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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES INSTITUTO A VEZ DO MESTRE GRUPO DE FAMILIARES NOS SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL: PARTICIPAÇÃO ESPONTÂNEA OU IMPOSIÇÃO ? Por: Rosilene Alves da Silva Rebelo Orientadora: Fabiane Muniz Rio de Janeiro, RJ 22 de agosto de 2010

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

GRUPO DE FAMILIARES NOS SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL:

PARTICIPAÇÃO ESPONTÂNEA OU IMPOSIÇÃO ?

Por: Rosilene Alves da Silva Rebelo

Orientadora: Fabiane Muniz

Rio de Janeiro, RJ

22 de agosto de 2010

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

GRUPO DE FAMILIARES NOS SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL:

PARTICIPAÇÃO ESPONTÂNEA OU IMPOSIÇÃO ?

Apresentação de monografia à

Universidade Candido Mendes como

condição prévia para a conclusão do

Curso de Pós-Graduação “Latu Sensu”

em Terapia de Família.

Curso: Pós-Graduação em Terapia de Família

Autora: Rosilene Alves da Silva Rebelo

Rio de Janeiro, RJ

22 de agosto de 2010

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AGRADECIMENTOS

A Deus pela oportunidade de nos

tornarmos uma pessoa melhor.

Aos meus pais e minha sogra, por toda a

colaboração e apoio, sem os quais não

poderia realizar este curso

Ao meu irmão Robson Luiz e a amiga

Mônica Cadei pela ajuda técnica.

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a minha família, meu

marido Rogério e aos meus filhos,

Ricardo e Rebeca, por terem entendido a

minha necessidade de investir no meu

aperfeiçoamento profissional.

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RESUMO

O trabalho ora apresentado é parte integrante da avaliação para a conclusão

do curso de pós-graduação em Terapia de Família da Universidade Cândido

Mendes. Ele representa o resultado de uma análise bibliográfica e um processo

crítico-reflexivo sobre o trabalho desenvolvido junto aos familiares de

portadores de transtorno mental sobre a ótica das mudanças propostas pelo

Movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Procuramos identificar de que

maneira as diretrizes da Reforma estão sendo implantadas no que se referem à

inserção destes usuários e familiares nos serviços comunitários de saúde

mental, considerando que cada família oferece uma infinidade de

possibilidades de organização e de estabelecerem relações entre as esferas

públicas e privadas.

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METODOLOGIA

Este trabalho trata de uma pesquisa bibliográfica acerca das estratégias

utilizadas pelos profissionais para a realização de um trabalho junto aos

familiares de portadores de transtorno mental, partindo da experiência

vivenciada em um serviço comunitário de saúde mental que atende a

população adulta e que tem como proposta de projeto terapêutico a inserção

dos usuários nas comunidades onde residem visando a construção de uma

rede social.

Para tal pesquisa nos pautamos nos artigos de Beth Carter & Mônica Mc

Goldrick, Jonas Melman e Lúcia Cristina dos Santos Rosa entre outros autores

que nos possibilitaram produzir esse trabalho.

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SUMÁRIO

Introdução ........................................................................................................07

Capítulo I - História Social da Família ...............................................................08

Capítulo II - Família e a Reforma Psiquiátrica ...................................................17

Capítulo III - A família e os serviços comunitários de saúde mental: uma

parceria possível? .............................................................................................24

Conclusão ........................................................................................................35

Bibliografia ........................................................................................................37

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INTRODUÇÃO

O tema deste estudo baseia-se no trabalho realizado com grupo de familiares

nos Serviços de Saúde Mental como importante recurso no tratamento dos

usuários. Partimos da análise de qual seria o papel do profissional na condução

deste dispositivo como estratégia para tornar a família parceira no cuidado de

seu ente portador de transtorno mental.

Vimos que as transformações em relação ao tipo de tratamento oferecido nos

serviços de saúde mental ocasionada pela Reforma Psiquiátrica, colocaram

como desafio para o profissional a construção de um instrumento de

intervenção que aproxime usuários e familiares, e estes da comunidade.

Oferecendo à família subsídios que lhe dê suporte para lidar com o cotidiano

do cuidar do portador de transtorno mental.

Para proceder tal análise procuramos identificar os limites e as possibilidades

do trabalho com grupo de familiares de portadores de transtorno mental.

Consideramos como relevante analisar o papel do profissional na condução do

trabalho com as famílias refletindo sobre o modo como se dá a inserção delas

no tratamento do seu ente adoecido. A nossa idéia seria de verificar a eficácia

destes dispositivos (grupos) no que se refere à inclusão da família como

parceira no cuidar do PTM acompanhando a sua inserção na construção de

redes sociais.

Percebe-se que a constituição de espaços de tratamento seja para usuários

e/ou familiares, geralmente são pensados sob a ótica de quem os planeja.

Esse planejamento nem sempre incluem os sujeitos para os quais esses

instrumentos são idealizados. Desta forma, a apropriação do grupo de

familiares como um espaço da família nos serviços de saúde mental ainda não

é uma realidade, dada a pouca aderência dos familiares a esse espaço.

Assim no capítulo I estaremos realizando uma contextualização sobre a história

social da família da sociedade medieval aos dias atuais. No capítulo II

abordaremos o papel da família frente à Reforma Psiquiátrica e concluindo no

capítulo III tentamos refletir sobre os limites e possibilidades do trabalho

através de grupo com familiares de portadores de transtorno mental.

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CAPÍTULO I

A história social da família

Nos dias atuais, falar de família significa falar sobre um complexo sistema

organizacional, que sofreu várias mudanças ao longo do tempo. No século XXI,

abordar a temática da família é ter que considerar uma enorme gama de

combinações que recebem esta denominação. Segundo Sarti,

“Sabemos que o mundo de significações humana não tem

uma relação mecânica com as possibilidades materiais da

existência, sendo mediado pelas “traduções” sociais,

culturais e psíquicas dessas possibilidades, ou seja,

dependem de como são incorporadas pela sociedade e

internalizadas pelo sujeito”.(2003:27)

Ao consultarmos o Dicionário do Aurélio (2004:243), encontraremos um

conceito tradicional sobre Família, que seria um “substantivo feminino: 1)

Pessoas aparentadas que vivem, geralmente, na mesma casa, particularmente

o pai, a mãe e os filhos; 2) Pessoas do mesmo sangue; 3) Origem,

ascendência”. Essa definição figura na idealização de diversos grupos

familiares como um modelo a ser copiado. Alguns grupos almejam alcançar

esta forma de organização com o intuito de serem aceitos como representantes

de um núcleo familiar. Contudo, o que se deve considerar é que a organização

da família diz respeito à subjetividade dos atores que estão envolvidos no

processo entendendo-se que cada sujeito é um mundo que se liga a outros

mundos formando um universo de possibilidades.

Na atualidade, quando pensamos à família devemos considerar todos os

aspectos possíveis para a sua constituição. Percebe-se que a formação do

grupo familiar está estreitamente vinculada a interesses de natureza diversa de

um determinado período da história da sociedade.

Para Morgan “a família é o elemento ativo; nunca permanece estacionário, mas

passa de uma forma inferior a uma forma superior, à medida que a sociedade

evolui de um grau mais baixo para outro mais elevado”. Segundo o autor a

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organização do grupo familiar vai se constituindo através de um processo que

parte de um modelo mais simples, seguindo de certa forma a ordem natural

das coisas, até chegar a um modelo mais complexo de organização familiar

que deve atender as exigências colocadas pela nova ordem social que

estabelece regras para a sociedade. A história social da família trás no seu

bojo a influência dos fatores econômicos, sociais, políticos e culturais de cada

período. Hoje, assim como na sociedade medieval, encontramos grupos

familiares compostos por um grande número de pessoas vivendo sob o e

mesmo teto.

Melman relata que,

“Na sociedade medieval não havia condições objetivas

para a constituição de uma noção de privacidade e

intimidade entre os indivíduos em suas habitações. As

famílias eram agrupamentos compostos, não apenas por

parentes consangüíneos, mas também pelos servidores,

protegidos. Viviam em grandes casas rurais ou urbanas

abertas à visitação pública dos amigos, clientes, clérigos e

visitantes. Não havia, nessas habitações, separação entre

vida profissional, vida privada e vida social.” (Melman,

2002:39)

O sistema familiar vai ganhando uma nova estrutura, mais reduzida em

comparação ao período anterior. As famílias medievais procuravam manter a

união com o objetivo de conservar os bens, a prática de um trabalho comum a

todos, a ajuda mútua cotidiana e em momentos de guerra. O sentimento que

predominava era o de linhagem, manutenção do patrimônio e do nome, que era

diferente do sentimento de família.

Na sociedade medieval, não havia espaço para preocupação com as crianças.

Neste mundo coletivo, a criança era somente mais um elemento da família. A

infância era ignorada, era vista como um período transitório para vida adulta

sem muita importância.

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A mudança dessa concepção ocorre com o fortalecimento do papel da Igreja,

que ocasionou a cristianização dos costumes. Instaura-se a idéia de que a

alma da criança também era imortal, sendo assim precisava ser protegida do

“mundo sujo” dos adultos.

As escolas surgem como instrumento que vai viabilizar uma mudança no

entendimento da infância. Percebe-se por parte dos religiosos e dos homens

da lei o interesse em disciplinar e racionalizar os costumes da época. As

escolas começam aos poucos a tomar às vezes dos mestres na tarefa de

preparação das crianças para vida adulta. Enquanto, os mestres se detinham

no ensinamento de um ofício e o desenvolvimento das tarefas domésticas, as

escolas procuravam preparar o coração das crianças para o amor e a

serenidade.

De uma forma ou de outra, a educação das crianças era uma designação

atribuída a terceiros. Esta educação era fornecida pelas famílias conforme a

condição econômica de cada uma.

Instaura-se o sentimento de família e com ele o sentimento de infância,

resultando no nascimento da família moderna, juntamente com a escola.

As mudanças ocorridas entre os séculos XVII e XVIII vão ser fundamentais na

constituição da família moderna. As regras adquiridas com a educação formal

dos filhos vão colaborar para a estruturação das habitações que ganham

cômodos específicos para cada função. Há a preocupação com

estabelecimento da intimidade e do isolamento. A família antes numerosa

passa a ser constituída basicamente pelos pais e seus filhos.

O surgimento da escola promove a separação das crianças dos adultos,

favorecendo ao estabelecimento da idéia de intimidade e privacidade. As

escolas vão se ampliando e os conceitos e valores rígidos propagados por elas

se incorporam ao cotidiano das famílias.

Desta forma percebemos que a introdução de elemento um sócio-cultural, a

escola, colaborou para a mudança na organização do grupo familiar, inserindo

a noção de privacidade e intimidade.

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Sarti refere que,

“Pensar a família como uma realidade que se constitui

pelo discurso sobre si própria, internalizado pelos sujeitos,

é uma forma de buscar uma definição que não se

antecipe à sua própria realidade, mas que nos permita

pensar como ela se constrói, constrói sua noção de si,

supondo evidentemente que isso se faz em cultura,

dentro, portanto, dos parâmetros coletivos do tempo e

espaço em que vivemos, que ordenam as relações de

parentesco (entre irmãos, entre pais e filhos,entre marido

e mulher). Sabemos que não há realidade humana

exterior à cultura, uma vez que os seres humanos se

constituem em cultura, portanto simbolicamente.”(

Sarti,2003:27)

A família colonial brasileira, a exemplo da família da Europa medieval não se

detinha ao conceito de intimidade ou privacidade. Do Brasil colônia até meados

do século XIX à família brasileira vivia em grandes casarões rurais, morando

sob o mesmo teto os filhos legítimos ou não, agregados, parentes, idosos e

outros bem como um grande número de escravos. Estas famílias eram

multifuncionais. A “casa grande” era uma mistura de unidade de produção e de

consumo. Tudo era produzido na própria fazenda, o que a tornava quase auto-

suficiente favorecendo ao isolamento social. A família se organizava em torno

da figura do senhor (patriarca) que desempenhava as funções de pai, marido,

chefe e comandante da tropa.

A família patriarcal existiu no Brasil dos séculos XVI e XVII, e alguns autores

referem à possibilidade da família moderna urbana ser conseqüência dessa

família patriarcal. Esta se caracterizava pela baixa mobilidade social e

geográfica, manutenção dos laços de parentes com colaterais e ascendentes.

Toda a vida da região onde os grandes casarões se localizavam era controlada

pelo “senhor” que mantinha sob o seu controle a vida política, econômica e

social.

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O poderio do senhor era fortalecido pela ausência efetiva do estado, dando-lhe

o poder de vida e morte sobre os que viviam nos limites de suas terras e

adjacências.

A idéia de existência desse modelo único de família nesse período da história

do Brasil é contestada por alguns autores que referem a constituição de outros

modelos de família, tais como: a dos mestres açucareiros, a dos pequenos

lavradores, a dos empregados urbanos, etc. Entretanto, como esses grupos

não apresentavam grande relevância econômica para a sociedade da época,

praticamente não são mencionados como modelos de organização familiar.

Esses grupos não estavam entre os que determinavam as regras de

comportamento.

O modelo familiar patriarcal vai, a partir do século XVIII, sendo incutido como o

mais adequado para todas as classes sociais. Esse modelo se caracterizava

pela família nuclear e sentimental. Sobre a disseminação desse modelo de

organização familiar nos períodos posteriores da história da sociedade,

Melman comenta que,

“A típica a família moderna, formada pelo homem

provedor financeiro, pela mãe dona de casa e pelos filhos

solteiros vivendo sobre o mesmo teto, foi também

profundamente marcada pela dicotomia entre os papéis

públicos e privados atribuídos segundo o gênero,

instituindo uma divisão sexual do trabalho. Constituíam-

se, dessa maneira, um mundo feminino centrado na

privacidade do lar, e um mundo masculino voltado para o

espaço público, estruturando uma hierarquia que impedia

o exercício da liberdade e da igualdade de forma

equivalente entre os sexos.” (2002:44)

Com as transformações econômicas, a família patriarcal rural vê-se diante da

necessidade de mudanças. Isso implicava em abandonar o isolamento do

interior e se dirigir às cidades que estavam se desenvolvendo. O patriarca

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substitui o investimento nas lavouras pelas indústrias e atividades financeiras.

Tornar-se negociante, um capitalista.

Na cidade, a família se organiza de forma nuclear, abandonando o estilo “casa

cheia”. Seguindo o modelo europeu, a família passa ser mais intimista. Na casa

agora, vivem o pai, a mãe e alguns filhos. O homem ainda é o grande

comandante, tendo todos sobre a sua autoridade.

Verifica-se que a idéia de família também pode ser determinada por aspectos

econômicos, ou seja, a identidade do grupo familiar pode ser constituída, a

partir da sua inserção na esfera pública, pela classe social em que está

inserida. Com as transformações econômicas, a família patriarcal rural vê-se

diante da necessidade de mudanças. Isso implicava em abandonar o

isolamento do interior e se adaptar as novas condições de vida da cidade.

A família chega ao século XXI, em um momento em que a economia vive o

auge da globalização o que traz rebatimentos no interior da dinâmica familiar. A

família novamente se rearranja para se adequar às necessidades da ordem

econômica vigente. Entretanto, alguns elementos permanecem os mesmos e a

dicotomia inerente ao mundo social também. Existe um modelo de sistema

familiar que ainda é visto como o ideal pelas elites e de certa maneira também

almejado pelas classes menos favorecidas e o outro modelo que se organiza

tendo como referência as dificuldades sócio-econômicas vivenciadas pelos

alguns segmentos da sociedade.

Szymanski ressalta que,

“Ao se pensar na família hoje, deve-se considerar as

mudanças que ocorrem em nossa sociedade, como estão

se construindo as novas relações familiares. (...) As

mudanças que ocorrem no mundo afetam a dinâmica

familiar como um todo e, de forma particular, cada família

conforme sua composição, história e pertencimento

social.” (Szymanski,2002:17)

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Entre as classes menos favorecidas economicamente, a compreensão do que

seja o grupo familiar vai perpassar pelo que Sarti chama do estabelecimento de

rede de obrigação que seria baseada da seguinte forma,

“Sua delimitação não se vincula à pertinência a um grupo

genealógico, uma vez que a extensão vertical do

parentesco restringe-se àqueles com quem convivem ou

conviveram, raramente passando dos avós. Para eles, a

extensão da família corresponde à da rede de obrigações:

são da família aqueles com quem se pode contar, quer

dizer, aqueles em quem se pode confiar.” ( Sarti, 2003:33)

Para Sarti a existência da noção de parentesco está submetida à lógica da

obrigação moral. As famílias, principalmente, as menos favorecidas

economicamente, se organizam como uma rede, com ramificações que

passam por todo o grupo familiar, construindo um sistema de obrigações

morais que possuem um duplo sentido, pois ao mesmo tempo em que

atrapalha a constituição da individualização dos sujeitos, contribui para o

provimento das condições básicas de existência da família. O grupo tende a

atuar na direção de objetivos coletivos. Esse processo de certa maneira

dificulta a construção das identidades. Nessa direção Carter & Mc Goldrick

afirmam que

“(...) as muitas maneiras como os membros da família

dependem uns dos outros dentro da “espiral geracional”

(Durvall, 1977, página 153), numa mútua

interdependência, são parte da riqueza do contexto

familiar conforme as gerações se movem através da vida”.

(Carter& Mc Goldrick, 2001:09)

No século XXI quando a história social é marcada pela independência pessoal

como sendo a aspiração própria do mundo globalizado, o desemprego reforça

a dependência em relação à família e faz dela uma espécie de trabalhador

coletivo, substituto do trabalhador individual. Todos os membros são

responsáveis de certa forma pela manutenção material da família.

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Ainda segundo Sarti,

“A noção de família defini-se, assim em torno de um eixo

moral. Suas fronteiras sociológicas são traçadas segundo

princípio da obrigação, que lhe dá fundamento,

estruturando as relações. Dispor-se às obrigações morais

recíprocas é o que define a pertinência ao grupo familiar”.

(Sarti, 2003:33)

É nesse contexto de transformações nos aspectos sociais, políticos e

econômicos da sociedade é que se vai desenhando os modelos subseqüentes

de organização familiar até o início do século XXI. Verifica-se o abandono dos

modelos mais conservadores para a convivência de modelos diversos. A

revolução sexual dos anos 60 e a entrada da mulher no mercado de trabalho

podem ser consideradas marcos importantes para as transformações ocorridas

na instituição familiar, influenciando nas relações familiares de um modo geral.

Houve de certa maneira um enfraquecimento dos padrões comportamentais

universais. Se antes tínhamos os padrões sociais pré-determinados (educação

dos filhos, papel da mulher e do homem, etc), hoje vivemos em uma sociedade

onde quase tudo é permitido. A constituição das famílias é permeada por

motivações distintas, o que implica na existência de várias formas de

organização, não havendo um modelo certo ou errado. Todos os modelos são

possíveis.

Como exemplo podemos mencionar entre as formas diversas de organização,

as famílias pobres, que tem como característica principal a mulher como o elo

de sustentação do grupo, responsável não somente pela educação dos filhos,

como também é a provedora das necessidades materiais dos mesmos.

Diante de tudo o que foi exposto, podemos concluir que abordar a temática da

família e suas formas variadas de constituição não nos parecem algo simples.

Pelo contrário, tendo em vista que este sistema é dinâmico e que comporta

diversas maneiras de apresentações. Ao que nos parece, a família se baseia

na junção de sujeitos diferentes entre si, porém com elementos/elos em

comum, sejam da ordem do social, do econômico, do biológico e do emocional.

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Na época em que vivemos já não é possível identificar um modelo hegemônico

de grupo familiar, todas as formas de organização são aceitáveis sobre

qualquer aspecto e, talvez sejam essas possibilidades de mudanças que faz do

trabalho com famílias algo tão enriquecedor para o profissional.

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CAPÍTULO II

Família e a Reforma Psiquiátrica

Como mencionamos no capítulo anterior, o grupo familiar encontrou ao longo

da história da sociedade múltiplas formas de organização. Hoje, eles podem

ser vistos como os novos atores que chegam cada vez em maior número nos

serviços comunitários de saúde mental. Essa chegada requer um preparo

profissional que se coloca em pauta já há alguns anos, no curso da

implantação das diretrizes estabelecidas pela Reforma Psiquiátrica Brasileira

exigindo o cuidado na abordagem desses novos sujeitos sociais. Efetuar o

“mãos a obra” impõe para o profissional a necessidade de buscar

embasamento teórico-metodológico que o auxilie a realizar ações responsáveis

no que diz respeito ao cuidar. É preciso que a capacitação técnica seja

contínua para que o profissional exerça as suas funções de maneira crítica e

ética oferecendo o seu melhor a população.

O processo iniciado pela Reforma Psiquiátrica no Brasil introduziu para além da

mudança na direção de tratamento do portador de transtorno mental, a inclusão

de novos sujeitos no que se refere ao cuidado com este segmento da

população. Geralmente, as mudanças quando ocorrem trazem no se rastro

reflexos em diversos setores da sociedade.

Sobre as transformações no que concerne ao tratamento dos portadores de

transtorno mental Rosa coloca que esse movimento ganhou espaço nos anos

de 1990 e que,

“No Brasil, a ótica da família como provedora de cuidado

é estudada por Vasconcelos (1992), no bojo do processo

da reforma psiquiátrica, que busca descentralizar a

assistência do modelo hospitalar/medicocêntrico e

questiona sua prática de segregação pelo “isolamento

terapêutico”, que limita o tratamento à internação integral

e à medicação. A reforma redireciona o paciente para o

cuidado integral em serviços abertos, comunitários, que

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preservam os vínculos sociais e os direitos de cidadania.”

(Rosa, 2005:207)

Alguns autores comentam essas mudanças no paradigma do cuidar como algo

que não foi trabalhado junto às famílias que passaram de produtoras do

adoecimento psíquico do ente a parceiras indispensáveis no novo modelo de

tratamento na área de saúde mental.

A inserção da família nos serviços comunitários de saúde mental ainda

apresenta uma conotação contraditória que não parece claro para ambos às

partes, Bassit fala que,

“Há uma corrente dominante que acredita no papel da

família na determinação do surgimento da doença mental

em um de seus membros, tornando-o bode expiatório

sobre o qual são jogados todos os problemas.” (Bassit,

1992:278)

Ainda sobre esta questão Macedo apud Waidman (1999) acrescenta que, “por

muito tempo os profissionais de saúde mental tinham a família como produtora

da doença mental e não como aliada para recuperar o doente

institucionalizado”.

Percebemos que para se chegar a um modelo mais próximo à nova realidade

social proposta pela reforma psiquiátrica, a inclusão da família como parceira

nos dispositivos comunitários de tratamento requer um trabalho junto a esse

grupo. Melman (2001:61) refere que, “a proposta aponta para a elaboração de

um novo paradigma que possa dar conta da complexidade do novo objeto: a

pessoa em suas múltiplas conexões com o social.”

Waidman diz que,

“Atualmente, é consensual que quando a família é

apoiada e orientada tem condições de compartilhar seus

problemas e pode ser percebida com a estrutura existente

para a desinstitucionalização e reinserção social do

indivíduo.” (1999:389)

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Outros autores também acreditam que o trabalho junto às famílias é primordial

para viabilizar a permanência dos portadores de transtornos mentais longe das

instituições de internação psiquiátrica e para tal elas precisam do apoio dos

profissionais e dos serviços de saúde mental comunitários.

Como já dissemos, a família do portador de transtorno mental permaneceu

durante muito tempo afastado de seu ente adoecido enquanto este era

submetido a todo o tipo de procedimentos que objetivavam alcançar a cura.

Rosa (2005) coloca que a família era considerada como um agente patogênico

e por isso tinha que ser mantida distante do seu familiar e este também deveria

ser mantido longe de sua casa e de sua comunidade.

Rosa fala ainda que o portador de transtorno mental,

“(...) passou a sofrer uma intensa ação dos profissionais e

dos serviços de saúde de mental, ficando a família em

segundo plano. Como havia a promessa de cura do

transtorno mental, o papel da família era de colocar-se em

posição de espera passiva dos resultados das

intervenções operadas pelos detentores do saber

competente.”(Rosa,2005:206)

Sobre o papel da família a autora acrescenta que,

“No interior dos hospitais psiquiátricos, a família passou a

figurar como informante da enfermidade e da trajetória do

portador de transtorno mental (PTM), como um recurso e,

sobretudo, como visita. A mensagem explícita era que o

cuidado com o paciente era atribuição exclusiva dos

trabalhadores da saúde mental e dos serviços

assistenciais.” (Rosa, 2005:206)

O movimento da reforma psiquiátrica trouxe um novo enfoque no que diz

respeito ao cuidado com o portador de transtorno mental. Esse novo enfoque

traz a família para o centro do tratamento do paciente. De acordo com a diretriz

da reforma o PTM não deveria mais permanecer afastado do seu núcleo

familiar e da comunidade da qual faz parte. A implantação dos serviços extra-

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hospitalares como novo modelo de atendimento na área da saúde mental

implicaria no retorno do paciente à comunidade, pois, a proposta do movimento

é a redução no número de leitos nos hospitais psiquiátricos. A idéia é a de

poder oferecer ao portador de transtorno mental um tratamento individualizado,

reconhecendo os limites e possibilidades de cada um. Com relação a essas

mudanças Melman diz que,

“Esses fenômenos introduziram novos elementos no

campo de negociação entre famílias e o campo da saúde

mental, obrigando as partes implicadas a rediscutirem as

bases de uma nova relação.” (Melman, 2002:61)

As transformações propostas pelo movimento da reforma psiquiátrica alçaram

à família a um patamar bem distinto do período anterior. Antes produtora do

adoecimento psíquico do ente. Agora um novo ator no processo de promoção

da melhoria na atenção ao PTM, com o estabelecimento dos serviços de saúde

mental comunitários. O grupo familiar passa a ser visto como elo entre o

paciente e a sua comunidade de origem. As famílias ganham espaços nos

serviços de saúde mental, não mais como sujeitos passivos, porém, como

sujeitos atuantes que ajudarão a viabilizar o projeto terapêutico do PTM.

Segundo Melman,

“As famílias se viram estimuladas e pressionadas a voltar

a assumir a responsabilidade pelo cuidado de seus

membros doentes. A presença do usuário na comunidade

demandava a criação de dispositivos terapêuticos mais

complexos e eficazes para enfrentar necessidades mais

complexas e abrangentes de existência cotidiana dos

pacientes psiquiátricos no espaço social.”

(Melman,2002:61)

Essa construção de um novo lugar para a família no que se refere ao

tratamento do PTM é resultante de um processo que segundo Rosa (2005)

teve início nos anos 50 no mundo, com a introdução das terapias de familiares

e, a partir da década de 70 aqui no Brasil. A autora coloca que este recurso

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estava disponível somente para as famílias de classe média, as famílias com

menor poder aquisitivo não tiveram muito acesso a esses dispositivos por

serem muito dispendiosos.

Esse processo vai ser analisado por duas vertentes teóricas da Antropologia, a

tradição subjetivista que era voltada para a classe média com enfoque em uma

direção mais intimista, considerando mais os aspectos emocionais,

psicológicos e comportamentais das interações. Para as classes de baixa

renda o enfoque utilizado era o da tradição econômico-produtivista direcionada

para as suas lutas e estratégias de sobrevivência.

Na atualidade, percebe-se um outro olhar no que diz respeito aos estudos

sobre os grupos familiares no campo Psi, o que permitiu a união das duas

abordagens posto que a família independente da classe social na qual está

inserida vem passando por intensos processos de mudanças, não sendo mais

possível analisá-la somente sob um aspecto.

Rosa diz que,

“A família no interior dos debates reformistas ganha uma

pluralidade de sentidos e dimensões, preponderante-

mente como: 1) um grupo que precisa de assistência e

cuidados; 2) como um recurso ou lugar, como outro

qualquer, mas não único; 3) como provedora de cuidados;

4) como avaliadora dos serviços e 5) como sujeito político.

Tais dimensões não são excludentes, ao contrário, funde-

se em várias circunstâncias, e em algumas situações uma

ou outra dessas identidades se sobressai mais.” (Rosa,

2009:162)

Essas novas pluralidade de dimensões e sentidos passam a ser constituir em

um novo desafio para a família. A inserção deste segmento no movimento da

reforma psiquiátrica se dará por dois vieses, o primeiro pela participação em

grupos de familiares que se colocam publicamente reivindicações para os

portadores de transtornos mentais, porém não se qualificando também como

provedores de cuidados ou solicitando algo para si. Outro segmento de

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familiares, entretanto assumem uma posição distinta do primeiro grupo, eles

receiam que seus familiares fiquem sem assistência entendendo que

desinstitucionalização como sinônimo de desassistência.

Sobre essa questão Rosa apud Amarante (1996) comenta que,

“(...) a desinstitucionalização significaria abandonar os

doentes à própria sorte, seja pela premissa crítica,

correta, de que seu objetivo pode ser o de reduzir ou

erradicar a familiares, seja por uma compreensão pouco

correta da responsabilidade do Estado para com essas

pessoas e conteúdo teórico que está em jogo.”

(Amarante, 1996:21)

Entende-se que na prática as transformações não acontecem de um momento

para o outro, pois os atores envolvidos necessitam de um tempo para se

adaptarem as mudanças e poderem avaliar qual será o seu posicionamento

frente às mesmas. Como as transformações são de ordem política, geralmente

trazem certa desconfiança para a sociedade sobre os reais benefícios que trará

para o segmento para o qual a política se destina. A existência de dois modelos

de assistência convivendo simultaneamente gera incertezas e contradições o

que requer grande empenho por parte dos reformistas em manterem o

processo de mudança na direção desejada.

Para Rosa esta crise no que concerne ao posicionamento da família frente às

propostas da reforma é resultado de um desconhecimento por parte da família

do significado das mudanças idealizadas pelo movimento da reforma

psiquiátrica para a autora,

“(...) não parece claro à maioria dos familiares-cuidadores

a extensão e os benefícios das mudanças em curso; em

função das sobrecargas vivenciadas por eles no ambiente

doméstico e das próprias mudanças internas pelas quais

vem passando o grupo familiar; por temor de ter de arcar

sozinhos com o peso do cuidado ou por questões

ideológicas e posição política.” (Rosa, 2009:163)

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Pelo exposto, é notório segundo os autores apresentados que ainda não ficou

esclarecido de que maneira os familiares farão a sua inserção nos serviços

comunitários de saúde mental. O que se verifica é sim que existe um “modelo”

assistencial sugerido, entretanto, de que forma ele será implantado nos

serviços ainda não é claro, existem basicamente dois modelos principais que

estão convivendo atualmente nos serviços. E parece-nos que os mesmos são

utilizados conforme a direção que é dada ao projeto terapêutico dos usuários

dos serviços comunitários de saúde mental. É possível também que a inserção

da família no tratamento do seu ente adoecido se dê pela maneira como o

grupo familiar se coloque no mundo, pois isto fala da sua história e das

relações que mantém entre as esferas privada e pública. Desta forma, os

profissionais dos serviços de saúde mental têm um papel a desempenhar

nesse novo campo da intervenção como processo de cuidar.

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CAPÍTULO III

A Família e os Serviços Comunitários de Saúde Mental: uma

parceria possível?

Os ventos da Reforma Psiquiátrica colocam para o trabalho desenvolvido nos

serviços substitutivos de Saúde Mental, o desafio de trazer para o seu interior a

participação das famílias como estratégia para auxiliar à elaboração dos

projetos terapêuticos de quem busca atendimento nesses dispositivos.

As transformações propostas no cuidar do portador de transtorno mental

trouxeram como conseqüência a necessidade de se estabelecer uma nova

relação entre os serviços de Saúde Mental adequados ao novo modelo de

assistência e o grupo familiar, principalmente com aqueles que estarão

diretamente vinculados aos cuidados dos usuários. Essa exigência irá

demandar e muito, de ambas as partes o esforço de superar limites e riscos

para construir possibilidades de um trabalho em parceria.

A criação de dispositivos de tratamento através de leis não é garantia que o

processo de cuidar se dê de forma linear sem o surgimento de questões,

algumas conflituosas, entre os seguimentos envolvidos. A legislação prevê no

desenvolvimento do projeto terapêutico dos PTM que estavam sendo assistidos

em Serviços Hospitalares de Psiquiatria, o trabalho junto aos familiares para o

seu retorno à residência visando à inserção familiar e comunitária. O objetivo

dessa proposta era de preparar a família para esse momento (a volta do

usuário para casa) bem como garantir que recebessem orientação sobre o

diagnóstico, o programa de tratamento, a alta hospitalar e a continuidade do

tratamento.

Segundo Lúcia C. dos S. Rosa,

“Nesse cenário o grupo familiar passa a ser reconhecido

também como provedor de cuidado, e desse modo torna-

se imprescindível sua incorporação nas ações dos

serviços, requerendo-se, portanto, um preparo mínimo

para o desempenho desta função. A família (...) tem papel

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fundamental na construção de uma nova trajetória para

seu ente enfermo, mas seus recursos emocionais,

temporais, econômicos e seus saberes têm de ser bem

direcionados (...).” (Rosa, 2009:161)

Como já dissemos a simples proposição de novas idéias não significa que elas

serão rapidamente aceitas e incorporadas ao cotidiano dos serviços. As

mudanças geralmente criam um hiato entre o antigo e o novo, incluindo-se

também o modo como cada sujeito entende as mudanças. A Reforma

fomentou desconfiança tanto entre os usuários e familiares como nos

profissionais. Trazer a família para dentro dos serviços, principalmente, para os

novos dispositivos implica também em um rearranjo na forma de trabalhar, pois

a legislação propõe as novas diretrizes, entretanto, a sua implantação se dará

de maneira diferenciada em cada território de abrangência dos serviços

comunitários de saúde mental. Lucia C.dos S. Rosa comenta que esse

processo, da inclusão dos familiares cuidadores, está relacionado ao modo

como os profissionais irão pensar o projeto terapêutico dos usuários

incorporando esses novos atores. No trabalho em campo percebemos que

muitas das vezes, os serviços já possuem o seu modelo pré-estabelecido pelo

qual às famílias irão se inserir na assistência ao PTM.

Para Rosa,

“(...) inclusão dos familiares cuidadores no novo modelo

assistencial, sobretudo nos centros de atenção

psicossocial, remete ao formato desejado pelos

profissionais de nível superior. Nesse horizonte desenha-

se um possível campo de tensão e de construção, pois,

alguns trabalhadores da saúde têm uma perspectiva de

encontrar uma família “já pronta politicamente”, ou seja,

crítica em relação ao modelo assistencial e ação do

Estado, e ativa, isto é, conhecedora dos mecanismos de

garantia de direitos.” (Rosa, 2009:164)

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O modo como se estabelece a inclusão da família na prestação de cuidados ao

ente adoecido, nem sempre correspondem as reais possibilidades do grupo

familiar. Esse algumas vezes é chamado a responder a questões que se

apresentam fora de seu alcance, pois, a complexidade do trabalho com o

portador de transtorno mental requer habilidades que não faziam parte do

cotidiano do grupo familiar. Cuidar do PTM em casa e consequentemente na

comunidade exige grande esforço de seus familiares que em alguns casos

precisam reformular toda a rotina familiar. Repercutindo inclusive na maneira

como irão suprir as necessidades materiais, considerando que dependendo do

grau de autonomia, o usuário não tem condições de permanecer sozinho em

casa, o que leva a família a designar alguém para acompanhá-lo.

Nem sempre quando a família chega aos Serviços Comunitários de Saúde

Mental a equipe lhe indaga o que espera do trabalho a ser desenvolvido junto

ao seu ente adoecido. Como a grande maioria dessas famílias pertence às

classes menos favorecidas economicamente permanecem se colocando de

maneira subalterna, temerosa em discutir e/ou reivindicar qualquer ação que se

mostre divergente da posição da equipe.

A tarefa do cuidar traz no seu interior algumas questões que se referem à

própria identidade da família, de que maneira esse grupo se estrutura para

atender as necessidades impostas pela vida cotidiana no que diz respeito aos

aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais. Há que se considerar que

as famílias que chegam aos serviços comunitários de saúde mental trazem

consigo um conhecimento produzido por eles e que precisa ser considerado

quando se pretende utilizá-la como estratégia no cuidado ao portador de

transtorno mental. O profissional não pode planejar incluir esses sujeitos em

qualquer projeto sem antes conhecer o grupo familiar e como ele se apresenta

ao mundo, desvendar mesmo que sejam minimamente os meios pelos quais

estabelecem suas relações nas esferas pública e privada. Esse cuidado é

primordial para que o grupo sinta que possui uma representação e que o seu

conhecimento sobre a sua história tem um lugar e que se some a outros

saberes na construção de um objetivo comum entre ela e o serviço que cuida.

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Jonas Melman (2002) acredita que uma possibilidade de trabalho com a família

é resgatar a esperança que foi perdida ao longo do tempo resultado de

diversas tentativas de tratar o portador de transtorno mental de forma

insatisfatória. Ainda segundo o autor, “construir esse cuidado envolve a

elaboração de um corpo teórico e o desenvolvimento de tecnologias que

possam dar conta da complexidade e amplitude do desafio” (2002:90).

Sabemos que historicamente o cuidar sempre foi visto como atribuição do

gênero feminino, assistir a casa, as crianças, aos idosos e os doentes acaba

sendo designado como algo próximo do que se poderia chamar de “um ato de

amor” segundo alguns autores, ou seja, um trabalho invisível, pessoalizado

requerendo qualidades relacionais e psicológicas, em resumo atividades vistas

socialmente como “coisa de mulher”. Contudo, nos tempos atuais com as

reivindicações do mundo globalizado torna-se quase impossível uma familiar

permanecer diariamente por algumas horas em um serviço de saúde de

qualquer natureza e principalmente de saúde mental. Essa dificuldade se faz

presente quando percebemos a baixa freqüência nas reuniões dos grupos de

família no serviço onde pudemos acompanhar o trabalho junto a essa

atividade. A ausência de um membro da família geralmente é justificada pela

necessidade de exercerem uma atividade remunerada. Outro fato observado é

que não existe um rodízio entre os familiares. Normalmente se elege uma

pessoa e ela se torna a única responsável pelo acompanhamento do

tratamento do ente adoecido, essa dinâmica na maioria das vezes independe

do tamanho da família.

De acordo com Lúcia Rosa,

“A redução no tamanho das famílias faz que um número

cada vez menor de pessoas esteja disponível para prover

cuidados. De forma associada, sendo a mulher

historicamente a principal cuidadora no ambiente

doméstico, sua saída para o mercado de trabalho e suas

múltiplas jornadas e exigências de requalificação, têm

intensificado as tensões entre os provedores de renda

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para o grupo versus as pessoas dependentes de cuidados

de terceiros.” (Rosa, 2009:170)

Neste contexto, vemos que são as mulheres, os familiares que mais

freqüentam os serviços comunitários de saúde mental. São elas que participam

da elaboração do projeto terapêutico tornando-se parceiras na concretização

do cuidar sob a nova ótica da assistência.

Partindo da leitura de como as famílias se estruturam verificamos que as

exigências que se colocam para o cuidar do portador de transtorno mental

recaí de maneira incisiva sobre o gênero feminino que se vê obrigado a

freqüentar os dispositivos de tratamento (participando de grupos, atendimentos

e tudo o que for sugerido como estratégia de assistência) de seu ente

adoecido. Pela nossa experiência profissional tivemos oportunidade de

acompanhar casos em que na ausência de um representante do gênero

feminino entre os familiares convoca-se uma vizinha, uma parenta distante

para desempenhar a tarefa de cuidar do PTM. Observa-se que o gênero

masculino se mantém distante tanto do dispositivo de tratamento quanto de

prestar assistência em casa mesmo que o ente adoecido seja membro de sua

família e não da sua esposa. A ausência nas reuniões do grupo de família

encontra justificativa no discurso feminino de que “ele não tem paciência e não

leva jeito para isso”.

Percebemos nos grupos realizados com os familiares de portadores de

transtorno mental que apesar da Reforma Psiquiátrica estar em curso já há

algum tempo, existem dúvidas e inseguranças sobre a efetividade dos novos

modelos de assistência. Estes de acordo com Melman “(...) se caracterizam

pela utilização intensiva de um conjunto amplo e complexo de tecnologias

terapêuticas e práticas psicossociais dirigidas a manter a pessoa na

comunidade (2002:90)”. Nota-se certa preocupação, principalmente, entre

aqueles que estão na estrada a longo tempo sobre a eficácia desses

dispositivos. Alguns autores afirmam que o processo de desinstitucionalização

ao direcionar o cuidado para a esfera comunitária resultou na sobrecarga para

as famílias, que por sua vez já sofrem intensamente com as mudanças sócio-

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econômicas, e ainda agora tendo que arcar com o cuidado intensivo do PTM. O

cuidar representa para aquele a quem se atribui à tarefa um esforço, na maioria

das vezes, para além de suas possibilidades.

Sobre esse aspecto Lúcia Rosa relata que,

“As políticas neoliberais, direcionadas regressivamente

para as políticas sociais, remetem várias funções antes

assumidas, em parte ou integralmente, pelo Estado, para

o grupo familiar. Os processos de desinstitucionalização ,

que mostram a falência das instituições totais (...) e

buscam propostas alternativas que assegurem direitos a

grupos específicos da população e valorizam os serviços

abertos e comunitários, têm na família como uma das

parceiras nos processos, ao ser a mediadora entre seus

membros e a sociedade.” (Rosa, 2009:166)

Tendo em vista todas essas variáveis que resultam dos processos de

mudanças ocorridas em diversos setores da sociedade, o trabalho

desenvolvido junto ao PTM requer que o profissional se disponha a dialogar

com as famílias considerando o universo na qual estão inseridas, respeitando

as singularidades e as particularidades de cada uma.

Temos que considerar que a família que chega aos dispositivos comunitários já

possui uma história de tentativas no que se refere ao cuidar do seu ente

adoecido, e que frequentemente quando chegam estão em um momento de

crise e tensão na busca de uma nova alternativa de tratamento e por isso

demonstre em alguns casos um pouco de ceticismo diante da “novidade” que

lhe está sendo apresentada apesar de desejar experimentar uma mudança.

Essa postura algumas vezes é entendida por parte dos profissionais como falta

de vontade em se implicar no tratamento do usuário.

Alguns estudos mencionam que num primeiro momento a família procura

resolver os problemas que surgem relacionados ao PTM no âmbito da esfera

privada utilizando-se para isso o saber que lhe é próprio e que em algum

momento surtiu efeito como estratégia para solucionar o caso. Não obtendo o

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resultado desejado, o passo seguinte é lançar mão de recursos próximos, os

parentes, vizinhos e entidades religiosas.

Desta forma quando os familiares chegam aos serviços comunitários de saúde

mental, estão segundo Rosa,

“(...) com sentimentos de impotência, exaustão, culpa,

desespero. É uma das últimas formas de publicizar uma

questão que preferia, se tivesse outra opção, resolver no

plano privado. Como é acolhida? Qual o seu lugar nos

serviços de assistência psiquiátrica”. (Rosa, 2009:168)

Alguns familiares quando chegam aos serviços esperam encontrar respostas

rápidas para os problemas que estão enfrentando com o seu familiar adoecido.

Como dissemos, a necessidade de prover a subsistência material da família

gera expectativa de receber orientações objetivas sobre o transtorno mental

acometido ao familiar, que lhe possibilitem retornarem ao seu cotidiano de

antes do adoecimento de modo breve. Nesse primeiro contato, de acordo com

Melman (2002), “(...) surge a oportunidade de que o profissional possa acolher

o sofrimento não somente da pessoa adoecida, mas também do familiar que o

acompanha”. Procurar ouvir com atenção o que o grupo familiar traz como

questão (que nem sempre é a mesma do usuário) pode ser o primeiro passo

para o projeto de torná-los parceiros no tratamento do PTM.

Devemos considerar que os candidatos a familiares-cuidadores também

solicitam um cuidado, pois, junto com a crise psiquiátrica do seu familiar trazem

a reboque suas próprias questões, suas dificuldades relacionadas a sua

identidade. Sobre isso Melman (2001) fala que “os familiares precisam de muita

compreensão, pois, ainda são freqüentes os preconceitos em relação a eles.

São tantas dúvidas e questionamentos sobre as doenças e seus tratamentos”.

Muitas vezes para tratar do PTM é necessário antes acolher a sua família, ouvi-

la, entendê-la, e então somente a partir daí será possível se pensar na

elaboração do projeto terapêutico dos usuários dos serviços comunitários de

saúde mental.

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Lúcia Rosa diz que,

“(...) não é suficiente escutar a “enfermidade” e sim

também os seus condicionantes/determinantes e o

contexto de vida das famílias. A crise psiquiátrica é

somente um dos problemas que intensificam os dramas

vividos pelas famílias, vulnerabilizadas pelo contexto de

pobreza e exclusão/destituição social.”( Rosa, 2009:176)

Ao desenvolvermos um trabalho junto aos familiares de portadores de

transtorno mental temos que atentar para não avaliarmos os casos sob a ótica

do senso comum, nem tendermos a nos posicionarmos como juízes,

condenando essa ou aquela atitude efetivada pela família. É muito usual nos

serviços de saúde os profissionais partirem na defesa férrea dos usuários sem

levar em conta a história da família com todos os percalços que provavelmente

já passaram se o ente adoecido não for tão jovem, bem como entender o

sofrimento dos familiares que chegam aos serviços após a primeira crise de

seu familiar que acabou de sair da adolescência.

A grande maioria dos serviços de saúde mental oferece ao familiar um espaço

coletivo, onde pode estar com outros familiares partilhando as suas aflições,

suas dúvidas e ouvindo outras histórias. Essa estratégia permite que se

construa uma relação entre a família e o lugar de tratamento do PTM. Cria-se

uma atmosfera de integração, de acolhimento, o que possibilita o surgimento

do sentimento de que não estão sozinhos. O trabalho do profissional visa

proporcionar um espaço de troca e de reflexão, incentivando que essas

pessoas se vejam como sujeitos da sua própria história e colaboradores no

tratamento do seu familiar, pois a idéia posta pela Reforma é que eles não mais

se mantenham afastados do tratamento, ao contrário a proposta é que

participem ativamente.

Rosa refere que,

“a circunstância da crise é a ocasião em que o grupo

familiar mostra toda a sua incapacidade, impotência, mas

é também a ocasião em que estão afloradas várias

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capacidades que o próprio grupo, geralmente, não

consegue identificar”. (Rosa, 2009:176)

Desta forma o trabalho não deve ser uniforme no sentido de ser igual para

todas as famílias que iniciam acompanhamento nos serviços, pois cada uma

tem a sua trajetória e chegam às unidades em estágios diversos do processo

de adoecimento do familiar. Para uns os dispositivos comunitários surgem

realmente como uma tábua de salvação após longo período de peregrinação

em busca de um tratamento. O espaço oferecido para o acolhimento do familiar

é, geralmente, coletivo, entretanto acreditamos que a sua inclusão deve ser

feita através de um planejamento individual, algumas vezes uma única escuta

no momento da chegada aos serviços não é suficiente para conhecer o grupo

familiar e a sua dinâmica social.

Percebemos pelo trabalho desenvolvido junto ao grupo de familiares que a

inserção de um integrante da família neste recurso logo no início do

acompanhamento do PTM no Serviço de Saúde Mental pode não ser produtivo

para o grupo familiar. Em algumas situações a família necessita de espaços

individualizados de atendimento onde possam trazer as suas questões, e então

somente a partir do desdobramento do trabalho seja possível falar de suas

dificuldades para outros familiares. Algumas famílias quando chegam ainda

apresentam certa fragilidade emocional e psicológica que invibializa a sua

participação em uma atividade que lhes solicitem relembrar situações difícieis.

A troca de experiências para ser proveitosa deve ocorrer em momento

adequado quando o grupo familiar já se sinta emocionalmente fortalecido e

consiga falar das suas vivencências de maneira reflexiva e também poder estar

apto a ouvir.

Neste sentido, Melman nos diz que,

“(...) às trocas de experiências tem se revelado uma

importante ferramenta para ampliar a capacidade de lidar

com os problemas, assim como tem permitido que um

familiar possa se abrir para o discurso do seu

companheiro.”(Melman, 2002:95)

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A intervenção profissional deve pautar-se na construção de um projeto

terapêutico que lance mão de novas tecnologias no que se refere ao cuidar do

portador de transtorno mental, baseando-se na busca de elementos que vão

contribuir para o entendimento de quem são esses sujeitos que estão sob os

seus cuidados e compreender os elementos que constituem as relações que

estabelecem com as esferas pública e privada.

Segundo Melman, realizar esse trabalho significa aceitar e compreender esses

indivíduos como eles são,

“Estar a serviço da subjetividade dos familiares sugere

estratégia de procurar conhecê-los de uma maneira mais

global e abrangente, em suas múltiplas dimensões

existenciais, tentando, desta maneira desenvolver

modalidades de cuidados mais apropriados às suas

necessidades.” (Melman, 2002:92)

O trabalho com famílias exige um investimento na formação e capacitação do

profissional, pois requer um conhecimento sobre a como se constituí a

dinâmica familiar em nossa sociedade. Sabemos que a organização do grupo

familiar está estreitamente relacionada a fatores econômicos, sociais, políticos

e culturais de determinada época da história. Os grupos tendem a apresentar

uma estrutura diferenciada a partir da sua classe social. As famílias de classes

menos favorecidas tendem a se agruparem pela relação com quem se pode

contar. Ou seja, às vezes quem chega aos serviços para acompanhar o

tratamento do PTM é alguém que não possui nenhum parentesco sangüíneo

com o usuário. Contudo é essa pessoa que vai contribuir para a construção do

projeto terapêutico e auxiliar na implantação do mesmo.

Respondendo ao título deste capítulo, acreditamos sim que a parceria com a

família é possível desde que a reconhecemos como sujeito da sua história,

possuidora de um saber próprio acerca de seus problemas e que para

colaborar no cuidado do seu ente adoecido necessita de orientação adequada,

acolhimento e acesso as informações que vão viabilizar a tomada de decisões

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com o mínimo de conhecimento sobre os rebatimentos das mesmas para o seu

familiar e para o grupo.

A família saiu do lugar de produtora do adoecimento do portador do transtorno

mental para o patamar de principal promotora de cuidados deste, parceira

essencial para a elaboração do projeto terapêutico do usuário, trabalhando

junto com a equipe responsável pelo tratamento, o retorno para a residência e

a inserção na comunidade para aqueles que passaram pelo processo de

institucionalização nos grandes manicômios.

Sabemos que não bastam se criar leis para promover mudanças simplesmente,

é necessário que os sujeitos se apropriem de conhecimento político que lhes

garantam lutar para que elas possam realmente promover a melhoria da

qualidade de vida dos sujeitos para as quais essas leis são direcionadas. Há

que se organizar espaços de discussões onde os envolvidos possam promover

debates sobre as questões que lhe dizem respeito.

Cremos que as mudanças somente ocorrem quando todas as partes

envolvidas têm a oportunidades de refletirem sobre o papel que cabe a cada

um na implantação das transformações.

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CONCLUSÃO

Avaliando a história social da família verificamos que a organização do grupo

familiar se baseou nas necessidades sociais, políticas e econômicas de um

determinado período da sociedade. Ao longo do tempo percebemos que nem

sempre os laços sanguíneos foi o único critério considerado para se entender a

constituição das famílias . Na sociedade medieval não havia o sentimento de

família, e os grupos eram numerosos. Não existia uma diferenciação entre os

espaços público e privado. As atividades laborativas eram exercidas no espaço

doméstico que era aberto à visitação pública realizada sem nenhuma

cerimônia. Hoje, na sociedade moderna encontramos como uma das definições

de família a idéia de que pertencem ao grupo aqueles com quem se pode

contar. Nos tempos atuais, a dependência econômica faz que vários membros

de uma mesma família permaneçam residindo em um só domicílio, criando

famílias extensas.

Entendendo-se que existe uma multiplicidade de possibilidades de organização

das famílias, fica claro que elas se caracterizam como uma unidade complexa

representando um verdadeiro desafio para quem se lança no terreno de

desenvolver um trabalho junto a esses sujeitos coletivos. A partir da nossa

prática profissional percebemos que o trabalho com famílias requer certa

habilidade e capacidade, pois não é uma tarefa fácil de ser realizada. A

aproximação com as famílias nos remete a questões que falam da nossa

própria história familiar, por isso é fundamental de se ter uma preparação

técnica (um mínimo de conhecimento teórico-metodológico) para efetuar

qualquer tipo de abordagem.

Quando falamos do trabalho com famílias sob a perspectiva da introdução de

novas tecnologias que no diz respeito ao cuidar e/ou tratar um de seus

membros e que os profissionais necessitem estabelecer alguma forma de

parceria com os familiares, há que se ter a atenção em compreendê-los a partir

do foco de que essas pessoas passaram ou estão passando por uma situação

que envolve tensão e sofrimento emocional e/ ou psicológico o que requer

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sensibilidade e, sobretudo, respeito para realizar a intervenção que se

pretende.

Os profissionais devem ser comprometidos com a qualidade da assistência que

prestam zelar pelo posicionamento crítico e ético sobre as suas ações. Manter

aprimoramento técnico contínuo.

Quando o trabalho desenvolvido solicita uma mudança de direção como foi o

caso das transformações propostas pela Reforma Psiquiátrica, isso fatalmente

gera sentimentos de insegurança e dúvidas nas pessoas diretamente atingidas

pelas mudanças. Nem sempre o novo representa o melhor para alguns

indivíduos. A idéia de que o portador de transtorno mental possa ser cuidado

pelos serviços comunitários de saúde mental com a colaboração dos familiares

provavelmente promoveu grandes reviravoltas na vida cotidiana de muitas

famílias. E ter que se haver com isso no interior dos serviços não é tarefa

simples para a equipe que é responsável pelo tratamento do PTM. O projeto de

inseri-lo na sua comunidade significa um intenso investimento técnico.

Para concluir acreditamos que toda parceria é possível desde que exista um

desejo das partes envolvidas e que no caso do trabalho com as famílias é

necessário que sejam vistas como elementos ímpares, não existem dois

modelos iguais. Isso posto devem ser compreendidas dentro dos seus limites e

possibilidades e não do que se espera que possam responder. É um trabalho

desafiador, porém, ao mesmo tempo enriquecedor e nos oferece a

oportunidade de nos aproximarmos de um universo múltiplo de experiências

imagináveis.

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