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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB DEPARTAMENTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS MÁRCIO SANTOS SALES VOZES DO ATLÂNTICO LITERÁRIO: um estudo comparativo entre Jorge Amado e José Luandino Vieira SALVADOR 2012

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB

DEPARTAMENTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I

PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

MÁRCIO SANTOS SALES

VOZES DO ATLÂNTICO LITERÁRIO:

um estudo comparativo entre Jorge Amado e José Luandino Vieira

SALVADOR

2012

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MÁRCIO SANTOS SALES

VOZES DO ATLÂNTICO LITERÁRIO:

um estudo comparativo entre Jorge Amado e José Luandino Vieira

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-graduação em Estudo de Linguagens do

Departamento de Letras e Ciências

Humanas da Universidade do Estado da

Bahia - UNEB, Campus I, sob a linha de

pesquisa Leitura, Literatura e Identidade,

como requisito parcial para obtenção do

título de Mestre.

Orientadora: Profa. Dra. Edil Silva Costa.

SALVADOR

2012

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FICHA CATALOGRÁFICA

Sistema de Bibliotecas da UNEB

Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592

Sales, Márcio Santos

Vozes do atlântico literário: um estudo comparativo entre Jorge Amado e José Luandino

Vieira / Márcio Santos Sales. - Salvador, 2012.

146f.

Orientadora: Profª. Pós-Drª. Edil Silva Costa.

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências

Humanas . Campus I. 2012.

Contém referências e anexo.

1. Amado, Jorge, 1912 – 2001 - Jubiabá. 2.Vieira, José Luandino, 1935 – A vida

verdadeira de Domingos Xavier. 3. Literatura comparada - Brasileira e angolana. 4.

Literatura comparada - Angolana e brasileira. I. Costa, Edil Silva. II. Universidade do

Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias.

CDD: 809.3

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TERMO DE APROVAÇÃO

MÁRCIO SANTOS SALES

VOZES DO ATLÂNTICO LITERÁRIO: um estudo comparativo entre Jorge

Amado e José Luandino Vieira.

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em

Estudo de Linguagens, Universidade do Estado da Bahia – Uneb, pela seguinte banca

examinadora:

_______________________________________________

Professora Doutora Edil Silva Costa (Orientador)

Universidade do Estado da Bahia

__________________________________________________

Professor Doutor Carlos Augusto Magalhães (Avaliador Interno)

Universidade do Estado da Bahia

___________________________________________________

Professora Doutora Maria de Fátima Maia Ribeiro (Avaliador Externo)

Universidade Federal da Bahia

Salvador, 12 de Abril de 2012

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Para os meus dois grandes amores,

Maria Ferreira Santos, minha mãe, e

Talita Carvalho Farias, minha mulher.

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AGRADECIMENTOS

À Professora Edil Silva Costa, por me guiar até aqui com equilibrada orientação e

sempre com incentivo e confiança em minha capacidade.

À Professora Maria de Fátima Maia Ribeiro, por me apresentar sugestões, provocações

e possíveis caminhos, no momento do exame de qualificação.

Ao Professor Carlos Augusto Magalhães, pelo fraterno carinho com que me recebeu

como estagiário, na etapa do tirocínio docente, e pelas sugestões e indicações

importantes no exame de qualificação.

Aos meus professores do Mestrado, pela imensa contribuição para o meu crescimento

acadêmico e intelectual.

À minha mulher, Talita Carvalho Farias, pela revisão criteriosa do meu trabalho, por

todas as palavras de incentivo, carinho e confiança sempre depositada em mim e em

minha pesquisa e por todos os momentos de compreensão das minhas ausências nesses

dois anos.

Aos meus amigos e colegas de turma, pelas continuadas interlocuções e apreço e por

todos os momentos vivenciados nesses dois anos de convivência.

Ao meu amigo e colega de turma Antônio Carlos Sobrinho, eterno interlocutor, por

todas as provocações, sugestões e pelas indicações bibliográficas.

Aos meus professores de literatura da graduação, em especial, aos professores Pedro

Barbosa, Nelson Maca e Olímpia Ribeiro, por terem me apresentado uma literatura viva

e pulsante, que me conduziu até aqui.

À Universidade Católica do Salvador por me contemplar com uma bolsa de estudos sem

a qual seria impossível a conclusão do meu curso de Letras.

Aos funcionários da secretaria acadêmica do PPGEL, pela dedicação e presteza com

que atendem e dão viabilidade aos nossos assuntos.

À minha família, pelo apoio e confiança que sempre depositaram em mim e pela

compreensão nos momentos de ausência.

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Ao meu mestre de Capoeira, Pedro Moraes Trindade (Mestre Moraes), pelo eterno

exemplo, incentivo e por sempre ter conduzido a minha vida ao caminho da retidão e da

probidade.

Ao Grupo de Capoeira Angola Pelourinho por ter me apontado caminhos...

Á Casa de Angola na Bahia por ter me acolhido com tanta generosidade e pelo respeito

á minha pesquisa.

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RESUMO

Este trabalho apresenta uma análise comparada, à égide da linha de pesquisa Leitura,

Literatura e Identidade. Destarte, realiza-se um cotejo entre as obras Jubiabá, do

escritor baiano Jorge Amado, escrita em 1934, e A Vida Verdadeira de Domingos

Xavier, do angolano José Luandino Vieira, escrita em 1961, porém publicada apenas em

1974. O objetivo da presente pesquisa é analisar os diálogos percebidos entre essas duas

narrativas, com vistas a perscrutar semelhanças e diferenças entre elas. Por se tratar de

uma abordagem com teor comparatista, discute-se aqui literatura comparada,

ancorando-se ao pensamento de Tania Carvalhal, Silviano Santiago e de Sandra Nitrini.

Entende-se que as obras em estudo apresentam textos que narram a própria história dos

países nelas representados, ou seja, Angola e Brasil, figurando, Luanda e a Cidade da

Bahia –Salvador – como metonímias desses países e microcosmos de sociedades onde a

pobreza, a repressão e o abandono social constituem a tônica. As referidas produções

acabam por evidenciar pontes, formadas principalmente a partir das imagens dos

elementos da natureza – água, fogo, terra e ar –, que são analisados nesta investigação

segundo os escritos de Gaston Bachelard. Ao mesmo tempo em que se percebem

semelhanças entre ambas as narrativas, descortinam-se também diferenças entre elas –

como as distintas estratégias de desenvolvimento narrativo, adotadas por seus autores.

Dessa forma, perceber tais aproximações e interpretar esses discursos significa entender

mais – e melhor – as relações que cercam não só Angola e Brasil, mas a África e a

América do Sul, principalmente, no campo das trocas simbólicas.

Palavras-chave: Cidade. Imaginário. Comparatismo. Jorge Amado. José Luandino

Vieira.

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ABSTRACT

This study presents a comparative analysis, the auspices of the research line Reading,

Literature and Identity. Thus, we make a comparison between the works Jubiaba, of the

Bahian writer Jorge Amado, written in 1934 and The Real Life of Domingos Xavier of

the Angolan José Luandino Vieira, written in 1961 but published only in 1974. The

objective of this research is to analyze the perceived dialogues between these two

narratives, in order to probe similarities and differences between them. Because it is a

level comparative approach, we discuss here the comparative literature, anchored to the

thought of Tania Carvalhal, Silviano Santiago and Sandra Nitrini. It is understood that

the works have studied texts that narrate the history of the countries represented in

them, namely, Angola and Brazil. In the narratives, Luanda and the City of Bahia

(Salvador) function as metonymies microcosm of these countries and societies where

poverty, repression and social abandonment are the tonic. These narratives turn out to

show bridges, formed mainly from the images of the elements of nature - water, fire,

earth and air, which is analyzed here according to the writings of Gaston Bachelard. At

the same time as they saw similarities between these two narratives unfolded were also

differences between them, as the different strategies of narrative development, adopted

by its authors. Thus, to perceive and interpret these approaches such discourse means

understanding more, and better relationships that surround not only Angola and Brazil,

but Africa and South America, mainly in the field of symbolic exchanges.

Keywords: City. Imaginary. Comparatism. Jorge Amado. José Vieira Luandino.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 8

2 LITERATURA COMPARADA EM DEBATE ..................................................... 16

2.1 ENTRE FRANCESES E NORTE-AMERICANOS............................................... 24

2.1.1 O COMPARATISMO EM TERRAS BRASILEIRAS........................................ 29

2.2 JORGE AMADO E LUANDINO VIEIRA: SOB O PRISMA DO COMPARATIS-

MO........................................................................................................................... 34

2.2.1 LUANDINO VIEIRA.........................................................................................40

2.2.2 JORGE AMADO...............................................................................................45

2.3 TRAJETÓRIAS ENTRECRUZADAS............................................................... 50

2.3.1 DUAS OBRAS DE SUBVERSÃO...................................................................... 54

3 A CIDADE DA BAHIA E A CIDADE DE LUANDA: PONTES IMAGÉTICAS

.................................................................................................................................... 63

3.1 A CIDADE AMADIANA DA BAHIA................................................................... 66

3.1.1 A CIDADE DE LUANDA (INO)....................................................................... 72

3.2 LUANDA E BAHIA: MULTIPLICIDADES......................................................... 78

3.2.1 CIDADES: FASCÍNIO E VIDA “REAL”........................................................... 89

4 DUAS HISTÓRIAS, QUATRO ELEMENTOS .................................................... 95

4.1 ENTRE ÁGUAS E TERRAS, VENTOS E FOGOS............................................ 101

4.2 AMADO E LUANDINO: A CONSTRUÇÃO MÍTICA DO HERÓI ................. 119

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 124

REFERÊNCIAS......................................................................................................... 129

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ANEXO – José Luandino Vieira e Jorge Amado: biobibliografias...................... 141

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1 INTRODUÇÃO

Como resultado dos estudos realizados no decorrer do curso de Mestrado no

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS, à égide da

linha de pesquisa Leitura, Literatura e Identidade, apresenta-se, nesta dissertação, uma

análise de duas obras literárias em perspectiva comparada: uma delas, considerada pela

crítica como uma das mais importantes narrativas que compõem o sistema literário

angolano, a novela A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, do angolano José Luandino

Vieira, escrita em 1961, porém publicada apenas em 1974; a outra, o romance Jubiabá,

que, segundo os críticos, é a obra que inaugura a fase “revolucionária” do escritor

baiano Jorge Amado, escrita em 1934.

O objetivo da presente pesquisa é analisar os diálogos percebidos entre essas duas

narrativas, com atenção ao trato com os quatro elementos naturais – água, fogo, terra e

ar –, tentando perscrutar semelhanças e diferenças em tais abordagens.

Parte-se de uma análise comparada, para se identificar aproximações entre as

duas produções literárias acima citadas – distantes quase quatro décadas uma da outra e

produzidas em locais e em contextos diferenciados – observando e medindo as tensões

que seus textos desvelam, também no tocante às problemáticas sociais que envolvem as

duas cidades, que figuram como cenário: Luanda e Salvador. Ao mesmo tempo em que

se investigam as similaridades entre as duas narrativas, dedica-se também atenção para

descortinar as diferenças entre elas, como forma de atribuir maior entendimento do

narrado.

Quando se intentou trabalhar comparativamente com Jubiabá e A Vida

Verdadeira de Domingos Xavier, já era de se esperar que os desafios fossem inúmeros,

dada a complexidade das narrativas e a própria dificuldade de ancoragem teórica que o

campo da literatura comparada apresenta. Um grande desafio foi definir a forma como

se daria tal cotejo, face ao objetivo do trabalho. Optou-se então pela comparação a partir

de elementos comuns às tramas, porém pouco explorados em pesquisas onde essas

obras figuram como corpus – a exemplo dos elementos naturais, “água”, “terra”, “fogo”

e “ar” – tendo-se sempre o cuidado de não se enveredar por desgastadas searas, cujas

análises já não apresentam novidades e muito pouco contribuem para investigações

futuras.

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Em definitivo, entende-se que essas duas obras apresentam textos que narram a

própria história dos países que representam, ou seja, Angola e Brasil. Nas narrativas, em

alguns momentos, Luanda e a Cidade da Bahia – Salvador – funcionam como

metonímias desses referidos países e microcosmos de sociedades onde a pobreza, a

repressão e o abandono social constituem a tônica.

O clima de repressão e autoritarismo impresso pelo regime colonial, bem como a

situação de miséria e abandono do povo angolano, obrigado, em algumas situações, por

força de sobrevivência, a relegar a um plano inferior suas línguas e suas culturas, para

adequar-se às do colonizador, uma vez que, na “[...] estrutura colonial, o bilingüismo é

necessário, pois munido apenas de sua Língua, o negro torna-se estrangeiro dentro de

sua própria terra”. (MUNANGA, 1998, p. 23) – questões como essas se fazem presentes

em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier e retratam um momento na história da

sociedade angolana.

Soma-se a isso uma extrema violência perpetrada no plano cultural e uma

intensa arbitrariedade que impunha o cárcere a todos que ousassem levantar-se contra o

Império colonial português, perpetuando, assim, um controle sobre a população. A esse

respeito, muito bem observa Salvato Trigo, ao alertar sobre a existência de duas

instituições de grande importância para o regime colonial em África: a escola e a prisão.

Para o autor, a escola do colonizador em relação com o colonizado africano, contribuía

para promover “[...] apagamentos dos seus valores culturais e civilizacionais, pelo

banimento de sua língua, pela niilificação de sua história.” (TRIGO, 1986, p. 148-149).

Ainda segundo Trigo, a prisão era sustentáculo do regime, pois procurava, por meio da

tortura, amedrontar toda uma população local e colocar no cárcere todos os que, de

alguma forma, se levantasse contra o regime. (TRIGO, 1986, p. 150)

Por outro lado, a miséria que rodeia os habitantes dos morros na Cidade da

Bahia aliada à desassistência do poder público para com a infância, somada à

dificuldade que os homens e mulheres “pretos” passam para sobreviverem e verem

sobreviver a sua cultura naquela cidade, cercada pelo racismo, bem como por outros

preconceitos sociais, constituem-se na tônica que cerca a obra Jubiabá e refletem a

própria situação pela qual passava o Brasil da década de 1930.

Destarte, perceber essas aproximações e interpretar esses discursos significa

entender mais – e melhor – as relações que cercam não só Angola e Brasil, mas a África

e a América do Sul, principalmente, no campo das trocas simbólicas.

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Observa-se que a obra literária em si possibilita uma pluralidade de olhares e

interpretações. E cada recepção vai fazendo girar a roda imaginária, que produz

significados distintos a cada leitura feita. Karlheinz Stierle (1996, p. 134) afirma que:

O significado da obra literária é apreensível não pela análise isolada da obra,

nem pela relação da obra com a realidade, mas tão só pela análise do

processo de recepção, em que a obra se expõe, por assim dizer, pela

multiplicidade de seus aspectos.

É exatamente por essa multiplicidade de aspectos propostos por Stierle, que se percebe a

possibilidade de análise das obras em estudo, mesmo que elas pareçam relatar distintas

histórias e simbolizem diferentes conjunturas dentro de Angola e do Brasil. A visada

investigativa que se teve aqui mirou a interpretação dos múltiplos elementos presentes

nas duas narrativas, no sentido de lhes atribuir sentido. Um desses elementos é a cidade

e seus plurais significados. Seria quase impossível estudar Jorge Amado e Luandino

Vieira desconsiderando o importante papel que tem a “cidade” em suas narrativas,

principalmente, quando as obras em estudo são Jubiabá e A Vida Verdadeira de

Domingos Xavier, onde a urbe figura como personagem e é elemento-chave para o

entendimento das tramas. Talvez seja por isso que, no caso de Jorge Amado, a tradução

francesa de Jubiabá tenha saído com o título de Bahia de Tous Les Saints1, revelando a

cidade como um verdadeiro protagonista da trama.

Outro elemento importante nas histórias em questão refere-se ao trato com os

quatro elementos naturais já mencionados – “água”, “terra”, “fogo” e “ar”. Em ambas as

narrativas, esses elementos aparecem com função muito maior que a de simples

composição cenográfica. Eles anunciam, denunciam e sintetizam tensões entre os

personagens, apresentando a imersão dessas narrativas em diálogos outros, quase nunca

evidenciados por investigações que se dedicaram ao estudo dos referidos textos. Para

ajudar a pensar esses referidos elementos, trouxeram-se aqui as ideias de Gaston

Bachelard.

___________________________

1 Bahia de Todos os Santos.

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Os estudos em perspectiva comparada podem revelar tensões existentes entre

sociedades distintas e que foram observadas por seus respectivos autores, os quais as

codificam de diferentes formas. De posse desse intento, o presente trabalho resolveu

partir de elementos pouco explorados até agora, para avaliar as questões que tencionam

a relação entre as duas narrativas em análise. Sendo assim, fez-se mister confrontar as

diversas interpretações possíveis de ambas, com o objetivo de explorar as inesgotáveis

possibilidades que a arte literária oferece de, quase sempre, voltar os espelhos

interpretativos em múltiplas direções, evidenciando relações que muitos poderiam

imaginar impossíveis.

A novela A Vida Verdadeira de Domingos Xavier revela o modus operandi do

sistema colonial em África, que vai desde a prisão arbitrária da qual foi vítima

Domingos Xavier – e, em verdade, também o próprio Luandino Vieira – à total falta de

comprometimento assistencial com a população nativa, condenando-a a uma vida nos

musseques2,

desprovidos de elementos básicos para a sobrevivência humana. O

“cárcere”, elemento importante para uma narrativa na qual a privação de liberdade se

confunde com a castração dos direitos da pessoa humana, faz refletir acerca da vida sob

a égide do referido sistema, onde impera a intransigência e a repressão. Luandino

codifica, por meio do cárcere, as privações por que passavam os angolanos, a violência

e a miséria de uma gente invadida, adulterada e fragmentada em suas identidades.

Domingos Xavier, protagonista da trama, um simples tratorista, é preso para revelar os

nomes dos envolvidos em um suposto movimento de libertação nacional, ou seja,

interessava a uma classe, representante do regime, identificar tal movimento, e isso é

feito a custa do sofrimento e da morte brutal de alguém.

Sobre a obra Jubiabá, pode-se afirmar que desvela os efeitos da desassistência

do Estado na vida do homem urbano. Antônio Balduíno, “produto do morro”, encerra

em si a resultante de uma vida de abandono e miséria, aliada a uma opressão/repressão

social. Nessa narrativa, Jorge Amado flagra e denuncia os determinismos sociais que

surgem em uma cidade cindida entre morros desassistidos – que acabam por gerar a

mão de obra proletária urbana –, e bairros “nobres” – de onde resultam os seus patrões.

A vida dos escritores Jorge Amado e Luandino Vieira não poderia deixar de

fornecer elementos que viessem a cimentar os profundos diálogos entre as obras em

__________________________

2 Bairros pobres de Luanda, similares às favelas brasileiras.

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cena, uma vez que a trajetória desses dois artistas do verbo e da cultura, apesar de

trilhada em momentos políticos muito diferentes em seus respectivos países, reflete

episódios muito parecidos em suas vidas, o que talvez explique antes a linha ficcional

que a linha temática por eles adotada. Avaliar a biografia desses autores, com atenção

para suas trajetórias políticas, ajuda tanto a pensar a atuação política de um escritor,

enquanto intelectual, dentro de uma nação, como entender os códigos que criam, para

caracterizar tal atuação.

Jorge Amado sempre respirou uma atmosfera político-social, que o alicerçou na

construção de suas narrativas e na criação dos seus personagens. O seu envolvimento

com as religiões de matriz africana, sua vivência sob a égide de regimes autoritários –

como o cenário da década de 1930 –, sua convivência com perseguições e exílio foram

conjunturas que, mais tarde, inclusive, render-lhe-iam acesso ao Poder Legislativo como

deputado. Seu arguto olhar para o nordeste brasileiro aliado ao seu tino de excelente

cronista e observador social forneceu-lhe musculatura para criar personagens e

narrativas que ficaram marcados na mente dos seus leitores. A denúncia da

desassistência social, do racismo, e a flagrante sugestão da luta política por intermédio

da greve em plenos “anos 30” exibe a aposta do escritor na ideologia socialista como

modelo de desenvolvimento da sociedade. Amado, por meio da crônica social, desvela o

cotidiano e denuncia as mazelas que cercavam a vida das pessoas. Em Jubiabá, através

da história entre o protagonista Antônio Balduíno e a personagem Lindinalva, o autor

denuncia os efeitos do racismo na vida e no imaginário do negro no Brasil.

José Luandino Vieira, por sua vez, contém em sua biografia questões relevantes,

quando da análise dos seus textos ficcionais. A infância nos musseques, as sucessivas

perseguições políticas, a sua luta juto ao MPLA3, a sua prisão por oito anos no Campo

do Tarrafal, em Cabo Verde, deram-lhe, sem dúvida, sensibilidade para entender os

anseios da sua gente e possibilidade de transportar para a ficção “tipos” e “estórias” da

vida real,

bem como marcar uma resistência que se dá, em grande parte, pela linguagem, visto que

_______________________ 3

Movimento Popular de Libertação de Angola. Surgiu no fim dos anos 1950 da fusão de vários pequenos

grupos anticoloniais. Agrupou as principais figuras do nacionalismo angolano, entre estudantes no

exterior – sobretudo em Portugal – e lutadores contra o colonialismo – que fugiam do interior de

Angola. Dirigido por António Agostinho Neto, organizou uma luta armada contra a dominação colonial

de Angola por Portugal, e é hoje o partido político que governa Angola desde sua independência de

Portugal em 1975.

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os seus textos trazem o Kimbundo – uma das onze línguas faladas em Angola – em

junção à Língua Portuguesa falada pelos angolanos, como forma de usar a própria

língua do colonizador, para fazer sobreviver as línguas autóctones. Suas narrativas são

recheadas de mistérios e sempre apresentam questões passíveis de serem analisadas com

cuidado, sob pena de serem percebidas como sendo demasiado simplistas.

Fazer política contrária à de Salazar na década de 1950 e 1960 era um grande

desafio, face ao histórico de terror que o referido ditador português empreendeu em suas

colônias nesse período. Para Luandino Vieira, mais que a necessidade de reagir, havia a

de se manter livre para agir.

Débora Leite David, em seu trabalho intitulado Dois Cárceres, uma Certeza: a

morte, analisa comparativamente as obras A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, de

Luandino Vieira, e Memória do Cárcere, de Graciliano Ramos, dentro de uma

perspectiva sociopolítica. Apesar de consistente investigação, a autora atem-se apenas à

exploração de dois elementos presentes nas referidas obras – o autoritarismo e a

violência –, conseguindo medir somente a aproximação temática entre as histórias,

deixando, à parte, a “ponte” por onde transitariam as tensões entre elas, que talvez fosse

o significado dos cárceres em relação aos protagonistas das tramas.

Assim sendo, observa-se o quanto Jorge Amado e Luandino Vieira têm, em suas

biografias, traços comuns – perseguições políticas, luta contra regimes autoritários,

envolvimento com a cultura popular etc. – e como as suas obras evidenciam a imersão

deles em uma zona cultural que, sem dúvida, envolve Angola e Brasil, haja vista que

ambos os países guardam entre si relações que vão além do tráfico de seres humanos.

Dito isso – e para uma melhor compreensão dos debates aqui presentes –, esta

dissertação encontra-se estruturada em três seções assim denominadas: Literatura

Comparada em Debate; A Cidade da Bahia e a Cidade de Luanda: Pontes Imagéticas; e

Duas Histórias, Quatro Elementos.

O presente trabalho inicia-se com a discussão, ao longo do primeiro capítulo –

Literatura Comparada em Debate –, acerca das reflexões iniciais sobre a teoria da

literatura comparada, desvelando as dificuldades de trânsito por esse campo de estudo e

marcando a sua importância para os estudos literários. Mas, para facilitar o trabalho em

torno da teoria, dada a sua complexidade, esta investigação ateve-se aos nomes de maior

expressão dentro da história da literatura comparada, optando por transitar entre os dois

pólos, o francês e o norte-americano.

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Apresentou-se, como representante da perspectiva francesa, Paul Van Tieghem,

pelo seuperfil normatizador, juntos aos estudos da literatura comparada, que o constituiu

como força principal a ser combatida por outras perspectivas; e para lançar luz aos

estudos comparados em perspectiva norte-americana, figura de René Wellek, por ter-se

constituído em uma das principais forças opositoras da postura clássica e por ser

responsável pela polarização dos estudos entre a “escola francesa” e a “escola norte-

americana”. Optou-se também, por trazer mais a fundo ao debate – dentre várias vozes

autorizadas – a voz da autora Tania Franco Carvalhal, não só pelo pioneirismo dos seus

ensaios destinados à academia brasileira, mas também pelo fato de se acreditar serem

os seus estudos e ideias mais próximos do escopo da presente investigação. Nesse

primeiro capítulo, ainda são apresentados os dois autores em estudo, Jorge Amado e

José Luandino Vieira, tentando explorar a trajetória política desses escritores dentro dos

seus respectivos países, expondo os seus projetos literários e revelando as suas trilhas

entrecruzadas.

Na esteira desses debates, vem o segundo capítulo – A Cidade da Bahia e a

Cidade de Luanda: Pontes Imagéticas –, que flagra os laços existentes no imaginário

dos escritores em cena, no que tange às cidades em questão. Tenta-se perceber as

diversas codificações que são por eles realizadas, usando a “cidade” como matéria-

prima para se criar imagens, que parecem transitar de uma obra a outra. Discute-se

também a noção de “cidade real” e “cidade imaginada”, à luz do pensamento de Sandra

Pesavento, na tentativa de se entender como os habitantes daquelas referidas urbes

“contaminam” e são “contaminados” por uma cidade inventivada e como isso afeta suas

práticas sociais.

Para o terceiro momento, apresenta-se o capítulo Duas Histórias, Quatro

Elementos, que discute as diversas relações existentes entre os personagens das

narrativas e os elementos naturais que compõem as cidades. Os debates giram em torno

dos elementos: “água” – representado pelo mar da Cidade da Bahia e pelo rio Kuanza

da cidade de Luanda; “fogo” – por vezes relacionado ao sol, por outras, às luzes; “terra”

– simbolizado pelo barro das ruas dos musseques luandenses e das paredes das casas de

pau-pique, do morro do Capa-Negro; e , por fim, “ar” – representado pela força do

vento que traz as chuvas e sopra entre as referidas capitais. É também nesse momento

que se aponta a presença de mitologias africanas e afro-brasileiras na obra de Jorge

Amado e se percebe o entrelace da ideologia cristã na construção ficcional de Luandino

Vieira.

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Vale salientar que, no que concerne às mitologias africanas, optou-se por

enveredar pela seara da tradição Iorubá, pelo fato de ela apresentar maior relação com

os objetivos desta investigação. Também é oportuno esclarecer que, neste trabalho, não

se mergulhou profundamente no estudo das tradições africanas e afro-brasileiras nem

nos estudos atinentes ao Cristianismo, pela própria complexidade que essas temáticas

carregam em seu bojo e pelo próprio limite investigativo desta pesquisa. Porém, espera-

se que os mergulhos aqui dados sejam suficientes para provocar os debates necessários

ao desenvolvimento do tema. Contudo, reconhece-se que temáticas como as

supracitadas podem – e devem – ser trabalhadas em futuras investigações, que as

tenham como escopo específico a análise de tais questões.

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2 LITERATURA COMPARADA EM DEBATE

Quem, em algum momento, trabalhou ou se interessou em trabalhar com

literatura comparada, certamente, esbarrou-se na intrincada história que cerca não só a

sua gênese como disciplina acadêmica, mas a sua própria existência como campo

teórico. A história da literatura comparada encontra-se envolta principalmente pelo

dilema em torno da delimitação do seu objeto de estudo, bem como pela ausência de um

método específico de análise.

Provavelmente, por conta disso, os teóricos dessa disciplina, cada um ao seu

modo, passaram a defender, para o referido campo de estudo, uma flexibilidade

metodológica, isto é, uma pluralidade de métodos. Esse “ecletismo metodológico”

levaria a visões heterogêneas sobre a literatura comparada, seus objetivos e métodos. E

tal heterogeneidade é perfeitamente perceptível, quando se analisa os textos dos

principais teóricos que escreveram sobre essa área de estudo – o que dificulta mais

ainda a sua compreensão, visto que uma pluralidade de ideias e visões acaba por levar o

pesquisador a uma espécie de flutuação teórica.

Tânia Franco Carvalhal (1998, p. 06) relata a dificuldade de ancoragem

metodológica que aparece, quando da leitura dos diversos textos que teorizam sobre a

disciplina em questão. Segundo a autora:

A dificuldade de chegarmos a um consenso sobre a natureza da literatura

comparada, seus objetivos e métodos, cresce com a leitura de manuais sobre

o assunto, pois neles encontramos grande divergência de noções e de

orientações metodológicas. Muitos fogem a essas questões. Outros dão conta

das tendências tradicionalmente exploradas sem problematizá-las. Alguns

tendem a uma conceituação generalizadora. E há ainda os que preferem

restringir a determinados aspectos o alcance dos estudos literários

comparados.

A literatura comparada, seja enquanto disciplina acadêmica ou campo de estudo,

sempre suscitou debates, e tais discussões ocorreram, na maioria das vezes, por conta

das divergências de entendimento acerca de conceitos como “comparatismo”, “fontes” e

“influência”. Provavelmente, essa dificuldade de ancoragem teórica a respeito de alguns

conceitos atinentes à literatura comparada, explicitada pela autora no fragmento acima,

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dê-se não só pela “divergência de noção” entre os autores, como ela afirma, mas pela

própria natureza do comparatismo, que, por si só, já sugere pluralidade de visão. Some-

se a isso, o fato de a literatura comparada, enquanto disciplina acadêmica, trazer como

emblema a noção de transversalidade, que a assegurou um caráter de amplitude,

possibilitando, assim, múltiplos olhares.

Conforme Sandra Nitrini (2010, p.19), “Uma das tarefas mais difíceis é delimitar

o campo da disciplina Literatura Comparada, pois seus conteúdos e objetivos mudam

constantemente, de acordo com o espaço e o tempo.” Não só pelo fato das constantes

mudanças em seus conteúdos, mas também pela sua pluralidade conceitual, a literatura

comparada tem o seu campo teórico afetado por uma enxurrada de abordagens, diluídas

em diversos manuais que antes confundem que orientam a pesquisadores e alunos

interessados em tal área de conhecimento. Em muitos momentos, surgem dificuldades

para dar síntese a essas múltiplas abordagens e identificá-las dentro de uma determinada

corrente de pensamento. E quem se aventura proceder à leitura dos textos que envergam

teorias sobre o comparatismo literário, com o intuito de buscar definições e objetivos

para esse ramo de estudos, quase sempre se esbarra em uma infinidade de conceitos,

nem sempre consoantes. Louis Paul Betz (2011, p. 63), comparatista suíço radicado na

França, por exemplo, afirmou que:

Investigar como as nações aprenderam umas com as outras, como elas se

elogiam e criticam, se aceitam e rejeitam, se imitam ou distorcem, se

entendem ou interpretam mal, como elas abrem o coração ou se fecham uma

às outras, mostrar que as individualidades, como períodos inteiros, não são

mais que elos de uma cadeia longa e multifilamentada que liga passado a

presente, nação a nação, homem a homem – estas, em termos gerais, são as

tarefas da história da literatura comparada.

Parece que Betz tenta definir as tarefas da literatura comparada partindo do

princípio da interligação entre as nações. Porém, possivelmente, há no pensamento do

autor uma forte tendência em acreditar nas ideias de “fontes” e “influências” – ou seja,

crer na ideia de um polo irradiador sempre pronto para passar adiante os valores da sua

sociedade – e que, muito provavelmente, as literaturas nacionais guardam entre si

relações de filiação e dívidas literárias. Apesar do tom cosmopolita do seu discurso,

Betz (2011, p. 62-63) finalmente deixará clara a sua visão sobre esses processos

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literários internacionais, ao afirmar que “A França exerceu a influência mais antiga e

significativa sobre a vida literária dos povos e tem sido, de um modo geral, o manancial

das ideias que marcaram a história nos últimos 250 anos.” O cosmopolitismo presente

no discurso anteriormente destacado contrasta agora com o teor chauvinista do

comentário do autor – o que aponta um contágio pelas ideias por ele criticadas.

Para Tania Carvalhal (1998, p. 8), “O surgimento da literatura comparada está

vinculado à corrente de pensamento cosmopolita que caracterizou o século XIX.” E essa

forma de pensar, cosmopolita, foi, mais tarde, contaminada por matizes nacionalistas,

muitas delas advindas do ideal romântico, levando muitos pesquisadores,

principalmente os alemães e franceses, à busca pelas fontes de alguns textos,

desenvolvendo a ideia de influência e dívida literária. René Wellek (2011, p. 125),

importante comparatista austríaco, radicado nos Estados Unidos, viria afirmar que:

A Literatura Comparada surgiu como uma reação contra o nacionalismo

limitado de muitos estudos do século XIX, como um protesto contra o

isolacionismo de muitos historiadores da literatura francesa, alemã, italiana,

inglesa etc. Foi frequentemente cultivada por homens que se posicionavam

nas fronteiras entre nações ou, pelo menos, nos pontos limites de uma nação

[...] Mas este desejo genuíno de servir como mediador e conciliador entre

nações foi frequentemente encoberto e distorcido pelo nacionalismo

fervoroso da situação e da época.

Quando se procede a uma revisão da história da literatura comparada, nota-se a

existência de uma intensa relação entre os estudos comparados e o chamado

“nacionalismo”. A ideia de superioridade nacional e cultural que sempre rondou as

nações europeias, aliada ao desenvolvimento da ideia de originalidade, de certo modo,

fomentou os trabalhos comparados na Europa, na perspectiva de aferir, inicialmente,

semelhanças e diferenças entre questões dentro das próprias nações europeias, haja vista

a existência de trabalhos lá realizados, com títulos como Taine e a Inglaterra ou Goethe

na França. Basta lembrar que o termo “literatura comparada” surge no século XIX, no

mesmo momento em que se consolidam as fronteiras nacionais e se ampliam os debates

em torno da cultura e identidade nacional por todo o continente europeu. Mais tarde, o

chamado “nacionalismo” abriria caminho para as ideias de fonte e influência que

dominariam os estudos comparados na Europa, dando um forte tom ufanista às

pesquisas e abandonando a vertente cosmopolita.

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Apesar de Louis Paul Betz (2011, p. 62) afirmar que “Quem se dedicar à história

da Literatura Comparada deve antes de mais nada estar livre de preconceitos nacionais e

de qualquer chauvinismo” e que, “[...] efusões patrióticas, embora belas e justificadas,

devem ser evitadas”, quando se confrontam duas ou mais obras literárias, objetivando

perceber ligações, afinidades e diferenças entre elas, faz-se seguindo uma rede de

valores coletivos e individuais de natureza diversa. Portanto, dois comparatistas podem

apresentar múltiplas análises sobre um mesmo objeto. É possível que um inglês, ao

comparar uma obra de Machado de Assis a uma de James Joyce, divirja de um

comparatismo realizado por um francês sobre as mesmas obras. E é provável que um

brasileiro do Sul venha a realizar uma análise comparada diferente de um brasileiro do

Norte, mesmo à luz do mesmo corpus. Com isso, o que se deseja não é desacreditar na

possibilidade de uma análise isenta, mas apontar a dificuldade em sua realização, face

aos múltiplos elementos que circundam os analistas, como nacionalidade, desavenças

regionais, litígios históricos, diferenças político-religiosas etc.

Essa conclusão a que ora se chega e que parece soar meio óbvia, objetiva

apontar a razão da existência de conceitos múltiplos sobre literatura comparada, bem

como de olhares diversos no que toca à sua metodologia. Franceses, ingleses e alemães,

precursores dos estudos comparados na Europa, em alguns momentos parecem ter

permitido que velhas rivalidades contaminassem os seus olhares na direção dos estudos

literários em perspectiva comparada. E o resultado foi uma concepção de tal disciplina

como campo de saber dedicado à identificação das chamadas “relações literárias

internacionais”. Esta designação serviu, muitas vezes, na realidade, para constituir um

cânone não expresso no interior das literaturas da Europa Central e Ocidental,

estabelecendo uma distinção implícita entre “literaturas maiores” e “literaturas

menores” – sendo as primeiras, consideradas de maior força quantitativa e qualitativa,

funcionariam como verdadeiros modelos ou fontes para as segundas, que se limitariam,

assim, a um papel secundário, periférico, de integração de influências provenientes de

tais modelos.

Nessa perspectiva, o filósofo francês Gilles Deleuze (1977, p. 28-9), encarregou-

se de encontrar um novo significado para a expressão “literatura menor”, situando o

termo “menor” fora da sua acepção valorativa comum, que encerra certo valor

depreciativo. Para o autor, “‘menor’ não qualifica mais certas literaturas, mas as

condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande

(ou estabelecida)”. Na esteira de tal pensamento, a literatura dita “menor” o seria por

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marcar certa lateralidade em relação à chamada “grande literatura”, ou seja, por marcar

um caminho distinto e autônomo em relação ao preestabelecido pelas literaturas

hegemônicas. Isso põe em cheque a ideia de fonte e, obviamente, exige uma mudança

paradigmática no olhar em torno das influências. Nessa perspectiva, Deleuze (1997, p.

28-9) ainda vai afirmar que:

Mesmo aquele que tem a infelicidade de nascer no país de uma grande

literatura, deve escrever em sua língua, como um judeu tcheco escreve em

alemão, ou como um usbeque escreve em russo. Escrever como um cão que

faz seu buraco, um rato que faz sua toca. E para isso, encontrar seu próprio

ponto de subdesenvolvimento, seu próprio patoá, seu próprio terceiro mundo,

seu próprio deserto.

Essa autonomia do autor em relação à chamada grande literatura, proposta por

Deleuze, faz-se importante para o próprio entendimento da realidade que o circunda. Ao

trazer, na citação acima, o termo “infelicidade”, Deleuze discute a necessidade de um

pensamento singular que leve o autor a encontrar a sua posição no mundo em relação a

outros escritores, encontrar o seu “caminho de exclusão” dentro da “grande literatura”.

Isso ao menos baralha as ideias de fonte e influência e torna esse debate mais profundo

do que se almeja imaginar.

Pensa-se ser mais que oportuno abrir aqui um parêntese, para se trazer questões

relacionadas ao debate em torno das ideias de fonte e influência, a fim de que seja

possível caminhar por trilhas bem mais definidas quanto a esses conceitos, uma vez que

eles ocuparam importantes lugares nos estudos de literatura comparada, tanto em sua

aceitação quanto em sua recusa; e, em dado momento, nortearam a direção dos estudos

comparatistas, principalmente na primeira metade do século XX, na França,

constituindo-se nos pilares das análises em perspectiva francesa. Só a partir dos anos de

1950, tal perspectiva seria alvo de acirradas críticas, oriundas da chamada “escola

americana”, dividindo os referidos estudos em duas orientações: francesa e norte-

americana. Vários autores, historicamente, trouxeram a lume reflexões sobre o conceito

de fonte e de influência, ora tentando defini-los, ora tentando avaliar os seus impactos

no processo de produção artística. Discutir tais conceitos significa apresentar visões

múltiplas dentro do debate, o que é fundamental para se medir a oscilação desses

conceitos através do tempo, bem como perceber as tendências contemporâneas.

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Sabe-se, e quem ratifica é Claudio Guillén (2011, p. 172), que o que teria

contribuído para que a literatura comparada, em dado momento (século XIX), passasse

a centrar-se nas influências de uma nação sobre outra e de uma literatura sobre outra,

em grande parte, teria sido a crença romântica nas originalidades nacionais. Isso,

somado à falta de uma percepção relativa sobre o próprio “fazer artístico”, contribuiu

para que as investigações daquela disciplina centralizassem o seu olhar na busca de

fontes, pautando-se por uma visão limitada no que tange às influências. Talvez, por

isso, para dar conta do conceito de influência, Guillén (2011, p.170) revela que

“Qualquer teoria sobre esse assunto implica uma compreensão, consciente ou não, da

natureza do ato criativo em arte.” Em sintonia com o pensamento do autor, o debate em

torno “do ato criativo em arte” traz para a discussão elementos que colocam a influência

em lugar distinto daquele consagrado pelo senso comum, que a tem como sendo

símbolo de dependência e falta de originalidade – o que acaba por contribuir, no caso da

literatura, para a emergência de expressões como a de “dívida literária”.

Silviano Santiago (2000, p.17), ao avaliar o papel do escritor e do crítico latino-

americano na cena mundial, debate, sobre a questão das fontes e influências e anuncia,

logo de início, a necessidade de “[...] declarar a falência de um método que se enraizou

profundamente no sistema universitário: as pesquisas que conduzem ao estudo das

fontes ou das influências”. Santiago (2000, p.18) ainda revela que:

A fonte torna-se a estrela intangível e pura que, sem se deixar contaminar,

contamina, brilha para os artistas dos países da América Latina, quando estes

dependem da sua luz para o seu trabalho de expressão. Ela ilumina os

movimentos das mãos, mas ao mesmo tempo torna os artistas súditos de seu

magnetismo superior. O discurso crítico que fala das influências estabelece a

estrela como único valor que conta. Encontrar a escada e contrair a dívida

que pode minimizar a distancia insuportável entre ele, mortal, e a imortal

estrela: tal seria papel do artista latino-americano, sua função na sociedade

ocidental.

A associação que o autor acaba por fazer da “fonte” com uma estrela marca o

olhar crítico acerca das obras criadas em sociedades colonialistas, que não cessam de

serem vistas enquanto faróis a orientar principalmente aos artistas de sociedades

colonizadas, de quem se esperaria apenas o papel de refletir a luz de tais faróis. Os

argumentos de Santiago (2000, p.17) dão conta de revelar que o citado método (baseado

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no estudo das fontes e influências) não contribui para mostrar o artista como sendo

dotado de rica imaginação, mas “[...] apenas assinala a indigência de uma arte já pobre

por causa das condições econômicas em que pode sobreviver.” Santiago ainda vai além,

ao revelar que esses discursos dotariam a obra do artista de um teor parasitário, ou seja,

uma obra que se alimentaria de outra, sem lhe acrescer algo próprio, portanto de vida

limitada e precária. Isso poria em cheque, contudo, todo o potencial criativo que cerca o

artista. Santiago (2000, p.19) ainda afirma que estabelecer a falência do referido método

significaria o compromisso com sua substituição por outro modelo, em benefício de um

discurso crítico que “[...] por sua vez esquecerá e negligenciará a caça às fontes e

influências e estabelecerá como único valor crítico a diferença”.

Não se tem certeza se a proposta defendida por Silviano Santiago, da emergência

de um modelo baseado na diferença como valor único, condiz com a necessidade dos

estudos comparados em tempos atuais. Poderia somar-se a essa proposta o engendro de

um discurso crítico que se baseie na aproximação entre obras, com foco nas

similaridades. Com isso, por meio das inter-relações textuais, se flagraria a capacidade

criativa do artista, sem a necessidade de se enveredar pelo garimpo de fontes e

influências, posto que, pensando-se nas tendências contemporâneas em literatura

comparada, que contemplam o campo das relações intertextuais, através da noção

teórica da intertextualidade, pode-se desenvolver investigações, cuja visada mire na

direção das aproximações entre textos. Certamente, isso não eximiria a análise das

diferenças – conforme propõe Santiago –, somar-se- ia a ela e, provavelmente, desse

melhor resposta para o entendimento das relações entre obras, já que, conforme afirma

Tania Carvalhal (1996, p.13), “A intertextualidade, como propriedade descrita, passou a

significar um procedimento indispensável à investigação das relações entre textos,

tornou-se chave para a leitura e um modo de problematizá-la.”

Na esteira do pensamento de Cláudio Guillén (2011, p.174), e ainda com vistas

para o debate atinente ao ato criativo, o autor declara que “criação” seria um termo

particularmente adaptável à arte, desde que fosse excluído dele a suposição de que o

processo criativo representaria a passagem de uma entidade a outra, dentro da mesma

ordem de realidade, isto é, sem uma mudança básica e completa da espécie. Com isso,

Guillén defende o caráter transformador do ato de criar e coloca a ideia de criação

realizada pelo artista como sendo o movimento de uma espécie de realidade para outra,

já que o “fazedor” de arte torna possível a emergência de um objeto que é novo e sui

generis, capaz de reivindicar existência própria.

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Pensando o exposto por Guillén sobre o processo criativo e continuando o

exercício de reflexão em torno do pensamento de Silviano Santiago no que toca às

“fontes” e “influências”, percebe-se que o importante para o artista, no âmbito das inter-

relações com textos, acaba por ser o processo de leitura e releitura que estabelece com

outras obras, transformando-as, ou, nos termos de Santiago (2000, p. 20), realizando

uma “[...] meditação silenciosa e traiçoeira [...]” sobre uma outra obra, principalmente

sobre aquelas consideradas “fontes”. Conforme Santiago (idem, ibidem), “O leitor,

transformado em autor, tenta surpreender o modelo original em suas limitações, suas

fraquezas, em suas lacunas, desarticula-o e o articula de acordo com suas intenções.”

Nota-se, com isso, que ambos os autores sustentam a ideia de originalidade como

símbolo de intercruzamentos, de correlações, de releituras entre obras, e apresentam tais

relações como marca de criatividade artística.

A ideia de originalidade, tão cara aos românticos, obteve nova interpretação,

com o pensamento de Paul Valéry, que, na primeira metade do século XX, trouxe a

noção de assimilação, baralhou o jogo das trocas e empréstimos e, nos termos de Sandra

Nitrini (2010, p.132), “renovou o próprio conceito de influência literária, revertendo

quase completamente o sistema de valores”. Com sua já consagrada frase: “O leão é

feito de carneiro assimilado.” (VALÉRY apud NITRINI, 2010, p.132). Valéry, no plano

do debate, reconfigura as discussões sobre “fontes” e “influências”, com a

ressignificação de conceitos – como assimilação e empréstimo –, dando uma nova

roupagem ao processo criativo. Para Sandra Nitrini (2010, p.132), foi a partir dos

estudos de Valéry que:

Os problemas de empréstimos, considerados, até então, por um grande

número de estudiosos, dependência de um autor em relação a outro, não

aparece mais como uma imitação, mas, ao contrário, como forma de

originalidade, isto é, como a intrusão do novo na criação.

Nota-se que o processo de desconstrução dos conceitos acaba por ser peça

fundamental para se caminhar no debate em torno da própria atividade comparatista,

visto que, a inobservância em torno de questões fundamentais – como o processo de

criação artística – oblitera pontos importantes na discussão, perpetuando uma visão

sobre o artista – principalmente aqueles das sociedades colonizadas – como sendo um

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parasita que se vale de outros textos, por deficiência criativa. Contra essa forma de

pensamento sobre o artista e ainda debatendo sobre o escritor latino-americano, Silviano

Santiago (2000, p. 20) assegura que:

O escritor latino-americano brinca com os signos de um outro escritor, de

uma outra obra. As palavras do outro têm a particularidade de se

apresentarem como objetos que fascinam seu olhos, seus dedos, e a escritura

do segundo texto é em parte a história de uma experiência sensual com o

signo estrangeiro.

É com um olhar em torno desses debates – sobre o processo criativo, “fontes” e

“influências” , e sobre a postura do artista em relação à obra de outro –, que o cotejo

entre a obra de Jorge Amado e de José Luandino Vieira se faz interessante. Perceber

como essa experiência sensual com o signo do outro, conforme revelou Santiago,

explicita relações intertextuais e flagra o artista enquanto possuidor de uma

originalidade peculiar. Jubiabá e A Vida Verdadeira de Domingos Xavier são textos

com importante potencial para revelar a existência de intercomunicações entre obras e

demonstrar as inúmeras formas de se analisar tal fenômeno.

Fecha-se aqui o parêntese, para se continuar no debate em torno da história da

literatura comparada, tentando entender o seu complexo universo e perceber o caráter

heterogêneo das discussões, principalmente aquelas que emanam do embate entre as

chamadas “escolas”. Duas delas, pela importância histórica para os rumos da disciplina,

irão ocupar aqui maior exercício de reflexão: a escola francesa e a escola americana.

2.1 ENTRE FRANCESES E NORTE-AMERICANOS

Apesar da flagrante dificuldade em cimentar pontos dentro da seara do

comparatismo literário, nada, entretanto, o impediu de avançar e se constituir em um

importante campo de estudos, tornando-se disciplina universitária e conquistando a

atenção e o interesse dos principais centros de saber europeus. O século XIX foi um

importante momento para as ciências naturais, de onde emana o método comparatista, e

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foi nesse século que a ideia de comparar, para fundar leis gerais, dominou o continente

europeu. O crítico neozelandês Hutcheson Macaulay Posnett (2011, p. 23), em 1886,

afirma que “O método comparativo de adquirir ou comunicar conhecimento é, num

certo sentido, tão antigo quanto o pensamento, e, em outro, a glória peculiar do nosso

século XIX.” Vários estudos de anatomia e fisiologia comparados passam a surgir na

França nesse período, e, mais tarde, essa forma de se estudar comparativamente acaba

por contaminar as ciências humanas, atingindo a literatura.

De acordo com Louis Paul Betz (2011, p. 62), “A França pode ser considerada a

origem acadêmica e o centro da história da literatura comparada moderna.” Tal

afirmação certamente dá-se pelo fato de ter sido na França onde, primeiramente, a

literatura comparada iria se firmar como disciplina acadêmica – foi exatamente em

Lyon, em 1887, e, logo depois, na Sorbonne, em 1910. Não só por isso, mas também

pelo fato de os franceses terem demonstrado grande inclinação para a normatização dos

estudos literários comparados, haja vista o grande número de manuais sobre literatura

comparada que foram responsáveis pela divulgação da perspectiva francesa em vários

países. Conforme a professora Tania Carvalhal, (1998, p. 8-9) uma questão foi

fundamental para que a literatura comparada se firmasse na França:

Embora empregada amplamente na Europa para estudos de ciências e

lingüística, é na França que mais rapidamente a expressão “literatura

comparada” irá se firmar. Ali o emprego do termo “literatura” para designar

um conjunto de obras era aceito sem discussão desde o seu aparecimento,

com essa acepção, no Dictionnaire philosophique de Voltaire, enquanto na

Inglaterra e na Alemanha a palavra “literatura” custou mais a ganhar esse

conceito.

Nota-se que, para a autora, o desenvolvimento da literatura comparada na França

esteve relacionado ao amadurecimento de um conceito anterior, o de “literatura”. Parece

muito oportuno esse pensamento, uma vez que vários teóricos da literatura comparada

reconhecem a multiplicidade de entendimentos referentes a esse conceito. Também

pode ser verdade que boa parte desses autores, principalmente os franceses, tentaram

definir “literatura” e, portanto, nortear o debate, a partir do seu ponto de vista. Paul Van

Tieghem, por exemplo, afirmou ser “[...] digno do nome de literatura aquilo que oferece

um valor, e um valor literário, isto é, um mínimo de arte.” (VAN TIEGHEM, 2011, p.

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102. Grifo do autor). Cumpre registrar-se que valor literário e valor artístico são

questões por demais subjetivas; que talvez tenha escapado a Van Tieghem a necessidade

de considerar as múltiplas visões relativas a essas ideias. O que poderia ser considerado

arte na visão do outro, para o referido autor poderia não sê-lo, e certamente a obra com

valor literário fosse aquela que ele assim a julgasse.

Nessa tentativa de analisar a literatura comparada em seu contexto histórico, faz-

se necessário entender que distintas ideias circularam pela Europa e América do Norte,

no tocante ao comparatismo literário. E algumas dessas ideias, por seus autores

encerrarem pensamentos, visões e métodos consoantes, acabaram por serem percebidas

e classificadas, em determinados momentos, como “escolas”. Porém, como já foi dito,

duas escolas exerceram mais influência no pensamento acerca da literatura comparada:

as chamadas “escola francesa” e “escola norte- americana”.

Seguindo o pensamento de Tania Carvalhal (1998, p.14), “A maioria dos

manuais adota a denominação ‘escola francesa’ para designar um grupo representativo

de estudos onde predominam as relações ‘causais’ entre obras ou entre autores,

mantendo uma estreita vinculação com a historiografia literária.” Apesar da pluralidade

de autores franceses e de estudos sobre literatura comparada, parece que temos em Paul

Van Tieghem um representante dessa escola, pois se trata de um dos primeiros

normatizadores a definir a literatura comparada como sendo o estudo das diversas

literaturas em suas relações recíprocas – inclusive, Tania Carvalhal (1998, p. 17) declara

que “A inclinação para a ordenação de dados e a fixação de noções norteadoras já

caracterizavam, por exemplo, a obra clássica de Paul Van Tieghem”.

Sandra Nitrini (2010, p. 22) apresenta o referido autor como “ponto de partida” e

salienta o teor ultrapassado das suas ideias. Porém, a autora reconhece ser importante a

revisão de tais ideias para o entendimento do estado atual da literatura comparada,

principalmente enquanto disciplina. É Van Tieghem quem vai diferenciar literatura

comparada de literatura geral, dando, à primeira, um caráter mais analítico e

responsável por estudos binários, enquanto que a segunda preocupar-se-ia com estudos

de várias literaturas e teria um caráter mais sintético. Van Tieghem, na perspectiva de

delimitar o estudo da literatura comparada, assegura que:

Como todas as partes que compõe o estudo completo de uma obra ou de um

escritor podem ser tratadas apenas com os recursos da história literária

nacional, exceto a pesquisa e a análise das influências sofridas e exercidas,

convém reservar esta para uma disciplina especial, que terá seus objetivos

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bem definidos, seus especialistas, seus métodos. Ela prolongará em todos os

sentidos os resultados obtidos pela história literária de uma nação, reunindo-

os com os que, por seu lado, obtiveram os historiadores das outras literaturas,

e desta rede complexa de influência se constituirá um domínio à parte. Ela

não pretenderá de modo algum substituir as diversas histórias literárias

nacionais; há de completá-las e uni-las; [...] Esta disciplina existe; seu nome é

Literatura comparada. (TIEGHEM, 2011, p. 107, grifo do autor)

Com isso, o autor conceberia a literatura comparada como uma disciplina subsidiária da

historiografia literária e da literatura geral, tornando a atividade do comparatista

limitada à investigação de fatos comuns a duas literaturas. Essa forma historicista de

conceber a literatura comparada praticamente caracterizou o pensamento da escola

francesa, que via em tal disciplina, uma simples oportunidade de pesquisa e análise das

influências sofridas e exercidas pelos autores.

A chamada “escola americana” caracterizou-se por um rompimento com a

postura historicista dos estudiosos franceses em relação à literatura comparada. Os

comparatistas norte-americanos aceitaram os estudos comparados dentro das fronteiras

de uma única literatura, em contraste com a tendência clássica francesa; além de

privilegiarem a análise do texto literário em detrimento das relações entre autores e

obras, como adotavam os franceses. Isso pode explicar a necessidade de se centrar na

análise das narrativas, enquanto elemento fecundo, e deixar, em segundo plano,

questões referentes a contatos entre autores.

Apresentando maior ecletismo e amparada no New Criticism, movimento crítico

que se desenvolveu nos Estados Unidos a partir dos anos 30, a escola americana tem em

René Wellek o seu expoente, visto que esse autor, pelo caráter polêmico das suas

reflexões, foi responsável pela separação entre as duas referidas orientações básicas no

estudo de literatura comparada: a francesa e a norte-americana. Apesar disso, Sandra

Nitrini (2010, p. 34) explicita que já havia um caloroso debate, nos Estados Unidos,

contra os estudos literários positivistas franceses. E que “Wellek não inventou uma nova

concepção; foi apenas um ilustre representante de muitas vozes que compartilhavam da

idéia que o factualismo positivista tinha chegado ao seu fim.” Isso faz remeter ao que

estabelece Carvalhal (1998, p. 15), quando afirma que “Sem ter um programa (ou

doutrina) estabelecido, os comparatistas norte-americanos têm em René Wellek seu

porta-voz mais expressivo.”

Durante muito tempo, a literatura comparada pareceu ser área exclusiva dos

estudiosos franceses, que tinham a sua doutrina predominante sobre outras abordagens.

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Apesar das duras críticas ao modelo francês em décadas anteriores, foi no final da

década de 1950, precisamente em 1958, que a abordagem clássica francesa foi posta em

xeque, com um artigo publicado por Wellek, cujo título era A Crise da Literatura

Comparada. Nesse texto, ele expõe as fragilidades teórico-metodológicas da disciplina

e ataca o modelo francês, representado principalmente por Van Tieghem:

O sinal mais sério do estado precário de nossas pesquisas reside no fato de

que ainda não se foi capaz de estabelecer um objeto de estudo distinto e uma

metodologia específica. Eu acredito que os pronunciamentos de

Baldensperger, Van Tieghen, Carré e Guyard falharam nesta tarefa essencial.

Eles sobrecarregaram a literatura comparada com uma metodologia obsoleta

e lhe atribuíram o lado estéril do factualismo, do cientificismo e do

relativismo histórico do século XIX. (WELLEK, 2011, p. 120-121)

Com esse discurso, Wellek parece estar consciente de que uma disciplina como a

literatura comparada, para desenvolver o seu papel enquanto campo de estudo, deveria

ter, muito bem cimentados, aqueles que parecem ser os pilares da investigação

científica, ou seja, objeto e método. Dessa forma, parece que o cientificismo, duramente

criticado por ele, também contamina o seu discurso e exibe uma forma de pensamento

presente na segunda metade do século XX.

Wellek também questiona a distinção entre literatura geral e literatura

comparada, proposta por Van Tieghem, sob alegação de insustentabilidade:

[...] duvido que a tentativa de Van Tieghem de distinguir a literatura

“comparada” da literatura “geral” alcance sucesso. Para Van Tieghem, a

literatura “comparada” restringe-se ao estudo das inter-relações entre duas

literaturas, enquanto a literatura “geral” se preocupa com os movimentos e

estilos que abrangem várias literaturas. Esta distinção, sem dúvida, é

insustentável e impraticável. (WELLEK, 2011, p. 121, grifo do autor)

Wellek (2011, p. 121) ainda vai além na crítica à distinção entre a literatura geral

e a comparada, dando exemplos que reforçam o caráter impraticável de tal distinção:

Por que se poderia, por exemplo, considerar literatura “comparada” a

influência de Walter Scott na França, enquanto um estudo do romance

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histórico durante o período romântico seria visto como literatura “geral”? Por

que deveríamos distinguir um estudo sobre a influência de Byron em Heine

de um estudo do byronismo na Alemanha? A tentativa de se restringir a

“literatura comparada” a um estudo do “comércio exterior” entre literaturas é

certamente infeliz. A literatura comparada seria, em seu objeto de estudo, um

conjunto incoerente de fragmentos não relacionados: uma rede de relações

constantemente interrompidas e separadas dos conjuntos significativos.

Ao discordar da forma como se concebe a literatura geral e a literatura

comparada, pelo campo da distinção, Wellek acaba por criticar a postura limitada dos

estudiosos franceses. E, para o autor, “As tentativas de estabelecer fronteiras especiais

entre a literatura comparada e a literatura geral devem desaparecer, porque a história

literária e as pesquisas literárias têm um único objeto de estudo: a literatura.”

(WELLEK, 2011, p. 122). Esses constantes questionamentos ajudaram a abalar a

perspectiva clássica francesa e marcaram, de forma bem definida, as duas trincheiras de

pensamento acerca da literatura comparada que iriam ecoar em várias partes do mundo.

2.1.1 O COMPARATISMO EM TERRAS BRASILEIRAS

O século XX foi fundamental para que a literatura comparada viesse a se

institucionalizar enquanto disciplina acadêmica, tendo a Europa e a América do Norte

como centro de pesquisa e ensino. Para Tania Carvalhal (1996, p. 12) a literatura

comparada difunde-se na América Latina nos anos de 1960 e 1970, tendo o Brasil como

local onde a institucionalização desses estudos encontrou maior consistência.

Na segunda metade do século XX, precisamente em 1980, observam-se

momentos decisivos para a institucionalização da literatura comparada no Brasil. Em

1986, por ocasião do I Seminário Latino-Americano de Literatura Comparada, foi

criada a Abralic – Associação Brasileira de Literatura Comparada – em Porto Alegre,

Rio Grande do Sul, que segundo Tania Carvalhal (1996, p. 11), representou “O grande

desenvolvimento no Brasil dos estudos de literatura comparada”. A Abralic reúne,

nesse momento, estudiosos da literatura comparada no país e promove vários eventos,

na perspectiva de aferir o debate em torno de tal disciplina. Vale lembrar que, nessa

mesma época, notadamente em 1986, observa-se o lançamento de uma importante obra,

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da autora supracitada, intitulada Literatura Comparada, (Série Princípios, Ática)

destinada a estudantes universitários. Tal lançamento amalgama um importante

momento no processo de institucionalização da literatura comparada em solo brasileiro,

iniciado entre as décadas de 1950 e 1960.

Para Sandra Nitrini, (2010, p. 184) “[...] a institucionalização da literatura

comparada no Brasil ocorreu justamente nos anos em que vozes contrárias à direção da

chamada ‘escola francesa’ começavam a se fazer ouvir [...]”. A autora refere-se

certamente ao ano de 1958, quando se dá em Chapel Hill – Estados Unidos – o II

Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada – momento em que

René Wellek profere duras críticas à linha tradicional francesa. A institucionalização da

literatura comparada enquanto disciplina do currículo dos cursos de Letras ocorre entre

os anos de 1950 e 1960, nas universidades dos estados da Guanabara e São Paulo. Vale

frisar que, em solo brasileiro, a literatura comparada encontra terreno em alguns

manuais, escritos principalmente por discípulos dos mestres franceses. Pode-se citar

Tasso da Silveira – discípulo das ideias de Van Tieghem –, então professor de literatura

comparada da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Guanabara, como o

responsável por divulgar, em plagas brasileiras, o pensamento do teórico francês. É

Tasso da Silveira que irá defender no Brasil, na década de 1950, o modelo clássico da

escola francesa, afirmando as ideias de “fontes” e “influências”. Em seu livro Literatura

Comparada, o escritor curitibano trata logo de definir o objetivo da literatura

comparada:

Ouvindo falar pela primeira vez de literatura comparada, suporão muitos,

porventura, que se alude ao cacoete de estabelecer paralelos genéricos e

vagos entre duas ou mais literaturas, entre dois ou mais autores de

nacionalidades diferentes, que tanto afeta os críticos primários. A coisa, no

entanto, é mais diversa. Em Literatura Comparada procedem-se a

comparações de caráter especial e com finalidade positiva. Com a finalidade,

extremamente fecunda para a história do espírito, de verificar a filiação de

uma obra ou de um autor a obras e autores estrangeiros, ou de um momento

literário, ou da literatura interna de um país a momentos literários ou a

literaturas de outros países. (SILVEIRA, 1964, p. 15)

A filiação à corrente francesa aparece logo na adoção, por Tasso da Silveira, do

termo “finalidade positiva”, que expressa uma ancoragem nos princípios positivistas

que dominaram a abordagem francesa, e por que não dizer, a abordagem europeia.

Silveira insistirá ainda na concepção de “filiação”, como se a investigação no terreno da

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literatura comparada se desse pura e simplesmente com o objetivo de identificar

famílias literárias, e revela que, em relação ao comparatista, “Sua específica tarefa é

apenas uma: estabelecer filiações entre obras e autores de um país e obras e autores de

outro ou de outros países.” (SILVEIRA, 1964, p. 36)

Não fica por aí a demonstração das ideias mergulhadas na corrente francesa:

ainda se lerá, na “orelha” do manual de Silveira (1964, s/p.), o seguinte texto:

Mais do que fruto de um determinado meio físico, ou de um determinado

meio social, ou de um determinado momento histórico, – posta de parte a

consideração do espírito criador, da personalidade, da originalidade própria

do artista, que prevalecem sobre tudo mais, – um romance, um poema, um

drama, são o fruto, mediato ou imediato, da influência de realizações

congêneres alheias, coetâneas ou remotas.

O referido autor foi um dos primeiros professores da disciplina literatura

comparada no Brasil. Com isso, entende-se que a tendência clássica institucionaliza o

comparatismo no País. Como os seus mestres franceses, Silveira irá enveredar pelo

caminho da busca pelas “fontes” e “influências” e defenderá a filiação de uma obra por

outra. Defenderá também aquilo que foi, durante muito tempo, uma das principais

diferenças entre a corrente francesa e a norte-americana: o comparatismo entre obras de

autores de igual nacionalidade, vilipendiado pelos franceses e admitido pela corrente

norte-americana. Na continuidade do texto acima exposto, Silveira (1964, s/p.) dirá:

Quando o influxo se produz de um autor para outro, dentro do mesmo país, é

fácil à crítica literária determiná-lo. Quando, todavia, é entre autores de

países diversos que se estabelece o contato fecundo, surgem dificuldades de

monta. Foi mistér criar-se, para atender ao caso, uma disciplina nova. Esta

disciplina é a LITERATURA COMPARADA.

Fica claro que, na visão do autor, a disciplina foi criada para atender às

investidas internacionais de estudos literários comparados, e que os influxos, os quais

porventura se percebam entre autores de mesma nacionalidade, ficariam a cargo da

crítica literária.

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Sendo assim, pelo prisma de Silveira, um cotejo entre uma obra de Jorge Amado

e uma de Luandino Vieira, por exemplo, ficaria no terreno da literatura comparada.

Porém, caso se objetivasse comparar entre si as obras Dona Flor e Seus Dois Maridos,

de Amado, e Dom Casmurro, de Machado de Assis, isso, pela “facilidade” da sua

realização, dever-se-ia fazê-lo no terreno da crítica literária. Essas ideias, originalmente

disseminadas por Van Tieghem, foram duramente criticadas por René Wellek, defensor

de um comparatismo também entre obras de igual nacionalidade.

É oportuno lembrar que a literatura comparada ingressa nas universidades

brasileiras em conjunto com a teoria literária. Segundo Carvalhal (1996, p. 12), essa

associação expressava um movimento natural dos anos 60 e fixou uma articulação

benéfica para ambas as disciplinas. Mas, conforme a autora:

É no contexto dos anos 80 para cá que se afirma e se estreita a convivência

entre teorias literárias e comparatismos, tendo esses acompanhado as

modificações das primeiras, incorporando, seletivamente, aquilo que

interessava a sua atuação particular, e fornecendo àquela o que desde sempre

caracterizou a literatura comparada: amplitude de visão e metodologia dos

confrontos. (CARVALHAL, 1996, p. 15)

Traz-se, aqui, tal questão para se avaliar, no Brasil, o papel da teoria literária no

processo de desconstrução de velhos paradigmas estabelecidos sobre o comparatismo –

boa parte deles por contágio das tendências clássicas francesas (como se observou com

o autor Tasso da Silveira). Em plagas brasileiras, foram fundamentais os conceitos

trazidos pelos estudiosos das teorias de produção textual, bem como aqueles oriundos

dos estudos de recepção literária, para levar o comparatismo a rever velhas questões,

principalmente as relacionadas às “fontes” e “influências”.

Uma dessas teorias, a da intertextualidade, que, segundo Carvalhal (1996, p. 13),

indicaria “a apropriação de um texto por outro”, ajudou a pensar as relações

interliterárias e deu direção distinta a esses estudos quando redimensionou conceitos,

como dependência e originalidade, abalando, por aqui, os postulados das correntes

clássicas. No que concerne a referida teoria, a autora assevera que:

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A contribuição do conceito para os estudos de literatura comparada foi

decisiva, pois modificou as leituras dos modos de apropriação, das absorções

e das transformações textuais, alterando o entendimento da mobilidade

contínua dos elementos literários e revertendo a compreensão das tradicionais

noções de fontes e influências.

As ideias trazidas pelo campo da intertextualidade levaram a uma necessidade de

reanalise das ideias de fontes e influências, provocando mudanças na forma de

abordagem do texto literário. Nota-se, portanto que a articulação entre teorias literárias e

literatura comparada, não foi apenas circunstancial, mas representou uma reformulação,

inevitável e benéfica, para ambas as disciplinas.

Se por um lado temos no Brasil um legítimo representante da linha francesa; por

outro, temos um autor, cujas ideias, apesar da anterioridade, avizinharam-se mais

daquilo que preconizou os postulados da corrente norte-americana. Foi com João

Ribeiro, no início do século, precisamente em 1905, que se teve, no País, contato com

uma forma de pensamento muito avançada para o momento dos debates acerca da

literatura comparada. Ribeiro (1963, p. 133) surpreende com a recusa das ideias de

“fontes” e “influências”, aproximando-se da crítica histórica:

Refiro-me à literatura comparada: mas não a essa em que se cotejam e se

confrontam escritores de várias raças e estirpes. Pouco importam (à luz em

que estou agora) os influxos recíprocos entre os homens de gênio, o quanto

influiu Petrarca em Camões, Cervantes em Heine, Plauto em Molière. Refiro-

me, diversamente, a um aspecto essencial da crítica histórica que há mister

fundar e desenvolver.

Ao declarar o seu apreço pela “crítica”, João Ribeiro exibe uma inquietação que,

mais tarde, encontrará eco maior nas ideias de René Wellek do que nas considerações

de Van Tieghem, visto que os apelos de Wellek sempre convergiram para a crítica, a

ponto de ele afirmar que “Os pesquisadores da história literária que negam a

importância da crítica são eles mesmos críticos não conscientes [...]” (WELLEK, 2011.

p. 128-129). A atitude pouco interessada pelas ideias de “influência” de um autor em

outro, expressa nas palavras de João Ribeiro, vai de encontro à postura de Tasso da

Silveira e deixa clara a existência de polos de pensamentos distintos.

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Por fim, essa revisão sobre os debates acerca da história da literatura comparada

aparece aqui para dar musculatura a uma análise comparada entre as obras de dois

expoentes da literatura, Jorge Amado e José Luandino Vieira, que, pela complexidade

das suas narrativas, tornam essa missão demasiado trabalhosa. Fez-se necessário o

entendimento de que, a respeito do comparatismo literário, nunca houve consenso no

tocante aos seus métodos e que o termo “literatura comparada” sempre suscitou

calorosas discussões ao longo da história. Ninguém melhor que os autores até aqui

citados para exibir o tom desses debates e dar a noção de que foi preciso romper com

ideias antiquadas sobre comparatismo e sobre literatura, para que se pudesse caminhar

nessas searas. As contribuições de René Wellek e de Paul Van Tieghem para os estudos

e discussões em torno do campo da literatura comparada situaram as tensões que se

fizeram presentes ao longo da história. Foi necessário lançar mão, ainda, dos escritos de

Tania Carvalhal, autora de aguda visão e poder de síntese, para a interpretação dos

textos que fundam as discussões, a fim de que fosse possível cimentar pontos dentro

desse panorama histórico e trazer um melhor entendimento sobre os autores e suas

ideias. A obra da referida autora é uma tentativa bem sucedida de apontar caminhos

para se trilhar na direção do entendimento sobre a trajetória dos estudos comparados.

Nessa perspectiva, uma revisão da história da literatura comparada torna-se

missão precípua deste trabalho no momento em que se percebe que o seu objeto de

estudo exige uma caminhada por estradas que se entrecruzam, e apresenta dois autores

de estilos díspares, porém com projetos estéticos que vibram em consonância. Jorge

Amado e Luandino Vieira podem, por meio dos seus projetos literários, constituir-se em

peças importantes para os estudos comparados quando se tomam as obras Jubiabá e A

Vida Verdadeira de Domingos Xavier e se percebe que ambas apresentam interligações,

traduzidas ora pelos movimentados diálogos entre os elementos naturais nelas presentes

ora pela inércia comunicativa das cidades ali representadas. Tudo isso pode ajudar a

movimentar ainda mais as discussões sobre comparatismo literário. Portanto, necessário

se faz, entender o teor desses debates históricos sobre a literatura comparada, para que

seja possível se alargar a percepção dos estudos comparados entre autores e obras.

2.2 JORGE AMADO E LUANDINO VIEIRA: SOB O PRISMA DO COMPARATIS-

MO

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Do embate entre a tendência francesa e a norte-americana, ou seja, da

consideração das “fontes” e “influências” e da negação desses conceitos, enfatizando

mais o texto literário que as relações entre autores e obras, é que o comparatismo no

Brasil, dentro de múltiplas orientações, contribuiu para ajudar a pensar a própria

literatura brasileira como uma literatura resultante de uma pluralidade de vozes e a

questionar o próprio lugar dessa literatura, muitas vezes observada enquanto resultado

da confluência de matizes europeias. O cotejo entre uma obra brasileira e uma europeia,

durante muito tempo, reforçou a ideia, sempre questionada por Silviano Santiago, de

“centro” e “periferia” ou de texto “fonte” e texto “dependente”. Conforme Santiago

(1982, p. 21):

Faz-se necessário que o primeiro questionamento das categorias de fonte e

influência, categorias de fundo lógico e complementar usadas para a

compreensão dos produtos dominante e dominado, se dê por uma força e um

movimento paradoxais, que por sua vez darão início a um processo tático e

desconstrutor da literatura comparada, quando as obras em contraste escapam

a um solo histórico e cultural homogêneo.

De acordo com o pensamento de Santiago, e para além dele, cotejar duas obras

literárias pertencentes a sistemas literários considerados periféricos, pois habitam

nações colonizadas por Impérios coloniais europeus, talvez possa também produzir

importante questionamento, que levará a diferentes noções sobre a ideia de “fontes” e

“influências”, bem como possa baralhar, mais ainda, a visão de “centro” e “periferia”

literária, na perspectiva do engendro de um “ponto de vista periférico” para as relações

entre literaturas. Brasil e Angola, por exemplo, enquanto “periferias”, guardam entre si

relações literárias já percebidas e investigadas por pesquisadores brasileiros e

angolanos. Porém, quais as contribuições que esses dois países podem dar para o debate

em torno da cultura?

Silviano Santiago (2000, p. 16) acredita que não só o Brasil, mas também a

América Latina têm como maior contribuição para a cultura ocidental, a destruição

sistemática dos conceitos de “unidade” e “pureza”, pois “[...] A América Latina institui

seu lugar no mapa da civilização ocidental graças ao movimento de desvio da norma,

ativo e destruidor, que transfigura os elementos feitos e imutáveis que os europeus

exportavam para o novo mundo.” Joseph Ki-zerbo (2006, p. 12), pensando muito além

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do país Angola, mas pensando a África, declara que esta deve constituir sua presença no

mundo por meio da integração, “Porque os africanos não podem contentar-se com

elementos culturais que recebem do exterior.” Ki-Zerbo continua e salienta que as

trocas entre a África e o mundo devem dar-se em planos de igualdade, onde as trocas

culturais se deem em um mesmo nível de dignidade, pois, em relação à África, “[...] A

troca cultural é muito mais desigual do que a troca dos bens materiais [...]” (KI-

ZERBO, 2006, p. 12). Com isso, segundo o autor, a África teria “[...] poucas

possibilidades de se difundir, de participar da cultura mundial [...]” (KI-ZERBO, 2006,

p. 12); e um dos grandes problemas daquele continente seria “[...] a luta pela troca

cultural equitativa [...]” (KI-ZERBO, 2006, p. 12). Nesse sentido, as comparações entre

literaturas brasileiras e angolanas contribuem para o debate em torno das relações entre

as chamadas “periferias”, avaliando a literatura enquanto condição de inserção, em

esfera global, de outras formas de pensar o mundo, por prismas de integração e desvios

de normas.

No que concerne aos sistemas literários brasileiro e angolano, as comparações

entre os seus autores e suas obras literárias são abundantes1. Os pesquisadores

brasileiros parecem querer confirmar algo junto à literatura angolana, já que o

comparatismo é historicamente tomado de empréstimo das ciências naturais, nas quais

comparar serviria como um meio para confirmar hipóteses. Assim, comparando duas

obras de diferentes sistemas literários, brasileiro e angolano, ter-se-ia talvez a condição

de confirmar semelhanças maiores entre brasileiros e angolanos, que as manifestações

da diáspora ainda não deram conta de relatar, ou, ainda, perceber diferenças entre eles,

principalmente, nas formas como cada sistema reagiu e reage aos influxos da ex-

metrópole, Portugal.

Tomando-se o escritor José Luandino Vieira, um dos mais destacados prosadores

angolanos, como exemplo, observar-se-á uma série de estudos das suas obras em

perspectiva comparada, objetivando mostrar as relações que existem entre seus textos e

os textos do escritor brasileiro João Guimarães Rosa. José Luandino Vieira (Luandino

Vieira, como é mais conhecido) já declarou, em várias entrevistas, ter sido leitor voraz

das obras de Guimarães, e é notório que a sua performance se aproxima, e muito, do

desenrolar narrativo rosiano. Isso talvez tenha aguçado alguns pesquisadores a investi-

__________________

1 Sobre essa questão, consultar as obras de Ana Lidia da Silva Afonso (2007), Maria Alzira de Souza

Santos (2010), Débora Leite David (2006).

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gar tal aspecto nas obras desses escritores, com o objetivo de apontar semelhanças entre

eles ou indicar possíveis “influências” do escritor brasileiro sobre o escritor angolano. A

professora Tania Macêdo (2002, p.10), registra essa questão quando aponta as lacunas

existentes nas investigações de cunho comparatista que envolvem Guimarães Rosa e

Luandino Vieira. A autora afirma haver, em tais estudos, a presença de uma

supervalorização das semelhanças em detrimento das diferenças entre os autores, ao

sugerir que “A tônica dos estudos comparativos, no que se refere à aproximação entre

os textos de Luandino e Guimarães, recai, não raro, no salientar a semelhança entre eles,

elidindo sintomaticamente as diferenças.” Acredita-se que a investigação em torno das

diferenças entre ambos se faz tão importante quanto a pesquisa em torno das

semelhanças entre os textos dos referidos autores, uma vez que, dada a proximidade

entre as nações pelo próprio laço da língua portuguesa, perceber onde acabam as

semelhanças seria de grande valia, para melhor se entender as questões que cercam a

literatura enquanto escritura social.

No que concerne a Jorge Amado, autor de destaque no Brasil e no mundo, em

relação aos estudos comparados, observa-se uma forte tendência em comparar as suas

obras com obras de autores cubanos2 – talvez pelo fato de, como afirma Ana Margarita

Barandela García (2007, p. 9), serem:

[...] inúmeras as semelhanças culturais entre Cuba e Bahia, nas características

da composição étnica e cultural em que o aporte de várias raças vindas das

mesmas regiões geográficas criaram uma mistura cultural que apresenta

pontos em comum na música, na dança, na culinária e principalmente no

referente à religião dos afro-decendentes.

Existe uma pluralidade de trabalhos em perspectiva comparada envolvendo

Jorge Amado e escritores cubanos, que caminham na direção da observância das

similaridades entre os autores e suas obras – certamente pelos motivos expostos acima

por Ana García e também pela necessidade de se apontar temáticas semelhantes entre as

narrativas desses escritores, a fim de reputá-las como sendo textos “próximos”. Aqui,

apenas dois desses trabalhos são citados como forma de revelar tal fato.

__________________

2 Além dos trabalhos já mencionados, ver também Sandra Mara Mendes da Silva Bassani (2009).

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O primeiro deles é o trabalho de Ana Margarita Barandela García, A Presença

Yorubá nas Literaturas Cubana e Brasileira: o sagrado no realismo maravilhoso de

Jorge Amado e Manuel Cofiño, onde a autora analisa as idênticas relações desses

autores com o sagrado, percebidas através da análise das obras O Sumiço da Santa, de

Jorge Amado, e Cuando La Sangre se Parece al Fuego, do cubano Manuel Cofiño.

Percebe-se, na citada pesquisa, uma abordagem das referidas narrativas enquanto obras

que se aproximam por meio das suas temáticas e que exploram o mesmo elemento, ou

seja, o trato com o sagrado. Com isso, tem-se pouco espaço para perceber as duas obras

como narrativas distintas, mas comunicantes, e, a partir disso, estabelecer um cotejo

muito mais rico entre elas.

O segundo estudo é o de Eduardo José Tollendal, Arte Revolucionária, Forma

Revolucionária: a literatura política de Jorge Amado e Alejo Carpentier, onde o autor

trabalha comparativamente com as obras Jubiabá, Mar Morto e Terras do Sem Fim, de

Jorge Amado, e Écue-Yamba-Ó e La Consagración de La Primavera, do cubano Alejo

Carpentier. O referido trabalho procura aproximar essas narrativas a partir das questões

políticas que elas discutem. Nele, em nenhum momento, há espaço para se interpretar as

comunicações e as divergências entre os elementos percebidos, o que talvez trouxesse

maior profundidade à pesquisa. Defende-se que comparar obras literárias signifique

mais do que a investigação em torno das similaridades temáticas entre elas, mas que

represente a análise das intercomunicações entre elementos, abrindo espaço para se

lançar luz nas diferenças, revelando o seu caráter “aproximador”.

Perceber as relações que existem, por exemplo, entre Guimarães e Luandino ou

entre Amado e Carpentier – tomados os fatores que evidenciam tais relações, como as

proximidades entre seus temas –, torna-se fator de certa complexidade. Porém,

relacionar as obras desses escritores aos textos de outros autores, com características

não tão próximas, talvez envergue maior desafio e venha dar uma dimensão

diferenciada aos estudos comparados, possibilitando uma reelaboração em torno das

ideias de “fontes” e “influências”.

Mais importante que falar de influência entre autores é avaliar o papel que eles

têm na vida de outros, os ensinamentos e pistas que parecem deixar, como se tivessem a

missão de proteção mútua, a fim de evitar o aparecimento de um elo fraco de uma

suposta “corrente”. Acerca disso, vale lembrar uma entrevista de Luandino ao Jornal de

Letras de Lisboa, em 1982, onde o autor revela:

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39

Eu estava preso, estava na primeira esquadra, quando me chegou às mãos

Sagarana. Foi uma revelação. Eu sentia que era necessário aproveitar

literariamente o instrumento falado dos personagens que eram os que eu

conhecia, que refletiam, quando em mim, os verdadeiros personagens a pôr

na literatura angolana. Guimarães Rosa ensinou-me que um escritor tem a

liberdade de criar [...].

A partir dessa declaração de Luandino, percebe-se que o papel de um escritor no

trato com outro extrapola a simples e efêmera transmissão de textos para serem

imitados. Trata-se de um trabalho, cuja matéria-prima é totalmente bruta e subjetiva,

necessitando de total lapidação e abstração do “receptor”, para pôr em consonância,

poéticas distintas, que se encontram com o objetivo de produção artística. Se se quiser ir

além, pode-se também acreditar que as declarações do escritor angolano repousam na

tentativa de vinculação da sua experiência literária a uma literatura muito mais

consolidada – como é o caso da literatura brasileira –, no intento de dar maior

legitimidade aos seus textos. Porém, questões como essas merecem especial atenção,

visto que devem ser analisadas cuidadosamente e se constituem em material para

investigações outras.

Com base no exposto e para que se possa caminhar com um pouco mais de

segurança, realizando um estudo comparativo entre as obras de Jorge Amado e José

Luandino Vieira, passa-se, a partir de agora, à reflexão acerca da biografia desses dois

escritores, de importância dentro e fora de seus países, no que concerne principalmente

à literatura, à luta política e ao resgate cultural. A análise biográfica desses autores

importa, e muito, para um estudo em perspectiva comparada, uma vez que o estudo das

diversas relações que envolvem tais escritores fornece possibilidades de interpretações

outras sobre suas produções – até por que, conforme afirma Sandra Nitrini (2010, p.

32):

O trabalho comparatista não se deve limitar a relacionar textos, uma vez que

a vida do autor constitui um fator importante na gênese da obra. A revelação

e difusão de idéias e sentimentos podem, às vezes, partir de um fato histórico

ou social.

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Comparar os textos faz-se tão importante quanto comparar trajetórias de seus

autores, não só pelo que afirma Nitrini e nem pelo que preconizavam as tendências

clássicas da literatura comparada – que davam especial atenção para esse aspecto –, mas

porque tais trajetórias podem sugerir ou, até mesmo, indicar caminhos possíveis de

serem trilhados pelo investigador, a fim de levá-lo a resultados mais contundentes.

Dessa forma, o artista literário como produtor de linguagem o faz também a partir de

representações da realidade, acabando por exibir ao expectador possibilidades de

imaginação das suas referências estéticas, que podem ser fruto de intensa relação com a

realidade circundante. Portanto, ao se pretender estudar dois autores em perspectiva

comparada, a importância que se dá aos estudos de natureza biográfica não é outra

senão o desejo de melhor entender os diálogos para além das semelhanças textuais que

as obras envergam.

É importante notar que modernamente se atribui muita importância à biografia

de um autor nos momentos de investigação de sua obra. E igual valor se dá aos seus

escritos quando da elaboração de material biográfico. Isso ocorre provavelmente pela

observância de que detalhes da vida de um escritor podem ser de fundamental

importância para se perceber e entender elementos obscuros nos seus textos. Também

pode ser verdadeira a ideia da análise dos textos, para melhor se compreender um autor,

já que seus escritos podem revelar ou até mascarar a sua vida.

Torna-se muito importante, porém, que se revele a infiltração presente nessas

duas matérias analíticas, ou seja, a vida e o texto. Parece que uma fecunda o outro,

fundamentalmente no intuito de se produzir literatura; o autor constrói e é construído

pelo seu próprio texto.

2.2.1 JOSÉ LUANDINO VIEIRA

José Vieira Mateus da Graça (Luandino Vieira) nasceu em Portugal –

notadamente em Lagoa do Furadouro, próximo à Vila Nova de Ourém –, em 04 de maio

de 1935, e partiu, ainda criança, com seus pais para Angola – país que ele adotaria e que

também o adotara. (LABAN, 1980, p. 88) Passou a residir em Luanda, símbolo da sua

paixão, e buscou marcar uma maior identidade com essa cidade, na qual residiu durante

boa parte da sua vida, fazendo com que seu nome adotado, “Luandino”, fosse

representativo do “ser de/e amar Luanda”. Toda a sua infância foi marcada pelas

experiências nos musseques dessa cidade, onde pôde conviver com crianças angolanas,

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aprendendo valores e tradições africanas e reservando na memória questões que

resultariam, mais tarde, em suas “estórias” – tão importantes no processo de luta contra

o regime colonial. E foi o próprio Luandino quem, numa entrevista ao Jornal da Tarde1,

em janeiro de 1987, relatou estes detalhes da sua infância:

Minha infância explica muita coisa. Eu tive uma infância de menino pobre

nas favelas de Luanda, chamadas musseques, com todos os meninos da

minha idade, branco, preto, mestiço, português, angolano. Isso deu o caldo

cultural que me fez uma criança irrequieta, com um determinado tônus

cultural diferente do dos filhos da burguesia colonial.

Fez os seus estudos primários e o Liceu em Luanda, tornando-se gerente

comercial de uma organização, para garantir o seu sustento. (LABAN, 1980, p. 51).

Luandino tem um histórico de luta contra o colonialismo que o deixou preso por onze

anos. Não obstante várias fontes afirmarem o escritor como membro do MPLA, ele

próprio já afirmara não ter sido, o que se leva a entender que, naquela conjuntura de

agitação política, não só o MPLA, mas também outros movimentos como a UNITA –

União Nacional para Independência Total de Angola – e a FNLA (Frente Nacional de

Libertação de Angola) eram mais que movimentos políticos, eram ideologias. E

qualquer um que, de alguma forma, trabalhasse pela libertação de Angola já seria parte

de um desses movimento, embora não fosse a ele filiado. Vale salientar que isso trazia

consequências muito graves para os que, apesar de não serem afiliados, flertavam com

as propostas e ideias de tais movimentos. Luandino mesmo declara ter sido preso,

acusado de atividades anticolonialista, e que a PIDE2, a polícia política do Império

colonial português, acreditava ser ele um membro do MPLA:

Nós fazíamos uma militância de esclarecimento, uma militância política, um

bocado ativa em determinados meios a que tínhamos acesso, portanto os

meios intelectuais, defendendo os objetivos imediatos e a longo prazo do

MPLA. Difundíamos a literatura do MPLA, defendíamos os pontos de vista

___________________________

1 Entrevista a Leo Gilson Ribeiro. “A África de Luandino Vieira”. Jornal da Tarde. Caderno de

Programas e Leitura, p. 5, 03 jan 1987 2 Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) – foi uma polícia existente em Portugal entre 1945 e

1969. Criada pelo Decreto-Lei n.º 35 046 de 22 de outubro de 1945, tinha a competência da instrução

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do MPLA e, portanto quando a polícia pegou por um fio e conseguiu apanhar

por uma ponta dessa pequena rede eu fui preso em Lisboa quando estava para

me ausentar para o estrangeiro. Fomos acusados de ser membros do MPLA,

eu e mais dois poetas, o António Jacinto e o António Cardoso. [...] não, eu

não era. Para ser membro do MPLA teria que fazer o meu pedido formal de

ingresso, seguir os trâmites que os estatutos determinam, nem sei bem se pelo

facto de eu ter nascido em Portugal poderia ser membro, não sei, nunca me

preocupei com esse aspecto. (DAVID, 2006, p. 120-121)

Essas declarações de Luandino servem para que se perceba o nível de

consciência e organização do MPLA – que possuía estatutos, normas rígidas de ingresso

e limites para absorção dos não nascidos em solo angolano –, estabelecendo-se, assim,

como um movimento de cunho nacionalista extremo. Se o MPLA era mais que um

movimento, era uma ideologia plantada e ventilada nas cabeças com tino

revolucionário, seria preciso, para quem almejasse exterminar o movimento, muito mais

que a destruição física dos seus membros, mas varrer também das mentes férteis para

ideologias de caráter subversivo o ideal revolucionário. Talvez, isso venha explicar o

modus operandis da repressão, que, neste intento, retira de circulação alguns dos seus

propagadores, impedindo contato desses com qualquer outro indivíduo ainda não

“contaminado”.

Pode-se inferir que a infância de Luandino pelos bairros pobres de Angola lhe

forneceu elementos importantes para o seu fazer literário. A ativação da memória, com

o intuito de trazer à tona elementos do “antigamente”, foi fundamental para dar

legitimidade aos seus textos, pois lhe possibilitou o mapeamento perfeito da cidade de

Luanda, presente na obra A Vida Verdadeira de Domingos Xavier (1961) e em Luuanda

(1964), para citar apenas duas; o detalhamento singular dos tipos angolanos, presentes

em Nós, os do Makuluso (1975) e João Vêncio: os seus amores (1979); e por que não

dizer a sua visão acerca dos problemas da separação entre habitantes brancos e negros,

pobres e ricos, que acometem uma Luanda em processo de urbanização, presente em A

Cidade e a Infância (1960). Nesse livro, Luandino apela à sua memória desde a infân-

____________________________

preparatória dos processos respeitantes aos crimes de estrangeiros relacionados com a sua entrada ou

com o regime legal da sua permanência em território nacional. Era temida, pela utilização da tortura, e

foi responsável por alguns crimes sangrentos. A partir de 1961, início das chamadas “guerras de in

dependência” na África, a PIDE, até então ausente dos territórios africanos, assumiu a função de serviço

de informações, constituindo, enquadrando e dirigindo milícias próprias e colaborando com as for-

ças militares portuguesas.

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cia, passando pela adolescência e pela fase adulta em Luanda, desnudando uma cidade

distinta, lembrando das brincadeiras junto aos amigos, do primeiro amor ainda

adolescente e das lutas pela sobrevivência à idade adulta.

Autor de várias estórias, a peculiaridade desse escritor está justamente no trato

com a linguagem. Ao mesmo tempo em que narra, Luandino vai envolvendo o leitor

com a fala dos seus personagens – geralmente pessoas simples, que habitam não só os

musseques mas também as suas memórias do “antigamente na vida”, o que dá às suas

narrativas um toque sutil de extrema subversão, haja vista o intento de atribuir voz aos

excluídos, dentro de um sistema colonial. O escritor foi preso diversas vezes pela PIDE

e sempre acusado de atividades subversivas ou, como o próprio autor sempre afirma,

“tentativa de separação de Angola da mãe pátria”. Detido pela PIDE, a primeira vez em

1959 e depois em 1961, o autor volta a ser preso, o que resulta em sua condenação a

quatorze anos de prisão e a medidas de seguranças – oito desses – cumpridos na Prisão

do Tarrafal, em Cabo Verde, para onde foi transferido em 1964, tendo sido libertado em

1972, em regime de residência vigiada. Luandino foi um dos acusados do chamado

“processo dos 50”4. (LABAN, 1980, p. 115)

Em 1972, já residindo em Lisboa, o escritor dá inicio à publicação da sua obra –

boa parte dela escrita na cadeia. O autor angolano parecia entender, naquele momento,

que mesmo privado da liberdade física, ainda assim, poderia continuar a sua luta contra

o colonialismo português – e o fez através da literatura, operando com os códigos da

memória e da linguagem, como sustentáculos para tentar minar a resistência colonial e

resgatar um patrimônio linguístico-cultural brutalmente fragmentado pela Língua

Portuguesa e pelas inúmeras políticas de assimilação cultural. A simples referência a

valores culturais angolanos era condenada pelo país colonizador, visto que dentro da

política assimilacionista, a colonização tinha, entre outros objetivos, de impor a cultura

do colonizador – demograficamente minoritário, mas política e sociologicamente

majoritário em relação à população colonizada. Naquela ocasião de intensa repressão e

luta, Luandino Vieira, com suas narrativas, parecia reconhecer o poder e a importância

de narrar. E é justamente sobre isso, sobre o poder de narrar, que fala Jane Tutikian,

quando afirma:

__________________________

3 Foi designado “Processo dos 50” um conjunto de três processos políticos que se iniciaram a 29 de mar-

o de 1959, com as prisões de vários nacionalistas angolanos, terminando em 24 de agosto do mesmo

ano, com a última prisão. Deve-se, o nome, ao fato de Joaquim de Andrade ter enviado para o seu irmão

que vivia no exterior, Mário Pinto de Andrade, um folheto denunciando a prisão de 50 nacionalistas.

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O poder de narrar ou de impedir que se formem e surjam novas narrativas é fundamental na relação império versus cultura. As narrativas de emancipação

acabam tornando-se elementos de forte mobilização de povos (vejam-se as

literaturas angolanas e moçambicanas principalmente, do pré-indepêndencia)

e em forte forma de resistência. Até porque a literatura é fonte de cultura e

cultura é fonte de identidade. (TUTIKIAN, 2008, p. 58, grifo do autor)

Esse poder que tem o engendro de narrativas, do qual nos fala Tutikian, remete a

uma problemática que modernamente se enfrenta, ou seja, o da necessidade de

reescritura de narrativas construídas sob a ótica dos conquistadores e daqueles que, ao

longo da história, detiveram de alguma forma o poder. Desta forma, a narrativa

enquanto reescrita tem o poder de reconstruir e ligar experiências, constituindo-se como

elemento essencial à atividade humana. O crítico alemão Walter Benjamin (1985c,

p.18), em seu texto “O Narrador” fala da arte de narrar como forma de intercambiar

experiências. Reconhece-se nas palavras de Benjamin a necessidade de se encarar a arte

de narrar como sendo algo transformador, fundamental, portanto, para o

desenvolvimento de novas práticas sociais, e responsável pelas trocas de experiências.

Luandino regressa a Angola em 1975 – momento em que esse país tornava-se

independente de Portugal, portanto, com alguma segurança para o retorno do autor –, e

vai desenvolver atividades diretivas no MPLA, além de atividades no plano da cultura,

como a direção da Radiotelevisão Popular de Angola. (LARANJEIRA, 1979, p. 12)

Por suas obras, Luandino Vieira foi indicado a vários prêmios, como: o Grande

Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores (Prêmio Camilo Castelo

Branco – 1965) – o qual fez com que a PIDE levasse a cabo uma ação de

desmantelamento da referida organização, prendendo Manoel da Fonseca, o então

presidente; o Prêmio Sociedade Cultural de Angola, em 1961; o Prêmio da Casa dos

Estudantes do Império, Lisboa,1963 – pela obra A Cidade e a Infância; o Mota Veiga,

em 1964 – pela publicação de Luuanda; dentre outros. No entanto, um dos mais

polêmicos prêmios ocorreu em 2006, quando lhe foi atribuído o Prêmio Camões,

considerado o maior galardão literário para a língua portuguesa. Contudo, Luandino o

recusou, alegando “motivos íntimos e pessoais”, segundo um comunicado de imprensa.

(LARANJEIRA,1979, p. 18) Entrevistas posteriores com o escritor esclareceram que

ele não aceitara o prêmio por se considerar um escritor morto – visto que, há muito

tempo, não havia publicado nem uma obra – e, como tal, achava que não deveria ser

premiado, mas alguém que continuasse a produzir. Mesmo assim, publicou, no mesmo

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ano, um livro intitulado O Livro dos Rios – 1º vol. da trilogia De Rios Velhos e

Guerrilheiros.

2.2.2 JORGE AMADO

Filho de João Amado de Faria e de D. Eulália Leal, Jorge Amado de Faria,

nasceu em 10 de agosto de 1912, em Ferradas, Itabuna, Bahia. Ainda muito pequeno,

fugindo de uma epidemia de varíola, seus pais deixam o local, mudando-se todos para

uma fazenda em Ilhéus e, mais tarde, em 1917, para outra fazenda, em Itajuípe. Em

1918, já alfabetizado por sua mãe, Amado retorna à Ilhéus e passa a frequentar a escola

de D. Guilhermina – professora que, ao que todos dizem, não hesitava usar a palmatória

e impor outros castigos físicos aos seus alunos. Em 1922, Amado parte para Salvador,

para estudar no Colégio Antônio Vieira, de padres Jesuítas, em regime de internato. A

bela redação que apresentou ao seu professor, o Padre Luiz Gonzaga Cabral, com o

título de O Mar, rende-lhe elogios e faz com que o religioso passe a lhe emprestar livros

de autores portugueses e de outras partes do mundo. (ALMEIDA, 1979, p. 71)

É muito conhecida a história da fuga de Amado do colégio. Conta-se que seu pai

foi levá-lo até lá após as férias. Despedem-se, e Amado, em vez de entrar no colégio,

foge. Viaja, por dois meses, até chegar à casa de seu avô paterno, José Amado, em

Itaporanga, Sergipe. A pedido de seu pai, seu tio Álvaro o leva de volta para a fazenda

em Itajuípe. Nesse período, Jorge Amado já demonstra o seu tino de escritor e cria um

jornal chamado A Luneta, que é distribuído entre parentes e vizinhos. Matriculado no

Ginásio Ipiranga, novamente como interno, conhece Adonias Filho e dirige o jornal do

grêmio da escola, A Pátria. Pouco tempo depois, Amado funda A Folha, que faz

oposição ao primeiro. No ano de 1927, passa para o regime de externato e vai morar

num casarão no Pelourinho. (ALMEIDA, 1979, p. 75)

Amado emprega-se como repórter policial no Diário da Bahia e, pouco depois,

vai para o jornal O Imparcial. Uma poesia de sua autoria, Poema ou prosa, é publicada

na revista A Luva. Faz-se importante sublinhar aqui que o poeta Jorge Amado é muito

pouco explorado pelas investigações literárias, dando-se maior destaque ao romancista.

Portanto, cumpre que se ressalte que Amado foi autor de diversas poesias, muitas delas

publicadas em periódicos de sua época. Podemos concluir, quando da análise da

biografia desse autor, que a sua vida foi marcada por encontros importantes com

grandes figuras do universo literário brasileiro, como o escritor Dias da Costa e o

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intelectual, e também escritor, Edson Carneiro, com os quais lançou, em 1929, uma

obra literária chamada Lenita – completamente sucumbida do discurso historiográfico-

literário sobre esse autor. Mais tarde, reúnem-se em torno do experimentado jornalista e

poeta Pinheiro da Veiga, integrante da Academia dos Rebeldes – grupo literário do qual,

também faziam parte Clóvis Amorim, Guilherme Dias Gomes, João Cordeiro, Alves

Ribeiro, Edison Carneiro, Aydano do Couto Ferraz, Emanuel Assemany, Sosígenes

Costa e Walter da Silveira. (ALMEIDA, 1979, p. 85)A academia pregava, no dizer de

Jorge Amado, "uma arte moderna sem ser modernista". Os trabalhos de seus integrantes

são publicados nas revistas Meridiano e O Momento, ambas fundadas por eles e com

certa circulação naquele momento.

No ano de 1930, Amado transfere-se ao Rio de Janeiro para estudar e lá

conhece Vinícius de Moraes, Otávio de Faria e outros nomes importantes da literatura

nacional. Foi aprovado, entre os primeiros colocados, na Faculdade de Direito da

Universidade do Rio de Janeiro e, no ano seguinte, vê publicado, pela Editora Schmidt,

seu primeiro romance, O País do Carnaval, com prefácio de Augusto Frederico

Schmidt e tiragem de mil exemplares. O livro recebe elogios dos críticos e torna-se um

sucesso de público. (ALMEIDA,1979, p. 110)

É também relevante trazer aqui o memorável encontro de Amado com os

escritores José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Aníbal Machado e Rachel de Queiroz,

que juntos publicaram a obra intitulada Brandão Entre o Mar e o Amor, lançada em

1941, pela Livraria Martins Editora. Vale salientar que a atmosfera respirada por

Amado da infância até a fase adulta contribuiu para construir o amálgama que fixaria a

aura das suas narrativas, bem como dos seus inesquecíveis personagens, dando cor e

vida aos seus textos. Porém, a infância do escritor – ou o escritor infanto-juvenil Jorge

Amado – é pouco relatada pela crítica especializada. Modernamente, tem-se notado

inúmeros projetos de pesquisas com a intenção de estudar essa referida fase da vida do

escritor ilheense – o que mostra a necessidade de tornar público esse momento, para

melhor se entender a trajetória do autor de Jubiabá. Toda a sua produção que antecede a

obra considerada “livro de estreia”, O País do Carnaval, é pouco explorada, fazendo

com que se analise tal escritor promovendo certo recalque a uma parte significativa da

sua história, que, sem dúvida, ajudaria a explicar melhor o seu perfil revolucionário.

A pesar das constantes tentativas de se esconder ou, vez por outra, esvaziar das

malhas da historiografia a importância da figura de Jorge Amado como autor engajado

na luta contra as injustiças sociais, sua participação no processo de contestação dos

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modelos vigentes na sua sociedade sempre foi relevante, conforme rememora Alfredo

Wagner de Almeida (1979, p. 27), ao afirmar que:

[...] Jorge Amado como componente da Academia dos Rebeldes, em 1928,

atuava nas polêmicas que cindiam as instituições de produção e difusão do

campo intelectual da época. Esse grupo literário a que ele se filiava era

detentor de uma outra concepção de modernismo e opondo-se a agremiações

vigentes. Colocava-se em contraposição não só a grupos locais como a ala

das letras e das artes, mas também a instituições de dimensão nacional como

a Academia Brasileira de Letras.

Mostrar um Jorge Amado de antes do seu livro de estreia significa falar de um

projeto literário que não começa com a obra O País do Carnaval, mas com o primeiro

jornal cunhado pelo autor ainda nos seus períodos escolares, que, sem dúvida, já reflete,

senão o perfil do projeto de escritor, a “veia” crítica do jovem Amado. É necessário

perceber que as realizações do autor em jornais de “circulação limitada à família” e aos

vizinhos, como A Luneta, em 1922, não são consideradas como gozando da

denominação de “estreia”. Também não o são as suas realizações em jornais escolares,

visto que participava ativamente da vida literária estudantil. Como já se indiciou aqui,

quando se analisa a trajetória literária de Jorge Amado, pouca atenção é dada ao período

que antecede o seu primeiro livro publicado, assim como a maioria dos trabalhos não

leva em conta o envolvimento do escritor com a própria crítica literária. O Jorge Amado

crítico literário é sempre vilipendiado por alguns trabalhos, bem como a sua

participação ativa como escritor em outros veículos de comunicação (jornais e revistas).

Todas essas contribuições, vez por outra, não são levadas em conta para a análise do

autor. Alfredo Wagner de Almeida (1979, p. 27) ainda relata que:

As matérias e reportagens diversas realizadas pelo autor, devido às atividades

que desempenhava em periódicos diários e informativos como Diário da

Bahia (1927) e O Jornal (1929), ou em revistas especializadas em temas

literários como Meridiano (1928), O Momento e A Semana (1928), não são

definidas também como usufruindo da nomeação de “livro de estréia” [...]

Considerar O País do Carnaval como o livro de estreia de Amado significaria

predeterminar o seu perfil literário e partir de um ponto que não significaria o início,

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mas talvez o meio da sua trajetória literária. Necessário se faz, porém, perceber um

Jorge Amado, cuja intenção com a palavra, desde cedo, sempre foi a comunicação e a

contestação do observado. A sua maturidade como escritor reflete esse cunho

contestador e apresenta um projeto bibliográfico – pautado no romance – que faz de O

País do Carnaval agora, sim, o seu livro de estreia. Jorge Amado participou ativamente

do Movimento Modernista, porém sempre crítico do projeto estético que cercava esse

movimento, aliás, como bem lembrou Itazil Benício dos Santos (1993, p. 67):

O Movimento Modernista, chegado à Bahia em 1928, encontrou

receptividade no espírito aberto e rebelde de Jorge Amado, aos dezesseis

anos de idade, identificado com os seus princípios, embora dissentisse em

alguns aspectos. “Faltava ao Modernismo”, diz Jorge, “por exemplo, um

conhecimento do povo que nós tínhamos, e que os escritores modernistas não

tinham absolutamente.”

É bastante óbvio que Amado, na citação acima, estivesse se referindo ao perfil

elitista que teve o Movimento Modernista de 1922, em São Paulo, o qual, apesar de

artístico, não tinha caráter popular, visto que fora apoiado pelas elites economicamente

representativas daquele estado e tinha, como lideranças, homens oriundos da classe

média alta paulista, como bem expõe Santos:

“O Modernismo”, diz Jorge Amado, “é um movimento de classe que nasceu

na órbita dos grandes proprietários de café. Formalmente, o Modernismo é

uma transposição para o Brasil dos movimentos que surgiram na Europa,

após a Primeira Guerra – Cubismo, Dadaísmo, Surrealismo... Esses

movimentos influenciaram jovens paulistas da grande burguesia: Oswald de

Andrade, filho de um grande fazendeiro, muito rico, Antônio de Alcântara

Machado; e aqueles que não eram ricos, como é o caso de Mário de Andrade,

protegido por uma dama riquíssima de São Paulo, Dona Olívia Penteado... O

Modernismo foi patrocinado pelos homens ricos de São Paulo, como Paulo

Prado, autor de Retrato do Brasil”. (SANTOS, I., 1993, p. 66)

Por seu perfil contestador, pela dimensão crítica das suas obras e pelo seu

envolvimento e filiação ao Partido Comunista, Amado é, durante muito tempo, bastante

perseguido dentro do Brasil. Suas obras traziam um perfil de texto-denúncia e tocavam

em questões que, na conturbada década de 30, era quase proibido apontar. Falar da

situação de miséria que viviam as pessoas, mergulhadas em cortiços fétidos e sobrados

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imundos, desassistidas pelo poder público, ou expor a realidade dos trabalhadores do

cacau, bem como denunciar as condições de trabalho dos operários do cais do porto, o

racismo e a diferença entre negros e brancos na Cidade da Bahia, renderiam ao autor

algumas prisões, exílios e perseguições eternas, dentro e fora do seu país.

O autor sofre sua primeira prisão em 1936, por motivos políticos: acusado de

participar do levante ocorrido em novembro do ano anterior, em Natal — chamado de

“Intentona Comunista” —, é detido no Rio. No ano seguinte, 1937, Amado viaja pela

América Latina e depois vai aos Estados Unidos. Enquanto está fora, sai, no Brasil, o

seu livro Capitães da Areia, bastante polêmico, ao expor abertamente a realidade da

infância brasileira. Mas, quando chega à Belém, vindo do exterior, Amado é avisado

pelo escritor paraense Dalcídio Jurandir do golpe de Vargas. Foge para Manaus, mas lá

é preso. Mais tarde, seus livros considerados subversivos são queimados em plena

Salvador, por determinação da Sexta Região Militar. Segundo as atas militares, foram

queimados 1.694 exemplares de O País do Carnaval, Cacau, Suor, Jubiabá, Mar Morto

e Capitães da Areia. (ALMEIDA, 1979, p. 128)

Em 1946, Jorge Amado é eleito, aos 34 anos, deputado federal pelo Partido

Comunista Brasileiro, para compor a Assembleia Nacional Constituinte, encarregada de

redemocratizar o país ao fim da ditadura de Vargas. Dois anos depois, o seu mandato é

cassado, em razão do cancelamento do seu registro junto ao Partido Comunista, e

Amado se exila na França, onde conhece vários artistas e intelectuais europeus. Em

fevereiro de 1948, sua casa no Rio é invadida por agentes federais, que apreendem

livros, fotos e documentos.

Apesar das críticas e perseguições, Jorge Amado recebeu em vida vários

prêmios e indicações importantes por sua obra, a exemplo do Prêmio Juca Pato - 1970,

da União Brasileira de Escritores, como "Intelectual do Ano" e, no ano seguinte, divide

com Ferreira de Castro o Prêmio Gulbenkian de Ficção, entregue na Academia do

Mundo Latino, em Paris. Vale salientar também que a União Brasileira de Escritores,

presidida por Peregrino Jr., apresenta, em Estocolmo, a candidatura formal de Jorge

Amado ao Prêmio Nobel de Literatura, em 1967. Embora o escritor recuse tal indicação,

a UBE insiste em apresentar novamente a sua candidatura ao Nobel, em 1968. O

escritor concorda e, em 1994, vê sua obra ser reconhecida com o Prêmio Camões, ao

que muitos dizem, o Nobel da língua portuguesa.

Mas, em maio de 1999, o autor é hospitalizado para fazer exames de rotina e

tratar de um mal-estar digestivo – era o início de algumas complicações de saúde, que o

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acometeriam nos próximos anos, tornando-o, cada vez mais, recluso. Amado

comemora, em agosto de 2000, com poucos amigos e a família, seus 88 anos. Vive

deprimido por se encontrar quase sem enxergar, sob dieta rigorosa, privando-se do que

muito gostava: de escrever, de ler um bom livro e de um bom prato. No dia 21 de junho

de 2001, Jorge Amado é internado com uma crise de hiperglicemia e tem uma fibrilação

cardíaca. Após alguns dias, retorna a sua casa, porém, em 06 de agosto, volta a se sentir

mal e falece na cidade do Salvador, às 19h30min. A seu pedido, seu corpo foi cremado,

e suas cinzas foram espalhadas em torno de uma mangueira em sua residência, no Rio

Vermelho.

2.3 TRAJETÓRIAS ENTRECRUZADAS

Se a falta de uma ação retrocessiva por parte da crítica acomete o escritor Jorge

Amado, do mesmo mal sofre José Luandino Vieira. Parte da crítica, especializada ou

não, coloca a sua obra como sendo parte de um projeto literário que começa não a partir

da publicação do seu primeiro livro A Cidade e a Infância, publicado em 1957, mas

muito à frente, quando do lançamento do livro Luuanda, em 1963, como definiu a

professora Rita Chaves, ao afirmar que “Livro chave na história do escritor, também por

razões extra-literária, Luuanda marca o início de um processo de escrita que seria

radicalizado nos textos seguintes.” (CHAVES, 2005, p. 22, grifo meu)

Em definitivo, os textos produzidos pelo autor e que antecedem aos seus livros

publicados quase não são mencionados, ou seja, uma vida literária gestada desde a

infância, quando da produção dos seus primeiros jornais, poesias e contos, é extraviada

do discurso histórico-biográfico sobre esse escritor, fazendo-o ser concebido como

resultado único de um projeto literário que se forja no calor da guerra de libertação

nacional e, não, como um escritor, cuja forja se dá ainda na infância, com a convivência

nos musseques de Luanda, e com a sua percepção, mais tarde, na adolescência, de fazer

parte de uma nação sob domínio colonial. Para alguns trabalhos, esses mencionados

textos praticamente inexistem:

Se em seus primeiros textos (A Cidade e a Infância, A Vida Verdadeira de

Domingos Xavier, Luuanda e até mesmo Velhas Estórias) a estrutura ainda

segue o ritmo tradicional da linearidade, embora sempre quebrados pelos

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flashbacks, o mesmo não ocorre nos textos posteriores [...]. (CHAVES,

2007, p. 78, grifo meu)

A reflexão que ora se realiza serve não só para revelar as lacunas existentes na

crítica literária acerca dos dois autores, como também para apontar mais um traço de

semelhança em suas biografias, ou seja, a invisibilidade de um período de suas vidas de

fundamental importância para o reconhecimento e entendimento a respeito da formação

literário-subversiva de um “homem de letras”. Quando se analisa a biografia desses dois

escritores, percebe-se outro fio indutor que os liga e os identifica, e tal fio é justamente

o da subversão sob o manto do comunismo. Jorge Amado e Luandino Vieira carregam

em suas vidas um histórico de lutas contra a repressão praticada pelos regimes de

exceção. A política de Getúlio Vargas no Brasil da década de 30 e a de António de

Oliveira Salazar em Angola, nos anos 60, deram o tom da reação desses escritores-

intelectuais e teriam contribuído para formar uma resistência política sob o manto do

“estético”. Em uma carta, enviada, da cadeia, a seu amigo, o intelectual Carlos

Everdosa, Luandino Vieira revela a consciência do seu papel enquanto escritor, na luta

pela libertação de Angola do regime colonial:

Faltam poucas horas para embarcar no “Cuanza” rumo a Cabo Verde – ou

assim dizem. Li a tua carta e aproveito estes curtos momentos para te enviar

algumas linhas, talvez as últimas que recebas de mim antes do regresso geral

à nossa terra, às nossas coisas, ao nosso povo. É muito difícil nesta altura

dizer qualquer coisa; mas podes afirmar aos amigos e companheiros que

procurarei sempre ser digno da confiança que têm em mim; que, nas minhas

possibilidades e dentro do meu particular campo de ação – o estético – ...

tudo farei para que a felicidade, a paz e o progresso sejam usufruído por

todos. (LABAN, 1980, p. 90, grifo meu)

Encontram-se ainda, na continuidade da carta, elementos que colocam Luandino

no lugar de um escritor cônscio da rede existente entre as nações – tal rede, inclusive,

teria a missão precípua de fornecer o combustível que iria possibilitar aos “irmãos

escritores” a permanência na luta contra a opressão:

O meu livro, o livro da Linda afinal, chegar-te-á talvez com mais trabalhos

selecionados para a 2º edição. Se a conseguirem aí em edição de bolso era

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optimo para ir a concurso da Sociedade Portuguesa de Escritores. Depois

enviem ao Jorge Amado (Brasil) para ver se conseguem uma edição lá. Não

é pelo livro, claro, é pelo que ele pode representar como “arma” para a nossa

libertação. (LABAN, 1980, p. 90, grifo meu)

A referida relação com Jorge Amado, além de evidenciar a consciência de

Luandino de que, em outros lugares, escritores outros, por meio da edição dos seus

livros, lhe fariam eco, também aponta a certeza do caráter militante da literatura pelo

mundo, como disse Vima Lia Martin (2000, p. 120), sobre a carta supracitada:

[...] Vale ainda ressaltar a referência de Luandino Vieira a Jorge Amado,

escritor brasileiro que apresentava posições políticas progressistas e que

certamente apoiava a luta de libertação angolana. A importância atribuída a

uma edição brasileira do livro naquele momento reforça o caráter militante

assumido pela literatura, que se torna efetivamente uma arma de combate

contra a repressão colonial.

Dentre todos os laços que tentam unir Jorge Amado e Luandino Vieira, uma

questão parece de grande importância: o fato de os dois escritores terem sido exímios

leitores. Mais importante ainda que esse dado é analisar o que liam os autores em

estudo, quais obras compunham o cânon estudado por eles, de onde vinham essas obras

e por que as liam. Para começar a responder a essas indagações, cumpre saber que

ambos os escritores foram “pupilos”, ou seja, tiveram “mestres” que os iniciaram no

universo das letras. No caso de Jorge Amado, a história de vida desse autor dá conta de

relatar que o seu iniciador foi o padre Cabral, seu professor no Colégio Antônio Vieira –

que teria ficado impressionado com uma redação feita por ele, cujo tema era o mar, e

teria, a partir de então, estabelecido uma espécie de “tutela literária” sobre o escritor,

apresentando-lhe vários autores, dentre os quais figuram Jonathan Swift e Daniel Defoe.

No que se refere a José Luandino Vieira, a sua biografia bem como os seus

relatos orientam para a observância da existência de igual tutela literária, dessa vez

advinda de outro, também escritor, António Jacinto – amigo mais velho que, na infância

do autor, teria disponibilizado a sua biblioteca para que tanto Luandino quanto outros

garotos de mesma idade a frequentassem. Também cumpre relatar que, segundo

Luandino, António Jacinto, a princípio, deixava-o ler o que quisesse, porém, em dado

momento, começaram as indicações e até determinações de leituras – foi nesse ínterim

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que Luandino acabou encontrando a obra de Jorge Amado, por intermédio de António

Jacinto:

O António Jacinto pôs-nos a sua biblioteca à disposição e nós lemos muito

[...] Lembro-me que li o Gorki em caderninho, publicado em fascículos.

Tinha, sobretudo os naturalistas, tinha os russos, os populistas, os naturalistas

russos, quase todos, tinha também os franceses, Zola, Balzac, dos

portugueses, Camilo Castelo Branco estava tudo, Eça de Queiroz... Então nós

fomos lendo aquilo tudo. Recordo-me que António Jacinto disse: “agora

basta vocês vão ler é este autor” e me entregou um livro que se chamava “as

vinhas da ira” de John Steinbeck. Nós lemos Steinbeck e depois lemos Jorge

Amado, Raquel de Queiroz, Lins do Rego e também Steinbeck, Hemingway

[...]. (LABAN, 1980, p. 110, grifo meu)

O debate que se inicia no começo deste capítulo leva a reflexão em torno das

ideias concernentes à “influência”. Luandino, em várias entrevistas que deu, afirmou-se

influenciado pelas leituras que fez ao longo dos seus estudos e contatos com obras

literárias. “De início essa literatura influenciou-me. Os escritores do nordeste, sobretudo

Jorge Amado, influenciaram-me.” (LABAN, 1980, p. 93). O escritor afirma influências

portuguesas – Eça de Queiroz – e brasileiras – os chamados “sertanistas do nordeste”.

Vale salientar que, malgrado a afirmação do autor, o que se entende aqui como

influências é totalmente diferente da visão tradicional e antiga formulada no interior das

teorias clássicas francesas, as quais preconizavam a existência de textos fontes que

dariam possibilidade de existência a outros textos, por meio da imitação. Acredita-se

aqui que ser influenciado implica tão somente entrar na atmosfera ficcional de diálogo

estético, ou seja, conectar-se à corrente artístico-comunicativa que cada obra de arte cria

ao redor do artista. Isso remonta ao debate em torno da questão da própria ideia de

comparatismo, iniciado, na década de 1930, nos Estados Unidos, por René Wellek

(2011. p. 123), para quem “[...] Obras de arte, no entanto, não são simples somatórios de

fontes e influência; são conjuntos em que a matéria-prima vinda de outro lugar deixa de

ser matéria inerte e passa a ser assimilada numa nova estrutura.”

Realmente, o pensamento de Wellek pode ter fundamento, visto que a

contribuição recebida por um autor, vinda de outrem, poderá se transformar em outra

matéria diferente da original. Mas, é necessário o cuidado no entendimento do que

afirma Wellek, pois o uso do termo “assimilação” só terá fundamento aqui, se entendido

como o entendeu, por exemplo, Paul Valéry (apud Nitrini, 2010, p.132) – para quem

“assimilação” seria uma “[...] fonte de originalidade, isto é, como a intrusão do novo na

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criação.” – ou, ainda, como entendera Silviano Santiago (2000, p. 20), a assimilação

como forma de “[...] surpreender o modelo original em suas limitações, suas fraquezas,

em suas lacunas”. O fato de um escritor ter lido outro por si só não diz muita coisa,

quando da análise comparada entre autores e textos. Assim, o fato de Luandino Vieira

ter lido Jorge Amado, só por essa constatação, não se chegaria a entender em que plano

eles se aproximam ou se repelem. Melhor seria provavelmente tentar entender quais

referências estéticas, resultantes das leituras, ficaram em Luandino e que talvez o

tenham auxiliado na produção de uma obra com vocação para a denúncia e a defesa dos

menos favorecidos; ou, até mesmo, tentar perceber os pontos de distinção entre a

narrativa de Luandino e a de Jorge Amado que apontem as divergências na forma de ver

e sentir questões sociais semelhantes.

2.3.1 DUAS OBRAS DE SUBVERSÃO

Sabe-se, e quem bem informa é a escritora Inocência Mata, que “As literaturas

africanas, metonímias do percurso histórico dos países, parecem hoje coincidir no

percurso da sua existência funcionando como textos-memória da História dos países.”

(MATA, 2006. p. 17, grifo do autor). Isso leva a crer que mergulhar na ficção angolana

é, ao mesmo tempo, submergir na história da própria nação angolana, ou seja, é encarar

as narrativas como sendo testemunhos de um processo histórico, que, muitas vezes,

escapa à percepção de outras fontes historiográficas. À luz disso, intenta-se evidenciar a

importância que tinha, e tem, um escritor dentro de uma sociedade, principalmente

naquelas embebidas em regimes autoritários, lastreados pela violência institucional e

pela castração de direitos. Fica muito evidente, nas obras dos escritores em questão, a

manifestação da resistência e da denúncia de eventos, praticados pelos regimes de

exceção contra a população. Essas obras trazem em seu bojo a marca da subversão

política e da resistência popular, orquestrada por escritores que, acima dessa condição,

são, a bem da verdade, responsáveis pela abertura de frestas por onde a liberdade

sempre anseia transitar.

Talvez, a obra de Luandino que mais evidencia o seu caráter subversivo seja A

Vida Verdadeira de Domingos Xavier, onde ele narra a vida de Domingos Xavier –

tratorista, morador do musseque, que trabalha na construção de uma barragem do rio

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“Kuanza”, em Cambambe. É preso, acusado de conspirar contra o regime colonial, e

torturado até a morte, para revelar os nomes dos envolvidos na conspiração. Com essa

obra, percebemos o clima de “texto-denúncia” que o autor intenta passar, como forma

de levar talvez o povo angolano a agir em determinado sentido. Domingos Xavier morre

sem revelar à polícia política os segredos da sua gente. Apesar das torturas, “[...]se

portou como homem, não falou os assuntos do seu povo, não se vendeu.” (VIEIRA,

1977, p. 162), e provavelmente essa seria a mensagem que Luandino queria passar a

todo o povo angolano, uma mensagem de “resistência” e fé, na luta contra o regime

colonial. Mais do que um herói, Domingos Xavier é uma metonímia do sofrimento e

batalha da nação angolana. É, por assim dizer, a representação simbólica da força e do

desejo de liberdade angolanos, pois, não obstante a violência da polícia, Domingos

resiste, sem revelar os seus, pagando, com a vida, o desejo de ver o seu povo liberto da

opressão imposta pelo regime colonial.

Jubiabá, por sua vez, é a obra de Jorge Amado que talvez mais desvele a visão

aguda do escritor para os problemas sociais. A obra narra a saga de Antônio Balduíno, o

Baldo, pelas ruas da Cidade da Bahia, sua infância, passando pela adolescência até se

tornar adulto. O autor opta por colocar na narrativa uma ordem de apresentação dos

fatos que contraria a sequência natural do desenvolvimento humano, ou seja, Antônio

Balduíno inicia a narrativa já na idade adulta, passando à infância sofrida logo no

capítulo seguinte. Com isso, é possível crer que Amado intenta apresentar Baldo como

produto de toda uma realidade de miséria, abandono e maus-tratos, vivenciados no

morro do Capa-Negro. Como a sua tia, a velha Luiza, enlouquece e é internada em um

hospício, Baldo é levado à cidade, para viver na casa do Conselheiro Pereira, onde

conhece a bela Lindinalva, filha do conselheiro. Desde então, a imagem de Lindinalva

passa a permear a mente de Baldo, daquele momento até a idade adulta.

Da casa do conselheiro, Balduíno foge e vai morar nas ruas, vivendo de esmolas

junto a um grupo de moleques da sua idade. Quem analisa as obras amadianas não deve

perder de vista um fator preponderante na vida literária desse escritor: a sua profunda

veia política, lastreada pelos dogmas do comunismo. A obra Jubiabá é, grosso modo,

quase uma “ode” ao comunismo, pois toda a narrativa gira em torno de questões

defendidas e apontadas pelos comunistas da década de 1930. Questões como a causa da

pobreza, que estaria ligada a desassistência estatal; as condições de trabalho da classe

operária; ou, ainda, o próprio debate em torno da relação entre o homem e o meio,

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muito em voga nos idos dos anos 30. Nessa perspectiva, Carlos Magalhães (2011, p.

139) relata que:

Na verdade, é nos anos 1930 que o pensamento político transformador e de

rupturas mais se robustece, o que permite afirmar-se ser essa a década em que

a ideia da revolução do proletariado amadurece e ganha vulto e se identifica

com as ideias socialistas/comunistas.

Faz-se indispensável destacar que, em Jubiabá, a própria questão da greve

como meio de luta do operariado está bastante evidenciada, fechando o ciclo em torno

da propagação da ideologia do Partido Comunista, ao qual Amado era filiado.

José Luandino Vieira e Jorge Amado representam vozes importantes no tecido

literário de seus países. A narrativa amadiana aproxima-se de temáticas vivenciadas pela

população baiana, seus espaços, sua cultura e, principalmente, sua fé religiosa. Prova

disso são os lugares em que geralmente se desenvolvem as tramas urbanas do autor: o

centro da cidade – as ruas e becos do Pelourinho, bem como as subidas e descidas das

ladeiras da montanha e Taboão – na verdade, metonímias do espaço urbano baiano.

Esses espaços, conhecidos ou imaginados pelo grande público, parecem

transportar o leitor para dentro da obra, provocando intensa ligação com as narrativas,

derrubando barreiras entre o lido e o experimentado. Outro fator de expressivo relevo

nas obras amadianas é a questão linguística. Jorge Amado sempre trouxe para as suas

obras o falar das ruas, a máxima expressão do falar popularesco e coloquial, bem como

o falar litúrgico das religiões de matriz africana ou do próprio Catolicismo. Pode-se

depreender que a inclusão do falar popular nas tramas amadianas constitui uma

importante forma de subversão, visto que, o falar popular, em muitos momentos, exibe

uma vertente não prestigiada da língua e sua presença na narrativa estabelece uma

tensão entre as variantes linguísticas4, principalmente, com a variante considerada de

prestígio – possibilitando “espaço” e “vez” ao falar das camadas desprestigiadas,

revelando uma forma de expressão que muitos desejariam abafadas.

Já Luandino Vieira faz dos musseques o seu assunto principal – da gente que

vive nos bairros pobres de Luanda, bairros que ele muito bem conhece, por ter sido,

___________________________

4 Sobre esse assunto, ver Bagno (1999).

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durante toda a infância, morador dessas comunidades – e parece escutar a alma de cada

espaço que compõe esses locais. Para o escritor, contar “estórias”5 é, ao mesmo tempo,

contar a “história” do povo angolano, é dar voz aos despossuídos, é fazê-los perceber a

riqueza das suas culturas e das suas línguas.

A inclusão do Kimbundo nas narrativas luandinas, mais que marcar a tentativa

de subversão linguística, como já foi afirmado anteriormente, expressa uma forma de

manter viva uma língua genuinamente angolana, de elaborar a sua resistência e

preservação por meio da língua do colonizador. Também se pode afirmar que tudo isso

representa um modo de conservar a existência da cultura de Angola, pois, assim como

se afirma que adquirir uma nova língua significa adquirir uma nova cultura, o

desaparecimento de uma língua significaria a perda de um imenso patrimônio cultural

presente na memória de um povo – é o caso da língua portuguesa, a do colonizador,

que, ao se impor à língua do colonizado, tanto em Angola quanto no Brasil, também

impôs um imenso apagamento cultural.

A forma de resgate, pelo colonizado, das suas culturas – vilipendiada pelo

colonizador – está justamente no apelo à memória, sempre representada nas narrativas,

tanto de Amado quanto de Luandino, pela presença do “mais velho”. Em Jubiabá, o

símbolo dessa memória encontra-se, direta ou indiretamente, representado pelo “velho

macumbeiro” Jubiabá. Suas metáforas, suas curas, rezas e conselhos traduzem bem o

saber advindo da cultura oral e, de igual forma, desvelam a profunda relação entre o

homem e sua corrente ancestral:

Jubiabá trazia sempre um ramo de folhas que o vento balançava, e

resmungava palavras em nagô [...] Em certos dias até Jubiabá aparecia, e

também contava velhos casos, passados há muitos anos, e misturava tudo

com palavras em nagô, dava conselhos e dizia conceitos. (AMADO, 2000, p.

13-14)

O “feiticeiro” Jubiabá, herdeiro da tradição cultural africana, é a representação

do antigo, da cultura e do saber popular, que traz a toda comunidade o equilíbrio e a

garantia de preservação cultural por meio da memória. Na narrativa, sua posição no

___________________________

5 O autor prefere o uso desse termo a outros, como narrativa, contos etc.

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morro do Capa- Negro é a de um “generalista”, pois está apto a resolver problemas

diversos, bem como aconselhar e transmitir saberes. Sobre isso, Amadou Hampâté

Bá (1982, s/p.) afirma que:

O conhecimento africano é imenso, variado. Concerne a todos os aspectos da

vida. O "sábio" não é jamais um "especialista". É um generalista. O mesmo

ancião, por exemplo, terá conhecimentos tanto em farmacopéia, em "ciência

das terras" - propriedades agrícolas ou medicinais dos diferentes tipos de

terra - e em "ciência das águas", como em astronomia, em cosmogonia, em

psicologia etc. Podemos falar, portanto, de uma "ciência da vida": a vida

sendo concebida como uma unidade onde tudo está interligado,

interdependente e interagindo.

Já em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, Luandino também lança mão da

presença do “mais velho”, encerrado no personagem vavô Petelo – um velho

marinheiro, que, apesar da tímida participação na trama, é quem desencadeia toda a

história. O velho Petelo é o responsável em levar mensagens acerca de qualquer fato

estranho na comunidade envolvendo os seus membros e a PIDE – a polícia política do

Império. Tais mensagens são passadas para Xico Kafundanga – uma espécie de contato

entre os articuladores do movimento. Logo, o velho é como um elo que liga a

comunidade ao movimento anti-colonial, sendo corresponsável pela força e articulação

de tal movimento, sem, com isso, despertar a atenção da repressão:

[...] – O Menino, você vê ainda. Quando brincas naquele cajueiro do Posto,

se você vê tem preso, vem me avisar, logo-logo.

E, quando isso sucedia, miúdo Zito deixava os outros meninos com

brincadeira no meio e corria na cubata onde vavô, sempre sentado debaixo da

mandioqueira ou na porta, sorria no sol.

Era sempre assim: pegava miúdo Zito na mão, qualquer que fosse a hora, e lá

iam para baixo, até na Companhia onde trabalhava o mano Xico, um dos

afilhados do velho marinheiro. (VIEIRA, 1977, p. 12)

Essa importância do “mais velho”, nas tramas luandinas, aparece diluída,

disfarçada em simples personagens, que, de uma forma ou de outra, carregam o peso e

dão o tom da narrativa. O Velho Petelo é símbolo de um saber, cuja transmissão é oral –

sendo por isso, forte –, e o velho, na tradição angolana, traz à tona, via oralidade, toda a

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história de que os mais novos necessitam para ir adiante à luta pela liberdade. Sobre

isso, continua Hampâté Bá (1972, s/p.):

A tradição transmitida oralmente é tão precisa e tão rigorosa que se pode,

com diversas confirmações, reconstituir os grandes acontecimentos dos

séculos passados nos mínimos detalhes, especialmente a vida dos grandes

impérios ou dos grandes homens que ilustraram a história africana [...].

Jorge Amado e José Luandino Vieira simbolizam, por meio das suas obras –

aparentemente diferentes – as bases de uma resistência que se dá, muitas vezes, no

plano da subjetividade, razão pela qual se torna complexa a tentativa de análise

comparatista dos textos, ignorando-se a existência de elementos subjacentes. Os dois

autores demonstram possuir, em seus imaginários, referências estéticas, capazes de

traduzir, em linhas, as tensões peculiares à atmosfera que respiram. Suas narrativas

representam a tentativa de desenvolvimento, no plano social, de uma cultura

revolucionária dentro de sociedades distintas, mas que encerram em si necessidades que

as tornam iguais. Os autores conseguem codificar, em seus textos, elementos que

representam a chave para o despertar crítico dos indivíduos vitimados pelos regimes de

exceção, os quais possuem, como única linguagem, a tortura e a repressão desmedida.

As obras dos referidos escritores abrem um importante espaço para o debate

acerca da ideia do que seria a identidade cultural, oportunizando, assim, as

investigações em torno da concepção de “herança” ou “influência” literária e

possibilitando um exercício de reflexão sobre a noção de “local” e “universal” na

literatura. Acredita-se que a história de Domingos Xavier poderia ser passada em

qualquer lugar do mundo (e a qualquer tempo) onde imperasse a lei da repressão e do

cerceamento de direito, pois, como afirmou Garcia Canclini (1999, p. 148) “A

identidade surge, na atual concepção das ciências sociais, não como uma essência

intemporal que se manifesta, mas como uma construção imaginária que se narra”. O

próprio Luandino reconhece a importância de se pensar sobre a identidade cultural nas

suas obras, quando afirma:

Posso está errado, posso está errando mesmo, mas continuo a pensar nisso,

(na identidade cultural) é uma coisa, quase diariamente eu me confronto

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comigo próprio: é se realmente todo o meu viver diário me está cada vez

mais metendo, no mundo sócio-cultural, sócio-econômico-cultural que é

Angola. Portanto se cada vez mais estou sendo mais angolano, porque é a

única maneira de atingir o universal. Sobretudo eu penso que como escritor,

só com o abarcar o mais total possível desta ambição, de abarcar a realidade

total, é que depois, em termos culturalmente particulares, isso pode ser dado

para o mundo, de uma maneira que seja uma mensagem universal. (LABAN,

1980, p. 22)

É possível notar que, desde as origens, a necessidade de estudos comparados

envolvendo literaturas de sistemas literários distintos se deu pelo fato da observância da

intrínseca relação entre nação, política e literatura. A prática do comparatismo literário é

antiga, e quase sempre, se pautou pela tentativa de análise do “outro” – ou seja, perceber

a literatura do diferente seria o mesmo que passar a entender esse “diferente”, esse

“outro”. É chegada talvez a uma percepção da imbricada relação entre o comparatismo e

a geopolítica, visto que a atitude de comparar uma literatura com a outra quase sempre

teve uma ideia voltada para a observação da diferença do estrangeiro6. Dada a intensa

prática de conquista que sempre acometeu o homem europeu, o conhecimento do outro,

via literatura, significa o reconhecimento da lógica que governa o imaginário alheio, as

suas potencialidades e fraquezas. Segundo Brunetière (apud NITRINI, 2010, p. 21), um

dos primeiros defensores da literatura comparada:

[...] a história da literatura comparada estimulará em cada um de nós, francês,

ou inglês, ou alemão, a compreensão da maior parte das características

nacionais de nossos grandes escritores. Nós nos constituímos somente nos

opondo entre nós; nós nos definimos somente nos comparando entre nós; e

não chegamos a nos conhecer a nós mesmos quando conhecemos somente a

nós mesmos.

A necessidade de conhecimento de si, na relação com o outro, parece naquela

conjuntura, fator decisivo para o europeu. Para ele, conhecer a si próprio requer

conhecer o “diferente”, ou seja, perceber o “outro” que habita além das fronteiras e que

possui outra identidade, outra cultura. Assim, a literatura comparada torna-se importante

aliada nos estudos acerca da identidade cultural na Europa, como bem afirma Nitrini

(2010, p. 21):

___________________________

6 Ver Said (2000).

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[...] Convém lembrar que o termo “literatura comparada” surgiu justamente

no período de formação das nações, quando novas fronteiras estavam sendo

erigidas e a ampla questão da cultura e identidade nacional estava sendo

discutida em toda a Europa. Portanto, desde suas origens, a literatura

comparada acha-se em íntima conexão com a política.

Quando se trata de dois autores de nacionalidades diferentes, mas falantes de

uma mesma língua, torna-se evidente o questionamento acerca do imaginário que ambos

possuem e que os faz produzir uma literatura curiosa, se comparada. À primeira vista,

não há nada em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier que possa lembrar Jubiabá,

assim como, em primeira mão, a obra Nós, os do Makuluso e Tenda dos Milagres são

completamente diferentes, ou, ainda, João Vêncio: os seus amores nada tem a ver com

Capitães da Areia. Os seus espaços são diferenciados, seus personagens apresentam

estruturas psicológicas diferenciadas, os focos narrativos se enunciam de formas

particulares, o desenrolar narrativo não é igual nessas tramas. Mas, o que existe nessas

obras que as relacionaria, ou seja, qual o fio indutor que as ligaria? Só o fato de serem

escritas em língua portuguesa? Crê-se que não. O próprio Luandino supõe que há algo

mais entre angolanos e brasileiros, que se expressa por meio das narrativas:

[...] traziam livros dos escritores brasileiros, do nordeste sobretudo, que

tiveram grande papel na formação quer literária, quer política. Tudo isso

tinha uma proximidade muito grande, não sei porquê. Porque nossa realidade

era diferente, mas havia, há qualquer coisa, talvez fosse o uso da língua, da

linguagem. (DAVID, 2006, p. 131)

Acredita-se só ser possível chegar a respostas para as dúvidas expostas acima,

pelo que diz o próprio Luandino, quanto às aproximações das realidades, caso conceba-

se a obra literária como um todo universal e a entenda como sendo um todo

comunicativo. O escritor, enquanto artista, quando escreve, o faz com o intuito de

comunicar, de dialogar artisticamente com qualquer outro ser sensível à sua arte. E isso

leva a crer que é essa dimensão artístico-comunicativa da literatura que a faz criar

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imagens a partir da realidade de cada país. E tal realidade forma pontes com outras

margens, alimentando um intenso trânsito de imagens. É isso que é percebido entre

Brasil e Angola, entre Luanda e Bahia.

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3. A CIDADE DA BAHIA E A CIDADE DE LUANDA: PONTES IMAGÉTICAS

Quando se analisa a história das cidades de Salvador e de Luanda, depara-se

com questões e fatos históricos semelhantes, concernentes à fundação e ao

desenvolvimento dessas cidades – as quais foram fundadas por portugueses – Tomé de

Souza e Paulo Dias de Novais, respectivamente –, que lhes trouxeram a marca da

arquitetura portuguesa, como edificações de igrejas e fortificações.

A Vila de São Paulo de Luanda – tempos depois, Luanda –, tem a sua fundação

registrada em 25 de janeiro de 1576. (BENDER, 1980, p. 56). Foi a primeira cidade de

base europeia fundada na costa ocidental da África subsaariana. De posse de uma carta-

donatário, dada pelo Rei D. Sebastião, Paulo Dias de Novais, comandando uma armada

de sete barcos com 100 famílias de colonos e 400 soldados, partiu para a ilha de Luanda

a 20 de fevereiro de 1575.

Segundo alguns historiadores, o século XVII poderia ser chamado de “século do

Brasil”, dada a relação direta e prioritária Luanda-Bahia. O abastecimento de escravos

aos fazendeiros brasileiros era a causa principal dessa relação. É oportuno salientar que,

até finais do século XVII, Luanda era um pequeno burgo, constituído pela parte alta – a

"cidade alta" –, onde se baseavam o poder, o clero e a burguesia. Paralelamente,

desenvolvia-se a zona baixa, com ponto de partida no atual bairro dos Coqueiros, onde

vivia uma população de degredados e comerciantes, voltados essencialmente para o

tráfico escravagista. Entende-se por oportuno trazer tais informações acerca das partes

altas e baixas da capital angolana, pois além de marcar certa semelhança topográfica

com a Cidade da Bahia, essa dicotomia terá grande relevância, no decorrer da análise da

narrativa luandina, no que toca à cidade de Luanda.

Concernente à estrutura urbana, vários pesquisadores já afirmaram ser o

abastecimento de água a grande “causa da cidade”, desde o início da história de Luanda

– o primeiro grande projeto aparece apenas em 1645, com os holandeses, e tinha em

vista criar um canal do rio Kuanza até a cidade. É importante abrir-se aqui um parêntese

para revelar que a obra de Luandino Vieira A Vida Verdadeira de Domingos Xavier,

relata a história de um tratorista, Domingos Xavier, que trabalha justamente na

construção da barragem do rio Kuanza. E várias passagens da narrativa luandina

descrevem a ação do rio frente à possibilidade de barragens das suas águas:

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Lá em baixo o Kuanza rugia, zangado, pra lá da saída do túnel de derivação,

as águas se suicidavam, subindo desesperadas muitos metros no ar e

deixando-se depois abater lá em baixo nas pedras, nos muros de defesa que

os tratores construíram [...] As águas falavam suas fúrias, agora impotentes,

recordando os rápidos pra lá dos muros, secos no sol, criando musgos nas

poças de água parada, finalmente quietas [...]. (VIEIRA, 1977, p. 71)

Percebe-se no fragmento da narrativa luandina, a presença de imbricamentos

histórico-ficcionais, comuns no texto desse autor, o que alude para inserção da narrativa

no que Inocência Mata chama de “escrita-testemunho”. Não só por conta disso, mas

também pelo que assegura Carlos Magalhães (2011, p. 35), para quem:

[...] o discurso historiográfico se enriquece a partir do diálogo com outras

abordagens, a literária, por exemplo, manifestação artística cujo mundo

simbólico e de representações tem ajudado a compor, a partir da visão da

intertextualidade, os princípios da “nova história”.

Ter o texto literário como uma forma de perceber a história significa dar uma dimensão

distinta a esses dois campos – o literário e o histórico: possibilita enxergar a narrativa

literária como representação do “real”, relacionando-a à própria noção de história

enquanto narrativa, ou, conforme Sandra Pesavento (1999, p. 62) “[...] adotar uma

postura que veja, na literatura, uma forma de pensar a história”.

Já a “cidade-fortaleza de São Salvador” – mais tarde, Salvador – foi fundada em

29 de março de 1549, conforme informa a historiografia oficial. (CARNEIRO, 1980, p.

46). Esse título de “cidade-fortaleza” tem ligação direta com as funções assumidas pela

referida cidade entre os séculos XVI e XVII. A edificação de fortificações na Cidade da

Bahia relaciona-se com a necessidade de defesa territorial contra as possíveis invasões,

conforme atesta Carlos Magalhães (2012, p. 32), para quem “A urbe-fortaleza

compreende sobretudo a cidade da Bahia como centro de onde emana a preocupação

com a defesa do território; estende-se do período que vai da fundação, no século XVI,

até o final do século XVII [...]”.

Relata-se que, por volta de 1536, chegou à região o primeiro donatário –

Francisco Pereira Coutinho –, também de posse de carta-donatário, concedida pelo Rei

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Dom João III. O referido donatário fundou o Arraial do Pereira, nas imediações onde

hoje está a Ladeira da Barra. Esse arraial, doze anos depois, na época da fundação da

cidade, foi chamado de Vila Velha. Em 29 de março de 1549, chegam Tomé de Sousa e

comitiva em seis embarcações – três naus, duas caravelas e um bergantim –, com ordens

do Rei de Portugal de fundar uma cidade-fortaleza chamada do São Salvador. Nasciam

assim a cidade de Salvador e o Primeiro Governador Geral. Todos os donatários das

chamadas “capitanias hereditárias” seriam submetidos à autoridade do governador-geral

do Brasil, Tomé de Sousa. (CARNEIRO, 1980, p. 48-49).

Tanto Tomé de Sousa quanto Paulo Dias de Novais trouxeram em suas

expedições algumas centenas de pessoas, para iniciarem o povoamento das cidades e

constituirem o prisma demográfico que daria o tom daquelas localidades. Com Tomé de

Souza, chegaram padres jesuítas, médicos, farmacólogos, militares, degredados,

fidalgos e homens comuns. Acompanhando Paulo Dias de Novais, chegaram padres

jesuítas, mercadores, fidalgos, degredados, funcionários e militares.

As duas cidades em questão sofreram invasões holandesas. Luanda, em 25 de

agosto de 1641, tendo como principal consequência a interrupção do tráfico de

indivíduos escravizados para o Brasil. A retomada da referida urbe ao domínio

português deu-se, sob o comando de Salvador Correa de Sá, em 15 de agosto de 1648,

dia de Nossa Senhora da Assunção, passando a cidade a designar-se São Paulo da

Assunção. A história revela que tal atitude de Correa de Sá – de mudança do nome da

urbe – teria se dado pela semelhança inoportuna do nome anterior “São Paulo de

Loanda” com o nome “Holanda”.

Em Salvador, invasão holandesa deu-se em 09 de maio de 1624. A esquadra, sob

o comando de Jacob Willekens, aportou no Farol da Barra. Após alvejarem os canhões

da Ponta do Padrão, os 3.400 homens que a compunham renderam o governador-geral.

A permanência dos holandeses em terras baianas, no entanto, foi curta. Em 27 de março

de 1625, a Espanha enviou, como reforço, uma poderosa armada de cinquenta e dois

navios, sob o comando de D. Fadrique de Toledo Osório, marquês de Villanueva de

Valduesa, e do general da armada da Costa de Portugal, D. Manuel de Meneses. Foram

mais de 40 dias de batalha e, em 1º de maio, houve a primeira rendição. Outras

tentativas de invasão holandesa foram registradas na Bahia, mas nenhuma delas foi bem

sucedida. A Bahia ficou como o centro da luta pela expulsão dos holandeses, que

chegaram a ocupar Pernambuco, Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte.

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Esse breve resumo da história das duas cidades em cena, com foco em questões

muito peculiares, ocorre para se analisar as similaridades que podem ser percebidas,

quando da observância atenta das suas diversas representações no âmbito literário.

Luanda e Salvador, representadas nas obras A Vida Verdadeira de Domingos Xavier e

Jubiabá, respectivamente, trazem as marcas do olhar dos seus autores, José Luandino

Vieira e Jorge Amado, verdadeiros cronistas citadinos, e revelam momentos

importantes na história dessas urbes, compreendidos ao longo das referidas narrativas e

de outros textos. Similaridades e contradições perceptíveis entre as cidades, suas

histórias e suas representações literárias, aqui serão de importante valia, visto que

balizarão as investidas, no sentido de descortinar as pontes formadas a partir das

imagens existentes entre as citadas narrativas por meio do urbano, pois, de acordo com

o que afirma Carlos Magalhães (2012, p. 40), “O texto artístico se apresenta como

instrumento por cujo intermédio são elaboradas representações das imagens

contraditórias da vida nas cidades [...]”.

É oportuno lembrar que o “velho navegador de Cabotagem” – Jorge Amado –

em Jubiabá, realiza um verdadeiro passeio pela “costa cultural” da Bahia, descortinando

detalhes que vão desde os tipos humanos presentes no interior do estado até a mais

esmiuçada análise dos becos e vielas que compõem a cidade do Salvador. Na obra em

estudo, o autor, a bordo de sua embarcação – o texto literário –, vai revelando detalhes

da estrutura topográfica e humana que forma a Cidade da Bahia, seus morros e seus

habitantes, suas luzes e suas ruas, seus mares e seus encantos. Em A Vida Verdadeira de

Domingos Xavier, Luandino, para realizar uma navegação pela cidade de Luanda,

coloca à sua testa o personagem velho Petelo – na verdade, Pedro Antunes, ex-segundo

marinheiro da “canhoeira” –, que é quem vai, em companhia do miúdo Zito, realizar a

viagem entre a cidade alta e a cidade baixa e, com isso, deixar evidenciar, em seus

trajetos, detalhes que vão dar ao leitor uma ideia da cidade de Luanda, dos seus

descaminhos e diferenças.

3.1 A CIDADE AMADIANA DA BAHIA

No que toca à literatura brasileira, ninguém representou mais a Cidade da Bahia

– Salvador – que Jorge Amado. Até pode-se afirmar, com alguma segurança, que a

imagem da Bahia tida pelo Brasil e o mundo é, em parte, amadiana. Existe uma Bahia

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que se pode chamar de “real”, ou seja, de existência concreta, com os seus graves

problemas de ordens diversas, principalmente socioeconômicas – que, vez por outra,

recusa o rótulo de “terra da felicidade”, exibindo a sua real condição, com um povo

infeliz, heterogêneo, racial e culturalmente e mantenedores de antigos preconceitos. E

há uma Bahia de invenção literária, a “Bahia de Jorge Amado”, de pessoas e espaços

inventivados, com homens e mulheres, negros e brancos, que coexistem e que se inter-

relacionam, muitas vezes, em planos de igualdade – sobretudo no plano cultural –,

gerando uma ideia de democracia, agradável a leitores de diversas regiões do globo.

Acerca dessa relação entre cidade “real” e cidade “imaginária”, Carlos

Magalhães (2012, p. 19) estabelece dois pilares de representação nos romances urbanos

de Jorge Amado da primeira fase: “cidade real” e “cidade ideal”. Segundo Magalhães

(2012, p. 19-20), na “cidade real” “[...] pinta-se o mundo das mazelas sociais em que se

recortam os espaços da hierarquização reificante, produto da modernidade e

modernização capitalistas – a Bahia segregada dos deserdados e dos habitantes dos

desvãos [...]”; ao passo que na “cidade ideal”:

[...] há as recriações [...] da utopia socialista, produto do sonho de

transformação e mudança da sociedade capitalista, bem como as dos espaços

urbanos caros ao imaginário popular, às representações identitárias da

memória afetiva da cidade, do povo e do escritor intelectual.

Pode-se perceber que o autor chama de “cidade ideal” justamente a cidade

imaginada, idealizada no plano imagético, que se contrapõe ao cotidiano da “cidade

real”. Na direção desses debates a respeito da construção imagística da Bahia por Jorge

Amado e de suas implicações no plano da realidade, Derneval Andrade Ferreira (2007,

p. 69) afirma que:

[...] Os lugares e temas que se inserem na narrativa, com força expressiva e

com poder de estruturação, são imagens criadas pelo escritor reservando uma

Bahia particular com privilégios de realização da felicidade, espaço de

beleza, com uma descrição exótica única no mundo. É através da terra do

encanto, encontros e desencontros que Jorge Amado se consagra como

escritor, apresentando uma Bahia cujas representações diluem problemas e

dificuldades. Esse ícone imaginário, muitas vezes, sobrepõe-se a outras

“bahias” que também revelam significados importantes na construção do ser

baiano.

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Com isso, percebe-se como os leitores são contaminados pela Bahia literária, a

ponto de, mesmo sem se reconhecerem nas narrativas, forçarem uma identificação com

o que a ficção criou. Assim sendo, homens e espaços se constroem – e são construídos –

a partir do ficcional, gerando uma ideia sobre o baiano muitas vezes discrepante, mas

que passa a identificar esse sujeito e a orientar as suas práticas sociais. Osmundo de

Araújo Pinho (1998, s/p.) afirmar que:

Dois conjuntos de textos são fundamentais para a fixação deste imaginário

sobre a Bahia e para a disponibilização objetiva de uma certa simbologia da

cultura baiana. Primeiro, o que chamo de "guias de baianidade". O segundo é

a obra de Jorge Amado.

De fato, os diversos romances amadianos de temática urbana também serviram não só

para cimentar imagens concernentes à gente da Bahia, mas para inventivar o próprio

espaço urbano baiano, provocando uma interpenetração constante do “real” pelo

“imaginado”.

Sabe-se ser discutível a concepção do que venha a ser o “real” e o “imaginado”,

pois, essas duas matérias costumam confundir o pesquisador, principalmente, quando da

análise de obras ficcionais referente à cidade. Ronaldo Costa Fernandes (2000, p. 30)

parece identificar, na prosa de ficção, essa espinhosa questão quando relata que “[...] a

cidade do romance é imaginária; algumas se parecem com cidades reais, outras são

inventadas[...]”. O autor segue identificando, no narrador do romance, a

responsabilidade deste por marcar a diferença entre a cidade real e a cidade inventada.

Ele afirma que o narrador da cidade inventada “idealiza um modelo” de cidade,

enquanto que o da cidade real “parte de uma realidade para estabelecer uma cidade que

é tão inventada quanto a outra”. Para o autor, a cidade real “[...] também pode soar falsa

se as relações dentro da obra não corresponderem aos dados da realidade.”

(FERNANDES, 2000, p. 30)

Faz-se aqui esse breve exercício de reflexão sobre o “real” e o “inventado”,

principalmente para apontar, por meio do romance, a flagrante infiltração entre os

citados conceitos e também para apontar a cidade plasmada no romance como sendo

intermediada pela necessidade de se ajustar a um tema. No caso de Jorge Amado, a obra

Jubiabá tentará inventar a Cidade da Bahia, criando uma ideia difusa sobre a

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“baianidade”, levando os baianos a transitar entre a ideia criada e suas verdadeiras

práticas em sociedade.

Essa invenção tanto da Bahia quanto do baiano acaba por amparar-se em “[...]

uma concepção disseminada por diversos agentes sociais e onipresente nas afirmações

do senso comum em Salvador [...]” (PINHO, 1998, s/p.). Tal concepção “[...] se

apresenta como uma rede de sentido indefinida e abrangente capaz de interpretar e

constituir de determinada forma a auto-representação dos baianos.” (PINHO, 1998,

s/p.).

A Salvador retratada no romance Jubiabá é uma cidade que começa a se

modernizar e a exibir os sinais típicos de uma cidade em desenvolvimento, como a

presença de iluminação pública, transportes, cotidianas concentrações e agitações no

centro da cidade, uma intensa atividade portuária com mão de obra assalariada e,

principalmente, a presença da “greve”. Não obstante esses fatos, Carlos Magalhães

(2012, p. 25) afirma:

[...] o conceito de modernização urbana em Amado assume aspecto de

originalidade. Tal processo, segundo o escritor, deveria trazer no próprio bojo

a preocupação com alcançar-se um estágio de qualidade ética e social, de que

o povo seria beneficiário e não a prevalência dos processos excludentes, a

que a cidade é arremessada, com a reificação dos espaços urbanos.

Fica evidente, porém, que o termo “modernização”, no que toca à representação da

cidade em narrativas amadianas, assume significações distintas das de cunho positivista,

conforme ainda atesta Magalhães (2012, p. 29) acerca de Jorge Amado, “[...] O escritor

não se inscreve em princípios positivistas de modernidade indiferentes à história, à

tradição e à cultura urbanas.” A defesa de uma modernidade que se baseia na cultura e

no valor simbólico dos espaços é percebida, portanto, na representação urbana do

escritor baiano. Rafael Lucas (2004, p. 200) inclusive afirma que, na obra de Jorge

Amado:

Reencontraremos na representação do espaço urbano baiano os três aspectos

característicos da espacialidade amadiana: a topografia mítico-simbólica, a

geografia socializada e o espaço seletivo. A Bahia figura, logo de primeira,

como a cidade das origens e das confluências.

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O que Rafael Lucas chama de “topografia mítico-simbólica” talvez seja a

relação de Jorge Amado com os morros e ladeiras, com a cidade baixa e a cidade alta.

As ladeiras e morros, nas narrativas amadianas, representam quase sempre a decadência

e relacionam-se com a própria ideia de queda. Pode-se observar que o fim destinado às

prostitutas, nas tramas de Amado, é sempre a ladeira, notadamente a do Taboão – onde,

por exemplo, a personagem Lindinalva, em Jubiabá, foi morar em seus últimos dias de

vida, corroída pelas enfermidades. Cumpre que se realize aqui um breve salto no debate,

para que se possa revelar questões atinentes à personagem Lindinalva – importante

elemento da trama –, e entender melhor a questão do espaço na obra amadiana.

No que se refere à Lindinalva, descrita por Amado (2000, p. 44) como

“magríssima e sardenta, de cabelos vermelhos e boca pequena”, tal personagem tem,

inicialmente, na narrativa, a sua vida limitada à casa da família, na travessa Zumbi dos

Palmares. Adiante, em Jubiabá, o trânsito da jovem personagem pela urbe vai

descortinar a singularidade da criação urbana de Jorge Amado, que dá evidência a

espaços, estigmatizados pela própria condição de vida dos seus habitantes. Lindinalva,

após a morte dos seus pais e da sua separação de Gustavo, seu noivo, resolve aceitar o

convite da cafetina Lulu, indo morar na pensão Monte Carlo, para “fazer a vida”. De lá,

prostituta e alcoólatra, ela irá para a ladeira do Tabuão – espaço que demarca uma das

chamadas “zona do baixo meretrício” da cidade. Segundo Amado (2000, p. 269), tal

ladeira é o lugar “[...] onde vivem as mulheres mais baratas e mais gastas da cidade.” e

que “[...] Da ladeira do Tabuão as mulheres só saiam ou para o hospital ou para o

necrotério [...]” (AMADO, 2000, p. 264).

Não é nenhuma coincidência que o local considerado “o fim” para as prostitutas

seja uma ladeira, numa breve alusão à queda. E é Jorge Amado (2000, p. 264) quem diz

que “Lindinalva desceu várias ladeiras [...]”, certamente fazendo menção à sua trajetória

de menina alegre de família à prostituta da ladeira do Tabuão. É curioso perceber como

Amado vale-se da topografia da cidade para contar a história e o destino dos seus

personagens, marcando uma extrema relação entre o homem e a urbe. Parece ser nesse

contexto que Carlos Magalhães (2012, p. 19) afirma haver, nas obras amadianas, “[...] o

mapeamento dos espaços da dor que se entrecruzam com os espaços urbanos decadentes

[...]”. Em Jubiabá, a cidade, enquanto espaço de desenvolvimento da narrativa, aparece

representando mais que um simples locus onde se desenrola a trama. As ladeiras do

morro do Capa-Negro, bem como as do Taboão, revelam os altos e baixos vivenciados

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pelas pessoas naquela cidade, e suas ruas “enlameadas” apresentam a situação em que

se encontra boa parte daquela gente.

Saindo da personagem Lindinalva e retomando o debate anterior, nota-se que

Amado, em suas narrativas urbanas, soube muito bem criar os espaços destinados aos

seus múltiplos personagens populares. Em suas narrativas, os locais onde se desenrolam

as tramas são espaços por excelência populares, espaços do povo. A primeira cena de

Jubiabá, por exemplo, tem a rua como cenário. É na Praça da Sé ou “largo da Sé”,

como sugere o romance, que acontece a luta entre Antônio Balduíno e o alemão Ergin:

O largo da Sé pegara uma enchente naquela noite. Os homens se apertavam

nos bancos, suados, os olhos puxados para o tablado onde o negro Antônio

Balduíno lutava com Ergin, o alemão. A sombra da igreja centenária se

estendia sobre os homens. Raras lâmpadas iluminavam o tablado. Soldados,

estivadores, estudantes, operários, homens que vestiam apenas camisa e

calça, seguiam ansiosos a luta [...]. (AMADO, 2000, p. 03-04)

Se os seus personagens são figuras do povo, entende-se a preferência do autor

pela introdução, em suas narrativas, de espaços populares. Amado sonda os becos e

vielas, os velhos sobrados nas ladeiras, as praças, as feiras livres, os bares e

principalmente a rua. “Há o mapeamento da cidade da Bahia, tomada como espaço do

qual brota o sofrimento social, mas a cidade é também representada como locus de onde

provêm a poesia e o sentido de magia e de mistério” (MAGALHÃES, 2012, p. 18, grifo

do autor). Em Jubiabá, a cidade sugere querer, ela mesma, narrar os acontecimentos que

envolvem a gente humilde dos seus espaços. Quem rememora isso é Jacques Salah

(2000, p. 87) quando afirmar que:

A Cidade da Bahia – igualmente chamada Salvador, Salvador da Bahia, São

Salvador da Bahia ou Bahia de Todos os Santos – é constantemente

personificada e vive no seu povo mais humilde, na massa eminentemente

africana que fervilha em suas artérias e becos carregados de História, e

também na sua natureza, sua cultura e seus ritos. Realidade criadora, sua

influência sobre o romance é preponderante e irreversível.

De acordo com a referida citação, portanto, tais espaços carregam histórias, e é a cidade

quem anseia por relatá-las. Porém, para que se possam decodificar tais relatos, advindos

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da cidade, necessário se fará, enxergá-la como algo maior que um simples cenário onde

se desenrola a trama, é fundamental concebê-la como protagonista, para que se possa

escutar mais e entender melhor suas histórias, seus personagens e seus espaços.

Nessa perspectiva, e na esteira das discussões sobre os espaços na narrativa de

Jorge Amado, Rafael Lucas (2004, p. 202) chama, de “espaços seletivos”, os locais

típicos das tramas amadianas. Em Jubiabá, esses espaços se encontram muito bem

definidos, e tanto o personagem central como os secundários os habitam. Na trama, é

notório que a rua pertence aos menores abandonados, bêbados, vadios e prostitutas –

Antônio Balduíno, por sua vez, na condição de garoto de rua, é dono desse espaço, e

Amado (2000, p. 53) descreve bem essa relação entre o “possuidor” e a “coisa

possuída”:

Antônio Balduíno agora era livre na cidade religiosa da Bahia de Todos os

Santos e do pai-de-santo Jubiabá. Vivia a grande aventura da liberdade. Sua

casa era a cidade toda, seu emprego era corrê-la. O filho do morro pobre é

hoje o dono da cidade.

Em Jubiabá, além desse domínio sobre os espaços colocados por Jorge Amado,

seus personagens habitam locais de convergência, onde importantes decisões são

tomadas e grandes encontros acontecem. Um desses espaços é o “bar”, espaço de

confluência e confraternização, que aparece como símbolo de democracia e acaba por

testemunhar importantes fases da vida dos personagens. O bar, de nome sugestivo,

“Lanterna dos Afogados” contribui para, como um farol, guiar o “negro” Antônio

Balduíno e recolocá-lo no rumo do seu correto itinerário sempre que algo o faz dele

desviar. É no referido bar que Baldo encontra os seus amigos, que afoga as suas

mágoas, cai na bebedeira, recebe informações e instruções, faz reflexões e prepara-se

para enfrentar questões outras em sua vida. Em última análise, novamente traz-se aqui a

voz de Rafael Lucas (2004, p. 203) como um catalisador, para revelar que “[...] De uma

maneira mais geral, o bar popular, com sua vitalidade e seus dramas sociais, opõe-se aos

lugares ‘burgueses’ paralisantes de conformismos e de hipocrisias, seguindo a

semantização antitética de Jorge Amado.”

3.1.1 A CIDADE DE LUANDA(INO)

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A cidade de Luanda foi contada e cantada por vários autores. Porém, foi em José

Vieira Mateus da Graça que Luanda encontrou representação peculiar, a ponto de diluir-

se no autor e emprestar-lhe o nome. Isso fez com que José Mateus passasse a ser José

Luandino, evidenciando uma simbiose “homem e cidade” que iria além do nome, antes

encontraria, no plano do imaginário, talvez, um dos seus maiores engendradores,

transformando o “amador” em “coisa amada”. Luandino carrega no nome a marca de

uma cidade sofrida pelas agruras do colonialismo e parece, no plano social, sofrer as

mesmas dores da urbe, ou seja, a invasão, a adulteração, a privação de liberdade, o

exílio e a fragmentação cultural.

A Luanda retratada em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier é uma cidade

ainda dominada pelo regime colonial – apesar de já se notar na cidade, articulações com

o objetivo de libertação nacional – e com uma iminente modernização. Domingos

Xavier – protagonista da trama – é um operário tratorista que trabalha numa empresa de

construção de barragem cujo objetivo é represar as águas do poderoso Kuanza –

principal rio de Angola, muitas vezes tido como símbolo de unidade nacional. Com

isso, Luanda começa a dar os primeiros passos na tentativa de se modernizar. Não

obstante as visões que se têm, na narrativa, do centro da cidade, com seus “carros

bonitos”, suas ruas pavimentadas e seus prédios de luxo – elementos típicos de uma

modernização, nos moldes do pensamento positivista –, a trama denuncia a existência

de uma Luanda periférica, das “cubatas”, isto é, das casas de pau-a-pique, de ruas de

barro batido e de musseques, sem o básico do saneamento. Walter Benjamin (1974, p.

17) chamou a atenção para essa questão ao dizer que “[...] As periferias são o estado de

exceção da cidade, o terreno em que ininterruptamente se desencadeia a batalha que

decide entre a cidade e o campo.”

A obra A Vida Verdadeira de Domingos Xavier traz, como denúncia, a

existência de uma modernização que acontece apenas em uma parte da cidade – a parte

onde vivem os brancos, e não-negros, pertencentes aos grupos de maior poder

econômico. É, como coloca Benjamin (1974, p. 17), “[...] a luta corpo a corpo dos

postes de telégrafos contra as piteiras, dos alambrados contra as altas palmeiras, dos

vapores dos fétidos corredores contra a sombra unida das bananeiras” [...].

Luandino Vieira cria, em suas narrativas, personagens que refletirão a própria

condição dos espaços da cidade de Luanda. Enquanto, nas narrativas amadianas, Jorge

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Amado parece partir dos espaços para contar as histórias dos personagens; Luandino

parece seguir em marcha contrária, partindo dos personagens para contar as histórias

dos espaços angolanos. Na trama, vários são os personagens que exibem a real condição

espacial de Luanda, tais como: Xico Cafundanga, um office-boy que representa o

funcionário burocrático a expor o espaço das grandes corporações que começam a surgir

na capital de Angola; Silvestre, homem branco, engenheiro, símbolo da presença da

técnica e do processo de construção de grandes obras de engenharia civil na cidade; e o

alfaiate Mussunda, que representa a presença na cidade dos funcionários autônomos,

organizados em oficinas e ateliês que ficam nos subúrbios de Luanda.

Francisco João – Xico Cafundanga para os seus – representa a presença do negro

alfabetizado em língua portuguesa que começa a fazer parte do mercado de trabalho

formal na cidade de Luanda, e tal formalidade se traduz, em algumas passagens da

narrativa, em elementos simples, como a “habitual farda de caqui” que o personagem

usa, ou na seguinte descrição feita pelo narrador: “[...] nessa tarde, cinco horas, o

contínuo Francisco João, da secção de contabilidade, pediu licença ao chefe e saiu mais

cedo [...]” (VIEIRA, 1977, p. 18). Não obstante a condição de trabalhador formal, na

trama, pode-se observar que Xico Cafundanga tem uma relação com a cidade que infere

um reconhecimento de uma cidadania fragmentada, face à sua condição de homem

negro, pobre e colonizado, dentro de um sistema racista e preconceituoso. A atitude do

personagem frente a um fato que ocorre no interior de um ônibus, em Luanda, no qual

um operário é humilhado por encontrar-se sujo, evidencia o seu receio de interferir em

favor do referido operário, por saber que “[...] se ia falar, na discussão ia nascer com

certeza a pancada e daí a polícia e a prisão durante dias ou semanas. Porque justiça de

polícia é justiça de quem manda, ele e o operário iriam de certeza para a prisão”

(VIEIRA, 1977, p. 40).

Na narrativa, ao tomar um ônibus, “Xico” transita do centro – que exibe uma

cidade comercial, urbana e com traços de modernidade, ou seja, grandes companhias e

agências de correios, carros luxuosos e trabalhadores formais – para a periferia –

marcada por uma cidade de existência quase que rural, das cubatas de pescadores, onde

“[...] mulheres sopravam seus fogareiros de latas, assavam peixes ou cozinhavam panela

de feijão, velhos pescadores cachimbavam nas portas ou filosofavam em grupos [...]”

(VIEIRA, 1977, p. 40-41). Essa questão aparece na obra certamente para denunciar a

histórica diferença entre o centro e a periferia da cidade no processo de urbanização,

como sugeriu Benjamin nas citações anteriormente colocadas. Enquanto o centro tem a

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presença de pavimentação asfáltica, a periferia é carente desse elemento, que, mais uma

vez, é símbolo da fronteira entre ricos e pobres, negros e brancos. Tal diferença sugere

ainda o aparecimento dos musseques, que são áreas desassistidas, onde vive a maior

parte da população negra e pobre de Luanda.

A cidade, na obra de Luandino, serve como importante termômetro para se

medir a temperatura sócio-racial de Luanda. Por meio do urbano, o autor vai dando

conta de apontar as diferenças entre os grupos, denunciando as suas distintas condições

de vida.

O personagem engenheiro Silvestre, não obstante definir-se como angolano e ser

amigo dos angolanos negros, é símbolo de uma parcela da população angolana branca e

escolarizada que certamente habita a parte considerada nobre da cidade: “[...] lá em

cima, no topo dos morros frescos, viviam, em camaratas de alumínio, os operários

brancos, e mais longe, em casas com belos jardins à volta, de relva cuidada, os

empregados superiores da empresa.” (LUANDINO 1977, p. 19) – evidentemente, tal

personagem é um desses empregados superiores, uma vez que a sua presença na trama

revela a condição de vida da população branca e escolarizada de Luanda, bem como a

existência de espaços privilegiados na cidade, os quais contrastam com as imagens da

maioria dos espaços de Luanda, a exemplo do chamado “bairro operário”, onde, por

sinal, vive o personagem alfaiate Mussunda.

Enquanto o autor, na citação acima, descreve a beleza da residência onde

provavelmente vive o engenheiro Silvestre; por outro lado, também o faz em relação à

casa do alfaiate Mussunda, porém apontando as mazelas da sua moradia, como pode-se

ver em:

A casa era uma construção pequena, de pau-a-pique, pintada de cor-de-rosa,

rodapé preto, daquela tinta que não presta e suja quem que se encosta nela. A

sala central, que dava saída no quintal por onde Miguel tinha entrado, era a

oficina. Aí dois aprendizes alinhavam ou retiravam alinhavos,

desmanchavam bainhas, faziam pequenos trabalhos sem responsabilidade.

(LUANDINO 1977, p. 65)

Pode-se perceber, na precedente citação, que Mussunda simboliza a presença do

trabalhador autônomo, repassando, ainda, o seu conhecimento para outras pessoas. Esse

personagem remete ao viver antigo dos angolanos – organizados em corporações, com

aprendizes e mestres destinados à subsistência e aos ensinamentos dos ofícios aos mais

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novos. Parece que Luandino pretendeu, a partir dos seus personagens, evidenciar uma

realidade que se traduz não só pelo urbano, mas também pelo próprio mundo do

trabalho.

Acredita-se que, nas obras Jubiabá e A Vida Verdadeira de Domingos Xavier,

tanto a cidade descrita por Jorge Amado quanto a descrita por Luandino desvelam uma

realidade que se plasma nas diversas relações entre os homens e seus múltiplos espaços,

colocando a urbe como sendo o local das infinitas possibilidades de interação e

interpretação social.

Na esteira dos debates em torno das interações entre “homem” e “cidade”, e para

melhor se entender as múltiplas relações existentes entre esses dois elementos

comunicativos em ambas as obras, abre-se, a partir de agora – tal como na subseção

anterior –, um breve parêntese, para se analisar a relação entre uma personagem

feminina da obra A Vida Verdadeira de Domingos Xavier e a cidade de Luanda, no

sentido de visualizar a referida cidade sob a marca da personagem secundária Maria,

esposa da personagem Domingos Xavier.

A participação de Maria na trama começa a partir da prisão do seu marido. Com

um filho pequeno – o miúdo Sebastião –, Maria se vê agora obrigada a peregrinar pela

desconhecida cidade de Luanda, à procura do esposo. Com isso, com o seu caminhar

pela cidade, a personagem acaba por exibir uma Luanda particular, ou seja, uma urbe

que se desvela sob o olhar de uma personagem secundária, que, com a prisão do

protagonista, ganha espaço na trama. Com essa personagem, Luandino parece querer

indiciar a necessidade de uma mudança no comportamento da mulher angolana – muitas

vezes submissa, questão típica de sociedades patriarcais –, para que ela venha a

abandonar o lugar comum que sempre lhe foi estabelecido pelos homens e passe a

interagir com a cidade, agora na condição de sujeito – e é justamente a partir dessa

interação que Maria expõe uma cidade que transita entre as imagens sociais da pobreza

e da miséria e as imagens das paisagens naturais de Luanda.

Esse trânsito da personagem pela cidade inicia-se, num primeiro momento, após

a prisão de Domingos Xavier – como já foi dito. Maria, então, parte da região de

Cambambe para Luanda, notadamente para o musseque do “Sambizanga”, a fim de

encontrar uma velha amiga – sá Teté –, e, assim, conseguir apoio para procurar o seu

esposo. Chegando lá, ela é aconselhada por amigos a ir até a “Administração”, falar

com o secretário, na esperança de encontrar Domingos. É nesse instante, na caminhada

de Maria rumo à vila onde funciona o referido órgão, que se dão as primeiras interações

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da personagem com a cidade da qual ela se encontrava longe havia doze anos. Nesse

momento da narrativa, Luandino (1977, p. 30) revela uma outra cidade, uma Luanda

multicores:

Naquele dia Maria fez uma pequena trouxa e se dirigiu na vila, manhã muito

cedo, estrada abaixo. O sol ainda não nascera e o capim molhado do cacimbo

da noite estava bom nos pés. Ao longe as silhuetas azuis dos morros se

perdiam na fina camada de cacimbo que lhes envolvia. O Kuanza brilhava

suas águas preguiçosas, adormecidas naquele sítio largo, junto à jangada. A

vila se escondia entre as acácias floridas, bananeiras, milheirais, tudo na sua

volta era verde, fresco e novo e as águas do rio tinham também cor verde.

Muito diferente das descrições de Luanda feitas em outros momentos da trama,

Luandino agora revela uma cidade que parece demonstrar, em cores, a sua sensibilidade

para com a causa da peregrina personagem, colocando em destaque a cor “verde”,

possivelmente em alusão à esperança que Maria deve ter de encontrar o seu

companheiro. Na descrição do autor, Luanda é agora uma cidade na qual, não obstante o

asfalto, os carros, os prédios e as companhias, símbolo da modernidade positivista –

ainda se pode ver os “[...] januários voando baixo, em bandos, nas pequenas flores

amarelas do capim [...]” (VIEIRA,1977, p. 30). No entanto, por trás de toda essa beleza,

a caminhada de Maria pelos musseques da cidade desnuda também a dura realidade

enfrentada por seus habitantes e deixa transparecer a situação de miséria desse povo:

[...] Maria reparando como assim o musseque estava cheio, casa com casa,

muita gente vivendo na mesma cubata, meninos nus de grandes umbigos

chupando ranho, brincando na areia, ou sentados, fixando seus olhos grandes.

(VIEIRA, 1977, p. 54)

A peregrinação de Maria pela cidade parece um pretexto de Luandino para trazer

à tona uma realidade de Luanda que se plasma na diferença entre os seus espaços e,

consequentemente, na diferença entre os indivíduos que os habitam. Uma das

passagens da obra que evidencia essa questão é a interação entre Maria, não habitante

da cidade, mas do campo, e miúdo Joãozinho, morador da urbe:

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[...] Maria, naquela hora da tarde, desceu com o menino até perto daquelas

acácias, na estrada de alcatrão, para adiantar apanhar maximbombo. Aí o

menino esperto da cidade foi pondo conversas com Maria, falando como era

este maximbombo e ele mesmo quem ficou com as moedas para pagar, o que

ele mais gostava. (VIEIRA, 1977, p. 59, grifo meu)

Luandino, através dessa passagem, marca a diferença entre o intenso processo de

urbanização de Luanda em relação a outras áreas. A cidade-capital já dava sinais de

modernização, com a introdução de transportes coletivos com tarifas definidas, por

exemplo. Com o trânsito da personagem pelas ruas de uma Luanda desconhecida, o

autor consegue alinhavar as pontas soltas que explicam o excludente processo de

urbanização da cidade e possibilita a provocação de olhares múltiplos na direção dos

seus distintos espaços.

3.2 LUANDA E BAHIA: MULTIPLICIDADES

A cidade sempre foi – e continua a ser –, palco das mais variadas histórias. O

espaço urbano é já, há bastante tempo, o local preferido pelos autores para darem vida

às suas narrativas, talvez pelo fato de ser a cidade naturalmente um lugar de pouca

síntese e muito conflito. Assim sendo, o olhar arguto do autor mira a cidade como um

local com predisposição para envergar ricos acontecimentos, pela peculiar natureza do

espaço urbano, que congrega diferentes classes sociais e diferentes matizes étnicas.

Questões como a da própria urbanização desmedida, da exploração dos trabalhadores

pelas fábricas, da infância abandonada, do embate entre negros e brancos, e várias

outras temáticas figuraram no espaço urbano.

Com esse explorar constante, criaram-se sobre a urbe várias representações, ou

seja, uma pluralidade de imagens foi projetada por diferentes autores sobre esse

intrigante espaço, resultando em um universo infinito de múltiplas visões. Como afirma

Sandra Pesavento (1999, p. 09), a cidade é objeto “[...] de múltiplos discursos e olhares,

que não se hierarquizam, mas que se justapõem, compõem ou se contradizem, sem, por

isso, serem uns mais verdadeiros ou mais importantes que os outros.” Tomando-se essa

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multiplicidade de olhares sugerida por Pesavento, tornam-se interessantes análises sobre

as representações citadinas, visto que com elas será possível não só desvelar as diversas

imagens projetadas acerca da cidade, mas também ajudar a pensar e perceber formas de

abstração de certas sociedades.

O abordar constante da urbe pela literatura acaba por criar um imaginário em

torno desse espaço, produzindo, vez por outra, uma ideia do urbano que infiltra a

realidade ou, nos termos de Audemaro Taranto Goulart (2006, p. 144), que “desrealiza”

a realidade. A cidade passa a ser, então, uma metáfora com sentidos flutuantes, ou seja,

passa a assumir o significado resultante de cada abstração realizada nessa direção. E é o

escritor o ator que, por entre as linhas traçadas em cada narrativa, metaforiza a realidade

e reconstrói, no plano subjetivo, uma cidade antes real, concreta, lançando-a nos

arquivos do imaginário popular. Isso produz, certamente, uma identificação com a

metáfora diferente da que se tem com a cidade concreta, conforme Taranto Goulart

(2009, p. 144) “[...] a literatura opera, pois, com uma linguagem que é um verdadeiro

mosaico de cenas [...]”.

Segundo Sandra Pesavento (1999, p. 10), o imaginário é um sistema de ideia e

imagem de representação coletiva que tem a capacidade de criação do real. Indo-se além

desse conceito, o imaginário é uma espécie de planilha constantemente alimentada por

múltiplos elementos, resultante quase sempre do olhar privilegiado que se lança sobre

algo. Logo, o olhar que o escritor lança sobre a cidade, para construir a sua narrativa,

encarrega-se de nutrir o imaginário coletivo concernente ao urbano e inventar a cidade

“real”, pois como afirma Pesavento (1999, p. 08), “[...] a representação do mundo é, ela

também, parte constituinte da realidade”.

Sendo verdadeira tal afirmação, então, ao lançar-se luz nas representações

literárias sobre a cidade, poder-se-á ter uma noção de uma vida citadina passada ou

presente ou, pelo menos, imaginá-la. Poder-se-á sentir o modus vivendi de uma

determinada sociedade, bem como, pensar a constituição do elemento humano e suas

relações sociais. Além que, poder-se-á perceber e entender sociedades que estão

próximas ou distantes, no tempo ou no espaço, e até comparar as diferentes formas de

codificação estética. Logo, partindo-se desse princípio, é que se tenta aqui escutar uma

“conversa” entre dois imaginários – o do baiano Jorge Amado e o do angolano

Luandino Vieira – acerca da cidade, e perceber nessas duas margens, se a mesma brisa

que sacode a mulemba em Luanda viaja, através do Atlântico, e balança os coqueiros da

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Cidade da Bahia. Isto significa perceber se há relações nas formas como esses autores

representam o urbano.

Provavelmente o que aproxima esses dois autores, além de questões outras, é a

função que eles assumem, em seus países, de vanguarda de defesa dos desfavorecidos,

de crítico das mazelas sociais, ou, ainda, de trincheira sociopolítica – condições, por

sinal, em sintonia com o que disse Walter Benjamin (1985a, p. 188), segundo o qual

“[...] todo artista devia escolher – consciente ou não – a serviço de quem colocaria a sua

arte”. E, nas narrativas em estudo, tanto Amado quanto Luandino, promovem um tipo

de política que coloca a cultura como elemento de libertação e luta dos menos

favorecidos – cultura a qual, nos termos de Carlos Magalhães (2012, p. 17) “[...] é

olhada como a memória do povo, como universo simbólico para onde confluem as

diversas representações de sua vida [...]”. É fundamental, no entanto, entender que

Amado e Luandino, embora pareçam dialogar, em suas narrativas a partir de lugares

distintos, o fazem com códigos muito similares, que se interpenetram.

Nada parece mais caro, nas obras dos referidos autores, que o imaginário em

torno da cidade. Seja ela a Cidade da Bahia ou a cidade de Luanda, as ruas e avenidas,

becos e vielas, subidas e descidas marcam a estrutura topográfica que dá vida aos

romances e novelas desses autores. Em Jubiabá e em A Vida Verdadeira de Domingos

Xavier, a cidade, como personagem, fala a partir de suas construções e espaços sociais,

conforme assegura Magalhães (2012, p. 197) quando afirma que “[...] o texto literário

faz a leitura da escrita da cidade através dos traços e impressões deixados pela

arquitetura e pelo traçado urbano [...]”. Os diálogos percebidos entre a cidade e os

personagens das tramas se dão por meio de um intrínseco relacionamento que vai além

do verbal, mas invade o plano da imaginação e das trocas estéticas. É na cidade onde

poesia e reivindicação social, arquitetura e denúncia se misturam, para temperar obras

originalmente marcadas por apelos contra as injustiças que acometem os

desfavorecidos.

Amado e Luandino fazem da cidade o espaço ideal para desenrolar narrativas,

cuja temática aponta para a denúncia das mazelas sociais. Sendo assim, ambos os

escritores parecem ouvir a voz de Benjamin (1985b, p. 108) quando o referido autor

sugere:

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Construir topograficamente a cidade, dez vezes, cem vezes, a partir de suas

passagens e portas, de seus cemitérios e de seus bordéis, de suas estações [...]

E as mais secretas figuras da cidade, as suas camadas mais profundamente

interiores: assassinatos e rebeliões, os nós sangrentos nos laços das ruas,

gemidos do amor e calores ardentes.

A construção topográfica da cidade, sugerida por Benjamin, é o que irá ocorrer

nas narrativas aqui estudadas, onde tanto Amado quanto Luandino irão delinear o

urbano, sondando os diversos espaços que o integram e revelando as tensões que os

caracterizam.

Para a professora Eneida Leal Cunha (2000, p. 128):

[...] a cidade é a verdadeira cena em que se encontram o autor moderno e seu

público, é o espaço que lhes é familiar e, ao mesmo tempo, inquietante; [...]

para a modernidade, a cidade assume importância e interesse extraordinários,

como o cenário onde convivem intimamente – e confrontam-se – os grupos

sociais, as diferenças de classe, de etnia, de gênero [...].

Nessa marcha, nas narrativas em estudo, a Cidade da Bahia e a cidade de Luanda são

palco das mais constantes demonstrações de injustiça e abandono social, perpetrados

pelo poder público, de quem se espera a função de assegurar a salvaguarda da

população, evitando o seu estado de abandono e miséria – ou, como assevera Carlos

Magalhães (2012, p. 38), São “Espaços das epidemias, da dor social, do arremesso ao

mundo da sarjeta e da indignidade [...]”. Tais espaços revelam a realidade vivenciada

pelos diversos grupos sociais e exibem as tensões presentes em uma mesma cidade,

dividida por vários critérios.

José Luandino Vieira, enquanto autor moderno, denuncia já nos seus primeiros

escritos – como no livro intitulado A Cidade e a Infância –, o clima de tensão entre

negros e brancos, bem como a exclusão e a marginalidade em Luanda. Na obra,

Luandino desvela, por meio de uma estética amparada no urbano, uma modernização

excludente que, desde muito cedo, coloca pobres e ricos, brancos e negros literalmente

em lados opostos no plano social e topográfico. O livro apresenta uma série de dez

contos onde a temática do urbano se faz presente. Merece atenção especial o conto A

fronteira de asfalto, no qual o autor engendra as primeiras provocações a respeito da

separação entre negros e brancos, que se dá pelas malhas topográficas – ou seja, a

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própria cidade estabelece, por meio de fronteiras consuetudinárias, os limites de trânsito

e convivência entre os habitantes. Ricardo e Marina, personagens do conto, encontram-

se separados por uma fronteira não declarada, mas sentida por todos que reconhecem a

diferença entre o barro vermelho e o asfalto. O barro é a deixa para a população negra e

pobre dos bairros de Luanda, que enxerga, na cor avermelhada do barro batido, o seu

local de existência, e que sempre pode perceber no asfalto o início de um campo, cuja

travessia inspira cuidados. O “asfalto” é outro “mundo”, é o “mundo” dos brancos e

ricos, e Ricardo, na condição de garoto negro, reconhece tal diferença:

Virou os olhos para o seu mundo. Do outro lado da rua asfaltada não havia

passeio. Nem árvores e flores violetas. A terra era vermelha. Piteiras. Casas

de pau-a-pique à sombra de mulembas. As ruas de areias eram sinuosas. Uma

tênue nuvem de poeira que o vento levantava cobria tudo. A casa dele ficava

ao fundo [...]. (VIEIRA, 2007, p. 40)

Com isso, Luandino Vieira entra de vez no debate em torno da separação entre

habitantes de uma mesma cidade e usa o urbano para expor o elemento que

estabeleceria o lugar de cada indivíduo na estratificada cidade de Luanda: a cor. Ricardo

é negro, portanto, a ele cabe a “terra vermelha”; Marina é branca, a ela compete o

“asfalto”. A terra vermelha e o asfalto são, respectivamente, metonímias da cidade alta,

pobre e desassistida, e da cidade baixa, dos carros de luxo, das casas grandes e limpas,

que separam os bairros negros de Luanda – os chamados musseques –, dos bairros dos

habitantes brancos. O conto é, ao mesmo tempo, um debate em torno das cores

avermelhada do barro e negra do asfalto, numa alusão metafórica aos embates inter-

raciais que também criam as suas próprias fronteiras e estabelecem, direta ou

indiretamente, o lugar de cada homem em um tácito mapa de navegação social.

Resenhar uma parte do mencionado livro serve como estratégia para se analisar

o que acontece na obra em estudo, A Vida Verdadeira de Domingos Xavier. Nela, a

separação entre os habitantes também segue prismas raciais, visto que a maioria pobre

da cidade de Luanda é negra e mestiça; flagra-se ainda o triste contraste entre as duas

cidades – alta e baixa –, a dura realidade encarada pela população trabalhadora e a

população desempregada, sem falar na própria divergência estrutural que divide os dois

espaços. Luandino conduz o leitor a cada parte de Luanda, apresentando suas

especificidades e fazendo com que a cidade, direta ou indiretamente, conte a verdadeira

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história por trás de uma novela que aparentemente deseja mostrar apenas um caso de

injustiça e cerceamento de direito. O autor, em sua narrativa, deixa transparecer que a

estória de Domingos Xavier é apenas um pretexto para o desenvolvimento de histórias

que vão, por meio do urbano, apresentar seus verdadeiros personagens.

No que concerne à cidade de Luanda, o tempo da narrativa dá conta de informar

que os fatos nela se passam ainda sob a égide de um regime colonial – questão que leva

a crer em uma situação de separação entre colonizados e colonizadores, perpetrada pelo

confinamento da população negra, nativa, nos morros, e dos não negros, descendentes

dos colonizadores, no “asfalto”. Tudo isso é, antes de tudo, uma norma da

administração colonial, que sempre reserva o melhor para o colonizador em detrimento

do colonizado, criando assim uma consciência do lugar de cada um, em uma

estratificada cidade.

Nas narrativas de Luandino, a relação dos personagens com a cidade de Luanda

é muito forte e evidente. No romance Nós, os do Makuluso, por exemplo, já nas

primeiras páginas, o protagonista, que é quem narra os fatos, ainda garoto, expressa os

seus sentimentos sobre aquela cidade e, direta ou indiretamente, a desnuda e apresenta o

seu fascínio sobre ela:

Maninho sorri, todo ele se deixa encharcar de sol na ruela, olha-lhe e eu sei o

que ele está a dizer-lhe nesse riso: que, da nossa terra de Luanda, eu gosto só

os sítios poucos; que, da nossa terra de Luanda, chamo só Luanda à Rua dos

Mercadores, à Rua das Flores, à Calçada dos Enforcados, aos musseques do

antigamente... (VIEIRA, 2004, p. 11)

Assim, com uma estética comprometida com os mais pobres e desassistidos, Luandino

dá voz aos marginalizados e revisita os seus espaços, apresentando os musseques, os

becos, as ladeiras – espaços destinados à pobreza –, em contraste com os espaços

privilegiados de Luanda – os quais, na narrativa, o autor deixa de evidenciar, mas

sugere a sua diferença em relação aos demais.

Na obra A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, é o miúdo Zito – criança

negra, pobre e habitante do musseque – quem, quando em visita a outros locais na

cidade, tacitamente percebe a diferença entre estes e aquele onde vive. Em definitivo, a

existência de uma espécie de barreira, com limites muito bem conhecidos por todos, faz

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com que o musseque e a cidade pareçam zonas isoladas em uma mesma cidade, também

constituindo o asfalto como fronteira:

[...] Zito gostava ir. Além de ver tudo com seus olhos curiosos, os carros

bonitos que não tinha lá em cima, as casas grandes e limpas [...] Zito e vavô

Petelo cruzavam as ruas asfaltadas e desciam no meio do rio negro que

desagua na cidade branca. Calçada da Missão abaixo, com árvores velhas

chorando seiva nos passeios [...] No musseque, a essa hora, as mulheres, os

inválidos, os desempregados, os vadios, se arrastam nas mais diferentes

ocupações. (VIEIRA, 1977, p. 12, grifo meu)

Toda essa descrição ora observada pelo miúdo Zito, ora descrita pelo narrador,

traz à tona a questão dos apartheids sociais que estão presentes em Luanda no processo

estabelecido pelo Império colonial português; e acaba por atualizar uma realidade

contida nas grandes metrópoles, onde a separação dos grupos segue critérios conhecidos

por todos: a cor e a condição social. Luandino faz sentir a diferença entre uma realidade

e outra, entre o barulho e a movimentação presente na cidade baixa – com suas ruas

asfaltadas, seus carros e casas grandes – e o musseque – com seus barracos de teto de

zinco, suas ruas de terras vermelhas, seus vadios e trabalhadores acuados “pela rusga

geral dos cipaios e das tropas [...]” (VIEIRA, 1977, p. 12). Essa separação denunciada

na narrativa faz com que os indivíduos habitantes dos espaços menos privilegiados

criem, em seus imaginários, a ideia de inferioridade em relação aos outros indivíduos

dos espaços privilegiados, causando sensações de deslocamento quando um penetra o

espaço do outro. É o que acontece na narrativa com o personagem miúdo Zito, para citar

um exemplo, no momento de sua ida à cidade, à procura de Xico Kafundanga: por ter a

necessidade de entrar na companhia em que este trabalha, miúdo Zito é acometido por

certo medo, como quem está na iminência de adentrar em um espaço para si proibido:

[...] É uma casa muito grande e alta, com muitos vidros. As paredes parecem

é só vidro, por isso miúdo Zito sempre tem medo de entrar. Se sente preso

quando empurra a porta e se acha em tão grande sala, toda cheia de figuras

que não percebe. (VIEIRA, 1977, p. 13-14)

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O sentimento de deslocamento expresso no comportamento do citado

personagem atualiza modernamente um sentimento comum, vivenciado por habitantes

de zonas consideradas periféricas em relação aos chamados “bairros nobres”. O

sentimento que se percebe no comportamento de miúdo Zito é de que nada pertencente

à “cidade” estava para ele – como as paredes de vidro da companhia – mas, sim, as ruas

enlameadas do musseque, a poeira do barro vermelho, os barracos de pau-a-pique

cobertos de zinco. Para ele “[...] menino do musseque, roto e sujo, coçando pé descalço

no pé descalço [...]” (VIEIRA, 1977, p. 14) – a cidade de Luanda era território proibido,

o qual lhe é permitido, no máximo, admirar.

É curiosa a habilidade do autor para usar, na obra, de alguns elementos que

realçam a denúncia da separação entre os habitantes de Luanda. Luadino faz das

descidas e subidas das ladeiras da cidade elementos comunicantes da própria condição

de vida dos indivíduos. O “alto” e o “baixo” significam mais que simples elementos da

topografia de Luanda – eles querem revelar, acima de tudo, o valor de cada habitante

nessa urbe. Na trama, o “alto” e o “baixo” revelam valores inversos na própria acepção

terminológica – ou seja, quem está no alto são os pobres e, no baixo, os mais abastados.

Encontram-se explicações a esse respeito, observando o que Rafael Lucas (2004, p.

200-201) afirma sobre o espaço amadiano. Para o autor, é Jorge Amado quem provoca

uma subversão dessa ordem do “alto” e “baixo”:

[...] Desta realidade que releva da geografia social Jorge Amado extrai um

novo simbolismo que ele explora bastante nas suas evocações da Bahia. É

preciso subverter uma expectativa rígida segundo a qual a verticalidade

associada à hierarquia social remete a classes sociais baixas, a um povo de

baixa renda, a bairros miseráveis, à escória da sociedade. Segundo a mesma

lógica, o espaço ascensional corresponderia ao das classes abastadas: elevar-

se na sociedade. Ora, uma tal associação não é mais pertinente no espaço

baiano. Os lugares elevados da geografia urbana, em particular as ladeiras e

os morros significam sempre a decadência social. É a própria idéia de queda

que é parasitada pela da ascensão decadente. De agora em diante subir nesse

espaço urbano é decair [...].

Certamente, as ideias de “alto” e “baixo”, na narrativa de Luandino, parecem

seguir o mesmo código da narrativa amadiana, que associa a ideia de “alto” à própria

ideia de queda – ainda nos termos de Rafael Lucas. Porém, essa relação de inversão que

se estabelece entre as significações dos termos, em determinado momento, faz-se

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ausente na narrativa de Luandino e, diferentemente da amadiana, assume a sua

dimensão culturalmente consagrada – ou seja, do “alto” como símbolo de elevação

social. Tal fato pode ser verificado na descrição a seguir que Luandino faz da morada

destinada aos diversos trabalhadores da barragem:

O acampamento ficava longe, fora do estaleiro, metido numa baixa, à

esquerda da estrada, onde se alinhavam as cubatas iguais dos operários e

trabalhadores negros da barragem. Um regato de água escura e porca corria

pela sanzala, carregando consigo os detritos diários dos habitantes, e perdia-

se, em baixo, num tufo de capim verde. [...] Lá em cima, no topo dos morros

frescos, viviam, em camaratas de alumínio, os operários brancos, e mais

longe, em casas com belos jardins à volta, de relva cuidada, os empregados

superiores da empresa [...]. (VIEIRA, 1977, p. 19, grifo meu)

Parece que o autor joga com as referências ligadas às ideias de “alto” e “baixo”, visto

que o uso dos elementos da geografia de Luanda força o leitor a imaginar os habitantes

dos diferentes lugares da cidade, pois ora estar “no alto” significa status, ora,

desprestígio; e estar “por baixo” também pode significar poder ou demérito.

Ana Rosa Neves Ramos muito bem traduz e fundamenta a ideia da estratificação

entre grupos, e o faz a partir da reflexão acerca da desigualdade e da exclusão –

voltando à questão dos altos e baixos. Para ela:

[...] A desigualdade implica um sistema hierárquico de integração social.

Quem está embaixo está dentro, e a sua presença é indispensável. Ao

contrário, a exclusão assenta num sistema igualmente hierárquico mas

dominado pelo princípio da exclusão: pertence-se pela forma como se é

excluído. Quem está embaixo está fora. Estes dois sistemas de hierarquização

social, assim formulados, são tipos ideais, pois que, na prática, os grupos

sociais inserem-se simultaneamente nos dois sistemas, em combinações

complexas [...]. (RAMOS, 2006, p. 58)

A radiografia da cidade de Luanda que se estabelece em A Vida Verdadeira de

Domingos Xavier, feita pelo prisma sócio-racial, pode ser transposta para a Cidade da

Bahia, de Jubiabá. Na obra, Amado, apesar da consciência de que tal cidade não vive

sob o domínio colonial – como Luanda –, empenha-se em mostrá-la dividida entre

pobres e ricos, reservando, a estes, os o requinte dos sobrados em ruas calmas e

tranquilas; e, aqueles, os morros, as vielas e as sarjetas da cidade baixa. Amado não

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evita pôr em discussão as divergências que os separam nem as diferenças em suas vidas,

desveladas a partir da descrição das residências do morro do Capa-Negro e da cidade

baixa:

No morro do Capa-Negro as casas eram pequenas, de barro batido, portas de

caixão, cobertas de zinco. Tinham duas divisões apenas: a sala de jantar e o

lugar onde dormiam. Mas o sobrado do comendador, não. Como era grande,

quantos quartos tinha, alguns até fechados, um quarto de hóspedes sempre

mobiliado esperando alguém que nunca vinha, salas enormes, cozinha bonita,

a latrina melhor que qualquer casa do morro! [...] Gansos passeavam no

jardim florido e mangueiras cresciam na alameda que ficava ao lado da casa.

(AMADO, 2000, p. 43)

Ideia semelhante à de Luandino acerca do local de cada indivíduo na estrutura

social e topográfica surge na narrativa amadiana, que, ao discutir a posição social dos

habitantes da cidade, define a sua posição na topografia. Em Jubiabá, Jorge Amado

sonda o imaginário da criança e também desnuda a conflituosa relação entre a infância e

a cidade. No capítulo que leva o nome de “Infância Remota”, Baldo – similar a miúdo

Zito –, olha de cima do morro para a cidade baixa e se encanta com as suas luzes, com

os rumores que sobem de lá para o morro, com o barulho que caracteriza a Cidade da

Bahia:

[...] Antônio Balduíno ficava com os olhos espichados em direção à cidade,

esperando. Seu coração batia com mais força enquanto a escuridão da noite

invadia o casario, cobria as ruas, a ladeira, e fazia subir da cidade um rumor

estranho de gente que se recolhe ao lar, de homens que comentam os

negócios do dia e o crime da noite passada. (AMADO, 2000, p. 8)

Fica evidente o entendimento de Amado sobre a existência de duas cidades, de

dois espaços sociais distintos, que apresentam realidades igualmente distintas: o morro e

a cidade. O morro – como já foi descrito pelo autor – enverga os seus barracos de porta

de caixão, com suas ruas cheias de lamas e repletas de indivíduos marginalizados, sejam

eles negros, mestiços ou brancos despossuídos. A cidade reflete outra realidade, a dos

casarões e sobrados de assoalhos envernizados, com igrejas suntuosas, bordadas a ouro,

e casas de azulejos azuis. Seus proprietários são comerciantes portugueses, médicos,

engenheiros, políticos e outros homens de negócios. Portanto, não se precisa ir muito

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longe para identificar o futuro reservado aos habitantes desses diferentes espaços, e, o

próprio Amado revela, já nas primeiras páginas do romance, a vida e o destino que

aguarda a cada um desses partícipes dos referidos espaços:

A vida no morro do Capa-negro era difícil e dura. Aqueles homens todos

trabalhavam muito, alguns no cais, carregando e descarregando navios ou

conduzindo malas de viajantes, outros em fábricas distantes e em ofícios

pobres: sapateiro, alfaiate, barbeiro. Negras vendiam arroz-doce, mungunzá,

sarapatel, acarajé, nas ruas tortuosas da cidade, negras lavavam roupa, negras

eram cozinheiras em casas ricas dos bairros chiques. Muitos dos garotos

trabalhavam também. Eram engraxates, levavam recados, vendiam jornais.

Alguns iam para casas bonitas e eram crias de famílias de dinheiro.

(AMADO, 2000, p. 25)

Similar ao que acontece na obra A Vida Verdadeira de Domingo Xavier, onde

Luandino evidencia a discrepância entre os moradores da cidade alta e os da cidade

baixa, no trecho acima, Jorge Amado descortina as fronteiras que separam os homens

do morro dos da cidade, denunciando a flagrante discrepância existente entre eles por

meio da exposição dos seus ofícios. O autor evidencia ainda a existência de certa

tradição social que se encarrega de promover o sucesso dos brancos ricos e vitimar os

habitantes do morro, condenando-os a uma vida de perpétua humilhação e miséria:

[...] Já sabiam do seu destino desde cedo: cresceriam e iriam para o cais onde

ficariam curvos sob o peso dos sacos cheios de cacau, ou ganhariam a vida

nas fábricas enormes. E não se revoltam porque desde há muitos anos

vinha sendo assim: os meninos das ruas bonitas e arborizadas iam ser

médicos, advogados, engenheiros, comerciantes, homens ricos. E eles iam ser

criados destes homens. Para isto é que existia o morro e os moradores do

morro. (AMADO, 2000, p. 25, grifo meu)

Bem ao estilo de texto-denúncia, com essa descrição, Amado expõe “as

vísceras” de uma sociedade marcada por certo determinismo social e, ao mesmo tempo,

atualiza uma questão que se debate contemporaneamente: a desassistência social, por

parte dos órgãos públicos, aos bairros das periferias brasileiras, que têm produzido a

mão-de-obra proletária para a cidade, enquanto que os bairros chamados “nobres” têm

se encarregado de gestar os patrões. A cada dia é mais patente o abismo que separa os

habitantes das periferias – flagrantemente negros – dos habitantes dos “centros” –

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geralmente brancos, os quais quase sempre ocupam as melhores posições na sociedade,

têm acesso à melhor educação, preenchem as vagas dos cursos mais privilegiados das

universidades públicas, bem como a maioria esmagadora dos cargos de chefia em

empresas públicas e particulares, perpetuando e consagrando, assim, uma cultura de

dominação.

Dessa forma, Amado se antecipa na discussão em torno da necessidade de ações

reparadoras – atualmente muito em voga na agenda de discussões dos movimentos

sociais – ao evidenciar a urgência de uma interferência que venha a baralhar as relações

sociais e quebrar um teorema estabelecido para perpetuar os estágios vivenciados pelo

morro e pela cidade. Essas evidências formuladas pelo escritor baiano denunciam não

só o estado de miséria em que vive a população habitante dos morros, como também

desvelam o destino que aguarda a essas pessoas, obrigadas a conviverem com a

indignidade como se digna fosse e forçadas a se marginalizarem pelas mãos do sistema

que as quer mortas. Por meio da obra Jubiabá, Jorge Amado atualiza um debate,

travado frequentemente pelas malhas do discurso sociológico, sobre a desassistência

perpetrada pelo Estado, que favorece áreas consideradas nobres em detrimento das

periferias, relegando a população dessas a um estado de abandono onde não há

alternativa, senão a marginalização e o crime. Volta-se aqui a citar Walter Benjamin

(1974, p. 17), para quem “As periferias são o estado de exceção da cidade.”

3.2.1 CIDADES: FASCÍNIO E VIDA “REAL”

Parece que tanto o miúdo Zito, em A Vida Verdadeira de Domingo Xavier,

quanto o pequeno Baldo, em Jubiabá, refletem o verdadeiro fascínio que a cidade causa

às crianças, principalmente quando marginalizadas, excluídas e tolhidas em seus direitos

fundamentais. Nas obras em estudo, as crianças, obrigadas pela própria conjuntura

sociopolítica a viverem em diferentes ambientes na cidade (morros e musseques),

exteriorizam um sentimento acerca desses locais que extrapola a curiosidade pura e

simples que lhes é peculiar, mas nutrem, em seu imaginário, uma atração por tudo que

caracteriza o espaço urbano, para elas desconhecido e em tudo diferente da sua

realidade de excluída. Sandra Pesavento (1999, p. 231) afirma a cidade como sendo um

local de constante desafio, “[...] uma personificação da modernidade, que atrai e seduz,

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mas, ao mesmo tempo, que aterroriza e faz recuar.” E pode ser por esse motivo que

Baldo e miúdo Zito, personagens de uma mesma história de exclusão e fascínio pela

cidade, apesar de demonstrarem certo encantamento pelos locais onde vivem – no caso,

o morro e o musseque, respectivamente –, anseiam por uma vida fora deles, uma vida na

“cidade”. É evidente que os morros e musseques são locais dentro da cidade, Porém, a

cidade percebida pelos referidos personagens nada mais é que aquele espaço –

geralmente com grandes movimentações, como os centros – o qual, a pesar de próximo,

é diferente do local onde eles vivem – ou, pelo menos, é assim percebido por eles,

apresenta muito mais vida, cores e luzes do que o morro, com suas ladeiras enlameadas

ou o musseque dos barracos de zinco. Amado (2000, p. 8) evidencia essa questão ao

relatar que:

Antônio Balduíno, que só fora à cidade umas poucas vezes, assim mesmo às

pressas, sempre arrastado pela tia, sentia àquela hora toda a vida da cidade.

[...] Ele ficava ouvindo os sons confusos, aquela onda de ruídos que subia

pelas ladeiras escorregadias do morro. [...] Ficava se imaginando homem

feito, vivendo na vida apressada dos homens, lutando a luta de cada dia.

Apesar de conhecer pouco a cidade, Baldo a imagina. Nos momentos em que

percebe o barulho que sobe, as luzes que se acendem, o cheiro e as cores da urbe, ele

forja, em sua memória, imagens de uma cidade que mais tarde lhe será apresentada sob

aspectos outros. Malgrado essa condição, Antônio Balduíno continua a buscar na

Cidade da Bahia a cidade sempre avistada por ele lá de cima, do morro – ou seja, aquela

por ele “imaginada”. Aqui há de se concordar com o que diz Sandra Pesavento (1999,

p. 15) quando afirma que “[...] Por vezes, essa configuração imagética da cidade pode

predominar, com os seus sentidos subjacentes, à cidade concreta habitada pelos homens

[...]”. Dessa relação entre a “cidade concreta” e a “cidade imaginada”, pode-se resultar

uma interferência desta sobre aquela, produzindo, assim “espaços e mapas mentais

como imagens do “real”, criando uma cidade, primeiro, no plano do imaginário, e

impondo à “cidade concreta” a tarefa de ajustar-se à tal imaginação.

O desejo de morar na cidade, de viver o seu clima, de respirar o seu cheiro não é

só vontade do personagem amadiano Antônio Balduíno. O miúdo Zito, personagem de

Luandino, também esboça o seu desejo de viver nesse espaço, percebido no seu espanto

e admiração diante do novo. Por conta disso, caminha pela cidade “[...] distraído com a

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confusão, olhando meninos como ele, com caixa de ferramenta de marceneiro ou

pedreiro, ao lado dos sô mestres, ou caixas de engraxar sapato, os poucos de bata branca

e sacas de escola [...]” (VIEIRA, 1976, p. 12). Luandino (1976, p. 12) ainda revela o

interesse de miúdo Zito em ir à cidade, de passar na frente das lojas, de olhar os carros e

comungar das “[...] coisas novas, coisas que, muitas vezes, repetia nos meninos da

mesma idade, alguns mesmo meninos de escola que não aceitavam.” E o mesmo

fascínio que o miúdo Zito revela ter pela cidade de Luanda, também o demonstra o seu

avô, o personagem “velho Petelo”, que, ao fitar a cidade, faz reacender na memória uma

Luanda do antigamente. O mar da baía de Luanda traz ao velho antigas recordações de

uma cidade que já não mais pertence aos seus:

[...] Velho Petelo olhava com saudade a mancha nebulosa na ponta da Ilha –

a ponte do carvão, com certeza, já não via bem, mas jurava mesmo – onde

várias vezes atracara e carregara carvão para as caldeiras. E mais no meio, a

sombra branca da igreja de Nossa Senhora do Cabo. Sorriu abrindo as

gengivas ao sol, recordou suas velhas bebedeiras nas grandes festas de

Novembro. Agora já não tem festa assim, não, brancos não deixam.

(VIEIRA, 1977, p. 16)

Certamente, a saudade que invade o peito e a memória do velho marinheiro é de

uma cidade diferente da que se apresenta hoje, uma cidade do antigamente, onde a ele

ainda era dado o direito de entregar-se à bebedeira e frequentar as festas urbanas. E, ao

que parece, a cidade de hoje, cidade dos “brancos”, que o confinou aos musseques,

estabelecendo fronteiras, faz com que o velho marinheiro se sinta saudoso de um

momento que só existe agora na memória. Com suas lembranças acerca de uma cidade

do passado e sua visão sobre uma cidade do presente, o velho Petelo “une o que vê ao

que viu, [...] Conhece a fusão da imaginação com a memória [...]”. (BACHELARD,

1989, p. 19). Isso leva a crer que, como revela Bachelard (2000, p. 25), “[...] memória e

imaginação não se deixam dissociar. Ambas trabalham para seu aprofundamento mútuo.

Ambas constituem, na ordem dos valores, uma união da lembrança com as imagens

[...]”. Essa abertura do museu do imaginário do velho Petelo permite imaginar uma

Luanda antiga, de negros marinheiros – e não só de sapateiros e engraxates – uma

cidade de festas, marcadas em calendários, e de uma baía de possibilidades. O velho

Petelo é uma importante metáfora, trazida por Luandino para representar o “antes” e o

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“depois” de uma cidade: o antes, “marinheiro”, e o depois, “velho coxo”, confinado em

um musseque desassistido.

Em Jubiabá, o personagem Antônio Balduíno também guarda com a cidade uma

curiosa relação, visto que, da sua infância até a idade adulta, os estágios apresentados

por ele – ou seja, a infância pobre no morro, passando à vida nas ruas, tornando-se um

lutador, até chegar à condição de militante e agitador político – refletem os próprios

estágios vivenciados pela Cidade da Bahia, com os seus altos e baixos, seus

trabalhadores em condição de semiescravidão e a greve, que paralisaria, mais tarde, a

“cidade negra da Bahia”.

Jorge Amado, em seu terceiro romance, de nome Suor, “[...] o primeiro de uma

série que tem como cenário a cidade da Bahia [...]” (MAGALHÃES 2011, p. 200) –

personifica também a cidade e a faz interagir com os personagens. Na trama, a ladeira

do Pelourinho, na qual se nota o insalubre e diminuto cômodo de um sobrado, é um

teatro, onde se representam mendigos, prostitutas, desempregados, lavadeiras, operários

e muitos outros atores sociais a quem Amado dá voz e põe em cena, para que esta

também personagem – a cidade – possa lhes oferecer cor, luz e ação cênica, no

desenrolar da narrativa; “[...] trata-se de um texto que tem o espaço como um elemento

sobre o qual se tematiza”[...]. (MAGALHÃES, 2011, p. 200)

Mas, é com Jubiabá que Amado revela o seu potencial estético sobre o urbano,

pois, nessa obra, a cidade é peça importante que vai muito além do ornamento do locus

da trama, é protagonista e protagoniza a história de Antônio Balduíno. É a cidade que o

traz à cena. É ela quem, por meio das suas luzes, entorpece o ainda menino, Baldo, e o

leva até a cidade baixa, onde ele encontrará o seu destino. A cidade, em Jubiabá,

desempenha um considerável papel, que é o de catalisador estético. Ao mesmo tempo

em que Amado a descreve, ele a desenha, a inscreve na trama. A cidade é

simultaneamente prosa e poesia: fala e emudece, cala e faz falar as personagens da

narrativa. Para Magalhães (2011, p. 201) “No texto de Jorge Amado a cidade da Bahia

encanta, mas exibe também o sofrimento social. Trata-se de uma cidade de grandes

contrastes. É esplendor e miséria, beleza e feiura [...]”. Na obra, Amado usa de

elementos presentes nas edificações da cidade, para indiciar acontecimentos ou desvelar

estados de espírito dos personagens na trama – questão que se verifica na descrição que

ele faz, no terceiro capítulo da narrativa, de uma rua chamada “Zumbi do Palmares”,

onde o autor parece denunciar, por meio de uma descrição da referida rua, o preconceito

para com os negros, suas memórias e seus heróis. Ao desvelar o aspecto da rua, o

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escritor descortina a intenção em associar o nome e a imagem de uma liderança

importante para um determinado grupo social a algo cujo aspecto é por de mais

negativo:

Velha rua de casas sujas e de sobrados de cor indefinida. Vinha numa reta,

sem desvios. Os passeios das casas é que eram desencontrados, uns altos,

outros baixos, alguns avançados para o centro da rua, outros medrosos de se

afastarem da porta. Rua mal calçada de pedras desarrumadas, plantada de

capim. [...] Parecia que a noite chegava mais cedo para a travessa Zumbi dos

Palmares que para o resto da cidade. (AMADO, 2000, p. 41)

A descrição elaborada pelo autor parece fazer sentir que a desassistência aos

negros e pobres da Cidade da Bahia vai além da privação do acesso aos elementos

básicos para assegurar a dignidade humana, mas leva a perceber que essa violência

invade o plano da memória coletiva, objetivando talvez a total nulidade do homem, bem

como o desestímulo para a busca da liberdade. Faz-se aqui tal análise acerca das duas

narrativas, evidenciando o trato dos autores com a questão da memória sobre o urbano,

para revelar que, analisar o romance de Jorge Amado, Jubiabá e a novela de José

Luandino Vieira, A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, significa perceber que essas

duas obras possuem temáticas que em si se aproximam, principalmente no que toca à

violência institucionalizada e o apartheid entre brancos e negros dentro de uma mesma

cidade.

Questões como essas aparecem nas duas obras em questão, possibilitando a

identificação de diálogos entre elas. Porém, para além dessas relações que envolvem a

“cidade”, diálogos outros são percebidos entre ambas as histórias e podem apontar

ligações maiores entre os autores e tais narrativas. Necessário se faz que se retome aqui

– como constatação última –, uma questão já mencionada nesta pesquisa que alude para

uma noção de comparatismo bem distinta daquelas postuladas pelos modelos clássicos.

Cumpre dizer que já é consenso entre os estudiosos que fazer comparatismo literário é

mais que comparar textos, é mergulhar profundamente em questões outras que

envolvem as obras em estudo. Nos termos de Henry Remak (2011, p. 189):

A literatura comparada é o estudo da literatura além das fronteiras de um país

específico e o estudo das relações entre, por um lado, a literatura, e por outro,

diferentes áreas do conhecimento e da crença, tais como as artes (por

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exemplo, a pintura, a escultura, a arquitetura, a música), a filosofia, a história,

as ciências sociais (por exemplo, a política, a economia, a sociologia), as

ciências, a religião etc. Em suma, é a comparação de uma literatura com outra

ou outras e a comparação da literatura com outras esferas da expressão

humana.

Para além desse entendimento de Remak, já se percebe contemporeneamente

que há, em muitos pesquisadores da área, o cuidado em relação ao comparatismo entre

literaturas, para que não ocorra o confronto único de textos, com o objetivo, muitas

vezes, de apontar apenas similaridades materiais – como traços de composição,

episódios ou tropos bem determinados e superficiais –, ignorando questões menos

materiais – talvez, mais complexas de se apontar. Quando se pretende cotejar duas ou

mais obras literárias, com o intuito de identificar diálogos entre elas – como aqui se

realiza –, torna-se necessário voltar a atenção para os múltiplos elementos presentes nas

narrativas, não se deixando envolver somente por aqueles que, de início, já sugerem

aproximações, pois isso certamente esvaziaria, da análise, o seu teor crítico.

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4 DUAS HISTÓRIAS, QUATRO ELEMENTOS

A recusa que aqui se faz de um comparatismo literário baseado na ideia de

“fonte” e “influência” dá-se, além do já exposto até aqui, pela observância das

particularidades que envolvem o texto literário e pela compreensão de que o ato de

comparar é central ao processo crítico.

Comparar duas ou mais obras literárias, sem atentar para as subjetividades

contidas em seus textos, apenas voltando-se para entendimento do quanto influiu um

autor em outro, seria como tocar um violino por pizzicato, ou seja, sem a utilização de

um arco – o que limitaria muito a sua produção sonora. Mais interessante é, por meio do

comparatismo, buscar compreender a existência de diálogos entre as obras, para que

seja possível entendê-las como sendo partilhadoras de múltiplos elementos que se

comunicam entre si, possibilitando, assim, um maior exercício crítico.

No presente trabalho, procura-se identificar, justamente, relações entre as duas

obras em estudo, analisando os diálogos percebidos entre elas, no que concerne aos

“tetraelementos” naturais: água, terra, fogo e ar. Gaston Bachelard afirmou ser “[...]

possível estabelecer, no reino da imaginação, uma lei dos quatro elementos, que

classifica as diversas imaginações materiais conforme elas se associem ao fogo, ao ar, à

água ou à terra.” (BACHELARD, 1998, p. 03-04, grifo do autor). O que se intenta aqui

está longe da criação de uma “lei” – como sugere Bachelard –, mas caminha na direção

do estabelecimento de relações possíveis entre as múltiplas imagens dos elementos

naturais em dois textos literários. É oportuno tomar como base as ideias de Bachelard

sobre esse universo natural, para ajudar a pensar a relação desse com a produção de

imagens – já que, nesta pesquisa tentar-se-á perceber como os elementos da natureza

permutam experiências com o imaginário e como contribuem para cristalizar imagens.

Jorge Amado e Luandino Vieira fizeram uso, em suas narrativas, dos elementos

naturais, gerando um grupo de imagens de uma realidade que se assemelha e tende a

aproximar essas duas obras. Para Bachelard (2001a, p. 12), os quatro elementos “[...]

põem em ação grupo de imagens. Ajudam a assimilação íntima do real, disperso em

suas formas. Por eles se efetuam as grandes sínteses que dão características um pouco

regulares ao imaginário.” Esse grupo de imagens, proposto por Bachelard, é que irá

atrair a atenção nesta investigação, pois serão as imagens que apontarão como os dois

autores em questão utilizam os quatro elementos naturais como forma de representação

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de uma realidade que os circunda. Apesar de se notar semelhanças entre as imagens

propostas por ambos os escritores, percebe-se também, em suas obras, diferenças no que

concerne ao uso dos elementos da natureza – o que aponta para o fato de que “[...] as

almas que sonham sob o signo do fogo, sob o signo da água, sob o signo do ar e sob o

signo da terra revelam-se muito diferentes entre si”. (BACHELARD, 1999, p. 132)

Para início da caminhada rumo à abordagem dos elementos naturais nas obras

em debate, toma-se o elemento “água” – “princípio dinâmico das transformações e das

mutações” (CHEVALIER & GHEERBRANDT 1996, p. 533) – como elemento

introdutório, na perspectiva de abrir caminhos a fim de se entender os demais elementos

e até suas combinações, pois Bachelard (1998, p. 97) argumenta que “Em especial, a

água é o elemento mais favorável para ilustrar os temas da combinação dos poderes

[...]”. Sendo assim, em primeira análise, atem-se ao elemento “água” como forma de

perceber sua manifestação simbólica, marcada pelo diálogo entre as duas narrativas, e se

marcar, em análise posterior, a direção da sua atuação junto aos demais elementos.

Pode-se observar que nas duas narrativas em estudo, Jubiabá e A Vida

Verdadeira de Domingos Xavier, percebem-se diálogos a partir do elemento “água” –

tanto das águas salgadas do mar, da Cidade da Bahia, quanto das águas doces do rio

Kuanza, de Luanda, ou, ainda, das pluviais que caem ora nos morros da Cidade da

Bahia ora nos musseques da cidade de Luanda. Nas narrativas, o Oceano Atlântico é

símbolo de um grande elo entre a urbe do estado baiano e a da capital de Angola. Nas

obras, o mar parece habitar as duas margens, e estabelecer relações entre ambas,

levando contínua comunicação entre a baía de Todos os Santos e a baía de Luanda,

atualizando a histórica rota da transculturalidade. Em sintonia com esse pensamento é

que Roland Walter (2009, p. 214) afirmará: “A transculturação da identidade negra

começa nesta corrente continuamente alimentada pelas correntezas salgadas da água

[...]”; e “[...] o mar como entrelugar simbólico da diáspora negra, separando os

africanos/afrodescendentes da África e ao mesmo tempo ligando a África ao Novo

Mundo”. (WALTER, 2009, p. 212)

Se se quiser caminhar na esteira das simbologias, pode-se imaginar que o

diálogo entre Jorge Amado e Luandino Vieira, por meio das obras em análise,

representa o próprio encontro do rio com o mar. Jorge Amado, por suas características

ligadas à defesa dos mais fracos e dos excluídos, por seu perfil democrático e amante

das liberdades, pode, em terreno simbólico, representar o poder das águas salgadas de

Iemanjá, ou seja, o mar. E o rio, de águas geralmente densas, porém calmas em alguns

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momentos, pela força devastadora dos seus leitos milenares e até por seus frequentes

anseios de liberdade de curso, pode se encontrar representado, simbolicamente, na

figura de José Luandino Vieira. E é nesse encontro entre águas doces e salgadas que se

nota a emergência de profundos diálogos entre os referidos autores, fomentando a

cristalização de imagens, uma vez que a água, como disse Bachelard (1998, p. 97), “[...]

recebe com igual facilidade as matérias contrárias, o açúcar e o sal.” É possível

perceber, ainda, que apesar de Bachelard julgar serem o açúcar e o sal matérias

contrárias, nas narrativas, as águas doces e salgadas convergem para um mesmo ponto

que é a representação da “maternidade”.

Nas referidas tramas, Amado e Luandino invocam um elemento com múltiplas

simbologias dentro do plano religioso – a água –, para protegerem os seus protagonistas

– Baldo e Domingos – dos impactos das suas mais significativas carências: a mãe e a

liberdade, respectivamente. Em Jubiabá, as águas salgadas do mar da Cidade da Bahia,

mitificadas na figura do orixá “Iemanjá” – que no Candomblé da Bahia é símbolo da

“grande mãe” – fazem com que o personagem Antônio Balduíno, que praticamente não

teve mãe, busque no mar a sua proteção e o seu refúgio, pois, em tal narrativa, Amado

(2000, p. 10) é claro ao dizer que “Da mãe Antônio Balduíno não sabia nada.” Essa

relação entre o homem e a natureza, expressa no sentimento de Balduíno pelo mar, pode

ser entendida como a busca de uma integração com a origem. Bachelard (1998, p. 119-

120) propõe que:

[...] se o sentimento pela natureza é tão duradouro em certas almas é porque,

em sua forma original, ele está na origem de todos os sentimentos. É o

sentimento filial. Todas as formas de amor recebem um componente do amor

por uma mãe.

Essa proposição de Bachelard, de “sentimento filial” remete à busca de Baldo pela

figura da mãe, desenhada em Jubiabá, na flagrante aproximação que Amado faz do

personagem central com o mar, criando, assim, a imagem de um sentimento filial do

garoto pela natureza. Bachelard (1998, p. 120) afirma, ainda, que:

Em suma, o amor filial é o primeiro princípio ativo da projeção das imagens,

é a força propulsora da imaginação, força inesgotável que se apossa de todas

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as imagens para colocá-las na perspectiva humana mais segura: a perspectiva

materna.

E é justamente sob perspectiva materna que Amado, em Jubiabá, redesenha o

mar. Na obra, as águas salgadas do mar da Cidade da Bahia são projetadas na figura de

uma “grande mãe”. Conforme Marie Bonaparte (apud Bachelard,1998, p. 119-120), a

natureza é para o homem “[...] uma mãe imensamente ampliada, eterna e projetada no

infinito [...] O mar é para todos os homens um dos maiores, um dos mais constantes

símbolos maternos.” Amado codifica e projeta, através das águas do mar, a imagem de

uma “mãe natural”, que irá suprir a ausência de uma mãe biológica. Pelo que diz

Bachelard (1998, p. 120), “Sentimentalmente, a natureza é uma projeção da mãe [...]” –

assim sendo, o mar é para Baldo, a imagem de uma mãe que ele imagina e que, durante

toda a sua vida, lhe faltou.

Luandino usa esse mesmo código sobre as águas e também mitifica o rio

Kuanza, de águas doces – que conforme algumas religiões de matriz africana, são

indicativas do orixá Oxum1 – para proteger o personagem Domingos Xavier. A figura

de maternidade também se faz presente na narrativa de Luandino, pois, Oxum, símbolo

da fertilidade, vem realizar, por meio da simbologia das águas, um desejo do

nascimento de um herói, que, morrerá para nascer na mente e no coração dos angolanos.

O autor, habilidosamente, relaciona o nascimento do rio ao nascimento de Domingos,

evidenciando uma complexa simbiose entre homem e natureza quando diz: “[...] o rio

que lhe viu nascer, lá em cima, no planalto, ainda fio de água, ainda criança ruidosa, e

que ele conheceu depois largo e calmo, poderoso na direção do mar.” (VIEIRA, 1976,

p. 26) Essa relação elaborada pelo autor faz com que a imaginação seja “[...] devolvida à

sua função vital que é valorizar as trocas materiais entre o homem e as coisas.”

(BACHELARD, 1990, p. 51).

Nas duas narrativas em análise, o elemento “água” lastreia a presença do

feminino – Oxum e Iemanjá –, em uma breve alusão, talvez, ao feminino como símbolo

de criação. Bachelard (1998, p. 36) revela que “[...] tudo o que se reflete na água traz a

marca feminina.” – e tudo leva a crer que Amado e Luandino trouxeram, às suas nar-

___________________________

1 Oxum, nas religiões do tronco Ioruba, é uma Orixá que reina sobre a água doce dos rios, o amor, a inti-

midade, a beleza, a riqueza e a diplomacia.

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rativas, as águas doces e salgadas, para também cristalizar, por meio dos orixás que as

habitam, a imagem da pureza, igualmente expressa na figura dos seus personagens

centrais, Baldo e Domingos Xavier. Nas tramas em estudos, os autores invadem

simbolicamente o plano do sagrado, para indiciar tal purificação. Balduíno guarda

estreitas relações com o mar da Cidade da Bahia, e Domingos, com o rio Kuanza, ou

seja, a água, enquanto símbolo da vida, da renovação e também da purificação, aparece

nas narrativas como o líquido amniótico da terra, “[...] uma entidade materna (ligada,

portanto, ao sentimento), com a responsabilidade de proteção e geração de uma nova

vida” tanto para Balduíno como para Domingos Xavier. (PINHEIRO 2009, p. 17)

Para além dos diálogos entre águas doces e salgadas, do rio e do mar, que são

símbolo de maternidade, percebe-se, nas obras em questão, o uso das águas pluviais. A

água da chuva, nas narrativas, traz a marca da denúncia social e expõe a situação de

vulnerabilidade à qual estão sujeitas as camadas mais humildes da sociedade. Bachelard

(1998, p. 7) revela que a água da chuva “[...] corre sempre, cai sempre, acaba sempre

em sua morte horizontal.” E, com base nesse princípio, as narrativas mostram que tanto

na cidade da Bahia quanto na cidade de Luanda, o ser humano terá o mesmo destino das

águas correntes (BACHELARD, 1998, p. 08). Nas duas obras, ambos os autores fazem

o leitor sentir o desespero que toma a população habitante dos morros de Luanda e da

Cidade da Bahia, quando da presença da chuva. Em Jubiabá, Amado tacitamente

traduz os efeitos desse fenômeno no morro do Capa-Negro:

Enquanto as luzes não acenderam o vento dominou a cidade, correu com os

moleques pelas ladeiras, visitou as mulheres do beco das Flores e do beco de

Maria Paz, levantou nuvens de pó, invadiu casas e quebrou moringas.

Quando as luzes acenderam caiu uma chuva violenta, um temporal como há

muito não havia. Os fifós apagavam, não se ouvia vozes nas casas. O morro

se fechou nos casebres. (AMADO, 2000, p. 37, grifo meu)

Não é necessário dizer mais, para se perceber o desfecho que a presença da

chuva terá no morro. Amado deixa por conta do leitor imaginar o que uma “chuva

violenta” pode causar em um morro de casas com telhados de zinco e portas de caixão.

Luandino, em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, traz a chuva, sobre os

musseques do morro, desnudando os seus efeitos trágicos para uma população já

demasiadamente sofrida:

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Chuva, raios que brilhavam toda a tarde cinzenta, trovões estremecendo

vidros e os corações do povo lá em cima, metido em suas casas de barro e

canas, cobertas a zinco, assistindo o barro a se desfazer, a água caía a jorros

das chapas levantadas, as paredes ameaçavam cair em cima dos moradores

encolhidos de medo, molhados, nos cantos. (VIEIRA, 1977, p. 62, grifo meu)

As duas obras parecem se complementar em discurso. O uso do elemento

“chuva” serve não apenas para relatar igual situação de miséria e abandono social entre

duas sociedades, mas para o estabelecimento de certo código estético, o qual tanto

Amado quanto Luandino entendem ser produtor de imagens que, por si mesmas, já

desvelam o abandono e a desassistência social. Nas narrativas, depois da passagem das

chuvas, não há relato de acontecimentos que tenham atingido gravemente os moradores

dos bairros privilegiados. Em contrapartida, não obstante a morte ter-se feito presente

junto aos menos favorecidos, nenhum jornal noticiou. Luandino evidencia na obra, a

falta de interesse dos órgãos de imprensa local nos acontecimentos da gente pobre de

Luanda, e com isso, flagra a dura realidade presente em uma cidade dividida:

Na manhã seguinte, os jornais trouxeram grande descrição da chuvada e

fotografias mesmo dos estragos, mostrando ruas com buracos, árvores

arrancadas, automóveis inutilizados, areia pedindo tractores. Do menino

afogado na lagoa da Pameli ou da faísca que matou na criança refugiada em

baixo da mulemba, ou das muitas cubatas que tinham caído nos musseques

deixando seus moradores sem abrigo, ou sepultados em vida, nenhum jornal

falou. Apenas o povo desses musseques soube e lamentou e chorou.

(VIEIRA, 1977, p. 63)

O descaso com a morte das pessoas do musseque, negros e pobres, dá o tom da

desassistência e evidencia que essas pessoas se encontram largadas à própria sorte. Essa

forma de invisibilidade da população negra e pobre de Luanda, tornada pública por

meio da novela de Luandino, atualiza uma realidade ainda flagrante em Angola.

Nas duas narrativas, a imagem da precipitação das chuvas ocorre ainda para

revelar dois momentos importantes nas tramas: em Jubiabá, ela vem testemunhar a

loucura da velha Luiza, tia de Antônio Balduíno – fato decisivo para o destino do

pequeno Baldo; e, em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, ela cai como que para

anunciar à Maria, esposa de Domingos, a morte e o nascimento de uma “vida

verdadeira” para Domingos Xavier. O elemento “chuva” é colocado nas tramas como

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índice dos acontecimentos relevantes, ou seja, como uma espécie de “apocalipse”, para

anunciar uma mudança no rumo das narrativas e sugerir uma espécie de “renovação”.

No caso de Antônio Balduíno, tal renovação acontece com a sua ida para a cidade,

acabando, mais tarde, por “dominá-la”. E, no que concerne a Domingos Xavier, a sua

morte marca o início de uma “vida verdadeira”, que nasce na memória e no coração dos

angolanos.

4.1 ENTRE ÁGUAS E TERRAS, VENTOS E FOGOS

O grande navegador de cabotagem Jorge Amado deixou vários índices da sua

excessiva ligação com o mar, que se fazem presentes em seus diversos textos. Em

Jubiabá, o escritor dedica dois capítulos para falar diretamente das águas do mar da

Bahia – os capítulos de nome “Cais” e “Saveiro”. Tal relação com o mar deve-se

certamente a questões várias, porém, o que interessa aqui para explicá-la é a vinculação

de Amado à religiosidade de matriz africana, no caso, o Candomblé da Bahia.

Sabe-se que foi Jorge Amado, então deputado federal, em 1946, o autor de um

projeto de lei que assegurava liberdade religiosa no Brasil. Antes dessa lei, as religiões

afro-brasileiras enfrentavam muitas dificuldades para realizar os seus cultos,

experimentando as batidas policiais que, desrespeitosamente, invadiam terreiros em

pleno culto e destruíam objetos sagrados, ateavam fogo nas casas e prendiam

sacerdotes. Itazil Benício dos Santos narra esses acontecimentos e registra a fala de

Amado, no tocante a essa discussão:

Jorge, com Édison Carneiro e Artur Ramos, começou a freqüentar os

candomblés e a participar desse lado da vida religiosa baiana. Acompanhou

de perto a “luta pela liberdade religiosa, tumultuada e violenta”, dela

participando. “A repressão era violenta”, diz Jorge, “a polícia invadia os

terreiros de candomblé, incendiava-os, destruía os objetos do culto, prendia

todos, pai e mãe- de- santo, era uma batalha terrível.” Jorge analisa, de modo

sumário, com profundidade, motivos, origens e alcance da perseguição

policial ao culto afro-brasileiro, dizendo: “Era uma forma de repressão contra

a matriz negra de nossa cultura, contra todas as expressões da cultura negra.”

(SANTOS, I., 1993, p. 82, grifo do autor)

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Parece que a menção à repressão da “matriz negra” da cultura brasileira, feita

por Amado naquele momento, significava uma forma de extermínio cultural, isto é, uma

tentativa de silenciar uma expressão que aludia, por meio do cultural, ao passado

histórico da Bahia e do Brasil. Perseguir e exterminar as manifestações religiosas de

matriz africana, naquele instante, representava mais que um comportamento intolerante

ao religioso, antes, uma tentativa de negar a face afrodescendente do povo brasileiro.

Perceber essas relações de Amado com o Candomblé pode indicar importantes

caminhos, que levem a descortinar os elos entre o personagem Antônio Balduíno e o

mar. O autor baiano sempre foi a favor das liberdades principalmente da religiosa, e o

seu romance ora estudado, Jubiabá, traz o nome de um importante pai-de-santo da

Bahia, do qual Amado toma de empréstimo o nome para intitular a sua narrativa e um

dos seus personagens, numa espécie de fusão entre ficção e realidade. Na obra, o pai-de-

santo Jubiabá é símbolo da memória e resistência da cultura negra no Brasil, sobretudo

da cultura linguística, visto que ele “[...] trazia sempre um ramo de folhas que o vento

balançava, e resmungava palavras em nagô [...]” (AMADO, 2000, p.13, grifo meu).

Era de se esperar, portanto, que, com todo envolvimento de Amado com o

Candomblé – ao ponto de ocupar, inclusive, o posto de honra de Obá de Xangô2 no Ilê

Axé Opó Afonjá, tradicional casa de Candomblé da Bahia –, ele fosse capaz de transpor

para as suas narrativas questões ligadas ao sagrado da religiosidade afro-brasileira,

como as águas do mar. Porém, vale grifar que Jorge Amado sempre se declarou ateu e

materialista, logo, tentar perceber a presença do sagrado nos escritos de alguém que,

desse jeito, autodenomina-se, pode ser uma tarefa demasiado delicada. Mas, para além

dessas condições, de ateísmo e materialismo do autor, é inegável a presença da

simbologia sacra nas histórias amadianas. Ordep Serra (2000, p. 63-64) se antecipa a

essas divagações e afirma que:

Um ateu não é, por força, insensível ao sagrado. A sensibilidade religiosa

pode mesmo fazer-se aguda num materialista confesso. Pois a dimensão do

sagrado ultrapassa o campo da crença, não depende disso. [...] a constância

de motivos religiosos em sua obra [...] traduz a marca do sagrado que nela se

___________________________

2 Título honorífico do Candomblé, criado no Ilê Axé Opó Afonjá por Mãe Aninha, em 1936. Os títulos

honoríficos de doze Obás de Xangô, reis ou ministros da região de Oyo, eram concedidos aos amigos e

protetores do Terreiro.

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acha impressa de diversas formas, um pouco por toda a parte. O sagrado se

diz de muitas maneiras... e várias notas de sua manifestação multiforme

ressoam nas páginas amadianas.

Pode se inferir que, na narrativa em análise, Amado aproxima Antônio Balduíno

do mar, como se quisesse aproximá-lo de Iemanjá, a “grande mãe”, para suprir a sua

falta dos cuidados e carinhos maternos. Mas, também o faz, possivelmente – como já se

mencionou nesta investigação –, dentro de uma proposta de purificação do personagem,

uma vez que Baldo, em momentos de infortúnio e desesperança, procura o mar, para

aliviar-se. Verifica-se essa questão na narrativa, dentre outras passagens, quando

Balduíno é derrotado na luta com o peruano Miguez e desloca-se para o cais, em busca

da paz do mar. Bachelard (1998, p. 32) acredita que “[...] a água serve para devolver um

pouco de inocência e de naturalidade ao orgulho da nossa contemplação íntima.” – e,

provavelmente, Antônio Balduíno busque o mar na perspectiva de que a “inocência” e a

“naturalidade”, sentimentos descritos por Bachelard, possam aliviar o peso da sua

conturbada vida. Nesses momentos, Jorge Amado deixa transparecer a íntima relação

entre o personagem e o mar, principalmente ao declarar que Baldo “[...] Desde menino

gostava de vir deitar aqui no areal do cais, a carapinha no travesseiro da areia, os pés

metidos dentro da água. A água é morna e gostosa a estas horas da noite.” (AMADO,

2000, p. 118)

O evidente empenho de Jorge Amado em mostrar essa intrínseca ligação entre o

personagem e o mar supõe-se ocorrer para apontar uma simbiose peculiar entre ambos,

pois parece haver entre o menino e o mar um mútuo encantamento. Amado ainda sugere

uma relação maternal entre o mar e Balduíno que se verifica também nas passagens em

que o autor expõe as relações do personagem com as suas “cabrochas” diante do mar,

numa atitude similar a quem apresenta uma namorada à mãe, para que essa reconheça a

sua condição de “homem feito” e não mais o conceba como um garoto:

[...] Antônio Balduíno gosta que o mar veja as suas amantes e saiba que ele,

apesar dos seus quinze anos, já é homem, já derruba uma cabrocha na areia,

que é macia como um colchão. Mas, sozinho ou acompanhado, ele olha

sempre o mar como um caminho de casa. Do mar, ele tem certeza, lhe virá

algum dia qualquer coisa que ele não sabe o que é, mas que espera.

(AMADO, 2000, p. 68)

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Pode-se inferir a relação íntima entre o protagonista de Jubiabá e o mar também

pelo que salientou Bachelard (1998, p. 6) ao dizer: “[...] Reconhecerá na água, na

substância da água, um tipo de intimidade, intimidade bem diferente das que ‘as

profundezas’ do fogo ou da pedra sugerem.”

Quando se volta a atenção para o que afirma Amado na citação acima – o fato de

que Baldo sempre espera “qualquer coisa” que venha do mar –, tem-se a impressão de

que ele espera, provavelmente, por notícias de outras terras, de outros mundos, trazidas

pelas ondas para fazê-lo seguir na rota do Atlântico, em busca de aventuras outras. E

por que não dizer, notícias da África? Na condição de afrodescendente, não seria

estranho que Balduíno, intuitivamente, enxergasse no mar “um caminho de casa”. O

mar da Cidade da Bahia pode ser a rota de intercomunicação com outras margens,

principalmente, a margem do mar da Baía de Luanda, na África.

Com esse sentimento do personagem amadiano – do mar enquanto “caminho de

casa” –, Jorge Amado indicia a intercomunicação Brasil-África por meio das águas e

coloca de vez o mar como elo entre as duas margens culturalmente comunicantes – pois,

conforme percebeu Roland Walter (2009, p. 212), o mar é “[...] berço de indivíduos,

grupos e culturas afro-descendentes; [...] onde o silêncio e os rumores constituem uma

sinfonia transcultural [...] cujas ondas e correntes formam o círculo entre as

temporalidades discrepantes [...]”. Ao mirar o mar, Baldo sente uma espécie de “banzo”,

provável desejo de conexão com algo que habitaria a outra margem do Atlântico –

possivelmente, a margem africana –, num tácito desejo de ligação ancestral, uma vez

que, é no mar que “habitam aqueles que morreram, sobreviveram e seus descendentes

que nasceram e nascerão.” (WALTER, 2009, p. 212)

Em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, Luandino lança mão das águas

doces do rio Kuanza, para promover um encontro com o seu personagem central,

Domingos Xavier. E tal encontro se dá justamente em momento de total infortúnio de

Domingos, ou seja, no momento da sua prisão e estada no cárcere:

Na cela, o seu corpo magro e comprido, magoado, custava a caber [...] O

peito doía, era uma dor única. [...] sentia pancadas dolorosas nas mãos e nos

pés [...]. Pensamentos corriam como as águas do Kuanza amado; [...] o largo

Kuanza que lhe viu nascer, lá em cima, no planalto [...]. (VIEIRA, 1977, p.

26)

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A narrativa se encarrega de mostrar que as águas do rio funcionam como uma

espécie de bálsamo para Domingos Xavier, pois, na tentativa de suportar as dores da

violência do cárcere, ele recorre aos seus pensamentos sobre o rio. O Kuanza é mais que

um simples rio para Domingos, suas águas são – assim como as águas do mar para

Balduíno –, uma “grande mãe”, pois lhe viu nascer, e o remete aos seus momentos de

infância e juventude, refletindo um pensamento de Bachelard, segundo o qual, “[...] A

nenhum substantivo, mais intensamente que à água, pode-se associar o adjetivo

primaveril” (BACHELARD, 1998, p. 34 Grifo do autor). Talvez seja por isso que

Domingos:

Fechava os olhos e o Kuanza corria ao luar, rugindo furioso ou manso e

quieto, grande mar sem ondas. Como o sono chegando e vencendo tudo,

tudo, até o cansaço e a vontade grande de ficar acordado, pensar. Mas o sono

era como o Kuanza, nada lhe resistia. Deitado, se deixou boiar no seu rio de

criança, do planalto, que lhe tinha visto nascer. (VIEIRA, 1977, p. 27)

O autor deixa pistas desse envolvimento maternal entre as águas e Domingos

Xavier por meio da adoção de termos que fazem alusão à relação entre mãe e filho –

termos como “criança”, “sono” e “nascer”. Esses termos vão conduzindo a narrativa de

tal forma, que pensar no rio é pensar o homem e pensar o homem acaba sendo pensar o

rio. Esse mutualismo entre “homem” e “água”, que se verifica na trama, pode aludir ao

que ocorre na natureza, onde homens e águas se encontram desde o momento da

geração e concepção da vida. Na esteira desse pensamento, pode-se afirmar que

enquanto o herói amadiano, Antônio Balduíno, desenvolve-se na sombra da “grande

mãe” Iemanjá, simbolizando, talvez, a busca do Brasil por uma maternidade que habite

as duas margens do Atlântico; o herói da narrativa luandina, Domingos Xavier, por

meio da sua relação com as águas fluviais, forja-se no ventre do orixá Oxum,

considerada a deusa da fertilidade, simbolizando, muito provavelmente, a necessidade

patente de uma renovação nacional – na obra, por sinal, a morte de Domingos pode

representar o início da gestação de uma nova Angola, agora livre, com uma liberdade

descrita no próprio curso do seu maior rio: o Kuanza.

Não se pode deixar de relatar que Luandino, na narrativa, ainda usa as águas

desse importante rio angolano para delinear a revolta presente no seio da sociedade

angolana, que, oprimida pelo regime colonial e confinada aos musseques, agora vê a sua

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realidade, bem como a sua cidade, transformada pelos projetos do colonizador. O trajeto

ora realizado pelo rio Kuanza, muito diferente do seu trajeto anterior à colonização,

parece traduzir a dor e o sofrimento do povo de angola, tolhido em direitos

fundamentais e obrigado a abandonar os seus “trajetos culturais” – assim como o rio – e

a criar novos trajetos, para não incorrerem, homens e águas, no risco de

desaparecimento:

Lá em baixo o Kuanza rugia, zangado, adivinhando a boca de betão que esperava para lhe engolir, obrigando-lhe a furar o morro num caminho de

poucas centenas de metros, substituindo o leito milenário que tinha cavado,

por suas águas, na rocha dura ou nas areias quentes. [...] Para lá da saída do

túnel de derivação, as águas se suicidavam, subindo desesperadas muitos

metros no ar e deixando-se depois abater lá em baixo nas pedras, nos muros

de defesa que os tractores construíam [...] As águas falavam suas fúrias,

agora impotentes, recordando os rápidos para lá do muro, secos no sol,

criando musgos nas poças de água parada, finalmente quieta. (VIEIRA, 1977,

p. 71-72)

A simbologia expressa pelo autor ao destacar o leito milenar cavado pelo rio

certamente alude ao importante lastro cultural africano – representado principalmente,

pela questão linguística –, violentamente fragmentado pelo colonialismo europeu. Como

afirmou Ki-Zerbo (2006, p. 131) “[...] as relações entre a Europa e a África começaram

mal e transmitiram uma herança muito pesada, que não foi exorcizada.” Sendo assim, A

substituição de um leito milenar por um leito de “poucas centenas de metros”, da qual

relata Luandino, constitui-se em importante metáfora, se se quiser pensar na violência

cultural sofrida pelos angolanos, a partir da chegada do colonizador português, que

impôs a sua língua, seus hábitos e a sua católica visão de mundo a povos envolvidos

com referências outras. O suicídio das águas, anunciado pelo autor, dá o tom dos efeitos

do regime colonial em Angola e indicia uma forma de resistência à escravidão e à

colonização que leva à preferência da morte ao domínio e espoliação cultural. Essa

questão foi delineada por Mary Karasch (2000, p. 418), ao revelar ser frequente, entre

os escravos, o suicídio por afogamento, como forma entendida por eles de retornarem

vivos para a África.

As águas doces, para além das diversas simbologias que possuem, representam a

purificação. E Luandino, tal como Amado, parece fazer uso dessa simbologia, para

aludir a uma depuração do estado anímico do seu personagem Domingos Xavier, como

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forma de fazê-lo suportar as dores e os dissabores perpetrados pela violência policial.

Enxerga-se, com isso, uma eliminação de fronteira entre o real e o imaginado, pois

Luandino, que também foi preso, ou seja, também vivenciou o “cárcere”, sem dúvida

reconhece a importância, quando em estado de privação de liberdade, dos elementos de

identidade, e o rio é também, para ele, assim como para Domingos, um símbolo de sua

cidade, de sua gente e do seu país. Isso pode ser verificado quando se analisa mais uma

vez o trecho da já citada carta enviada por Luandino ao seu amigo, o poeta Carlos

Everdosa, momentos antes de embarcar para a prisão do Tarrafal, em Cabo Verde. Nele,

o autor diz:

Faltam poucas horas para embarcar no “Cuanza” rumo a Cabo Verde – ou

assim dizem. Li a tua carta e aproveito estes curtos momentos para te enviar

algumas linhas, talvez as últimas que recebas de mim antes do regresso geral

à nossa terra, às nossas coisas, ao nosso povo. É muito difícil nesta altura

dizer qualquer coisa [...] (LABAN, 1980, p. 90, grifo meu)

As aspas colocadas no nome do rio deixam claro o valor que ele tem para o povo

angolano, e é essa importância que talvez tenha feito o autor enumerar, no fim do

trecho, elementos símbolos de identidade, ou seja, “terra”, “coisas” e “povo”. Numa

alusão metafórica, Luandino faz com que Domingos vivencie experiências de exílio e

cárcere e, assim, o criador transmite à criatura algo da sua real experimentação. A julgar

pelo que disse o autor, em uma entrevista, sobre a elaboração do romance A Vida

Verdadeira de Domingos Xavier, de tê-lo finalizado um dia antes de ser preso, entende-

se aí que a criatura também iria, por sua vez, transmitir ao criador suas experiências

advindas da vivência no cárcere. O “imaginado” iria agora inventar o “real” e

contaminar o criador da coisa criada, como parece querer dizer o escritor Ezio Manzine

(apud PESAVENTO, 1999, p. 8) quando afirmou que:

Nós sabemos hoje ser nossa invenção tudo que, a partir das estimulações

sensoriais, se transforma em modelos mentais e produz a idéia de realidade, e

aquilo que se apresenta a nós como realidade é, e tem sido sempre, uma

“realidade simulada”. Quer dizer, uma realidade construída em nosso espírito

a partir de estimulações exteriores e uma sedimentação cultural anterior.

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Quando se encontrava preso na prisão do Tarrafal, em Cabo Verde, Luandino

experimentou várias sensações também vividas por Domingos Xavier. E, ao estilo do

seu personagem, conseguiu esboçar igual resistência aos dissabores do cárcere. Nesse

momento, parece que “criador” e “criatura” se uniram para compartilhar experiências e

retroalimentar a eterna relação entre a realidade e a ficção. A partir da magia que cerca a

palavra, sempre se enxergará na representação parte constituinte do real. Alargam-se as

fronteiras entre a representação do real e a realidade, numa contaminação frequente

entre essas duas esferas. A representação e a realidade se intercomunicam, e o resultado

é a mais pura experiência estética de “criar” e “ser criado”.

Se Jubiabá e A Vida Verdadeira de Domingos Xavier dialogam a partir das

águas doces e salgadas, também o fazem por meio do elemento “terra”, que é

representado, nas narrativas, pelo “barro”.

Jorge Amado vê no “barro” o símbolo da desassistência aos pobres, não só por

ser esse o elemento de construção das casas desestruturadas do morro, mas por

significar, também, a ausência de pavimentação das ruas enlameadas do morro do Capa-

Negro. Segundo Eneida Leal Cunha (2000, p.125), pode-se buscar, no relato da vivência

inicial do morro, as chaves para uma leitura de Jubiabá. Com base nisso, observa-se, já

no segundo capítulo da referida trama, que Amado traz o elemento “barro”, para indicar

a condição vivida por Antônio Balduíno nas ruas do morro, levando ao entendimento

acerca do futuro que aguarda o jovem – como se pode ver em: “Antônio Balduíno vivia

metido num camisolão sempre sujo de barro, com o qual corria pelas ruas e becos

enlameados do morro, brincando com os outros meninos da mesma idade.” (AMADO,

2000, p. 7)

Gaston Bachelard (2001b, p. 8) assevera que “A terra, com efeito, ao contrário

dos outros três elementos, tem como primeira característica uma resistência.” E

“resistir” parece ser a missão primeira dos habitantes dos morros na narrativa de

Amado, onde o elemento “barro” aparece, para dar uma ideia das condições de vida dos

habitantes daquele lugar, que transitam por ruas e becos enlameados, revelando a

desassistência dos poderes públicos para com esses espaços. A narrativa amadiana

atualiza, assim, uma realidade dos morros e favelas brasileiras totalmente desassistidas e

carentes de estruturas básicas da vida em comunidade. Jorge Amado se antecipa a uma

situação que, ainda nos tempos de hoje, não se conseguiu superar, uma vez que nas

periferias e morros das cidades do Brasil, cada vez mais, o “barro” se constitui na

grande realidade das comunidades, seja nas ruas e ladeiras desprovidas de

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pavimentação, seja nas encostas que, vez por outra, vêm a baixo, sepultando várias

pessoas em “valas comuns”.

Luandino Vieira, em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, vai além nessa

questão e apresenta situações em que o “barro”, com a vinda das chuvas, torna-se

símbolo de morte:

Chuva, raios que brilhavam toda a tarde cinzenta, trovões estremecendo vidros e os

corações do povo lá em cima, metido em suas casas de barro e canas, cobertas a

zinco, assistindo o barro a se desfazer, a água caía a jorros das chapas levantadas, as

paredes ameaçavam cair em cima dos moradores encolhidos de medo, molhados,

nos cantos. A água vermelha das ruas invadia tudo e as faíscas brilhavam nas chapas

novas ou rasgavam mesmo grossos troncos das mulembas. (VIEIRA, 1977, p. 62)

O realismo das imagens desenvolvidas por Luandino chama a atenção para uma

problemática que faz parte do cotidiano das grandes cidades, em várias localidades do

mundo. Porém, é no Brasil, onde essa realidade ficcionalizada por Luandino se faz mais

presente e exibe o alto grau de desinteresse público para com os menos favorecidos.

Diferentemente do que se verifica na narrativa de Luandino, tal realidade não

chega a ser descrita por Amado, que se limita, em Jubiabá, a sugerir estragos

provocados pelas chuvas no morro do Capa-Negro. Luandino, por sua vez, coloca essas

questões em debate de forma mais explicita, salientando a omissão de todos,

principalmente, do poder público. No território brasileiro, em tempos atuais, fatos como

os estragos ocasionados pelas chuvas nas áreas mais pobres das cidades ganham

publicidades em vários meios de comunicação, levando o governo a adotar medidas

paliativas, que não resolvem efetivamente o problema, mas o posterga até a próxima

tragédia. Traz-se novamente o trecho da narrativa de Luandino, onde o autor chama a

atenção para a falta de interesse da imprensa local no que diz respeito aos fatos

catastróficos que acometem os moradores dos musseques de Luanda – fatos esses que,

não obstante a morte e os estragos provocados pela chuva, nenhum jornal comentou:

Na manhã seguinte, os jornais trouxeram grandes descrições da chuvada e

fotografias mesmo dos estragos, mostrando ruas com buracos, árvores

arrancadas, automóveis inutilizado, areia pedindo tractores. Do menino

afogado na lagoa da Pameli ou da faísca que matou na criança refugiada

embaixo da mulemba, ou das muitas cubatas que tinham caído no musseque

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deixando seus moradores sem abrigo, ou sepultados em vida, nenhum jornal

falou. Apenas o povo desses musseques soube e lamentou e chorou. Mas, nos

dias seguintes, amigos e conhecidos iam levantar essas casas, essas cubatas

outra vez, iam trazer materiais para reconstruir, iam fazer empréstimos para

enterrar os meninos mortos e continuariam teimosamente a viver. (VIEIRA,

1977, p. 63)

O clima de texto-denúncia se faz presente, mais uma vez, na narrativa. O autor

relata a falta de interesse da imprensa local para com o sofrimento e a dor desses outros

angolanos, que, malgrado a condição de pobreza, mereciam apoio tanto quanto os

moradores das áreas ditas “nobres”, sobre as quais os jornais relataram. Luandino exibe

aqui mais uma marca da separação entre habitantes de uma mesma cidade, agora

representada na desatenção dispensada às pessoas dos musseques em seus momentos de

maior dor que a das outras pessoas da cidade, as quais talvez tivessem maior

possibilidade de lidar com a catástrofe provocada pelas águas das chuvas.

Para uma última análise, vale aqui salientar que, nas narrativas em questão, no

que se refere às águas pluviais, é notória a sua articulação com o elemento “terra”. As

águas da chuva encontram-se quase sempre unidas ao “barro”, formando a lama

corrente, seja nos morros da Cidade da Bahia ou nos musseques de Luanda. Essa

mistura do elemento “terra” com o elemento “água” também forma o que Bachelard

(1998, p. 109) chama de “massa”. É justamente essa massa que se faz presente na

construção das moradias do morro do Capa-Negro, em Jubiabá, e nas residências dos

musseques, em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier. Por conta disso, Luandino

(1977, p. 62) evidencia o drama do povo “[...] metido em suas casas de barro e canas,

cobertas a zinco, assistindo o barro a se desfazer [...]”; e Amado denuncia as ruas e

becos enlameados do morro, suas casas, construídas rudimentarmente, de massa de

barro e madeira. Bachelard (1998, p.109) afirma que “[...] A água, como se dizia nos

antigos livros de química, ‘tempera os outros elementos’. Destruindo a secura [...]”. Nas

narrativas, as águas da chuva caem sobre a terra seca, e tal juntura dá o tom da

desassistência social, exibindo o perfil de espaços e pessoas despossuídos de estrutura e

direitos, ou seja, espaços da “[...] dor social, do arremesso ao mundo da sarjeta e da

indignidade [...]” (MAGALHÃES, 2011, p. 38).

As relações e diálogos permutados entre as duas obras, com base nos elementos

naturais, aparecem, a cada passo dessas narrativas, marcados pelas similaridades nas

abordagens e pelas diferenças entre elas. Luandino Vieira e Jorge Amado trazem para os

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seus escritos um pouco da magia que tais elementos dão ao texto. Os cenários – em

alguns momentos, personificados – interagem com os personagens, como se tivessem a

função de salvaguardá-los, e atribui nova função aos espaços na narrativa – conforme

relata Mayara Neres (2010, p. 27), “Tornar os espaços da narrativa (ou o espaço

entrelaçado) corporificados e, portanto, atribuir-lhes características mágicas é ampliar o

conceito tradicional de espaço narrativo [...]”. Em A Vida Verdadeira de Domingos

Xavier, o autor, a partir da prisão do protagonista, coloca a “lua” e o “céu” funcionando

como uma espécie de testemunhas das ações e, ao mesmo tempo, como o bálsamo que

aliviará as dores daquele herói tão importante para o povo angolano dando-lhe força e

condição para suportar os maus tratos do cárcere:

Deslizando como as águas do rio, estas imagens carregam os pensamentos de

Domingos Xavier, nascendo no cacimbo do cérebro cansado, dorido de botas

de cipaio, quando o luar estendeu em cima do corpo caído na cela o seu

lençol macio. A luz branca entrava no postigo defendido pela rede de aço, e o

tractorista, mal erguendo a cabeça, pôde ver o céu azul, sem nuvens, por trás

das pálpebras inchadas e cheias de areia. Era o céu azul e a lua da sua terra

que olhavam [...]. (VIEIRA, 1977, p. 25-26)

Traz-se aqui a referida passagem, para melhor compreender como os dois

autores operam a partir da fantasia, para atingirem o real. No caso de Luandino, o

escritor induz o leitor a pensar na veracidade do cárcere e a imaginar a dor provocada

pelos maus tratos vivenciados por Domingos, apelando para o fantástico e personifica

os elementos “lua” e “céu”, como se funcionassem como curandeiros das chagas do

protagonista. Dessa forma, o autor realiza um intenso diálogo mítico entre “realidade” e

“fantasia”, atribuindo vida aos elementos que, em si próprios, já encerram extrema

carga mitológica. A lua, que é personificada na mitologia grega em Selene – filha dos

titãs Hipérion e Téia, tendo como irmãos a deusa Eos e o deus Hélios – é símbolo de

coragem, justiça, mas também, de maternidade. (BRANDÃO, 2001, p. 53) Assim

sendo, a imagem, criada por Luandino, da lua estendendo o seu “lençol macio” em cima

de Domingos alude a um gesto maternal muito conhecido – da mãe que cobre o seu

filho durante o sono.

Conforme o já mencionado em parágrafos precedentes, Jorge Amado não hesita

em chamar para sua narrativa os elementos naturais. Nela, o escritor baiano cria uma

imagem, na qual estão presentes o “céu” e a “lua”, mas com o objetivo de descrever

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uma espécie de delírio de Antônio Balduíno – que em momento de fuga da cidade de

Cachoeira, “[...] puxa a navalha, com a garganta seca de sede. [...] Vê no céu azul o

negro velho. Não é lua, não. É Jubiabá. Ele está repetindo, ele está repetindo...”

(AMADO, 2000, p. 173). Nesse trecho, Amado, para criar a noção de delírio –

possivelmente provocado pelo desgaste físico, pela sede e pelo psicológico abalado do

personagem –, apela aos elementos “céu” e “lua” criando uma imagem fantástica de

projeção da realidade – no caso, o pai-de-santo Jubiabá – na fantasia – o “céu” e a “lua”.

Como bem lembrou Tzvetan Todorov (1980, p. 16), “[...] O fantástico é a

vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as leis naturais, frente a

um acontecimento aparentemente sobrenatural.” Segundo o autor, há uma diferença

entre a oposição “real-imaginário” e a oposição “real-ilusório”, tendo como base a

veracidade dos acontecimentos. Para Todorov, no primeiro grupo, não ocorre nada de

sobrenatural, pois o que se acredita ter visto não passa de um desvio da força da

imaginação – como um sonho, uma alucinação, uma loucura; no segundo grupo, os

acontecimentos têm lugar, mas podem ser explicados racionalmente – ou como

coincidência, ou fraude, ou ilusionismo. Provavelmente, uma série de elementos

convergiram para que Baldo enxergasse a imagem do pai de santo projetada na lua. O

cansaço ocasionado pela fuga, a sede, a estranheza do lugar, o ferimento, o abalo

psicológico, provocado pelo medo de ser encontrado, e o próprio afastamento do

“macumbeiro” que sempre o protegera, tudo isso pode ter contribuído para sua visão.

Baldo olha a lua e vê Jubiabá estampado nela. Existe toda uma simbologia por

trás dessa ideia de representação do pai de santo, visto que o velho feiticeiro funciona,

na trama, como uma espécie de tutor de Balduíno, sempre a lhe apontar caminhos.

Entrelaçar a imagem de Jubiabá à imagem da lua se justifica miticamente, pois alude a

importantes símbolos de coragem, proteção e justiça, que são próprios do elemento

“lua”. (BRANDÃO, 2001, p. 60)

Bem ao estilo do que acontece com a água e com a “terra”, o terceiro elemento

que entrelaça as duas narrativas é o “fogo”, o qual aparece codificado de diferentes

formas nas tramas. Em Jubiabá, tal elemento traduz-se por meio da “luz” – as luzes que

se acendem na Cidade da Bahia. E já nas primeiras páginas do segundo capítulo da saga

amadiana, o autor apresenta a atração que as luzes provocam em Baldo, a ponto de o

menino ficar “[...] em cima do morro vendo a fila de luzes que era a cidade [...]”

(AMADO, 2000, p. 7). Nota-se, com isso, que a relação primeira entre o elemento

“fogo” e a criança (Antônio Balduíno) dá-se pelo prisma do encantamento. Para

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Bachelard, “[...] a interdição social é nosso primeiro conhecimento geral sobre o fogo.

O que se conhece primeiramente do fogo é que não se deve tocá-lo.” (BACHELARD,

1999, p.17, grifo do autor).

Na esteira deste pensamento, sabe-se que o fogo provoca, na criança, uma

atração que sugere ao toque e que, ao fazê-lo, a criança percebe, pela dor da

queimadura, que tal elemento é algo a ser apenas contemplado, admirado de longe. É o

que também sugere Bachelard (1999, p.16), quando afirma haver “[...] portanto, na base

do conhecimento infantil do fogo, uma interferência do natural e do social, em que este

último é quase sempre dominante” – ou seja, o aspecto quente do fogo intervém

naturalmente na sua relação com a criança; ao passo que a advertência dos adultos em

relação ao fogo estabelece uma interferência de cunho social. Bachelard ainda segue

afirmando que “[...] talvez não se tenha reparado o bastante que o fogo é muito mais um

ser social que um ser natural.” (BACHELARD, 1999, p.15, grifo do autor)

Esse breve passeio pela noção bachelardiana da relação entre o elemento “fogo”

e a criança ocorre aqui, para ajudar a pensar a ligação do personagem Balduíno com as

luzes da Cidade da Bahia, visto que, na narrativa, as luzes causam na personagem um

efeito purificador, como o fogo, e, ao mesmo tempo, revelador.

Bachelard (1999, p.12) não entende ser o “fogo”:

[...] um calor violento, tumultuoso, irritante e antinatural, que queima em vez

de cozer os humores, assim como os alimentos; mas o fogo brando,

moderado, balsâmico; o qual, acompanhado de uma certa umidade,

semelhante à do sangue, penetra ao humores heterogêneos da mesma forma

que as substancias destinadas à nutrição [...]

E, é nessa perspectiva de entendimento do elemento “fogo” que se percebe, em

Jubiabá, uma purificação de Antônio Balduíno a cada acender das luzes, entrando numa

espécie de catarse que se repete diariamente e parece revelar-lhe um caminho:

[...] Bem sabia que perderia o jantar e que a surra o aguardaria na volta. Mas

não era isso que o impedia de ir ver de perto o barulho da cidade que se

recolhia do trabalho. O que ele não queria perder era o acender das luzes,

revelação que era para ele sempre nova e bela. (AMADO, 2000, p. 8)

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Com esse fragmento, Jorge Amado indicia o que está por vir na vida do pequeno

Balduíno. A revelação que a ele se apresenta será, mais tarde, a de uma vida conturbada

naquela cidade-luz. A purificação provocada pelo acender das luzes parece querer

colocar o personagem em estado de profunda depuração, torná-lo “melhor”, para, quem

sabe, no futuro, ele venha a ser uma liderança daquele lugar:

Mas as luzes que se acendiam purificavam tudo. Antônio Balduíno se

envolvia na contemplação das fileiras de lâmpadas, mergulhava os olhos

vivos na claridade e sentia vontade de agradar os outros negrinhos do morro

do Capa-Negro. Se algum se aproximasse dele naquele instante ele o

acariciaria, sem dúvida, não o receberia com os beliscões costumeiros, não

diria os palavrões que cedo aprendera. Passaria, sem dúvida, a mão sobre a

carapinha do companheiro de brinquedos, recostaria o seu peito ao peito do

amigo [...]. (AMADO, 2000, p. 9)

Depreende-se, a partir desse trecho, que o “fogo” interfere no comportamento de

Baldo, toca sua sensibilidade, despertando-lhe um outro ser bem diferente do cotidiano

moleque travesso, brigador, que atira pedras nos outros garotos e que rola com eles

ladeira abaixo quando em luta corporal.

Amado habilidosamente faz um jogo com o elemento “luz” e aproveita o caráter

polissêmico desse termo, para desvelar, na obra, questões alusivas à construção da

resistência política. Historicamente, o termo “luz” sempre esteve ligado ao saber, ao

conhecimento, graças ao Iluminismo, que deu conta de propagar tal conceito, tornando

o saber fruto de uma iluminação. Nos termos de Kant (1784, p. 1), Iluminismo é “[...] a

saída do homem da sua menoridade [...] a menoridade é a incapacidade de se servir do

entendimento sem a orientação de outrem”, sendo assim, as luzes da Cidade da Bahia

que tanto seduzem o pequeno Baldo, o fazem possivelmente com o objetivo de

convocá-lo a uma fuga da “menoridade” kantiana, já que “[...] Há no homem uma

verdadeira vontade de intelectualidade [...]”.(BACHELARD 1999, p.18) E é

exatamente o que sugere a narrativa ao relatar a descoberta da greve por Balduíno e a

sua “libertação” da influência do pai de santo Jubiabá.

Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a Cidade da Bahia ao apresentar o fogo

das luzes a Balduíno, levando-o superar o seu mestre – Jubiabá – bem como a mudar a

sua história, reflete o que Bachelard chamou de “complexo de Prometeu” – sob o qual

propõe agrupar “[...] todas as tendências que nos impelem a saber tanto quanto nossos

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pais, mais que nossos pais, tanto quanto nossos mestres, mais que nossos mestres [...]”

(BACHELARD, 1999, p.18, grifo do autor) – inclusive, após descobrir o caminho da

luta contra os ricos, Baldo torna-se para o seu antigo mestre “[...] Oxolufã, Oxalá velho,

o maior dos santos.” (AMADO 2000, p. 316).

Vê-se que Amado vai fundo nas imagens e codifica, por meio do elemento “luz”,

algo que representa um dos pilares do pensamento comunista: a iluminação da classe

operária – não é à toa que Baldo irá obedecer ao chamado das “luzes” e conhecerá a

greve como luta política da classe operária.

Já em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, o elemento “fogo” é codificado

por meio do “sol”. Luandino encontra, nesse astro, o elemento capaz de transmitir

energia e vida para os personagens. Curiosamente, o “sol” é o elemento que permeia a

narrativa, sempre se antecipando a acontecimentos importantes. E é exatamente o “sol”

o grande “fogo” purificador, que, na narrativa, irá ativar a memória do personagem

“velho Petelo”, fazendo-o lembrar de um “antigamente” de liberdades, para, assim,

purificar o seu presente, marcado por repressão e ausência de liberdade. O autor coloca

o “sol” como símbolo do que era mais caro aos angolanos naquele momento, a

liberdade depuradora:

O sol subia no céu azul sem nuvens. Velho Petelo olhava com saudade a

mancha nebulosa na ponta da Ilha – a ponte do carvão, com certeza já não via

bem, mas jurava mesmo – onde tantas vezes atracara e carregara carvão para

as caldeiras. [...] Com quatro matonas e um roncador pescados, velho Petelo

enchendo de sol suas recordações [...]. (VIEIRA, 1977, p. 16)

Luandino ainda atribui ao “sol” um caráter libertador, visto que o seu

aparecimento libera as recordações do velho Petelo, trazendo imagens de um momento

de felicidade na vida do ancião; e, ao mesmo tempo, o autor confere ao referido astro a

condição de “curador”, pois, como um bálsamo, irá proteger, aliviar e livrar Domingos

Xavier das dores psicológicas do cárcere, promovendo imagens que o remetem à crença

no término do seu infortúnio:

E mais imagens, mais visões, com o luar a brincar dentro da cela. A longa

estrada; os imbondeiros floridos; a viagem, na carrinha, pela madrugada

depois da noite na Administração. Pés, mãos e pescoço amarrados numa só

corda e o cheiro bom da terra malhada pelo cacimbo da noite entrando no

nariz, dilatando o peito. O bater cego do cipaio a qualquer movimento. Mas o

sol da manhã a beijar-lhe as feições inchadas, a revelar-lhe, depois, a larga

porta chapeada se abrindo diante dos olhos, nessa manhã clara, com os

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cipaios surrando e correndo atrás do povo que ele sentiu solidário no seu

silêncio, que ele ainda viu na frente dos olhos colados e inchados. [...].

(VIEIRA, 1977, p. 26)

Vê-se, portanto no fragmento acima, que, por meio das imagens e visões,

Domingos, vive momentaneamente sensações boas e ruins, que se alternam até a

chegada do “sol” pela manhã, o qual lhe servirá de bálsamo para as dores psicológicas,

ocasionadas pelos infortúnios do cárcere. Esse caráter medicinal do “sol” está presente

no pensamento de Bachelard (1999, p.12), para quem tal astro, que normalmente está

associado à ideia de luz e vitalidade, é, junto com o fogo, “o medicamento mais

insinuante”.

Dada a alusão do elemento "fogo" à liberdade, pela presença do sol,

referenciando a condição inalienável do ser humano de já nascer livre, faz-se importante

abrir aqui um parêntese para revelar que a conexão entre “sol” e “liberdade” parece tão

íntima de Luandino, que, em determinado momento da narrativa, tem-se dúvida acerca

de quem fala, ou seja, a voz do narrador parece invocar a voz do autor – também

ansioso por ver Angola livre do colonialismo – e interfere no pensamento do

personagem Xico João, no instante em que ele pensa na prisão de Domingos Xavier:

Na boca do velho Petelo e miúdo Zito, menino corredor de todos os

musseques, caçador de fisga e visgo, aquela cara não lhe conheciam lá em

cima. Mas o importante era dar encontro em Miguel, talvez ele sabia quem

era. Se não sabia, ia informar quem devia, da prisão do companheiro. E

assim, pensativo, perdia o poente bonito, nosso sol se afogando no sangue do

mar azul de todas as cores. (VIEIRA, 1977, p. 39. Grifo meu)

A presença da expressão “nosso sol” na presente citação deixa clara a

interferência de uma voz do narrador. Possivelmente a voz de um angolano, saudoso e

nacionalista. Não seria nenhuma surpresa se o autor, ao criar a narrativa, colocasse, para

narrá-la, um angolano apaixonado por seu país e por suas belezas naturais, por seu

“poente bonito” ou pelo seu “mar azul de todas as cores”. Luandino se assume um

apaixonado por Angola, não só pelas declarações que já deu sobre o seu amor por esse

país que o adotou e que ele, por sua vez, também o fizera; nem só pelo seu explícito

amor por Luanda, seu topônimo, mas, pelas incansáveis tentativas de mostrar, nas

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narrativas de sua autoria, a referida cidade como uma terra que, malgrado as espoliações

coloniais e sofrimento do povo, nunca deixará de ser um lugar de beleza, magia e de

fecundas cores.

Se o elemento “fogo”, representado ora pelo “sol” ora pela “luz”, é símbolo de

liberdade e proteção, o elemento “ar”, o quarto elemento comunicante entre as

narrativas, é o elemento que antecede a chegada de vários eventos, ou seja, é uma

espécie de “sentinela avançada”, representada, nas obras, pela ação dos ventos.

Em Jubiabá, os ventos se antecipam às chuvas, como um prenúncio da chegada

das tempestades, que vêm purificar o morro com as suas águas, à espera do acender

catártico das luzes:

A tarde tinha sido sombria, cheia de nuvens negras. Com a noite veio um

vento grosso, pesado, que apertava os homens no pescoço e assoviava nos

becos. Enquanto as luzes não acenderam o vento dominou a cidade, correu

com os moleques pelas ladeiras, visitou as mulheres do beco das Flores e do

beco de Maria Paz, levantou nuvens de pó, invadiu casas e quebrou

moringas. Quando as luzes acenderam caiu uma chuva violenta, um temporal

como há muito não havia [...]. (AMADO, 2000, p. 37)

Vê-se que, enquanto as luzes não se acenderam, os ventos tomaram conta do morro e da

cidade, como que para anunciar a chegada de uma depuração, que seria causada pelo

fogo das luzes.

Na presente narrativa, além do caráter prenunciador, os ventos também querem

indiciar liberdade, haja vista serem eles que sopram as velas dos saveiros, fazendo os

marinheiros navegarem mar adentro, onde, “[...] Pela manhã sairiam rápidos, atirados

pelo vento, as velas soltas, cortando a água da Bahia.” (AMADO 2000, p. 117). Esses

mesmos ventos que ora atiram os barcos nas águas salgadas do mar da Cidade da Bahia,

sopram desse mar para a cidade de Luanda, em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier,

também se antecipando às chuvas:

A brisa marítima não soprou e meio-dia quase, nuvens muito brancas e

grossas começaram a subir do Sul empurradas por ligeiro vento que se

levantou ao princípio da tarde. E foi depois a grande chuvada que deixou um

rasto funesto no musseque de casas de zinco, pau-a-pique, madeira, latas

velhas, papelão até. (VIEIRA, 1977, p. 53)

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Se, em Jubiabá, os ventos anunciam chuvas purificadoras, o mesmo ocorre em A

Vida Verdadeira de Domingos Xavier, pois, logo após o cair das chuvas, descrito na

passagem acima, há uma renovação da paisagem, com a emergência de um bucólico dia,

como se pode ver em: “[...] o dia era lindo. Algumas acácias, junto à estrada, exibiam

suas flores cor de fogo [...]” (VIEIRA, 1977, p. 53).

Percebe-se que na narrativa de Luandino caminha para apontar os ventos como

sendo prenúncio de chuvas. A sua presença é sempre ameaçadora e, vez por outra,

arrasadora, como as próprias tempestades:

[...] aquele vento sufocante que começou a soprar no princípio da tarde,

levando papéis e folhas pelo musseque acima, com o sol se escondendo nos

grossos novelos de nuvens brancas correndo para nordeste [...]. (VIEIRA,

1977, p. 58)

Na obra, o autor revela não só a forma como os ventos se antecipam à chegada

das chuvas, mas também como as prepara:

[...] lá em baixo, na Baía, os grandes barcos escuros parados, as águas

virando de azul bonito para cinzento. O vento tinha parado novamente, e o

calor já não era tão pesado. O sol desaparecera tapado na camada de nuvens

que agora voavam em cima de toda a cidade, negras e ameaçadoras.

(VIEIRA, 1977, p. 59)

Pode-se depreender, portanto, que os ventos aparecem, em ambas as tramas,

como símbolo de renovação e liberdade, marcado pelo poder renovador das chuvas.

Porém, na narrativa luandina os ventos possuem existência ambivalente, visto que a sua

presença pode ser positiva ou negativa: tanto pode trazer destruição para uns –

conforme já foi mostrado em passagens precedentes – quanto fazer a alegria dos outros

– como se pode ver em: “[...] Nem um vento pequenino que fazia, mulembas não

xaxualhavam, meninos de papagaios na mão esperavam só o vento da brincadeira.”

(VIEIRA,1977, p. 54). Nesse fragmento, o autor exprime o caráter lúdico do vento, que

faz a alegria das crianças, em contraste com o seu perfil devastador, de vanguarda das

tormentas, uma vez que, os “meninos de papagaios na mão” esperavam apenas que o

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vento – cujo perfil relaciona-se com a leveza e a dinâmica (BACHELARD, 2001c, p.

165) – desse movimento aos seus papagaios.

Quatro elementos são trabalhados esteticamente pelos autores como forma de

desenvolvimento simbólico, que torna as narrativas recheadas de possibilidades

interpretativas, capaz de estabelecer com a realidade diálogos múltiplos. Jorge Amado e

José Luandino Vieira trabalham a partir de imagens e tentam encontrar, nas

possibilidades subjetivas da linguagem ficcional, códigos que transmitirão mensagens

possíveis de serem decodificadas por meio da sensibilidade. Percebe-se nos dois

autores, cada um a seu tempo, que eles escrevem talvez com o igual intento de defender

uma ideia de liberdade que se encontra totalmente sucumbida do seio social, mas que se

plasma nos elementos da natureza. Nas tramas em estudo, seus protagonistas, como

heróis, irão demonstrar a sua luta em busca dessa liberdade, sob a proteção da “mãe

natureza”.

Entende-se a literatura como portadora da função de levar a cada leitor,

mensagens, permitindo-lhe o contato direto com os códigos formulados por uma

infinidade de autores, em diversas partes. E ao leitor cabe romper a barreira do

imediatismo interpretativo, fazendo mover a “roda” das múltiplas significações. Só

assim será possível adentrar ao campo da pluralidade e perceber as possibilidades

presentes no texto literário.

4.2 AMADO E LUANDINO: A CONSTRUÇÃO MÍTICA DO HERÓI

Se as narrativas em estudo se aproximam no tocante ao trabalho com os

elementos naturais, chega-se aqui a um momento de divergência entre elas. Ambas as

obras trazem à baila questões míticas envolvendo os seus personagens centrais, Antônio

Balduíno e Domingos Xavier, que se tentará aqui expor algumas delas.

Pode-se notar, ao longo da narrativa amadiana, que Jorge Amado, na perspectiva

de construção de um herói – Balduíno –, o faz à imagem e semelhança do orixá Ogum3.

Essa constatação pode explicar a extrema relação do personagem com o Mar – a qual,

inclusive, já foi relatada no início deste capítulo –, visto que a tradicional mitologia ____________________________

3 Na mitologia Iorubá e no Candomblé da Bahia, é o orixá ferreiro, senhor dos metais.

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Iorubá revela ser Ogum filho de Iemanjá. Além disso, sendo Ogum o orixá considerado,

nas religiões de matriz africana, principalmente o Candomblé da Bahia, como “o grande

ferreiro”, as próprias armas utilizadas por Balduíno para sua defesa – ou seja, punhais,

facas e navalhas –, revelam a ligação com esse orixá. Também merece atenção o

envolvimento do personagem com as mulheres da Cidade da Bahia. Na narrativa,

Antônio Balduíno ama a todas as mulheres, mas não se prende a nenhuma delas. Quer

ser livre, para viver novas histórias, para lutar outras lutas pelo mundo a fora, sem

compromissos:

[...] Mulata que aparecesse na sua frente era mulata amigada com ele. [...] Ele

as amava e não as via mais. Passavam pela sua vida como aquelas nuvens

que passavam pelo céu e que serviam para ele fazer as comparações com elas

[...]. (AMADO, 2000, p. 85)

Já Orlando Costa Santos (2000, p. 10) revela que:

Ogun é um solteirão convicto. Teve muitas mulheres, mas não vive com

nenhuma. Um dos mitos sobre ele diz que Ogum é filho de Iemanjá com

Odudua. Desde criança já era destemido, impetuoso, arrojado e viril, tendo se

tornado sempre mais e mais um brilhante guerreiro.

Se se tomar a descrição que é feita de Ogum por Orlando Costa e confrontá-la

com a descrição de Jorge Amado sobre Baldo – inclusive de que ele “Cedo chefiou os

demais garotos do morro, mesmo os bem mais velhos do que ele. Era imaginoso e tinha

coragem como nenhum. Sua mão era certeira na pontaria do badoque e seus olhos

faiscavam nas brigas [...]” (AMADO, 2000, p. 10-11) –, poder-se-á concluir, com mais

veemência, haver ligação entre ambos. As características atribuídas a Baldo não só o

aproximam das miticamente descritas para o orixá Ogum, como também podem revelar

a fonte de construção de tal personagem. Em Jubiabá, o perfil aguerrido de Antônio

Balduíno, sempre entrando em lutas para defender a si próprio ou a outrem, aparece por

toda a narrativa. Mas é justamente no capítulo de nome “Fuga”, que Amado imbrica a

imagem do homem à do orixá, descrevendo a fuga de Baldo da cidade de Cachoeira

pelas matas, tal como a mitologia Iorubá descreve a viagem de Ogum da terra rumo ao

“Orum”6:

_______________________

6 Orun é uma palavra da língua Ioruba que define o céu ou o mundo espiritual.

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Abre caminho pelo mato. Corre entre as árvores que se fecham. Há bem três

horas que ele corre assim, como um cão perseguido pelos garotos malvados.

No silêncio do mato os grilos se fazem ouvir. Corre sem rumo, corre,

perdido, varando o mato, com os pés doídos evitando as estradas, se rasgando

nos espinhos. [...] E o mato sem fim se estende na sua frente. Não vê nada na

escuridão. Agora pára. Ouve ruídos de matos quebrados. [...] Fica atento, a

mão na navalha, única arma que lhe resta. [...] A navalha está aberta em sua

mão [...]. (AMADO, 2000, p. 168)

Tanto a fuga como o comportamento de Baldo no interior da mata remete à

figura de Ogum. A história mitológica desse orixá dá conta de informar que ele é o

responsável pela condução dos mortos rumo ao segundo plano – o plano dos ancestrais.

E o “grande desbravador” faz tal condução pelas florestas. Roland Walter (2009, p.217)

revela que “Além de ser um dos símbolos-chave da resistência à escravidão, a floresta é

um lugar de iniciação histórico-cultural [...]”. E, para Chamoiseau (1997, p. 105), “a

floresta é o lugar do renascimento”. Refletindo em torno de tal pensamento, e levando

em consideração o fato de ter, miticamente, Ogum, a missão de desbravar o caminho e

apresentar aos mortos o “Orum” – segundo a mitologia Iorubá, morada de Olorum, o

grande Deus – tal orixá seja considerado, pela tradição Iorubá, como sendo uma espécie

de “Prometeu” africano. (REIS, 1999, p. 77)

Se, por um lado, busca-se aproximar o personagem amadiano Antônio Balduíno

de um ícone da mitologia africana e representante do “sagrado” na cultura afro-

brasileira; por outro, entende-se a construção do personagem de Luandino, Domingos

Xavier, como sendo mais próximos dos princípios da cristandade. Desde a sua captura

até o cárcere, Domingos carrega a grande “cruz” da liberdade do povo angolano. Na

narrativa de Luandino, o protagonista morre mas não revela os assuntos da sua gente.

Todo o sofrimento por que ele passa, pode ser comparado ao sofrimento de Jesus –

personagem que, na tradição cristã, teria colocado a sua vida em favor da humanidade.

Com isso é possível inferir que Luandino vai buscar, no Catolicismo – muito presente

em Angola –, as bases para fundar um grande herói nacional.

Além disso, não parece nenhuma coincidência o fato de a esposa de Domingos

chamar-se “Maria” e peregrinar, durante dias, à sua procura, visto que a história do

Cristianismo dá conta de relatar que Maria, mãe de Jesus, também peregrinou até

concebê-lo e fazê-lo nascer na mente e no coração do povo. Por conta disso e para além,

Luandino, estratégica e curiosamente, constrói a trajetória da referida personagem

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sempre pelo caminho das flores e, dentre outras flores citadas em sua narrativa, ancora-

se nas “acácias”, para adornar o caminho de Maria: “Na hora que Maria levantou o dia

era lindo. Algumas acácias, junto à estrada, exibiam suas flores cor de fogo

[...].”(VIEIRA, 1977, p. 53); e mais “[...] A vila se escondia entre as acácias floridas,

bananeiras, milheirais, tudo na sua volta era verde, fresco e novo e as águas do rio

tinham também cor verde. Mas Maria seguia indiferente pelo meio do caminho.”

(VIEIRA, 1977, p 30). Convém lembrar que a acácia é uma planta muito descrita em

algumas passagens bíblicas e, na historiografia cristã, acredita-se ter sido adornada por

acácias a coroa de espinhos colocada em Cristo.

Pode-se entender como sendo estratégica a postura desse autor de criar a

personagem Domingos Xavier amparada em bases cristãs, visto que, naquela

conjuntura, Angola era colônia de Portugal, e o Catolicismo imperava como religião

oficial; some-se a isso o fato de ser a maioria da população analfabeta em língua

portuguesa. Diante disso, fica evidente que a melhor saída seria o entendimento pela

imagem: associar a imagem de Domingos Xavier à imagem de Cristo talvez fosse a

melhor forma de usar a arma do colonialismo contra o próprio colonizador. Vale

observar, ainda, que assim como Cristo, Domingos sofre no cárcere, durante dois dias,

vindo a morrer no terceiro dia para ressuscitar no seio do povo angolano:

– Irmãos angolanos. Um irmão veio dizer mataram um nosso camarada. Se

chamava Domingos Xavier e era tractorista. Nunca fez mal a ninguém, só

queria o bem do seu povo e da sua terra. Fiz parar esta farra só para dizer

isto, não é para acabar, porque a nossa alegria é grande: nosso irmão se

portou como homem, não falou os assuntos do seu povo, não se vendeu. Não

vamos chorar mais a sua morte porque, Domingos António Xavier, você

começa hoje a sua vida de verdade no coração do povo angolano… (VIEIRA,

1976, p. 94)

Débora Leite David, em estudo já mencionado no presente trabalho, muito bem

observa essa questão da comparação de Domingos à imagem de Cristo. Porém, a autora

limita-se à observação, sem discutir tal correlação, apenas descrevendo o fato como

sendo “emblemático” – certamente por já perceber a necessidade de desdobramentos:

Domingos é retirado do interior da cela para ser submetido ao último

interrogatório que é descrito detalhadamente. Esse capítulo termina com a

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morte do preso na madrugada de sábado, terceiro dia após a morte de

Domingos. Entendemos como emblemático o fato da morte do protagonista

ocorrer no terceiro dia a contar do início da narrativa, parecendo apontar para

a passagem bíblica sobre a morte e a ressurreição de Jesus Cristo. Domingos,

com a sua morte no terceiro dia de martírio e dor “começa a sua vida de

verdade no coração do povo angolano”. (DAVID, 2006, p. 57)

Diante do exposto, vê-se que tanto Amado quanto Luandino buscaram, na

tradição cultural, os mitos que fundariam a construção de seus protagonistas. Antônio

Balduíno e Domingos Xavier são frutos de referências que orientam – e continuam a

orientar – as práticas sociais de Brasil e Angola, as quais – como se procurou mostrar –

acabam por engendrar modelos advindos do campo mítico-religioso.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os teóricos da literatura comparada, dentro dos seus históricos embates sobre a

natureza e a função desse campo de saber, bem como de seus calorosos debates sobre a

noção de “fontes” e “influências”, trouxeram à lume questões importantes de serem

observadas. Uma dessas questões gira em torno da própria forma como eram

comparadas as obras. Se, dentro da história, o comparatismo literário sempre se

preocupou em comparar duas ou mais obras, evidenciando os seus pontos comuns, ou

tentando nelas observar releituras de outros textos, ou ainda para se incorrer em juízos

de valor; em tempos atuais, vislumbra-se enveredar por searas outras no trato com essa

prática. Pode-se tomar por ponto de partida caminhos que aproximem as obras a partir

de elementos pouco objetivos, no sentido de explorar os “espaços vazios” das

narrativas, representados pelos interstícios entre uma e outra interpretação.

Feito isso e rompendo com a noção de filiação de uma obra literária a outros

textos considerados “fontes”, a literatura comparada quebra, em definitivo, a noção de

“dependência literária” e coloca a figura do escritor como alguém dotado de alguma

autonomia. Também é possível afirmar que o próprio desenvolvimento da ideia do que

é fazer literatura comparada – agora não mais uma simples prática de comparar textos,

mas observação que se tem do conjunto da narrativa – já revela um promissor caminho

para esse campo.

Quando se resolveu trabalhar com as duas obras em questão – Jubiabá e A Vida

Verdadeira de Domingos Xavier –, pretendeu-se, a bem da verdade, observar

aproximações entre ambas que fossem além das já desgastadas análises geralmente

apontadas. A opção por duas narrativas que contam histórias aparentemente distintas

deu-se por acreditar no poder comunicativo da literatura e na intrigante prática que é o

comparatismo literário. Aproximar tais obras significou laçar um olhar distinto sobre a

própria experiência de “criar”. Contudo, cumpre informar que não se buscou aqui

responder ao questionamento acerca de quais seriam os limites da obra literária no que

concerne ao comparatismo, mas, sim, esgarçar as sintéticas visões que há no tocante a

essa temática, colocando a obra literária como uma fecunda demonstração de

experiência estética.

Quando se identificou em Jorge Amado e Luandino Vieira, por meio das

narrativas em estudo, diálogos, notou-se que ambos exibem uma codificação de

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linguagem que transcende o texto e invade o terreno da poesia, tornando as duas obras

suscetíveis à intercomunicações. No momento em que também se percebeu nesses

autores uma forma particular de abordagem da realidade, observou-se que as suas

referidas obras apresentavam diálogos que ora aproximavam as narrativas, ora as

separavam. A partir da percepção do olhar que Amado e Luandino lançaram sobre as

suas cidades – Salvador e Luanda, respectivamente –, que priorizava a personificação da

natureza e de seus elementos naturais, fazendo-os interagir com os seus protagonistas, é

que se entendeu as duas obras como sendo próximas.

A Cidade da Bahia e a cidade de Luanda ainda figuram como importante

emblema para se discutir a situação dos seus habitantes negros e pobres; além de

denunciarem os apartheids sociais existentes em seus espaços, que, nas duas narrativas,

opõem a cidade alta à cidade baixa. Apesar das similaridades, na abordagem dos

problemas sociais, entre Jubiabá e A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, a denúncia

das mazelas é feita de forma distinta: Amado, muito embora apresente uma visão aguda

na trama sobre os assuntos da esfera social, em alguns momentos da narrativa, não

expõe claramente esses temas, sugerindo-os apenas, deixando por conta do leitor

interpretações outras; já Luandino Vieira, pela própria situação por que passava a

sociedade angolana naquele momento, de violência institucional e repressão desmedida,

traz mais claramente estampada essas questões – fato que insere os seus textos na

categoria de texto-denúncia, desvelando as reais situações enfrentadas por uma

sociedade colonizada. Isso revela que, não obstante os profundos diálogos entre as

narrativas, ambas exibem também as suas divergências e apontam para mais uma faceta

do comparatismo, que é a de aproximar na diferença.

As citadas obras, que serviram de objeto para o presente estudo comparatista,

foram escolhidas também levando-se em consideração a trajetória dos seus autores. Por

mais que ainda não se tenha total segurança para se perceber qual a relação entre os

fatos vivenciados por um autor e o reflexo disso em sua obra, percebeu-se a intensa

presença de princípios comunistas permeando as narrativas. Amado e Luandino –

propagadores desses princípios – indiciaram, pela própria construção dos seus

protagonistas, uma crença nos pilares do Comunismo: Antônio Balduíno conhece a

greve e torna-se um ativista político; Domingos Xavier é símbolo da articulação dos

movimentos sociais, e sua morte emblematiza a luta do proletariado contra as estruturas

de dominação.

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A comparação entre as narrativas deu o tom dos debates acerca das diferentes

noções de Comunismo que os autores demonstraram ter, desvelando, assim, a sua

distinta tradução, tanto nos termos do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ao qual

Amado era afiliado, quanto no entendimento do Movimento Popular de Libertação de

Angola (MPLA), que forneceu régua e compasso para forjar o pensamento comunista

de Luandino.

Essa diferença aparece plasmada na própria forma como cada um representou a

pobreza e apontou caminhos para solucioná-la. Amado centrou-se nos espaços, com o

intuito de contar a história dos seus personagens – provavelmente numa alusão às

teorias sociais, que preconizavam a influência do meio na formação do indivíduo –, e

colocou a greve como forma de se conseguir a liberdade. Já Luandino partiu dos

personagens, para contar as histórias dos espaços angolanos. Na obra desse autor, os

personagens carregam a carga dramática capaz de fazer imaginar os seus ambientes.

Talvez, por conta disso, alguns personagens de Luandino, não obstante suas condições

de pobreza, apresentam, em alguns momentos, maior dignidade que os amadianos.

Domingos Xavier, por exemplo, apesar da violência perpetrada pelos brancos, manteve-

se firme e “não revelou os assuntos da sua gente”.

A importância de um estudo comparado está justamente na possibilidade de se

entender as diversas trocas simbólicas que ocorrem entre as obras em comparação. Em

Jubiabá, Jorge Amado apresentou, dentre outros símbolos, as águas salgadas como

elemento catalizador da narrativa. Da mesma forma, o fez Luandino com as águas

doces, em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier. Ambos revelaram uma idêntica

ligação das águas com os protagonistas das obras, traduzida na relação de maternidade.

O uso do elemento “fogo” ora representado pelo sol da cidade de Luanda, ora pelas

luzes da Cidade da Bahia, convergiu para o seu entendimento como sendo fonte de

poder, seja o poder do conhecimento – iluminação – seja o poder purificador –

transformação. Tanto Amado quanto Luandino valeram-se de tal elemento, para indicar

momentos de transformação na trajetória dos seus protagonistas.

Ficou ainda evidente que o elemento “terra”, traduzido no barro e na lama

presentes nas referidas cidades, apareceu, para marcar a pobreza da população e a

desassistência estatal. Os autores usaram de igual elemento para, de forma diferente,

denunciarem as mazelas por que passavam os indivíduos de tais urbes. Já o elemento

“ar”, nas tramas simbolizado pelo vento, prenúncio das chuvas, apareceu como marca

de transformação e liberdade. Assim, a presença dos quatro elementos naturais mostrou

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um nível de diálogo particular entre as obras em questão e abriu espaço para múltiplas

percepções de sentidos.

As duas narrativas se aproximam na condição de textos que auxiliam a

afirmação nacional e identitária. Poder-se-ia afirmar que, por essa razão, se constituam

como obras que poderiam funcionar como metonímias do próprio percurso das nações.

Elas denunciaram os problemas sociais, culturais e políticos pelos quais passaram

Angola e Brasil, em diferentes momentos históricos; ao mesmo tempo em que tentaram

resgatar e afirmar traços culturais importantes para a manutenção social. Urge que tais

análises sejam mais exploradas em novos trabalhos, para que se possa ter ampliada a

visão em torno desses dois países, que se comunicam principalmente no plano cultural.

A instituição dos heróis, Antônio Balduíno e Domingos Xavier em ambas as narrativas,

marcou a própria postura dos autores dentro dos seus países, haja vista a luta de Amado

pelo respeito às religiões de matriz africana na Bahia e a de Luandino, pela

independência, cultural, religiosa, política etc, junto à sociedade angolana.

Foi Jorge Amado quem, com Jubiabá, tencionou e pôs em debate questões que a

própria elite brasileira não desejava entabular, como as discussões acerca da condição

dos negros em relação aos brancos – as quais geravam determinismos sociais; da

situação dos trabalhadores em relação aos seus patrões; ou, ainda, acerca da infância

desassistida – fato que já se constituía na realidade das cidades de modernização

iminente. Acredita-se que com o personagem Antônio Balduíno Amado quisesse

discutir a figura do baiano como metonímia do brasileiro e evidenciar, de certa forma,

as contradições e adversidades por que passava esse povo. Porém, questões como essas

devem ainda ser alvo de investigações outras, que intentem demonstrar, mais a fundo, a

riqueza de tais debates.

Entretanto, Luandino – assim como Amado – também estabeleceu tensões

dentro de Angola com a obra A Vida Verdadeira de Domingos Xavier. Denunciou a

violência institucionalizada, debateu a desassistência social plasmada no critério de cor,

bem como revelou a importância da resistência e da unidade na luta contra o

colonizador. Possivelmente, com Domingos Xavier, Luandino tenha intentado

apresentar um modelo a ser seguido por todos que almejassem a liberdade e a

independência colonial.

O cotejo das obras supracitadas flagrou tanto a instituição de iguais projetos de

resistência, plasmados na luta, como permitiu enxergar o poder comunicativo da obra

literária, mostrando ser por meio da literatura que se lançam as bases para engendrar

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modelos, os quais irão balizar processos intercomunicativos, derrubando, aqui e ali,

fronteiras e ampliando os limites da interpretação textual. Perceber aproximações ou

afastamentos entre obras literárias a partir dos seus diálogos significa perceber os

diversos influxos compartilhados entre autores, dentro da mais fecunda demonstração

de liberdade estética.

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ANEXO - José Luandino Vieira e Jorge Amado: biobibliografias

José Luandino Vieira

José Mateus da Graça Vieira, nascido em 04/05/1935, é um escritor angolano

nascido em Portugal. Em 1938, emigrou com os pais para Angola. Passou a juventude

em Luanda, onde concluiu os estudos secundários. A luta contra a dominação

portuguesa custou-lhe mais de uma década na prisão, onde escreveu boa parte de sua

obra, que divide-se entre contos, romances e poesias.

Contos:

A cidade e a infância, 1957;

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Duas histórias de pequenos burgueses, 1961;

Luuanda, 1963;

Vidas novas, 1968;

Velhas histórias, 1974;

Duas histórias, 1974;

No antigamente, na vida, 1974;

Macandumba, 1978;

Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & eu, 1981;

História da baciazinha de Quitaba, 1986;

Romances:

A vida verdadeira de Domingos Xavier, 1961;

João Vêncio. Os seus amores, 1979;

Nosso Musseque, 2003;

Nós, os do Makulusu, 1974;

Kapapa: pássaros e peixes, 1998;

À espera do luar, 1998;

O livro dos rios, 1º vol. da trilogia De rios velhos e guerrilheiros, 2006.

infanto-juvenis

A guerra dos fazedores de chuva com os caçadores de nuvens. Guerra para crianças,

2006.

Poesias:

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Canção para Luanda, 1957;

Natal, 1960;

Buganvília, 1962;

Girassóis, 1962;

Estrada, 1963.

Jorge Amado

Filho de João Amado de Faria e de D. Eulália Leal, Jorge Amado de Faria

nasceu no dia 10 de agosto de 1912, na fazenda Auricídia, em Ferradas, distrito de

Itabuna - Bahia. É um dos representantes do ciclo do romance baiano. Escritor desde a

adolescência, Jorge Amado segue o estilo literário do romance moderno e seus

personagens geralmente são plantadores de cacau, pescadores, artesãos e gente que vive

próximo ao cais, em Salvador, capital da Bahia. Este romancista brasileiro é um dos

mais lidos no Brasil e no mundo, com livros traduzidos para diversos idiomas.

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Romances:

O País do Carnaval, 1930;

Cacau, 1933;

Suor, 1934;

Jubiabá, 1935;

Mar morto, 1936;

Capitães da areia, 1937;

Terras do Sem-Fim, 1943;

São Jorge dos Ilhéus, 1944;

Bahia de Todos os Santos, guia, 1945 (Tradução francesa Bahia de tous les saints,

Paris: Gllimard,1979);

Seara vermelha, 1946;

Os subterrâneos da liberdade, 1954;

Gabriela, cravo e canela, 1958;

A morte e a morte de Quincas Berro d'Água, 1961;

Os velhos marinheiros ou o capitão de longo curso, 196;

Os pastores da noite, 1964;

O Compadre de Ogum, 1964;

Dona Flor e Seus Dois Maridos, 1966;

Tenda dos milagres, 1969;

Teresa Batista cansada de guerra, 1972;

Tieta do Agreste, 1977;

Farda, fardão, camisola de dormir, 1979;

Tocaia grande, 1984;

O sumiço da santa, 1988;

A descoberta da América pelos turcos, 1994.

Contos:

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145

Do recente milagre dos pássaros, 1979.

Biografias:

ABC de Castro Alves, 1941;

O cavaleiro da esperança, 1942.

Memórias:

Navegação de cabotagem, 1992;

O menino grapiúna, 1982.

Viagens:

O mundo da paz, 1951.

Teatro:

O amor do soldado, 1947.

Crônicas:

Hora da Guerra, 2008.

Infantil:

A bola e o goleiro, 1984;

O gato Malhado e a andorinha Sinhá, 1976.

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146

Poesia:

A estrada do mar, 1938.

Fábulas:

O milagre dos pássaros, 1997.