes
presentes no diálogo (em suas semelhanças e conflitos). Pois, para Bakhtin (2011),
“duas ideias já são duas pessoas, pois ideias de ninguém não existem, e cada ideia
representa o homem em seu todo” (p.105) e “nunca leva à fusão das vozes e verdades
numa verdade impessoal e una” (p.108).
Importante destacar que a análise dialógica não é uma perspectiva relativista.
Considerar a singularidade do evento e a impossibilidade de sua repetição não significa
que as análises são uma arbitrariedade do pesquisador. Para esse caminho
metodológico, não há a dicotomia experiência sensível – experiência cognitiva. Para
Bakhtin (2011), a objetividade estética abarca a objetividade ético-cognitiva (p.12),
diferindo desta apenas por não analisar genericamente o humano ou o acontecimento,
mas considerar o sujeito inacabado que vivencia aquele evento único ao qual responde
5
com sua ação. A construção de sentidos envolve sujeitos reais, onde emoção e reflexão
participam simultaneamente do espectro de visão de cada um e da constituição do
trabalho de pesquisa como objetividade estética.
Com base neste referencial, os sentidos construídos serão apresentados como
possibilidades de agir humano durante as experiências vividas junto aos sujeitos
participantes da pesquisa. Como afirma Bakhtin (2010), “a unidade da consciência real,
que age de maneira responsável, não deve ser concebida como permanência
conteudística de um princípio” (p.93). E o valor dessas respostas não se vincula à
constância ou reprodutibilidade, mas sim ao reconhecimento de sua possibilidade como
evento à medida que assumido em sua existência singular.
Durante os anos de 2012 e 2013, acompanhamos quatro professores1
participantes do grupo de extensão “Educação Ambiental e o Trabalho com Valores”,
realizado na Unesp/RC, durante a elaboração e aplicação de seus planos de ensino.
Foram três professoras e um professor.
O programa de formação é organizado, de modo geral, em três momentos, no
período de um ano. No primeiro, são apresentados e discutidos alguns conhecimentos
teóricos já construídos no campo da Educação Ambiental no que diz respeito ao
trabalho com a dimensão axiológica. No segundo, os professores participantes,
organizados em grupos, concentram as atividades no planejamento coletivo de projetos
pedagógicos relacionados às questões abordadas na fase inicial. No terceiro, acontecem
as práticas pedagógicas nas escolas em que esses professores lecionam, concentrando-se
os encontros na análise sobre suas experiências.
Esses sujeitos de pesquisa serão referidos durante este trabalho por nomes
fictícios, desde as primeiras descrições, garantindo seu anonimato, conforme previsto
pelo comitê de ética.
Breve descrição dos professores e dos projetos elaborados
Professora Mona:
A professora Mona é formada em Letras e Pedagogia, lecionava, por ocasião da
pesquisa, já há 16 anos e aplicou o projeto que elaborou com uma turma do 90
ano.
O projeto inicia com a leitura e interpretação de textos dos jornais e revistas a
respeito de consumo, saúde, meio ambiente e publicidade. No momento seguinte, cada
aluno deveria propor uma mudança de hábito em seu cotidiano que se mostrasse
coerente com seus posicionamentos. E então, durante quinze dias, tentariam realizar
essa mudança de hábito, relatando por escrito (na forma de um diário) os benefícios e as
dificuldades durante a experiência. No fechamento da proposta, deveria ocorrer a
elaboração de um texto de opinião e o diálogo com os colegas em sala de aula.
Professoras Iara e Melissa, e professor René2:
1 Esses professores aceitaram participar da pesquisa segundo termo de consentimento aprovado pelo
Comitê de Ética. 2 As professoras Iara e Melissa, bem como o professor René, são descritos em um único tópico neste
momento do texto porque elaboraram o plano de aulas em grupo durante o grupo de extensão.
6
A professora Iara é formada em Filosofia, leciona esta disciplina há 6 anos e
trabalhou o projeto com uma turma do 30ano do Ensino Médio. O professor René
também é formado em Filosofia, disciplina que leciona há 6 anos, trabalhou
anteriormente em pronto-socorro na área de enfermagem, e desenvolveu o projeto com
estudantes do 20ano do Ensino Médio. A professora Melissa é formada em Sociologia
3 e
trabalhou o projeto com uma turma de 20ano do Ensino Médio.
No plano de ensino desses professores, as atividades iniciam com uma saída de
campo até uma praça pública próxima à escola. Durante essa saída, os estudantes fazem
observações e registram o que acreditam ter alma, por meio de fotografias, desenhos ou
escritos. Num segundo momento, em sala de aula, é realizada a leitura e interpretação
de um texto que apresenta o conceito de alma para o filósofo Aristóteles. Em seguida, é
proposto debate no qual se estabelece relações e diferenças entre as ideias do filósofo e
as concepções dos alunos.
Na aula seguinte, apresenta-se a obra do pintor Amadeo Modigliani e sua
compreensão de alma. Aqui também aparecem a apresentação de sua biografia e a
reflexão sobre as representações em suas pinturas de humanos com os olhos fechados.
Prosseguindo as atividades, há a apresentação de um documentário intitulado “A
história das coisas” e discussão sobre os seguintes temas abordados: produção
industrial, trabalho, consumismo e ambiente. Depois, ocorre a leitura de uma história
em quadrinhos (em espanhol) abordando o tema da alienação, seguida de debate sobre o
assunto. E logo a seguir, escutam a música “Rosa de Hiroshima”, analisando e
estabelecendo diálogos sobre sua letra.
O fechamento proposto é a elaboração de trabalho escrito a respeito dos temas
abordados nas aulas.
Alguns sentidos construídos
Junto à professora Mona:
O aspecto que se mostrou mais forte no trabalho desenvolvido pela professora
Mona diz respeito ao esforço individual. Isso não foi deduzido das práticas da
professora, mas aparecem explicitamente nos diálogos que estabeleceu conosco, como
no trecho da entrevista descrito a seguir:
Professora Mona: - O trabalho que eu me propus a desenvolver são com os alunos do oitavo ano. [...] O
conteúdo de língua portuguesa, em... em intenção, era... artigo de opinião, ajudar os alunos a desenvolver
um artigo de opinião. A maior dificuldade dentro dessa área é que pra chegar num artigo de opinião tem
toda uma tessitura de texto que os alunos têm dificuldade. Levantamento de dados estatísticos,
introdução, ãh, interesse pelo assunto e, principalmente nesse fato, interesse pelo assunto é que eu...
propus a eles vivenciarem o assunto. No caso, é, o consumo, diminuir o consumo. Nós fizemos um
levantamento do que os jovens gostam e o que mais eles consomem. A partir de então, surgiu a ideia de
diminuir o consumo. A princípio, o que que foi observado nas escolas? Falam muito em reciclagem. Mas
o que ocorre na escola, na verdade, é a coleta seletiva, e não a reciclagem. Primeiro conceito que foi
trabalhado com os alunos. A partir disso, éé... tomamos uma premissa mais individual, ou seja, o que
realmente você vê como importante pra você realizar como uma ação.
3 Não foi possível perguntar o tempo de atuação na área da educação para professora Melissa, pois esta
foi a única que não conseguimos entrevistar.
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Causou-nos certa angústia, em um primeiro momento, percebermos - em sua
entrevista e nos diálogos que estabelecia com os estudantes – que resumia muitos
valores tais como comunidade/valorização de sua cidade, lazer, trabalho, cuidado com o
ambiente, dentre outros, apenas em “escolhas”. Tínhamos uma sensação de que as
expectativas eram colocadas sobre o mérito pessoal, não levando em consideração os
aspectos sociais.
Porém, em um segundo momento, refletimos que essa voz pode representar
resistência em meio ao ambiente de pessimismo que tem se estabelecido no ambiente
escolar em que a professora está inserida. Na sala dos professores da escola onde
trabalhava, uma de suas colegas disse admirar a professora Mona porque ela ainda
acreditava no que fazia, esforçava-se para planejar suas atividades, mesmo diante de
uma realidade estrutural que, na opinião da professora que falava, tornava-os
impotentes. É possível que essa voz da professora Mona não seja uma concepção de
mundo característica de sua identidade, mas, nesse contexto, carrega o sentido da luta
contra o discurso que, embora muitas vezes crítico, estagna seus alunos em seus papéis,
anulando os sujeitos. Além disso, o projeto da professora Mona valorizou mais a ação,
como ela mesma apontou diversas vezes em sua fala. Sua proposta indica que a
professora valorizou mais o processo de prática do valor do que o resultado. O
importante não era conseguir reduzir, mas relatar o que houve de bom e de difícil nessa
busca da vivência.
Chama atenção ainda o envolvimento da família. Sua aluna Clara4 apontou que a
mãe a ajudou. O interessante aqui não é a mãe fazer ou não o desafio, mas o
envolvimento com o que estava sendo realizado na escola. A professora também relatou
em sua entrevista esse envolvimento.
Muitos pais de estudantes da escola pública não tiveram oportunidade de estudar
e, muitas vezes, não sentem que podem auxiliar os filhos nos estudos. E, geralmente,
são chamados na escola quando o filho está com problemas. A proposta da professora
Mona não pediu para que a família ajudasse verbalmente, mas muitos responderam ao
enunciado da atividade, provavelmente, porque, além de perceberem a empolgação dos
filhos, sentiram que poderiam fazer algo de significativo nesse momento.
Contudo, sentimos que a questão do outro ainda é um pouco estranha no
discurso. O outro é, muitas vezes, alguém que pode ser empecilho, quando este não quer
colaborar. Neste momento torna-se alguém cuja opinião é – ou deve ser -, para mim,
indiferente. Posso tentar convencê-lo, mas se não quiser mudar, tanto faz, desde que me
respeite. É o que Ponzio (2010) denomina liberdade de palavra e não liberdade da
palavra. Não é levantada a hipótese – nem o desejo, nos discursos da professora e dos
estudantes, de serem alterados pelo outro. Suas atividades estiveram focadas na força de
vontade pessoal, o que, se de um lado, fortalece o aluno para não desanimar de seu
intuito, e por outro, remete ao perigo de não nos abrirmos para permitir a efetiva escuta,
onde somos alterados pelo outro.
Não queremos dizer que essa seja a perspectiva da professora. Mas, é possível
refletir, se analisarmos o pensamento de Apple (2003), que, muitas vezes, nossas
propostas de valorização dos grupos vulneráveis são apropriadas por vozes
4 Nome fictício atribuído a uma aluna.
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conservadoras de forma a sustentar as desigualdades que buscamos transformar.
Segundo Apple (2003, p.198):
As estruturas de vassalagem podem conter elementos que criam formas
equivocadas de reconhecimento para aqueles que participam delas, as quais
fazem a pessoa sentir-se poderosa mesmo diante de sua própria perda de
poder, e principalmente diante daqueles que esses discursos definem como o
Outro. Para a maioria [...] eles próprios [...] lutam pelas coisas que a maioria
de nós desistiu.
O trabalho da professora apresenta-se como resistência à sociedade de consumo,
ao acúmulo, à destruição não apenas do ambiente, mas do homem/mulher pelo
homem/mulher, enquanto procura valorizar a busca de uma felicidade como sentido
construído pelo humano para sua existência. Contudo, apresenta certa dificuldade para
desprender-se das identidades pessoais e coletivas como forma de motivação,
dificultando o encontro de palavras para reconstrução de sentidos dos quais não somos
proprietários.
Essas diferentes vozes aparecem presentes na experiência, descrita pela
professora, da reportagem elaborada pelos alunos sobre a mãe de um colega que
trabalha como catadora de material reciclável. A atitude do aluno pedindo para que a
foto de sua mãe não fosse exposta pode revelar a voz da angústia em relação à condição
de trabalho da família ou da ansiedade sobre o olhar do outro (colega ou sociedade). A
professora responde valorizando o trabalho da mulher, não apenas reconhecendo sua
dignidade, mas identificando-o como um bem realizado para o meio ambiente e a
humanidade. A professora oferece resposta para a angústia do aluno. E essa resposta
abre caminho a diferentes palavras que podem dar continuidade a esse diálogo.
É possível que essa valorização da mulher aconteça no respeito à sua
humanidade, como existência única, permitindo-lhe reconhecer sua responsabilidade e
potencial na participação para construção de sentidos pessoais e coletivos. Mas também
há a possibilidade de que essa valorização seja colada à sua identidade social de
catadora de materiais recicláveis, limitada à figura heroica para ser valorizada. Esta
última hipótese de resposta anula o sujeito, que abdica de participar da construção de
valores para servir a princípios que garantam o reconhecimento de seu valor.
Mas é peculiar ainda observar como a ideia que a professora apresenta em sua
entrevista, quando questionada se não teria receio de influenciar os estudantes
excessivamente com seus valores, ao falar sobre a construção de um mosaico realizado
a partir de cada um ao ouvir diferentes grupos sociais em casa, na mídia, na igreja, na
escola, mostra-se presente durante sua prática.
O foco da professora estava na economia de água, quando os alunos apontaram o
vizinho que provavelmente alterava o relógio para não pagar o que consumia. A
professora tenta manter o foco dizendo que a questão é não gastar, como indicativo de
que pagar ou deixar de pagar não muda a responsabilidade sobre a economia de água.
Mas as vozes controversas aparecem não em relação ao valor de economizar água ou
não, mas na conta de água. Ao mesmo tempo em que julgam impiedosamente o caráter
do vizinho que deixa de pagar independente de sua condição social, por sentirem-se
lesados ao considerarem que é repassado para os demais consumidores esse valor,
reconhecem a cobrança abusiva das empresas.
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É significativa a percepção da professora de que muitas vozes estão disponíveis
para constituição do mosaico por parte de cada sujeito durante as relações estabelecidas
em suas vidas. Porém, há um risco quando deixamos a cargo do acaso, ou da
espontaneidade, o embate entre essas diversas palavras, quero dizer, é importante não
apenas permitir os enunciados, mas colocá-las em diálogo real. O perigo está em que
uma palavra passe sutilmente como unificadora, uma espécie de acordo moral abstrato,
que soterre as vivências em que os conflitos morais acontecem.
Contudo, pensamos que esse risco é amenizado pelo que consideramos a riqueza
no trabalho da professora Mona: a valorização da vivência/experiência, que coloca em
diálogo o que Ponzio (2010) denomina “palavra outra” que só aparece com a presença
do Outro (inclusive do outro eu) na singularidade do acontecimento. Quando
experimento, durante minha ação, o embate com a palavra outra apresentada por um
sujeito real que comigo dialoga (amigo, parente, vizinho), dificilmente encontrarei
resposta pronta e universal.
Junto à professora Iara:
O que se sobressai no trabalho da professora Iara é a valorização da reflexão e
do debate. Isso se mostra presente em seu trabalho, reforçando o que ela apresenta como
sua intencionalidade. Em determinado momento, durante sua entrevista, quando
questionada sobre como agir quando colocada diante de uma opinião contrária à sua
durante a aula, a professora respondeu que procurava refutar, argumentando, debatendo,
tentando convencer, sem desrespeitar a opinião que se contrapunha, por ser isso uma
característica da Filosofia.
A princípio, analisando racionalmente, parece impossível o debate da forma
como a professora descreve se considerarmos uma conversa entre professor - aluno, e as
relações de poder presentes nessa relação. Porém, o ambiente do diálogo estabelecido
no conjunto das aulas promoveu situações inusitadas em que a aula termina sem que
haja um consenso. Isso fica claro quando alguns alunos defendem até o fim o valor
maior do ser humano frente a outros seres, mesmo que, durante a prática pedagógica e
na entrevista, a professora tenha deixado muito clara sua opinião de que os demais seres
vivos têm valor igual.
A professora trabalha temas como bioética durante as aulas, tendo comentado,
em uma destas, por exemplo, sobre a polêmica em relação ao uso de animais para
pesquisas, mostrando a complexidade do tema, considerando a relevância das pesquisas
e os excessos tantas vezes cometidos no tratamento dos animais. E escutou os alunos a
respeito de conhecimentos populares, apresentando estes e a ciência como sendo formas
diferentes de conhecimento/interpretação da realidade, sem declarar a superioridade de
um sobre o outro. Essa tentativa de discutir o conhecimento científico contextualizado
cultural e historicamente permite que sua palavra não seja simplesmente recebida como
“verdade” associada aos seus conhecimentos, mas constantemente questionada e
refletida. A professora também não sabe a resposta. Esse debate é fundamental quando
tratamos de Educação Ambiental, devido à grande facilidade com que os temas
presentes são apresentados como consensos científicos.
Por fim, a professora sempre enfatiza os autores que está utilizando durante as
argumentações. Isso faz com que a ideia esteja sempre associada a um ser humano que a
10
defende. Isso é uma alternativa muito significativa para desconstruir a ideia de uma
verdade abstrata e, infelizmente, costuma ser bastante raro na educação básica.
Mas é importante observar também que mesmo reconhecendo os sentidos
maiores construídos nas práticas da professora como sendo o estabelecimento de um
ambiente democrático e as reflexões filosóficas acerca da realidade, a professora coloca,
durante a entrevista, que considera remoto o potencial da prática pedagógica na
transformação das estruturas. E pensamos que essa visão pode ter influenciado na
ausência de ações concretas no âmbito coletivo, organizadas pelos alunos. As
discussões sobre a falta de lixos na praça, sobre o abandono de espaços públicos de
lazer, não ultrapassaram a verbalização/reflexão intelectual e o pessimismo em relação a
nossas políticas públicas. E, embora não seja a intenção da professora (com seu
pessimismo intelectual, que provavelmente defenderia como crítico), ela acaba
fortalecendo a voz da ideologia fatalista, descrita por Freire (2013) como ideologia que
imobiliza e “anima o discurso neoliberal. Com ares de pós-modernidade, insiste em
convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social que, de histórica e
cultural, passa a ser ou a virar ‘quase natural’ ” (p.21).
Nossa dificuldade em transformar nossa ideologia em ações mais concretas, que
respondam às reivindicações justas da população, facilita a aproximação entre o
discurso dominante que criticamos e os grupos socialmente vulneráveis. Como aponta
Apple (2003), os floreios retóricos dos discursos da pedagogia crítica precisam enfrentar
as condições materiais e ideológicas em transformação, reconhecendo que não é
possível existir no vácuo (p.117). Se mantiverem as utopias monológicas, exaltando a si
mesmas, no lugar de colocá-las em diálogo com os enunciados que nos pedem resposta,
de forma responsável, seus próprios idealizadores construirão para estas a fantasia como
sentido.
Pensamos que isso pode ser um dos motivos que levaram os alunos a
permanecerem dormindo ou no celular, com certa apatia, durante algumas aulas, mesmo
demonstrando claramente não terem a intenção de agredir a professora com a qual
estabelecem bom relacionamento e com quem, muitas vezes, compartilham o discurso.
Parece haver uma certa descrença em seus potenciais para mudança de questões mais
ligadas ao âmbito coletivo. Podemos levantar as seguintes questões: Quanto esse
sentido de descrença a partir da crítica da realidade vai se multiplicar nos enunciados e
se fortalecer como visão de mundo? Não estará nosso país bastante “impregnado” por
essa atmosfera, que vai se tornando dominante, imobilizando-nos?
É interessante observar também as vozes conflituosas e dignas que ocupam
espaço nos discursos da professora e dos alunos, que buscam simultaneamente a
igualdade de valor no que diz respeito ao direito de existir e a beleza irreprodutível que
torna cada ente e evento único. Apresento um trecho da aula da professora Iara abaixo
para ampliar essa reflexão:
Professora Iara: – Não, eu quero com as suas palavras. O que é a alma pra você? Fala pra nós, pra mim.
Como que você vê a alma no homem, no objeto, no animal? Como você entende essa definição, essa
concepção de alma?
Rafa: – Eu falei assim que... pra mim... tudo que tem vida, vai ter alma. O objeto não vai ter alma. E, alma
no ser humano é aquilo sem ser carne e osso. É o que a gente tem sem ser nosso corpo. Ela quem
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comanda nosso corpo. Como se você fosse uma máquina e quem dá o comando para o nosso corpo é o
que a gente tem dentro de nós, a alma.
Professora Iara: – Ele me falou que o ser humano tem que ter tudo isso: o corpo, a matéria e o espírito e a
alma. Mas que é a alma quem fundamenta o corpo e a matéria. Já no animal...
Rafa: – No animal também vai ter, mas vai ser diferente. Porque o animal é diferente da gente. Animal
não pensa. Mas para mim, o animal também vai ter a alma dele. Cada um tem a sua. Você vê um
cachorro. Você tem um cachorro e depois você troca... O cachorro não vai ser igual ao que você tinha
antes.
Professora Iara: – Ele está dizendo que essa alma, essa essência, mesmo no animal, ela é individual.
Então, sei lá. Você tem um cachorro que é aloprado, morde tudo e tem o outro que é mais dócil. Então, a
ideia de alma é comum a todo ente vivo, mas ela tem diferenças. Seja de homem para homem ou de
homem para animal... para a planta...
Embora seja possível perceber no discurso anterior a ideia de alma associada à
identidade, a um “eu” como essência e não construído nas relações, há também uma
reivindicação justa de que o sujeito não seja reduzido a seu gênero ou papel social. E é
perceptível ainda que, ao mesmo tempo que se busca a diferenciação, deseja-se
reconhecer a igual dignidade de tudo que é vivo não excluindo da presença de alma.
Essas palavras parecem encontrar-se com as reflexões de Ferry (2013):
[...]o erro que ainda cometem as grandes tradições políticas [...] liberalismo,
de um lado, e socialismo ou comunismo, do outro, consiste em achar que as
revoluções da vida privada não afetam ou não devem afetar senão a esfera
privada e que, no fundo, a política só deve tratar do interesse geral, entendido
como regulação dos interesses particulares. Na realidade, a revolução do
amor, por mais íntimo que seja o sentimento no qual se apoia, vai
metamorfosear todos os domínios da atividade humana, inclusive os mais
coletivos.
A proposta que se encontra na citação anterior aproxima-se do trabalho da
professora Iara, embora esta não racionalize a relação entre suas práticas e as
transformações nos espaços coletivos. A humanização que está no foco das atividades
que realizou junto aos estudantes abrange a valorização do sujeito e sua sensibilização
em relação ao outro, a qual pode encaminhar à construção de sentidos em que não haja
dicotomia entre interesses pessoais e coletivos.
Junto ao professor René:
A princípio, observamos nas falas e trabalhos do professor René uma visão
bastante romântica de natureza. Se tomássemos muitas das palavras do professor
exclusivamente sob um viés racionalista, assim como tornou irônicos alguns de seus
alunos – que achavam suas palavras “engraçadas”, nossa arrogância científica poderia
tê-lo reduzido simplesmente a um alienado.
Porém, quando a palavra é considerada e posta em relação, ou seja, com seu
caráter dialógico, consideramos que não é por acaso que, assim como no momento da
Revolução Industrial – questão refletida por Carvalho, I. (2002), na atual Sociedade de
Consumo essas sensibilidades retornem como resposta. E a radicalização dos discursos,
em alguns momentos singulares, pode ser parte constituinte do embate de palavras
construindo uma realidade outra.
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Aliás, coube-nos nesse momento a reflexão acerca das sensibilidades expressas
pelo professor – muitas vezes associadas a valores burgueses – que nos trouxeram a
questão: será que são valores burgueses ou será que a história contada por burgueses
tenta tornar propriedade de classe a beleza, o amor, o desejo de vida além da
sobrevivência, que são parte constituinte da existência humana? Pensamos que é
possível que o discurso do professor busque proporcionar, aos estudantes, oportunidade
de relação mais íntima com a natureza e a obra de arte, afastando-os por um instante da
coisificação de suas vidas. Se o prazer, a imaginação e o artístico forem extraídos do
ambiente escolar como caprichos burgueses, caracterizados como valores privados e
egoístas, jamais serão reivindicados como direito.
Embora as aulas de René apresentem a verbalização da palavra centrada no
professor, aparentemente monológico, há detalhes que indicam a atenção para a voz não
verbalizada do outro. Por exemplo, quando está relatando sobre o posicionamento de
uma aluna que o questionou, o professor expressa sua preocupação com o fato de não
ter havido oportunidade de aprofundar a discussão, já que a aluna se ausentou na aula
seguinte. E, mais do que isso, o professor reconhece que essa atitude pode ter sido a
resposta da aluna no diálogo com ele, quando levanta as hipóteses de que a ausência
tenha ocorrido talvez porque ela tenha ficado preocupada por ter exposto sua
discordância ou, quem sabe, porque não estava ligada naquele assunto, como
demonstração de seu desinteresse. Essas reflexões partiram do professor, não tendo sido
estimuladas pela pesquisadora com perguntas direcionadas a esse fato.
É interessante ainda reconhecer no discurso do professor vozes contraditórias,
impossíveis de serem unificadas: a voz da formação científica que reforça a ideia de
causa e consequência, bem como de compreensão clara da realidade, e, ao mesmo
tempo, a responsabilização do desenvolvimento tecnológico pela redução da
sensibilidade humana, sugerindo um retorno à natureza.
Como aponta Bakhtin (2011), “O nosso discurso da vida prática está cheio de
palavras de outros” (p.223). E é possível considerar que essas palavras diversas
respondam a diferentes discursos sociais que conversam com o professor no lugar em
que se encontra. Há a necessidade de responder às vozes que questionam a utilidade de
sua atuação, a seriedade do que apresenta em aula, a adequação da palavra no ambiente
escolar, a responsabilidade da educação com a verdade e desmistificação da realidade, o
produto/resultado de seu trabalho, que são respondidas na postura mais racionalista e na
detenção da palavra e de supostas verdades. E, ao mesmo tempo, ocorre a necessidade
de responder à coisificação do humano, que leva à crítica às tecnologias e à valorização
das atividades de sensibilização.
Junto à professora Melissa:
Apontamos como construção central na prática da professora Melissa a
resistência às estruturas padronizadas de aula no contexto escolar, demonstrando
confiança no envolvimento humano com os conhecimentos.
É interessante observar que a turma de estudantes com a qual trabalhou, de um
modo geral, não se distanciou da proposta nem se dispersou diante da ausência de um
direcionamento mais constante da professora. A professora estava sempre presente,
junto aos pequenos grupos de alunos e alunas, conversando, atenta quando não estavam
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participando, mas usava pouco o recurso mais comum na escola das instruções verbais
com o grupo todo, constantemente determinando o que deve estar no foco durante as
saídas de campo realizadas. Pensamos que a voz da professora não se apresentava como
comandos, e isso deu tempo para a curiosidade, por parte dos estudantes, responder com
mais força do que a resistência.
Algo muito interessante para reflexão foi o debate acerca do que teria alma. No
momento em que os estudantes estavam fazendo seus desenhos, fotografias e vídeos,
em contato com a natureza, apareciam árvores, animais e pessoas como seres com alma.
Mas num segundo momento, após a leitura do texto de Aristóteles a respeito da
presença de alma apenas enquanto existe vida, em todos os entes vivos, durante o debate
começa a aparecer um certo incômodo em atribuir alma a outros entes que não o
humano.
Reconhecemos que há forte influência religiosa nesse posicionamento dos
estudantes, inclusive porque um deles explicita que levará aquelas questões à sua igreja.
Mas, o que chama mais atenção durante essa mudança de opinião é que, quando a
professora pede para escreverem sobre a questão, aparece uma ideia de alma fortemente
ligada à razão, que não havia aparecido nem mesmo nos debates, como, por exemplo,
“aquele que pensa tem alma”. Durante a experiência sensível, onde o corpo, o contato
com a natureza e os trabalhos artísticos (desenhos, fotografias, ...) eram vivenciados,
essa proximidade com os outros entes fazia com que respondessem com
reconhecimento à vida que se encontrava consigo. E, a partir do momento que a palavra
precisa ser racionalmente verbalizada, registrada, para entregar no texto de opinião, a
voz da razão que fala mais alto a diferencia do resto. É necessário não conservar a
ilusão de que a ciência é racional e a religião ou mesmo a experiência diária de contato
mais sensível com o mundo não. A experiência mística pode ser sensível e dialógica,
bem como pode apresentar forte viés racionalista.
De forma alguma desqualificamos a voz da razão. Observamos apenas, olhando
para o ocorrido nos diferentes momentos dessa prática pedagógica, que essa palavra
deveria estar conversando, no embate com a palavra que está presente nas experiências
sensíveis. Quase sempre, a voz da experiência sensível é tida como um momento de
lazer ou um descanso para o trabalho mental. E o trabalho sério e avaliado é atribuído
aos relatos, organização, posicionamentos e conclusões elaborados com predominância
da razão.
Apesar dessa dificuldade de colocar em diálogo essas duas palavras,
relembramos a presença de quebra com os padrões de estrutura da aula, incluindo o
rompimento com os monólogos. A professora manteve em pouquíssimos momentos a
palavra sobre si. Durante a realização dos textos com suas opiniões (pedido da
professora), os estudantes caminhavam para discutir efetivamente o tema com outras
duplas; e a professora já ia realizando a leitura daqueles que iam concluindo. E, ao
contrário do que imaginávamos, que as conversas com o grupo todo favorecessem a
participação e organização de um trabalho mais coletivo, o trabalho e conversa com os
grupos menores pareceu tornar rica a discussão. Acreditamos que a particularidade mais
fascinante nesta prática é que o fato de estarem em grupos menores não significava que
não houvesse diálogo com os demais, mas apenas que o diálogo não estava centrado na
professora. Isso foi possível porque a professora não se sentia incomodada com a
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movimentação dos estudantes pela sala, fosse por curiosidade de ver o que o outro
escrevia ou para contar o que estava escrevendo.
Dos sentidos construídos como possíveis respostas à nossa questão de pesquisa
Tendo observado as práticas pedagógicas envolvendo a Educação Ambiental das
três professoras e do professor, todos atuantes na rede pública de Ensino Médio,
percebemos que o cuidado com as relações – sejam estas entre humanos e/ou entre estes
e a natureza- ganhou espaço privilegiado. Havia um incômodo com a coisificação da
natureza humana e não humana. Queriam construir uma palavra outra onde a natureza
não é objeto e nós não somos máquinas.
Atentando aos sentidos construídos na relação com as práticas pedagógicas
desses professores que aceitaram participar da pesquisa, defendemos a valorização dos
encontros, em sua singularidade, no ambiente escolar, como possibilidade de quebra dos
riscos de universalização e de relativismo simultaneamente durante o trabalho com
valores nas práticas de Educação Ambiental.
Nos momentos em que as relações são valorizadas – seja entre professor – aluno,
entre alunos ou entre humano e natureza nas saídas de campo – o outro e sua palavra
perdem sua generalidade. Quando perde sua generalidade, já não a concebemos fora da
relação que estabelecemos com ele. E em nossa relação de empatia já não podemos
oferecer-lhe uma resposta padronizada, pois nossa responsabilidade envolve o que
Ponzio (2010) aponta como “medo pelo outro” (p.29). E essa não indiferença à presença
de outrem impossibilita o relativismo – a resposta distante, surda e alheia, bem como o
universalismo – a resposta padronizada, uniforme e “correta”, à medida que nossa
resposta é comprometida com esse outro.
Sabemos que quando a educação deixa de ser espaço para o ócio/tempo para
reflexão do humano enquanto ser (individual e coletivo) e para interação com sua
própria natureza e com o meio em que vive de forma livre para conhecer e fazer,
obscurece seu caráter de formação humana. Ela passa a representar uma ferramenta de
sustentação das estruturas econômicas e sociais. Não há, aqui, qualquer intenção de
estabelecer juízo de valor sobre as estruturas, pois, ainda que fossem perfeitas, uma
educação apenas para manter a ordem empobreceria o ser humano, ignorando seu
potencial interpretativo e criativo. Queremos dizer que o tempo e a escuta não
indiferente permitem o constante diálogo com as estruturas e a possibilidade de
assumirmos constantemente as respostas de aceitação, questionamento, manutenção
e/ou mudança.
A Educação Ambiental traz, em muitas das palavras que exigiram seu
surgimento como enunciado respondente, a necessidade humana de relação para existir.
Alguns dizem que a capacidade de competir garante a sobrevivência. Outros dizem que
a cooperação garante a sobrevivência. Há os que dizem que o individualismo está nos
fazendo retornar à barbárie. E os que dizem que o coletivo apaga o que é próprio, único
em cada um. O relativismo dos valores favorece o individualismo e a competição, na
busca por nossa diferenciação. O universalismo dos valores favorece a massificação e a
ocultação do sujeito, na busca por nosso direito de igualdade. E as relações garantem
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nosso desejo de existência, para além da sobrevivência. Nós existimos nas relações onde
cada um é único e responsável pelo outro.
Concluímos que uma prática pedagógica com foco nas relações com o outro,
seja humano ou não humano, favorece a formação do que Carvalho, I. (2004) denomina
sujeito da ação, que é enraizado em uma ordem social que lhe determina possibilidades
de ação, mas também é permeável a mudanças e transformações, pelas quais vale a pena
lutar (p.189). Esse sujeito, livre e comprometido, saberá como agir em cada momento
singular, participando na construção de sentidos para realidade, existindo como sujeito
ético. Sua liberdade não lhe impedirá de perceber a natureza humana e não humana,
afastando-se do relativismo como indiferença. E nenhuma lei será álibi para coisificar o
outro ou justificar injustiças, distanciando-se do universalismo.
Referências:
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Tradução: Azevedo, D. A., Cortez Editora, Instituto Paulo Freire, São Paulo/SP, 2003.
BAKHTIN, M., Para uma filosofia do ato responsável, São Carlos, Pedro e João
editores, 2010.
BAKHTIN, M., Problemas da Poética de Dostoiévski, tradução: Bezerra, P., Forense
Universitária, Rio de Janeiro/RJ, 5aed., 2atiragem, 2011.
BONOTTO, D.M.B; Contribuições para o trabalho com valores em Educação
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CARVALHO, I. C. M., A questão ambiental e a emergência de um campo de ação
político-pedagógica. In: Loureiro, C. F. B., Layrargues, P. P. e Castro,
R. S. de. (Org.). Sociedade e meio ambiente: a educação ambiental em
debate. 2 ed. Sao Paulo(SP): Cortez Editora, 2002, p. 53-66.
CARVALHO,I.C.M., Educação Ambiental: a formação do sujeito ecológico, Cortez
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CARVALHO, L. M., A temática ambiental e o processo educativo: dimensões e
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fundamentos para o trabalho educativo. São Carlos, SP: EdUFSCar, 2006.
FERRY, L., Do amor: uma filosofia para o século XXI, trad. Janowitzer, R., ed. Difel,
Rio de Janeiro, 2013.
FREIRE, P., Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa, Paz ἐ
Terra, Rio de Janeiro/RJ, 46a edição, 2013.