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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ALIMENTO, EDUCAÇÃO E CIDADANIA: UMA ANÁLISE DA CARTILHA POPULAR DE MOBILIZAÇÃO SOCIAL DO PROGRAMA FOME ZERO NO MUNICÍPIO DE CANOAS, RS DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Olema Palmira Pellizzer Março 2009

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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ALIMENTO, EDUCAÇÃO E CIDADANIA: UMA ANÁLISE DA

CARTILHA POPULAR DE MOBILIZAÇÃO SOCIAL DO PROGRAMA FOME ZERO NO MUNICÍPIO DE CANOAS, RS

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Olema Palmira Pellizzer

Março 2009

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OLEMA PALMIRA PELLIZZER

ALIMENTO, EDUCAÇÃO E CIDADANIA: UMA ANÁLISE DA

CARTILHA POPULAR DE MOBILIZAÇÃO SOCIAL DO PROGRAMA

FOME ZERO NO MUNICÍPIO DE CANOAS, RS

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Prof. Dra. Isabel Cristina de Moura Carvalho

Março 2009

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Catalogação: Bibliotecária: Cátia S. Garcia CRB 10/1243

P385 Pellizzer, Olema Palmira Alimento, educação e cidadania : uma análise da cartilha popular de mobilização social do programa fome zero no município de Canoas, RS [manuscrito] / Olema Palmira Pellizzer. – 2009. 99f. : Dissertação (Mestrado) – Universidade Luterana do Brasil,

Pós-Graduação em Educação, 2009. Orientação: Profa. Dra. Isabel Cristina de Moura Carvalho.

1. Fome 2. Política Pública 3. Cartilha Popular da Mobilização Social 4. Representação Cultural. I. Título.

CDU: 364.013

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E nessa noite eles dormiam por terra, entre trastes, frio e mais abandono. Foi no coração do escuro que os soluços acordaram a mãe de sua madorna. Ela trancou os ouvidos com as mãos em desespero. Tentou retomar o sono apertando os olhos e alucinada. Ela bem conhecia a origem das lágrimas dos meninos. Era a Fome, hóspede previsível. Entrava sem chaves, sem respeitar trancas. Surgia sem consentimento, negando trégua ao repouso.

Mas na casa só havia o vazio e o resto. A Fome, há

muito, andava corroendo tudo. Devorou o relógio do pai e com ele engoliu o tempo; comeu a esperança junto com a medalha de ouro da mãe; mastigou o rádio de pilha e assim trancou a música. Isso, depois de mastigar as camas, as cadeiras, as mesas, o armário com todos os seus pertences. E o nada reinava absoluto por todos os cantos dos cômodos.

Bartolomeu Campos de Queirós (De não em não, Belo Horizonte: Miguilim, 1998)

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Aos meus pais, Fortunato Pellizzer e Graciema Cecato Pellizzer,

pela oportunidade de percorrer os caminhos da vida no âmbito rural e urbano.

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AGRADECIMENTOS

À orientadora, Prof. Dra. Isabel Cristina de Moura Carvalho, pelo profissionalismo com que me conduziu na elaboração desta dissertação.

À minha família que durante o mestrado necessitou de atenção especial e a seu modo me apoiou para que eu pudesse concretizar mais esta etapa.

À professora, doutora Sandra da Silva Silveira, amiga que me ensinou a gostar de política social e me apresentou a política de SAN.

À gestora do PAA/Canoas, Sra. Vera, que sempre me acolheu com carinho e dedicação respondendo aos meus questionamentos, e, também às lideranças comunitárias e aos usuários do núcleo Guajuviras que me recebeu com os alunos de modo natural e gostoso.

À professora Lou Zanetti que, incansável na tarefa de ensinar a língua portuguesa, contribuiu com suas observações para que eu pudesse chegar aqui.

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RESUMO

Nesta dissertação, analiso as representações culturais sobre fome, cidadania e a segurança alimentar e nutricional da Cartilha Popular da Mobilização Social, de autoria de Frei Betto (2003) utilizada no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do Programa Fome Zero do Governo Federal, no município de Canoas/RS, em 2007. Para efetuar tais análises utilizo o referencial teórico dos estudos culturais e problematizo as representações culturais que são acionadas pela referida cartilha. Dentre as questões debatidas, focalizo os deslocamentos das representações de fome como fato biológico para a noção de segurança alimentar que considera a fome fato social e a ressignifica como parte de um campo de direitos sociais. Discuto o papel dos movimentos sociais no Brasil na origem desta política pública de Segurança Alimentar e Nutricional, e suas conexões com movimentos sociais globais que igualmente consideram o alimento um direito social e cultural. A título de conclusão, reflito sobre o modo com as representações relativas à fome e à segurança alimentar operam na qualidade de pedagogias culturais, ensinando novos modos de ser cidadão e a encarar as carências alimentares como um direito, oferecendo novos significados à condição de carência, necessidade e pobreza. Palavras-chave: políticas públicas; alimento; alimentação; segurança alimentar e nutricional; representação cultural; estudos culturais.

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ABSTRACT

This paper analyses cultural representations about hunger, citizenship and food and nutrition safety according to the Popular Guidelines on Social Mobilization by author Frei Betto (2005) as utilized in the Food Acquisition Program (FAP) of the Zero Hunger Program (ZHP) drawn by the Brazilian Government as applied in the municipality of Canoas-RS in 2007.In order to carry out such analysis, the theoretical referential of cultural studies was used and the problem of the cultural representations . Among the discussed issues, the focus is on the displacements from hunger representations as a biological fact into the notion of food safety that considers hunger a social fact and gives to it a new meaning as part of a field of the subject social rights. A discussion is established about the role of the social movements in Brazil in the origin of this public policy on Food and Nutrition Safety and its connections with global social movements that equally consider food as a social and cultural right To summarize, a reflection is made on the way how the representations relative to hunger and food safety operate in the quality of the cultural pedagogies, by teaching new ways of being a citizen and how to face food lacks as a right, by offering new meanings to the condition of lack, need and poverty. Key words: public politics; food and nutritional safety; cultural representation; cultural studies.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Agentes do FZ ............................................................................................ 65

Figura 2: Fome e pobreza ......................................................................................... 66

Figura 3: Água como alimento ................................................................................... 68

Figura 4: Rede solidária ............................................................................................ 70

Figura 5: Biodiversidade e sociodiversidade ............................................................. 71

Figura 6: Ensinar a pescar ........................................................................................ 75

Figura 7: A árvore frondosa ...................................................................................... 76

Figura 8: A metáfora da maçã verde ......................................................................... 78

Figura 9: A riqueza do Brasil ..................................................................................... 80

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LISTA DE SIGLAS

ACADEF – Associação Canoense de deficientes físicos

CNSA – Conferência Nacional de Segurança Alimentar

CONAB – Campanha Nacional de Abastecimento

CONSEA – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

COPO/CRA – Centro de Recepção e Doação de Alimento

CRAS – Centro de Referência da Assistência Social

ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente

EC – Estudos Culturais

FAO – Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação

FBSAN – Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional

FIERGS – Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul

IBASE – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas

IPEA – Instituto de Pesquisas Sociais Aplicadas

LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social

MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário

MDS – Ministério de desenvolvimento Social

MESA – Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Nutricional

ONG – Organização não-governamental

ONU – Organização das Nações Unidas

PAA – Programa de Aquisição de Alimentos

PAT – Programa de Alimentação do Trabalhador

PCdoB – Partido Comunista do Brasil

PDT – Partido Democrático Trabalhista

PFZ – Programa Fome Zero

PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro

PP – Partido Progressista

PPS – Partido Popular Socialista

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PR – Partido da República

PSB – Partido Socialista Brasileiro

PT – Partido dos Trabalhadores

SAN – Segurança Alimentar e Nutricional

SDT – Secretaria de Desenvolvimento Territorial

Vocabulário usado no jargão do PFZ para denominar o Programa e a equipe executora:

PRATO – Programa de Ação Todos pela Fome Zero

TALHERES – Equipe de Capacitação para a Educação Cidadã

SAL – Agentes de Segurança Alimentar

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 11 1 ALIMENTO, CULTURA E IDENTIDADE .......................................................................... 18 1.1 MOVIMENTOS ALTERMUNDISTAS ............................................................................. 18 1.2 AMBIENTE, ALIMENTO E MOVIMENTOS SOCIAIS GLOBAIS: O CASO DO SLOW FOOD E A ECOGASTRONOMIA ........................................................................................ 21 2 OS ESTUDOS CULTURAIS ALIMENTANDO A QUESTÃO – REPRESENTAÇÃO CULTURAL E PEDAGOGIA CULTURAL ........................................................................... 28 2.1 A CENTRALIDADE DA CULTURA E OS ESTUDOS CULTURAIS ................................ 28 2.2 SOBRE REPRESENTAÇÃO CULTURAL E A PRODUÇÃO DE SIGNIFICADO ............ 30 2.3 A PEDAGOGIA CULTURAL E A EDUCAÇÃO ............................................................... 34 3 ALIMENTAÇÃO, MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICA PÚBLICA NO BRASIL. DA TRAJETÓRIA DA FOME À SEGURANÇA ALIMENTAR .................................................... 37 3.1 O SIGNIFICADO DA EXPRESSÃO FOME E O ALIMENTO: DIREITO OU MERCADORIA .................................................................................................................... 39 3.2 A POLÍTICA DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL NO BRASIL ................. 47 4 CAMINHO INVESTIGATIVO: SAN E ESTUDOS CULTURAIS, ARTICULAÇÕES E SEUS DESDOBRAMENTOS ......................................................................................................... 53 4.1 A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA ............................................................ 56 5 A CARTILHA: ENSINANDO COMO ALIMENTAR A CIDADANIA................................... 63 5.1 ANÁLISE GLOBAL DA CARTILHA ................................................................................ 63 5.2 CAPA DA CARTILHA..................................................................................................... 65 5.3 ALIMENTO PARA MATAR A FOME OU ALIMENTO COMO DIREITO?........................ 66 5.4 SOCIODIVERSIDADE E BIODIVERSIDADE COMO FORMAS DE INCLUSÃO SOCIAL ..... 70 5.5 SESSÕES ESPECIAIS: DA PALAVRA DO PRESIDENTE ÀS ANOTAÇÕES SOBRE O PFZ ...................................................................................................................................... 73 5.6 A PALAVRA DO PRESIDENTE: DISCURSO ENTRE A DEMANDA E O POPULISMO . 74 5.7 VOCÊ SABIA? ............................................................................................................... 79 5.8 TOME NOTA ................................................................................................................. 82 5.9 CONTEXTO ONDE A CARTILHA CIRCULA NO MUNICÍPIO DE CANOAS/RS ............ 83 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 88 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 95

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INTRODUÇÃO

A presente dissertação objetiva discutir, sob a ótica dos estudos culturais, a

Cartilha Popular de Mobilização Social, de autoria de Frei Betto (2003), inclusa no

Programa Fome Zero (PFZ)1, que busca operacionalizar a Política de Segurança

Alimentar e Nutricional (SAN) no Brasil. Para analisar a cartilha partiu-se das

observações como professora através de uma disciplina teórico-prática do curso de

Serviço Social, cuja prática foi desenvolvida no Programa Aquisição de Alimentos

(PAA)2 no município de Canoas/RS, a partir da Extensão Universitária da ULBRA3

de março a julho de 2007. Assim, ao analisar-se a ideia de pedagogia cultural de

Giroux (2003)4, a qual pressupõe que a cultura é um ambiente pedagógico e que as

práticas sociais e culturais ensinam mesmo quando não circunscritas a espaços

formais de ensino, considero, aqui, a referida cartilha um artefato que possibilita

conhecer a Política de SAN como uma pedagogia cultural. Nessa dimensão, os

modos de tratar os temas alimento e alimentação podem ser analisados como

1 Programa do governo federal, instituído em 2001, o qual desenvolve ações como: Programa Aquisição de Alimentos/PAA, Programa Alimentação do Trabalhador/PAT, Banco de Alimentos, entre outras. 2 O PAA em desenvolvimento no Município de Canoas é uma parceria entre o Ministério de Desenvolvimento e Combate à Fome (MDS) e o Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), com recursos logísticos da Campanha Nacional de Abastecimento (CONAB), e que se instituiu através de convênio direto com as prefeituras e/ou com instituições da Sociedade Civil. No município de Canoas, o PAA é desenvolvido através de instituições conveniadas (Sindicato dos Metalúrgicos, Pastoral da Criança da Igreja Católica e Movimento dos Trabalhadores Desempregados) com o MDS, que coordenam os lideres comunitários que executam o programa junto às famílias em situação de carência alimentar urbana, fornecendo cesta básica de alimentos mensal e capacitação profissional. O MDA, através de representação local, repassa recursos financeiros e técnicos aos pequenos agricultores (assentados, quilombolas e outros) em troca de uma parcela de alimentos produzidos. Um dos critérios para o pequeno agricultor conveniar-se ao PAA é o de priorizar a produção de alimentos ecológicos. http://www.mds.gov.br/programas, http://www.conab.gov.br, http:// www.mda.gov.br/saf. Acesso em maio de 2008. 3 Participei na condição de professora do Programa “Construindo a Cidadania” da extensão universitária da ULBRA/Canoas/RS, o qual desenvolve assessoria e ações através da disciplina Competência Técnico-Operativa em Serviço Social do curso de graduação junto aos usuários de dois núcleos atendidos pelo Programa de Aquisição de Alimento (PAA) em desenvolvimento no município. 4 Para Giroux, pedagogia cultural inspirada nos Estudos Culturais abrange qualquer instituição cultural, em conexão com relações de poder, no processo de transmissão de atitudes e valores, tais como o cinema, a televisão, as revistas, entre outros, conforme abordo no capítulo “Os estudos culturais alimentando a questão – representação cultural e pedagogia cultural”.

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formas de pedagogias culturais. Assim, considerando o alimento como cultura, é

possível analisar a política pública de SAN também em seu aspecto de política

cultural. Adota-se, neste estudo, o conceito de representação cultural de Hall (1997)5

para compreender e analisar o modo cultural como a cartilha representa o alimento e

as intenções pedagógicas que emergem em torno da alimentação, associadas às

observações das práticas suscitadas pelo PAA no contexto da política de segurança

alimentar.

A partir análise da cartilha e da observação do PAA, realizada naquele

período, foram observados os discursos direcionados à condução de práticas

educativas em relação à SAN que caracterizam uma intencionalidade pedagógica

dessa política voltada para a noção de alimento e alimentação como direito de

cidadania e de afirmação de identidades culturais.

Considerando-se uma visão de cultura, a proposta é compreender de que

modo os discursos apresentados na cartilha contribuem para atribuir significados à

problemática da fome e da qualidade de vida, isto é, compreender as relações

construídas, tomando os alimentos como modos de produzir uma cultura de

representações sobre o contexto onde se vive e em determinado tempo. O material

selecionado aciona, por exemplo, representações de estilos de vida, relação de

poder e saber de grupos sociais diversos em torno do alimento.

O ponto de partida para compreender e fundamentar o objeto de pesquisa foi

buscar os teóricos que se ocuparam do tema da fome e os recentes

desdobramentos históricos ocorridos com o surgimento do conceito de insegurança

alimentar e, consequentemente, a construção da política de SAN. Após erigir a

estrutura fundamental para a dissertação, o estudo foi esquematizado em cinco

capítulos, a fim de dar encadeamento e coerência à apresentação da pesquisa.

5 O conceito de representação cultural em Hall concentra-se nos conexões entre identidade e representação e seus significados, como será abordado no capítulo intitulado “Os estudos culturais alimentando a questão – representação cultural e pedagogia cultural”.

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Interesse e motivação para o estudo

O meu6 interesse pelo tema SAN/PAA ocorreu por esta ser uma forma

alternativa de enfrentar a fome e a miséria, articulando alimentos com a promoção

da pequena agricultura familiar que tem dificuldades em comercializar seus produtos

em um cenário competitivo. O PAA também propicia que as famílias urbanas

conheçam e valorizem os alimentos ecologicamente produzidos (in natura), e lhe

tenham fácil acesso. Assim, o PAA integra esforços que beneficiam tanto a

população em situação de vulnerabilidade social urbana quanto a população rural

que não tem onde vender seus produtos. Por fim, o programa também busca a

integração desses dois segmentos (urbano e rural) por meio de fóruns, reuniões,

entre outras atividades do gênero.

Considero, ainda, a política de SAN importante por tratar dos bens

alimentares e dos modos como esses bens são produzidos, apropriados e

gestionados pela sociedade contemporânea. É relevante destacar que o tema da

produção e consumo alimentar é objeto de contradições importantes na sociedade

contemporânea, pois nela se estabelecem tensões entre diferentes modos de

apropriação do alimento, expressos, por exemplo, na apropriação privada desse

bem, e na sua transmutação para a qualidade de mercadoria, pelas grandes

corporações transnacionais que agregam valores ao agronegócio – o que exclui do

acesso ao alimento a população de baixo poder aquisitivo. Por outro lado, entre os

movimentos sociais há os que se mobilizam por outro tipo de produção e distribuição

dos alimentos de forma a respeitar a cultura regional e a qualidade nutricional dos

alimentos – em defesa, portanto, da agricultura familiar e regional, em um circuito de

produção e consumo solidários.

Esse tema, também, está diretamente relacionado à minha história de vida. O

interesse pelo alimento e sua produção iniciou quando, junto com meus pais,

vivenciei o plantio e a colheita de batata, de cebola, de feijão e de vinhedos,

produzidos para o consumo caseiro. A comercialização do excedente atinha-se à

compra do que a terra não produzia: vestimenta, calçados, ferramentas de uso

agrícola, entre outros. Muitos produtos alimentícios eram trocados por outros, na

6 Neste item da Introdução personaliza-se o tratamento em Língua Portuguesa por tratar-se de um momento de reflexão, escolha e adoção do tema a ser proposto, baseado em uma vivência bastante pessoal e, portanto, subjetiva. No restante da Dissertação opta-se pelo tratamento impessoal.

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modalidade de escambo, com os vizinhos, para garantir a dieta familiar. A mesa

farta de produtos regionais da safra incluía o pão e a bolacha caseiros, resultantes

do grão de trigo moído em moinhos de pedra, e as frutas de época enriqueciam a

dieta diária.

Eu acompanhava o plantio da semente, o nascimento da planta, o

aparecimento das folhas para proteger as flores e frutos que, amadurecidos, sob o

olhar da criança curiosa ao descobrir o mistério da vida, eram degustados como se

fossem as balas do final de semana. E não se ouvia falar em fome, em parte pela

distância das notícias sobre o mundo e, em parte, porque, no reduto familiar, a

fartura produzida satisfazia as necessidades nutricionais das famílias que ali viviam.

Mais tarde, no final da década de 1970, ainda estudante do curso de matemática e

professora do ensino médio, ao ensinar progressões matemáticas (geométricas e

aritméticas), defrontei-me com o debate sobre as relações entre população e

recursos naturais, na época fortemente influenciado pela teoria malthusiana. Esse

debate foi o pano de fundo em que nasceu uma das formulações importantes da

discussão ecológica expresso no Relatório “Limites do Crescimento”, elaborado

pelos cientistas do Massachusetts Institute of Techonology (MIT), cuja preocupação

era justamente equacionar essa relação entre crescimento populacional e

crescimento dos recursos naturais.

Com tudo isso, comecei a questionar a fome no mundo e ao meu redor.

Naquela época, o ensino havia sofrido a reforma ditatorial e priorizava a

aprendizagem pela repetição, gerando a sensação de que as disciplinas como

matemática, física e outras estivessem “descoladas” das ciências sociais. Por esse

motivo, frustrada com a forma adotada para ensinar a matemática, busquei o curso

de Serviço Social na esperança de obter alguma resposta aos inúmeros

questionamentos relacionados às injustiças sociais.

Dediquei-me aos estudos e, aos poucos, fui compreendendo o contexto

moderno e suas metanarrativas totalizantes, e, consequentemente, seus limites.

Logo, conectada à realidade contemporânea, e percebendo o enfraquecimento dos

diferentes movimentos sociais reivindicatórios, lancei novos olhares sobre esses

problemas e descobri outras formas de protesto contra a destruição do ser humano

e do planeta, ciente do fortalecimento das transnacionais na comercialização dos

recursos naturais. A descoberta de novos paradigmas da ciência exigiu-me a

reconstrução do meu modo de pensar as políticas, desconstruir as verdades

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absolutas e buscar as relativas, tendo a consciência de que o poder é circulante e as

identidades se estabelecem a partir das diferenças, verdades provisórias e

“complexas”. Esse fato propiciou-me chegar aos “estudos culturais”, campo que

possibilita as mais variadas análises dentre as propostas epistemológicas

construcionistas.

Hoje, entendo que a história é uma construção cultural. Quando olho para o

futuro e vejo as terras onde nasci “castigadas” pelo Homem7 e o rio onde me

banhava, outrora cheio de caranguejos, transformado em um córrego de esgoto

esperando por uma solução8 essa questão está muito presente. Percebo que é

preciso olhar tudo de modo diferenciado, principalmente o alimento que se produzia

e hoje não se produz mais; e que o alimento que se produz hoje pode faltar

totalmente no futuro. O acesso ao alimento já não está à mão dos que moram à

beira dos rios – muito menos dos que moram longe dele.

Adotar, portando, a cartilha como um artefato de cômoda pedagogia cultural

associada à política de SAN, proporcionou-me um contato com questões que

atravessam minha história de vida, por ter vivido a infância e parte da adolescência

em contato com a terra, em meio à agricultura familiar. Na qualidade de assistente

social preocupada com a eficácia das políticas públicas, pergunto-me o que as

pessoas consomem, o que o mercado regula e o que os(as) cidadãos(ãs) escolhem

como padrão alimentar.

Dentre as inúmeras questões suscitadas a partir do tema Segurança

Alimentar e Nutricional, considero primordial discutir, como objeto do trabalho, as

representações culturais e as intenções pedagógicas que circulam na cartilha

informativa da Política de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), materializada no

Programa Aquisição de Alimentos (PAA) do Programa Fome Zero (PFZ), através dos

governos federal, estadual e municipal. São muitas as representações culturais

existentes sobre alimentos – desde a necessidade individual biológica até a noção

de alimento como direito social e cultural.

O texto desta dissertação está organizado na seguinte maneira: o primeiro

capítulo versa sobre “Alimento, cultura e identidade”, a partir dos itens: “Movimentos

altermundistas”, que trata dos movimentos sociais contemporâneos, os quais, no 7 Fragmentação de propriedades pra construir habitações e a utilização de agrotóxicos e pesticidas em detrimento do adubo orgânico. 8 Poluído nas últimas décadas em função de um pequeno vilarejo que surgiu a um quilômetro das terras dos meus pais.

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contexto de globalização das lutas sociais, demarcam o espaço das lutas político-

culturais no contexto da sociedade civil. Ao tensionarem a globalização econômica,

esses movimentos propõem novas questões para a agenda social. O tópico

“Ambiente, cultura e alimento: o movimento slow food e a ecogastronomia” trata dos

problemas de apropriação e comercialização dos alimentos, hábitos alimentares da

população e as culturas regionais. Apresenta-se o movimento slow food como uma

luta cultural pela compreensão do alimento e da alimentação como cultura e campo

de direitos em oposição ao fast food (comida rápida), que encarna os ideais da

sociedade industrial, baseada na aceleração e no consumo padronizado

(CARVALHO, 2008). O segundo capítulo, intitulado “Os estudos culturais alimentando a questão –

representação cultural e pedagogia cultural”, insere os Estudos Culturais, e trata do

campo de estudo adotado para realizar a análise da temática SAN, a partir dos itens:

“A centralidade da cultura e os estudos culturais” que aborda a cultura e a “virada

cultural” no campo dos estudos culturais; o tópico “Representação cultural e a

produção de significados” versa sobre a representação como uma categoria dos

estudos culturais imbuída de significados e discursos sobre alimento e alimentação.

Por último, “A pedagogia cultural e a educação” refere-se à educação existente em

todos os recantos e sua intencionalidade enquanto pedagogia cultural.

O terceiro capítulo, intitulado “Alimentação, movimentos sociais e políticas

públicas no Brasil: a trajetória da fome à segurança alimentar”, aborda os aspectos

do deslocamento da problemática da fome, das políticas gestadas para seu

enfrentamento e os principais protagonistas, em busca da reflexão sobre a questão.

O tópico “O significado da exploração da fome e do alimento: direito ou mercadoria”

aborda os mitos, as verdades e a produção da escassez dos alimentos como forma

de movimentação de lucros das grandes transnacionais do alimento. O tópico

seguinte, “A política de SAN no Brasil”, refere-se ao processo de construção dessa

política no Brasil, com o programa Fome Zero, visando a enfrentar a fome e a

pobreza.

O quarto capítulo, “Caminho investigativo: a SAN e os estudos culturais,

articulações e seus desdobramentos”, apresenta o delineamento do tema de

pesquisa a partir das observações do campo e da análise da cartilha do PFZ/PAA e

sua relação com os estudos culturais. O subitem do capítulo “A construção do objeto

de pesquisa” trata do envolvimento da pesquisadora com o tema SAN desde a

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construção do referencial teórico até descrição e análise da cartilha, tomando como

questões centrais as representações culturais do alimento e da alimentação e a

relação com a pedagogia cultural na compreensão da realidade cultural e social.

O quinto e último capítulo, intitulado “A cartilha: ensinando como alimentar a

cidadania”, apresenta a descrição e análise de algumas passagens da cartilha do

PFZ a partir dos discursos considerados relevantes do texto escrito e das imagens

ilustrativas dirigidas aos beneficiados, gestores e agentes do programa. Esse

material forneceu elementos necessários para analisar as representações culturais

sobre alimento, alimentação e política pública de SAN no contexto do PFZ/PAA. O

tópico “Alimento para matar a fome ou alimento como direito?” trata da questão do

alimento enquanto necessidade biológica e direito de cidadania. O tópico seguinte,

“Sociodiversidade e biodiversidade como forma de inclusão social” versa sobre o

respeito à cultura regional e étnico nas questões do alimento e da alimentação. Após

essa análise, destaco as sessões especiais da cartilha e as transformo nos itens “A

fala do presidente: discurso entre a demanda e o populismo”, “Você sabia?” e “Tome

nota”, os quais versam sobre pedagogia, cultura e ensina novos modos de ser

cidadão. Por último, situo o contexto em que a cartilha circula no município de

Canoas/RS.

Nas “Considerações finais” são tecidos os comentários sobre as

representações culturais encontradas na análise do discurso da cartilha em relação

à política pública de SAN e o proposto pelo PFZ. Também aponto contradições

desse discurso, principalmente no que diz respeito à fala do Presidente da

República, e, por último, apresento algumas observações sobre o PAA/Canoas/RS

na integração urbano/rural no combate à fome e à pobreza, operacionalização da

questão do alimento e alimentação como um direito à segurança alimentar e

nutricional. A dissertação se encerra com as referências bibliográficas, fontes

imprescindíveis para dar lastro e consistência a este estudo.

Page 21: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PRÓ-REITORIA DE …livros01.livrosgratis.com.br/cp117756.pdfNesta dissertação, analiso as representações culturais sobre fome, cidadania e a segurança

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1 ALIMENTO, CULTURA E IDENTIDADE

Discorrer sobre a questão do alimento e da alimentação em meio ao contexto

cultural é, também, refletir sobre o modo em que ocorre sua intermediação através

do Estado e da Sociedade Civil9 e buscar possíveis respostas para a insegurança

alimentar escancarada na contemporaneidade globalizada. Os movimentos sociais

são considerados canais de encaminhamento dos direitos fundamentais em relação

à vida, sendo a alimentação um deles. A perspectiva da alimentação, considerada

um direito, revela diferentes identidades culturais de segmentos populacionais

evidenciando suas formas culturais de lidar com a produção, processamento e

consumo dos alimentos.

1.1 MOVIMENTOS ALTERMUNDISTAS

A cartilha Popular de Mobilização Social é o artefato de estudo da pesquisa, e

tem em seu escopo a política pública de SAN permeada por jogos de poderes e

saberes. E para discorrer-se sobre esta política não se pode deixar de contextualizar

algumas questões relativas aos movimentos sociais em torno da alimentação e sua

maior ou menor visibilidade, dependendo dos objetivos que articulam em cada

época e momento histórico da nossa história recente. Esses movimentos assumem

significados diversos a partir das grandes metanarrativas do século XIX que, na

segunda metade do século XX, começam a ser questionadas quando diferentes

atores da sociedade civil, organizados em segmentos conforme sua forma de pensar

e agir, surgem, e há os que se colocam de costas para o Estado e os que se veem

parceiros dele. Esses atores mobilizam lutas que, independente da posição, tornam-

se visíveis e se engajam em busca de mudanças para encaminhar suas

reivindicações relativas à questão social do momento.

A política pública SAN tem se constituído articulada aos movimentos sociais e

visa o direito à alimentação em quantidade e qualidade, e isso exige esforço tanto do 9 O conceito de Sociedade civil surge no Brasil no final da década de 1970, quando se tornou sinônimo de participação e organização da população civil na busca da autonomia do país. No momento atual a sociedade civil é composta de diferentes atores e diferentes entendimentos dos problemas sociais, políticos e culturais da sociedade, em que os principais atores que a protagonizam são ONGs, movimentos sociais e o terceiro setor, resultantes do descentramento dos sujeitos históricos em ações relacionadas a políticas públicas, via parcerias (TOURAINE, 2002; GOHN, 2002).

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poder público quanto da sociedade civil, em uma mediação significativa,

considerando-se que o alimento de bem social assume a categoria de mercadoria no

mundo globalizado. Esse fato vem sendo amplamente discutido, em escala mundial,

com o objetivo de encontrar estratégias que contemplem as diferentes posições em

relação à problemática em estudo, além de incentivar a sociedade à reflexão sobre o

tema.

Para compreender os movimentos sociais na defesa do alimento e da

alimentação com quantidade e qualidade suficiente para toda a população,

procurou-se contextualizar os denominados movimentos altermundistas que,

atualmente, apresentam-se como um espaço de denúncia a globalização que serve

apenas ao capital financeiro e aos imperativos da economia, ignorando os direitos

sociais e as necessidades humanas e culturais.

Esses movimentos defendem a afirmação de valores pessoais e culturais,

engajados em redes mundiais. Seus objetivos incluem a solidariedade entre os

grupos afetados pela globalização econômica e o próprio direito de se mobilizarem

no contexto contraditório mundial, e quando organizados não se atêm apenas a

criticar o capitalismo, mas, sobretudo, buscam gerar alternativas frente à

globalização econômica. Nas últimas décadas, houve considerável perda do poder

do Estado sobre a produção de bens e serviços, e as grandes corporações

empresariais tomaram o espaço como sujeitos econômicos de mercado, relegando

os cidadãos a simples consumidores e impondo a ideia de que o modelo atual é o

único possível. Essa forma de poder hegemônico reforça sociedades marcadamente

desiguais, difundindo a ideia de que não existem alternativas a não ser adaptar-se

às suas normas.

Enquanto a economia de mercado domina o pensamento econômico-político

e social e sedimenta estruturas sociais em prol do capitalismo, aparece em

contraponto, no cenário da sociedade civil, a defesa da vida e da nação através das

lutas contra a globalização econômica10, originando a denominada globalização

10 “A globalização econômica emergiu do processo em que as empresas multinacionais ascenderam e se tornaram atores internacionais, rebatizadas de empresas transnacionais” (CARMO, 1998).

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alternativa11, sensível às dimensões sociais, culturais e políticas. Sua proposta não é

a de se colocar contra a abertura mundial da produção e dos intercâmbios, mas

provocar o surgimento de uma agenda de “luta em prol de outra mundialização, que

não esmague os fracos, os interesses locais, as minorias e o meio ambiente em

proveito unicamente dos que já detêm a riqueza, o poder e a influência”

(TOURAINE, 2006, p. 36).

Os movimentos por outra mundialização12, também denominados

altermundistas, valorizam os países pelos seus recursos naturais e humanos e não

centram a valorização em seus mercados. Embora ainda tenham pouca difusão na

grande mídia, esses movimentos aparecem articulando novas ideias “contra a

concepção e a prática de que tudo se vende, de que tudo se compra, de que o

mercado e os seus preços manipulados definem o que se pode e o que não se pode

fazer”13. São movimentos que convocam uma gestão democrática e fazem com que

os valores humanísticos e solidários questionem o processo de mercantilização que

atravessa o contexto mundial, e suspeitam da legitimidade do lucro das grandes

corporações internacionais e dos mercados financeiros.

O movimento por uma globalização alternativa busca a energia na diversidade

interna e nas múltiplas formas de organização dos grupos sociais, favorecendo a

representatividade das diferentes identidades nacionais e locais. As manifestações

altermundistas incluem questões ecológicas, indígenas, de gênero, entre outras, e

apontam para novas redes de ação política global. São lutas que ocorrem nos níveis

local e global e constroem alianças para pressionar por novas políticas sociais

globais14. São movimentos que ocupam as agendas sociais mundiais como, por

exemplo, fóruns e manifestações que se articulam em rede mundial, mediadas pela 11A globalização alternativa em oposição à globalização neoliberal foi amplamente discutida no Fórum Social Mundial, em 2001, em Porto Alegre, onde se reuniram outros atores da vida política internacional, que pensam o mundo além da exaltação do lucro, uma oposição às ideias de desenvolvimento e direitos humanos debatidas no Fórum Econômico Mundial, na estação da Suíça de Davos. http://www.forumsocialmundial.org.br/dinamic/ramonrtpor.php. Acesso em 07/01/2008. Ainda, Santos define-a como o “processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como focar outra condição ou entidade rival” http://www.forumsocialmundial.org.br/dinamic/boaventura.php. Acesso em 7/1/2008. 12 Temos por exemplo, o sucesso do 1º Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 2002, quando se buscou unir movimentos sociais e correntes de opiniões com função crítica, que dessem sentido às manifestações de Seattle, Gênova, Göteborg e tantas outras http://www.forumsocialmundial.org.br/dinamic/saderpor.php. Acesso em 7/1/2008. 13 http://www.forumsocialmundial.org.br/dinamic/saderpor.php.Acesso em 7/1/2008. 14 As políticas sociais globais “são as políticas transacionais em si mesmas [...] e um conceito mais restrito referente a modelos que são propostos ou impostos pelas agências multilaterais e financeiras” (SANTOS, 2002, p. 21-22).

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internet. Dessa forma, unificam lutas, criam novos horizontes e ajudam no debate

ético sobre a qualidade e a distribuição dos meios e recursos para a vida humana no

planeta. Nesse cenário15, emergem atores sociais nas políticas de parcerias, na

execução de projetos sociais, e surgem novos espaços e instituições participativas

dos novos pactos políticos e no questionamento do modelo político vigente (GOHN,

2002).

O cenário contemporâneo desigual e complexo está aí e são necessárias

lentes para vê-lo e descrevê-lo a partir de múltiplos olhares, e não existe forma

única, verdade única de questioná-lo e geri-lo. Existe, sim, um tensionamento entre

diferentes poderes e discursos. Há entidades e movimentos sociais que disputam o

mesmo espaço em políticas sociais através de uma abordagem mercadológica

centrada na produção de resultados, e há entidades e movimentos com projetos

emancipatórios para a sociedade e para o Estado. Entre os últimos estão os

movimentos que adotam os alimentos e a alimentação como cultura e a

consequente luta pela preservação e representação das identidades culturais locais

e regionais.

1.2 AMBIENTE, ALIMENTO E MOVIMENTOS SOCIAIS GLOBAIS: O CASO DO

SLOW FOOD E A ECOGASTRONOMIA

Falar sobre alimento e alimentação é possível quando são contextualizados

os modos de apropriação e comercialização e os hábitos alimentares provenientes

do meio físico e das criações culturais que extrapolam as visões repassadas pelas

gerações que se sucedem no tempo. Embora nas sociedades tradicionais e nas

modernas urbanas existam hábitos alimentares arraigados, resultantes de fatores de

ordem político-econômicas e culturais, também há a apropriação do alimento como

mercadoria. Esses, de certa forma, mostram aspectos que definem a existência da

desnutrição ou fome, e, consequentemente, contextualizam a situação de segurança

ou insegurança alimentar dos países no atendimento às necessidades biológicas e à

saúde do ser humano e definem dietas alimentares.

15 Considerado “plural, com diferentes projetos, propostas e é dentro dessas diferenças e divergências que as lutas sociais têm avançado, no sentido da consolidação e aprofundamento da democracia” (GOHN, 2002, p. 76).

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Tanto a dieta tradicional quanto a moderna industrializada apresentam

deficiências alimentares. A primeira, devido à crença generalizada de que o padrão

alimentar tradicional se legitimaria pela força da tradição, isto é, pela cultura e

hábitos locais e, por isso, atenderia plenamente às necessidades, em detrimento de

uma dieta mais rica e completa. Por exemplo: a mandioca, na África, o milho junto

aos descendentes indígenas na América Central e México. A segunda, diz respeito

aos fast food, aos alimentos congelados e empacotados, que representam aspectos

da vida urbana moderna e suas vantagens e desvantagens. Vantagem quanto à

praticidade; desvantagem porque nem sempre a “cultura dos fast food”, por

exemplo, atende às necessidades nutricionais de quem os utiliza/consome. Ainda,

um dos fatos que vem preocupando os segmentos populacionais da classe média e

a elite intelectual mundial se refere à “invasão cultural” e à “homogeneização de

padrões culturais” a serviço das grandes corporações detentoras do comércio de

alimentos, processo que sofre forte aceleração com a globalização dos costumes

nas últimas décadas. Esses segmentos populacionais tomam consciência de que

não é apenas a falta ou a escassez de alimentos que compromete a saúde, mas,

também, o “comer mal” em quantidade e qualidade (ADAS, 2004).

A partir desses e outros questionamentos surgem movimentos sociais

voltados para a questão da alimentação. Entre esses movimentos destaca-se o slow

food (comida lenta), surgido na Itália, em contraposição ao fast food (comida rápida),

o qual tem como símbolo o caracol. A Itália, nascedouro do movimento slow food,

através de Carlo Petrini, mobiliza-se em resposta à abertura de um MacDonalds, na

Piazza Di Spagna, na cidade de Bra, na região de Piemont, em Roma. Em 1986,

essa mobilização torna-se uma associação internacional sem fins lucrativos, com

sede em Bra.

Inicialmente, o movimento, bastante centrado na comida, no vinho e na

divulgação de guias de gastronomia regional, desenvolveu sua dimensão mais

política a partir dos anos 1990, quando explicitou sua filosofia16, seus princípios17 e

16 “Preservar tradições gastronômicas e minimizar o impacto nefasto do ritmo frenético da vida moderna, ao menos na mesa” http://www1.folha.uol.com.br/folha/equilibrio/noticias/ult263u94.shml. Acesso em 16/12/2007, tendo como objetivos: defender o prazer gastronômico; buscar um ritmo de vida mais lento e atento; foco na qualidade de vida e identidade; propósito de reconhecer a história e a cultura de todos os grupos e rede de intercâmbios http://www.slowfoodbrasilia.org/index.php? option=com-content&task=view&id=15. Acesso em 16/12/2007.

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propõe uma rede associada18, o que Carvalho (2008) denomina “unidade associativa

do movimento”, que operava localmente, junto a instituições internacionais e

governos de todo o mundo com conhecimentos relacionados à agricultura e ao

ambiente. A partir dessas instituições, o movimento promove a cultura gastronômica,

a defesa da biodiversidade das espécies comestíveis, da educação do gosto e dos

saberes culinários tradicionais, fortemente vinculados à agricultura familiar.

A base do movimento contra o fast food está no questionamento da “pressa” e

da “loucura” da falta de tempo gerada pela globalização. A rede de fast food toma

espaço após a Segunda Guerra Mundial, em praticamente todos os países

ocidentais, e se ocupa de receitas do tipo “rápidas, fáceis e práticas”, ficando mais

visível, nas últimas décadas, quando a modernização globalizada desenvolve novas

tecnologias com o objetivo de facilitar a vida das pessoas, resultando uma tendência

à padronização da alimentação. A mídia tem sido a grande responsável pela

proliferação do slogan “ganhar tempo”, e que as pessoas não têm tempo para

realizar determinadas tarefas feitas em outras épocas: tempo para comer, preparar

refeições com alimentos regionais, entre outros. A mídia parte do princípio de que as

pessoas aderem a tudo o que significa economia de tempo. Nesse contexto, a

comida e receitas rápidas constituíram-se um estilo de alimentação largamente

disseminada no mundo ocidental através da propaganda escrita, falada e de

imagens de pessoas comendo às pressas, muitas vezes em pé, alimentos com alto

teor calórico e, não raro, de gorduras, que engordam os adeptos mais frequentes19.

17 O princípio básico é o direito ao prazer da alimentação, utilizando produtos artesanais de excelente qualidade, produzidos de forma respeitosa ao meio ambiente e as pessoas que o produzem http://www.slowfoodbrasilia.org/index.php?option=com-content&task=view&id=14. Acesso em 16/12/2007. Além do princípio acima, tem como princípios fundamentais: a defesa dos pequenos prazeres do ritmo de vida do homem; oposição a extremada simplificação das refeições; oposição ao uso desnecessário e excessivo dos produtos químicos e agrotóxicos no tratamento dos alimentos e por último, preservar os tradicionais significados culturais da culinária nas mais diversas regiões http://www.gastronomias.com/cronicas/movimento.htm. Acesso em 16/12/2007. 18 A rede associada estrutura-se a través da Comunidade do Alimento e dos convivium. A Comunidade do Alimento são entidades locais, com área geográfica definida, ocupa-se com a defesa dos valores filosóficos, operacionalização e proteção do movimento. Existem dois tipos de comunidades do alimento: a Comunidade Territorial (produz ou processa os alimentos através do trabalho estável e relacionamento duradouro) e a Comunidade de Produto (congrega uma cadeia de alimentos produzidos na Comunidade Territorial). As referidas comunidades se integram através dos convivium, palavra de origem latina, que nos remete a festim, entretenimento ou banquete http://oykosmiguel.blogspot.com/2007/09/qualidade-de-vida-exclusivo.html e http://www.slowfood brasilia.org/index.php?option=com-content&task=view&id=21. Acesso em 16/12/2007. 19 Utiliza-se, aqui, o conceito de mídia de Gieoux (2003) e Canclini (1998) relacionado à pedagogia cultural das grandes corporações no controle de lucros potenciais.

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O aspecto da pressa, da falta de tempo, entre outros, contribui para e reforça

a cultura da comida industrializada. E, mesmo o incentivo governamental mostra-se

mais atuante à monocultura acompanhada dos insumos para a agricultura (adubos

químicos e venenos para o controle de pragas, tratores e outros) e a valorização dos

alimentos manufaturados, produção agroindustrial; em contrapartida, o incentivo

mostra-se pouco visível no ato de valorizar os produtos in natura sustentáveis, da

pequena agricultura. Ainda, fruto da proposta de “revolução verde”20, da década de

1960, surge o mito de que para solucionar a fome e a nutrição adequada seria

necessário usar tecnologias para aumentar a produção de alimentos e incentivar a

importação de outros, considerados necessários à alimentação regional de

qualidade. Quando, no Brasil, concretiza-se a exportação de grãos e a importação

de produtos manufaturados, rompendo com o delicado equilíbrio da autossuficiência

interna, instaura-se a cultura do mercado externo (MIRANDA NETO, 1982).

Assim, certos alimentos do tipo fast food absorvem espaço e padronizam-se

nos países cujo discurso é aquele que combina qualidade, nutrientes e rapidez, por

exemplo, o consumo de determinada marca de queijo importado, muitas vezes em

detrimento do queijo regional. Esse é o discurso que “invade” e se instala em

determinados lugares, geralmente com o objetivo de lucro, o qual muda as relações

econômicas, culturais, educacionais e sociais, criando novas identidades

alimentares locais e regionais. Em contrapartida, a riqueza da biodiversidade de

alimentos, sejam eles selvagens ou cultivados, isto é, a herança cultural e alimentar

da comunidade regional tende a se enfraquecer e descaracteriza identidades

regionais e locais, mais precisamente quando os movimentos culturais locais são

insipientes e tímidos na defesa dos alimentos e da alimentação regional ecológica e

in natura (ADAS, 2004).

Mas, a exemplo do movimento slow food, percebe-se que a defesa da

biodiversidade regional, mediante valorização dos produtos locais e a educação do

gosto, vem encontrando formas de opor-se à invasão alimentar e sua padronização.

Esse movimento defende um modelo de agricultura com base no conhecimento

gastronômico das comunidades locais, relacionado à política, à agricultura, ao

ambiente, e articula produtores, campanhas para proteger alimentos tradicionais,

organiza degustações, palestras, encoraja chefs a usarem alimentos regionais,

20 Aborda-se a “revolução verde” no terceiro capítulo desta dissertação.

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indica produtores para participarem de eventos internacionais e leva a “educação do

gosto” às escolas e à população mediante oficinas e eventos. O movimento, ao agir

desse modo, procura manter estreita relação entre comida e cultura, sendo um dos

seus objetivos principais o de produzir, nos mais diferentes cantos do mundo,

comunidades denominadas convivium21, que se ocupam em transmitir e preservar

as tradições culturais de suas regiões.

O slow food conta, atualmente, com mais de 80 mil associados, mais de 850

convivas e escritórios na Itália, Alemanha, Suíça, Estados Unidos, França, Japão e

Reino Unido, além dos 122 países que apoiam o referido movimento. Mantém

projetos, por exemplo, a Arca do Sabor que, desde 1999, identifica e cataloga

produtos, pratos, animais, frutas, legumes e verduras em risco de desaparecerem e

serem esquecidos. Catalogados os produtos, criam-se as Fortalezas que mobilizam

técnicos e entidades visando à divulgação, preservação e qualificação dos produtos,

a fim de reavivar e aumentar o consumo, e, em situações críticas, auxiliar, com

recursos econômicos próprios, públicos e privados. Atualmente, no Brasil, a Arca do

Gosto contém mais de 750 produtos/espécies ameaçadas e protegidas pelas

fortalezas de dezenas de países.

No Brasil, os convivas se encontram nas cidades de Brasília (DF), Rio de

Janeiro (RJ), São Paulo e Piracicaba (SP), Belém (PA), Fortaleza (CE), Florianópolis

(SC), Pirenópolis (GO), Montes Claros e Tiradentes (MG). Reúnem as 55

comunidades do alimento distribuídas nas cinco regiões do país, em torno de

alimentos, alimentação e ações concretas de cunho ecológico e sustentável. Na lista

de “alimentos protegidos” pelas Fortalezas estão as espécies em risco de

desaparecimento: Arroz Vermelho, Babaçu, Bergamota Montenegrina, Castanha de

Baru, Canapú, Farinha de Batata Doce Krohô, Pirarucu, Marmelada de Santa Luzia,

Palmito Juçara e Umbu. Outra iniciativa “social” do slow food é a Mesa da Fraternidade, responsável

pela alimentação de comunidades carentes em países pobres ou em guerra. No

Brasil, por exemplo, o slow food atua na cozinha de um hospital em Rondônia que

21 Grupos vinculados ao movimento Slow Food, com a proposta de agrupar pessoas, saberes e fazeres em torno de alimentos e alimentação ecológica e sustentável, que se reúnem periodicamente para degustação de pratos típicos da região. http://oykosmiguel.blogspot.com/2007/09/qualidade-de-vida-exclusivo.html. Acesso em 16/12/2007.

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atende a população indígena, pois, segundo Margarida Nogueira22, muitos índios

adoeciam de subnutrição por não se adaptarem aos hábitos alimentares da cidade.

Em 2003, com apoio das autoridades da região de Toscana, foi fundada, em

Florença, a Fundação Slow Food para a Biodiversidade, cuja missão é a promoção

de um modelo sustentável de agricultura que respeite o meio ambiente, a identidade

cultural e o bem-estar animal, com o objetivo de apoiar as demandas ou os direitos

da soberania alimentar das comunidades de decidirem o que cultivar, produzir e

comer. A Fundação também assume o suporte e o financiamento de projetos

relacionados à biodiversidade e instituiu, em 2006, o Prêmio Slow Food aos

melhores exemplos de preservação da herança gastronômica e de defesa da

biodiversidade, com total autonomia na captação de recursos. Essa Fundação fez a

interface com o campo das políticas de promoção do desenvolvimento e da

cooperação internacional, caracterizada como uma ONG de apoio a projetos sociais

em países “menos desenvolvidos”. Evidencia-se, em seus projetos sociais, a

dimensão da luta contra a pobreza, com métodos de produção sustentável.

No Brasil, desde agosto de 2004, a Fundação Slow Food para a

Biodidersidade tem um acordo de cooperação internacional com o Ministério do

Desenvolvimento Agrário (MDA). Os projetos se desenvolvem com o apoio da

Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT) do MDA. Sob a ótica de Carvalho

(2007), “a entrada do Slow no Brasil encontrou um apoio importante do governo,

notadamente no Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), onde estão sendo

implantadas políticas orientadas para a agricultura familiar e segurança alimentar”.

E, conforme Petrini23, o slow food no Brasil tem muito a crescer, pois é um país rico

em recursos naturais, embora ameaçado de virar terra de experimentações

transgênicas, comprometendo a imensa biodiversidade vegetal e animal.

A parceria entre o Slow e o governo brasileiro é marcada pelo encontro do III

Terra Madre, no I Terra Madre Brasil, que aconteceu durante a IV Feira Nacional de

Agricultura Familiar e Reforma Agrária, em outubro de 2007, promovida pelo MDA.

A campanha Terra Madre visa ao encontro mundial das comunidades do

alimento realizado a cada dois anos, como mais um dos desdobramentos recentes

das ações do Slow. Essa campanha propõe juntar representantes que trabalham

22 Uma das fundadoras do convívio do Rio de Janeiro http://www1.folha.uol. com.br/folha/equilibrio/noticias/ult263u94.shml. Acesso em 16/12/2007. 23 http://www1.folha.uol.com.br/folha/equilibrio/notícias/ult263u94.shtml. Acesso em 23/06/2008.

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para a sustentabilidade e a qualidade de seus produtos alimentares, respeitando o

alimento e a produção, com o objetivo de favorecer o intercâmbio de experiências

entre pequenos agricultores, os quais costumam viver em áreas isoladas e são

pouco conhecidos no mundo24. O primeiro e o segundo encontros ocorreram em

Turim, em outubro de 2004 e 2006. A terceira edição do evento ocorreu em outubro

de 2007, no Brasil, durante a IV Feira Nacional de Agricultura no Pavilhão de

Exposições de Brasília, organizada pelo Ministério de Desenvolvimento da Reforma

Agrária (MDA). Nesse evento, houve exposição dos alimentos produzidos, mesas

redondas com debates, palestras, entre outras atividades. A meta do evento é unir

conhecimentos do mundo acadêmico, tecnológico, chefs e pequenos produtores

visando ao “prazer de comer bem”, fortalecer e impulsionar as iniciativas locais e as

políticas públicas.

A dimensão educativa do movimento ocorre através do projeto Educação do

Gosto que transcende a informação das qualidades nutricionais dos alimentos,

enfatizando que a refeição também significa prazer, cultura e convívio25. O

movimento atua nas escolas e em oficinas, durante os eventos que promove, e nas

campanhas do Terra Madre com a proposta de cultivar as tradições.

Se, na Europa e nos Estados Unidos, o foco da comida lenta é oferecer uma

opção mais saudável e coerente com as necessidades humanas, no Brasil ela

emana propostas não apenas para qualificar o alimento e sua cadeia produtiva, mas

soma-se às políticas públicas por uma distribuição mais justa dos alimentos.

24 http:www.mda.gov.br/portal/index/print/index/cód/14350/?TB_iframe=true&height... Acesso em 16/12/2007. 25 http://diversão. Uol.com.br/ultnot/afp/2006/10/25/ult32u15198.jhtn.

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2 OS ESTUDOS CULTURAIS ALIMENTANDO A QUESTÃO – REPRESENTAÇÃO

CULTURAL E PEDAGOGIA CULTURAL

O desafio desta pesquisa é, a partir da cartilha, pensar a SAN na área dos

Estudos Culturais. Para tanto, busca-se compreender o referencial teórico

proveniente desse campo de conhecimento e dos discursos postos em circulação

sobre o alimento e a alimentação, contidos na cartilha e nas observações de campo.

Insere-se, aqui, a centralidade da cultura, a pedagogia cultural e as representações

culturais categorias que possibilitam discutir a política de Segurança Alimentar e

Nutricional.

2.1 A CENTRALIDADE DA CULTURA E OS ESTUDOS CULTURAIS

Ao discorrer sobre Estudos Culturais (EC) não se tem a pretensão de uma

definição exaustiva do que sejam e nem seus diferentes enfoques, até porque tanto

os enfoques quanto as fronteiras que definiriam os estudos culturais se mostram, de

certa forma, ainda em aberto entre seus principais autores. Contudo, considera-se

suficiente tomar a definição de Costa (2005) que define Estudos Culturais aquela

área de estudo que emerge como uma atividade interdisciplinar no âmbito da cultura

popular na sociedade contemporânea ocidental, em meados do século XX, no

contexto do questionamento da objetividade do paradigma científico dominante.

Segundo a autora, os Estudos Culturais assumem diferentes ênfases: a) a vertente

britânica, mais engajada nas relações entre cultura e relações de poder; b) a

vertente norte-americana, mais eclética e menos explicitamente política volta-se

para a área da comunicação e mídia; c) a vertente latino-americana que, desde a

década de 1970, atua na resistência à hegemonia norte-americana e está

relacionada a uma visão crítica e à conquista de um campo de afirmação cultural

contra-hegemônico (COSTA, 2005).

Conforme destaca Silva (1998), o entendimento de cultura para os EC vai

além do conjunto de modos de vida e de pensar cultivados de geração em geração.

A cultura é mais que apenas a transmissão e a reprodução de tradições

compartilhadas (valores, crenças, comportamentos, hábitos) que grupos/indivíduos

buscam conservar e transmitir de modo linear e estático como se fossem “coisas”. A

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ideia simplificada de cultura é chamada de “legado cultural” (SILVA, 1998), um

conceito que remete à ideia de herança biológica e social e que tende a normalizar

as características culturais e, com isso, escamotear o diferente, o não-comum.

Diferente desse conceito normatizador, nos Estudos Culturais busca-se pensar a

cultura implicada nas experiências do modo com que são produzidas, nos sistemas

de significação, nos diferentes grupos e na sociedade. Não se acata a divisão entre

alta e baixa cultura, mas compreende-se a cultura em todas as suas formas, de

modo plural e não hierarquizada. Essa pluralidade vem acompanhada de diferentes

objetivações, entre as quais a cultura da moda, cultura juvenil, cultura surda, entre

outras, isto é, passou a ser definida como sistema de significação, colocada no

centro, como um campo de luta e não mais como estudo específico (HALL, 1997).

Com a pluralização e a centralidade da cultura, argumenta Hall (1997), vive-

se uma “virada cultural”. Nessa perspectiva, a cultura pode ser vista como existente

em qualquer recanto da vida social contemporânea, está no centro das discussões e

debates e permeia toda a ação social. Toda vida social é “cultural’’: as práticas

sociais sempre expressam ou comunicam um “significado”, e, nesse sentido, são

práticas de “significação” (HALL, 1997). Assim, supera-se a dicotomia da “alta/boa

cultura” contra a “baixa/má cultura” (HALL, 1997). Os Estudos Culturais

contemporâneos consideram que a cultura popular é por demais variada, produz

vários significados que a tornam legítima em si mesma sem enquadrá-la em uma

comparação classificatória com uma suposta alta cultura ou cultura erudita que

estaria acima dela. Então, a cultura passa a ser vista como forma de vida social

(linguagem, ideias, atitudes, práticas, relações de poder e instituições) e em toda

sua gama de artefatos, de produções culturais. Conforme Costa (2005, p. 109),

cultura é a “expressão das formas pelas quais as sociedades dão sentido e

organizam suas experiências comuns; cultura como o material de nossas vidas

cotidianas, como a base nas nossas compreensões mais corriqueiras”. Já, para Hall

apud Fischer (2001, p. 25), o termo cultura, de forma ampla, é “o conjunto complexo

e diferenciado de significações relativas aos vários setores da vida e dos grupos e

das sociedades e por eles historicamente produzidas”, considerando-se que se vive,

hoje, uma verdadeira “revolução cultural” que implicada relações de poder. A cultura,

então, tem assumido uma função importante na sociedade e na disposição de

recursos econômicos e materiais. Os frequentes deslocamentos do tempo e do

espaço na sociedade contemporânea global desconcertam e introduzem mundos

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múltiplos e, consequentemente, múltiplas representações culturais, pois, ao assumir

a centralidade e a pluralização da cultura, assume-se, também, diferentes formas de

vida e diferentes representações, dependendo dos lugares que as pessoas ocupam,

definindo o que as pessoas podem ou não fazer.

O consumo de bens e serviços torna-se um eixo importante na sociedade

contemporânea, uma sociedade de mercado em que as lutas pelo poder são,

também, discursivas e simbólicas. Nesse contexto, as lutas em torno da produção e

do consumo do alimento buscam ser representadas por imagens veiculadas no

espaço público e midiático que, no caso da alimentação, por exemplo, podem ser

observadas nas representações em prol do alimento rápido ou fast food (sinônimo

de economia de tempo) e, consequentemente, mais rentável, e as lutas em prol do

“alimento demorado” ou slow food (sinônimo de saboroso, politicamente correto,

etc.). No jogo de imagens, torna-se impossível definir atitudes universais diante do

alimento, pois os parâmetros que as constituem são históricos e culturais,

dependendo de como cada sociedade e cada grupo social constrói sua relação com

o alimento e a alimentação. Hoje, os alimentos também são portadores de discursos

que ora favorecem as grandes corporações, o agronegócio, e ora favorecem grupos

da agricultura familiar e empreendimentos alternativos de alimentos orgânicos,

ecológicos.

2.2 SOBRE REPRESENTAÇÃO CULTURAL E A PRODUÇÃO DE SIGNIFICADO

Representação cultural é um importante conceito dos Estudos Culturais, um

de seus pilares teóricos. Diferente da noção de representação social da teoria das

representações sociais (MOSCOVICI, 1978) que mantém em parte a ideia de

representação como uma imagem mental da realidade, a representação cultural é

proposta por Hall (1997) como a maneira de produzir a realidade, eliminando a

distância entre o ato de representar e a realidade que é representada. Conforme Hall

(1997), a “representação” é a produção de sentido através da “linguagem” que

determina a realidade. Realidade que, a partir das perspectivas pós-estruturalistas,

passou a ser vista como algo constituído pela linguagem, produto das

representações que cria, divergindo de algumas das epistemologias modernas que

tendem a tomar a realidade independente da consciência dos sujeitos, como algo

dado (COSTA, 2000).

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A palavra “representação” é entendida por Hall (1997) em seu atributo

expressivo, reflexivo. Assim como a linguagem que as constituem, as

representações são atravessadas por relações de poder em que lhes dão caráter de

verdade. Nessa concepção, “a representação, não é nunca uma representação

mental ou interior [...] é, aqui, sempre uma marca ou traço exterior” (SILVA, 2007, p.

90-91).

No âmbito das teorias construcionistas que pertencem à chamada virada

linguística, “a representação é, como qualquer sistema de significação, uma forma

de atribuição de sentido [...] um sistema linguístico e cultural arbitrário,

indeterminado e estreitamente ligado a relações de poder” (SILVA, 2007, p. 91).

Então, afirma Hall (1997) que a “linguagem” funciona como um sistema de

“representação” e, nesta condição, produz o real.

Os indivíduos, seres produtores de sentido, desenvolvem práticas sociais

significadas, representadas/produzidas através da linguagem. O conceito de

representação cultural, portanto, está ligado

à mudança/virada linguística e cultural, que trouxe para o cenário o caráter constitutivo da linguagem, e diz respeito à produção de significados sociais através da linguagem. [...] reconhece que as coisas não têm sentidos/significados inerentes, mas que nós os construímos utilizando sistemas de representação. (SANTOS, 1997, p. 91)

Assim, nas análises culturais, segundo Hall apud Wortmann (2002), a

representação de alguma coisa não se faz pela coincidência ou correspondência

com essa “coisa”, mas por representá-la diferente de outras coisas. Estabelece-se,

portanto, a ligação entre linguagem, realidade e representação na produção dos

significados, pois, tudo o que existe no mundo são construções de linguagem por

meio de sistemas de representação. O importante é entender como se constroem e

como se adquirem diferentes significados por meio dos sistemas de representação

em locais e períodos históricos diferentes e também coexistirem no mesmo lugar e

tempo. Transpondo essas questões para o campo da SAN, indaga-se: Como se

estruturam os sistemas de representações culturais em torno do tema do alimento e

da alimentação?

A questão se refere, especialmente, à discussão sobre os alimentos, a

alimentação e a forma com que as práticas alimentares são representadas pelas

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populações. Ao se adotar a abordagem construcionista, não se nega a existência do

mundo material e das relações de poder que geram a escassez de alimentos. Mas a

ênfase, aqui, está na compreensão dos sistemas de representação que se

constroem em torno dessas questões de modo a apresentá-las: a falta de alimentos

em quantidade e/ou qualidade, ora como uma questão de déficit produtivo, ora como

questão distributiva dos alimentos.

Entende-se que estão em jogo relações mais complexas que as que

normalmente buscam estabelecer vínculos simplistas de causa e efeito entre fome,

pobreza e tecnologias produtivas ou uma resposta divina para a fome e a pobreza.

No entanto, a pretensão, aqui, é interpretar os discursos sobre a SAN/PAA mediante

os processos pedagógicos enunciados na observação de campo e na cartilha do

PFZ (artefato cultural), analisando-se como se produz a representação do alimento e

da alimentação pelo Governo e pela população beneficiária desse Programa.

Considerando-se que, atualmente, a presença das transnacionais no setor de

alimentos é gigantesca26, na comercialização, industrialização, distribuição global e

na consequente alteração dos padrões culturais de alimentação, essas empresas

são importantes atores sociais e econômicos, disputando sentidos culturais no

campo da luta pelo valor dos alimentos. De modo geral, essas empresas investem

fortemente em publicidade, inserindo novos produtos e hábitos alimentares, às

vezes estranhos às comunidades e aos padrões locais de alimentação. Portanto,

credita-se importância ao presente estudo pelo fato de se identificar, aqui, essa luta

simbólica e cultural pelos alimentos, incluindo-se, ao menos, dois principais sistemas

de representação sobre alimento e alimentação: a matriz discursiva das

transnacionais dos alimentos que defende a monocultura, a necessidade de adubos

químicos para aumentar a produção e os pesticidas para defender as plantações

das pragas (lagartas,...); e a matriz discursiva, denominada neste estudo de

alternativa, que reúne os discursos que defendem a bio e a sociodiversidade, a

maneira sustentável de produzir ecologicamente, valorizando os modos locais de

produzir, processar e comercializar os alimentos, e que resume sua plataforma na

ideia do alimento bom, limpo e justo.

26 Seis conglomerados transnacionais dominam 85% do comércio mundial de grãos. Dez dominam a produção de sementes e do setor de agroquímicos em 85%, entre outras. Nos últimos anos, as empresas nacionais diminuíram o poder de competição e acabam fechando suas portas, ou são por elas adquiridas, havendo assim o aumento do grau de desnacionalização do setor alimentar humano (ADAS, 2004).

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Os que defendem a monocultura e os adubos químicos agregam em sua

defesa argumentos como: o importante é produzir com segurança a colheita; devem-

se garantir alimentos suficientes para o crescimento populacional; a produção em

grande escala barateia os alimentos. Para essas pessoas, os que pensam diferente

são retrógrados, presos ao passado, puxam o progresso para trás.

Já os discursos dos que defendem a vertente alternativa valorizam os adubos

ecológicos e a produção de alimentos naturais e saudáveis, técnicas de proteção ao

meio ambiente e a diversidade das culturas para manter o equilíbrio ambiental,

social e alimentar. Esses defensores da vertente alternativa condenam produtos

alimentares produzidos com agrotóxico, alimentos enlatados e com grande teor de

conservantes, o desperdício de grãos na produção de etanol e na engorda de

animais. Assim, há diferentes posições, gerando embates, um jogo de forças que

produz e reproduz certas reivindicações e diferentes estratégias na forma de agir

diante dos alimentos e de se mobilizar junto à sociedade civil e reivindicar em nível

governamental.

Atualmente, com a presença das transnacionais no setor de alimentos, o

discurso legitimado como verdadeiro por esse segmento é o da monocultura, da

produção com adubos químicos, estabelecendo-se o discurso hegemônico. Por sua

vez, o discurso contra-hegemônico, proveniente parte da cultura familiar e

mobilizado pelos movimentos sociais alternativos que permeiam a sociedade civil,

questiona essa verdade lançando outro olhar sobre a realidade alimentar.

Dessa forma a representação cultural produz identidades sociais, fabricadas

pelo consumo e vice-versa. A identidade é marcada por meio de símbolos, pelos

próprios alimentos que são consumidos em cada grupo, em diferentes posições.

Então, “existe uma associação entre a identidade da pessoa e as coisas que a

pessoa usa” (WOODWARD, 2007, p. 10). Na realidade da SAN, o alimento funciona

como um significante da diferença e da identidade, associado às atitudes de cada

grupo, de cada cultura – a do alimento processado e com conservantes químicos, e

o natural. Existe uma luta de poder que afirma as diferentes identidades em relação

à desigualdade social, à fome, à pobreza, à superalimentação.

Então, quando se deixa de ver a identidade fixa (natural) para vê-la como

produção dinâmica (cultural), passa-se a vê-la, também, como produto da linguagem

e resultado de uma posição ocupada pelo sujeito no discurso. Conforme Silva, “a

identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que sua

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definição – discursiva e linguística – está sujeita a vetores de força, a relação de

poder” (2007, p. 81). A identidade é, pois, “um produto social” (CANCLINI, 2005, p.

189-190) e neste sentido, pode-se acrescentar que o alimento, enquanto

representação cultural também produz identidades.

2.3 A PEDAGOGIA CULTURAL E A EDUCAÇÃO

A educação inspirada pelos Estudos Culturais é entendida como um processo

que acontece não apenas em situações formais de ensino, mas em “qualquer

instituição ou dispositivo cultural que, tal como a escola, esteja envolvido – em

conexão com relações de poder – no processo de transição de atitudes e valores,

tais como cinema, televisão, as revistas, os museus, etc.” (SILVA, 2000, p. 87).

A interpretação do processo educacional na condição de um acontecimento

cultural evidenciou-se principalmente a partir do final do século XX, com a “virada

cultural” e significa olhar a variedade de locais sociais em que a educação ocorre.

Locais considerados por Steinberg (1998) como “pedagógicos”, em que o “poder” se

organiza e se executa; em que o próprio sistema político-econômico lança o olhar

sobre os novos locais pedagógicos, e que, através do processo pedagógico, investe

no desejo e na imaginação das pessoas. Ainda, segundo Steinberg (1998), essas

são as “forças invisíveis” que “envolvem as vidas” dos indivíduos em relação aos

mais diversos segmentos societários.

Na questão dos alimentos e alimentação, por exemplo, está presente o

interesse empresarial nas escolas, com empreendimento lucrativo através da

propaganda de bens e serviços. A escola, ou mesmo a “inocência infantil”, é

utilizada pela publicidade para vender certa marca de bolacha recheada. Esse

exemplo mostra como a cultura, particularmente a cultura da mídia, se alastra entre

as pessoas (crianças, professores, pais, entre outros), buscando o controle do

significado de determinado produto industrializado e estabelece “verdades” sobre a

facilidade de acessá-lo, ou sobre seu teor nutritivo. As imagens de determinados

alimentos são massificadas, preenchem a vida cotidiana e, muitas vezes,

condicionam os desejos mais íntimos e a substituição de outros alimentos

anteriormente presentes na dieta alimentar da família de determinada região.

Esses produtos que, através de um movimento implícito, ou, nem tanto, se

tornam presentes no cotidiano, pactuam com “a organização e a regulação da

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cultura por grandes empresas da mídia, [...], que influenciam profundamente a

cultura [...] e dominam cada vez mais o discurso público” (GIROUX, 2003, p. 127).

Desta forma há interesse por esse tipo de estratégia no contexto contemporâneo e

nada parece estar isento da influência das megacorporações no que diz respeito a

transformar sonhos do consumidor em lucros potenciais. A indústria da propaganda

infiltra-se nos contextos e ocupa todos os espaços imaginados e imagináveis através

de notícias e informações que permeiam a vida cotidiana das pessoas e proliferam

através das redes para sua veiculação, que incluem canais de televisão e lojas

comerciais. Portanto, grande parte do que as pessoas aprendem, hoje, é

apresentada pelo mundo empresarial e, nesse processo, os maiores adeptos são os

jovens que se tornam consumidores fáceis, e o fácil acesso ao consumo se

confunde, como se fosse a única forma de cidadania.

Esse fato é explanado por Raymond Williams (GIROUX, 2003), quando fala

que a força educacional das instituições e os recursos que utilizam para ensinar se

limitam a noções privatizadas de cidadania – muitas vezes não propiciam a

participação democrática na vida política, que referencie as esferas não

mercantilizadas. Essas práticas discursivas são evidenciadas facilmente no cotidiano

do campo observado no momento em que a alternativa do alimento industrializado

se desenvolve na cidade e se defronta com a do produto in natura, comercializado e

desenvolvido na zona rural. O produto do pequeno agricultor repassado in natura

frequentemente causa estranheza às pessoas acostumadas com a alternativa do

alimento industrializado, como, por exemplo, o açúcar mascavo, em geral, visto por

pessoas da área urbana como sujo e sem sabor, não só pela cor marrom como

também por não ser tão dulcificado como o açúcar branco, ao qual estão

acostumadas. Esse e outros produtos, quando alcançados às famílias, exigem que o

feirante, ou os coordenadores de programas assistenciais, expliquem o valor

nutritivo e ensinem a prepará-los. Essas práticas têm possibilitado entender que “o

campo e a cidade são realidades históricas em transformação tanto em si próprias

quanto em sua inter-relação” (WILLIAMS, 1989, p. 387), forma esta de olhar a

realidade cultural e valorizar os diferentes significados relacionados, porém

específicos e culturais.

A afirmação de Williams (1989) conduz à história das práticas pedagógicas

em relação aos alimentos e à alimentação, as quais são fruto da Revolução

Industrial que transformou as práticas agrícolas e causou, na terra, efeitos tanto

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positivos quanto negativos. Em alguns casos, a terra tornou-se mais fértil e, em

outros, pela utilização excessiva de adubos químicos, pela erosão devido aos

desmatamentos irregulares e a utilização excessiva do prado como pasto, tornou-se

um deserto. Para esses problemas, algumas políticas públicas regionais buscam

soluções, as quais se desenham como tentativas de diminuir as desigualdades

sociais e redistribuir oportunidades na produção agrícola e sua comercialização.

Conforme afirma Williams,

o equilíbrio entre indústria e agricultura, sob todas as suas manifestações físicas nas relações entre cidade e campo, é o produto, ainda que mediado por outros fatores, de um conjunto de decisões sobre o investimento de capitais tomadas pela maioria que controla o capital e determina a sua utilização mediante cálculos de lucratividade. (1989, p. 394)

Essa forma de produzir e comercializar os alimentos e a alimentação faz parte

de uma instância cultural que produz espaços de consumo e estabelece relações de

poder entre quem produz e quem consome, entre quem vende e quem compra.

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3 ALIMENTAÇÃO, MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICA PÚBLICA NO BRASIL.

DA TRAJETÓRIA DA FOME À SEGURANÇA ALIMENTAR

Neste capítulo, discutem-se a questão dos alimentos, a alimentação, os

movimentos sociais e a política pública no combate a fome27. Mais especificamente,

aborda-se o processo de deslocamento do pensamento biológico sobre a fome para

a compreensão da alimentação como um direito.

Hoje, cada vez mais, há certo consenso de que a saúde e a qualidade de vida

decorrem também da alimentação adequada e equilibrada. Contudo,

cotidianamente, há muitas contradições e injustiças na forma com que as pessoas

acessam os alimentos e a alimentação. Há os que sofrem com a ausência de

alimento em qualidade e quantidade suficiente – com a dificuldade de aquisição dos

alimentos, ingerindo quantidade inferior às necessidades fisiológicas do organismo,

resultando em pessoas desnutridas. Por outro lado, há os que têm facilidade na

aquisição dos alimentos e ingerem excesso de proteínas e sofrem da doença da

obesidade e/ou morrem por problemas cardíacos. A dificuldade ou a facilidade de

acesso aos alimentos configura-se na sociedade globalizada como uma das

manifestações de desigualdade social, provocada pelo domínio de uma pequena

parcela da humanidade sobre os alimentos, numa cultura orientada para o consumo,

em que comprar e vender faz parte do cotidiano e toma grande parte de energia,

tempo e recursos das pessoas.

Essa realidade depende das relações econômicas, ambientais, culturais e

sociais entre a humanidade e a natureza, e entre os homens, antes com certo

controle pelo poder político do Estado. Hoje, pelo avanço da globalização, vive-se a

sua desregulamentação, o que exige da sociedade civil uma nova postura no

encaminhamento da questão alimentar que se apresenta como demandas. Essas

demandas são vivenciadas e sistematizadas nas relações de diferentes sujeitos

27 A fome aqui estudada é aquela proveniente da insegurança alimentar, produzida pela escassez de alimento, dificuldade de aquisição e acesso aos bens alimentares, e a relacionada às formas como o alimento é apropriado pelas famílias, grupos sociais (ABROMOVAY, 1986; ADAS, 2004).

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coletivos que protagonizam as ações da Sociedade Civil28 (movimentos sociais,

entidades não governamentais/ONGs e terceiro setor), que se articulam com o poder

político em busca de soluções (GOHN, 2002). O alimento considerado é produzido e

controlado pelas transnacionais com base no processo de oferta e procura do

alimento, exigem políticas para proteger os consumidores, em especial os

segmentos excluídos, para lhes garantir a quantidade e qualidade do alimento

necessária para a manutenção da vida.

Um dos marcos da preocupação pública com a fome foi a teoria

malthusiana29, no século XVIII. No século XX, mais especificamente no pós-

Segunda Guerra Mundial, devido ao super crescimento populacional mundial, essa

teoria foi “utilizada para alertar a humanidade quanto aos perigos do grande

crescimento demográfico e para justificar a necessidade de se estabelecer o

controle da natalidade, principalmente nos países subdesenvolvidos” (ADAS, 2004,

p. 47). No período a fome foi explicada como decorrente do aumento populacional e

justificava a miséria, a pobreza e a fome de milhões de seres humanos. Esse

modelo preconiza o aumento da produção de alimentos, seja mediante agrotóxicos

ou não e a diminuição da população através do controle de natalidade, considerando

não haver previsão de guerras ou outro fenômeno que levasse a diminuir a

população de determinada região ou do planeta.

As tentativas de aumentar a produção de alimentos e controlar a natalidade

não erradicaram a fome e este argumento acabou por fortalecer o desenvolvimento

de corporações agroindustriais nas mãos de grandes produtores, e o consequente

28 Espaços, estes, oficializados com a Constituição de 1988, nos Conselhos gestores das políticas públicas nas áreas sociais (ECA, LOAS, Conselhos nas áreas da saúde, segurança alimentar, educação, etc.). As estruturas institucionalizadas foram surgindo ao lado de estruturas participativas criadas pela sociedade civil, em redes, os diferentes Fóruns Sociais Temáticos, Comissões, Assembleias permanentes, etc. (GOHN, 2002). 29 Malthusiano é um qualificativo aplicado aos diagnósticos baseados na correlação entre o crescimento geométrico da população mundial e aritmética da produção de alimentos estabelecida pelo economista inglês de Cambridge Thomas Robert Malthus (1766-1834), que em 1797 publicou a obra “Ensaio sobre a população” que o tornou mundialmente conhecido. Além da tese acima, sustentou ainda que o problema da superpopulação não só se torna intolerável devido às guerras, às epidemias e à fome crônica, que dizimam periodicamente parte do excedente demográfico como também suscitaram controvérsias entre os pensadores da época. Na segunda edição do seu ensaio manteve o “princípio da população” como base de sua teoria e propôs uma fórmula de pôs freio ao crescimento populacional espontâneo com o retardamento da idade nupcial e rigorosa contingência sexual. Suas ideias tiveram o mérito de chamar atenção dos economistas sobre os problemas da demografia (Enciclopédia Barsa, v. 8, p. 452-53). Segundo Abramovay, “suas ideias exercem uma enorme influência sobre o pensamento econômico e demográfico contemporâneo [...]. São inúmeros os que pregam o controle demográfico como uma das condições básicas para as soluções dos problemas sociais que enfrentamos” (1986, p. 48).

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êxodo rural de contingentes significativos da população para as grandes metrópoles,

aumentando consideravelmente o número de pessoas em situação de

vulnerabilidade socioeconômica tanto rural quanto urbana. Esse fato gerou o

aumento das desigualdades sociais, tornou a alimentação foco de atenção mundial e

promoveu a criação de um organismo ligado à Organização das Nações Unidas

(ONU) que é a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação

(FAO), em 1954, para mediar os conflitos entre a sociedade civil, Estado e as

corporações agroindustriais em busca da segurança alimentar.

No Brasil, o debate sobre Segurança Alimentar e Nutricional ganhou espaço

público na década de 1980, mais especificamente a partir de 1985, quando se

denunciava a insegurança alimentar das populações de baixa renda, cuja

preocupação maior era o alimento do dia ou do dia seguinte.

A luta pela segurança alimentar, como um direito de cidadania, foi

considerada questão brasileira, em sintonia com o debate mundial. A situação de

vulnerabilidade ou insegurança alimentar foi identificada pelo estudo do Instituto de

Pesquisas Sociais Aplicadas (IPEA) (BARROS, HENRIQUES e MENDONÇA, 2001),

ao mostrar que em 1999 14,5% da população brasileira vivia em famílias “com renda

inferior à linha de indigência, e 34,1%, com renda inferior à linha da pobreza,

correspondendo a 22 e 53 milhões de pessoas respectivamente”30.

3.1 O SIGNIFICADO DA EXPRESSÃO FOME E O ALIMENTO: DIREITO OU

MERCADORIA

Com a globalização de mercado e a desregulamentação do Estado de Bem-

Estar Social, um grande contingente populacional foi excluído do mercado formal de

trabalho, tornando-se mais difícil para determinados grupos sociais acessarem

alimento suficiente em quantidade e qualidade, dificuldades “causadas por forças

identificáveis que se encontram na esfera do controle humano racional” (GEORGE,

1978, p. 15).

O alimento enquanto mercadoria está nas mãos de grandes negociantes que

o processam e o comerciam, derrubando barreiras comerciais nacionais, com o

objetivo de ampliar cada vez mais seus negócios em escala global. Esses agentes

30 http://integracao.fgvsp.br/BancoPesquisa /pesquisas_n5_2001.htm. Acesso em 10/5/2008.

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em posição de poder mantêm vínculos formais e informais com os governos e

estabelecem preços para as mercadorias através dos monopólios que definem a

força da oferta e da procura. O mercado, além de estabelecer os preços, controla os

períodos de escassez de alimentos, a quantidade de exportações que, de certa

forma, define quais serão e onde se situam as populações famintas e excluídas das

necessidades alimentares básicas. Assim, o alimento considerado pela Constituição

Federal um direito humano fundamental e universal, passou a ser uma mercadoria

de acesso difícil e limitado, reproduzindo e dificultando a sobrevivência dos já

excluídos do trabalho nas últimas décadas: no meio urbano, pelo desemprego; e no

rural, pelo pouco incentivo à agricultura familiar e ao alimento in natura, devido ao

incentivo à monocultura e ao apoio na aquisição dos agrotóxicos para os grandes

produtores. Esses fatos instauraram a I Conferência Mundial sobre Alimentação31,

em 1972.

A escassez de alimento induzida através do comércio não é um fenômeno

novo. Considerada por George (1978, p. 130) uma pseudo-escassez, obedece “a

mais simples regra da economia liberal: uma mercadoria vital em oferta reduzida

será cara e quem a tenha para vender ganhará dinheiro”. Está-se diante do fato de

que as corporações podem tanto produzir abundância de alimento quanto sua

escassez em países em que a política governamental constitui-se de caráter

mínimo. No Brasil, o modelo de industrialização implantado no pós-guerra com apoio

político-econômico internacional está relacionado ao “mito” de solucionar a fome ou

o “fantasma da fome”, através do incentivo governamental à monocultura e ao uso

de tecnologias importadas (MIRANDA NETO, 1982), que, nas décadas de 1950 e

1960, foi chamada de “revolução verde”32. Nesse modelo, ocorreu a capitalização da

31 A partir da década de 1970, torna-se foco Mundial em Conferências na busca de solução das crises alimentares, questionam as corporações agroindustriais transacionais e as instituições por elas controladas, que utilizam o alimento como fonte de lucros, como um instrumento de controle político e econômico, para assegurar a dominação efetiva sobre o mundo em geral (GEORGE, 1978, p. 16). 32 A “revolução verde” foi o período em que os países desenvolvidos intensificaram o processo de industrialização da agricultura e venderam um pacote tecnológico aos países subdesenvolvidos que estimulava o uso de máquinas e tratores, fertilizantes e outros, divulgados por instituições norte-americana (Fundação Rockfeller, Fundação Ford, Banco Mundial e outros), identificados com os interesses de empresas transnacionais, com medidas técnicas destinadas a aumentar a produção e produtividade dos países subdesenvolvidos, com intuito de resolver, em curto espaço de tempo, o problema da fome nos países pobres. Tecnologia introduzida no Brasil com “poder de persuasão” da publicidade com promessas de aumento “vultuosos de produção e produtividade”, levando ao aumento do endividamento e custo da produção e a exclusão dos agricultores pobres das inovações tecnológicas e de suas formas culturais de produzir, o que levou à concentração de renda e grande parte das pequenas propriedades foram absorvidas pelas maiores, seja na compra ou arrendamento (ADAS, 2004).

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economia rural e a consequente migração de grande contingente da população rural

para as cidades, com a venda da pequena propriedade e o arrendamento da terra

ao grande produtor. Muitos dos que permaneceram no campo tornaram-se

assalariados, sem terra suficiente para o plantio, ou prestadores de trabalhados

ocasionais e acabam comprando a sua própria alimentação. Enfrentam salários

baixos que atingem diretamente a questão alimentar. A realidade nas décadas

acima mencionadas é problematizada por Josué de Castro33. Seus estudos abordam

questões sociais, econômicas e políticas relacionadas à fome e sua existência em

escala mundial. O autor considera o paradigma dos estudos da desnutrição e

subnutrição um problema biológico individual e a cargo da área médica. Sua obra

busca compreender por que milhões de seres humanos padecem de fome no

planeta. O autor milita no seu combate e na busca de soluções, tendo como foco

central a questão da reforma agrária.

O autor utiliza a expressão fome para se referir à situação “vergonhosa e

escandalosa” que aflige grande parte da população em todo o mundo. Por esse

motivo, foi criticado e censurado por aqueles que julgavam a expressão fome “muito

forte”, “contundente” e “incômoda” por se sentirem pouco à vontade de tratá-la

33 A produção intelectual do médico, sociólogo e geógrafo sobre a fome nortearam as primeiras discussões sobre o tema no Brasil e no mundo, embora as últimas gerações de brasileiros não ouvissem falar do pernambucano, nascido em 1908, filho de migrantes do sertão nordestino. Teve seu primeiro contato com a fome na infância, através das populações que habitavam os mangues do Capibaribe próximos a sua casa, observando a fome dos caranguejos à beira da água esperando a correnteza lhe trazer um pouco de comida e os homens sentados na balaustrada do velho cais, ambos espumando de fome (baba da fome). Quando adolescente viveu a separação dos pais e passou a viver com a mãe professora e levavam uma vida extremamente modesta e sempre em contato com a contradição vivida pela população: de um lado os que possuíam a mesa farta e de outro, os que passavam fome. Como médico defrontou-se com a pobreza e a mortalidade decorrente da má alimentação, atuou ativamente na política alimentar, por considerar urgente “a organização de um plano de combate à má alimentação que pudesse minorar os seus malefícios, produto de nossa defeituosa organização econômico-social e de orientação unilateral que até hoje se tem dado, entre nós, aos objetivos da higiene pública” (CASTRO apud NUNES, 2003, p. 91). Sua produção divide-se em três períodos: o primeiro (1930 a 1946) relaciona-se com as políticas econômicas do Estado, pós-“Revolução de 1930”, quando estrutura estudos sobre a fome. Durante esse período, realizou estudos sobre a classe trabalhadora na cidade de Recife, sobre a quantidade calórica suficiente para a alimentação adequada num país tropical e sobre os tabus alimentares no Brasil, culminando com a publicação Geografia da Fome, em 1946, livro que foi um marco importante no desnudamento e enfrentamento da triste realidade da fome no Brasil e no mundo. No segundo (1946 a 1964), trata a fome no mundo, culminando com Geopolítica da Fome, em 1956 e O livro negro da fome, em 1957, período em que a modernização reformadora é implantada no Estado. Ocupou a presidência da FAO, de 1952 a 1956, sediada em Roma. O último período de sua vida (1964 a 1973) viveu no exílio. Em 1964, quando embaixador do Brasil nos Órgãos das Nações Unidas em Genebra, teve seus direitos caçados pelo regime militar instalado no Brasil, com o golpe de Estado desse ano. Foi fundador e membro de várias organizações nacionais e internacionais e seus livros foram traduzidos em mais de 25 idiomas e reconhecidos como contribuições importantes em relação às causas e implicações econômicas, políticas e sociais ligadas a questão da fome. Faleceu em 1973, na França, onde se encontrava exilado em plena atividade docente na Universidade de Paris (NUNES, 2003).

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publicamente e desejarem continuar falando em desnutrição e subalimentação.

Independente das críticas, os estudos de Josué de Castro são uma “firme denúncia”

às injustiças decorrentes do sistema moderno, desde sua existência (há cinco

séculos), e continuam a privar multidões em todo o mundo do direito mais

fundamental que é o de alimentar-se adequadamente (ADAS, 2004).

Josué de Castro, conforme relata Nunes (2003), à medida que aprofundava

suas pesquisas sobre a fome, além de romper com o modelo biologista, transpunha

a linha científica dominante do paradigma positivista de defesa da “neutralidade

política” e assumia posições políticas claras e consistentes quanto à necessidade de

rever a questão da fome no contexto brasileiro. Apontava para a necessidade de

uma política alimentar e nutricional estruturada, a qual foi atropelada pelos estudos

de especialistas34 em nutrição dos países desenvolvidos (norte-americanos e

europeus), cuja tese era a de que a fome, nos locais pobres do mundo, explicava-se

pelas deficiências das “dietas tropicais” em satisfazer às necessidades de proteínas

do corpo humano – não seria o fato de as pessoas comerem pouco, mas comerem

mal, ingerindo alimentos biologicamente pobres e de baixo teor proteico.

A teoria da miséria das “dietas tropicais” defendia a necessidade de os países

exportarem e importarem alimentos, considerando que os regionais não ofereciam

os nutrientes suficientes à população. Assim, instaurou-se a cultura do mercado

interno e externo, e os países do terceiro mundo passaram a explorar produtos de

interesse do mercado internacional em detrimento da produção interna, o que gerou,

de certa forma, o desequilíbrio alimentar interno e a autossuficiência alimentar

regional. Segundo Chonchol (1986) e Miranda Neto (1982), embora há

aproximadamente três décadas, ao ser criada a FAO, a fome tenha deixado de ser

explicada pela produção insuficiente, ainda é difícil de ser explicada pela má

distribuição de renda, sonegação e o desperdício de alimentos, sendo, na maioria

das vezes, explicada pela desunião dos pequenos produtores (estrutura de

comercialização).

34 Estudos que apontam a existência de dois tipos de alimentos básicos: as calorias e as proteínas, fora os elementos menores, vitaminas e minerais e classificam três grupos populacionais com necessidade de atenção alimentar; os pobres que consomem de forma insuficiente calorias e proteínas ao consumirem o mínimo indispensável; os mais pobres que possuem déficit tanto calórico quanto proteínas, e, ainda o grupo de rendas altas, no qual aparece a superalimentação, considerando a tendência social e cultural das pessoas comerem mais do que necessitam (ADAS, 2004).

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A agricultura brasileira, até então, exportava em pequena quantidade bens de

primeira necessidade (arroz, feijão, entre outros) e em grande quantidade café.

Embora o café não fosse de primeira necessidade, representava a economia do

país. Com a instabilidade política da década de 1960, relegou-se ao segundo plano

o cultivo de produtos primários, e, consequentemente, a agricultura familiar. Os

produtos manufaturados eram favorecidos pela política de exportação em detrimento

do consumo interno dos produtos in natura. Ainda, na década de 1970, com a crise

mundial do petróleo e do alimento, aumentou a exportação de grãos e cereais e a

importação de fertilizantes (produtos derivados do petróleo), tratores, caminhões e

outros insumos necessários à modernização, incentivados pelas políticas de

governo35.

A modernização da agricultura, mediante o avanço técnico-científico36,

denominada “revolução verde”, possibilitou recriar artificialmente as condições

naturais através da revitalização química dos diferentes tipos de solos, conforme

interesse da produção mercantil requerida pelo mercado em relação ao

desenvolvimento da genética de sementes mais produtivas, adubação química e a

mecanização. Em consequência, houve a ruptura do equilíbrio, do ponto de vista

ambiental, pois, a monocultura intensiva em grande escala, além de afetar o

ambiente, estreitou a relação entre agricultura e indústria, reforçando a “ideologia

modernizadora”.

E com o desequilíbrio da cultura alimentar regional, os pequenos agricultores

que permaneceram na terra, sem acesso aos insumos tecnológicos, continuaram

com a opção pelo adubo biológico, defendendo uma produção que não agredisse o

meio ambiente, utilizando, também, o acervo de conhecimento técnico-científico de

forma a garantir o teor alimentício e a ausência de resíduos químicos, embora

35 A política de governo beneficia os produtores de soja com crédito agrícola para a compra de insumos favorecendo o setor de exportação em detrimento dos produtos menores e tecnicamente menos avançados que produz a maior parte dos gêneros alimentícios e a consequente escassez e aumento de preços o que leva a importação para a formação de estoques internos e anular as vantagens com as exportações (MIRANDA NETO, 1982). 36 Os avanços técnico-científicos gestados pela Revolução Industrial no Brasil iniciaram em meados da década de 1960, mas de forma efetiva com a criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agrária (EMBRAPA) e da Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMBRATER), na década de 1970, mais precisamente em 1971/1972, quando surgiram as pesquisas no auge da tecnologia. A política de atrelamento da agricultura ao setor industrial, assim como a difusão da tecnologia nos grandes centros de ensino e pesquisa na área da agronomia encontra-se na verdade “antes de atender a reais interesses do agricultor, atende, em essência, aos interesses do ‘lobby’ da grande indústria e insumos agrícolas, boa parte dele dominado pelo capital internacional” (MIRANDA NETO, 1982, p. 94).

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estivessem à mercê das gigantescas agroindústrias. Outros, ao serem dispensados

do trabalho rural, passaram a ser parte do exército industrial de reserva, tornando a

agricultura apenas um setor, entre outros, passível de investimento de capital, o que

inibia a emergência de uma agricultura comercial fornecedora de alimentos para os

centros urbanos na região. Muitos proprietários rurais venderam ou arrendaram suas

pequenas propriedades e tornaram-se compradores dos alimentos, reforçando a

industrialização e a concentração da matéria-prima nas mãos dos grandes

produtores (MIRANDA NETO, 1982).

Com as mudanças promovidas pela “Revolução Verde” e pela teoria da

carência das “dietas tropicais”, os fornecedores de alimentos processados

encontraram um campo fértil e investiram maciçamente em propaganda, de forma a

induzir os consumidores a preferirem alimentos semielaborados aos naturais (in

natura). Por sua vez, os consumidores, “encharcados” pela propaganda, absorviam

mensagens publicitárias independente da classe social, através de aparelhos de

televisão, outdoors e outros que, hoje, entram praticamente em todos os lares,

havendo uma “alteração contínua nos padrões culturais de alimentação. De modo

geral, valores nacionais são substituídos, paulatinamente, por valores externos,

estranhos às comunidades e sociedades” (ADAS, 2004, p. 165).

Em pouco menos de uma década, os grandes produtores e corporações

atingiram a meta do aumento da renda e a produção agrícola, não abrindo espaço

para a reflexão quanto a alternativas possíveis. Consequentemente, o pequeno

produtor passou a ser visto como entrave ao desenvolvimento e a maioria deles

vendeu ou arrendou suas propriedades e tornou-se subordinado do capital urbano-

industrial.

A posição de submissão dos pequenos produtores aos grandes produtores e,

consequentemente, às corporações, já relatado anteriormente, era facilmente

explicada pela “desunião” dos pequenos na conquista de estrutura de

comercialização e financiamento – de barganha junto ao poder político. Esse fato

deixava os pequenos agricultores em uma posição de desvalorização da produção

ecológica e familiar, fazia crescer o número de pessoas famintas no mundo e

aumentava a produção industrializada dos alimentos com as novas tecnologias.

Embora o Brasil tenha como base de industrialização o setor agrícola,

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a coexistência entre fartura e escassez relativas apresenta grave contraste: o aumento desigual de renda forçou uma distribuição injusta de alimentos. Determinados grupos populacionais com nível de renda mais elevado pressionam os preços mundiais dos alimentos. Em contrapartida, os mais pobres de todas as partes do mundo terão maiores dificuldades em obter alimentos em quantidade suficiente. (CRITTENDEN, apud MIRANDA NETO, 1982, p.13)

Os prognósticos alarmistas em relação à fome e à pobreza mundial, na década

de 1970, fez com que uma das principais atribuições da FAO fosse a de atuar na

realidade de coexistência da fome em grandes proporções com a também

superprodução mundial de alimentos. Essa contradição está na origem da

expressão segurança alimentar, categoria nascida durante a Primeira Guerra

Mundial (1914-1918), esporadicamente utilizada nos anos de 1950, consolidando-se

nos anos de 1970, mediante os estudos de populações que sofriam de insuficiência

alimentar. Inicialmente, a noção de segurança alimentar esteve estreitamente

relacionada à pretensão de que os países seriam capazes de produzir e abastecer a

população com seus próprios alimentos em períodos críticos – boicotes de ordem

política, entre outros – não estando o conceito, então, relacionado à

desnutrição/fome de pessoas, famílias ou populações com carências alimentares ou

privações de ingestão de alimentos, fosse ela de ordem quantitativa e/ou qualitativa

existente em períodos normais (MALUF, 2007).

A expressão “segurança alimentar”, na década de 1970, levou à criação do

Comitê de Segurança Alimentar Mundial, em 1976, com o objetivo de “fazer crescer

a produção mundial de alimento para enfrentar a carestia e a fome acompanhadas

da montagem de um sistema internacional de ajuda alimentar e da coordenação das

reservas de grãos” (MALUF, 2007, p. 60). Surgiu, daí, a política com o objetivo de

reforçar a necessidade do crescimento da produção de alimentos, através da

“Revolução Verde” já em questionamento, e de ajuda dos países desenvolvidos aos

países pobres, nos quais os quadros de insegurança alimentar se faziam mais

presentes. No início da década de 1980, a FAO e outras organizações passaram a

se preocupar com as condições de acesso adequado da população aos alimentos

enquanto fator determinante da segurança alimentar, difundindo uma formulação

que implicava cinco atributos da produção alimentar: “estável”, no sentido de

compensar as oscilações da oferta de produtos; “suficiente” para atender às

necessidades da população; “autônoma”, em relação ao exterior ou aos países

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extrabloco; “equitativa”, por contemplar os diversos tipos de agricultores e setores

sociais, e “sustentável”, referente ao uso de recursos naturais. Dessa formulação

derivou um conjunto de orientações priorizando a pequena e média agricultura de

base familiar.

A noção de segurança alimentar, ao ser discutida e sistematizada no espaço

mundial como direito de todo o ser humano, é de responsabilidade do Estado,

cabendo-lhe programar políticas públicas e reformas estruturais (reforma agrária,

geração de emprego, distribuição de renda, incentivo à agricultura familiar, etc.) que

visem a assegurar o direito à alimentação adequada às pessoas sob sua jurisdição

(MALUF, 2007).

O marco da definição do objetivo da Segurança Alimentar ocorreu em 1982, na

8ª Sessão do Comitê de Segurança Alimentar Mundial, ao “assegurar que todas as

pessoas tenham, em todo o momento, acesso físico e econômico aos alimentos

básicos que necessitam” (MALUF, 2007, p. 61). No mesmo evento foram

construídas três propostas específicas de enfrentamento à problemática alimentar

mundial: a produção alimentar adequada; o máximo de fluxo de tais alimentos, e

alimentos disponíveis aos que deles necessitam. A definição de Segurança

Alimentar, gestada na 8ª sessão do Comitê, teve ampla repercussão, e, em 1986, o

Banco Mundial definiu segurança alimentar como o “acesso por todas as pessoas e

em todo o tempo a alimentação suficiente para uma vida ativa e saudável” (MALUF,

2007, p. 61). Ambas as definições consideram o tema segurança alimentar, o que

significa o direito elementar de todo o ser humano ser alimentado e protegido contra

a fome, e a adoção de políticas ativas nessa direção.

Essas definições surgiram no contexto da crise ambiental deflagrada na década

de 1980, resultante, de um lado, da crescente degradação do meio ambiente e, de

outro, da progressiva conscientização e mobilização da população na defesa de

causas ecológicas, entre elas a da alimentação.

Substituir fertilizantes químicos por fertilizantes orgânicos, venenos por controle biológico de pragas, contrariando os interesses imediatos do lobby produtor desses insumos, embora não seja impossível que estas estruturas sejam parcialmente reorientadas e venham dar suporte a uma agricultura orgânica. (MIRANDA NETO, 1982, p. 97)

Certamente, as mudanças propostas significam a desativação de frações do

capital industrial, embora, na década de 1980, entenda-se que somente a não

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aceitação da agricultura industrial possibilitaria avançar em direção a uma agricultura

equilibrada tanto em relação à organização econômica quanto ao respeito ao meio

ambiente. “As novas práticas agrícolas com as exigências técnicas que são

impostas pelo mercado, à medida que pressupõe uma produção não-homogênea e

diversificada [...] que atenda a critérios biológicos de conservação do solo, de

reprodução vegetal e animal” (MIRANDA NETO, 1982, p. 98), propõem políticas de

responsabilidade do Estado e enfrentam a resistência dos que sustentam a ideia do

mercado, entre os quais os próprios organismos internacionais.

Quanto à noção de segurança alimentar relacionada ao papel do Estado de

assegurar o direito à alimentação adequada a todas as pessoas sob sua jurisdição

levou muitos países a elaborarem planos de ação de combate à fome. O Brasil

estruturou, em 2001, o projeto: “Fome Zero – Uma proposta de segurança

alimentar”.

3.2 A POLÍTICA DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL NO BRASIL

O enfoque na Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), no Brasil, surgiu

como proposta de uma política contra a fome, em 1985, no início da Nova

República, decorrente de dois eventos: o primeiro, com a elaboração de um

documento37 intitulado “Segurança Alimentar – proposta de uma política contra a

fome” pelo Ministério da Agricultura; o segundo ocorreu em 1986, na I Conferência

Nacional de Segurança Alimentar, realizada durante a 8ª Conferência Nacional de

Saúde. A Conferência de Saúde lançou proposições que foram incorporadas pela

Segurança Alimentar, acrescentando-lhe o adjetivo nutricional, além de instituir o

Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA).

Embora o país estivesse em um momento de redemocratização, a temática

segurança alimentar não se mostrou prioritária na Constituição Federal de 1988,

quando da constituição do tripé da seguridade social: previdência, saúde e

assistência social. Veio, no entanto, a constituir-se, em 1991, em proposta de

37 O documento foi elaborado por uma equipe de técnico do Comitê da Superintendência de Planejamento do Ministério da Agricultura, embora com pouca consequência prática, constituiu um Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA), ligado a então Secretaria de Planejamento da Presidência da República, com composição interministerial que propôs dois objetivos: a)atender às necessidades alimentares da população; b) atingir a autossuficiência produtiva nacional na produção de alimentos (MALUF, 2007).

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Política Nacional de Segurança Alimentar, acrescida das contribuições da área da

saúde e nutrição. A divulgação e o impacto da proposta da SAN tornaram-se

conhecidas e mobilizaram a população a partir do Movimento pela Ética na Política

que levou ao impedimento o Presidente Fernando Collor. Também originou a Ação

da Cidadania Contra a Fome, a Miséria, e pela Vida, que tinha Herbert de Souza

(Betinho)38 entre seus líderes, e mobilizou milhares de pessoas sob o lema “A fome

não pode esperar”. Em abril de 1993 institui-se o primeiro Conselho Nacional de

Segurança Alimentar (CONSEA)39, criado com o propósito de buscar soluções para

o problema da fome e da miséria, órgão de consulta e assessoria do presidente da

República. A proposta introduziu a segurança alimentar na agenda nacional e deu

origem a programas de alimentação e nutrição (descentralização da alimentação

escolar, ampliação do programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) e distribuição

de estoques públicos de alimentos à população carente, entre outros), aos

assentamentos rurais, à geração de emprego e renda e às ações em prol da criança

e do adolescente. Entre as realizações do primeiro CONSEA, a mais significativa foi

a I Conferência Nacional de Segurança Alimentar (CNSA), em defesa de uma

38 Herbert de Souza, sociólogo, nascido em 1935, no município de Bocaiúva no interior de Minas Gerais, hemofílico por condição genética, ativista dos direitos humanos, símbolo da resistência política e um dos primeiros intelectuais a advogar em favor das organizações não governamentais. Completou, em 1962, os cursos de Sociologia e Política e Administração Pública na Universidade de MG. Nessa época, atuou como liderança dos grupos de juventude católica nas aspirações de transformação social, exerceu funções de coordenação e assessoria no Ministério de Educação e Cultura e na Superintendência de Reforma Agrária, elaborou estudos sobre a estrutura social brasileira para a ONU e foi presença nos movimentos operários brasileiros. Com o golpe de 1964, passou a atuar contra a ditadura militar, dirigindo organizações de cunho democrático no combate ao regime que se instaurava, exilando-se na década de 1970, viveu em diferentes países, onde exerceu da docência a consultor da FAO. Retornou do exílio em 1979, como símbolo da campanha da anistia, envolvendo-se nas lutas sociais e políticas, sempre se propondo a ampliar a democracia e a justiça social, cujo trabalho foi incansável pela cidadania, pela valorização da solidariedade e dos direitos humanos por uma sociedade justa. Ao longo de sua trajetória, publicou diversos livros, artigos e ensaios, sempre com a preocupação de criticar as estruturas que tornam a vida difícil e injusta para milhares de pessoas. Desempenhou papel importante em vários movimentos de mobilização social, entre eles: a Campanha Nacional da Reforma Agrária (1983); o movimento Terra e Democracia (1990); o movimento pela Ética na Política (1992), o qual serviu de alicerce para o movimento Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida; fundou Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas/IBASE (1994). A partir da participação de Betinho, nas diferentes ações, torna o problema da fome e da miséria concreto para todos os brasileiros. Faleceu em 1997, no Rio de Janeiro, em plena atividade social, vítima de hepatite C agravada por ser portador do vírus HIV/AIDS, adquirido por transfusão de sangue. http://www.netsaber.com.br/bibliografias/ver bibliografia c 1066.1066.html. Acesso em 23/1/2008. 39 O primeiro CONSEA era composto por 10 ministros de Estado e 21 representantes da sociedade civil designados por iniciativa do Presidente da República a partir de indicações do movimento pela Ética da Política. Para Maluf (2007), uma das novidades foi a condução compartilhada do conselho, presidido por um representante da sociedade civil (o bispo católico D. Mauro Morelli) e com uma Secretária Executiva das ações do governo localizada no Instituto de pesquisa Sociais Aplicadas (Ipea) (MALUF, 2007).

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política nacional de segurança, realizada de 27 a 30 de julho de 1994, em Brasília, e

resultou num documento programático40, consolidando as ementas e requisitos para

a referida política. O evento reuniu cerca de duas mil pessoas representantes dos

Estados, comitês de empresas públicas e universidades, e redefiniu o âmbito do

CONSEA com a criação de um Comitê Setorial de SAN.

Em 1996, uma comissão tripartite – composta de representantes do governo

federal, sociedade civil e iniciativa privada – elaborou o Relatório Nacional Brasileiro

para ser apresentado na reunião da cúpula mundial de alimentação. Naquele

momento, foi elaborado um diagnóstico abrangente, a partir das diferentes áreas

envolvidas na comissão, identificando-se os conflitos e divergências existentes no

interior da sociedade brasileira e no governo quanto às questões relacionadas à

SAN. Segurança Alimentar significa garantir, a todos, condições de acesso a alimentos básicos de qualidade, em quantidade suficiente, de modo, permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, com base em práticas alimentares saudáveis, contribuindo, assim, para uma existência digna, em um contexto de desenvolvimento integral da pessoa humana. (apud MALUF, 2007, p. 87)

Outro evento da sociedade civil que marcou o avanço das formulações sobre

a SAN ocorreu em 1998: o Fórum Brasileiro de SAN, que, ao congregar entidades

distribuídas por todas as regiões do país, provocou o desdobramento da mobilização

social em apoio aos eventos internacionais com repercussões no Estado e no

município. O FBSAN impulsionou, em 1999, a formulação da Política Nacional da

Alimentação e Nutrição e instituiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e

Nutricional integrado por conselhos e sistemas também nas esferas estadual e

municipal. Então, no contexto da década de 1990, “enquanto retrocedia a noção de

SAN no âmbito do Governo Federal, ampliava-se [...] sua adoção como referência

de políticas públicas na esfera estadual e, sobretudo, nas municipais da

administração pública no Brasil” (MALUF, 2007, p. 88). A noção de SAN, nessa

40 O documento foi resultado de dois momentos, o primeiro foi um amplo processo de discussão antecipado em âmbito nacional sobre a problemática alimentar e de conscientização e a dimensão da fome no Brasil, ocasião em que foram escolhidos os representantes de cada Estado que levarem suas contribuições. O segundo foi a conferência de onde foram retiradas as ementas e aprovada em plenária a política organizada em três eixos gerais: a) ampliar as condições de acesso à alimentação e reduzir seu peso no orçamento familiar; b) assegurar saúde, nutrição e alimentação a grupos populacionais determinados; c) assegurar a qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica dos alimentos e seu aproveitamento, estimulando práticas alimentares e estilos de vida saudáveis (MALUF, 2007, p. 84).

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década, relacionava-se ao abastecimento alimentar, através de programas

municipais e estaduais nas Secretarias e órgãos de abastecimento alimentar, cuja

perspectiva ainda era incipiente para a construção de espaços de abastecimento e

para as relações entre produtores e consumidores, em relação à intersetorialidade

das ações parceiras intra e extragoverno.

O enfoque de SAN mais recente, na administração pública, tem atuado na

área da assistência ou desenvolvimento social, reposicionando o problema da

pobreza, da desigualdade social, e as ações passaram a ser emanadas em nível

federal, mediante o Projeto Fome Zero. Esse projeto – uma política nacional de

segurança alimentar – foi lançado pelo Instituto Cidadania, em 2001, como base no

Programa Fome Zero (PFZ), instituído pelo primeiro governo Lula. Sua elaboração

partiu do contexto atual de pobreza e desigualdade social, e definia que as

dimensões do SAN mais necessárias seriam “a erradicação da fome e o

enfrentamento da desnutrição, tendo como carros-chefe programas de transferência

de renda e ações que promovam ou favoreçam o acesso aos alimentos pelos

segmentos mais pobres da população” (MALUF, 2007, p. 89).

Assim, com o conhecimento acumulado e a mobilização social em prol da

institucionalização da política de SAN, através do Programa Fome Zero41, para o

combate à fome e à desigualdade social, definiram-se três tipos de ação – estrutural,

específica e local. Para institucionalizar a política, foi criado o Ministério

Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (Mesa) – um gabinete

extraordinário com estatuto ministerial ligado à Presidência da República, cuja

atribuição principal foi a de coordenar a implantação de programas e ações de

segurança alimentar, articular instituições governamentais, gerir o Fundo

41 O Programa Fome Zero (PFZ) ocupa-se: “no combate à fome nos segmentos da população em condições de pobreza extrema com vistas a lhe assegurar acesso regular à alimentação, sintetizada na meta das ‘três refeições por dia’. A indiscutível premência do enfrentamento das situações de fome aguda tornou essas ações o eixo ordenador das políticas nesse campo, de modo que o PFZ se superpôs à definição de uma Política Nacional de SAN com um enfoque mais abrangente do que enfrentar a fome aguda ou o acesso insuficiente à alimentação pelos segmentos mais pobres da população” (MALUF, 2007, p. 90). A outra ocupação do programa é consequência da anterior e diz respeito à institucionalização do PFZ com a criação do Mesa responsável em gerir, diretamente, os programas e ações, para isso criou o Cartão Alimentação como principal instrumento inicial destinado a suplementar a renda das famílias pobres, garantindo o definido para o segmento populacional as “três refeições por dia” (MALUF, 2007, p. 90-91). Quanto aos três tipos de ações “o programa as classifica como: ações estruturais (voltadas para as causas mais profundas da fome e da pobreza), específicas (para atender diretamente as famílias que não se alimentam adequadamente), e locais (implementadas pelas prefeituras e pela sociedade civil)” (MALUF, 2007, p. 91).

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Constitucional de Combate à Pobreza e apoiar o funcionamento do recém-criado

CONSEA. Quanto ao Programa Fome Zero, inspirado no Food Stamp Program estadunidense, o programa foi lançado com a pretensão de cobrir, num horizonte de quatro anos, um universo estimado com 44 milhões de pessoas (27,8% da população total), pertencentes a 9,3 milhões de famílias (21,9% do total). Esse contingente correspondia a 19,1% da população das regiões metropolitanas, 25,2% das áreas urbanas não-metropolitanas e 46,1% da população rural. Prioridade inicial conferida aos pequenos e médios municípios da região do semi-árido, onde foram destinados R$ 50,00 mensais para famílias com renda per capita mensal inferior a meio salário mínimo. (MALUF, 2007, p. 91)

No lançamento oficial do Programa Fome Zero, em março de 2003, o governo

Lula deu posse aos membros do novo CONSEA42 e ao Mesa que atuou como

elemento-núcleo das ações até incorporar o programa Bolsa Família43, e

transformar-se na Secretaria Nacional do SAN do novo Ministério de

Desenvolvimento Social de Combate à Fome, instalado em 2004. Marcou-se, então,

a transição do Programa Cartão Alimentação para o programa Bolsa Família que

exigiu mudanças do instrumento de orientação de transferência de renda pelo

governo Federal. Segundo Maluf (2007), a referida mudança trouxe consigo

discussões sobre a inclusão de exigibilidades em programas sociais, isto é,

compromissos a serem assumidos pelos que recebem a transferência de renda e as

formas de controle social no âmbito municipal. Junto com a implantação do Fome

Zero incluiu-se um conjunto diversificado de ações relacionadas ao abastecimento

alimentar, agricultura urbana, e a gestão de equipamentos – restaurantes populares,

bancos de alimentos e cozinhas comunitárias, entre outras, com a perspectiva de

articulá-los em sistemas descentralizados de SAN.

Dessa forma, a priorização do enfoque de SAN nos Estados e municípios

42 A estrutura do novo CONSEA instituiu-se através de “um conselho supraministerial com caráter consultivo à Presidência da República, composto por 17 ministros de Estado, 42 representantes da sociedade civil e das entidades empresariais, mais uma dezena de observadores de outros conselhos, organismos nacionais e internacionais [...] com aqueles que lidam com vários componentes da SAN, e também a diversidade temática regional, de gênero, étnico-cultural e de atores sociais específicos” (MALUF, 2007, p. 94-95). 43 O Bolsa Família “unificou os vários programas que promoviam a transferência de renda para as famílias (como o Bolsa Alimentação, Bolsa Escola, Cartão Alimentação e Vale Gás), estabeleceu novos critérios de participação e buscou sua universalização de modo a atingir, em breve prazo, todos os municípios do país e chegar à marca de 11,1 milhões de famílias atendidas em 2006” (MALUF, 2007, p. 92-93).

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não reduz o significado político do lema ‘fome zero’, de fácil apreensão popular e ajustada à compreensão bastante difundida da SAN como erradicação da fome. Essas circunstâncias colocam o desafio de evitar obscurecer a pretensão maior de tornar a SAN um objetivo estratégico a ser perseguido por um conjunto diversificado e articulado de ações e políticas públicas, governamentais e não-governamentais, dirigidas ao conjunto da população (e não apenas aos pobres). (MALUF, 2007, p. 90)

A articulação e operacionalização da política de SAN nos municípios

encontram as mesmas dificuldades das políticas públicas em geral, como: influência

político-partidária, desconhecimento da origem e importância do direito ao alimento,

pouca participação dos usuários nos programas, entre outros.

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4 CAMINHO INVESTIGATIVO: SAN E ESTUDOS CULTURAIS, ARTICULAÇÕES

E SEUS DESDOBRAMENTOS

O interesse pelo tema alimento/alimentação, segurança/insegurança

alimentar surgiu durante a docência no curso de Serviço Social no projeto de

extensão universitária, tendo como objetivo analisar a cartilha Popular de

Mobilização Social, um artefato cultural que possibilitou pensá-la como um texto

pedagógico produzido pelo Programa Fome Zero (PFZ) e com o intuito de

implementar as ações. Na investigação teve-se como foco de observação o

Programa Aquisição de Alimentos (PAA).

O projeto, elaborado pelo curso de Serviço Social da Universidade Luterana

do Brasil/ULBRA, no qual atuou-se na qualidade de professora, integra o Programa

“Construindo a Cidadania” da pró-reitoria Comunitária, voltado à população do

município de Canoas/RS atendida pelo Programa de Aquisição de Alimentos/PAA do

PFZ do governo federal. Para executar o projeto foram acionados os alunos do

quinto semestre do curso de Serviço Social, da disciplina “Competência técnico-

operativa em Serviço Social”, a qual visa a conhecer determinada instituição da

comunidade, identificar sua questão social, planejar uma intervenção e executá-la.

Essa disciplina busca instituições diferentes da comunidade, portanto, no primeiro

semestre de 2007, orientou-se a prática da disciplina dos alunos junto ao Programa

“Construindo a Cidadania”.

Para capacitar os alunos, disponibilizou-se aos mesmos documentos

referentes ao tema existentes no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à

Fome/MDS e no Ministério de Desenvolvimento Agrário/MDA e seus

desdobramentos (CONAB, PFZ, PAA,...) que operacionalizam a política da SAN.

Também foi organizado um seminário com os gestores44 da universidade e do

44 O PAA, no município representado pela gestora da Pastoral da Criança da Igreja Católica Fátima, de Canoas, relata os fundamentos teóricos e a prática desenvolvida, e as expectativas dos gestores e dos usuários com a presença dos alunos universitários. O gestor do programa universitário “Construindo a Cidadania” fala sobre o papel da extensão universitária junto aos gestores do município e aos usuários nos núcleos, em que a base do trabalho universitário se relaciona à capacitação profissional. Também a gestora do projeto “Itinerantes da Cidadania”, a professora do curso de Serviço Social, doutora Sandra da Silva Silveira, propõe uma metodologia de trabalho junto aos usuários de um dos núcleos, que visa a um levantamento da problemática local e um planejamento de ações pontuais, visto que as ações de médio e no longo prazo são desenvolvidas pela equipe interdisciplinar da extensão universitária.

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programa no município, a fim de explicar-lhes a estrutura e o funcionamento dos

programas de transferência de renda, tendo como centro o PAA. Nesse encontro,

foram discutidos o perfil dos usuários e as necessidades e expectativas em relação

ao trabalho a ser desenvolvido pelos acadêmicos junto aos usuários do referido

programa. A partir do entendimento da política de SAN, do programa e realidade dos

usuários, constituiu-se um dos núcleos do programa de laboratório teórico-prático da

disciplina para se efetivar o processo de ensino-aprendizagem, e prestar um serviço

de extensão à comunidade do Programa.

A partir daí, além de tornar o PAA um laboratório de ensino-aprendizagem,

assumiu-se o desafio de, a partir do mesmo, analisar a cartilha que orienta o

programa como objeto de pesquisa, a partir das leituras no Pós-Graduação em

Educação da Universidade Luterana do Brasil, cuja área de concentração efetiva-se

no campo dos Estudos Culturais em Educação.

Ao adotar a cartilha do PFZ, que traduz a política de SAN como tema desta

dissertação de mestrado, torna-se imprescindível descrever o percurso da

investigação e dizer algo que possa, de algum modo, evidenciar a aproximação da

pesquisadora tanto com essa realidade empírica quanto com o campo dos Estudos

culturais, e mostrar que é possível redesenhar ideias e visualizar novas formas de

conhecer um tema para constituir um problema de pesquisa. Nessa perspectiva,

realizou-se a pesquisa sem ter de “aplicar”, “traduzir”, “interpretar” uma única grande

teoria, mas servir-se do conjunto de teorias e concepções dos Estudos Culturais

que, por sua vez, buscam escapar das amarras das grandes metanarrativas.

A partir da leitura dos documentos sobre MDS/MDA, dos pressupostos da

política de SAN, norteadora do PFZ e, consequentemente, do PAA, e ainda, das

discussões no seminário dos gestores com os alunos, selecionou-se a “Cartilha

popular de mobilização social” de Frei Betto, publicada em 2003, por considerá-la

um objeto bastante emblemático da linguagem do Programa, cujo objetivo é o de

apresentar, de forma acessível ao grande público potencial participante, os

pressupostos filosóficos, políticos, culturais e sociais do PFZ/SAN. Ela é

basicamente endereçada aos agentes do programa e divulga a sua proposta.

De posse da cartilha, compôs-se a agenda de investigação em busca do

entendimento da questão da “fome” denunciada desde Josué de Castro até as

discussões de Herbert de Souza e da constituição da política de SAN, norteadora do

proposto pelo PFZ e, consequentemente, pelo PAA. Deu-se início, então, à análise

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dos discursos em meio a um cenário permeado de interesses político-econômicos,

além das exigências acadêmicas, na qualidade de pesquisadora do tema, e das

emoções que emergem por ser um tema também relacionado à história de vida da

pesquisadora. Dessa forma, pouco a pouco, desenhou-se “uma investigação

interessada, uma vez que ela se desenvolve em torno de um questionamento feito

por alguém [...] que só começa e consegue formular determinadas perguntas a partir

de um lugar e em um tempo específicos” (MEYER e SOARES, 2005, p. 30). E

assim, no caminho onde se está ou para aonde se vai, é possível construir

determinados tipos de problema antes não percebidos ou não reconhecidos, por

exemplo, a possibilidade de a relação do discurso da cartilha estar em sintonia com

o discurso dos movimentos sociais contemporâneos. Assim, vai se materializando a

política da SAN, o lugar do PFZ, e observa-se certa consonância com os discursos

democráticos contemporâneos no país. Também se reconhece que esses dois

movimentos não ocorrem de modo isolado, pois, nesse contexto, a globalização de

mercado e a alternativa constituem o atual momento histórico e cultural no qual se

insere a política em questão.

Ainda, a partir desse lugar, veem-se determinadas alternativas em relação à

segurança alimentar e nutricional de populações em situação de vulnerabilidade

social. Para muitas pessoas da população assistida, a bolsa família do PFZ não é

suficiente para lhes garantir a alimentação diária. Desse modo, o PAA surge como

uma alternativa buscando agir tanto sobre a vulnerabilidade social e alimentar

urbana quanto sobre a do meio rural, no momento em que o programa articula as

famílias urbanas à agricultura familiar, em especial aos produtores oriundos da

reforma agrária, quilombolas e indígenas, entre outros, que estão à margem da

sociedade produtiva. Em relação às famílias urbanas em situação de insegurança

alimentar, o programa repassa alimentos que completam a dieta alimentar,

respeitando os hábitos alimentares da região, e contribui, mediante a mobilização e

a canalização dos alimentos, para que elas busquem a capacitação profissional. Isso

faz com que haja a possível ruptura da prática historicamente assistencialista de dar

alimentos e se gere um movimento para efetivar direitos através da participação da

sociedade civil nesse processo.

No cenário do PAA, as famílias são vistas não apenas como uma população

que busca alimento, mas sim que por meio do alimento passam a ter acesso ao

mesmo como direito. Essa concepção contribuiu com a curiosidade em pesquisar

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como a política proposta na cartilha aciona os segmentos da sociedade excluídos

tanto da vida urbana quanto da campesina, e propõe uma integração entre elas.

Busca-se, então, teorizar sobre fome e segurança alimentar, penetrando na rede

discursiva de significados45, e visualiza-se o objeto de pesquisa, que fez ruir, durante

sua construção, muitas certezas sobre esse universo. Nesse sentido, aprende-se

que tanto as certezas quanto as verdades precisam ser colocadas em suspenso,

especialmente na pesquisa. Dessa forma, questiona-se o modelo de racionalidade

que sustenta as explicações sobre a questão da fome, modelo construído com base

na teoria malthusiana do século XVIII, reativada no pós-guerra, o qual está em crise

no mundo atual.

4.1 A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA

A construção do objeto de pesquisa iniciou desde o primeiro contato com o

PAA, tendo sequência com o acesso a fontes teóricas, contatos com os gestores do

programa e com a população atendida, inicialmente da Contel II – Guajuviras,

visando à representação cultural do programa junto aos usuários. Era o momento da

definição da temática da dissertação do curso de mestrado e o programa em foco

apresentava múltiplas interpretações em relação à política, as quais produziam um

contexto polêmico de formação de agentes e da própria atuação. Mas, avançando

nas leituras sobre a temática da fome, da política da SAN, na observação da prática

do PAA no núcleo, na análise da cartilha e sua circulação nas ações do PFZ no

município de Canoas/RS. Ainda, a partir dos Estudos Culturais, conseguiu-se

modificar a maneira de ver a questão em estudo e, assim, o problema de pesquisa

foi reformulado.

Inicialmente, entendia-se existir um descompasso entre a proposta do PFZ

descrita na cartilha em relação às ações, tendo como foco o PAA: por um lado

observa-se a pouca atenção a proposta pelo governo municipal da época, por ser

45 Stuart Hall (1997) entende que a rede discursiva e também de significados compõe-se dos seres humanos que interpretam e instituem sentidos a determinada ação social, isto é, tanto para quem pratica quanto para os que observam em razão dos variados sistemas de significado. Esses sistemas ou códigos dão sentido às nossas ações e nos permitem interpretar significativamente as ações dos outros, e, visto em conjunto, constituem as políticas sociais e “culturais”. Assim, a cultura passa a ter uma importância e um peso explicativo maior, que anteriormente, para os fenômenos sociais e passando a ver a cultura como constitutiva da vida social. Essa concepção provocou, nos últimos anos, segundo o autor, uma mudança de paradigma nas ciências sociais e nas humanidades conhecida como a virada cultural.

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um governo de oposição ao Presidente da República, e, por outro lado, o PAA,

coordenado por entidades conveniadas com orientação ideológica do partido do

presidente (Partido dos Trabalhadores/PT). Considerando o descrito, em alguns

momentos, surgia a ideia de que o PAA atuava como estratégia do partido de

oposição do município, para se fortalecer e buscar espaço na prefeitura municipal. A

hipótese em relação ao PAA se fez presente ao se constatar que, às vezes, os

usuários mencionavam o nome de um vereador do PT, coordenador de uma das

entidades que operacionalizam o programa no município. Além disso, a

coordenadora da instituição conveniada da Pastoral Católica do Bairro Fátima

exercia o cargo de secretária desse vereador na Câmara Municipal e a gestão do

programa se desenvolvia, em grande parte, a partir da Câmara, local de

representação comunitária de determinado partido. A representação do Movimento

dos Trabalhadores Desempregados também circulava nesse local, e a maioria se

identificava com o referido partido. A gestão e a operacionalização do programa PAA

se efetivaram através de entidades que faziam, à época da presente pesquisa,

oposição ao governo municipal de Canoas e, ao mesmo tempo, muito próximas da

ideologia do partido do Presidente da República e de seus princípios – os

pressupostos e a filosofia da SAN/PFZ.

A política de SAN/PFZ, na administração municipal de Canoas configurava-

se, basicamente, no cadastro para Bolsa Família, e o PAA não conseguiu espaço,

encontrando guarida em entidades da sociedade civil em 2007. Ao se refletir

demoradamente sobre essas questões, surgiram as seguintes indagações: Como a

cartilha norteadora da política de SAN, através do PFZ/PAA, chega até as 500

famílias cadastradas, as quais recebem alimentos via CONAB através dos 29

núcleos instalados em entidades da comunidade? Seria este programa trabalhado

como um braço partidário para mudar o governo municipal atual?

As reflexões sobre as indagações foram importantes ao se acompanhar a

prática dos alunos universitários no PAA desenvolvida na comunidade Contel II, no

bairro Guajuviras, tornando-se um incentivo a mais para compreender a política de

SAN, como ela se desenvolve através do PFZ e como a cartilha auxilia neste

processo. Após terem absorvido o máximo de informação e orientação sobre o

Programa, os alunos, acompanhados das professoras, inicialmente realizaram uma

reunião de acolhimento às famílias usuárias daquele núcleo. Posteriormente,

realizaram entrevistas semiestruturadas para coletar dados junto aos usuários, com

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o fim de diagnóstico de problemática, e que também lhes permitisse eventuais

intervenções, mediante planejamento de atividades, as quais seriam executadas por

eles e pela própria equipe da extensão universitária.

Os dados obtidos nas entrevistas foram sistematizados e originaram três

projetos, executados em dois encontros de grupo com os usuários, dos quais

emergiram as problemáticas: dependência química, conflitos familiares, e acesso ao

direito a serviços e benefícios. Os dados obtidos e as intervenções desenvolvidas

pelos alunos (abordagem individual e grupal) foram apresentados à equipe

coordenadora da extensão universitária pela professora coordenadora do projeto

“Itinerantes da Cidadania”, que incluíram, além das temáticas citadas acima, outras

questões relacionadas à saúde física e mental, à falta de documentação, à formação

profissional através de cursos e formação continuada.

Essas demandas mostraram as diferentes carências dessa população,

acompanhadas da necessidade do reforço alimentar da cesta de alimentos na dieta

familiar. A fim de configurar o abjeto de pesquisa foi importante, também, entender a

função do Ministério de Desenvolvimento Social e de Combate a Fome (MDS) e o

redimensionamento do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) quanto à

política de SAN; conhecer como os gestores do PFZ/PAA se relacionam com a

cartilha e buscam resolver o problema da insegurança alimentar e articulam as

famílias em torno do objetivo que distribui cesta básica de alimentos regionais –

alimentos provenientes da zona rural, basicamente o que é produzido nas diferentes

estações do ano, os quais chegam às famílias, in natura (feijão, abóbora, carne,

entre outros).

A questão dos alimentos, muitos deles produzidos na zona rural por serem

desconhecidos pelas famílias da zona urbana, exige que se ensine a prepará-los, se

informe o valor nutritivo, incentivando-as a degustá-los, o que tem exigido dos

gestores uma ação pedagógica na promoção de encontros entre as famílias que

produzem o alimento e os que o consomem com o objetivo de valorizar os produtos

regionais, entender as formas de os beneficiados se pronunciarem e avançar no

processo de mobilização de recursos e serviços. A prática de encontros entre as

famílias produtoras e consumidoras tem se mostrado uma forma de educação

alimentar, uma pedagogia que visa à utilização e à preservação dos produtos

regionais como constitutivo da alimentação que vem se descaracterizando devido à

influência dos produtos manufaturados que, na maioria das vezes, torna-se cara

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para a população em foco. Essas são formas que o programa utiliza para trabalhar a

cidadania e o direito à alimentação em quantidade e qualidade junto às famílias

favorecidas e acompanhadas pelo programa, que pedagogicamente se utiliza da

cartilha de Frei Betto.

A cartilha, de autoria de Frei Betto, comunica-se através de textos e imagens

que, além de apresentar a estrutura e funcionamento do PFZ, conceitua fome,

pobreza e SAN; fala sobre a operacionalização dessa política emergencial e

estrutural, como organizar o “mutirão contra a fome”. Objetiva e direta, a cartilha

contêm três sessões específicas: 1 - “A palavra do presidente” que reforça os

princípios e pressupostos básicos do programa; 2 - A sessão informativa sobre o

programa denominado “Você sabia?”; 3 - A sessão que visa a lembrar ao leitor de

como agir para canalizar recursos e participar como integrante do programa “Tome

nota”.

Ao construir a metodologia, escolheu-se analisar a cartilha por ser um

elemento importante na construção do discurso do PFZ: a capa que retrata a Equipe

de Capacitação para a educação cidadã do programa (TALHERES), o conceito de

fome à política de direito à alimentação em quantidade e qualidade para toda a

população, a questão da sociodiversidade e da biodiversidade consideradas pela

proposta e as sessões especiais. Buscou-se entender os pontos em comum entre a

política de SAN/PFZ/PAA e os movimentos sociais contemporâneos, principalmente

um dos novos movimentos sociais globais, relacionado ao alimento e à alimentação

– o Slow Food. A decisão de analisar a cartilha como artefato cultural deveu-se ao

fato de que a mesma descreve a política de segurança alimentar e envolve a

questão da educação e da cidadania, configurando-a como uma pedagogia cultural.

Portanto, os arranjos discursivos que circulam na cartilha, os quais de certa forma

acionam outros discursos, como por exemplo os referentes aos movimentos sociais

e à ideia de uma globalização alternativa, vinha ao encontro dos objetivos da

pesquisa e de sua questão norteadora.

A base para o entendimento da linguagem da cartilha está associada a uma

análise discursiva que entende não existir uma essência a ser descrita e supõe uma

concepção de verdade que se situa no plano da contingência, do efêmero e do

histórico, ganhando, então, o discurso, uma nova dimensão:

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Os discursos estão inexoravelmente implicados naquilo que as coisas são. As sociedades e as culturas são dirigidas por poderes e ordens discursivas que regem o que deve ser dito e o que deve ser calado e os próprios sujeitos não estão isentos desses efeitos. As linguagens, as narrativas, os textos, os discursos não apenas descrevem ou falam sobre as coisas; ao fazer isso eles instituem as coisas, inventando sua identidade. (COSTA apud COSTA, 2005, p. 91)

Assim, entende-se que as representações culturais46 que atravessam a rede

discursiva não ocorrem por acaso, mas possuem uma intencionalidade, por

envolverem decisões que se processam na escolha da abordagem de alguns temas

e não de outros, na escolha de certos exemplos e não de outros, na realização de

determinadas atividades de grupo, etc. E, ao veicular determinadas representações

culturais (de alimento, de alimentação, de consumo e outras que acontecem), a

proposta da cartilha, quando posta em prática nos núcleos, atua no processo de

produção de identidades, principalmente pelos agentes (TALHERES) em

determinada direção, algumas das quais já mencionadas.

Escolher a cartilha como artefato de análise possibilitou entender o processo

de constituição das representações culturais não como algo estanque, mas que se

constrói a partir das narrativas e histórias contraditórias produtoras de identidades.

Ao analisar os textos e as imagens da cartilha observa-se que os próprios

personagens definem e redefinem a fome como insegurança alimentar e nutricional,

possibilitando a construção de um programa que respeite a biodiversidade, a

sociodiversidade regional e envolva o usuário nas ações propostas. Na proposta do

PAA, os beneficiados/usuários são constantemente convocados a participar de lutas

sociais, cursos de alfabetização, capacitação profissional que lhes possibilite a

geração de trabalho e renda. Também são convocados a auxiliar os gestores a

carregar e a descarregar os caminhões que buscam os alimentos junto à CONAB,

dividir e embalar as bolsas de alimento e ajudar a transportá-las até o núcleo para

distribuí-las às famílias. Para tanto, há combinações prévias e ajuda mútua para

entregarem a cesta às famílias em situação de vulnerabilidade extrema – por

doença, velhice, entre outros. Nessas ações construídas entre gestores, agentes e

usuários, possibilita-se um movimento solidário que se aproxima dos princípios

propostos na cartilha, dentro do possível, e objetivam posicionar os sujeitos nas

redes discursivas propostas no programa que se constituem de forma política e

46 Já definidas no segundo capítulo desta dissertação.

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cultural. Dessa forma, os/as gestores/as, os/as agentes do programa são

simultaneamente produzidos e produtores dessas redes, operando negociações e

representações culturais que constituem interna e externamente com suas

identidades e outras que venham a assumir. Conforme Hall (1997), as identidades

são constituídas pelo processo de sedimentação das diferentes identidades ou

posições adotadas pelos indivíduos como se brotassem do interior de cada

indivíduo, mas, na realidade, são o produto de um conjunto particular de

sentimentos, circunstâncias, histórias e experiências pessoais/únicas, embora

formadas culturalmente e sob influência de contextos sociais. O pedagógico das

ações ocorre a partir do contexto e vai além do que se aprende em sala de aula, no

sentido de acionar a rede para que o alimento chegue aos lares. Redes conhecidas

pelos beneficiados: quem produz o alimento (vive na zona rural) e os que precisam

dele (vivem na zona urbana), que as acionam para que o alimento chegue até eles.

Assim, após demarcar o objeto de estudo, o passo seguinte é a análise das

representações culturais da cartilha do PFZ e das observações da prática com

usuários de um núcleo do PAA e dos contatos formais e informais com os/as

gestores/as e agentes comunitários/as do programa e de membros do CONSEA.

Isso porque, além do entendimento de que os discursos da cartilha circulam

basicamente no núcleo observado, e os agentes e gestores se apresentam em rede

e buscam não apenas realizam o simples repasse de alimentos – há, também, uma

proposta de educação alimentar que produz uma política com certa identidade, por

se constituir de arranjos discursivos investidos e modos de subjetivação e de

relações de poder. Quanto ao CONSEA, esse órgão aparece como um conselho que

busca entender seu espaço de articulação da proposta no município ao buscar

atingir algumas metas. Aproximando-se desses conceitos, “abandona-se aquela

racionalidade que concebe os discursos como algo que representa a realidade e

assume-se um tipo de análise que percebe o discurso no contexto de relações de

poder historicamente constituídas, que invoca noções particulares de verdade e

principalmente, como algo que produz” (COSTA, 2005, p. 107). Por exemplo, os

discursos legais do PFZ/PAA produzem e definem aquilo sobre o que se fala.

Nesses contextos, as subjetividades, conforme Hall (1997), são parcialmente

produzidas de modo discursivo e dialógico, resultantes de um processo de

identificação que possibilita o posicionamento o sujeito no interior dos discursos

culturais (exteriores), tornando impraticável, para efeito de análise, a divisão entre

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interior e exterior, ou entre a dimensão social e a psicológica dos processos

culturais.

Conforme já mencionado, o redesenho da pesquisa ocorreu ao se decidir

limitá-la às considerações, às observações de campo e à análise da cartilha. Esse

dimensionamento do plano de pesquisa ocorreu, em especial, com o objetivo de

centralizar o estudo para melhor entender os pressupostos da política de SAN, o

PFZ e, consequentemente, o PAA. Esse dimensionamento permitiu que se

estudassem de forma mais direcionada os discursos contidos nos textos escritos e

dialogados, as sessões específicas e as ilustrações, a fim de entender de que modo

a proposta da cartilha envolve a sociedade civil no processo de combate à fome e

transforma o alimento em um direito.

Nessa busca, foram formuladas algumas questões norteadoras: De que forma

os discursos da cartilha, evidenciam a SAN? Quais as representações culturais que

acionam? Não se pretendeu, nas questões formuladas, obter respostas definitivas

ou esgotar todas as perguntas/respostas, mas elas foram o elemento norteador do

presente estudo, pois, certamente, dependendo do olhar de cada pesquisador,

surgirão, indefinidamente, mais questionamentos e mais respostas.

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5 A CARTILHA: ENSINANDO COMO ALIMENTAR A CIDADANIA

5.1 ANÁLISE GLOBAL DA CARTILHA

A “Cartilha Popular da Mobilização Social: vamos todos combater a fome:

mutirão contra a fome”, de autoria de Frei Betto47 e ilustração de Maurício de

Souza48, foi produzida com o apoio da editora Maurício de Souza, Editora Globo,

com impressão e acabamento pela Globo Cochrane Gráfica e Editora Ltda.

Publicada em 2003, é um instrumento de orientação das ações do PFZ.

Contendo 80 páginas, no tamanho de 20,6 cm largura por 26,5 cm de altura,

a cartilha segue o estilo dos documentos feitos para programas populares, com

textos escritos em linguagem direta, acessível, e com gravuras ilustrativas em todas

as páginas para facilitar o entendimento do texto pela população, coordenadores e

agentes que atuam no programa.

O texto ocupa cerca de 40% da cartilha, em fontes grandes e bem legíveis, na

cor preta. Os títulos se apresentam sobre um fundo verde, as letras na cor amarela;

os subtítulos, com fundo amarelo e as letras na cor verde, os quais lembram as

cores básicas da bandeira do Brasil. As ilustrações, que representam os outros 60%

da cartilha, mostram contextos urbanos e rurais, dando ênfase ao alimento e à forma

de cultivá-lo, transportá-lo e sinalizam maneiras de atuar que avancem ao simples

doar alimentos. Apresenta propostas de superar a fome através da participação da

população em reuniões do sindicato, na discussão em torno de diferentes formas de

assistir os mendigos que buscam o sopão na igreja, a sala de aula preocupada com

a educação alimentar, entre outras práticas em diferentes ambientes. Quanto aos

personagens, todos têm rosto redondo que lembram os desenhos em quadrinho da

revista infantil da “Mônica”, com diferentes idades e etnias, vestidos com roupas do

dia a dia e alguns com indumentárias que lembram as diferentes regiões do país ou

47 Carlos Alberto Libânio Christo, conhecido como Frei Betto, nasceu em Belo Horizonte em 25 de agosto de 1944, escritor e religioso dominicano brasileiro, adepto da Teologia da Libertação e militante de movimentos pastorais e sociais, tendo ocupado a função de assessor especial do Presidente da República, em 2003 e 2004, quando coordenou com Oded Grajew, a Mobilização Social do programa Fome Zero. 48 Desenhista e cartunista brasileiro nascido em São Paulo em 27 de novembro de 1935, cria histórias infantis em quadrinho dirigidas às crianças e adultos, cujos personagens são baseados em seus 10 filhos e em seus amigos de infância: Mônica, Magali. Seus trabalhos são conhecidos no exterior e têm sido adaptados para o cinema, televisão e para videogames.

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sua etnia. Alguns personagens representam figuras importantes na questão da fome

e da cidadania: Herbert de Souza e o Presidente da República, Lula.

O texto escrito da cartilha é uma narrativa direta e simples, sem devaneios,

“enxuta”, com o mínimo de adjetivos. Essa linguagem contempla os princípios

básicos da construção gramatical: sujeito, predicado e complementos (objeto direto

e indireto) na composição das orações do parágrafo, em que o personagem é

chamado a expressar suas próprias palavras através de personagens reais ou

fictícios, cujo narrador assume o discurso direto – construído através de perguntas e

respostas para facilitar a compreensão através da comunicação – e narra o que vê.

A cartilha compõe-se de sumário, seis capítulos, informações gerais e as

referências consultadas. O primeiro capítulo, intitulado “Fome e pobreza”, introduz o

tema da segurança alimentar em oito páginas. O segundo capítulo, “O que é o

Programa Fome Zero”, tem 14 páginas e esclarece sobre os pressupostos filosóficos

norteadores do programa. O terceiro, intitulado “Como o Programa fome Zero está

estruturado”, também com 14 páginas, versa sobre a estrutura, as ações propostas

conforme as características culturais e sociais de cada região. O quarto, “Mutirão

contra a fome”, com 24 páginas, mostra os diferentes canais em que o PFZ pode

atuar e de que modo as pessoas podem se envolver e se comprometer no combate

à fome. O penúltimo, intitulado “Inclusão social”, com quatro páginas, trata da rede

social e da solidariedade no combate à exclusão social e, por último, o capítulo

intitulado “Sede Zero”, com seis páginas, trata do Programa Um Milhão de Cisternas

Rurais. Na penúltima página apresenta os telefones, sites e endereços que podem

ser acionados para maiores esclarecimentos, e, na última página, constam as

referências sobre documentos (projetos, relatórios) e livros sobre a temática

apresentada.

A seguir, citam-se alguns pontos da cartilha considerados relevantes a serem

discutidos.

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5.2 CAPA DA CARTILHA

A ilustração da capa, que também aparece na página 39 da cartilha, faz

referência a um grupo de pessoas adultas, homens e mulheres, de diferentes idades

e etnias, caminhando e olhando na mesma direção, para a frente. Organizados(as)

em marcha cada uma carrega um talher: garfo, faca ou colher. O grupo representa a

equipe de capacitação para a educação cidadã do PFZ e porta um instrumento

comumente utilizado na alimentação e no PFZ, associado à ideia de gestão, no

sentido metafórico de estar associado a uma política tanto para superar o problema

da fome quanto para a capacitação em questões estruturais de combate à pobreza.

O texto da página 39 relata que a política de SAN não prevê somente a fome física

(a fome do pão), mas também a “mental” e a “espiritual”. Segundo o programa, o

espírito é promover a educação cidadã aos beneficiados de forma a suprir a fome

como um direito.

À equipe representada na

ilustração é atribuída a função de

capacitar os monitores. Os agentes

também se propõem a capacitar os

voluntários que participam do conselho

operativo/Centro de Recepção e

doação de Alimento (COPO/CRA); do

Programa de Ação Todos pela Fome

Zero (PRATO) e os Agentes de

Segurança Alimentar (SAL).

É interessante destacar que na

capa, elemento visual mais importante

da cartilha, a primeira imagem que o

leitor visualiza é a dos agentes do

programa. Isso mostra que a cartilha

propõe capacitar principalmente a

esses agentes, caracterizando-se

como um material destinado a

sensibilizá-los e capacitá-los para os

Figura 1: Agentes do FZ. Fonte: Betto, 2003, capa.

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objetivos do programa. Torna-se interessante destacar que, embora o discurso faça

o deslocamento da fome para o direito, a ilustração denota uma postura de ordem e

normatização.

5.3 ALIMENTO PARA MATAR A FOME OU ALIMENTO COMO DIREITO?

A abertura do

primeiro capítulo da

cartilha, intitulado

“Fome e pobreza”,

traz a epígrafe de

Queirós49, e o pano

de fundo ilustra a

realidade do solo

nordestino,

amarelado pelo sol

forte, em que

aparece uma família

carregando seus

pertences, indo

embora, uma alusão aos retirantes, representando o fenômeno do êxodo rural do

semiárido nordestino. Deixam para trás o cenário de terra seca, improdutiva, a morte

de animais e árvores, onde apenas os cactos florescem. Segundo Queirós (1998),

as pessoas vão embora

porque a fome é forte e mata. Todos, quando pressentem sua chegada, buscam uma maneira de alimentá-la, sem demora. Perseguem trabalho, procuram campos, abandonam famílias, ganham calúnias, merecem suspeitas, assaltam, violentam. Pelo pavor da fome devorar a vida, perde-se o limite dos muros. (QUEIRÓS, 1998 apud BETTO, 2003, p. 6-7)

Ao escolher esses elementos de imagem e de texto para abrir o primeiro

capítulo, a cartilha ressalta que, na ânsia de viver, as pessoas agem de diferentes 49 Bartolomeu Campos de Queirós, escritor e poeta mineiro, possui formação nas áreas de arte e educação, autor de mais de 40 livros infanto-juvenis publicados no Brasil e vários títulos editados e traduzidos em outros países. Ele já recebeu importantes homenagens e prêmios, entre eles o Prêmio Jabuti.

Figura 2: Fome e pobreza. Fonte: Betto, 2003, p. 6-7.

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formas, pois, para viver é imprescindível o alimento e quando este não está ao seu

alcance o sujeito é “desumanizado” – é como se fosse lançado para fora do pacto da

sociabilidade humana, o que caracteriza a condição de exclusão social.

O conceito de fome aparece na cartilha no decorrer desse capítulo, expresso

na fala dos personagens, entre eles Raimundo e João, dois agricultores nordestinos.

João, ao raiar o sol, está carpindo para preparar a terra para a plantação, quando

Raimundo chega com a enxada no ombro, e os dois iniciam uma conversa.

Os personagens Raimundo e João comentam a notícia de que o Presidente

pretende erradicar a fome, dentro de quatro anos e garantir três refeições por dia.

Durante a conversa, Raimundo pergunta a João se tem realmente muita gente que

passa fome e se é fome mesmo. Diante da dificuldade de Raimundo em definir o

que é a fome, João esclarece dizendo que o simples fato de ter “uns grãozinhos de

feijão, de fava, um pouco de macaxeira, não basta [...]. Os meninos crescem

raquíticos, magrinhos, ou incham por falta de vitaminas”. João esclarece que os

poucos grãos “enganam a barriga, mas não trazem saúde”, mostrando sua

indignação ao se sentir “dependendo da boa vontade dos outros, de favor dos

vizinhos”. Para o personagem João pedir ajuda aos outros, seja do governo ou do

vizinho, significa legitimar a dependência a um Estado paternalista que tutela o

sujeito e não lhe reconhece direitos.

João, em seu discurso, denuncia a fome tanto na quantidade de alimento

diário quanto na qualidade equilibrada em proteínas, vitaminas e minerais

necessários para uma alimentação nutritiva. Ainda, dramatiza o assistencialismo no

momento em que precisa pedir ajuda para se alimentar e alimentar sua família, uma

situação de indignação que o povo brasileiro quer superar. Esse discurso revela que

o dar alimentos, roupas, etc., é uma prática historicamente adotada pelo Estado e

pela sociedade brasileira para responder à questão das carências da população,

recorrendo à ajuda residual, através de ações fragmentadas, reproduzindo a

pobreza material e/ou política (SANTOS, 1995). Ao passo que o direito ao alimento e

à alimentação, no contexto de uma vida digna, tem o papel de emancipar os sujeitos

e lhes dar segurança.

A partir da perspectiva da cidadania, a fome já é, em si, a negação de um

direito, e na cartilha a fala dos personagens e do Presidente reitera inúmeras vezes

a ideia do direito à segurança alimentar e nutricional. Por exemplo, a fala do

personagem Raimundo, quando diz que o Presidente quer garantir a todos “comida

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da boa, saudável, nutritiva. Sem depender de ninguém, com o suor do próprio

trabalho”, e que o Presidente, na realidade, “quer é bulir com toda a sociedade para

dar um basta na fome”. Falar em mover, provocar toda sociedade para combater a

fome, significa convocá-la a participar do então criado Ministério Extraordinário de

Segurança Alimentar e Combate à Fome/MESA, através dos conselhos de SAN e

das ações que compõem o conjunto de políticas públicas (implementação da

agricultura familiar, microcrédito, cartão-alimentação) em nível nacional, estadual e

municipal, a propor mudanças estruturais e emergenciais para combater a fome.

Ao tratar a alimentação como direito, a cartilha não reduz seu discurso à

provisão imediata, mas propõe instâncias de mediação e apropriação dos alimentos

e alimentação na trama das relações de confronto e conquista da qualidade de vida,

por exemplo, a construção de cisternas para acondicionar água no nordeste.

O sonho de ter alimentos

suficientes e água boa e saudável é

demonstrado na cartilha através do

diálogo das personagens nordestinas

Maria e Conceição, quando se

encontram no poço, no qual

diariamente buscam água. Elas

denunciam o cansaço e o desânimo de

não terem alternativa a não ser usar a

água daquele poço, definida como

“danada de ruim”. Conceição diz: “Eu

ando cansada dessa cruz de, todo dia,

andar tanto pra buscar água no poço”,

e Maria completa afirmando ter sido

aquela água “que, no ano passado,

matou o meu bebê. O menino tinha

saúde até secar o meu leite”. Nessa

ilustração, vemos a tristeza de Maria

que lamenta a perda do seu bebê e, mesmo assim, sua única alternativa é continuar

usando a água daquele poço.

O abandono social está estampado no olhar de Maria, a qual sofre a perda do

filho ainda bebê, sabendo que este é um dos sofrimentos que, de certa forma, pode

Figura 3: Água como alimento. Fonte: Betto, 2003, p. 12.

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ser evitado se a água, considerada um alimento, pudesse ser um direito. Água

imprescindível para alimentar pessoas, plantas, plantações e animais, fonte de

sobrevivência para a população humana.

A fome como negação para o paradigma da efetivação da garantia do direito

através da SAN exige uma discussão e um caminho que vem sendo percorrido, e a

cartilha mostra os canais de mobilização, visando ações emergenciais em seu

quarto capítulo, intitulado “Mutirão contra a fome”: sindicatos, igrejas, escolas, entre

outras que, no contexto contemporâneo, atuam como parceiros do Estado, conforme

Gohn (2002) e outros. A proposta expressa na cartilha é a de erradicar a pobreza

através de políticas estruturais que visem a incentivar o pequeno agricultor, à

geração de trabalho e renda, à reforma agrária, entre outros. As estratégias

mencionadas são o eixo central da cartilha que vai além de “dar o peixe ensinar a

pescar”.

Essas estratégias pretendem contemplar o direito ao alimento e à alimentação

em quantidade e qualidade, à construção de um país mais digno que venha ao

encontro do preconizado na Constituição Federal de 1988. Nesse contexto, a política

de SAN está incorporada à assistência social que compõe a Seguridade Social ao

lado da Saúde e da Previdência Social, um direito permanente e universalmente

conquistado a quem dele necessitar (LOAS, 1993, p. 1). A SAN também é

mobilizada pelos Conselhos Nacional, Estadual e Municipal no encaminhamento das

políticas que asseguram o alimento e a alimentação às famílias em situação de

vulnerabilidade social. Porém, o conceito de SAN ultrapassa a dimensão da fome e

busca a qualidade alimentar e de vida de toda a população. Para materializar o

conceito, instaura-se o CONSEA. Ainda, o primeiro capítulo da cartilha apresenta o

sertão do nordeste como paradigma da condição da fome e da exclusão no Brasil,

apontado pelos indicadores sociais e econômicos como uma das regiões mais

pobres do país, o que também se configura no imaginário da população brasileira

em nível nacional.

Segundo a cartilha, para que o alimento seja direito de todos e lhes esteja ao

alcance é necessário valorizar tanto a biodiversidade quanto a sociodiversidade,

razão que confirma, no caso do alimento, não se reduzir a um fato biológico, mas

inclui a dimensão cultural e social.

A proposta do paradigma da efetivação da garantia do direito aparece na

cartilha como uma estratégia de legitimação do discurso da mudança, o qual propõe

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um pacto que mais reforça o assistencialismo, uma retórica do aprender a ser

solidário, um modelo de governo que tem que dar certo, apresentando um discurso

salvacionista dos necessitados, contradizendo-se com o discurso do direito.

5.4 SOCIODIVERSIDADE E BIODIVERSIDADE COMO FORMAS DE INCLUSÃO

SOCIAL

A cartilha trata o conceito de

inclusão social, considerando tanto a

sociodiversidade da população quanto a

biodiversidade da produção de alimentos

e salienta a importância de as pessoas se

organizarem em coletivos e se

movimentarem em rede.

Independente de idade, gênero e

etnia, todos eles estão representados nas

ações do programa, o qual propõe ações

emergenciais e estruturais no combate à

fome e em busca da SAN, com a

participação do Estado e da Sociedade

Civil.

A rede solidária compõe-se

independente de gênero e etnia, tanto em

relação aos agentes dos programas quanto usuários das ações implementadas no

combate à fome e em busca da SAN. Importante destacar que a participação em

rede mostrada na ilustração aparece de forma linear e harmônica, um apelo à

normalidade dos contextos.

Na cartilha, inclusão social significa respeito e valorização da

sociodiversidade e da biodiversidade. O discurso e as ilustrações apresentam os

diferentes locais geográficos, seus cenários e grupos étnicos como coadjuvantes do

desenvolvimento do país. A cartilha contextualiza a cultura como a soma de

comportamentos apreendidos pelos indivíduos, advindos da influência dos diferentes

ambientes geográficos e das suas realizações. Em cada sistema cultural existem

diferenças entre os grupos sociais e diferenças dentro dos próprios grupos.

Figura 4: Rede solidária. Fonte: Betto, 2003, p. 67.

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Assim, no contexto atual em que a bio e a sociodiversidade estão ameaçadas

no país e no mundo50, a cartilha se propõe a valorizá-las e respeitá-las ao considerar

os aspectos históricos e culturais presentes na formação social brasileira. A cartilha

busca valorizar a sociodiversidade quando apresenta, através do mapa do país, os

seus respectivos personagens regionais, destacando a multiplicidade étnico-cultural

brasileira.

O Brasil é um dos países que possui a

maior diversidade biológica do planeta e seu

ecossistema representa recursos para a

humanidade quanto às alternativas de

alimentação e de produtos medicinais. Ao se

falar em espécie humana, constata-se que o

país se constitui de diferentes etnias e de

grande sociodiversidade, ou diversidade

cultural. Valorizar as tradições e as raízes

étnicas significa, para o PFZ, valorizar os

alimentos, vestimentas, hábitos e valores

culturais, possibilitando o resgate e a

preservação de alimentos e da alimentação

que, de certa forma, supriu, durante muitos

anos, a dieta alimentar e regional em

quantidade e qualidade. Essa forma de

valorização vem ao encontro de outros

movimentos sociais já mencionados no primeiro capítulo, o movimento Slow Food,

cuja proposta, além de valorizar os alimentos e a gastronomia de cada país e região,

busca, também, preservar alimentos e práticas sociais relativas à alimentação que

podem estar desaparecendo em vários países e regiões.

Em relação ao gênero, a cartilha busca dar visibilidade à mulher como sujeito

social e histórico, incluindo-a na esfera pública, representando-a em reuniões do

sindicato e não somente na lida doméstica rural – plantio de hortaliças, colheita de

frutas... A mulher é lembrada como membro ativo nas diferentes iniciativas 50 Se na virada do século XIX para o século XX foi anunciado o fim do mundo, o novo milênio prevê o fim da própria espécie, que poderá destruir a base de sustentação da vida humana na Terra, em função de estarem sendo exauridas as reservas materiais do planeta e colocando em risco a sobrevivência das futuras gerações (MONTEIRO e LEAL, 1999).

Figura 5: Biodiversidade e sociodiversidade. Fonte: Betto, 2003, p. 35.

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governamentais, privadas e solidárias, isto é, contribui para o desenvolvimento da

sociedade em igualdade de direitos. “Uma compreensão mais ampla de gênero

exige que pensemos não somente que os sujeitos se fazem homem e mulher num

processo continuado, dinâmico [...] como também nos leva a pensar que gênero é

mais do que uma identidade apreendida, é uma categoria imersa nas instituições

sociais” (LOURO, 1995, p. 103). Assim, ultrapassa-se a denúncia da opressão e a

descrição de experiências vivenciadas por mulheres e o usualmente escrito no

masculino ao referir-se aos adultos, aos operários, entre outros, e o uso de termos

genéricos para a classe trabalhadora, a elite brasileira. Nessa perspectiva de

gênero, consolida-se a inscrição não apenas do papel social homem e mulher, mas,

também, o biológico, a cultura e a natureza de cada gênero, e evita as

generalizações que desprezam as diferenciações existentes dos grupos que lidam

com sujeitos sem corpo, sem cor, sem gênero.

A cartilha também observa as relações entre homem e mulher de forma que

os apresenta em todas as posições, momentos e cenários, desde o cuidado da

alimentação até as reuniões de sindicato e do governo. Essas relações certamente

são “percebidas como relações de poder à medida que são relações entre sujeitos

livres, e, portanto, que supõem resistências, respostas, transformações” (LOURO,

1995, p. 121). Isso denota que gênero é mais que uma opção teórica ou pedagógica,

é uma opção política e cultural, a qual supõe um engajamento regional e local.

Desse modo, a cartilha busca superar o sentimento de inferioridade historicamente

atribuído à cor, etnias e gênero. Por exemplo, o sentimento de menos valia gerado

pela escravidão de afro-descendentes e a violência contra indígenas pelo não

reconhecimento e respeito a suas terras, segmentos populacionais que, até hoje,

carregam o estigma e, em algumas situações, defrontam-se com situações

vexatórias, desfavoráveis e de difícil solução.

Outro aspecto citado na cartilha diz respeito às particularidades regionais

(norte-sul), e contempla desde o nordestino até o sulista, com a valorização das

particularidades regionais e uma forma de prevenir e comprometer a população a

preservar o ambiente. Essa forma de pensar conduz à valorização de determinados

produtos da agricultura familiar, evitando extinguir a diversidade biológica das

espécies, e a própria produção já existente, historicamente, naquele local, poderá

ser incentivada, ampliando a divulgação desses produtos como forma de trabalho e

renda para a população que se encontra excluída, principalmente na área de

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alimentos. Também se observa que a diversidade regional na ilustração aparece

como nacionalismo, um convívio pacífico de todos, independente de etnia, gênero e

região.

Observa-se, então, que a cartilha propõe valorizar as diferenças enquanto

lócus de produção de representação cultural, sendo que a construção dessa

identidade e diferença individual e coletiva suporta passar pela tolerância da

diversidade humana e pelas diferenças étnico-culturais presentes na sociedade

brasileira.

Há de se considerar, também, a importância na capacitação para a educação

cidadã de forma que contemple a história brasileira e as diferentes representações

culturais enquanto locais de construção das diferentes identidades, seja no campo

ou no espaço urbano, a fim de evitar a igualdade enquanto existe a diferença entre

as regiões, Estados, e em relação aos demais países.

5.5 SESSÕES ESPECIAIS: DA PALAVRA DO PRESIDENTE ÀS ANOTAÇÕES

SOBRE O PFZ

As sessões especiais inclusas na cartilha do PFZ são três, as quais buscam

objetivar o programa: “A palavra do presidente”, “Você sabia? e “Tome nota”. As

duas primeiras são identificadas por uma elipse com cores distintas. A elipse de

fundo amarelo contém a frase “A fala do presidente” em verde e amarelo, e a em

azul claro, a frase “Você sabia?”, escrita em tom azul mais escuro que o fundo. As

elipses indicam a fala do presidente e de informantes do programa como ocorre com

a fala dos personagens das histórias em quadrinhos. A última sessão está

representada por uma agenda retangular em amarelo, sobre ela a frase em

vermelho como uma forma de chamar a atenção, e um lápis azul também sobre

mesma. As três sessões se comunicam através de texto e imagem contornados por

duas linhas, uma amarela e a outra verde. A combinação das cores tanto das elipses

quanto do retângulo, e das linhas que contornam cada sessão lembram as cores da

bandeira brasileira, da pessoa do presidente, enfim, da República brasileira.

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5.6 A PALAVRA DO PRESIDENTE: DISCURSO ENTRE A DEMANDA E O

POPULISMO

A sessão intitulada a “Palavra do Presidente” aparece duas vezes no segundo

capítulo da cartilha intitulado “O que é o Programa Fome Zero”, e mais duas no

capítulo que fala sobre “Como o Programa Fome Zero está organizado”. Os textos

das duas primeiras são falas retiradas de discursos do Presidente, proferidos em

Brasília, ao lançar o Programa Fome Zero, em 30/1/2003; a segunda, refere-se à

criação do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Nutricional/MESA, em

24/2/2003, e as outras duas foram extraídas da reunião do CONSEA, de 25/2/2003,

e tratam da organização do programa. As falas estão relacionadas às opiniões do

Presidente nos momentos importantes do PFZ, das quais se reproduz, aqui, alguns

fragmentos.

No segundo capítulo da cartilha que informa ao leitor “O que é o Programa

Fome Zero”, a primeira “Palavra do presidente” relata o seu discurso ao lançar o

PFZ, em que ele fala sobre a necessidade de qualificar a assistência social para a

população em situação de vulnerabilidade social para não continuar repetindo o que

historicamente sempre aconteceu, de a fome voltar a assombrar o brasileiro. Ele fala

sobre a necessidade de atender a população que está com fome de modo a

combinar ações de um “modo novo”, através de uma política que busque “atacar as

causas” através de ações emergenciais e estruturais, e menciona a provérbio “É

preciso dar o peixe e ensinar a pescar”.

Com essa frase, o Presidente explica que a questão da pobreza vai além de

matar a fome, mencionando a criação de empregos, melhores condições de vida

para a população, educação e saúde de qualidade, reforma agrária, entre outras.

Nessa frase está implícita a proposta de articular ambas as direções de política a

assistencial, o emergencial (dar o peixe) e a estrutural (“ensinar a pescar”).

O direito ao alimento e à alimentação está contemplado na Lei Orgânica da

Assistência Social/LOAS, política que incluiu o PFZ para sua execução nos

municípios, isso porque ainda não fora aprovada a Lei Orgânica da Segurança

Alimentar e Nutricional. É uma política de direito e cidadania à medida que reforça a

ideia de que a assistência é um direito social e deve ser acessada quando

necessária, buscando, concomitantemente, inserir o usuário no mercado de trabalho

formal/informal ou através da geração de trabalho e renda com o objetivo de dar

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autonomia ao usuário/sujeito, numa

proposta de construção entre governo,

usuário e a sociedade civil.

Para ilustrar a proposta do PFZ, “dar

o peixe e ensinar a pescar”, o personagem

que ilustra o texto da cartilha é João, o

nordestino do primeiro capítulo, que está

pescando direitos, entre os quais: saúde,

salário, munido de uma lata de minhocas

com a inscrição “boa vontade”. João pesca

em um lugar cercado de mata nativa e o rio

e o céu são azuis.

No discurso, o Presidente fala em um

novo paradigma, em oposição ao antigo

discurso de que “Não devemos dar o peixe

e sim ensinar a pescar”. Propõe romper

com o discurso assistencialista, dualista e que entende o pobre como aquele que

não sabe usar as oportunidades e por isso necessita de cesta básica, considerada

uma esmola que pode dar certo e ser retirada, caso o usuário não responda ao

objetivo estabelecido pelo poder instituído ou por quem o administra, deixando de

fora o sujeito que sente a fome, imerso na busca cotidiana do alimento de hoje e

alivia-se quando tem algo para amanhã, nem que sejam alguns grãozinhos de feijão.

O Presidente finaliza o discurso conectando-se com o duplo sofrimento do

povo que para se alimentar utiliza a cesta básica e pretende com o programa ir além

de matar a fome, isto é, “libertar milhões de brasileiros, definitivamente, da

humilhação das cestas básicas” e propõe que “todos, absolutamente todos, possam

se alimentar adequadamente, sem que para isso precisem da ajuda dos outros”.

A segunda “Palavra do Presidente” cita o discurso do Presidente durante a

criação do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Nutricional/MESA,

praticamente um mês depois do lançamento do PFZ, que dá guarida ao programa

do FZ. Nesse discurso, fala sobre a importância da criação dos conselhos de

direito51 estaduais e municipais e enfatiza o propósito de acabar com a fome;

51 São canais importantes de participação coletiva, que possibilitam a criação de uma nova cultura política e novas relações políticas entre governos e cidadãos (RAICHELIS, 2006, p. 109).

Figura 6: Ensinar a pescar. Fonte: Betto, 2003, p. 21.

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conclama a sociedade brasileira a ser sujeito desse processo, cuja responsabilidade

é de cada pessoa, entidade empresarial, entre outros, e deles dependerá o sucesso

do programa – para que a semente

plantada germine e dê frutos. E para

ilustrar a força do Ministério, a

cartilha utilizou o desenho de uma

árvore com galhos longos, em cuja

raiz principal há o símbolo da

bandeira brasileira, da qual se nutre,

e os três frutos dela possuem olhos e

boca que se alimentam dessa árvore

em solo firme e fértil.

Ainda no mesmo discurso, o

Presidente, fez um apelo para que a

sociedade brasileira se envolva no

combate à fome ao dizer “Não fique

esperando o governo”, e mostra a

necessidade do compromisso de

toda a sociedade caminhar rumo a

SAN para “acabar com a fome”.

Então, define a SAN: “Segurança

Alimentar e Nutricional é mais que acabar com a fome hoje. Significa garantir que

todas as famílias tenham condições de se alimentar dignamente com regularidade,

quantidade e qualidade necessárias à manutenção de sua saúde”.

No terceiro capítulo, que fala sobre “Como o PFZ está organizado”, constam

duas vezes a “Palavra do Presidente”, citando o discurso por ele proferido na

reunião do CONSEA nacional. A primeira palavra aposta na força e disposição da

sociedade civil na tarefa de combater a fome e mostra a importância de criar os

conselhos estaduais e municipais; a segunda refere-se à necessidade de acreditar

“piamente” na sociedade civil e alerta para que ninguém crie dificuldades à sua

participação e também não exija demais dela. “Esta nova forma de gestão vai exigir

processos decisórios abertos e tende a provocar uma ruptura com as práticas

populistas” (SPOSATI, 2002, p. 33).

Figura 7: A árvore frondosa. Fonte: Betto, 2003, p. 24.

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Com o intuito de desenvolver o programa, o Presidente mostra as diferentes

formas da participação da população, entre as quais os conselhos e as ONGs, e

apela para que o governo e a sociedade somem esforços, dizendo que a integração

entre governo e sociedade fará muito mais que o governo sozinho. E reforça a ideia

de que o governo “por mais que ele faça, ele não tem a mesma força que a

sociedade terá, se ela quiser assumir para si a tarefa de cuidar disso”. Com esse

discurso, o Presidente mostra os limites do poder público no combate à fome e à

pobreza, pois, mediante uma política dos mínimos sociais vigentes, no modelo

neoliberal de uma sociedade globalizada contemporânea e, dentro dos moldes

democráticos atuais, se propõe a governar em conjunto com a sociedade civil.

Assim, mediante parceria, busca a solução para o grave problema que aflige o país

e milhões de brasileiros que é a fome, traduzida na insegurança alimentar e

nutricional no país e em todo o mundo. Nesse contexto, “a conquista do direito social

supõe um pacto entre Sociedade-Mercado-Estado sob a égide da universalização da

cidadania [...] já que a cultura de direitos sociais a políticas sociais é substituída por

ações sociais e não propriamente por políticas sociais públicas duradouras”

(SPOSATI, 2002, p. 41). Nesse discurso, o Presidente incentiva parcerias entre os

mencionados segmentos e o Estado, visando a ampliar a participação de todos os

segmentos da sociedade no combate à fome e na busca da SAN e da qualidade de

vida de toda a população.

A sociedade civil é entendida pelo Presidente como a mola mestra de todo o

processo de combate à fome e à pobreza e, consequentemente, do

desenvolvimento do país, e considera que ela deve ser respeitada em suas

exigências e também ter o cuidado para não criar dificuldades para sua participação

nas ações, sejam elas estruturais, emergenciais ou solidárias. Segundo Sposati

(2002, p. 43), “o alcance das políticas sociais em contexto de desigualdade e

exclusão deve alargar-se para dar conta das condições efetivas de vida de seus

usuários”.

O Presidente, em praticamente todos os discursos, menciona a sociedade

civil como parceira na construção, execução e avaliação das políticas, no sentido de

diferenciar essa construção das políticas autoritárias que excluíam a sociedade das

decisões durante as ditaduras que o país viveu em passado recente. “Neste

contexto, a participação da sociedade civil é tida como importante para democratizar

a gestão pública, para inverter as prioridades das administrações em políticas que

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atendam não apenas as questões emergenciais” (GONH e HAMEL, 2003, p. 109).

Também diz que as mudanças estruturais devem acontecer e que elas têm seu

tempo, como ocorre com as frutas, que devem ser colhidas quando maduras e se

forem colhidas antes de amadurecer, só resta jogá-las fora. Assim, o Presidente

pretende dar legitimidade à sociedade para que ela se torne um agente no processo

de acabar com a fome na busca da qualidade de vida da população. Esse discurso

que ensina como mudar, exige posturas definidas e reforça o passado assistencial e

clientelista das políticas sociais.

Para ilustrar a primeira “Palavra do Presidente”, a cartilha utiliza o mapa do

Brasil (ver Figura 5), na cor verde, com doze rostos de pessoas com características

do povo de cada região do país que contempla as diferentes etnias que compõem a

sociedade brasileira.

A segunda mostra um personagem

masculino que, a passos largos, vai se

afastando de uma macieira e, no chão há

uma maçã verde mordida. A cartilha, com

essas gravuras, faz uma alusão metafórica

das diversidades étnicas e culturais que

enriquecem o país e a importância do

amadurecimento da sociedade brasileira

para compreender o papel da parceira na

solução dos problemas que enfrenta e, de

certa forma, deixa o recado: a sociedade

precisa amadurecer para colher frutos

maduros.

No movimento de mostrar o papel da

sociedade civil, o Presidente, de forma sutil,

coloca-se no centro do processo e dita o

que essa sociedade deve fazer para

resolver os problemas decorrentes do sistema vigente. Embora o Presidente faça

um esforço para ser democrático, destaca-se, como elemento contraditório, o seu

discurso que busca uma intencionalidade democrática, mas, no contexto moderno

de democracia, permanece fortemente vinculada a um personalismo e a um registro

político populista pelo fato de reiterar permanentemente a pessoa do Presidente

Figura 8: A metáfora da maçã verde. Fonte: Betto, 2003, p. 40.

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“Lula” como origem dos discursos. A afirmação constante da pessoa do Presidente

provoca a reflexão sobre uma espécie de “democracia populista”, o que seria uma

contradição com os ideais modernos de democracia, com regime de direitos sociais,

isto é, ancorados em uma estrutura social “despersonalizada”, e,

consequentemente, em um sistema institucional também “despersonalizado”.

A centralidade da pessoa do Presidente aparece em toda a cartilha, seja na

fala dos personagens ou no conjunto dos textos que compõem o corpo narrativo da

cartilha.

5.7 VOCÊ SABIA?

Nessa cartilha, a sessão intitulada “Você sabia?” busca informar e divulgar

aos leitores aspectos importantes sobre a política de SAN operacionalizada pelo

PFZ e vice-versa. Para isso, diz por que o programa foi criado, o que busca

combater e garantir para a população, a quem está endereçado, como está

estruturado, organizado e como se articula junto à sociedade, sendo que ela é a

protagonista e dela depende o êxito do referido programa. Também informa que a

política da SAN se preocupa com a vida da população em geral. A sessão “Você

sabia?” caracteriza-se por informar, através de números, quantidades, percentuais e

indicadores, informações sobre a fome e a pobreza e segurança alimentar e

nutricional no país.

Essa sessão aparece uma vez no segundo capítulo “O que é o PFZ”, por três

vezes no terceiro capítulo “Como o PFZ está organizado”, quatro vezes no quarto

capítulo “Mutirão contra a fome” e uma vez no sexto capítulo “Sede zero”.

Destacam-se aqui alguns aspectos das informações da sessão veiculadas no

terceiro capítulo “Como o PFZ está organizado”, cuja preocupação é informar os

pressupostos econômicos, políticos e culturais da política do PFZ e da SAN. O texto

da cartilha contesta o discurso que justifica a fome pela escassez dos alimentos, no

momento que informa: “não faltam alimentos. Falta renda suficiente para a

alimentação adequada de grande parcela da população”, e reforça a necessidade de

gastar com alimentação, no momento em que afirma que combater a fome “não

representa um ‘gasto’, mas um investimento”. Dessa forma, a cartilha mostra um

discurso pouco ou dificilmente veiculado pelos meios de comunicação, o qual se

propõe, aos poucos, a romper com a teoria malthusiana e com o modelo de

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industrialização da agricultura proposta pela “revolução verde” e, de certa forma,

explica o fato da coexistência entre fartura e escassez que regula a comercialização

dos alimentos e alimentação descritos no terceiro capítulo desta dissertação. Adas

(2004, p. 186) discorre sobre esse ponto afirmando que:

Na verdade, não faltam alimentos no mundo. A produção é suficiente para atender a todos. O problema é que, além do desperdício, e de sua destinação, existe a questão crucial num mundo pautado pela economia de mercado; os alimentos não se destinam a quem precisa dele, mas aos que têm renda para adquiri-los.

O terceiro capítulo da cartilha, ainda

de forma direta, informa ao leitor de que a

insegurança alimentar expõe “milhões de

famílias”, mostrando outras vantagens

possíveis quando defende a tese de que se

a população tiver acesso ao alimento

necessário em quantidade e qualidade

automaticamente haverá o aumento da

produção e a consequente criação e

geração de novos empregos e renda,

principalmente na agricultura familiar e na

arrecadação de impostos. Informa que a

alimentação adequada evita doenças e

diminui o gasto com médico, remédios,

hospital, e o país se torna “mais rico e

desenvolvido”. A informação vem ilustrada pela bandeira do Brasil, em que o verde

representa o econômico e no globo do centro da bandeira há um rosto com

expressão de felicidade, cujos olhos são as estrelas e a boca está representada pela

lua.

A bandeira com um rosto com expressão feliz no centro remeteria ao desejo

da população brasileira, a qual se supõe entender ser o país rico e também feliz,

sem a necessidade de as pessoas se submeterem a discursos autoritários e

questionados.

Outro foco explorado pela sessão em todos os capítulos são os informes

pontuais referentes aos percentuais de produtos provenientes da agricultura familiar,

Figura 9: A riqueza do Brasil. Fonte: Betto, 2003, p. 31.

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a merenda escolar, os remanescentes de quilombos, os financiamentos e a

construção de cisternas rurais. Isso, em relação ao que existe, foi conquistado ou

pretende-se conquistar com o programa e a referida política da SAN, e vem ao

encontro dos movimentos sociais contemporâneos que buscam a proteção infantil, a

proteção de determinados alimentos em extinção, o fortalecimento da agricultura

familiar, entre outros.

A sessão é objetiva e define claramente os objetivos pedagógicos ao entrar

em contato com o leitor. Quer ensinar com evidências numéricas e argumentos

sociológicos que questiona a percepção historicamente construída no Brasil, de que

apenas a grande propriedade e a agricultura patronal com trabalho assalariado são

capazes de produzir, em bases sólidas e a custos baixos, quantidades elevadas de

produtos alimentícios para atender a demanda interna e externa. Com as

informações veiculadas, através da sessão “Você sabia?”, a cartilha não desqualifica

uma ou outra forma de produzir, mas expressa a importância de combinar diferentes

formas ou alternativas de produzir voltadas tanto para o mercado interno quanto

para o externo. Essas informações têm a proposta de propiciar às pessoas

diferentes formas de pensar, possibilitando entender que existe forma de produzir e

canalizar alimentos e que nem sempre o veiculado pela mídia, pelo governo ou

sindicato representa a verdade absoluta, mas estes são locais e meios onde os

discursos se produzem e reproduzem.

A proposta da cartilha é fornecer ao leitor dados e informações que não são

comumente veiculados nos meios mencionados acima, com o intuito de alertá-lo e

propiciar-lhe a reflexão sobre a procedência de certas informações, considerando

que “todos os produtos e processos submetidos a esse banho informatizador e

comunicacional [...] inclui na análise, o sincretismo entre aspectos industriais,

simbólico/cultural e efetivos” (PRADO e SILVA, 2003, p. 32). E conclui: diariamente,

a população é bombardeada por informações e, muitas vezes, não entende o que

significam, o que querem comunicar e como se articulam nos meios econômicos,

políticos e culturais que influenciam diretamente a segurança alimentar e nutricional

das pessoas, seja pela dificuldade de acessar os alimentos pela escassez produzida

pelo poder econômico ou pelo acesso inadequado monitorado pela mídia. Nessa

sessão, as informações são universais e servem tanto às famílias monitoradas pelo

PFZ quanto às pessoas que se engajam na proposta de promover a SAN.

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5.8 TOME NOTA

A sessão “Tome nota” aparece por sete vezes na cartilha, do terceiro ao sexto

capítulo. No terceiro capítulo, “Como o PFZ está organizado”, aparece duas vezes,

no quarto, “Mutirão contra a fome”, por quatro vezes e, por último, no capítulo

intitulado “Sede zero,” por duas vezes. Caracteriza-se por ser uma sessão que

busca apontar aspectos importantes que devem ser perseguidos e não esquecidos

ou negligenciados por seus gestores, agentes e voluntários comprometidos com o

programa.

A seguir, citam-se alguns fragmentos do discurso dessa sessão ao longo da

cartilha que convoca toda a sociedade brasileira a mobilizar-se para combater a

fome e a miséria da população carente, quando “quer mais do que arrecadar

alimentos [...] quer arrecadar solidariedade, de modo a unir a fome de comer com a

vontade de fazer”; “arrecadar alimentos não é o mais importante [...]. O mais

importante é que os beneficiários venham a se tornar cidadãos e produzir renda”;

“Não se trata de não falar mais em combate à seca. Trata-se agora de conviver com

ela e com as condições do semiárido, construindo um novo modelo de

desenvolvimento sustentável para a região”; “nem sempre a fome do brasileiro é

falta de comida, e sim de educação nutricional”; entre outras. Esses discursos

mostram os espaços de participação da população ao se aproximarem do programa,

que devem “primeiro, vincular-se a uma entidade ou instituição que já trabalha com

segurança alimentar” e “antes de arrecadar alimentos, saiba a quem destiná-los”, ou,

ainda, “organizar-se para criar um grupo de trabalho”. Da mesma forma, propõe-se a

favorecer a inclusão, visto que o Fome Zero “não é um programa assistencialista, e

sim de inclusão social”.

Assim, a sessão aponta para a importância de saber destinar os alimentos

para que não corram o risco de ficarem estocados e que as pessoas devem ter uma

metodologia pedagógica que evite o assistencialismo. Caso ele venha ocorrendo,

deve ser denunciado e, por último, busca divulgar as campanhas das quais a

população pode participar para ajudar no Sede Zero, quando divulga o número de

beneficiados com cisternas e como participar da referida campanha. Com esses e

outros apontamentos, o programa reforça os princípios e os pressupostos filosóficos

de funcionamento do programa à luz da política de SAN.

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5.9 CONTEXTO ONDE A CARTILHA CIRCULA NO MUNICÍPIO DE CANOAS/RS

A cartilha do PFZ/SAN tem circulação relativamente restrita aos programas

assistenciais do município de Canoas/RS, porque a política de SAN não está

plenamente implementada. O governo municipal do Partido do Movimento

Democrático Brasileiro (PMDB) e sua coligação, no período em que se realizou esta

pesquisa, não deu muito crédito a essa política e não houve uma atenção especial a

sua proposta. No município de Canoas, os programas assistenciais ficaram sob a

orientação dos setores conservadores do governo, desde a sua constituição. Assim,

as secretarias foram administradas praticamente pelas mesmas pessoas que

previamente compunham alianças partidárias com esses setores conservadores.

Alguns programas assistenciais até possuem semelhanças com os propostos pelo

governo Lula, mas têm outro direcionamento na execução através do poder público

e das lideranças comunitárias de apoio ao governo municipal.

Dessa forma, no município de Canoas, até o ano de 2009, os programas de

combate à fome e à pobreza desenvolvem-se na Secretária de Assistência Social e

Cidadania, por intermédio de seus Departamentos de Assistência Social e de

Cidadania, ficando o PFZ e a implantação da política de SAN inclusas nesses

departamentos e nos grupos da sociedade civil.

A discussão da política de SAN teve início com a implementação do Conselho

Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional, em 2004, através de lideranças do

partido do governo e representações da sociedade civil conforme diretrizes

nacionais. Segundo contatos com a presidente e a secretária do Conselho, durante

os anos de 2007 e 2008, o Conselho buscou traçar uma política de segurança

alimentar e nutricional para o município, iniciando pela discussão da qualidade

alimentar da cantina das escolas, tanto privadas quanto públicas e encaminhou a

aprovação do projeto do PAA, a aprovação e acompanhamento da implantação do

Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) e o encaminhamento da

documentação para obtenção de suporte financeiro e legal ao Conselho, ficando

este último item a ser concretizado em 2009.

A política de SAN foi contemplada no governo municipal com a organização

do cadastro das famílias em situação de insegurança alimentar para distribuição da

“bolsa família” através do Departamento de Cidadania, com o repasse da verba

federal para uma entidade da comunidade criar e administrar o PAT.

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Assim, o PAT é coordenado pela entidade não governamental – Associação

Canoense de Deficientes Físicos (ACADEF) – e se desenvolve na entrada do bairro

Guajuviras, junto a um grupo de trabalhadores informais (camelôs) lá situados. A

entidade providencia os almoços dos trabalhadores através do contrato do serviço

com uma empresa do ramo que fornece os alimentos prontos, não havendo a

integração com a pequena agricultura para a aquisição dos produtos alimentícios e

nem a montagem de cozinhas comunitárias nas demais áreas de concentração de

trabalhadores com insegurança alimentar, por exemplo, a dos papeleiros, dentre

outros, onde se concentra a população pobre como define a política nacional.

Quanto ao PAA, esse programa foi introduzido no município por um vereador

do PT, que mobilizou três entidades não governamentais a firmarem convênio direto

com o Ministério de Desenvolvimento Social/MDS. Os coordenadores das

instituições conveniadas operacionalizam o referido programa a partir da cartilha do

PFZ/SAN, cujas ações integram as famílias no âmbito urbano e rural, acolhendo

aquelas que apresentam insegurança alimentar e nutricional com a bolsa

alimentação, propostas de alfabetização e de capacitação de geração de trabalho e

renda. Essa proposta se desenvolve por meio da capacitação dos agentes que

coordenam os trabalhos dos 29 núcleos do programa, situados nas comunidades

carentes, onde se desenvolvem ações orientadas pela política de SAN.

Os princípios e pressupostos do PFZ/SAN, de certa forma, também foram

absorvidos pelas entidades comunitárias que prestam assessoria ao programa,

sendo uma delas a Ulbra. Nesse programa, a Universidade assessora e desenvolve

ações relacionadas à capacitação profissional dos beneficiados, e a política de

SAN/FZ no PAA é executada com o apoio da cartilha.

Em entrevistas e seminários, a gestora da Pastoral Católica do PAA relatou

que as famílias participam de diferentes atividades, como: entrevistas, reuniões,

cursos, movimentos da comunidade, além de se envolverem com a busca,

embalagem, distribuição e entrega das bolsas de alimentos. A gestora também diz

que a base do trabalho está pautada na informação e explicação do objetivo da

participação dos beneficiados/usuários nas atividades do programa, isto é, de sua

importância, mas, mesmo assim, os beneficiados nem sempre respondem ao

solicitado, pois existe o limite da herança assistencialista que reforça o papel do

“dependente” e do “carente”. As ações buscam envolver o usuário com o objetivo de

romper o estigma da fome para a efetivação do direito à alimentação, através do

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atendimento às famílias de diferentes formas: individual, em grupo de famílias, em

grandes grupos (encontros/seminários), na organização de movimentos que

contemplem as lutas dos integrantes do programa e a organização da participação

dos movimentos sociais mais amplos cujas lutas são questões da sociedade.

A gestora destaca que entre as atividades de grande grupo, no ano de 2007,

o mais comentado pelos beneficiados e que obteve mudanças de posicionamento

das famílias foi o “Encontro das mulheres urbanas e rurais”, do qual participaram

mulheres que cultivam os alimentos e as que os recebem. Nesse encontro, as

mulheres debateram o cotidiano rural e urbano; por que a produção de tais

alimentos e não de outros; o valor nutritivo dos alimentos regionais; como aproveitar

os alimentos in natura; como acondicionar a carne, pois a maioria das famílias não

possui meios de congelamento; troca de receitas para degustar alimentos

desconhecidos. Após o encontro, algumas famílias mostraram o desejo de retornar

para o meio rural de onde procedem, por não terem encontrado o que esperavam no

meio urbano. Essas famílias foram encaminhadas para programas, por exemplo, o

Movimento dos Sem Terra, entre outros.

Essas práticas pretendem desenvolver o respeito por parte de famílias quanto

à realidade do segmento de cada uma. As críticas internas de disputa por alimento

ainda se fazem presentes no cotidiano, embora o discurso da cartilha aponte para a

necessidade de maior investimento, a fim de que se tenha a conotação de direito e o

entendimento de que a fome e a pobreza não dependem somente do indivíduo, mas

que é um problema estrutural que necessita de estratégias e conquistas de cada um

e de cada segmento.

A gestora também mencionou a questão da solidariedade entre as famílias

beneficiadas, manifestada através da autoajuda na solução dos problemas

cotidianos. Em 2008, uma das problemáticas citadas pelos beneficiados foi o direito

à creche, que se tornou tema de todos os núcleos e, a partir de discussões, as

famílias elaboraram uma lista com nome e idade das crianças não contempladas

com o serviço e organizaram um movimento reivindicatório junto ao governo

municipal. Para encaminhar a reivindicação organizaram uma caminhada com o

objetivo de levar e colar a lista elaborada na porta da Secretaria Municipal da

Assistência Social e Cidadania do município, que se encontrava fechada, pois a

caminhada ocorreu em um sábado à tarde. Em fevereiro de 2009, as famílias se

organizaram para participar da “Romaria da Terra”, em Sapucaia do Sul, e a

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“Romaria dos Navegantes”, em Porto Alegre, quando o programa proporcionou

condução.

Os eventos, citados acima, segundo a fala dos gestores, agentes e próprios

usuários são espaços coletivos em que ocorre o aprendizado, isto é, espaços

pedagógicos que proporcionam aos beneficiados participantes ou, segundo os

próprios relatos, aos que não participaram, um espaço de formação cultural e de

cidadania, pois muitos beneficiados não conhecem o entorno e muito menos os

lugares mais afastados de onde vivem.

Outro local onde a cartilha circula no PAA é o de alfabetização e/ou reforço

escolar que acontece em praticamente todos os núcleos. Para atuar na

alfabetização, o programa utiliza, de preferência, pessoas pertencentes ao núcleo.

Para tanto, o programa adota uma metodologia específica52, a qual parte dos fatos

cotidianos dos alunos e não existe um programa de conteúdo pré-determinado. As

atividades nascem a partir das dificuldades e necessidades do grupo, não sendo

fornecido atestado, mas, no entanto, capacita os integrantes a fazerem as provas e

concluírem o ensino formal (Ensino Fundamental).

Finalmente, outra atividade relacionada a alimentos no município é o Banco

de Alimentos, programa coordenado pela Federação das Indústrias do Rio Grande

do Sul (FIERGS), o qual mobiliza os médios e grandes mercados para que doem os

alimentos que, por uma série de motivos, têm seus prazos de validade limitados, e

também arrecadem alimentos na comunidade, principalmente junto aos

frequentadores dos mercados, e os repassam a entidades assistenciais por eles

cadastradas. O grupo que coordena as ações do Banco de Alimentos, mesmo

fazendo um trabalho assistencial que parece ser muito parecido com o proposto na

cartilha do PFZ, durante as entrevistas e nos contatos que se realizou com suas

lideranças, esse grupo nega veementemente uma ligação com o PFZ e justifica que

o programa possui uma coordenação e uma política empresarial própria, pois não

quer se envolver com política partidária.

Já no final do período de elaboração desta dissertação, no início do ano de

2009, os gestores do PAA e membros do CONSEA/Canoas foram novamente

contatados e entrevistados e informaram na entrevista que, com a eleição do novo 52 Os gestores a identificam a metodologia utilizada como a de Paulo Freire, considerando que os alunos escrevem sobre o que vivenciam no programa e que os preocupam, sendo muitas vezes a busca da comida do dia ou do dia seguinte, e suas expectativas, desejos e suas histórias de vida (Relato do diário de campo).

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governo municipal, a Secretaria de Assistência Social e Cidadania passou a

denominar-se Secretaria de Desenvolvimento Social, e um dos seus departamentos

é o de Segurança Alimentar e Nutricional, a partir do qual pretendem ampliar e

efetivar o PFZ/PAA. O governo municipal que assumiu a gestão 2009-2012 tem a

liderança do PT e conta com apoio dos seguintes partidos: Partido Comunista do

Brasil (PCdoB), Partido Socialista Brasileiro (PSB), Partido Progressista (PP),

Partido Popular Socialista (PPS), Partido da República (PR) e parte do Partido

Democrático Trabalhista (PDT) e Partido do Movimento Democrático Brasileiro

(PMDB). Esse governo convidou os gestores do PAA a coordenarem as ações

assistenciais, os quais se mantinham em ações periféricas no governo anterior.

Hoje, ocupam o cargo de secretário e de coordenadores de seus programas. Em

entrevista com a gestora da Pastoral Católica do Bairro Fátima, ela relatou que a

proposta atual é a de redirecionar atividades e de ampliar a ação da segurança

alimentar e nutricional, aumentando o número de famílias contempladas com o

programa Bolsa Família. Além disso, é necessário investir recursos na capacitação

profissional e geração de trabalho e renda, e que é prioritário e urgente atuar na

prevenção da violência, pois, segundo ela, é preciso integrar as ações contra a

violência com o Sistema de Saúde em um serviço relacionado ao alcoolismo e à

droga sabendo-se que a violência é um fenômeno decorrente da fome.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta dissertação não se teve a pretensão de esgotar a temática sobre

alimento e alimentação, mas contribuir com um olhar a partir da educação com os

que se interessam e trabalham pela e com a política de Segurança Alimentar

Nutricional. Essa política pública é considerada, aqui, uma pedagogia cultural,

analisando-se as representações culturais acionadas pelo Programa de Aquisição

de Alimento na cartilha do Programa Fome Zero.

As representações culturais que circulam no texto da cartilha do PFZ buscam

deslocar o tema da fome para o campo dos direitos, tratando a falta de alimentos (ou

fome) como uma política pública e não uma realidade biológica. Assim, buscam

construir uma equivalência entre a escassez de alimento (fome) e a negação dos

direitos sociais. Dessa forma, a ideia de segurança/insegurança alimentar conduz a

uma condição de risco ou seguridade que diz respeito ao dever do Estado e direito

do cidadão. O discurso da cartilha reitera os conceitos direitos, cidadania e sugere

atividades para o cidadão, que deve aprender a pescar e não receber o peixe,

propondo: engajamento na capacitação profissional e na alfabetização, incentivo à

agricultura familiar, estímulo ao cooperativismo, ao microcrédito, entre outras, e

critica explicitamente a postura assistencialista de dar de comer ao pobre. Considera

humilhante a condição de receber cestas básicas e pretende libertar milhões de

brasileiros deste auxílio a partir de um trabalho integrado entre governo e sociedade

civil. Um discurso que aposta na parceria entre governo e sociedade na busca da

garantia de alimentos em quantidade e qualidade; de trabalho junto aos segmentos

populacionais em situação de vulnerabilidade social, com o intuito de conquistar sua

própria renda sem precisar da ajuda dos outros, através do exercício do direito.

Considerando-se esse contexto como pano-de-fundo, a pobreza e a fome

ganham sentido em uma rede de significados que as tomam como indicadores de

situações ou condições de um direito negado. A escassez de alimento torna-se

equivalente à escassez de direito e de organização. Não é difícil perceber que os

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textos da cartilha estão respaldados em uma ideologia que considera os movimentos

populares como pilares da transformação social e de um governo que tem suas

raízes nesses movimentos, alimentando esse tipo de construção discursiva.

Outro discurso reiterado na cartilha para vencer a fome e a pobreza é a

diversidade cultural, a qual é explicitada mais claramente nas ilustrações dos textos,

em que se identificam as características regionais pelas vestimentas e etnias que

constituem as diferentes identidades culturais. Cada região do país é representada

por construções culturais específicas que contemplam a socio e biodiversidade

locais, incentivando, no plano da alimentação, a priorização de alimentos da dieta

local e regional nos programas sociais locais.

Para que isso ocorra, os discursos constantemente apontam para a

necessidade de mudanças estruturais e atendimento a segmentos populacionais de

forma específica e emergencial, com o objetivo de atacar a problemática da fome

desde sua raiz, não esquecendo aqueles que “não podem esperar”. Para atingir

esses objetivos, as ações buscam considerar a diversidade alimentar de cada

região, pois os discursos reiteram a importância e o respeito às diferenças no

enfrentamento da problemática social e alimentar. Esse respeito à diversidade

cultural de cada região valoriza a agricultura familiar, fortalecendo-a, pois,

historicamente, e mais intenso nas últimas décadas, os agricultores familiares foram

relegados a um segundo plano pela política agrícola e agrária que priorizou a

monocultura e os grandes produtores. Essa forma de abordar a socio e

biodiversidade busca preservar o meio ambiente e defende a liberdade de escolher

o modo de produzir e de alimentar-se, na busca da qualidade de vida, e considera

as diferentes identidades alimentares representadas pelos produtos tanto

industrializados quanto in natura e ecológicos.

O discurso da cartilha se propõe atual e implica representações culturais

produzidas na contemporaneidade em que a segurança alimentar é uma das

incertezas da humanidade, considerando que parte significativa da população tem

dificuldade de adquirir alimentos. Compartilha da denúncia de que há segmentos

populacionais em que o alimento não supre as necessidades básicas para que

exerçam suas atividades normais, entre elas o direito ao trabalho que lhes dá o

sustento e de suas famílias.

Por outro lado, reconhece que há outros segmentos da população “imersos”

no excesso de alimentos, gerando a obesidade e problemas cardiovasculares, o que

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também preocupa a sociedade em geral. Nesse sentido, o discurso do PFZ, a partir

da cartilha analisada, critica o assistencialismo (doações caritativas e programas

governamentais paliativos) que mantêm a realidade de dependência sob controle,

levando a população a se resignar com a insuficiência de alimentos e a conviver

com segmentos que sofrem dessa carência. Esse fato, nas últimas décadas, tem

sido palco frequente para a crítica dos movimentos sociais e discursos que

denunciam a desigualdade social na forma da escassez ou excesso de alimentos e

levam a novas formas de análise da realidade da produção e distribuição dos

alimentos.

Os discursos na cartilha apresentam-se permeados pela figura do Presidente,

a qual aparece como centro nos diálogos dos personagens e nos apelos de

integração de esforços entre o poder público e a sociedade civil. A figura que

representa o Presidente da República na cartilha, no decorrer dos textos e nas

ilustrações, indica o modo com que a sociedade deveria se portar para resolver o

problema da fome e da miséria. Nesses discursos, observa-se que esse

“personagem” se dirige aos mais humildes de forma amiga e simpática, utiliza um

discurso popular que busca se adaptar à compreensão ou ao gosto do povo;

discurso que posiciona o governo como um governo popular, ao lado dos

movimentos populares, com uma linguagem que fala dentro do universo do povo e

busca produzir efeitos de identificação e simpatia dos segmentos populares com a

imagem e a linguagem do Presidente. O personagem do “Presidente” representado

na cartilha mostra-se protetor e amigo, aquele que articulará programas e ações

para “ajudar” a população. E ao se dirigir a sociedade civil, o “Presidente” diz que ela

é mais poderosa e fará mais do que ele/governo sozinho, e vai definindo o seu papel

ao integrar os esforços de combate à fome e à miséria ao mesmo tempo que

conclama à participação.

Assim, entende-se que os discursos do Presidente acabam centralizando e

personalizando as ações, embora ele diga que a sociedade civil não deve ser

exigida em demasia e nem dificultada na participação. A partir dessas

representações e formações discursivas de tipo populistas, indaga-se mais uma vez:

Em que medida o contraponto da mensagem explicitada de empoderamento popular

não termina reforçando o que parece combater? Ou seja: não gera o retraimento da

sociedade civil?

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Na linha da execução das políticas sociais e de segurança alimentar, também

é possível perceber algumas contradições com as intenções de participação tão

reforçadas no discurso oficial. Verifica-se, por exemplo, na área de influência das

ações do PFZ, a proliferação de programas sociais paralelos com pouco ou nenhum

comprometimento com as questões regionais, nacional e mesmo mundial, como

pode estar ocorrendo, por exemplo, com iniciativas de “Banco de Alimentos”.

Essa forma de discurso do Presidente, associado, ao mesmo tempo, a um

ideal democrático de participação popular e cidadã e a uma postura populista,

carrega elementos contraditórios entre o contexto de ideias modernas de

democracia, pois o “personalismo” do Presidente reflete um modelo paternalista que

a democracia moderna pretende superar.

A questão que se coloca é em que medida essa contradição que faz parte

desse momento histórico estaria promovendo direitos ou reforçando uma relação de

dependência na constituição da ação política dos segmentos populares. A política

que afirma direitos, como a da segurança alimentar, pode, por exemplo, ser ao

mesmo tempo facilmente vista como de autoria do Presidente, embora seja uma

política pública que envolva articulações locais, nacionais e mesmo mundiais.

A partir da observação realizada nesta pesquisa, embora limitada a um

contexto municipal de execução do Programa, pode-se perceber que os entraves

partidários, os jogos políticos locais e os discursos governamentais de cunho

populista e personalizado acabam, por vezes, dificultando a compreensão mais

ampla da política pública de SAN.

A análise contemporânea sobre a questão do alimento e da alimentação

contribuiu para que, no desenrolar da pesquisa, se compreendesse o discurso da

política de segurança alimentar, cujos princípios e pressupostos filosóficos

defendem o direito de as diferentes identidades culturais preservarem seus hábitos

alimentares, posturas essas revestidas de um referencial pedagógico-educativo, que

considera o político e o sociocultural não somente no espaço formal da escola, mas

pertinente a todos os processos sociais e culturais formativos e produtores de

saberes e identidades.

Considerando o ponto de vista assumido aqui, concorda-se com os

questionamentos à crença dominante no grande mercado dos alimentos e da

alimentação, de que a supervalorização da monocultura, o uso dos fertilizantes

químicos e o controle da natalidade são formas de solucionar o problema da fome,

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através de uma equação que correlaciona o aumento da produção de alimentos por

um lado e a redução da população por outro, sem questionar a questão da produção

da pobreza e da desigualdade social. Essa realidade, ao ser questionada nas

últimas décadas, abriu espaço para outros protagonismos, em que populações se

tornaram sujeito em busca de alternativas de produção e controle do alimento e,

assim, timidamente, começa a mudar a forma de pensar a alimentação e o alimento.

Movimentos rurais, como os relacionados à valorização da agricultura familiar, às

iniciativas de comercialização direta, aos grupos ligados à agroecologia e a

alternativas de agricultura são sinais desse protagonismo. Movimentos globais, por

exemplo, o Slow Food e as políticas públicas, entre as quais a SAN, também

indicam um rompimento do pensamento biologista da fome e a busca da qualidade

alimentar e passa-se a considerá-la também na dimensão política, social e cultural.

O processo de ruptura do pensamento biologista sobre alimento e

alimentação vem tendo uma grande contribuição dos movimentos sociais que

operam como um espaço pedagógico onde se encaminham e se discutem

problemas sociais cruciais, entre eles a alimentação. Ações que se efetivam através

dos movimentos altermundistas, por uma globalização alternativa, mostram que não

será simplesmente o aumento da produção de alimentos que resolverá o problema

da fome, pois ela está pautada na economia de mercado que reforça a desigualdade

social e comanda o desperdício de alimentos e o alimento não está sendo destinado

a quem precisa dele, mas aos que têm renda para adquiri-lo. Essa crítica é um dos

pressupostos do conceito de segurança alimentar que defende o direito ao alimento

e à alimentação em quantidade e qualidade desde a perspectiva da equidade social.

E, também, o discurso ilustrativo e escrito da cartilha, mas, em muitos momentos, a

mesma denota ordem e normatização do contexto e pouco evidencia as lutas pelo

poder inerente às sociedades democráticas.

A insegurança alimentar que paira como uma ameaça para a própria coesão

social aparece nos segmentos excluídos e é o foco das políticas públicas que, no

Brasil, operacionalizam-se através do PFZ que capacita os agentes através da

cartilha, e uma das ações é o PAA. Durante o período observado, o PAA, em

Canoas/RS, como parte deste estudo, demonstra que de certa forma a prática

desenvolvida no programa reproduz na proposta educativa o discurso da cartilha, ao

se desenvolver sem o apoio e acompanhamento do Conselho Municipal de

Segurança Alimentar e Nutricional na mobilização e fiscalização dos recursos,

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permanecendo periférico. De forma que tanto o descaso das ações do PFZ pelo

governo municipal quanto a ação resguardada do PAA pelo grupo com outra

ideologia a do poder municipal tem limitado a discussão em nível da sociedade mais

ampla e dificultado a ruptura do conceito de fome biológica e a construção junto à

população da noção de segurança alimentar. Isso é, a superação das expectativas

assistencialistas, por exemplo, a expectativa de receber cestas básicas e/ou cestas

de alimento para práticas de acesso ao alimento que afirmem o direito à alimentação

ainda não ocorre conforme o desejado pelo discurso do PFZ/PAA. Uma dificuldade

observada na formação de um saber-se cidadão e saber da cidadania das famílias

beneficiadas pelo programa, é que, muitas vezes, elas ainda esperam receber

alimentos e, em consequência, se apresentam pouco disponíveis para avançar em

ações afirmativas e autônomas – a capacitação profissional e a geração de trabalho

e renda.

A partir deste estudo, fica claro que a cartilha, quando utilizada pelos

programas, ainda funciona como um artefato com características de “manual”, que

dificulta a discussão e integração de esforços entre poder público e sociedade civil

no encaminhamento das mudanças estruturais e de ruptura do assistencialismo,

caracterizando a participação dos beneficiários em protestos, o que limita a

discussão das alternativas propostas pelos programas muitas vezes permeados

pelas ideologias. Mas, por outro lado, não se pode negar que as ações do PFZ

apresentam avanços no momento em que buscam comunicar-se com o poder

municipal e mapear necessidades locais53.

Ações que propõem a construção de alternativas geradoras de esperanças de

conquistar o alimento via trabalho, o que, muitas vezes, representa outras lutas – a

busca de movimentos que defendem a reforma agrária, a creche para os filhos,

entre outros. Outra questão importante do proposto na cartilha está relacionada ao

alimento como cultura no momento em que circula no PAA não é qualquer alimento,

mas aquele ligado às raízes culturais regionais, alimentos que movimentam

53 Como exemplo de comunicação com o poder municipal do PAA, no momento em que articula o movimento reivindicatório dos usuários na mobilização de creche, quando elaboram a lista com os nomes das crianças que aguardam o recurso e a colam na porta da Secretária Municipal de Assistência Social, como uma forma e mostrar seus direitos. Fato relatado no quinto capítulo desta dissertação. Também, os seminários, as palestras, os encontros como os que mais potencializam o deslocamento da questão do alimento: de necessidade biológica passa para o alimento como direito social e político, pois, no grande grupo se fortalece a busca pela cidadania versus a ideia de “esmola” para os que não possuem renda suficiente para adquirir o recurso pelo trabalho.

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segmentos igualmente excluídos do contexto de produção – o da pequena

agricultura familiar local, dos assentados, dos quilombolas, entre outros.

Neste estudo, a partir da temática do alimento e da alimentação, buscou-se

compreender a cultura alimentar como uma pedagogia cultural e o modo como a

cartilha produz diferentes sentidos produzidos neste campo, o modo com que se

vem tratando a sociodiversidade, a biodiversidade alimentar regional, e, os

diferentes movimentos sociais preocupados com a questão. Assim, intensificou-se o

esforço para entender os diferentes espaços onde o alimento é discutido como

cultura e como direito social, mais especificamente o modo com que a política

pública de SAN no Brasil e seus programas contribuem e se constituem como uma

pedagogia cultural na promoção da ideia de segurança alimentar. Para isso, os

Estudos Culturais contribuíram para pensar uma política pública, ao analisar as

representações culturais que nela circulam, dando visibilidade ao jogo de construção

e disputa e à possibilidade de evidenciar algumas das diferentes perspectivas

acionadas nessa realidade. Essas análises se constituem em perguntas que, ao

encontrar respostas, transformaram-se em novas perguntas na problematização das

representações culturais sobre alimentos e alimentação evidenciadas na cartilha do

FZ.

Entende-se, ainda, que, embora a total superação da condição de escassez

de alimentos e de direitos possa ser um objetivo muito pretensioso em uma

realidade ainda tão desigual, essa superação da escassez deve ser uma luta

constante e cotidiana do conjunto da sociedade, seja através de política de SAN

e/ou outras políticas e práticas sociais que venham ao encontro da valorização da

socio e biodiversidade cultural como formas de pensar a sustentabilidade social e

cultural do hoje e do futuro da humanidade.

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