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Apontamentos em Teoria Fonológica. Apostila utilizada na disciplina Linguística II (2014) Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ) 1 Introdução Esta apostila foi concebida para apoio ao curso de Linguística II, ministrado para os cursos de graduação na Faculdade de Letras da UFRJ. Nela, são fornecidos, de maneira muito sucinta, alguns conceitos importantes para a disciplina de Fonologia, bem como são citados textos-base que poderão (ou deverão, a depender dos objetivos do aluno) ser consultados. A fonologia é a área da linguística que se dedica ao estudo do mapeamento entre estruturas dotadas de significação, produzidas no âmbito da morfossintaxe, por um lado, e suas manifestações concretas na fala, por outro, através de unidades linguísticas (não dotadas de significados), como traços, segmentos, sílabas, pés métricos etc. Os tópicos estão desdobrados em capítulos, como segue. No primeiro capítulo, faremos algumas recordações sobre a fonética. No segundo capítulo, falaremos sobre concepções de fonema, bem como sobre as relações envolvendo fonemas, como contraste (ou oposição), distribuição complementar (ou alofonia) e variação. No terceiro capítulo, trataremos de classes naturais, de processos e de regras fonológicas, assim como da interação entre essas. No quarto capítulo, daremos uma breve introdução a fonologia não-linear, na qual abordaremos temas como a geometria de traços e unidades prosódicas (sílaba, acento e o pé métrico).

Universidade Federal do Rio de Janeiro · A Fonética é a área do conhecimento que estuda os sons produzidos pelos seres ... de sons pulmonares ingressivos em alguns idiomas, como

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Apontamentos em Teoria Fonológica. Apostila utilizada na disciplina Linguística II (2014) Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)

1

Introdução

Esta apostila foi concebida para apoio ao curso de Linguística II, ministrado para os

cursos de graduação na Faculdade de Letras da UFRJ. Nela, são fornecidos, de maneira muito

sucinta, alguns conceitos importantes para a disciplina de Fonologia, bem como são citados

textos-base que poderão (ou deverão, a depender dos objetivos do aluno) ser consultados.

A fonologia é a área da linguística que se dedica ao estudo do mapeamento entre

estruturas dotadas de significação, produzidas no âmbito da morfossintaxe, por um lado, e suas

manifestações concretas na fala, por outro, através de unidades linguísticas (não dotadas de

significados), como traços, segmentos, sílabas, pés métricos etc. Os tópicos estão desdobrados

em capítulos, como segue.

No primeiro capítulo, faremos algumas recordações sobre a fonética. No segundo

capítulo, falaremos sobre concepções de fonema, bem como sobre as relações envolvendo

fonemas, como contraste (ou oposição), distribuição complementar (ou alofonia) e variação.

No terceiro capítulo, trataremos de classes naturais, de processos e de regras fonológicas,

assim como da interação entre essas. No quarto capítulo, daremos uma breve introdução a

fonologia não-linear, na qual abordaremos temas como a geometria de traços e unidades

prosódicas (sílaba, acento e o pé métrico).

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1. Fonética

A Fonética é a área do conhecimento que estuda os sons produzidos pelos seres

humanos com objetivos linguísticos. Os sons da fala, ou fones, podem ser classificados a partir

de suas características articulatórias, o seja, disposições dos órgãos do aparelho fonador, tais

como véu palatino, pregas vocais, língua, lábios etc., bem como a partir das interações entre

esses. Para uma revisão sobre a questão, ver Christófaro-Silva (2003) e Callou & Leite (2003).

Em relação ao mecanismo aerodinâmico de produção de sons da fala e o sentido da

corrente de ar, vale ressaltar que, das seis possibilidades lógicas de associação desses dois

parâmetros, para dois não são atestados usos linguísticos: o pulmonar ingressivo e o velárico

egressivo, como mostra a hachura no esquema abaixo.

Há usos paralinguísticos, entretanto, de sons pulmonares ingressivos em alguns

idiomas, como no português (expressando susto ou surpresa), no francês (surpresa) ou mesmo

como marcador discursivo em línguas escandinavas. Como uso paralinguístico, como veremos

mais adiante, nos referimos à falta de uso recorrente e recombinável em raízes/palavras no

léxico. Falantes de várias línguas se utilizam de sons veláricos ingressivos (conhecidos como

cliques) com fins paralinguísticos: é o caso do som [] para representar enfado ou

contrariedade (conhecido como muxoxo) ou, repetidamente [], para representar

desaprovação. Como indicado no esquema acima, são poucas as línguas nas quais esse tipo de

segmento tem uso linguístico, cuja ocorrência está circunscrita à região sudoeste do continente

africano: Xhosa [sa], Zulu, entre outras.

1.2 Sobre a ortografia e sobre a transcrição fonética

Boa parte das línguas do mundo não dispõe de um sistema de escrita. Com o objetivo

de analisar e descrever essas línguas, o pesquisador se vê, muitas vezes, diante de sons não

contemplados pela escrita de sua língua materna, o que torna necessária a existência de

símbolos específicos para a notação desses sons. Além do mais, a ortografia das línguas (nas

sociedades dotadas desta ferramenta cultural), na maior parte das vezes, não expressa detalhes,

que podem se mostrar reveladores de fenômenos nessa língua.

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Foneticistas e fonólogos podem contar com um instrumento para a representação dos

sons da fala: o alfabeto fonético, que consiste em um conjunto de símbolos e diacríticos que

buscam significar, graficamente, os sons da fala. O mais utilizado presentemente é o alfabeto

fonético internacional, da Associação Internacional de Fonética (IPA, sigla em inglês). Esse

alfabeto pode ser utilizado em transcrições fonéticas, que são representações gráficas da fala

ou da sua linearização (em sílabas, palavras, enunciados etc.). Dessa maneira, podemos

reproduzir graficamente essas unidades linguísticas, que podem ser lidas por qualquer um que

conheça esse código.

Os símbolos fonéticos mantêm com os sons da fala uma relação biunívoca, ou seja:

para cada som há apenas um símbolo1, e cada símbolo pode representar apenas um som.

Notemos que a ortografia tradicional não apresenta, via de regra, uma relação biunívoca entre

sons e letras – nem é essa sua finalidade2.

Na, ortografia da língua portuguesa, é possível encontrar algumas letras que

apresentam relação biunívoca com o som que representa3.

letra som classificação fonética do som da fala exemplos

<p> [p] pote, puro

<b> [b] bravo, lobo

<v> [v] vaca, livro

<f> [f] faca, foice

A seguir, enumeramos alguns exemplos da falta de biunivocidade na ortografia de

língua portuguesa:

1) Determinada letra pode representar mais de um som:

letra som classificação fonética do som da fala exemplos

<g> [] gente,

gengiva

[g] gato, guru

<s> [s] sopa, sul

[z] casa, trânsito

[] pasta, casca

1 Para representar determinado som, além do símbolo, pode ser necessário um diacrítico: [b ] (oclusiva bilabial

laringalizada), [z] (fricativa alveolar murmurada) etc. 2 Para mais informações sobre essas questões e seus efeitos sobre o processo de alfabetização, leia: LEMLE, Miriam.

Guia teórico do alfabetizador. São Paulo: Ática, 1988. 3 Letras como t e d mantêm relação biunívoca com o fonema /t/ e /d/, respectivamente, mas não com o som, como

veremos mais adiante, uma vez que esse fonema pode ter realização africada.

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2) Determinado som pode ser representado por mais de uma letra.

som letra classificação fonética do som da fala exemplos

[s] <s> sapo

<c> cenoura

<x> máximo

[] <g> gesto

<j> jeito

<s> asno4

3) Duas letras, em conjunto, representam apenas um som (dígrafo)5.

som dígrafo classificação fonética do som da fala exemplos

[] <ch> chuva

[] <lh> malha

[c] <qu> quieto

[x]6 <rr>

4) Determinada letra representa um sequência dois sons (dífono):

letra som classificação fonética do som da fala exemplos

<x> [] [k]

táxi, nexo,

complexo...

[s]

5) Determinada letra pode não representar som algum:

letra som classificação fonética do som da fala exemplos

<h>7 hora, horta,

A transcrição fonética, portanto, provê um sistema biunívoco de representação dos

sons da fala muito útil, pois a sua utilização torna a descrição de línguas (sobretudo na área da

fonologia, mas não só) uma tarefa mais econômica, porque, uma vez que se grafe o símbolo,

não é necessário explicar nem descrever a articulação do som que ele representa.

4 No dialeto carioca, por exemplo. Em outros dialetos, pode representar o som [z]. 5 O dígrafo pode ser encarado como uma sequência grafema-diacrítico. Sendo assim, teríamos alguns casos em que há

univocidade (ex.: o <lh> representa apenas o som [] e vice-versa), outros em que não há (ex.: o <ch> apenas representa,

no português, [], que também pode ser representado por outros grafemas, como <x>). O <th> do inglês é um exemplo

de dígrafo que representa dois sons (tanto [] quanto []) na ortografia de outra língua. Já o alemão apresenta o que

poderíamos chamar de trígrafo: a sequência <sch> representa a fricativa []. A sequência de grafemas <tch> é exemplo

de trígrafo no português, como em ‘tchau’, ‘tcheco’, representando, ortograficamente, o som [t]. 6 Em algumas variedades do Português do Brasil. 7 No latim, essa letra representava uma fricativa glotal. No inglês e no alemão, a mesma letra representa o mesmo som.

A ortografia do inglês também oferece exemplos de letras que não representam elementos sonoros, como a sequência gh

em light.

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2. Fonologia. Fonema

Sabemos que todo ser humano é dotado de um conjunto de órgãos – conhecido como

aparelho fonador – cuja função primária se relaciona à digestão ou à respiração, mas que são

utilizados também para a produção dos sons da fala (também conhecidos como fones). São

muitas as possibilidades de produção de som. Apesar de esses sons serem muito variados, cada

língua particular utiliza apenas um subconjunto desses sons. A fonologia estuda como os

elementos desse subconjunto se relacionam entre si, formando um sistema, capaz de distinguir

significados. Sendo assim, à fonologia interessa como as línguas particulares organizam seu

sistema sonoro, levando em consideração conceitos como oposição/contraste. Além disso, a

fonologia se interessa pela captura de características universais, buscando dar conta das

semelhanças entre os sistemas sonoros das línguas naturais.

A fonologia8 é o componente gramatical que trabalha com elementos advindos do

léxico, da sintaxe e da morfologia. Tais elementos têm uma estrutura gramatical que é lida

pela fonologia, a qual faz ajustes particulares, considerando essa estrutura, e os desemboca na

fonética. Boa parte das pesquisas em fonologia tenta dar conta do mapeameto entre o que é

externo (fonético) com o que está no âmbito mais interno (gramatical). Sendo assim, itens

como ‘bonita’ {bonit + a} e ‘bonitinha’ {bonit + ia} guardam uma relação semântica,

advinda da base comum (‘bonit’). Considerando realizações como [bonita] e [bonitia], a

fonologia precisa estabelecer o mapeamento entre [t] e [t], considerando que, apesar de haver

alternância de sons, não houve mudança de significado na base. Dessa forma, devemos dizer

que ambos são sons atrelados ao mesmo elemento fonológico (ao qual chamamos de

‘fonema’). Esse mapeamento pode ser feito de maneiras distintas, a depender da teoria que

interpreta a noção de fonema.

Unidade importante para a fonologia, o fonema pode ser relacionado ao fone. Há várias

definições para o fonema, a depender de como a linguagem é concebida. A maneira pela qual

dada teoria (ou dada Escola) encara o fenômeno da linguagem traz desdobramentos para

definição desse elemento (assim como para as demais unidades linguísticas). Veremos, neste

curso, três maneiras básicas de encarar o fonema: a partir de uma realidade próxima à fonética,

uma realidade (propriamente) fonológica e como uma realidade psicológica (para uma

exposição mais aprofundada dessas concepções de fonema, ver Hyman, 1975).

8 Usamos o termo ‘fonologia’ de maneira ambígua, ora para se referir ao componente da gramática do falante, ora para

se referir à subdivisão da linguística que estuda esse componente. O contexto deixará claro o sentido adotado.

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2.1. Fonema como uma realidade fonética

Para a Fonêmica estadunidense, o fonema representa uma realidade físico-fonética. A

seguir, duas definições de fonema dentro dessa concepção são fornecidas. Segundo Daniel

Jones (1974), fonema pode ser visto “uma família de sons em uma determinada língua

consistindo em um importante som da língua juntamente com outros sons relacionados que

ocorre em uma sequência particular de sons”. Visão semelhante partilha Gleason (1955), ao

definir fonema como “uma classe de sons que: (1) são foneticamente similares e (2) exibem

certos padrões de distribuição na língua ou dialeto em consideração”. Desta forma, o fonema

/p/ pode ser visto como uma família de sons que pode reunir, por exemplo, a depender da

língua, [p], [ph], [p

w], [p’] etc. Como vemos, para estudiosos dessa escola, o fonema estava

atrelado a suas variações fonéticas determinadas paradigmaticamente.

Apresentaremos a seguir as relações fonêmicas entre os sons em determinada língua.

2.1.1. Sons em contraste: par mínimo e par análogo

Para determinar se sons pertencem a uma mesma classe – entenda-se: representam o

mesmo fonema – em determinada língua, faz-se necessário examinar a distribuição desses

sons. Sons foneticamente distintos costumam pertencer a fonemas diferentes; dessa forma,

espera-se que tais sons contrastem nas línguas humanas. Se dois sons foneticamente

semelhantes ocorrem no mesmo ambiente fonético e se a substituição de um por outro implica

mudança de significado, esses sons estão associados a fonemas distintos (diga-se: há contraste

entre esses segmentos9). Desta forma, se substituirmos [p] por [b] na palavra portuguesa

‘pato’, teremos ‘bato’, outra palavra portuguesa, donde resulta que esses sons contrastam, ou

seja, têm de ser associados a fonemas diferentes na língua em questão. Similarmente, o par

‘suco’ e ‘soco’ indica o mesmo para as vogais [o] e [u].

Em inglês, temos a ocorrência de [b], [p] e [ph]. Esses sons são foneticamente

semelhantes (os três segmentos são plosivas labiais). Se substituirmos [b] por [p] em bin

‘lixeira’, teremos pin ‘alfinete’, donde se depreende que [b] e [p] se relacionam a diferentes

fonemas nessa língua. Por outro lado, se substituirmos [p] por [ph] em spin ‘girar’, por

exemplo, não obtemos mudança de significado, apenas uma pronúncia diferente, talvez de

estrangeiro. Isso nos leva à conclusão que [p] e [ph] estão associados ao mesmo fonema da

língua inglesa, de sorte que nunca encontraremos um par de palavras que difiram por apenas

9 O termo ‘segmento’ costuma ser utilizado de maneira neutra, ora se referindo a fone, ora a fonema.

Apontamentos em Teoria Fonológica. Apostila utilizada na disciplina Linguística II (2014) Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)

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esses sons nessa língua (ressalte-se que esses três segmentos podem contrastar em outras

línguas; ver exercícios na sequência). Duas palavras que diferem apenas por um som

constituem um par mínimo, situação na qual tais sons apresentam contraste no mesmo

ambiente. No nosso exemplo anterior, os itens ‘pin’ e ‘bin’ constituem um par mínimo no

inglês, pois contrastam no mesmo ambiente (#___in#)10

. Sempre que pudermos estabelecer

pares mínimos para determinados sons, os diferentes sons analisados serão considerados

manifestações de dois diferentes fonemas na língua em questão. No caso em pauta, [p] e [b]

são associáveis, respectivamente, aos fonemas /p/ e /b/11

.

Ao acharmos um par mínimo, podemos dizer que os sons sob análise estão associados

a fonemas distintos (leia-se, entretanto, a seção 1.1.2 Nota sobre par mínimo). No entanto,

nem sempre podemos encontrar um par mínimo, o que pode ser atribuído a uma lacuna

eventual o fato de a língua não oferece, em seu vocabulário, duas palavras que difiram apenas

pelos sons analisados. Tal fenômeno também pode ser, mais frequentemente, decorrente de

lacuna na base de dados. Nesses casos, pode ser útil a busca por um par análogo (ou par quase

mínimo – near minimal pair).

Em alemão, nas palavras Goethe [g:th] e Götter [gt

h] ‘deuses’ encontramos um

par análogo, a partir do qual podemos afirmar, a priori, que as vogais tônicas contrastam. Em

casos como esses, devemos apenas nos certificar de que as diferenças em jogo não estejam

condicionando a ocorrência dos sons analisados (o ambiente análogo seria [g__thV], onde V

quer dizer vogal). A existência de par análogo é suficiente para concluir que as vogais médias

anteriores arredondadas [] e [] se distinguem entre si no alemão, sendo, portanto, fonemas

vocálicos distintos nessa língua. Não se pode dizer que a vogal [] condiciona a vogal [] (cf.

al. Stöcke [tk] ‘bengala’); tampouco que [] condiciona [] (cf. al. Hörer [h:r]

‘ouvinte’). Chamaria os itens Stöcke e Hörer de itens validadores do par análogo.

Em português, os itens ‘bolo’ [bol] e ‘pulo’ [pul] também podem ser considerados

formadores de um par análogo. Se não contássemos com um sem-número de exemplos de

pares mínimos para /p/ e /b/, poderíamos utilizar para o par análogo acima, no qual contraste

entre [p] e [b] é atestado12

. O ambiente análogo seria [__Vl]. Para comprovar que não existe

condicionamento, podemos citar a existência de itens como ‘bule’ e ‘povo’.

10 O símbolo # indica fronteira de palavra. Estando à esquerda, indica início de palavra; à direita, final. 11 É comum o uso de colchetes para indicar fones e barras inclinadas para indicar fonemas. 12 Assim como em muitos casos, o par análogo apresentado também poderia ser utilizado para atestar o contraste entre

outros segmentos: aqui, as vogais [o] e [u].

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Diferentemente do que dissemos sobre o para ‘bolo’ e ‘pulo’ (que eles atestam o

contraste de [p] e [b]), não podemos dizer que o par ‘Tico’ [tik] e ‘Teco’ [tk] conseguem

evidenciar o contraste de [t] e [t]. Isso por que a ocorrência dos segmentos envolvidos é

condicionada estruturalmente, não permitindo que se encontrem itens validadores do par

análogo (desconsiderando empréstimos, como [], por exemplo; ver seção 1.1.2, a seguir).

2.1.2. Nota sobre par mínimo

O par mínimo é uma ferramenta teórico-metodológica muito útil, porém deve ser

utilizada com certo cuidado. Em primeiro lugar, é apressado dizer que a ocorrência de sons em

tal par caracteriza-os como fonemas em si; entretanto, é pertinente dizer que tal ocorrência

atesta o contraste (ou oposição) entre os mesmos. Sendo assim, a existência do par mínimo

[tia]:[dia] não caracteriza esses sons ([t] e [d]) como fonemas, embora o contraste entre

eles seja atestado pela existência desse par e de outros. Portanto, a existência de par mínimo

comprova que os sons envolvidos apresentam contraste, ou seja, tais sons não podem ser

considerados pertencentes ao mesmo fonema. Nesse caso, em português, [t] é pertencente ao

fonema /t/, e [d] pertence ao fonema /d/. Algo muito similar pode ser dito, no inglês, para o

para [kh] e [g] em itens como Kate [k

hejt] ‘antropônimo’ e gate [gejt] ‘portão’.

Outra questão envolvendo esse tema seria sobre considerar mínimos os pares como

[]:[], []:[taw] e []:[]. Pela definição mais corrente de ‘par mínimo’

esses pares de palavras deveriam ser assim consideradas pares mínimos, uma vez que a

oposição entre os dois está estabelecida pela alternância dos sons [t] e [t]. Desse raciocínio

poderia resultar a assunção de que esses sons constituem fonemas separados na língua

portuguesa, o que não é o caso.

Entretanto, podemos verificar a falta de produtividade desse contraste. Evidência

paralela para não considerar a existência de um fonema [] no português é o fato de alguns

falantes do PB não produzirem esse som em ambientes como [], preferindo as formas

[], [] e [], para as palavras tcheco, tchau e tchaco, respectivamente. Esse

‘contraste’ apenas ocorre em alguns itens, todos envolvendo empréstimos linguísticos.

Para refletir...

De que maneira ‘bule’ e ‘povo’ podem ser considerados como itens validadores de que

não há condicionamento estrutural no par análogo composto por ‘bolo’ e ‘pulo’?

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Devemos atentar, nesse caso, para o fato de que essas palavras têm um status especial. Sendo

assim, esse ‘contraste’ está restrito a alguns itens, não envolvendo o sistema como um todo.

Nesse caso, isso poderia ser considerado um caso de contraste limitado (ou restrito), resultado

de processos decorrentes da história externa da língua (no caso, empréstimos lexicais).

Outro ponto digno de nota se refere ao que chamo de informatividade do par mínimo.

Pares como [lapa] e [kapa] nos informam que os segmentos [l] e [k] estão associados a

fonemas distintos, o que ocorre presumivelmente em toda língua natural na qual esses sons

ocorram, devido à grande diferença fonética entre ambos. Sendo assim, [lapa] e [kapa]

constituem um par mínimo pouco informativo. Pares mínimos mais eficientes são aqueles que

apontam o contraste de segmentos muito próximos foneticamente.

Mais hodiernamente, aceitamos o par mínimo como uma ferramenta teórico-científica

utilizada para comprovar quais são os traços distintivos efetivamente operantes em

determinada língua. Em outras palavras, o par mínimo deve apontar a capacidade distintiva de

determinado(s) traço(s) em uma língua particular (ver ‘Traços distintivos’, mais adiante).

2.1.3. Distribuição complementar

Casos há em que o analista não detecta par mínimo nem par análogo para uma dupla de

sons. Muitas vezes, nesses casos, a falta de ocorrência de sons em um par mínimo (ou

análogo) pode estar condicionada pelo ambiente fonético. Nessa situação, onde ocorre um

som, o outro não ocorre e vice-versa: estamos diante de uma distribuição complementar.

Voltando ao exemplo do inglês, [p] e [ph] não são encontrados no mesmo ambiente. No início

de palavra, podemos encontrar [ph] (mas não [p]); porém, depois de /s/, não ocorrem oclusivas

aspiradas. Assim, para as palavras [phin] e [spin], temos dois ambientes: #____ in e #s___in.

Nesse caso, em que os sons ocorrem em ambientes exclusivos, ou seja, em certo(s)

ambiente(s) ocorre um som, nos demais, o outro. Diremos, no caso do inglês, que [p] e [ph] se

encontram em uma distribuição complementar e que os mesmos são considerados alofones de

um mesmo fonema /p/ (daí, também chamarmos o fenômeno mais recentemente de alofonia).

É comum fazer a notação de uma distribuição complementar através de um esquema de

item e arranjo, como segue:

/p/ ocorre como [p] antes de [s];

ocorre como [ph] nos demais ambientes (n.d.a).

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2.1.4. Variação (estruturalmete) livre

Há situações nas quais encontramos os chamados falsos pares míninos. Nas palavras

[bax] e [bah], vemos a alternância de sons no mesmo ambiente. Essa alternância,

entretanto, não é capaz de causar mudança de significado, de maneira que os sons se alternam

e o significado permanece. Nesse caso, dizemos que os sons envolvidos estão em variação

livre, sendo, portanto, variantes livres de um mesmo fonema.

Mais recentemente o termo ‘livre’, não sem razão, tem sido rebatido. Pesquisadores,

sobretudo sociolinguistas, veem o termo certa reserva. De fato, de certa forma o termo parece

indicar a ideia de assistematicidade, de caos. Com a contribuição desses pesquisadores, fatores

externos à estrutura têm sido estudados e têm trazido muita luz à questão da variação, presente

em qualquer língua natural. Para este curso, o termo ‘livre’ será usado como sinônimo de ‘sem

condicionamento estrutural’.

Exercícios (Grupo I)

1) Considere os seguintes dados do grego moderno (dados em Odden, XXXX):

[kano] ‘fazer’ [kori] ‘filha’

[xano] ‘perder’ [xori] ‘danças’

[xjino] ‘pobre’ [k

jino] ‘cinema’

[krima] ‘vergonha’ [xrima] ‘dinheiro’

[xufta] ‘punhado’ [kufeta] ‘bombons’

[kali] ‘charme’ [xali] ‘sofrimento’

[xjeli] ‘enguia’ [k

jeri] ‘vela’

[xjeri] ‘mão’ [ox

ji] ‘não’

a) Dê exemplos de pares mínimos, indicando o ambiente idêntico: ________________________

___________________________________________________________________________

Para refletir...

Para aos sons [d] e [d, ocorrentes no português, podemos encontrar um par

mínimo? Tente explicar sua resposta com base no que foi visto acima.

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b) Dê exemplo de pares análogos, indicando o ambiente análogo: _________________________

___________________________________________________________________________

c) Qual a relação fonêmica das velares [x] e [k]? ______________________________________

____________________________________________________________________________

d) Qual o comportamento fonêmico dos segmentos [x] e [xj], por um lado, e dos segmentos [k] e

[kj], por outro? _______________________________________________________________

____________________________________________________________________________

e) Nos casos de distribuição complementar, monte o esquema de arranjo.

__________________________________________________________________________

__________________________________________________________________________

__________________________________________________________________________

2) Procure definir, dando exemplos com os dados acima e do português, os seguintes termos.

a) Par mínimo.

__________________________________________________________________________

__________________________________________________________________________

b) Par análogo.

__________________________________________________________________________

__________________________________________________________________________

c) Alofone.

__________________________________________________________________________

__________________________________________________________________________

d) Variante livre.

__________________________________________________________________________

__________________________________________________________________________

3) Em dada variedade de espanhol, ocorrem dados como os que seguem (Dados em Hyman,

1975):

a. [baka] ‘banco’ d. [saer] ‘saber’ g. [la aka] ‘o banco’

b. [demora] ‘demora’ e. [naa] ‘nada’ h. [la emora] ‘a demora’

c. [ana] ‘vontade’ f. [lao] ‘lago’ i. [la ana] ‘a vontade’

Considerando os dados acima:

a) Verifique o comportamento fonêmico estabelecido entre oclusivas e fricativas homorgânicas.

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______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

b) Se houver distribuição complementar, esquematize-a em ‘item e arranjo.

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

4) Considere os dados do italiano, abaixo. Há pares mínimos nesses dados? Descreva o

comportamento fonêmico das consoantes nasais (dados de www.cefala.org/fonologia.

Exercício adaptado).

a. [tinta] ‘tinta’ g. [tio] ‘eu pinto’

b. [tenda] ‘barraca’ h. [to] ‘eu tenho’

c. [dansa] ‘dança’ i. [fuo] ‘fungo’

d. [nero] ‘negro’ j. [bjaka] ‘branca’

e. [ente] ‘pessoas’ l. [ake] ‘também’

f. [sapone] ‘sabão’ m. [fao] ‘lama’

5) A aspiração é marcada na transcrição fonética por um h sobrescrito (h). Assim sendo, comente

a diferença, em termos fonêmicos, da atuação dessa coarticulação nas duas línguas abaixo

(dados em Fromkin, V. & Rodman, R, 1993:84-85)

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

Inglês

[pl]~[phl] ‘pílula’

[tl]~[thl] ‘até’

[kl]~[khl] ‘matar’

Tai

[paa] ‘floresta’ [phaa] ‘separar’

[tam] ‘esmagar’ [tham] ‘fazer’

[kat] ‘morder’ [khat] ‘interromper’

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2.2. Fonema como uma realidade fonológica

Para os estudiosos do Círculo Linguístico de Praga, o fonema representa uma realidade

fonológica, intrinsecamente ligada ao sistema de determinada língua. O próprio termo fonologia, com

o sentido em que o empregamos hoje, deve-se aos primeiros trabalhos desse grupo, a partir do final da

década de 1920. Trubetzkoy define fonema como “a soma de características fonologicamente

relevantes de um som”. Dessa forma, fonema deve ser definido em termos de oposições em um

sistema fonológico. Importante noção para o grupo de Praga era a função: “O fonema não pode ser

definido satisfatoriamente nem com base em sua natureza psicológica nem com base em sua relação

com variantes fonéticas, mas tão-somente com base em sua função no sistema da língua”

(Trubetzkoy, 1939: 41, grifo nosso). Sendo assim, o fonema seria uma abstração, um construto

teórico, que é definido em termos de suas oposições dentro do sistema linguístico, uma unidade

mínima13

cuja função é distinguir significados.

Importante conceito dentro dessa concepção de fonema é o de conteúdo fonológico. O

conteúdo fonológico de um fonema é “a essência de todas as características fonologicamente

relevantes de um fonema, isto é, daquelas propriedades que são comuns a todas as variantes desse

fonema e que o diferenciam de outros fonemas da língua, sobretudo os mais próximos” 14

.

2.2.1. Conteúdo fonológico

Como cada sistema fonológico tem suas próprias oposições, o conteúdo fonológico de cada

fonema depende da língua em questão. Mais precisamente, depende das oposições apresentadas pelo

fonema na língua em questão.

No português, por exemplo, os segmentos labiais são /p b f v m/; no espanhol, por seu turno,

são /p b f m/. Assim, o fonema /f/ no português será uma ‘fricativa’ (por oposição a /p/, que é uma

plosiva), ‘labial’ (por oposição a /s/, coronal), e ‘surdo’ (por oposição a /v/). Já no espanhol, o fonema

/f/ será apenas ‘fricativa labial’, por não haver o fonema /v/.

Fonema Língua Opõe-se a Conteúdo fonológico

/f/ Português /p/, /v/ e /s/ Fricativa labial surda.

/f/ Espanhol /p/ e /s/ Fricativa labial.

13 Veremos mais adiante que a unidade mínima reconhecida hoje na fonologia é o traço distintivo, que é menor que o

fonema. 14 TRUBETZKOY (1939:59).

Quadro 1

Apontamentos em Teoria Fonológica. Apostila utilizada na disciplina Linguística II (2014) Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)

15

O conteúdo fonológico também leva em consideração os segmentos opositivos da língua em

questão. Vejamos a seguir a tradução de um excerto de Trubetzkoy (1939). Na sequência, veremos as

oposições trubetzkoyanas, presentes no mesmo livro, e que representam o primeiro insight para os

traços distintivos.

2.2.1.1. Conteúdo fonológico e sistema fonológico15

“Mediante a utilização correta de todas as regras citadas acima, um inventário

completo de todos os fonemas de dada língua pode ser estabelecido. Agora, entretanto,

também o conteúdo fonológico16

de cada fonema deve ser determinado. Como conteúdo

fonológico, entendemos a essência de todas as características fonologicamente relevantes de

um fonema, ou seja, aquelas características que são comuns a todas as variantes desse

fonema e que o diferem de todos os outros fonemas da mesma língua, sobretudo os mais

aparentados. O “k” alemão não pode ser definido como “velar”, porque essa característica

ocorre a apenas uma parte de suas variantes, ao passo que, por exemplo, diante de i e ü [ [y]

], o “k” se realiza como palatal. Por outro lado, a definição do “k” alemão como “dorsal”

(som com o dorso da língua) não seria suficiente, porque o “g” e o “ch” [ [ç] e [x] ] também

são “dorsais”. O conteúdo fonológico do fonema “k” alemão só pode ser formulado assim:

“oclusiva dorsal não-nasalizada fortis (gespannt – tenso)”. Em outras palavras, para o

fonema “k” alemão são fonologicamente relevantes as seguintes características: 1. a

formação de completa oclusão (em oposição a “ch” [ [x], [ç] ]), 2. o bloqueio do acesso à

cavidade nasal (em oposição a “ng” [ [] ]), 3. a tensão da musculatura da língua mediante o

relaxamento simultâneo da musculatura da laringe (em oposição a “g”) e 4. a participação do

dorso da língua (em oposição a “t” e “p”). A primeira das quatro características k tem com t,

p, tz [ [ts] ], pf, d, b, g, m, n e ng; a segunda, com g, t, d, b; a terceira, com p, t, ss [ [s] ], f; a

quarta, com g, ch, ng; e apenas a totalidade das quatro características é pertencente apenas ao

k. Disso se conclui que a determinação do conteúdo fonológico de um fonema no dado

sistema fonológico pressupõe a incorporação desse fonema ao sistema de oposições

fonológicas existentes na respectiva língua. A definição do conteúdo de um fonema depende

de qual posição esse fonema assume no dado sistema fonológico, isto é, depende, em última

análise, de quais outros fonemas se opõem a ele. Assim um fonema pode receber uma

definição completamente negativa. Tome-se em consideração, por exemplo, todas as

variantes facultativas e combinatórias do fonema alemão r, dever-se-á definir esse fonema

15 Phonemgehalt und Phonemsystem – ao pé da letra ‘conteúdo do fonema e sistema de fonemas’. 16 Phonologischer Gehalt – usado como sinônimo de “Phonemgehalt’.

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16

apenas como “líquida não-lateral” – o que é uma definição completamente negativa, já que

“líquida” em si é uma “sonorante não-nasal” (...)”17

. (grifos nossos)

2.2.2. Oposições distintivas de Trubetzkoy

1. Oposições bilaterais versus multilaterais. Nas oposições bilaterais (ou ‘unidimensionais’: cf.

al. eindimensional), a totalidade das características fonéticas comuns a ambos os membros da

oposição – chamada de base de comparação – é comum a apenas esses dois membros. Em português,

/p/ e /b/ estão em oposição e têm em comum o fato de serem oclusivas labiais. A oposição é bilateral,

porque não há outras consoantes sob o rótulo de ‘oclusivas labiais’ no português. A afirmação pode

ser estendida para a oposição desses segmentos em línguas como o alemão e o espanhol, por exemplo.

Se tomarmos, por exemplo, os fonemas /v/ e /p/, do português (que são obstruintes18

labiais),

notaremos que essa oposição é multilateral (ou ‘multidimensional’: cf. al. mehrdimensional), porque

/f/ e /b/ também são ‘obstruintes labiais’. Para Trubezkoy, esse tipo de oposição está presente em

qualquer sistema opositivo. Como exemplo, o autor cita, no sistema ortográfico de base latina

(sistema opositivo visual, portanto!), a oposição existente entre os grafemas E e F, por um lado, e P e

R, por outro. Ao compararmos E e F, podemos observar que eles têm em comum uma haste vertical e

duas hastes horizontais: nenhum outro elemento do alfabeto partilha dessas características: a oposição

entre E e F é, portanto, bilateral. Se compararmos, por outro lado, os grafemas P e R, vemos que a

semelhança entre ambos são a haste vertical e a semicircunferência na parte superior, características

que o grafema B também tem: sendo assim a oposição entre P e R seria multilateral, uma vez que a

base de comparação entre ambos também é compartilhada por B.

2. Oposições proporcionais versus isoladas. A oposição entre dois fonemas é dita proporcional

se a relação entre seus membros é idêntica à relação entre membros de outra oposição ou outras

oposições no mesmo sistema. Do contrário, será uma oposição isolada. A oposição estabelecida entre

os fonemas /p/ e /b/ do português, por exemplo, é proporcional, pois a relação entre esses fonemas é

idêntica àquela encontrada entre /t/ e /d/ ou mesmo /k/ e /g/. Em contrapartida, a oposição entre /l/ e

// é isolada, pois não há outros segmentos no Português que tenham a mesma oposição. Note que a

oposição /l/ : // é proporcional à oposição /n/ : //. Tanto as oposições em 2 quanto aquelas em 1 se

referem à relação estabelecida entre a oposição (ou o par opositivo) e o sistema como um todo.

17 Excerto de “TRUBETZKOY, N. S. Grundzüge der Phonologie. TCLP 7, Prague, 1939”, p. 59-60. Tradução: Gean

Damulakis. 18 Termo que recobre oclusivas, fricativas e africadas. N. do T.

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17

3. Oposições privativas, graduais e equipolentes. Nessas oposições, é relevante a relação entre

os membros da oposição. Em oposições privativas, um membro carrega uma característica fonética

que falta ao outro, o que significa ser uma questão de presença/ausência de uma característica

fonética. A oposição /t/:/d/, no português, é privativa, pois o vozeamento falta ao /t/. Oposições

graduais ocorrem quando há gradação de dada característica fonética, como no caso das vogais no

português. A oposição /i/:/e/ do português, por exemplo, é gradual, pois a vogal // seria o terceiro

grau da mesma característica que diferencia /i/ de /e/, ou seja, a altura. Membros de uma oposição

eqüipolente são considerados ‘logicamente equivalentes’. Na oposição /t/:/p/, cada um tem uma

característica que falta ao outro, sendo essa oposição, portanto, equipolente.

4. Oposições constantes e neutralizáveis. Essa classificação é feita de acordo com a extensão

distintiva da oposição dentro do sistema linguístico considerado. Se uma oposição se mantém em

todos os contextos, será constante, como ocorre na oposição /p/:/b/ e /k/:/g/, do português, por

exemplo. Caso contrário, a oposição será neutralizável, como ocorre com as sibilantes e chiantes do

português /s/:/z/ e //://, que perdem a possibilidade de opor significado em posição de coda silábica.

Decorrência direta do último tipo de oposição é a neutralização, caracterizada pela perda da

força distintiva entre dois (ou mais) fonemas. Na posição de neutralização, é postulado um

arquifonema (indicada na transcrição fonêmica em caixa alta), que seria a totalidade das

características distintivas comuns aos dois fonemas ou, em outras palavras, uma unidade fonológica

que compartilha das propriedades comuns aos fonemas cuja oposição foi neutralizada. No caso do

português, em contexto final de sílaba, haveria um arquifonema /S/, representando as fricativas

coronais (articuladas com a parte anterior da língua). Assim, a representação fonológica de ‘pasta’

seria /paSta/.

No alemão, a oposição entre obstruintes surdas e sonoras não é constante, uma vez que em

final de palavras, apenas a surda se manifesta: Rad [rat] ‘roda’: Rat [rat] ‘conselho’; Räder

[rd]‘roda – pl’: Räte [rt] ‘conselho – pl’. Fenômeno similar ocorre no russo e no polonês.

Segundo Trubetzkoy, há uma implicação universal que envolve oposições bilaterais e

neutralizáveis: “Wenn aber eine Sprache einen aufhebbaren Gegensatz besitzt, so ist dieser immer

eindimensional19

” (Se uma língua possui uma oposição neutralizável, essa será sempre bilateral).

19 TRUBETZKOY (1939:71). Tradução minha. Uma vez que o autor se referia a oposições definidas dualmente,

neutralizações que alcançam mais de dois segmentos, como nas nasais do português, por exemplo, não são abarcadas

nessa implicação.

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18

Essas classificações são cumulativas, de forma que uma mesma oposição poderá ser

classificada em quatro rótulos, a depender das características consideradas. Pensemos, por exemplo,

no inventário consonantal do português (descartados os assim chamados arquifonemas), expresso a

seguir:

p t k

b d g

f s

v z

m n

l

r

O sistema fonológico do português, por exemplo, oferece 171 oposições consonantais (assim

como o alemão) e 21 vocálicas20

. A seguir, classificamos algumas delas:

/t/:/d/ bilateral proporcional privativa constante

/m/:/n/ multilateral proporcional equipolente neutralizável

/o/:/u/ multilateral proporcional gradual neutralizável

//:/l/ bilateral isolada privativa constante

Exercícios (Grupo II)

1) Considerando o sistema fonológico do português, diga se as oposições abaixo são

multilaterais ou bilaterais.

a) /p/:/b/ _______________________________

b) /k/:/g/ _______________________________

c) /n/:/l/ _______________________________

d) /m/:/n/ _______________________________

e) /p/:/f/ _______________________________

f) /f/:/s/ _______________________________

20 Sendo 19 segmentos, temos n.(n-1)/2 = 19x18/2 = 171. Para as vogais, temos: 7x6/2: 21.

Quadro 2

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19

2) Classifique as mesmas oposições entre isoladas e proporcionais.

__________________________________________________________________________

__________________________________________________________________________

__________________________________________________________________________

__________________________________________________________________________

3) Há, nos itens da questão 1, oposições privativas? E eqüipolentes?

__________________________________________________________________________

__________________________________________________________________________

4) Considere o seguinte sistema vocálico do turco. As oposições /u/:/o/ e /i/:/e/ são graduais?

Justifique sua resposta.

i y u

e a o

__________________________________________________________________________

__________________________________________________________________________

Considere os inventários segmentais abaixo como referência para as questões que os seguem:

Sistema 1

p t k i y u

b d g e o

f s x

v z a

ts t

m n ŋ

l

r

Sistema 2

p t k i y u

e o

f s

z

m n ŋ

l

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20

1) Classifique as oposições em bilateral ou multilateral. Indique a base de comparação (BC).

Oposição Sistema 1 Sistema 2

/f/:/s/ BC: BC:

Classificação: Classificação:

/p/:/m/ BC: BC:

Classificação: Classificação:

/k/:/ŋ/ BC: BC:

Classificação: Classificação:

/t/:/s/ BC: BC:

Classificação: Classificação:

/i/:/e/ BC: BC:

Classificação: Classificação:

2) Classifique as oposições abaixo em isolada ou proporcional, indicando, quando possível,

outro par proporcional (PP).

Oposição Sistema 1 Sistema 2

/f/:/s/ PP: PP:

Classificação: Classificação:

/k/:/ŋ/ PP: PP:

Classificação: Classificação:

/t/:/d/ PP: PP:

Classificação: Classificação:

/s/:/z/ PP: PP:

Classificação: Classificação:

3) Indique o conteúdo fonológico dos fonemas nos respectivos sistemas.

Fonema Conteúdo fonológico (Sistema 1) Conteúdo fonológico (Sistema 2)

/p/

/k/

/s/

/e/

Exercícios (Grupo II)

6) Considere o seguinte sistema segmental como referência.

p t k y i u

b d g e a o f s x

v

m n

l

j w

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21

Defina os grupos de segmentos (classes naturais) em termos de traços distintivos:

i. p t k f s x _______________________________________

ii. p t k b d g _______________________________________

iii. b d g v _______________________________________

iv. f s x v _______________________________________

v. w j l m n a e i o u y _______________________________________

vi. m n l j w _______________________________________

vii. t d s n l j _______________________________________

viii. a e i o u y _______________________________________

ix. y u o _______________________________________

x. y i u _______________________________________

xi. i e _______________________________________

xii. j w _______________________________________

Indique par(es) de oposições:

i. bilaterais: ____________________________________________________

ii. multilaterais: ____________________________________________________

iii. proporcionais: ____________________________________________________

iv. isoladas: ____________________________________________________

v. eqüipolentes: ____________________________________________________

vi. privativas: ____________________________________________________

vii. graduais: ___________________________________________________

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22

2.3. Fonema como uma realidade psicológica

O fonema pode ser visto como uma unidade possuidora de realidade psicológica. Por essa

forma de ver, o fonema é encarado como uma unidade psicológica à qual são associadas realizações

fonéticas. A associação entre esses níveis pode ser feita de maneiras diferentes a depender da teoria

adotada.

A visão mentalista sobre o fonema é antiga e pode ser atribuída originariamente a Badouin

de Courtenay, que defendeu que o fonema seria “um som imaginado ou intencionado, oposto ao som

emitido como um fenômeno psicofonético para um fato fisiofonético” (Jakobson e Halle, 1956: 11).

Sendo assim, quando um falante de português, por exemplo, em dialetos em que haja palatalização

de plosivas alveolares, realiza [ti], esse falante está intentando [ti], ou seja, essa seria a imagem

abstrata do que produz. Em línguas como o inglês ou o alemão, por exemplo, realizações de [th]

costumam ser feitas, em determinados contextos, quando os respectivos falantes intentam /t/.

Uma passagem de Sapir (1933) ficou famosa dentro desta visão de fonema. O autor explica

que, certa vez, ao solicitar de um falante nativo de Paiute (família Uto-Asteca), que este falasse

palavras sílaba por sílaba, ele pronunciou a sequência ‘pa:ah’, da seguinte forma: [pa:], pausa,

[pah], sem que percebesse que sua realização das sequência [pah] era diferente da realização em

contexto intervocálico. Desse fato, Sapir concluiu que o som [] era apenas uma realização do que o

falante tinha como [p] em sua mente.

Experimentos têm demonstrado que falantes conseguem mais facilmente perceber como

‘diferentes’ sons que são contrastivos em sua língua nativa, ao passo que não detectam tão

facilmente diferenças entre sons que sejam nela alofones. Falantes de espanhol, por exemplo, não

percebem tão facilmente diferenças entre [e] e [], uma vez que sua língua não explora essa

diferença contrastivamente, mas alofonicamente. De forma análoga, embora falantes de português

percebam (e produzam) contraste de altura entre as médias anteriores [e] e [], esses mesmos

falantes relatam dificuldade de perceber a diferença, embasada no mesmo parâmetro, entre as

médias anteriores arredondadas [] e [], ao se depararem com línguas como o alemão e o francês.

Mais recentemente, a visão de fonema como realidade psicológica é adotada por teorias

fonológicas de base gerativa. Desde a publicação de The Sound Pattern of English, de Noam

Chomsky e Morris Halle, em 1968, que lançou as bases para a fonologia gerativa padrão, o

mapeamento entre fonema e suas realizações se dá através de regras fonológicas. Conceito

importante também para esse mapeamento será o de traço distintivo, como veremos a seguir. Aqui, o

fonema é encarado como um conjunto de traços distintivos, que pode ser mapeado com suas

manifestações fonéticas a partir da mudança de valores de traços, como veremos na sequência.

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23

2.3.1. Traços distintivos

O primeiro sistema de traços distintivos foi apresentado por Jakobson, Fant & Halle (1952,

Preliminaries to speech analysis, PSA) e Jakobson & Halle (1956, Fundamentals of Language),

embora a ideia de traço já estivesse latente desde os trabalhos de Trubetzkoy (1939)21

. Foi dada

ênfase, em PSA, à caracterização de segmentos em traços baseada em propriedades acústicas. No

trabalho de Chomsky e Halle (1968, The Sound Pattern of English, doravante SPE) houve alguns

acréscimos, sobretudo porque este último procurou caracterizar os segmentos baseados em traços

articulatórios, uma vez que havia o interesse em descrever regras fonológicas. Do modelo

jakobsoniano, permaneceram, em SPE, alguns traços22

. O aluno interessado na história desses traços

poderá consultar a bibliografia. Aqui nos ateremos a alguns traços em SPE e algumas alterações

subsequentes. Embora algumas propostas recentes não sejam contempladas, o conjunto de traços

aqui trabalhados serve ao propósito deste curso.

Os traços, em sua maioria, costumam ser binários, ou seja, têm dois valores: o positivo (+) e

o negativo (–). Alguns, porém, são monovalorados (unários ou monovalentes), ou seja, possuem

apenas o valor de presença; quando não for especificado para dado segmento (ou seja, indicar uma

característica ausente no segmento), não será assinalado para o mesmo. É o caso dos principais

traços de ponto de articulação, aqui assinalados em VERSALETE. As definições abaixo se referem aos

segmentos valorados positivamente para o traço, no caso de traços binários.

Traços de classe maior23

[±silábico] – forma pico silábico (pode, portanto, ser acentuado).

[±soante] – sons produzidos com tal configuração do trato vocal, que o vozeamento espontâneo é

possível. Diferencia obstruintes (–) de soantes (+).

[±consonantal] – sons produzidos com uma maior obstrução na cavidade oral.

O chamado vozeamento espontâneo pode ser entendido como a vibração involuntária das

cordas vocais em decorrência da abertura de cavidade acima da glote, durante a produção de alguns

tipos de segmentos, como vogais, nasais etc.

21 Muito embora Trubetzkoy afirme que fonema seja a menor unidade, ele já prenunciara a decomposição do fonema em características fonéticas (phonetische Eigenschaften). 22 Permaneceram os traços [consoantal], [tenso], [sonoro], [contínuo], [nasal] e [estridente]. Os demais foram

substituídos em SPE. 23 Em Clements & Hume (1995), os traços de classe maior são [soante], [aproximante] e [vocoide].

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24

Vejamos a tabela abaixo, na qual podemos ver a capacidade que esses traços têm de

distinguir as grandes classes de sons das línguas do mundo. Acrescentamos o traço [nasal] para dar

conta da distinção entre consoantes nasais e líquidas.

Traço Vogais:

(a, e, i, o, u ...)

Glides:

(j, w...)

Obstruintes:

(p, b, t, s...)

Nasais:

(m, n, , ...)

Líquidas:

(l, r, , ...)

[silábico] + – – – –

[soante] + + – + +

[consonantal] – – + + +

[nasal] – – – + –

Traços de ponto de articulação

Vogais24

:

[±alto] – o corpo da língua está acima da posição neutra; a língua fica próxima ao palato.

[±baixo] – o corpo da língua está abaixo da posição neutra; a língua se distancia do palato.

[±recuado] – o corpo da língua está retraído a partir da posição neutra; retrai-se a partir do centro da

cavidade oral para trás.

[±arredondado] – envolve protrusão labial.

[±tenso] – envolve considerável esforço muscular.

[±ATR] – levantamento da raiz da língua para cima (advanced tongue root). 25

Vemos no quadro 4, a distinção em um sistema de 7 (sete) vogais (como no português ou no

italiano), dispensando [ATR] e [tenso]. No quadro 5, vemos a representação com algumas das

redundâncias assinaladas entre parênteses:

i e a o u

[alto] + – – – – – +

[baixo] – – + + + – –

[recuado] – – – + + + +

[arredondado] – – – – + + +

24 Traços também aplicáveis a consoantes. 25 Os traços sublinhados não serão abordados de maneira exaustiva neste curso. Para alguns fonólogos, um desses traços

pode ser necessário para a distinção entre médias (caso em que todas as médias seriam [- baixo]).

Quadro 3

Quadro 4

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25

i e a o u

[alto] + – (–) (–) (–) – +

[baixo] (–) – + + + – (–)

[recuado] – – – + + + +

[arredondado] (–) (–) (–) – + + +

Quadro 5.

Distinção em um sistema de 7 (sete) vogais (como no português), considerando [ATR]:

i e a o u

[alto] + – – – – – +

[baixo] – – – + – – –

[ATR] + + – – – + +

[recuado] – – – + + + +

[arredondado] – – – – + + +

Quadro 6.

Outra maneira de indicar os valores dos traços para o mesmo conjunto de vogais é

demonstrada no quadro 7. No 8, outra maneira, agora com uso de [ATR]:

[– recuado] [+ recuado]

[+ alto] i u ([– baixo])

[– alto] e o [– baixo]

([–alto]) a [+ baixo]

[– arredondado] [+ arredondado]

Quadro 7

[– recuado] [+ recuado]

[+ alto] i u

e o

[+ baixo] a

[– arredondado] [+ arredondado]

Quadro 8

[+ ATR]

[– ATR]

[–alto][–baixo]

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26

Consoantes:

[CORONAL] – sons produzidos com a lâmina e o ápice da língua.

[±anterior] – sons produzidos com uma obstrução na ou à frente da região alveolar26

. Esse traço é

aplicável apenas a sons assinalados por [CORONAL].

[±distribuído] – sons cuja obstrução se estende por distância considerável ao longo da direção do

fluxo de ar.

[LABIAL] – sons produzidos com os lábios.

[DORSAL] – sons produzidos com o dorso da língua.

[±estridente] – sons produzidos com maior barulho. Traço exclusivo de fricativas e africadas. As

fricativas (fonológicas) do português são todas [+ estridente]27

.

f v s z x

[estridente] – + – + + – +

[anterior] NA NA + + – NA NA

[distribuído] + – + – + + –

[LABIAL] [CORONAL] [DORSAL]

Quadro 9

Mais recentemente, tem-se advogado que não apenas [±anterior] como também de

[±distribuído] têm poder distintivo apenas no âmbito das coronais, não sendo, portanto, aplicável a

segmentos que não sejam [coronal]. De fato, como vemos na tabela acima, no caso das fricativas

labiais e dorsais, não é necessário dispor tanto de [±estridente] quanto de [±distribuído] para

distingui-las entre si. Note que, entre as labiais e as dorsais, esse traço pode ser relevante, uma vez

que [±distribuído] não as abrange28

. Assim:

f v s z x

[estridente] – + – + + – +

[anterior] + + –

[distribuído] + – +

[LABIAL] [CORONAL] [DORSAL]

Quadro 10

26 O traço [anterior] se referia, em SPE, a qualquer obstrução antes da região alveolar, sendo, portanto, os segmentos labiais considerados [+ anterior]. Propostas ulteriores restringiram esse traço apenas a segmentos coronais. Isso torna o

traço [anterior] não aplicável a segmentos labiais e dorsais. 27

Realizações fonéticas como [x h] são [ – estridente]. 28 No caso das dorsais, o traço [±alto] tem sido evocado para distinguir [x ], (+), de [ ], (–).

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27

Traços de modo

[±contínuo] – sons produzidos sem bloqueio da corrente de ar (na cavidade oral). Esse traço

diferencia oclusivas e africadas (–) de fricativas (+), entre as obstruintes; e separa as nasais (–) das

líquidas (+).

[±soltura retardada] – sons produzidos com bloqueio seguido de fricção. Apenas as africadas são

marcadas positivamente com esse traço. Sendo assim, o mesmo distingue oclusivas (–) de africadas

(+).

[±nasal] – sons produzidos com abaixamento do véu palatino. Diferencia sons orais (–) de nasais

(+).

[±lateral] – sons produzidos com a seção medial da língua abaixada pelos lados.

Utiliza-se [±soltura retardada] para diferenciar as plosivas das africadas correspondentes. A

necessidade desse traço, contudo, tem sido afrouxada ultimamente: é possível distinguir africadas

das plosivas correspondentes através do traço [±estridente], tendo as primeiras o valor positivo de

traço (correspondente à fase fricativa), conforme indicam Gussenhoven & Jacobs, 2010.

Traços laríngeos

[±sonoro] – são produzidos com vibração das pregas vocais. Diferencia sons vozeados (+) de

desvozeados (–).

[±glote espalhada] – sons produzidos com as pregas vocais separadas. Distingue obstruintes

vozeadas e desvozeadas (–) das aspiradas e murmuradas (+).

[±glote constrita] – sons produzidos com fechamento da glote. Costuma ser usado para marcar

positivamente as consoantes glotal ([]), ejectivas e implosivas.29

Uma possibilidade de esquematizar os traços fonológicos efetivamente contrastivos para os

segmentos consonantais do português, por exemplo, é proposta a seguir. As áreas hachuradas

correspondem a análises alternativas sobre o status do fonema conhecido como r forte do português

(desconsiderada a interpretação desse fonema como glotal):

29 A maior parte dos sons nas línguas naturais é [– glote espalhada] e [– glote constrita].

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28

[LABIAL] [CORONAL]

[DORSAL]

[+ anterior] [– anterior]

[– soante] p t [– nasal] [– contínuo]

b d f s [+ contínuo]

v z

[+ soante] m [+ nasal] [– contínuo]

l [– nasal] [+ lat] [– cont]

[– lat] [+ cont]

[+ contínuo]

Para o segmento [l], o valor para o traço [±contínuo] costuma variar translinguisticamente.

Defendemos aqui que, no português, esse segmento é [– contínuo]. Temos dois argumentos, um de

caráter histórico e outro sincrônico. Em algumas palavras, como ‘alma’[anima>anma>alma], por

exemplo, houve uma dissimilação da nasalidade, que transformou [n] em [l]. Essa transformação de

caráter dissimilatório opera apenas na mudança para o traço [±nasal], o que nos leva a intuir que os

demais traços que caracterizam os dois segmentos têm o mesmo valor, aí incluído [±contínuo].

Sendo assim, [n] e [l] são igualmente [– contínuo]. De caráter sincrônico, podemos relatar as trocas

segmentais ocorrentes em itens como neblina ~ lebrina, nutrido ~ lutrido e Leblon ~ Neblon.

A adoção de traços distintivos torna a descrição de regras fonológicas mais econômica,

mostra a motivação para o processo, além de permitir a notação de que o processo ocorre com

classes naturais (ver a seguir).

Exercícios

1) Complete a tabela abaixo com os valores dos traços relativos aos segmentos em pauta e

responda às questões a seguir (para traços monovalorados, indique onde for pertinente).

±soante ±silábico ±contínuo ±nasal ±sonoro LABIAL CORONAL DORSAL

[p]

[b]

[m]

[f]

[v]

[t]

[s]

[n]

[l]

[k]

[x]

Quadro 11

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29

a) Quais traços distinguem [b] de [m]?

_____________________________________________________________________________

b) Que traço distingue [p] de [f], [t] de [s], e [k] de [x]? Que generalização pode ser feita a

partir dessa observação?

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

c) Que traço distingue [t] de [p]? E de [k]?

_____________________________________________________________________________

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30

3.3 Classes naturais. Regras fonológicas. Interações entre regras

3.3.1 Classe Natural

Como dissemos, a noção de traços distintivos é muito útil, pois torna a descrição de regras

mais econômica e mostra a motivação para o processo, além de demonstrar que o processo ocorre

com classes naturais. Classe natural é um grupo de segmentos, identificados sob um rótulo comum,

que apresentam características partilhadas apenas por eles dentro de um sistema. Um bom sistema

de traços fonológicos permite reunir classes naturais com um número pequeno de traços.

Note que, para definir [p, t, k] no português (no espanhol, no alemão ou no inglês), é

necessária a utilização dos seguintes traços: [- soante], [- contínuo]. Através dessa combinação,

abrangemos apenas esses segmentos (não há outros, nessas línguas, que possam ser definidos por

esses traços). Disso decorre que [p, t, k] constituem uma classe natural (e que o sistema de traços

adotado consegue dar conta disso!). Por outro lado, para definir apenas o [p], é preciso usar mais

traços: além dos traços [- soante] e [- contínuo], teríamos de acrescentar [LABIAL]. Se pensarmos no

conjunto [p, s, l], o único traço que poderíamos utilizar para esse grupo, seria [+ consonantal], que

envolve outros segmentos do inventário do português, digamos [f, t, g]. Isso significa que o grupo

[p, s, l] não constitui uma classe natural nessa língua.

Além disso, devemos dizer que os segmentos reunidos em uma classe natural costumam estar

envolvidos nos mesmos processos. Por exemplo, há, em espanhol, um processo chamado de

espirantização, que transforma [b], [d] e [g] em [], [] e [], respectivamente. Se o fenômeno é

descrito atomicamente, ao se afirmar que são três processos distintos, perderemos a generalização de

que o processo leva todas as plosivas sonoras do espanhol, a serem realizadas, sob certas

circunstâncias, como as fricativas homorgânicas correspondentes.

A fonologia gerativa proveu a teoria fonológica da noção de regras fonológicas, sobre as

quais falaremos a seguir.

3.3.2 Regras fonológicas

Regra pode ser entendida como um comando (internalizado) responsável por um ajuste

sonoro (ou uma adequação de outra ordem) em um determinado contexto estrutural. Uma das

funções do analista é a de ‘descobrir’ quais são as regras que atuam em determinado sistema e qual é

a sua ordem de aplicação. No caso da fonologia, essas regras podem ser de vários tipos (como

veremos a seguir). O formato dessas regras costuma ser apresentado na forma: A B / C __ D.

Apontamentos em Teoria Fonológica. Apostila utilizada na disciplina Linguística II (2014) Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)

31

Leia-se: A passa a (se transforma em) B quando estiver depois de C e antes de D; frequentemente ou

C ou D é vazio; se A ou B for vazio, teremos uma regra se inserção ou de apagamento,

respectivamente, como veremos adiante. Podemos usar como exemplo o processo de palatalização

de plosivas alveolares do português, que pode ser considerado como decorrente da aplicação das

seguintes regras:

a) /t/ [t] / ___ i b) /d/[d] / ___ i

Os fonemas /t/ e /d/ fazem parte de uma classe natural chamada de oclusivas ([–soante], [–

contínuo]) coronais ([CORONAL]). Formalizando o mesmo processo por meio de traços, teremos o

esquema abaixo. Notem que a formalização da regra da maneira que segue dá conta tanto da

palatalização que ocorre com /t/ e com /d/:

O elemento A indica a descrição estrutural (o alvo da regra); B indica a mudança estrutural; e

C indica o ambiente – também conhecido como gatilho (ou trigger) da regra. Vale observar que C

pode não ser um segmento, mas indicar uma posição estrutural (como coda silábica, por exemplo).

Em A, não precisa ser indicado o traço modificado, uma vez que já sabemos que os traços em A tem

o valor contrário dos encontrados em B.

Exercícios de Revisão (Grupo IV):

1) Formalize, através de traços distintivos, as regras dos seguintes processos, alguns vistos em

sala de aula.

a) /d/ [] / V__V

b) /b/ [] / V__V

c) /g/ [] / V__V

A B C

Quadro 12

Apontamentos em Teoria Fonológica. Apostila utilizada na disciplina Linguística II (2014) Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)

32

d) /p/ [b] / V__V

e) /s/ [] / ___ i

2) Formalize as regras dos processos nos itens a, b e c em uma única regra (como ocorre no

Espanhol). Lembre-se de que, nesse caso, você deverá pensar no conceito de classe natural

(ver acima).

3) Considere o seguinte inventário segmental: [k t d s z n p f b g x m v i u e o a w j].

a) Preencha o quadro abaixo com os segmentos consonantais ([-silábico]).

b) Classifique as oposições a seguir em bilaterais ou multilaterais:

Par Base de comparação Tipo de oposição

/p/:/b/

/s/://

/s/:/t/

/s/:/k/

/d/:/z/

/j/:/w/

/n/:/m/

/z/:/l/

c) Classifique as oposições a seguir em proporcionais ou isoladas:

Par Tipo de oposição Par proporcional

/p/:/b/

/s/://

/s/:/t/

/z/:/l/

/d/:/z/

Labial coronal

+ant / -ant

dorsal

- soante - contínuo - sonoro

+ sonoro

+ contínuo - sonoro

+ sonoro

+ soante - contínuo

+ contínuo

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33

/j/:/w/

/n/:/m/

/s/:/k/

d) Classifique as oposições a seguir em equipolente, privativa ou gradual:

Par Tipo de oposição Característica fonética distintiva

/p/:/b/

/s/://

/s/:/t/

/e/:/i/

/n/:/m/

/d/:/n/

3.3.3 Regras e interação entre regras: mudando a estrutura

Dentro da fonologia de base gerativa, as regras fonológicas são ferramentas explanatórias

para dar conta do mapeamento entre níveis distintos de representação. Dentro dessa teoria, podemos

dizer que uma regra fonológica atua transformando um segmento, em dada sequência estrutural, em

outro. De sua aplicação também pode acontecer o apagamento ou a intrusão de segmentos, como

veremos a seguir.

Como já dissemos anteriormente, a regra apresenta os seguintes elementos, representados na

seção 2.2: o elemento A indica a descrição estrutural; B indica a mudança estrutural; e C indica o

ambiente – também conhecido como gatilho (ou trigger) da regra. Em A, não precisa ser indicado o

traço modificado, uma vez que já sabemos que os traços em A tem o valor contrário dos de B; em B,

não precisamos indicar os traços que contenham os mesmos valores em A.

3.3.4 Tipos de regra

Temos os seguintes principais tipos de regras fonológicas (nomeadas pelo processo que

desencadeiam):

Transformação: A e B são segmentos foneticamente distintos. É o tipo de regra que

captura a relação entre alofones (também podendo expressar regras neutralizadoras). As regras R =

/p/ [ph]/ #___ (do inglês), P = /t/ [t / __i (do português) e Q = /b/ [] / V___ (do espanhol)

são exemplos de regras de transformação.

Inserção: A é Ø, ou seja: Ø B/ C__D. Esse tipo de regra costuma acontecer para

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34

promover algum reparo estrutural, como por exemplo, para evitar hiatos. A presença do [j] em ‘(eu)

passe[j]o’ pode exemplificar a aplicação desse tipo de regra.

Apagamento: B é Ø, ou seja: A Ø. Muitas vezes também reparadora de estrutura,

a regra de apagamento pode ser exemplificada com itens como ‘psicologia’, do espanhol, no qual a

primeira sílaba é pronunciada [si].

Metátese: A e B indicam posições distintas do mesmo segmento dentro do item. No

português arcaico, havia metátese em itens como ‘fejro’ (subjacentemente /fer+i+o/). A passagem de

‘(lat) crocodi lus’ > ‘cocodrilo’ (esp.) ou ‘coccodrillo’ (it.) também são bons exemplos. Realizações

como ‘vrido’ [] para ‘vidro’ também podem ser consideradas exemplos de aplicação de regra

de metátese (ou descritos como processos de metátese).

3.3.5 Interação entre regras. Derivação. Opacidade.

Muitas vezes, para garantir o mapeamento entre uma forma subjacente e sua realização

fonética, é necessário atribuir a aplicação de mais de uma regra. Dessa forma, pode-se dizer que as

regras se aplicam sequencialmente. A essa sequência de aplicação de regras, chamamos de

derivação. Input é o ponto de partida de uma regra e output é o resultado de sua aplicação. Podemos

dizer que, na derivação, uma regra toma como input o output da anterior. Sendo assim, podemos

dizer que as regras são ordenadas. Do ordenamento de regras, podem surgir quatro tipos de

interação, dos quais destacamos dois: alimentação (feeding, em inglês) e sangramento (bleeding).

Alimentação. Dizemos que duas regras R e P quaisquer estão em relação de alimentação,

quando uma regra (digamos, R) cria o contexto para que a regra P, seguinte, seja aplicada. Vejamos:

O exemplo acima mostra providências de adaptação de empréstimo em [net]. Nele, vemos

que a inserção da vogal alta diante de /t/ cria o contexto para a palatalização do plosiva coronal.

Algo semelhante ocorre com o item []. Sendo assim, podemos dizer que a regra R

/net/ /advogado/

R – Inserção: net

P – Palatalização: net

Outras regras: … …

Saída: net

Quadro 13

Apontamentos em Teoria Fonológica. Apostila utilizada na disciplina Linguística II (2014) Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)

35

alimenta a regra P, fornecendo-lhe o contexto de aplicação: sem a inserção do [i] não ocorreria a

palatalização.

Sangramento. Dizemos que duas regras R e P estão em relação de sangramento, quando a

aplicação de uma regra (R, por exemplo) retira o contexto de aplicação da regra P. Vejamos o

seguinte exemplo, válido para vários falantes de PB.

Na situação acima, a regra de apagamento retida a possibilidade de a coda // virar o onset da

sílaba seguinte (ressilabação), vaga disponível na sílaba que inicia a palavra ‘aguda’. Em outras

palavras, a regra R sangra a regra P, ao retirar-lhe o contexto de aplicação.

Há casos em que a situação se inverte: uma regra que alimentaria a outra ocorre antes desta,

situação na qual teríamos a contra-alimentação. De maneira análoga, se uma regra que sangraria

outra ocorre depois desta, teremos o que chamamos de contrassangramento. Em ambos os casos,

temos formas opacas, que contrariam uma generalização fonológica na língua. Notem-se, a seguir,

exemplos do português de casos de contra-alimentação e contrassangramento.

Note-se que, em ambos os casos, encontramos exemplos que contrariam a alofonia

estabelecida para o fonema /t/. Opacidade é um fenômeno frequente nas línguas do mundo. Vejamos

Rep. Subj. /dor##aguda/

R – Apagamento doØ##a.gu.da

P – Silabificação do. Øa.gu.da

Saída: do.a.gu.da

Quadro 14

/prta#insenso/

A – Alteamento [pxta# ises]

B – Africação n.a

C – Res. de Hiato [pxtØ# ises]

D – Silabificação [px.t i.se.s]

Subaplicação de regra (contra-alimentação; cf. Damulakis, 2010)

/pte#azuw/

A – Alteamento [pt#azuw]

B – Africação [pt#azuw]

C – Res. de Hiato [ptØ#azuw]

D – Silabificação [p.ta.zuw]

Sobreaplicação de regra (contrassangramento)

Quadro 15

Quadro 16

Apontamentos em Teoria Fonológica. Apostila utilizada na disciplina Linguística II (2014) Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)

36

exemplos de opacidade decorrente de contra-alimentação no espanhol das Ilhas Canárias (Oftedal,

1985, apud Gussenhoven, 2010: 118):

Rep. Subjacente Espirantização

/roba/ [roa] ‘ele/ela rouba’

/nada/ [naa] ‘nada’

/la gana/ [la ana] ‘a vontade’

Rep. Subjacente Vozeamento

/tipiko/ [tibigo] ‘tipico’

/la kama/ [la gama] ‘a cama’

/una tjenda/ [una djnda] ‘a vontade’

O segundo conjunto (em 18) de dados nos mostra que a regra de vozeamento ocorre depois

da regra de espirantização nesse dialeto. Se fosse o oposto, para /la kama/, teríamos *[la ama], o

que não é atestado.

Exercícios

1) Para os itens do espanhol abaixo, monte a derivação (regras pertinentes: vozeamento e

espirantização; v. quadro 18 e 19), de maneira a obter as realizações adequadas com os dados

(com contra-alimentação).

Rep. Subjacente /roba/ /tipiko/ /nada/ /la kama/

A –

B –

Saída

2) Mostre que o sequenciamento inverso daria formas agramaticais como *[la ama] (a partir

de /la kama/), por exemplo.

Rep. Subjacente /roba/ /tipiko/ /nada/ /la kama/

A –

B –

Saída

Quadro 18

Quadro 17

Apontamentos em Teoria Fonológica. Apostila utilizada na disciplina Linguística II (2014) Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)

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4 Fonologia Não-Linear – sílaba, acento e pé métrico

Vimos que a fonologia, não lidando diretamente com elementos portadores de significados –

embora aqueles sejam relevantes para a distinção destes –, atua na pronunciação de elementos

significativos, advindos da morfossintaxe. Foram dadas algumas concepções distintas para o

fonema. Além de fonemas, há unidades menores que estes, como os traços distintivos, e alguns

podem ser maiores, como a sílaba e o pé métrico, por exemplo.

As unidades morfossintáticas e as fonológicas não são isomórficas: não há como fazer um

mapeamento de um para um entre elementos morfossintáticos e elementos fonológicos, ocorrendo a

isomorfia apenas acidentalmente. Assim, em pintor, temos dois morfemas pint+or30

, mas o primeiro

morfema se separa em duas sílabas: pin.tor; já em pré-sal, os dois morfemas estão cada qual em

uma sílaba. A palavra paraíso se separa em quatro sílabas, que se agrupam em dois pés métricos,

assim divididos (pa.a)(i.z)31

, embora sua divisão morfológica seja /pa.ai.z+/. Para este curso,

optamos por resumir os princípios universais que regem essas unidades, deixando algumas sugestões

de leitura para que os alunos se aprofundem no assunto.

No que ficou conhecido como Fonologia Linear (SPE), o segmento era visto como uma

matriz de traços distintivos, que não apresentavam níveis hierárquicos. Entre esses traços, postulava-

se a existência de [silábico], que seria positivo para o núcleo da sílaba, e [acentuado], que indicaria a

proeminência acentual. Os valores relacionais de acento e de silabicidade levaram os fonólogos a

considerar desnecessários esses traços.

4.3 A sílaba

A sílaba pode ser vista como uma unidade fonológica constituída de um onset (ou ataque),

seguida de um núcleo (ou pico) e uma coda (ou declive). Esses dois últimos constituintes formam a

rima. Esquematicamente, temos (usa-se a letra grega sigma ‘σ’ para indicar a categoria sílaba):

30 O símbolo ‘+’ delimita o limite entre elementos morfológicos. 31

Os diacríticos ‘’ e ‘’ indicam, respectivamente, os acentos primário e secundário. O ponto ‘.’ indica o limite de sílaba.

Em algumas publicações, usam-se os símbolos ‘´’ e ‘`’ nas respectivas vogais com a mesma finalidade: (pà.a)(í.z).

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Uma sílaba completa seria, então, do tipo ONC. Desses elementos, apenas o núcleo é

obrigatório. Sem este elemento não há sílaba. Podemos encontrar, portanto, sílabas desprovidas de

onset e sílabas desprovidas de coda. O padrão mais comumente encontrável nas línguas do mundo é

ON, ou seja onset seguido de núcleo. Isso significa que há línguas que não apresentam sílabas

(O)NC, mas não há aquela que repila ON(C).

No português, o onset e a coda podem ser ramificados. Alguns defendem que o núcleo pode

ser ramificado no inglês. Essa ramificação é bastante restringida nessas línguas, não sendo admitidos

quaisquer elementos. No onset do português, por exemplo, está proibida uma sequência como [st],

permitida no inglês ou no holandês, por exemplo.

Forma muito comum de tratar a sílaba seria através do que chamamos de ‘camada CV’,

postulada como estrutura intermediária entre os segmentos e a sílaba. Para preencher essa camada,

duas características dos segmentos são avaliadas: a) a representação de sua duração, e b) sua

designação de silabicidade, ou seja, se pode ocupar o pico da sílaba ou, alternativamente, o onset ou

a coda.

4.3.1 Teoria CV versus Teoria Moraica

Há duas propostas que dão conta da intermediação entre os segmentos e a sílaba: a teoria CV

(McCarthy, 1979) e a teoria moraica (Hayes, 1985). Pela primeira proposta teórica, os segmentos

são incorporados à sílaba através de uma estrutura CV, onde C seria a posição de consoante e V a

posição de vogal, conforme o esquema abaixo32

:

32 Vogais longas e ditongos podem ser representados como uma sequência de VV vinculadas à mesma sílaba (σ).

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Outra maneira de representar a estrutura interna da sílaba é através de moras. A mora é tida

como uma unidade de peso silábico. Dessa forma, apenas os elementos da rima são dotados dessa

unidade. Assim o onset se liga diretamente à silaba. As línguas que têm vogais longas, esses

segmentos recebem duas moras (como em b, a seguir). Em outras línguas, a coda silábica pode

receber uma mora, situação na qual as sílabas travadas receberão duas moras (compare d e c).

Sílabas trimoraicas (ou superpesadas) costumam ser evitadas nas línguas do mundo.

Esquematicamente:

Para expressar sua duração, as consoantes geminadas devem contar peso. Dessa forma, esses

segmentos, em ambiente intervocálico, esses segmentos não contam mora no onset, mas o fazem na

coda. Vale ressaltar que, nesse caso, esses elementos são considerados ambissilábicos. Veja o

exemplo de par mínimo do italiano para duração consonantal, formado pelos itens fato ‘destino’ (em

a) e fatto ‘fato’ (em b).

4.3.2 Constituintes silábicos: propriedades

Como dito acima, o núcleo é o único constituinte obrigatório em uma sílaba. Em uma palavra

portuguesa como há [a], existe apenas o núcleo silábico, não existindo onset nem coda. O padrão

silábico mais recorrente translinguisticamente, porém, é o CV, ou seja, sílaba constituída de onset e

núcleo.

Isso significa que há uma assimetria no que se refere aos constituintes da sílaba: o onset é

mais frequente que a coda. Há várias línguas do mundo em cujas sílabas o onset é obrigatório, entre

as quais estão línguas muito distantes geneticamente, como o alemão, o havaiano e o japonês. A

ampla maioria das línguas do mundo não faz exigência da existência de coda, embora muitas delas

proíbam esse constituinte. Dessa forma, podemos dizer que existe uma tendência (universal) nas

línguas de exigir onset e de proibir a coda.

V breve V longa Coda não-moraica Coda moraica

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Outra assimetria verificada nesses constituintes é que muito frequentemente todos os

segmentos consonantais de dada língua costumam figurar na posição de onset; o inverso ocorre com

a coda: muito comumente, apenas um subconjunto dos segmentos de uma língua costuma figurar em

coda silábica. Além disso, no onset contrastes costumam ser mantidos, ao passo que na coda é

comum ocorrer a neutralização33

. A complexidade nesses constituintes também costuma ser muito

restrita nas línguas do mundo, e costuma ser limitada por vários fatores, alguns dos quais vistos a

seguir.

4.3.3 Formando a sílaba

Dois princípios gerais são importantes para o nosso curso:

Princípio de maximização do onset: ‘forme o onset com o número máximo de elementos até

onde ele possa legitimamente; apenas depois disso, forme a coda’. De acordo com o primeiro

princípio, o onset tem prioridade sobre a coda em sua formação. Isso garante, para uma sequência

como [kata], que ela seja silabada como [ka.ta], mas não [kat.a] ou [k.at.a], por exemplo.

Princípio do sequenciamento de sonoridade: ‘a sílaba deve crescer em sonoridade em direção

ao núcleo e decrescer em direção às margens’. Segundo esse princípio, em um onset de uma sílaba,

os segmentos devem se suceder com sonoridade crescente até o pico silábico, local onde haverá

maior nível de sonoridade; a partir daí, em direção à coda, a sonoridade deve decrescer. Para esse

princípio, consideremos a seguinte escala de sonoridade: 0. Oclusivas < 1. Fricativas < 2. Nasais <

3. Líquidas < 4. Glides < 5. Vogais.

Observe o perfil de sonoridade da sílaba [plas] como na palavra plástico, do português:

4.4 Pé métrico. Acento

O acento pode ser entendido como uma proeminência relativa de uma sílaba em comparação

a outra. Essa proeminência se manifesta foneticamente através de indicadores como duração e

intensidade. Fonologicamente, o acento tem sido considerado como uma posição estrutural no pé

33 Sendo assim, podemos dizer que segmentos proibidos na coda estão mais propensos a figurarem em oposições

constantes, ao passo que aqueles presentes permitidos na coda costumam figurar em oposições neutralizáveis.

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41

métrico, constituinte fonológico intermediário entre a sílaba e a palavra, o que descarta a

necessidade de postular o traço distintivo referente a ele.

O pé métrico é constituído por uma sílaba fraca (dominada; abreviada por w, de weak, ing.) e

uma sílaba forte (dominante; abreviada por s, de strong, ing., id.), sendo esta chamada

correntemente de núcleo (ou cabeça) do pé. Em uma palavra com mais de um pé, um deles é mais

proeminente e portará, em seu núcleo, o acento primário. O pé métrico dominado será o portador do

acento secundário.

Retomando nosso exemplo, (pa.a)(i.z), vemos aqui dois pés métricos: (pa.a) e (i.z). O

pé (i.z) é o mais proeminente e porta, em seu núcleo ([i]), o acento primário (indicado por ‘’). O

pé métrico dominado, (pa.a), é portador do acento secundário (indicado por ‘’)34.

Duas tendências universais tratadas aqui serão: 1) binarismo do pé e 2) evitação de choque

acentual (stress clash). Em relação à primeira tendência, pode-se dizer que pés métricos tendem a

ser binários, ou seja, tendem a conter duas sílabas (ou duas moras). Pés que não se enquadrem nessa

categoria serão considerados pés degenerados. Assim, em uma palavra como (ile)(gali)(dade),

temos três pés binários, ao passo que em (le)(gali)(dade), temos dois pés binários e um pé, o

primeiro, degenerado.

Em relação à segunda tendência, verifica-se, nas línguas do mundo, que uma reatribuição de

acento primário, decorrente de processo morfológico, por exemplo, pode fazer que acentos se

desloquem para evitar a colisão. Assim: (ka)(f) + (zio) resulta em (kaf)(zio); (ka)(u)+(ejro)

resulta em (kau)(ejro).

Os tipos de pés mais frequentes nas línguas do mundo são os troqueus (com núcleo à

esquerda) e os iambos (com núcleo à direita). Troqueus podem ser silábicos ou moraicos, ou seja,

podem contar sílabas ou unidades de peso silábico. Sobre o português, afirma Collischonn (1994:

44):

“Nas palavras em que o número de sílabas pretônicas é par, o padrão é sempre este: a primeira sílaba é

acentuada e cada segunda sílaba à direita desta. Nas palavras em que o número de sílabas pretônicas é

ímpar, observamos dois padrões possíveis: (a) a segunda sílaba é acentuada e cada segunda sílaba à

direita desta; ou (b) a primeira sílaba é acentuada e o acento seguinte somente cai sobre a terceira

sílaba à direita desta”.

Por esse padrão, podemos citar os seguintes casos como exemplos:

1) àto.nìci.dáde; 2) (a) razòabìlidáde; (b) ràzoabìlidáde.

34

Em alguns casos, utiliza-se o acento (gráfico) agudo (´) para indicar o acento primário, e o acento grave (`) para o

secundário: [pà.ra.í.zo], [kàfezío]. Em alguns casos, adoto essa forma, conjugada com a ortografia convencional.

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42

Em alguns dialetos do inglês, a atribuição de acentos primário e secundário está associada à

neutralização vocálica em favor do xuá (schwa: []): photograph [] e photography

[:].

Referências

BISOL, Leda (Org.). Introdução a estudos de fonologia do português. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005.

COLLISCHONN, Gisela. Acento secundário em português. Fonologia – Análises não-lineares. In:

BISOL, L. (Org.) Letras de Hoje. Volume 29. Número 4. PUC-RS. Porto Alegre, 1994.

CHOMSKY, Noam & HALLE, Moris. The Sound Pattern of English. Arper and Row: Nova Iorque,

1968.

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