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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO JAIR SOARES DE OLIVEIRA SEGUNDO HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL: neoconstitucionalismo e mitologia jurídica no automatismo do juiz NATAL/RN 2014

UNIVERSIDADE REGIONAL DE BLUMENAU · questões do mito e do automatismo demandam análise. Quando o magistrado assimila o mito do neoconstitucionalismo, ou quaisquer outros mitos

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

JAIR SOARES DE OLIVEIRA SEGUNDO

HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL: neoconstitucionalismo e

mitologia jurídica no automatismo do juiz

NATAL/RN

2014

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JAIR SOARES DE OLIVEIRA SEGUNDO

HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL: neoconstitucionalismo e

mitologia jurídica no automatismo do juiz

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Direito (PPGD) do Centro de

Ciências Sociais Aplicadas (CCSA) da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(UFRN), como requisito parcial para a obtenção

do título de Mestre em Direito.

Orientadora: Prof.ª Doutora MARIA DOS

REMÉDIOS FONTES E SILVA.

NATAL/RN

2014

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Catalogação da Publicação na Fonte.

UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA

Oliveira Segundo, Jair Soares de.

Hermenêutica constitucional: neoconstitucionalismo e mitologia jurídica no

automatismo do juiz / Jair Soares de Oliveira Segundo. - Natal, RN, 2014.

207 f.

Orientadora: Profa. Dra. Maria dos Remédios Fontes e Silva.

Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do

Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pós-graduação em

Direito.

1. Direito – Dissertação. 2. Hermenêutica - Dissertação. 3. Interpretação das leis

- Dissertação. 4. Neoconstitucionalismo – Dissertação. I. Silva, Maria dos

Remédios Fontes e. III. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/BS/CCSA CDU 340.132.6

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Dedico ao meu pai

José Galdino de Oliveira Filho

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, a minha família e aos meus amigos pelo apoio e paciência,

especialmente aos amigos Agostinho, Alexsandro, Charles, Delana, Jeannine, Melissa, Regina

e Wênya, como também agradeço à minha amiga Alzira, que já se ofereceu para ser minha

“madrinha de mestrado” e que acompanha meu desenvolvimento há longo tempo.

Agradeço à professora Maria dos Remédios Fontes e Silva pela orientação eficiente,

pela presença constante e pelo apoio e confiança no transcurso desses dois anos intensos de

aprendizagem, que tanto contribuíram para minha formação acadêmica. A essa minha

orientadora, o meu integral reconhecimento, admiração e carinho.

Agradeço aos professores Morton Luiz Faria de Medeiros, Edilson Pereira Nobre

Júnior, e Fábio Bezerra dos Santos pelas lições iniciais da cultura jurídica e pela maravilhosa

energia com que marcaram e continuam a marcar meus passos.

Agradeço aos professores Marconi Neves Macedo e Ailsi Costa de Oliveira pelo

incentivo para participar da seleção do mestrado, e à professora Lorena Neves Macedo pela

viabilidade recursal da aprovação. Ao mesmo tempo, agradeço aos professores José Diniz de

Morais e Otacílio dos Santos Silveira Neto pelo sucesso do meu projeto nessa seleção.

Agradeço às professoras Elaine Cardoso de Matos Novais Teixeira e Anna

Emanuella Nelson dos Santos Cavalcanti da Rocha pelas dicas iniciais de organização para o

bom andamento da dissertação de mestrado, bem como ao professor Yanko Marcius de

Alencar Xavier pelas dicas de escrita eficiente da dissertação.

Agradeço ao professor Marco Bruno Miranda Clementino pela inspiração da ideia de

automatismo do juiz, publicada em artigo pelo professor, e ideia sobre a qual edifiquei o tema

final da dissertação.

Agradeço ao professor Ivan Lira de Carvalho pelos ensinamentos de leveza na

conexão entre o belo e o justo; e ao professor Francisco Barros Dias pelas aulas banhadas em

regionalismos e autenticidade.

Agradeço à amiga Kaynara Alves da Silva Miranda pela ajuda na construção do

abstract, e também por ela ser uma verdadeira bênção de Deus a todos os que temos a

felicidade e a honra de sermos seus amigos.

Agradeço pelos ensinamentos, respeito e carinho aos professores do mestrado Maria

dos Remédios Fontes e Silva, Erick Wilson Pereira, Artur Cortez Bonifacio, Yara Maria

Pereira Gurgel, Leonardo Martins e Raymundo Juliano Rego Feitosa.

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Agradeço aos amigos mestrandos que somaram sensivelmente meus conhecimentos.

O intenso aprendizado pelo convívio, a acolhida amiga a amainar o peso das disciplinas, o

sorriso carinhoso a afastar a dureza do percurso, tudo o que engrandece a experiência

maravilhosa de vida e conhecimento.

Bem, o valor das instituições está nas pessoas, e esse valor passa a compor nossos

caracteres e norteiam e preenchem de sentido nossos trabalhos, nosso convívio, nossa vida. Se

há para mim um fruto de valor no percurso acadêmico até aqui, a justificar todo o meu

reconhecimento e agradecimento, ele está nas marcas firmadas pelos olhares, pelos sorrisos,

pelo calor humano, pelos ensinamentos e exemplos morais de cada estudante, professor,

servidor. A Instituição são as pessoas que lhe emprestam a força vital e é assim que tenho a

agradecer à Universidade Federal do Rio Grande do Norte pela experiência de um mestrado

cheio de vida e sentimentos, e que segue a uma graduação de igual dignidade!

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“Se uns mitos são alvas verdades do espírito, outros

são mesmo erro ou ilusão”.

(Paulo Ferreira da Cunha)

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RESUMO

Elabora-se estudo de hermenêutica constitucional que envolve neoconstitucionalismo e

estruturas míticas da realidade jurídica em face do automatismo judicial. Utiliza-se de método

dialético em estudo teórico-descritivo de base documental. Busca analisar se há relação entre

mitos jurídicos e automatismo do juiz na interpretação constitucional, bem como procura

identificar se a mitificação do direito e o automatismo judicial influenciam o exercício da

jurisdição pelo magistrado. Constata-se que há diferença entre interpretação constitucional e

interpretação da Constituição, bem como que inexiste especificidade da interpretação

constitucional em relação à interpretação jurídica. Comprova-se que os marcos histórico,

filosófico e teórico do neoconstitucionalismo perdem seu sentido quando submetidos a

apreciação crítica. Demonstra-se que a realidade jurídica decorre de processo mítico, no

sentido de uma representação da realidade através da verdade compartilhada na crença e

disseminada nos mitos, tal qual ocorre nos mitos da força normativa da constituição e do

sentimento constitucional. Identifica-se a relação implicação recíproca entre mitos jurídicos e

automatismo do juiz, além de verificar que o magistrado atua com automatismo não apenas

quando se conforma em ser o juiz boca da lei, mas também quando torna-se juiz boca do

juízo, quer do juízo pessoal subjetivo, quer do juízo Institucional do Judiciário. Verifica-se

que, uma das nuanças dos mitos está na representação de uma construção social

compartilhada que descreve a realidade cultural circundante através das normas jurídicas e,

nesse sentido, os mitos jurídicos são histórias com fundamento em verdades que merecem

confiança, mas que, por outro lado, há mitos que atuam contra a normatividade positivada,

como o mito do neoconstitucionalismo. Conclui-se que é imprescindível ao magistrado

perceber que trabalha com mitos, compreender o processo de atuação e difusão dos mitos, e

atuar de forma comprometida com sua atividade em benefício da sociedade, evitando incidir

em automatismos de pensamento e ação, haja vista que o constitucionalismo é síntese de

mudança (para adequar-se ao tempo vivencial) e permanência (para salvaguardar seu núcleo

primordial) e precisa de um magistrado em estado de vigília para operar adequadamente a

perspectiva de um direto de Estado democrático.

Palavras-chave: Hermenêutica constitucional. Neoconstitucionalismo. Mito. Automatismo.

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ABSTRACT

It elaborates the study of constitutional hermeneutics involving neoconstitutionalism and

mythic structures of legal reality in face of court automation. It uses the dialectical method in

theoretical and descriptive study of a documentary base study. It searches to analyze if there is

any relation between the legal myths and the judge’s automatism in the constitutional

interpretation, also tries to identify if the law’s mythologizing and the judicial automatism

gives some influence over the exercise of jurisdiction by the magistrate. It is noted that there

are differences between constitutional interpretation and the interpretation of the Constitution,

as well as there is no specificity from the constitutional interpretation in relation to the

juridical interpretation. It is proved that the historical, philosophical and theoretical marks

from neoconstitutionalism lose their sense when submitted to a critical appraisal. It is shown

that the legal reality stems from the mythical process, towards a representation of reality

through the truth of shared belief and disseminated by the myths, as occurs in the myths of the

normative force of the constitution and the constitutional sentiment. Identifies the reciprocal

relationship between legal implication myths and the automation of the judge, and verifies

that the magistrate acts in an automatic way not only when he conforms in being the mouth of

law but also when he becomes the mouth of judgment, either from a subjective personal

judgment or the Judicial Institutional judgment. It is also noted that one of the myths nuances

is in the representation of a shared social construction depicting the surrounding cultural

reality through the legal rules and, accordingly, the legal myths are stories with ground truths

that can be trusted, but, on the other hand, there are myths that work against the positive

normativity, as the myth of neoconstitutionalism. We conclude that it is essential for the

magistrate to realize that he is working with myths, to understand the process of action and

dissemination of myths, and to act in a compromised way in the society’s benefit, avoiding

the focus on automation of thought and action, considering that constitutionalism is the

synthesis of change (to suit the experiential time) and permanence (to safeguard its primary

core) and in need of a magistrate in a state of wakefulness to properly operate the prospect of

a direct democratic State.

Keywords: Constitutional hermeneutics; Neoconstitutionalism; Myth; Automatism.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 11

2 INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL .................................................................. 18

2.1 INTERPRETAÇÃO COMO HERMENÊUTICA .......................................................... 20

2.2 CONCEITO MODELO DE CONSTITUIÇÃO.............................................................. 24

2.3 ESPECIFICIDADES DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL .......................... 28

2.4 MODELOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL ......................................... 34

3 NEOCONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO ......................................................... 41

3.1 TIPOS DE NEOCONSTITUCIONALISMO ................................................................. 43

3.2 INTUITO DO NEOCONSTITUCIONALISMO ............................................................ 46

3.3 IMPORTAÇÃO DO NEOCONSTITUCIONALISMO PARA O SISTEMA JURÍDICO

BRASILEIRO ........................................................................................................................... 49

3.4 MODELO BRASILEIRO E SUA CONTESTAÇÃO .................................................... 52

3.5 PRIMEIROS NEOCONSTITUCIONALISTAS BRASILEIROS ................................. 63

3.6 PARADIGMA DO CENÁRIO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL ....................... 69

4 MITIFICAÇÃO DA REALIDADE JURÍDICA .......................................................... 78

4.1 FICÇÃO JURÍDICA COMO ESPETÁCULO DA REALIDADE ................................. 78

4.2 ALEGORIA DA CAVERNA E O MUNDO DOS SENTIDOS .................................... 80

4.3 ESTRUTURA DO MITO COMO VEROSSIMILHANÇA E A SIMULAÇÃO DA

REALIDADE ........................................................................................................................... 92

4.4 CONSTITUIÇÃO COMO SIMULACRO .................................................................... 102

4.5 MITO DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO ......................................... 108

4.6 MITO DO SENTIMENTO CONSTITUCIONAL ....................................................... 117

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5 AUTOMATISMO JUDICIAL E A PAUSA PARA REFLETIR .............................. 127

5.1 APROXIMAÇÃO AO CONCEITO DE REFLEXÃO CRÍTICA ................................ 127

5.2 JUÍZES CIDADÃOS NA CRENÇA SOCIAL ............................................................. 131

5.3 JUÍZES MITOLÓGICOS DA FICÇÃO JURÍDICA .................................................... 136

5.4 JUIZ AUTÔMATO NA LINHA DE PRODUÇÃO DO DIREITO ............................. 141

5.5 REFLEXÕES A PARTIR DA FICÇÃO CIENTÍFICA ............................................... 148

6 PROPOSTAS PARA AFASTAR O AUTOMATISMO DO JUIZ ........................... 158

6.1 COMPROMETIMENTO DO JUIZ ATRAVÉS DA REFLEXÃO .............................. 158

6.2 NEM O JUIZ É MESSIAS NEM A CONSTITUIÇÃO A SALVAÇÃO .................... 161

6.3 MITIFICAÇÃO SADIA PARA O DIREITO ............................................................... 164

6.4 DESMITIFICAR PARA PERCEBER O MITO ........................................................... 167

6.5 PERCEBER O TRABALHO DE SÍSIFO NA ROTINA DA VIDA ............................ 170

6.6 AUTOMATISMO DO JUIZ BOCA DO JUÍZO .......................................................... 173

6.7 MITIFICAR É COMO PERCEBER QUE A VIDA NÃO BASTA ............................. 175

6.8 CONSTITUIÇÃO MUDA SEM MUDAR DE IDENTIDADE ................................... 177

6.9 METÁFORA DO RIO, A MUDANÇA E A PERMANÊNCIA .................................. 179

7 CONCLUSÃO ............................................................................................................... 182

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 192

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1 INTRODUÇÃO

Estudar os influxos entre mitos e automatismos na seara da interpretação judicial é

essencial nem tanto para aprovar ou reprovar o conteúdo dessa dialética, mas sim para

propiciar uma análise crítica do tema, de onde se busca obter apreensão de sentidos tanto da

realidade jurídica percebida pelo juiz quanto dos perigos de processos de mitificação e

automatismos.

Portanto, é de suma importância o estudo dos automatismos de pensamento no

âmbito das relações humanas. Na seara jurídica a relevância segue o mesmo rumo, e as

questões do mito e do automatismo demandam análise.

Quando o magistrado assimila o mito do neoconstitucionalismo, ou quaisquer outros

mitos jurídicos, sua percepção das realidades jurídica e vivencial passam a ser informadas

pelo mito. Do mesmo modo, quando um juiz atua com automatismo, o alheamento quanto ao

sentido de suas ações configura um processo onde se evidencia a ausência de reflexão.

Refletir sobre as estruturas míticas da realidade jurídica em interação com a noção de

automatismo judicial é tarefa produtiva no âmbito dos estudos da hermenêutica constitucional

e do neoconstitucionalismo. É nessa área da interpretação onde a descrição das realidades do

direito e do mundo real melhor se conectam.

Daí que, nesse início de século XXI, estudos jurídicos de todas as áreas do direito

manifestem interesse na abordagem de temas de interpretação constitucional e

neoconstitucionalismo, quer em obras ou capítulos separados quer em tópicos inseridos nas

análises das matérias. O espaço de análises das possibilidades de construção da norma, por via

da interpretação constitucional, e o poder de decisão que caminha na linha tênue da percepção

e da atuação do intérprete confluem para o interesse nesse campo.

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A relevância da interpretação constitucional aumenta a partir da segunda metade do

século XX por motivo da tragédia humana ocorrida na Segunda Guerra Mundial. A partir

dessa época, uma profusão de técnicas e métodos hermenêuticos tomam para si a função de

viragem ou transformação do positivismo de base legal para uma nova teoria centrada no

ideal de justiça.

Essas inovações hermenêuticas passam a integrar o que se convencionou chamar de

pós-positivismo, que traz consigo a ideia de superação ou ultrapassagem do positivismo

jurídico ou juspositivismo.

O pós-positivismo e suas diretrizes de racionalidade jurídica voltadas à justiça,

essencialmente estruturadas em princípios e ponderação e na ideia de conexão entre direito e

moral, constituem a base do movimento que recebeu o nome de Neoconstitucionalismo já na

última década do século XX.

As lacunas e imprecisões do direito somados à elasticidade e vagueza da novel

interpretação neoconstitucional vão incidir num elevado nível de indeterminação normativa e,

por via de consequência, acabam por interferir na esfera da hermenêutica.

A partir daí, do desenvolvimento teórico e vivencial dessas ideias pós-positivistas ou

neoconstitucionais, aumenta-se sensivelmente a preocupação dos juristas com os limites

hermenêuticos a serem impostos à nova postura de interpretação constitucional.

Assim, a desconfiança nos juízes renasce ainda mais forte do que a que teve lugar no

início do constitucionalismo moderno. Ao lado do intérprete judicial que pode tudo, o direito

pode nada.

Em contraponto ao juiz boca da lei de ontem, que decidia com base exclusiva no

texto legal, tem-se hoje o juiz boca do juízo que dita decisões mais com base em suas

convicções pessoais (juízo individual) e nas convicções da Jurisdição (juízo institucional) do

que, propriamente, nas normas do ordenamento jurídico.

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A racionalidade e a razoabilidade das interpretações neoconstitucionais por

intermédio de princípios e regras constitucionais, em dada medida, podem ser contrastadas

com as nuanças da determinação do belo, da beleza e sua estética através das obras

cinematográficas tal qual o filme “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin.

Nesse sentido, com base em “Tempos Modernos”, o automatismo representado na

ação repetitiva de apertar parafusos com um chave inglesa imaginária pode vir a servir de

suporte para a análise da imersão do juiz nas rotinas cíclicas das atividades da magistratura.

Uma vez que a vida imita a arte e a arte imita a vida, é certo afirmar que as

possibilidades de conexões entre o belo e o justo auxiliam na compreensão das interações

entre a arte cinematográfica e o direito, ainda mais por que tanto o cinema e quanto o direito

descrevem realidades próprias inspiradas na realidade social cotidiana.

É certo que no Brasil e no mundo há diversos trabalhos jurídicos que versam sobre

interpretação constitucional, neoconstitucionalismo, evolução do constitucionalismo no pós-

guerra, e mesmo sobre conexão entre direito e cinema, mas, contudo, os objetos de estudo

dessas pesquisas tendem a centrar foco nas características fenomênicas desse novo estágio

constitucional ou, então, na discussão da propriedade ou não de caracterização desses recentes

mananciais de ideias enquanto merecedor do prefixo “neo”, ou seja, como representação de

um novo constitucionalismo.

Que há um constitucionalismo renovado ante as mudanças histórico-sociais das

últimas cinco a sete décadas isso é fato. Um estudo que venha a revelar essa constatação será

de pouca utilidade, bem como o será qualquer estudo que cinja-se a exaltar tal rumo de

acontecimentos na linha de tempo do constitucionalismo.

Por outro lado, uma pesquisa que saia um pouco da linha do óbvio, em que pese os

riscos de qualquer tentativa de inovação, vem a ser do interesse na discussão,

desenvolvimento e aperfeiçoamento das ideias.

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Uma vez que limitação de poderes e garantia de direitos constituem a base do

moderno conceito de Constituição, e tendo em vista que o estudo das estruturas míticas do

direito contribuem para evidenciar o modelo de percepção constitucional que perpassa no

imaginário vivencial das pessoas intérpretes constitucionais que vivem a sociedade, é de se

perceber, por conseguinte, que a conformação material da Constituição, sua legitimidade,

eficiência, eficácia e efetividade passam pela emancipação mítica da esfera jurídica nas

interseções da construção cultural da sociedade na qual a Constituição está imersa.

A limitação de poderes está presente no constitucionalismo liberal do século XVIII e,

não por acaso, é um dos pilares de sustentação da política e do direito até os dias atuais. É na

garantia do equilíbrio entre os poderes do Estado que reside um dos mais importantes pilares

da salvaguarda dos direitos fundamentais, haja vista que a limitação de poderes serve de

instrumental para evitar os desmandos do arbítrio dos espíritos e do abuso das vontades em

desvalia dos direitos.

Como o direito é uma construção social no seio da cultura e, nesse sentido, perfaz

uma realidade jurídica com existência interligada à sociedade que lhe informa a origem e

razão de existência, é de se perceber que o transitar da realidade vivencial cotidiana para a

realidade técnico-jurídica do direito leva em conta o poder de estabelecimento de pontes entre

distintas realidades.

Essa temática de planos distintos de realidade demanda, ao menos, uma breve análise

da alegoria da caverna de Platão, do demônio enganador de Descartes e da máquina de

experiências de Nozick. A partir daí, é preciso estabelecer um conceito de mito por

intermédio de sua análise estrutural para distinguir, de forma mais ampla, entre mitos com

função de descrever realidades e mitos no sentido de fábula, invenção, ficção ou engodo.

Uma das nuanças dos mitos está na representação de uma construção social

compartilhada que descreve a realidade cultural circundante e, neste sentido, são histórias

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com fundamento em verdades que merecem confiança, e é essa a nuança que será

desenvolvida como perspectiva benéfica.

Em continuidade, as ideias de simulacro e simulação de Baudrillard fecham o

conjunto de perspectivas teóricas sobre a discussão do limite entre o real e o aparente. A

realidade do direito e o modo como é percebida a sua origem e realidade importam na

percepção do intérprete constitucional.

Um outro aspecto juridicamente relevante para a temática da percepção da realidade

está no fato de que essa atitude de crença no real e no aparente servem de base às estratégias

de sobrevivência dos mitos políticos modernos – tal qual os mitos decorrentes dos

totalitarismos do período entre Guerras Mundiais – e que, ressalvadas as especificidades,

podem servir de parâmetro ao estudo dos mitos jurídicos contemporâneos.

Limitação de poderes, percepção da realidade e automatismo podem interagir entre si

e, nesse sentido, derivar mitos jurídicos modernos tal qual o mito do neoconstitucionalismo. A

palavra mito aí com o sentido de história ou crença verossímil, e não no sentido de fábula,

invenção, ficção ou engodo como sobressai dos mitos políticos modernos fabricados pelos

totalitarismos no período entre Guerras Mundiais, no século XX.

O mito do neoconstitucionalismo, embora banhado na crença de realidade normativa,

incide em ciclo de legitimação fictícia do poder, onde funciona como antena de captação e

difusão de ideias míticas que se cristalizam no imaginário dos juristas e, com base nisso, a

legitimação jurídica passa a ser nada mais que justificação circular produzida a partir do mito

e que remete de volta a este.

No que diz respeito à estruturação do presente trabalho, os capítulos dois e três

traçam perspectivas básicas no que concerne à interpretação constitucional e ao

neoconstitucionalismo, respectivamente.

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A parte conceitual desses dois capítulos é desenvolvida com base na doutrina jurídica

recente onde, percebe-se, tanto a interpretação constitucional quanto o neoconstitucionalismo

contam com interessantes perspectivas críticas. De um lado, com a distinção entre

interpretação constitucional e interpretação da Constituição, e as formulações quanto a uma

interpretação especificamente constitucional; de outro lado, já em âmbito da crítica brasileira,

a desconstrução das bases estruturais do neoconstitucionalismo, onde os três marcos do

neoconstitucionalismo brasileiro de acordo com a visão de Luís Roberto Barroso são

repensados criticamente, e afastados um após outro.

No capítulo quatro, procura-se firmar as bases conceituais e filosóficas das noções

sobre planos de realidade, estruturas míticas, simulacro e simulação. Após essa etapa, é

elaborada uma análise de mitos típicos do imaginário jurídico, no caso, análise de dois mitos

que se conectam fortemente: o mito da força normativa da Constituição e o mito do

sentimento constitucional.

Quanto ao quinto capítulo, esse provê um exame do automatismo judicial a partir do

resgate das ideias sobre percepção de realidade e sua influência na estruturação das crenças

míticas que passam a tomar conta do imaginário e da atuação do juiz quando da interpretação

e aplicação do direito no plano da realidade factual.

A estreita ligação entre consciência e inteligência pode ditar novos rumos no estudo

das estruturas míticas do direito e contribuir para desvendar o estágio de fixação dos

automatismos. Enquanto a inteligência encaminha os processos de decisão, a consciência dita

o estado de entendimento de estar e atuar no mundo. Dessa forma, o estado de consciência – e

não o nível de inteligência – é que diz respeito ao nível de incidência de automatismo.

Em contraponto ao superado juiz boca da lei, elabora-se o conceito de juiz boca do

juízo. Tanto um quanto o outro modelo de juiz caracterizam-se pelo potencial de atuação

danosa, num caso por um automatismo determinado unicamente pelo texto legal; noutro caso,

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pelo automatismo proveniente da razão individual do juiz ou da razão institucional do

Judiciário. Portanto, em ambos os casos, com prejuízo ao direito e à sociedade.

A literatura jurídica é carente de análises que tratem da posição do juiz nesse

ambiente de mudanças onde tem lugar o mito do neoconstitucionalismo. Os autores que

atuam nessa seara concentram esforços na descrição de metodologias, métodos e processos

interpretativos, bem como na interferência das ideologias e estados psíquicos nos processos de

tomada de decisões jurídicas. Todavia, passam em branco no que diz respeito ao exercício da

atividade judicial permeada de automatismos e irreflexões quando da interpretação e

aplicação do direito.

Para finalizar, o capítulo sexto elabora propostas para afastar o automatismo do juiz,

momento no qual são trabalhadas ideias do desenvolvimento da percepção da realidade

factual em meio ao ambiente mítico do direito. Nesse capítulo, são ao todo nove ideias que

apuram o modo como o juiz situa-se perante os mitos e ritos que compõem a atuação teórico e

prática do direito na sociedade complexa contemporânea.

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2 INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

A interpretação constitucional apresenta peculiaridades face à interpretação jurídica,

é dizer, na contemporaneidade a interpretação das normas da Constituição possui status

diferençado da interpretação das demais normas do ordenamento.

Nem sempre ocorreu assim, a interpretação constitucional era pensada enquanto

interpretação da norma jurídica e era isto suficiente. Entretanto, é bem certo que, pelo menos

a partir do século XIX, esse cenário vem em transformação. A advertência do juiz John

Marshall, em McCulloch vs. Maryland de 1819, indica precisamente nesse sentido ao dizer

“não esqueçamos que é uma Constituição o que estamos interpretando”.1

E isso não sem motivo. As constituições dos Estados de nosso tempo, além da

dimensão jurídica2, possuem uma dimensão política inerente, o que se conecta de forma

prevalente a dois polos de tensão: os direitos fundamentais e a divisão de poderes.3

Na parte dos direitos fundamentais, essa dimensão política envolve as políticas

públicas relativas a direitos fundamentais sociais – seu desenvolvimento, sua garantia, sua

efetivação – e, bem assim, as correlacionadas à proteção das minorias ou grupos vulneráveis,

notadamente no resgate de direitos historicamente negados ou violados.

É nessa perspectiva política da Constituição que se impõe o questionamento de se o

direito deve servir apenas a uma convivência pacífica na comunidade4 ou, de outra forma,

1 MARSHALL, John. In: M'Culloch vs. State of Maryland, 17 U.S. 316 (1819). FindLaw, Supreme Court.

Disponível em: <http://laws.findlaw.com/us/17/316.html>. Acesso em: 01 jun. 2013. Textualmente: “In

considering this question, then, we must never forget that it is a constitution we are expounding”. 2 Nesse sentido, Eduardo Garcia de Enterria afirma: “la Constitución no sólo es una norma, sino precisamente la

primera de las normas del ordenamiento entero, la norma fundamental, lex superior”. GARCIA DE ENTERRÍA,

Eduardo. La constitución como norma y el tribunal constitucional. 3.ed. Madri: Civitas, 1994. p. 49. 3 DECLARAÇÃO DE DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO, DE 1789. Art. 16.º “A sociedade em que

não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”.

Biblioteca virtual de direitos humanos, Universidade de São Paulo. Disponível em:

<http://www.direitoshumanos.usp.br>. Acesso em: 6 jun. 2013. 4 Presente no direito brasileiro a ideia de processo como instrumento a serviço da pacificação social. Cf.:

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria

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19

deve servir para modificar, transformar, a realidade social com base em ideais de justiça.5 Daí

a dizer-se que a Constituição necessita de uma interpretação especial, uma hermenêutica

especificamente constitucional, uma vez que ela Constituição figura como ponte de integração

entre o jurídico e o político.6

Quanto à divisão de poderes, a linha tênue do espaço das atribuições e deveres-

poderes institucionais funciona como uma balança de três pratos, de forma a representar o

equilíbrio entre Executivo, Legislativo e Judiciário ante a ideia de freios e contrapesos.

As dimensões jurídica e política constituem apenas um ponto de partida para o

estudo da interpretação constitucional. Aspectos relacionados à plurissignificação dos termos

“interpretação” e “constituição”, discussões sobre o espaço de atuação do Judiciário na

determinação de políticas públicas, reflexões sobre a legitimidade democrática dos juízes e

sobre os limites de racionalidade na objetivação de controles hermenêuticos de suas decisões,

a participação popular como intérpretes constitucionais, a abertura de espaços de discussão

em audiências públicas perante o Supremo Tribunal Federal são fatores que delineiam a

complexidade da interpretação constitucional.

Antes de iniciar, propriamente, o estudo da interpretação constitucional, tendo em

vista as possibilidades plurissignificativas dos termos “interpretação” e “constituição”, há

necessidade de uma delimitação conceitual desses referidos termos para, após isso, evoluir

nos tópicos que seguem.

geral do processo. 24.ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008. p.47. No sentido de que a ordem jurídica

“significa paz, segurança e bem-estar para todos na comunidade”: FAGUNDES, Miguel Seabra. A legalidade

democrática. Recife: OAB-PE, 1970. p. 22. Também em Portugal é presente essa ideia de paz: “Aí [nos

Tribunais] tem de se alcançar a pacificação de muitos conflitos que surgem entre as pessoas”. SAPATEIRO,

José Eduardo. Ser Juiz Hoje. In: RANGEL, Rui (Coord.). Ser juiz hoje. Coimbra: Almedina, 2008. p. 28. 5 CARBONELL, Miguel. Prólogo. In: GUASTINI, Riccardo. Teoría e ideología de la interpretación

constitucional. Trad. de Miguel Carbonell y Pedro Salazar. 2.ed. Madri: Trotta, 2010. p. 15. 6 MEDEIROS, Morton Luiz Faria de. A missão política do Supremo Tribunal Federal: análise de sua

importância como Corte Constitucional para o controle do poder no Brasil. 2006. 124f. Dissertação (Mestrado

em Direito) – Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2006.

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20

2.1 INTERPRETAÇÃO COMO HERMENÊUTICA

A metáfora de Hermes – que dá origem ao termo hermenêutica, do grego

nermeneuein – conta a história de como as mensagens divinas chegavam aos mortais e, assim,

é que Hermes procede uma intermediação, através da interpretação das mensagens, para fazer

conhecer o que não pode ser conhecido diretamente pelo homem.7

Se, de um lado, a diferença entre hermenêutica e interpretação parece não mais

importar;8 doutro lado, pode-se afirmar que sua distinção possui utilidade: a hermenêutica

apreendida como “teoria científica da arte de interpretar”.9

No sentido da distinção entre hermenêutica e interpretação, Celso Ribeiro Bastos

afirma que “a Hermenêutica é a responsável pelo fornecimento de subsídios e de regras a

serem utilizados na atividade interpretativa”.10

Interpretar parte da necessidade de compreender e, no entanto, tão natural e

espontâneo esse uso da interpretação que “não raro, dela não nos apercebemos, ou dela não

apreendemos todos os caracteres, à semelhança do homem, que extrai do ar, mesmo sem o

enxergar ou sentir, a base provisional de sua vida”. 11

E para compreender o próprio sentido de

“interpretação” é necessário partir das suas ambiguidades semânticas.

7 STRECK, Lenio Luiz. Apresentação. In: TRIBE, Laurence; DORF, Michael. Hermenêutica constitucional.

Trad. de Amarílis de Souza Birchal. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. xviii. 8 Miguel Reale, em nota de rodapé, assevera: “parece-me destituída de significado a antiga distinção entre

‘hermenêutica’, como conjunto de processos ou regras de interpretação, e esta como aplicação daquela. Trata-se

de uma distinção de escolasticismo abstrato que não atende à natureza necessariamente concreta do ato

interpretativo, inseparável dos maios dialeticamente ordenados à consecução dos fins”. REALE, Miguel. O

direito como experiência. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 238. 9 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 1.

10 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3.ed. rev. e ampl. São Paulo: Celso

Bastos editor, 2002. p. 34. Em sentido semelhante, defendendo a distinção entre hermenêutica e interpretação,

cf.: BATISTA, Francisco de Paula. Compendio de hermeneutica juridica. Recife: Typ. Commercial de

Geraldo Henrique de Mira & C., 1860. p. 5. 11

MEDEIROS, Morton Luiz Faria de. A missão política do Supremo Tribunal Federal: análise de sua

importância como Corte Constitucional para o controle do poder no Brasil. 2006. 124f. Dissertação (Mestrado

em Direito) – Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2006.

p.10.

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21

Uma primeira distinção de ambiguidades deve ser feita em relação às interpretações

en abstrato e in concreto. O termo “interpretação” pode ser entendido como atribuição de

significado a um texto jurídico-normativo – onde se tem a interpretação en abstrato – ou

especificação e qualificação jurídica diante de um fato concreto – a interpretação in

concreto.12

Enquanto a interpretação en abstrato permite o tratamento de questões interpretativas

no âmbito das normas jurídicas isoladas ou em interação com o sistema, a interpretação in

concreto indica para a ideia de ato interpretativo como ato nunca dissociado do ambiente

vivencial. Em síntese, interpretar en abstrato significa identificar a(s) norma(s) tomando por

base um enunciado normativo, onde essas construções de sentido ficariam previamente

estabelecidas para serem utilizadas no processo de subsunção de fatos a normas; e interpretar

in concreto, subsumir um fato concreto à norma decorrente da interpretação en abstrato –

noção antiga – ou interpretar tão somente diante de um fato concreto e utilizando-se de pre-

compreensões na construção da norma interpretativa.

Acrescente-se a essas duas formas de interpretação pelo menos duas espécies de

indeterminação do direto: uma relativa ao sistema de normas e outra em relação à norma

isoladamente tratada.

Quanto à indeterminação do sistema, esta reside na indefinição de qual norma está

em vigor, por exemplo: a) um texto T expressa uma norma N1 ou N2? b) um texto T expressa

uma norma N1, mas também uma N2? c) um texto T expressa uma norma N1, mas esta

implica também uma N2? d) um texto T expressa uma norma N1, mas esta é derrotável?13

12

GUASTINI, Riccardo. Teoría e ideología de la interpretación constitucional. Trad. de Miguel Carbonell y

Pedro Salazar. 2.ed. Madri: Trotta, 2010. p. 29-30. 13

Por “derrotável”, entenda-se uma norma sujeita a exceções não visíveis prima facie.

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22

Além disso, a escolha do método interpretativo e a dogmática jurídica de suporte

podem direcionar a interpretação, ou seja, nem sempre a “falha” que determina a

indeterminação está nos enunciados normativos.

Em relação à indeterminação da norma, esta indeterminação ou vagueza é de caráter

natural que deflui da linguagem geral – e não apenas jurídica – e, se não pode ser suprimida

por técnicas interpretativas ou dogmática jurídica, vez que é da própria linguagem essa

indeterminação, pode ser reduzida por intermédio de definições. 14

A segunda ambiguidade do termo interpretação reflete o fato de que esse termo pode

significar ato de conhecimento, ato de decisão ou ato de criação normativa.15

Nesse sentido,

identificar, eleger e criar (ou elaborar) são, respectivamente, os verbos que especificam as

relações entre interpretação e significados.

Assim, temos: interpretação cognoscitiva que identifica as significações possíveis de

um texto jurídico; interpretação decisória que elege um desses significados possíveis;

interpretação criativa que cria um significado novo, diverso dos significados identificáveis.

Dessas, a interpretação decisória e a criativa são permeadas por opções políticas, enquanto

que a cognoscitiva, em tese, atuaria com cientificidade.

A interpretação judicial é um ato de conhecimento (teorias cognoscitivas) ou um ato

de vontade (teorias ascéticas)? Como um ato de conhecimento, a interpretação está voltada a

descobrir o verdadeiro significado do enunciado normativo.16

14

Discussão abstraída de: GUASTINI, Riccardo. Teoría e ideología de la interpretación constitucional. Trad.

de Miguel Carbonell y Pedro Salazar. 2.ed. Madri: Trotta, 2010. p. 30-34. 15

Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 7.ed. São Paulo: Martins

Fontes, 2006. cap. VIII. 16

Lembra en passant o que diz Montesquieu ao afirmar que o juiz seria o boca da lei, nos seguintes termos: “os

juízes da nação são apenas, como dissemos, a boca que pronuncia as palavras da lei; seres inanimados que não

podem nem moderar a força nem o rigor dessas palavras”. MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Do

espírito das leis. Trad. de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2010. p. 175. E Montesquieu diz

ainda mais precisamente: “Nos Estados monárquicos, há uma lei; e onde tal lei é precisa, o juiz a segue; onde

não o é, ele procura descobrir o seu espírito. No governo republicano, é da natureza da constituição que os juízes

sigam a letra da lei” (cf. p. 92).

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23

Daí, para as teorias cognoscitivas, há tão somente uma interpretação verdadeira. A

função judicial, precisamente, constituir-se-ia em poder nulo.17

Atualmente, entretanto, já não

é assim com as teorias cognoscitivas. Admite-se a textura aberta da linguagem normativa e,

com isso, a nova teoria cognoscitiva nos diz de casos fáceis e casos difíceis.

Nos casos fáceis ou claros18

haveria uma simples subsunção do caso à norma; nos

difíceis ou duvidosos, admite-se a decisão como ato de vontade19

e, por tanto,

discricionariedade do intérprete. Mas essa teoria cognoscitiva atual nos fala da interpretação

in concreto – frente a casos – e não da interpretação en abstrato.

Já o asceticismo realista encara a interpretação desde a en abstrato, como ato de

vontade do intérprete, toma-se a sério a equivocidade e vaguedade da linguagem normativa,

pois antes da interpretação o texto normativo não teria sentido normativo definido que

pudesse ser objeto de cognição, mas sim a partir da interpretação é que se inicia essa

objetivação de normas aos enunciados normativos, onde ao intérprete caberia escolher um

entre os significados possíveis. 20

Some-se a isso a riqueza das situações reais do ambiente que

tornam possíveis novas interpretações à medida que os fatos tomam novas configurações. 21

Ainda, de acordo com Riccardo Guastini, 22

há três oposições a considerar em

matéria de interpretação: a) uma ideologia estática e uma dinâmica, a primeira recomenda

uma interpretação estável, fixa, constante; a outra, uma interpretação adaptativa ou evolutiva,

17

GUASTINI, Riccardo. Teoría e ideología de la interpretación constitucional. Trad. de Miguel Carbonell y

Pedro Salazar. 2.ed. Madri: Trotta, 2010. p. 39. 18

Cf. MEDEIROS, Morton Luiz Faria de. A clareza da lei e a necessidade de o Juiz interpretá-la. Revista de

Informação Legislativa, Brasília, a. 37, n. 146, abr./jun. 2000. p. 189-192. 19

GUASTINI, Riccardo. Teoría e ideología de la interpretación constitucional. Trad. de Miguel Carbonell y

Pedro Salazar. 2.ed. Madri: Trotta, 2010. p. 41. 20

GUASTINI, Riccardo. Teoría e ideología de la interpretación constitucional. Trad. de Miguel Carbonell y

Pedro Salazar. 2.ed. Madri: Trotta, 2010. p. 42. Essa permissividade ou discricionariedade já está presente em

Kilsen, no cap. 8 da “Teoria Pura do Direito”. 21

ZAGREBELSKY, Gustavo. La corte constitucional y la interpretación de la Constitución. In: LÓPEZ PINA,

Antonio (Coord.). División de poderes y interpretación: hacia una teoría de la praxis constitucional. Madrid:

Tecnos, 1987. p. 162. 22

GUASTINI, Riccardo. Teoría e ideología de la interpretación constitucional. Trad. de Miguel Carbonell y

Pedro Salazar. 2.ed. Madri: Trotta, 2010. p. 60-65.

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24

que traduza uma adequação às mudanças sociais; b) uma doutrina universalista e uma

particularista, esta fundada na equidade de modo a indicar uma interpretação específica para

cada caso concreto e suas peculiaridades; a universalista, do contrário, fundada na igualdade e

legalidade aponta para que as normas sejam interpretadas como inderrotáveis, casos iguais

com soluções iguais e todos com idêntico tratamento quando estiverem no campo de

aplicação da mesma norma; c) uma atitude de judicial restraint e outra de judicial activism, a

primeira indicando que os juízes não devem usurpar as competências do legislador; a

segunda, incentivando uma livre criação do direito como forma de prover adequação do

mundo jurídico à realidade social, onde os princípios constitucionais funcionariam em favor

da plenitude do ordenamento, e imprimindo uma tendência à constitucionalização do

ordenamento jurídico.

Em todo caso, a interpretação judicial, como escreve Gustavo Zagrebelsky, 23

consiste na busca da norma de decisão adequada ao caso e ao direito – enquanto ordenamento

jurídico – e que parte necessariamente do caso ao direito.24

Neste sentido, a interpretação

jurídica está voltada à prática, pois dela procede e a ela tende. 25

2.2 CONCEITO MODELO DE CONSTITUIÇÃO

A origem do termo constituição remonta à Roma e mesmo à Aristóteles, mas

somente após a Magna Charta Libertatum de 1215 do Rei João Sem Terra é que esse termo

23

Gustavo Zagrebelsky o diz assim: “A la interpretación judicial se la puede definir como la búsqueda a partir

del caso, en el Ordenamiento jurídico, de la norma reguladora adaptada tanto al caso como al Derecho”.

ZAGREBELSKY, Gustavo. La corte constitucional y la interpretación de la Constitución. In: LÓPEZ PINA,

Antonio (Coord.). División de poderes y interpretación: hacia una teoría de la praxis constitucional. Madrid:

Tecnos, 1987. p. 162-163. 24

Seria esse o sentido da tópica de Theodor Viehweg: a interpretação deve partir do problema. Cf. CAMARGO,

Margarida Lacombe. A nova hermenêutica. In: SARMANTO, Daniel (Coord.). Filosofia e teoria constitucional

contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 353. 25

ZAGREBELSKY, Gustavo. La corte constitucional y la interpretación de la Constitución. In: LÓPEZ PINA,

Antonio (Coord.). División de poderes y interpretación: hacia una teoría de la praxis constitucional. Madrid:

Tecnos, 1987. p. 162.

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25

passa a expressar o documento normativo de um país e, nesse sentido, a noção de

constitucionalismo.26

Mais especificamente, a disposição do art. 16 da Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (DDHC) é que traz a concepção de que para haver

uma Constituição é necessária a separação de poderes e garantia de direitos.27

O conceito de constituição é complexo, uma vez que ele admite perspectivas as mais

diversas. Para reduzir a complexidade, esclarece-se, de início, que o referencial do presente

trabalho é a Constituição Federal brasileira de 1988. Com isto, algumas ambiguidades são

afastadas, 28

pois: trata-se de constituição formal e escrita, e não costumeira; é uma

constituição normativa-jurídica, e não sociológica ou material; é constituição rígida, e não

maleável; dentre outros aspectos.

Além disso, desde o início, identifica ou indica os parâmetros da sociedade de base

democrática e marcada pelo multiculturalismo a que pertence e pela cultura jurídica que lhe

estabelece os contornos.

De um lado, a ideia clássica de constituição proveniente do art. 16 da Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, de onde temos a constituição como organizadora

(da separação) dos Poderes e limitadora do Poder face aos direitos fundamentais, é esta uma

26

De acordo com José Luiz Borges Horta, o constitucionalismo é um fenômeno típico do Estado de Direito e

que "a um tempo se reúne em torno dos textos postos, construindo a hermenêutica constitucional respectiva, e a

outro cuida de informar o próprio processo constituinte, atuando decisivamente no processo de mutação

constitucional". HORTA, José Luiz Borges. Horizontes Jusfilosóficos do estado de direito: uma investigação

tridimensional do estado liberal, do estado social e do estado democrático, na perspectiva dos direitos

fundamentais. 2002. 322f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas

Gerais, Belo Horizonte, 2002. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/

1843/BUBD-96KQMD>. Acesso em: 9 jan. 2014. p. 104. Noutras palavras ainda: "o constitucionalismo não

somente estimula a formalização das constituições pela via constituinte, mas vive de sua reconstrução

hermenêutica (ora em marcha no caso das constituições democráticas)". (cf. p. 257). 27

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 8.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. p.

85-86. 28

É interessante notar que a Constituição brasileira figura com significados específicos em algumas adjetivações:

Constituição Cidadã (a da fala de Ulysses Guimarães por ocasião de sua promulgação); constituição econômica

(a do estatuto econômico do art. 170); constituição trabalhista (a do excessivo regramento de direito do trabalho);

constituição principiológica (a que é observada como estatuto axiológico da sociedade); constituição dirigente (a

das promessas de direitos sociais, tanto no objetivo de exaltá-la quanto para reclamar das suas promessas

inefetivadas). Mas todas essas “constituições” vêm acompanhadas de seus respectivos designativos e, assim,

problema algum subsiste.

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26

concepção de Constituição que prima facie inadmite a dimensão horizontal dos direitos

fundamentais, e sua possibilidade de controle pelo Judiciário com base na constituição. 29

De

outro lado, a ideia contemporânea de constituição, de acordo com a qual sua função é modelar

a sociedade civil (não apenas a organização dos Poderes de Estado) e as relações sociais (não

apenas as relações Estado-Cidadãos), favorece a aplicação direita da Constituição pelo

Judiciário a qualquer caso a este submetido, inclusive os da dimensão horizontal. 30

Para o presente estudo, opta-se pela concepção de constituição contemporânea. É

preciso dizer, para que se tenha claro, que tal conceito não se confunde com o de constituição

material, uma vez que esta pertence ao mundo do ser, e não do dever-ser. 31

Ao lado disso, na teoria dos direitos fundamentais, a noção de gerações de direitos

deve ser evitada, dada a crítica de que os direitos fundamentais não ultrapassam uns aos

outros, e daí prefere-se falar em dimensões32 e

33

ou categorias ou espécies.34

Há uma

29

GUASTINI, Riccardo. Teoría e ideología de la interpretación constitucional. Trad. de Miguel Carbonell y

Pedro Salazar. 2.ed. Madri: Trotta, 2010. p. 48-49. 30

GUASTINI, Riccardo. Teoría e ideología de la interpretación constitucional. Trad. de Miguel Carbonell y

Pedro Salazar. 2.ed. Madri: Trotta, 2010. p. 48-49. 31

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 8.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p.

89. 32

Paulo Bonavides faz uma síntese sobre a equivocidade do termo gerações, quando aplicado no sentido de

sucessão cronológica apenas, e esclarece o autor sobre a permanência, lado a lado, dos direitos fundamentais de

todos os momentos constitucionais ou todas as dimensões. Diz o autor: “Força é dirimir a esta altura, um

eventual equívoco de linguagem: o vocábulo ‘dimensão’ substitui, com vantagem lógica e quantitativa, o termo

‘geração’, caso este último venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos

direitos das gerações antecedentes, o que não é verdade. Ao contrário, os direitos da primeira geração, direitos

individuais, os da segunda, direitos sociais, e os da terceira, direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à

paz e à fraternidade, permanecem eficazes, são infra-estruturais, formam a pirâmide cujo ápice é o direito à

democracia; coroamento daquela globalização política para a qual, como no provérbio chinês da grande muralha,

a Humanidade parece caminhar a todo vapor, depois de haver dado o seu primeiro e largo passo. Os direitos da

quarta geração não somente culminam a objetividade dos direitos das duas gerações antecedentes como

absorvem – sem, todavia, removê-la – a subjetividade dos direitos individuais, a saber, os direitos da primeira

geração. Tais direitos sobrevivem, e não apenas sobrevivem, senão que ficam opulentados em sua dimensão

principial, objetiva e axiológica, podendo, doravante, irradiar-se com a mais subida eficácia normativa a todos

os direitos da sociedade e do ordenamento jurídico”. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional.

21.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 571-572. 33

Para Artur Cortez Bonifácio, há uma 4ª e uma 5ª geração ou dimensão “quer nos refiramos a questões ligadas

à bioética e à engenharia genética, ou a direitos advindos da realidade virtual, a qual ultrapassa fronteiras, dando

azo a novas relações jurídicas, acolhendo a hipótese de um direito supranacional”. BONIFÁCIO, Artur Cortez.

Direito de petição: garantia constitucional. São Paulo: Método, 2004. p. 49. 34

Para Leonardo Martins e Dimitri Dimoulis, o termo ‘gerações’ deve ser afastado por inexatidão cronológica; e

o termo ‘dimensões’, por inexatidão terminológica. Dizem os autores que “fala-se em dimensão para indicar dois

ou mais componentes ou aspectos do mesmo fenômeno ou elemento. No caso aqui relevante, há grupos de

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27

cumulação de momentos constitucionais, no sentido de que o constitucionalismo democrático

dos tempos atuais preserva características dos constitucionalismos da liberdade (do Estado

Liberal) e da igualdade (do Estado Social).35

Cabe a ressalva, no entanto, de que o conceito oriundo do art. 16 da Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 não necessariamente aponta para uma visão

antiquada de Constituição,36

haja vista que seus pressupostos de limitação de poderes e

garantia de direitos permanecem válidos.

No mesmo sentido é a lição que se abstrai das palavras de Eduardo Garcia de

Enterría quando escreve que:

Na Constituição como instrumento jurídico há de se expressar, precisamente, o

princípio da autodeterminação política comunitária, que é pressuposto do caráter

originário e não derivado da Constituição, assim como o princípio da limitação de

poder. Nenhum dos dois, e certamente não o último, são acessórios, mas sim

essenciais. Segue sendo, pois, válido o conceito do antes transcrito art. 16 da

Declaração de Direitos de 1789, no que unicamente caberia matizar hoje a

relatividade do princípio da divisão dos poderes como técnica operativa, sem

prejuízo de sua validade geral quanto a seus princípios e sua finalidade, a limitação

do poder dos detentores do poder, a garantia da liberdade. 37

direitos fundamentais cuja finalidade e funcionamento são claramente diferenciados em âmbito jurídico. Portato,

recomenda-se utilizar os termos ‘categorias’ ou ‘espécies’ de direitos fundamentais [...]”.DIMOULIS, Dimitri;

MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2012.

p. 22-23. 35

HORTA, José Luiz Borges. Horizontes Jusfilosóficos do estado de direito: uma investigação tridimensional

do estado liberal, do estado social e do estado democrático, na perspectiva dos direitos fundamentais. 2002. 322f.

Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte,

2002. p. 269-271. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/BUBD-

96KQMD>. Acesso em: 9 jan. 2014. O autor utiliza-se das ideias de Paulo Bonavides, Leonardo Nemer Caldeira

Brant e Antônio Augusto Cançado Trindade para propor que “a utopia humanista e universalista da

fraternidade” anima os direitos de terceira geração que perfazem o estado democrático. (cf. p. 269-270). 36

Nesse sentido, André Ramos Tavares defende que a noção de constituição decorre justamente do art. 16 da

DDHC. TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 8.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva,

2010. p. 85-86. 37

Tradução livre de: “En la Constitución como instrumento jurídico ha de expresarse, precisamente, el principio

de la autodeterminación política comunitaria, que es presupuesto del carácter originario y no derivado de la

Constitución, así como el principio de la limitación del poder. Ninguno de los dos, y por supuesto no el último,

son accesorios, sino esenciales. Sigue siendo, pues, válido el concepto del antes transcrito art. 16 de la

Declaración de Derechos de 1789, en el que únicamente cabría matizar hoy la relatividad del principio de

división de los poderes como técnica operativa, sin perjuicio de su validez general en cuanto a sus principios y

en cuanto a su finalidad, la limitación del poder de los imperantes, la garantía de la libertad”. GARCIA DE

ENTERRÍA, Eduardo. La constitución como norma y el tribunal constitucional. 3.ed. Madri: Civitas, 1994.

p. 45.

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28

Ademais, como a permanência de uma Constituição depende de sua adequação à sua

missão integradora,38

no que a jurisprudência constitucional tem papel relevante, 39

qualquer

conceito de constituição deve ter por base a noção de que esta existe em relação a uma

sociedade caracterizada no tempo, no espaço, na cultura e detentora de uma pauta de valores

os quais devem estar espelhados na constituição, ou seja, analisa-se a constituição jurídica,

mas tendo presente que esta integra uma realidade cotidiana.40

É que, levados ao extremo formalismo jurídico ou realidade sociológica, de acordo

com Paulo Bonavides, conduzem ao “fim da Constituição jurídica, sacrificada, num caso, pelo

excesso de ficção, noutro caso, pelo excesso de realismo”.41

O equilíbrio deve ser a nota

distintiva entre as vertentes formal e material de Constituição.

2.3 ESPECIFICIDADES DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

A ideia que prevalece no mundo de hoje é a de que a interpretação da Constituição

deve ter um status diferente da interpretação das leis, 42

como se disse no início deste capítulo.

Riccardo Guastini43

lista quatro argumentos que sustentam essa especificidade da

interpretação constitucional: a Constituição tem por objeto matéria constitucional; a

Constituição estabelece princípios e proclama valores; a Constituição traz os fundamentos das

38

BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais. Coimbra: Almedina, 1994. p. 11. 39

BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais. Coimbra: Almedina, 1994. p. 12. 40

Neste sentido, cf. Erick Wilson Pereira, para quem, no Brasil “a norma positivada precisa ser entendida através

dos valores sociais, filosóficos, econômicos, políticos e jurídicos”. PEREIRA, Erick Wilson. Direito eleitoral:

interpretação e aplicação das normas constitucionais-eleitorais. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 132. 41

BONAVIDES, Paulo. Teoria geral do Estado. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 348. 42

Para Inocêncio Mártires Coelho, esse status diferenciado decorre da estrutura normativo-material da

Constituição, vez que os direitos fundamentais e os princípios constitucionais deteriam estrutura normatia

peculiar de modo a justificar uma metodologia específica dada a especificidade do objeto da interpretação.

COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. 3.ed. rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 61. 43

GUASTINI, Riccardo. Teoría e ideología de la interpretación constitucional. Trad. de Miguel Carbonell y

Pedro Salazar. 2.ed. Madri: Trotta, 2010. p. 54-58.

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29

relações políticas entre Poderes do Estado, e destes com o cidadão; a Constituição é feita para

durar no tempo.

Mas o próprio autor aponta o que seriam fatores desconstitutivos dessa ideia de

necessidade de uma interpretação da Constituição diferençada da interpretação das leis:

matéria constitucional também está presente em leis ordinárias, a exemplo das leis eleitorais;

princípios e valores também fazem parte dos textos da lei, o que em nosso ordenamento

podemos citar a lei que regula o processo administrativo federal, a Lei 9784/199944

; as

relações políticas não são reguladas com exclusividade pela Constituição, nem esta, em todas

as suas normas, faz regulação política e, bem assim, as relações políticas – assim como as

relações sociais – mudam, modificam-se, e essas variações apontariam para a necessidade de

revisão constitucional – vez que não cabe ao intérprete mudar o conteúdo da Constituição

através da interpretação evolutiva ou dinâmica; boa parte das leis também é feita para durar,

além do que esse durar no tempo deixa implícita a necessidade de interpretação evolutiva ou

dinâmica, o que deve ser afastado, pois ao revisor constitucional e não ao intérprete caberia

atualizar um velho texto constitucional.

Mesmo os problemas que aparentemente seriam específicos da interpretação

constitucional (o valor normativo dos preâmbulos, natureza anterior ou posterior dos direitos

constitucionais, integração da legislação anterior, limites lógicos à reforma constitucional)

seriam, sobretudo, problemas de teoria ou dogmática constitucional, e não problemas de

interpretação.45

Susanna Pozzolo,46

de sua vez, apresenta cinco sentidos em que se pode falar de

especificidade da interpretação constitucional: peculiaridade do sujeito, o que depende da

44

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9784.htm>. 45

GUASTINI, Riccardo. Teoría e ideología de la interpretación constitucional. Trad. de Miguel Carbonell y

Pedro Salazar. 2.ed. Madri: Trotta, 2010. p. 94-102. 46

POZZOLO, Suzzana. Neoconstitucionalismo y especificidad de la interpretación constitucional. DOXA,

Madri, n. 21, 1988. p. 345.

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30

estrutura do ordenamento, que define a quem cabe a responsabilidade pela interpretação;47

uso

de técnicas específicas de interpretação/aplicação, no sentido de atividade interpretativa como

sendo argumentação jurídica;48

peculiares efeitos das sentenças, como, por exemplo,

atribuição de efeitos erga omnes; especificidade quanto à rigidez ou flexibilidade da

Constituição; especificidade com base no objeto Constituição. 49

No entanto, é de se observar que também estes cinco não propriamente justificariam

a especificidade da intepretação constitucional, senão vejamos: a) o sujeito a quem cabe a

interpretação diz respeito a quem o ordenamento jurídico destina a responsabilidade de

interpretar, o que nada diz quanto ao ato de interpretar; b) a argumentação jurídica atualmente

é também utilizada na interpretação das leis em geral; c) os efeitos da sentença de fato podem

apresentar peculiaridades, mais isto é etapa posterior à interpretação, ou seja, à tomada de

decisão; d) Constituições rígidas ou flexíveis, quando da interpretação, apresentam diferentes

níveis de indeterminação normativa, e isto ocorre também com as leis em geral, mas o que

importa é que em todos os textos normativos a linguagem jurídica em maior ou menor grau

apresentam indeterminação; e) há dois modelos constitucionais a considerar, um “modelo

descritivo de constituição como norma”, no qual nenhuma especificidade residiria no objeto

Constituição, e um “modelo axiológico de Constituição como norma”, que constituiria “uma

espécie de ponte entre o discurso jurídico e o moral”,50

e, nesse último sentido, cabe falar em

especificidade da intepretação constitucional.

47

PRIETO SANCHÍS, Luis. Notas sobre la interpretación constitucional. Revista del Centro de Estudios

Constitucionales, n. 9, maio/ago. 1991. p. 176. Disponível em: <http://www.cepc.gob.es/publicaciones/

revistas/fondo-historico?IDR=15&IDN=1239&IDA=35408>. Acesso em: 5 jun. 2013. 48

POZZOLO, Suzzana. Neoconstitucionalismo y especificidad de la interpretación constitucional. DOXA,

Madri, n. 21, 1988. p. 345-346. A autora reconhece que não caberia falar de especificidade se “por actividad

interpretativa se entiende atribución de significado a un texto”. (cf. p. 345). 49

POZZOLO, Suzzana. Neoconstitucionalismo y especificidad de la interpretación constitucional. DOXA,

Madri, n. 21, 1988. p. 346. 50

Tradução livre de: “una suerte de puente entre el discurso jurídico y el moral”. POZZOLO, Suzzana.

Neoconstitucionalismo y especificidad de la interpretación constitucional. DOXA, Madri, n. 21, 1988. p. 346.

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31

Quanto ao último ponto, o da ligação entre direito e moral, é interessante uma análise

mais detida em relação a ele. A tese de conexão derivativa entre direito e moral tem razão de

ser na afirmação de que as decisões jurídicas estão justificadas se, em última instância,

derivam de uma norma moral. 51

Na análise de Paolo Comanducci, tem-se que essa conexão pode apresentar-se de três

formas: 52

forma descritiva (em resposta à pergunta: de fato, qual a norma que, em dado

contexto, fundamenta uma decisão judicial?), que é inapropriada para justificar a conexão,

pois na prática judicial as decisões são justificadas através de normas jurídicas, e não morais;

forma teórica (em resposta à pergunta: num modelo explicativo, qual a norma que fundamenta

uma decisão judicial?), que também é inapropriada, vez que constitui tautologia, pois toda

justificação última no domínio prático é uma norma moral; forma normativa (em resposta à

pergunta: qual deve ser a norma que fundamenta uma decisão judicial?), onde é preciso

identificar que tipo de norma moral justifica a conexão derivativa entre direito e moral.

Sobre esse último ponto, a forma normativa, haveria quatro possibilidades de normas

morais: i) norma moral objetiva verdadeira (que corresponde a fatos morais); ii) norma moral

objetiva racional (aceitável num auditório racional); iii) norma moral subjetivamente

escolhida; iv) norma moral intersubjetivamente aceitada.

Na primeira (i), face a problema epistemológico, o juiz deveria escolher o que ele

entende ser moral, e aí remete à terceira (iii); Na segunda, diante da possiblidade de vários

catálogos morais objetivamente racionais, o juiz também teria de escolher qual, e aí

novamente remete à terceira; Na terceira, o juiz justificaria com base na sua consciência

51

COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: um análisis metateórico. ISONOMÍA, n. 16,

abr. 2002. p. 108. 52

A classificação que se apresenta a seguir, bem como as perguntas de base e a análise foram extraídas do texto

do autor. COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: um análisis metateórico. ISONOMÍA, n.

16, abr. 2002. p. 108-112. Disponível também em COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo:

um análisis metateórico. In: CARBONELL, Miguel (Coord.). Neoconstitucionalismo(s). 4.ed. Madrid: Trotta,

2009. p. 75-98.

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moral, só que ela poderia ser incompatível com a moral da sociedade e/ou da cultura jurídica,

e, nesse sentido, nada justifica a preferência pela moral subjetiva do juiz; Na quarta, há

obstáculos epistemológicos sérios o que torna a remeter à terceira, uma vez que seria

necessário ao juiz objetivar as normas morais da sociedade e, mesmo que consiga, ainda

haveria o problema de que inexiste homogeneidade moral na sociedade, e que, se essa moral

estiver positivada através de normas jurídicas, haveria identidade entre justificação moral e

justificação jurídica, e, portanto, constata-se a inutilidade de teorizar a conexão. 53

Onde, então, reside a justificativa para uma interpretação especificamente

constitucional? Para um ensaio de resposta, é necessário repartir a questão proposta em eixos

problemáticos, conforme segue:

O primeiro: É possível distinguir entre os conceitos interpretação constitucional e

interpretação da Constituição:54

a primeira como metodologia de interpretação do

ordenamento jurídico a partir dos princípios e valores constitucionais, e aí se tem o recente

fenômeno da constitucionalização do direito55

e, bem assim, da ideologia neoconstitucional –

tema para mais adiante; e a segunda, a interpretação da Constituição, como métodos e

técnicas de interpretação do texto constitucional, das normas constitucionais em si.

O segundo eixo problemático: A indeterminação conceitual entre interpretação

constitucional e interpretação da Constituição leva à crença de que quase tudo possa ser

chamado por um ou outro nome. Tanto assim que os discursos sobre efetividade do texto

constitucional,56

os modelos de interpretação, as técnicas de interpretação jurídica, e as regras

53

Para uma análise crítica do texto de Paolo Comanducci: cf. JUAN MORESO, José. Comamducci sobre

neoconstitucionalismo. Site da Universitat Pompeu Fabra: Àrea de Filosofia del Dret, Barcelona. Disponível

em: <http://www.upf.edu/filosofiadeldret/_pdf/moreso-comanducci-sobre.pdf>. Acesso em: 5 jun. 2013. 54

A interpretação da constituição seria o núcleo da interpretação constitucional. BALAGUER CALLEJÓN,

María Luisa. Interpretación de la constitución y ordenamiento jurídico. Madrid: Tecnos, 1997. p. 24. 55

Na ideia de “interpretação constitucional do ordenamento”, cf. BALAGUER CALLEJÓN, María Luisa.

Interpretación de la constitución y ordenamiento jurídico. Madrid: Tecnos, 1997. p. 25. 56

No caso brasileiro, é muito presente os textos com discursos favoráveis à efetividade constitucional carregados

de argumentos sobre princípios e valores.

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da ponderação e balanceamento são tratadas indistintamente nos manuais de interpretação

como se tudo fosse interpretação constitucional, interpretação da Constituição e mesmo

interpretação jurídica.

O terceiro eixo: O ensino jurídico brasileiro dos últimos anos tornou-se espelho de

uma cultura que privilegia o fast food acadêmico como forma de inserção rápida no mercado

de trabalho mediante concursos públicos. Em vista disso, a preocupação com a teoria

substancial que eleva a cultura jurídica é deixada de lado e, ao que parece, o que menos

importa é a interpretação, mas sim a fundamentação rasa em princípios constitucionais.

Em vista desses problemas, pode-se iniciar algumas formulações: a) o que trata

Riccardo Guastini, 57

quando refere-se à especificidade da interpretação constitucional, é de

interpretação da Constituição e, sob este aspecto, é realmente difícil falar numa especificidade

da interpretação; b) o desenvolvimento de uma completa teoria da interpretação constitucional

é de extrema complexidade e, por tanto, uma empresa difícil de levar à diante, mas há

viabilidade de desenvolvimento de modelos de interpretação constitucional, basta citar a

tópica jurídica de Theodor Viehweg, e o modelo concretista de Friedrich Müller; c) os

discursos limitados a celebrar os direitos fundamentais58

ou princípios constitucionais em

nada servem a uma interpretação da Constituição nem à interpretação constitucional; d) a

utilização de valores e princípios constitucionais como argumento para uma ideologia da

interpretação constitucional é válida enquanto ordens endereçadas ao agir, mas não valem,

57

GUASTINI, Riccardo. Teoría e ideología de la interpretación constitucional. Trad. de Miguel Carbonell y

Pedro Salazar. 2.ed. Madri: Trotta, 2010. GUASTINI, Riccardo. Peculiaridades de la interpretación

constitucional? In: ______. Estudios sobre la interpretación jurídica. Trad. de Marina Gascón, e Miguel

Carbonell. 9.ed. México: Porruá, 2010. GUASTINI, Riccardo La interpretación de la constitución. In: ORTEGA

GOMERO, Santiago (Ed.). Interpretación y razonamiento jurídico. Lima: Ara, 2010. v. II. 58

Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins reconhecem que tais discursos são importantes em tempos de

autoritarismo, mas em tempos de paz não ofereceriam solução a problema algum. DIMOULIS, Dimitri;

MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas,

2012. p. 5.

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propriamente, como justificação para decisões interpretativas, é necessária a fundamentação

que vá além da escolha pessoal do intérprete.

A especialidade da interpretação constitucional poderia, enfim, estar ligada ao seu

papel no sistema jurídico, na sua aplicação, na sua organização institucional,59

todavia, o

fenômeno da constitucionalização do direito conduz a que a interpretação das leis em geral

seja pautada na Constituição, o que resulta, mesmo em casos de interpretação como palco

para ideologia, lei e Constituição detém idêntico tratamento.

Ademais, conforme escreve Lenio Luiz Streck, considerar a existência de uma

hermenêutica especificamente constitucional é tratar a hermenêutica não como ‘questão

filosófica’, e sim como ‘questão epistemológica’, daí que seria possível ‘hermenêuticas

regionais’ (do direito penal, do direito civil etc) e, portanto, “teríamos de admitir que

interpretar o direito é uma mera técnica e não um modo de compreender (modo-de-ser)”.60

Dessa forma, a tendência é a de olhar a diferença de interpretação face às leis em

geral como questão de grau, intensidade, e não propriamente uma questão qualitativa,61

que

possa justificar como necessária a ideia de especificidade de uma interpretação ou

hermenêutica constitucional.

2.4 MODELOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

Uma proposição a ser tomada como ponto de partida para a discussão dos modelos

de interpretação constitucional é a que emerge da seguinte reflexão: “Será que a Constituição

59

WRÓBLEWSKI, Jerzy. Constitución y teoria general de la interpretación jurídica. Trad. de Arantxa

Azurza. Madri: Civitas, 2001. [reimpressão]. Cf. também Paolo Comanducci que afirma que a especificidade

reside na diversidade do objeto que é a Constituição e não uma lei em geral. COMANDUCCI, Paolo. Formas de

(neo)constitucionalismo: um análisis metateórico. ISONOMÍA, n. 16, abr. 2002, p. 100. 60

STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2010. p. 51. 61

COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: um análisis metateórico. ISONOMÍA, n. 16,

abr. 2002, p. 99.

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é simplesmente um espelho por meio do qual é possível enxergar aquilo que se tem

vontade?”.62

Ora, pode-se apontar, de início, e utilizando-se de base na literatura, da clara

(im)pertinência do que afirma Humpty Dumpty, personagem das histórias de Alice, onde ele

diz que pode dar as palavras o sentido que quer, e que isto é questão de poder de determinar

os sentidos.63

O sentido das palavras parte da interpretação, e o intérprete não pode dizer qualquer

coisa sobre qualquer coisa, como se lhe fosse possível colocar arbitrariamente capas de

sentido ao que é interpretado.64

E é precisamente com base nessa ideia que se pode afirmar da

inadequação de uma leitura da Constituição em tiras (tese da des-integração),65

onde cada

parte estaria desvinculada das demais; ou, noutro extremo, de uma leitura da constituição

como onipresença chocante (tese da hyper-integração),66

em que as partes não teriam

nenhuma autonomia de significação, importando apenas o todo que “nos fala por meio de uma

voz única, simples e sagrada”, 67

como que uma “expressão singular de uma única ideia”. 68

Numa e noutra leituras, implicaria admitir “que a interpretação se autonomiza da aplicação,

‘como se criasse vida própria’”. 69

62

TRIBE, Laurence; DORF, Michael. Hermenêutica constitucional. Trad. de Amarílis de Souza Birchal. Belo

Horizonte: Del Rey, 2007. p. 3. 63

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do espelho e o que Alice

encontrou por lá. Trad. de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. p. 244-245. 64

STRECK, Lenio Luiz. Apresentação. In: TRIBE, Laurence; DORF, Michael. Hermenêutica constitucional.

Trad. de Amarílis de Souza Birchal. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. xviii. 65

Sobre interpretar em tiras, cf.: GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do

direito. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 44. Em relação à tese da des-integração, cf.: TRIBE, Laurence;

DORF, Michael. Hermenêutica constitucional. Trad. de Amarílis de Souza Birchal. Belo Horizonte: Del Rey,

2007. p. 20. 66

TRIBE, Laurence; DORF, Michael. Hermenêutica constitucional. Trad. de Amarílis de Souza Birchal. Belo

Horizonte: Del Rey, 2007. p. 20. 67

TRIBE, Laurence; DORF, Michael. Hermenêutica constitucional. Trad. de Amarílis de Souza Birchal. Belo

Horizonte: Del Rey, 2007. p. 25. 68

TRIBE, Laurence; DORF, Michael. Hermenêutica constitucional. Trad. de Amarílis de Souza Birchal. Belo

Horizonte: Del Rey, 2007. p. 26. 69

STRECK, Lenio Luiz. Apresentação. In: TRIBE, Laurence; DORF, Michael. Hermenêutica constitucional.

Trad. de Amarílis de Souza Birchal. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. xviii.

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Neste sentido, mesmo paradoxalmente, pode-se pensar numa constituição como uma

colcha de retalhos70

em que cada parte diferente representa e é um tecido distinto, mas, ao

mesmo tempo, cada parte da colcha contribui para a formação de um todo funcional que é a

própria colcha e, sob esse aspecto, pode falar que cada parte do tecido é a própria colcha (ou

seja, não é uma tira), e que a colcha é a junção de todas as partes de tecido (portanto, não é

uma onipresença constante, ou seja, cada parte contribui na significação geral das demais

partes, do conjunto inteiro que forma a colcha).

Diante disso, em ambiente democrático com uma constituição escrita, como é o caso

brasileiro, “os juízes precisam encontrar métodos de interpretação que embasem suas decisões

em algo mais que somente suas visões pessoais”. 71

Daí a necessidade de modelos, de

conjuntos de técnicas direcionadas a reduzir a complexidade da linguagem jurídica na sua

interpretação em dialética com a realidade existencial concreta.

Algumas técnicas de interpretação da Constituição, que também se utilizam das

técnicas de interpretação das leis em geral, 72

são apresentadas por Riccardo Guastini sob as

70

Diz-se ‘paradoxalmente’ porque o sentido da expressão colcha de retalhos pode impropriamente conduzir à

ideia de tiras, e, neste aspecto, diversa da ideia que aqui é proposta a expressão: colcha como agrupamento coeso

de tiras. 71

TRIBE, Laurence; DORF, Michael. Hermenêutica constitucional. Trad. de Amarílis de Souza Birchal. Belo

Horizonte: Del Rey, 2007. p. xli. Os autores referenciados indicam que um olhar atento para a história evita

incidir no erro de utilizar a Constituição como bola de cristal onde se pode ver o que se quer (cf. p. 17). Coisa

diversa seria uma leitura de modo a refletir, como num espelho, as intenções originais dos fundadores da

Constituição, o que é inapropriado por demais (cf. p. 12-13). Obvio que os autores estão tratando da Constituição

dos Estados Unidos da América, que tanto é bastante antiga quanto pertencente ao comom law, mas, mesmo

assim, a lição é compatível para fins de aplicação à Constituição Federal brasileira de 1988. 72

Gustavo Zagrebelsky afirma que, para entender-se aspectos fundamentais da interpretação constitucional,

deve-se antes deter o conhecimento dos referentes à interpretação jurídica em geral. ZAGREBELSKY, Gustavo.

La corte constitucional y la interpretación de la Constitución. In: LÓPEZ PINA, Antonio (Coord.). División de

poderes y interpretación: hacia una teoría de la praxis constitucional. Madrid: Tecnos, 1987. p. 161. No sentido

de que “comparte muchas de las dificultades y técnicas que caracterizan a una doctrina general de la

interpretación”: cf. PRIETO SANCHÍS, Luis. Notas sobre la interpretación constitucional. Revista del Centro

de Estudios Constitucionales, n. 9, maio/ago. 1991. p. 176. Disponível em:

<http://www.cepc.gob.es/publicaciones/revistas/fondo-historico?IDR=15&IDN=1239&IDA=35408>. Acesso

em: 5 jun. 2013. No sentido de que os intérpretes da Constituição utilizam em sua prática cotidiana as mesmas

técnicas de interpretação das leis: cf. E. Zoller, Droit constitutionnel, p. 126 ss., 172 ss., 239 ss. indicado por:

GUASTINI, Riccardo. Teoría e ideología de la interpretación constitucional. Trad. de Miguel Carbonell y

Pedro Salazar. 2.ed. Madri: Trotta, 2010. p. 67. Em sentido contrario, de que “la interpretación de la

Constitución no puede fundamentar-se en la estructura tradicional de la interpretación de la ley”: cf.

BALAGUER CALLEJÓN, María Luisa. Interpretación de la constitución y ordenamiento jurídico. Madrid:

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seguintes nominações: interpretação literal, argumento à contrário, intenção dos constituintes,

interpretação restritiva e argumento de dissociação, interpretação extensiva, e interpretação

sistemática. 73

A interpretação literal atribui o significado linguístico evidente ao enunciado

normativo. Uma dificuldade surge quando há possibilidade de atribuição de significado

diverso do originário, aí se tem uma interpretação evolutiva.

O argumento à contrário justifica uma interpretação literal de dois modos. A

interpretação de uma norma com a estrutura “Se condição C, então direito D” poderia ser

interpretada à contrário de dois modos: “se C, então D” implica numa lacuna onde -C poderia

ser definido pelo legislador para ter o direito D; “se C, então D” implica em condição sem a

qual não, ou seja, “se e somente se C, então D”.

A intenção dos constituintes, a vontade dos constituintes, ou a finalidade dos

constituintes é uma forma ou técnica para interpretar. Todavia, é diferente utilizar as atas dos

trabalhos do constituinte para identificar sua intenção e, doutro ponto, atribuir ao constituinte

uma intenção que se pensa ser racional ou razoável.

A interpretação restritiva e argumento de dissociação ocorre quando a doutrina

distingue duas subclasses a partir de uma mesma norma e, a partir daí, para uma mesma

norma constitucional haveria duas interpretações diversas, cada qual de acordo com sua

classificação doutrinária.

A interpretação extensiva utiliza da analogia a uma norma constitucional para incluir

noutra norma constitucional o que dela não se abstrai literalmente.

Tecnos, 1997. p. 25. Pouco adiante, María Luisa Balaguer Callejón admite que as técnicas de interpretação da lei

não estão afastadas totalmente (cf. p. 44). 73

Cf.: E. Zoller, Droit constitutionnel, p. 126 ss., 172 ss., 239 ss. indicado como base por: GUASTINI, Riccardo.

Teoría e ideología de la interpretación constitucional. Trad. de Miguel Carbonell y Pedro Salazar. 2.ed.

Madri: Trotta, 2010. p. 67-72.

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Na interpretação sistemática a noção de coesão e coerência do direito é utilizada

para, a partir da interpretação prévia de uma ou mais normas constitucionais, atribuir-se uma

interpretação a outra norma constitucional.

Inocêncio Mártires Coelho diz que, atualmente, a intepretação das normas

constitucionais é “um conjunto de métodos, desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência,

com base em critérios ou premissas – filosóficas, metodológicas, epistemológicas –

diferentes, mas, em geral, reciprocamente complementares”.74

No entanto, essa pluralidade de métodos, em que pese apresentar benefícios da

diversidade, pois amplia a lista para escolhas,75

também induz a problemas.

O primeiro problema seria a inexistência de critérios que possam justificar a escolha

de um método em detrimento de outro;76

um segundo seria o direcionamento prático a ser

dado ao método, ou seja, forma de conduzi-lo, normas a manejar, objetivos a perseguir;77

um

terceiro problema seria o de se é possível ou adequado misturar dois ou mais métodos numa

mesma abordagem hermenêutica;78

um quarto é o da indeterminação do direito e

derrotabilidade das normas, o que poderia levar a resultados diferentes a depender do método

74

COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. 3.ed. rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 2007. p.

79. 75

Nos diz Gustavo Zagrebelsky: “Los métodos al mismo tempo son limitación y medio de la búsqueda: cuanto

más numerosos sean, mayores serán las posibilidades de éxito de la interpretación, las posibilidades de obtener

del Ordenamiento una norma adecuada al caso”. ZAGREBELSKY, Gustavo. La corte constitucional y la

interpretación de la Constitución. In: LÓPEZ PINA, Antonio (Coord.). División de poderes y interpretación:

hacia una teoría de la praxis constitucional. Madrid: Tecnos, 1987. p. 168. 76

COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. 3.ed. rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 2007. p.

79. 77

COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 79. 78

Conforme observa Virgílio Afonso da Silva, o sincretismo metodológico que predomina na doutrina brasileira

admite como complementares métodos de interpretação incompatíveis entre si, o que seria o caso, por exemplo,

da teoria estruturante do direito de Friedrich Müller e o sopesamento de direitos fundamentais de Robert Alexy.

SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação e sincretismo metodológico. In: ______ (Org.). Interpretação

constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 137-139. Marcelo Neves concorda com a impossibilidade de

conciliação teórica desses modelos de Robert Alexy e Friedrich Müller, mas com ressalva de que isto quando

assumidos sem as devidas restrições, pois, como a norma jurídica de Müller surge no final da concretização, tal

norma em Müller corresponderia à norma jurídica de Alexy após o processo de ponderação, e ambas, como

razão definitiva, não admitem ponderação, e, portanto, neste sentido, nada de problemático há entre as duas.

NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

p. 185-186. Todavia, Marcelo Neves apenas diz que os dois métodos chegam a uma norma final de decisão e,

com isso, nada implica sobre compatibilidade entre os métodos.

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39

escolhido; um quinto seria o de definir se o controle hermenêutico do método será em

perspectiva interna – através de avaliação a partir das regras inerentes ao método – ou em

perspectiva externa – com mensuração baseada em regras pertencentes a outro método; um

sexto problema, ainda, diz respeito às escolhas políticas do intérprete, e ao conceito de

Constituição com o qual cada intérprete trabalha.

Assim, a diversidade de métodos pode implicar numa dificuldade para a seara da

interpretação.79

De toda forma, e com resguardo nas seis ponderações problemáticas listadas

acima, é bom destacar que aos juristas cabe desenvolver os métodos de interpretação, quer

restringindo ou ampliando o alcance dos métodos existentes, quer criando e desenvolvendo

novos métodos mais eficientes e funcionais.

Dentre os métodos existentes, pode-se citar: 80

Método jurídico ou hermenêutica-

clássico; Método tópico-problemático; Método hermenêutico-concretizador; Método

científico-espiritual; Método normativo-estruturante; Método da comparação constitucional.

Além desses métodos, há os seguintes princípios de interpretação constitucional: Princípio da

unidade da Constituição; Princípio da concordância ou da harmonização; Princípio da

correção funcional; Princípio da eficácia integradora; Princípio da força normativa da

Constituição; Princípio da máxima efetividade; Princípio da interpretação conforme a

Constituição; Princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade.

79

Para uma analogia a essa dificuldade gerada pela diversidade de métodos, pode-se utilizar da advertência de

François Ost, ao falar sobre a crise de modelos de juízes, onde diz: “Paradójicamente, esta crisis de los modelos

proviene, sin duda, no tanto de la ausencia de referencias como de su excesiva abundancia”. OST, François.

Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. DOXA: Cuadernos de Filosofía del Derecho, n. 14, 1993, p.

169. Disponível em: <http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/01360629872570728587891/

index.htm>. Acesso em: 12 maio 2013. 80

Para uma descrição desses métodos e princípios, remetemos a: COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação

constitucional. 3.ed. rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 82-110.

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40

Ao que transparece, a complexidade é evidente81

e demandaria um aprofundamento

de análise que foge aos objetivos do presente estudo. No entanto, cabe registrar que, para fins

de interpretação constitucional e interpretação da Constituição na contemporaneidade, os

métodos havidos como mais adequados são o tópico-problemático de Theodor Viehweg e o

hermenêutico-concretizador de Friedrich Müller, em que pese a utilização tanto de um quanto

do outro, na prática, ficarem adstritas a uma imersão rasa e pouco proficiente.82

81

ZAGREBELSKY, Gustavo. La corte constitucional y la interpretación de la Constitución. In: LÓPEZ PINA,

Antonio (Coord.). División de poderes y interpretación: hacia una teoría de la praxis constitucional. Madrid:

Tencos, 1987. p. 171. 82

Nos acórdãos do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, é recorrente encontrar-se citação a um determinado

método sem, no entanto, esse método ser efetivamente utilizado como técnica de decisão.

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41

3 NEOCONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO

Neoconstitucionalismo, novo constitucionalismo ou constitucionalismo

contemporâneo83

são denominações dadas a uma mutação que tem lugar a partir da segunda

metade do século XX e que vai afetar o constitucionalismo com um todo.

Para entender como esse neoconstitucionalismo passa a integrar o ambiente da teoria

constitucional brasileira, torna-se necessário compreender sobre a origem do fenômeno e os

desenvolvimentos ou delimitações iniciais de seu campo conceitual para, a partir daí, ficar

tanto mais clara as consequências da opção por uma importação dessa teoria.

A origem do termo neoconstitucionalismo está numa apresentação de Susanna

Pozzolo no Congresso Mundial de Filosofia do Direito, em 1997,84

que foi adaptada para o

artigo “Neoconstituconalismo y especificidad de la interpretación constitucional”, publicado

em 1998 na Revista DOXA.85

A autora utiliza o termo para nominar uma corrente de pensamento formada por um

grupo de jusfilósofos que têm em comum uma peculiar maneira de aproximação ao direito,86

que se pode indicar através das contraposições: a) princípios versus normas,87

na ideia de que

o ordenamento jurídico é composto não apenas de normas, mas de normas e princípios, onde

estes se diferenciariam por apresentarem dimensão de peso ou importância (enquanto as

normas, a regra do tudo ou nada), serem vistos como valores positivados, possuírem forte

83

PRIETO SANHÍS, Luis. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madri: Trotta, 2003. p. 101. 84

XVIII Congresso Mundial de Filosofia do Direito e Filosofia Social da Internationale Vereinigung für Rechts-

und Sozialphilosophie (IVR), realizado 1997, em Buenos Aires, Argentina. 85

POZZOLO, Suzzana. Neoconstitucionalismo y especificidad de la interpretación constitucional. DOXA,

Madri, n. 21, 1998. 86

A autora faz a observação de que não se trata de um movimento unitário, mas sim de características de

similitude que possibilitam o agrupamento para fins da tese que ela está desenvolvendo. Tais autores seriam:

Ronald Dworkin (obra Freedom’s Law), Robert Alexy (obra El concepto y la validez del derecho), Gustavo

Zagrebelsky (obra Il diritto mite), e Carlos Santiago Nino (obra The Constitucion of deliberative democracy).

POZZOLO, Suzzana. Neoconstitucionalismo y especificidad de la interpretación constitucional. DOXA, Madri,

n. 21, 1988. p. 339. 87

POZZOLO, Suzzana. Neoconstitucionalismo y especificidad de la interpretación constitucional. DOXA,

Madri, n. 21, 1988. p. 340.

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42

presença nas constituições contemporâneas e apresentarem elevado nível de vagueza e

abstração, e tudo de modo a indicar aos juízes constitucionais sua utilização na interpretação e

argumentação constitucionais; b) ponderação versus subsunção,88

a indicar um específico

método de intepretação/aplicação para os princípios constitucionais, pois o método da

subsunção serviria apenas às regras e não aos princípios, sendo que tal método se constituiria

de três passos, um de identificação dos princípios aplicáveis ao caso, outro de sopesamento

axiológico para identificar a prevalência de um sobre o outro, e, por fim, um terceiro de

definição da hierarquia axiológica in concreto; c) Constituição versus independência do

legislador, 89

de onde a noção de Constituição com conteúdo substancial condicionante, como

uma espécie de direito natural positivado90

a que o legislador deve necessariamente observar;

d) juízes versus liberdade do legislador, 91

no sentido da aceitação da ideia de interpretação

judicial criativa, com adequação da legislação infraconstitucional à Constituição, ou noutras

palavras, uma interpretação do direito face às exigências de justiça emanadas do caso

concreto, em espécie de interpretação moral por intermédio do direito.92

Após a proposição do neologismo “neoconstitucionalismo”, a esfera de debates

inaugurada pela professora Suzzana Pozzolo toma espaço na discussão jusfilosófica e teórico-

pragmática. No propósito da aproximação conceitual, a teoria do direito vai desenvolver ou

especificar propostas de classificação dos tipos de neoconstitucionalismos.

88

POZZOLO, Suzzana. Neoconstitucionalismo y especificidad de la interpretación constitucional. DOXA,

Madri, n. 21, 1988. p. 340. 89

POZZOLO, Suzzana. Neoconstitucionalismo y especificidad de la interpretación constitucional. DOXA,

Madri, n. 21, 1988. p. 341. 90

Ou seja, a Constituição não mais como, somente, um fundamento normativo de maior hierarquia no sentido

kelseniano. 91

POZZOLO, Suzzana. Neoconstitucionalismo y especificidad de la interpretación constitucional. DOXA,

Madri, n. 21, 1988. p. 341-342. 92

Semelhantes características são as fornecidas por Luis Prieto Sanchís, com base em autores como Alexy,

Zagrebelsky, Riccardo Guastini, vejamos: “más principios que reglas; más ponderación que subsunción;

omnipresencia de la Constitución en todas las áreas jurídicas y en todos los conflictos mínimamente relevantes,

en lugar de espacios exentos en favor de la opción legislativa o reglamentaria; omnipotencia judicial en lugar de

autonomía del legislador ordinario; y, por último, coexistencia de una constelación plural de valores, a veces

tendencialmente contradictorios, en lugar de homogeneidad ideológica en torno a un puñado de principios

coherentes entre sí y en torno, sobre todo, a las sucesivas opciones legislativas”. PRIETO SANHÍS, Luis.

Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madri: Trotta, 2003. p. 117.

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43

3.1 TIPOS DE NEOCONSTITUCIONALISMO

Quando se fala em neoconstitucionalismo, conforme observa Miguel Carbonell,93

deve-se ter em mente a referência pelo menos a dois assuntos distintos: por uma parte,

neoconstitucionalismo diz respeito aos fenômenos evolutivos que atuam na caracterização do

Estado constitucional contemporâneo; por outra parte, faz referência a determinadas teorias

do direito que atuam na reflexão sobre essas mudanças. Nesse último sentido, é de se perceber

que a palavra neoconstitucionalismo, só por si, comporta perspectivas tão diversas quando as

teorias dos jusfilósofos a que pretende se reportar.

Nesse objetivo de especificação de sentidos, Paolo Comanducci94

distingue dois

aspectos de significação para o termo: seria uma teoria, ou ideologia ou método de análise do

direito;95

seria um modelo constitucional onde alguns elementos estruturais do direito são

identificados/explicados pelo viés teoria ou que satisfazem o viés ideologia.

Luíz Prieto Sanchís,96

de sua vez, toma como parâmetro o modelo de Paolo

Comanducci para especificar quatro perspectivas sob as quais podemos entender o novo

constitucionalismo: um tipo de Estado de Direito; teoria do direito relativa a esse Estado de

Direito; ideologia ou filosofia política para esse modelo assinalado; filosofia jurídica com

reflexos nos conceitos e metodologias de definição do direito.

93

CARBONELL, Miguel (Coord.). Neoconstitucionalismo(s). 4.ed. Madrid: Trotta, 2009. p. 9-10. 94

COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: um análisis metateórico. ISONOMÍA, n. 16,

abr. 2002. p. 89. 95

Paolo Comanducci, para analisar o neoconstitucionalismo, utiliza-se da perspectiva tríplice que Norberto

Bobbio adota na análise do positivismo. Cf.: COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: um

análisis metateórico. ISONOMÍA, n. 16, abr. 2002. p. 90. 96

PRIETO SANHÍS, Luis. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madri: Trotta, 2003. p. 101.

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44

O neoconstitucionalismo, enquanto teoria concorrente com a positivista ou teoria

alternativa a esta,97

intenta elaborar no plano da facticidade novas perspectivas de abordagem

do direito, com relevo ao direito constitucional.

Com base na classificação que Norberto Bobbio98

elabora para estudar o positivismo

jurídico, Paolo Comanducci a utiliza para desenvolver a tripartição do neoconstitucionalismo

em teórico, ideológico e metodológico.

No neoconstitucionalismo teórico, ou como teoria do direito, tem-se a estruturação

de um modelo segundo o qual a Constituição e seus princípios e regras invadem o sistema

jurídico, há positivação de catálogos de direitos fundamentais nos textos constitucionais, e é

instituída nova aproximação à interpretação/aplicação das normas constitucionais diferenciada

da interpretação/aplicação das leis em geral. 99

Assim, torna-se necessária uma superação do positivismo – e suas características de

estatalismo, legicentrismo e formalismo interpretativo – e surge como proposta alternativa,

dois modelos que apresentam a Constituição como norma: um descritivo e outro axiológico,

onde a diferença básica entre ambos é que o ‘modelo axiológico de Constituição como norma’

tem a Constituição como valor em si; enquanto que o ‘modelo descritivo de Constituição

como norma’ reconhece a característica – em comum com as leis em geral – de que a

Constituição é texto normativo.100

O neoconstitucionalismo ideológico, de sua vez, propõe-se a uma ideologia de

valorização dos direitos fundamentais a qual envolve desde a importância da atuação dos

97

COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: um análisis metateórico. ISONOMÍA, n. 16,

abr. 2002. p. 97. Diz o autor que no séc. XIX e na primeira metade de séc. XX o constitucionalismo não figurou

como uma teoria concorrente do positivismo, mas que agora o neoconstitucionalismo se apresenta com esse

objetivo. 98

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Trad. de Márcio Pugliesi, Edson

Bini, e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 223 e ss. 99

COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: um análisis metateórico. ISONOMÍA, n. 16,

abr. 2002. p. 97. 100

COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: um análisis metateórico. ISONOMÍA, n. 16,

abr. 2002. p. 97-98.

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mecanismos institucionais de defesa – numa espécie de neoconstitucionalismo dos

contrapoderes – até as atividades de concretização e garantia pelos legisladores e,

principalmente, juízes – aí, um neoconstitucionalismo das regras. 101

Aponta para um dever

moral de obediência à constituição 102

e, também, que a interpretação/aplicação da

constituição deva ser totalmente diversa da interpretação das leis em geral, face optar por um

‘modelo axiológico de Constituição como norma’.

Já o neoconstitucionalismo metodológico,103

este vem como suporte ao

neoconstitucionalismo ideológico, uma vez que toma como método de aproximação ao direito

a tese de que o direito apresenta necessária conexão – identificativa ou justificativa – com a

moral, além da tese das fontes sociais do direito. Portanto, é distinto do positivismo

metodológico na medida em que este opta por uma divisão clara entre ser e dever-ser.

Num passo adiante, com base em Luis Prieto Sanchís,104

tem-se mais dois modelos: o

do neoconstitucionalismo como ideologia ou filosofia política, e o do neoconstitucionalismo

metodológico ou conceitual.

O neoconstitucionalismo como ideologia ou filosofia política que se identifica com a

ideologia que “considera que el Estado Constitucional de Derecho representa la mejor o más

justa forma de organización política”,105

mas que, no entanto, conta com a objeção

101

COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: um análisis metateórico. ISONOMÍA, n. 16,

abr. 2002, p. 100. 102

Aqui refaz a abordagem COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: um análisis

metateórico. ISONOMÍA, n. 16, abr. 2002, p. 100. Para José Juan Moreso, “Un neoconstitucionalista bien

puede defender que algunas de las disposiciones constitucionales violan algunos principios de justicia e, incluso,

que no deben ser obedecidas” (cf. p. 4), e acrescenta que Ronald Dworkin, na obra Freedom’s Law a que

Comanducci se refere, nem defende essa obediência indiscriminada às normas constitucionais e escreve Dworkin

em sentido oposto a isto: JUAN MORESO, José. Comamducci sobre neoconstitucionalismo. Site da Universitat

Pompeu Fabra: Àrea de Filosofia del Dret, Barcelona, p. 4. Disponível em:

<http://www.upf.edu/filosofiadeldret/_pdf/

moreso-comanducci-sobre.pdf>. Acesso em: 5 jun. 2013. 103

COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: um análisis metateórico. ISONOMÍA, n. 16,

abr. 2002, p. 101. 104

Mais precisamente na classificação de Luis Prieto Sanchís. Cf.: PRIETO SANHÍS, Luis. Justicia

constitucional y derechos fundamentales. Madri: Trotta, 2003. p. 101-107. 105

PRIETO SANHÍS, Luis. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madri: Trotta, 2003. p. 102.

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democrática onde mais Constituição e garantias judiciais – no sentido de ativismo –

representa diminuição da esfera de decisão das maiorias constituídas no Legislativo.

Já no neoconstitucionalismo metodológico ou conceitual,106

este diz respeito à

conexão entre direito e moral com pelo menos três consequências: normas e decisões devem

contar com amparo formal e substancial na Constituição, no sentido de adequação à

Constituição; nova visão do agir interpretativo onde há construção do direito e não somente

descrição; obrigação de obediência moral ao direito.

De acordo com Miguel Carbonell,107

tendo em vista os diversos tipos de

neoconstitucionalismos, quer em sua aplicação prática quer em sua elucidação teórica,

constata-se ser tarefa de difícil implementação estabilizar todos os neoconstitucionalismos de

forma a que eles possam conviver sem problemas.

3.2 INTUITO DO NEOCONSTITUCIONALISMO

O neoconstitucionalismo se propõe a uma compatibilização de dois modelos

constitucionais: no primeiro, a Constituição é “regra do jogo da competência social e

política”,108

de onde se tem a ideia de supremacia constitucional e consequente garantia

jurisdicional (modelo baseado na tradição norte-americana); no segundo, a Constituição “não

se limita a fixar as regras do jogo, mas sim pretende participar diretamente dele”,109

o que

decorre de amplo catálogo de direitos fundamentais, valorização dos princípios

constitucionais, e intuito de orientação da agenda política (modelo inspirado na Revolução

106

PRIETO SANHÍS, Luis. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madri: Trotta, 2003. p. 103. 107

CARBONELL, Miguel (Coord.). Neoconstitucionalismo(s). 4.ed. Madrid: Trotta, 2009. p. 11. 108

Tradução livre de: “regla de juego de la competencia social y política”. PRIETO SANHÍS, Luis. Justicia

constitucional y derechos fundamentales. Madri: Trotta, 2003. p. 108. 109

Tradução livre de: “no se limita a fijar las reglas de juego, sino que pretende participar directamente en el

mismo”. PRIETO SANHÍS, Luis. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madri: Trotta, 2003. p.

108-109.

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Francesa). Resulta daí que agora, com o modelo neoconstitucional, teríamos um modelo de

Constituição normativa110

e garantida pela Jurisdição.111

Com o neoconstitucionalismo ocorre uma espécie de “desbordamento

constitucional”,112

ou constitucionalização do direito, onde a Constituição se espraia por todo

o ordenamento jurídico regendo e assegurando este.

A discricionariedade antes nas mãos do legislador passa agora às mãos do juiz, com a

diferença que antes ela era motivada quase tão somente na legitimação democrática e agora

está embasada na argumentação racional. 113

As características de novo constitucionalismo, na análise de Luis Prieto Sanchís, 114

seriam: força vinculante da Constituição por seu caráter normativo; supremacia constitucional

no sistema de fontes; aplicação direta da Constituição; garantia jurisdicional da Constituição;

eficácia horizontal dos direitos fundamentais; rigidez constitucional.

A Constituição, nesse horizonte, sai de uma posição de norma fundamental, no

sentido de fundamento de validade das demais normas de que fala Kelsen,115

e passa a ocupar

a posição de norma suprema, uma vez que expressa já não somente a justificação da validade

das normas, mas sim que emana forte caráter normativo superior que rege direta e

integralmente o ordenamento jurídico.116

110

PRIETO SANHÍS, Luis. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madri: Trotta, 2003. p. 111.

Diz o autor que o caráter normativo diz respeito ao fato de a Constituição, além de regular o poder e as fontes do

direito, ela gerar de forma direta direitos e obrigações imediatamente exigíveis. (cf. p. 111). 111

PRIETO SANHÍS, Luis. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madri: Trotta, 2003. p. 112.

Diz o autor que o fato da existência de um Tribunal Constitucional não pode ser impeditivo da ativa participação

dos juízes (singulares) na efetivação dos direitos constitucionais. 112

PRIETO SANHÍS, Luis. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madri: Trotta, 2003. p. 114. No

mesmo sentido: cf. PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. El desbordamiento de las fuentes del derecho. Madrid:

La Ley, 2011. 113

PRIETO SANHÍS, Luis. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madri: Trotta, 2003. p. 115. 114

PRIETO SANHÍS, Luis. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madri: Trotta, 2003. p. 116-

117. 115

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 7.ed. São Paulo: Martins Fontes,

2006. p. 217. 116

Cada norma do ordenamento, bem como a racionalidade e a argumentação jurídicas, precisam apresentar

adequação aos parâmetros constitucionais, e tudo o quanto pode ser pensado é pensado de acordo com a

Constituição, e esta passa a ser onipresente. Cf.: ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: Ley, derechos y

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Se o grau de indeterminação dos princípios constitui pesadelo, ao menos a noção de

(in)determinação representa um nobre sonho ao suplantar a esfera da simples

discricionariedade do legislador, e, com isso, exsurge a possibilidade, quem sabe, de

chegarmos a uma vigília, 117

um acordar para entrar na realidade real não sonhada.

No entanto, talvez represente isso um deslocamento de discricionariedade do

legislador – que decide o que quer – para o juiz – que decide o que deve – mas isso é algo que

depende de nossa confiança nas possibilidades da argumentação jurídica.118

De toda forma, em que pese a importância atual da argumentação jurídica configurar

um traço diferencial ao novo constitucionalismo, é vedado presumir que aí se encontra “uma

feliz reconciliação do Direito com a moral”,119

pois, bem assim, essa conexão é apenas

parcial, e em virtude disto, até pela sua compatibilidade com o positivismo metodológico, “a

teoria do direito neoconstitucionalista resulta ser nada mas que o positivismo jurídico de

nossos dias”.120

Resta saber como, de que modo, esse manancial teórico do neoconstitucionalismo ou

dos diversos neoconstitucionalismos aporta em terras brasileiras, como a doutrina nacional

passa a interagir, na academia e nos fóruns, em relação a esse padrão importado que já chega

imerso em disputas teóricas.

justicia. Trad. de Marina Gascón. 8. ed. Madri: Trotta, 2008. p. 40. O autor escreve: “La ley, un tiempo medida

exclusiva de todas las cosas en el campo del derecho, cede así el paso a la Contitución y se convierte ella misma

en objeto de medición”. (cf. p. 40). 117

PRIETO SANHÍS, Luis. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madri: Trotta, 2003. p. 131.

Sobre esse sentido, cf.: JUAN MORESO, José. La indeterminación del derecho y la interpretación de la

Constitución. Madri: CEPC, 1998. p. 167 ss. 118

PRIETO SANHÍS, Luis. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madri: Trotta, 2003. p. 132. 119

Tradução livre de: “una feliz reconciliación del Derecho y la moral”. PRIETO SANHÍS, Luis. Justicia

constitucional y derechos fundamentales. Madri: Trotta, 2003. p. 133-134. 120

Tradução livre de: “la teoría del derecho neoconstitucionalista resulta ser nada más que el positivismo jurídico

de nuestros días”. COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: um análisis metateórico.

ISONOMÍA, n. 16, abr. 2002, p. 102.

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3.3 IMPORTAÇÃO DO NEOCONSTITUCIONALISMO PARA O SISTEMA JURÍDICO

BRASILEIRO

Conquanto o Brasil seja um país aberto à recepção do pensamento universal, a

assimilação de teorias deve ser feita de modo a refletir razões das peculiaridades e

preferências nacionais121

e, neste sentido, a importação de ideias sem que estas se submetam a

um filtro de brasilidade passa a ser temerosa: no mínimo, temerosa.122

A importação de um modelo constitucional ou neoconstitucional deve atentar para as

generalidades de quem fornece123

o modelo e para as especificidades de quem recebe esse

modelo. O exemplo de outros povos é válido para informar, mais isto não exime a sociedade

receptora de “resolver originalmente seu próprio destino”, 124

pois importa o esforço criador

perante os problemas, e isto é o que vai permitir entender as soluções dos outros povos quanto

aos sentidos, limites e defeitos dessas soluções.125

Pensar em termos de conhecimentos advindos de outras culturas sem a

racionalização de tais conjunturas de ideias às nossas tradições culturais seria algo tanto

121

REALE, Miguel. Cinco temas do culturalismo. São Paulo: Saraiva, 2000. p. xiii. 122

KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um

direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris editor, 2002. p. 41-44. 123

Sobre o assunto, adverte José Carlos Barbosa MOREIRA: “Ora, entre os postulados básicos da importação de

modelos jurídicos – a par do exame da compatibilidade entre o órgão que se quer transplantar e o organismo que

o vai receber –, avulta a investigação atenta da maneira pela qual o instituto que se pretende importar funciona

praticamente no Estado de origem”, MOREIRA, José Carlos Barbosa. A importação de modelos jurídicos. In:

MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Direito contemporâneo: estudos em homenagem a Oscar Dias

Corrêa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 185. 124

ORTEGA Y GASSET, José. La missión de la universidad. Madri: Revista de Occidente, 1930. p. 40-41. 125

ORTEGA Y GASSET, José. La missión de la universidad. Madri: Revista de Occidente, 1930. p. 43.

Refere-se o autor sobre a impossibilidade de importar os modelos de ensino médio inglês e universitário alemão

para formar o modelo espanhol nos anos 30, posto que o ensino em si é apenas uma parcela e a sua integralidade

é a realidade desses países (Inglaterra e Alemanha) que criaram e mantém tais modelos. E, em relação a isso,

ainda complementa dizendo que há um erro fundamental que é o de supor que uma nação é grande porque seu

ensino é bom. Em verdade, a nação é grande quando nela quase tudo vai bem: religião, política, economia e tudo

o mais (cf.: p. 42). No sentido de que a transposição de teorias de autores estrangeiros não seria um passe de

mágica capaz de mudar a realidade brasileira: cf.: RAMOS, Paulo Roberto Barbosa. O conceito de Constituição

em Ferdinand Lassalle. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris editor, 2012. p. 50.

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50

semelhante a uma gnoseologia do des-cobrir, onde deixar-se-ia incólume o objeto do

conhecimento ao esquivar-se de interferir. 126

Diversa – e mais apropriada – seria uma abordagem ontognoseológica desse

conhecimento externo, dado que, necessariamente, a cognição implicaria uma dialética entre o

sujeito cognoscente e o objeto da experiência cognoscitiva, 127

ou, nas palavras de Miguel

Reale, uma ideação construtiva que “graças à imaginação criadora e a elementos conjeturais,

caracteriza o saber científico contemporâneo”,128

ou, ainda, no dizer de José Ortega y Gasset,

um esforço criador que luta com o problema e que “pode nos fazer compreender o verdadeiro

sentido e os limites ou defeitos da solução”.129

Ademais, a teoria constitucional ou neoconstitucional deve situar-se no contexto

cultural130

de determinada sociedade, deve estar adequada aos parâmetros de convivência e às

expectativas das relações sociais costumeiras entre os indivíduos que integram essa sociedade

histórica e espacialmente situada.

A bem desse sentido, ao desfecho das palavras iniciais de Ortega y Gasset no breve

estudo sobre a missão da universidade, encontra-se mensagem potencial preceptora de ideia

válida para vasta gama de estudos, isto ao afirmar que “um estudo adequado do problema

exige, antes de tudo, a clara filiação dos caracteres essenciais de nosso tempo e um preciso

diagnóstico da nova geração”.131

126

REALE, Miguel. Cinco temas do culturalismo. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 6. 127

REALE, Miguel. Cinco temas do culturalismo. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 6 e 28. 128

REALE, Miguel. Cinco temas do culturalismo. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 7. Assim, a interpretação não

seria cópia de algo existente com objetivo de lhe revelar, decifrar, desvelar, porque o conhecer é também agir

ativamente na construção do objeto de conhecimento (cf. p. 34 e 44). 129

Tradução libre de: “puede hacernos comprender el verdadero sentido y los límites o defectos de la solución”.

ORTEGA Y GASSET, José. La missión de la universidad. Madri: Revista de Occidente, 1930. p. 40. 130

KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um

direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 42. 131

Tradução livre de: “Un estudio adecuado del problema exige, ante todo, la clara filiación de los caracteres

esenciales de nuestro tempo y un preciso diagnóstico de la nueva generación”. ORGEGA Y GASSET, José.

Missión de la universidad. Madri: Revista de Occidente, 1930. p. 10.

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51

A noção de hoje como realidade circundante traz consigo a precisa necessidade de

percepção dos caracteres do tempo atual. O olhar distorcido, afastado dos fatos vivenciais, é

sobremaneira impreciso para detalhar o que nos rodeia e influencia em nossas horas.

O amanhã, o tempo-estar-por-vir, de igual modo deve compor a nossa não-ingênua

atuação presente na vida, é um dar-se conta do horizonte que faz precisa a caminhada. Nisto, a

orientação diagnosticada quanto às novas gerações deve ser precisa também. Hoje e amanhã,

por assim dizer, são os componentes que constroem e solidificam nossa linha do tempo.

O ontem, o tempo passado, o registo memorial das experiências, decerto possui

elevada importância, mas, todavia, esta fica adstrita aos aconselhamentos de bem-viver que

algumas vezes se reconstitui no que chamamos de prudência.132

Ora, se o horizonte simboliza as possibilidades, estas somente nascem como

resultado do esforço e angústia de alguém que as tornam realidade, e é este o processo da

vida: pelo fazer contínuo.133

Um fazer com o fervor da ousadia e com a temperança da

prudência.

A conexão disto tudo como o neoconstitucionalismo está na ideia de que se o

constitucionalismo fora uma teoria para reger a vida das gerações passadas, o

neoconstitucionalismo vem – deveria vir – como uma teoria para as gerações do hoje e do

amanhã.

É como uma constatação da vida que segue. É como que uma justificativa de que o

mundo gira, de que a natural ânsia por evolução conta agora com um conhecimento mais

apropriado aos tempos atuais, e mais afinado às necessidades e parâmetros da

contemporaneidade.

132

PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. Trad. de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo:

Martins Fontes, 2005. p. 338. Diz o autor: “Damos o nome de prudência à virtude que nos guia na escolha dos

meios mais eficazes e mais rentáveis, que nos ensina a evitar os obstáculos dificilmente superáveis e a renunciar

a empreendimentos demasiado temerários”. (cf. p. 338). 133

ORGEGA Y GASSET, José. Missión de la universidad. Madri: Revista de Occidente, 1930. p. 19.

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52

Com isso, o neoconstitucionalismo não escaparia a essa clara filiação aos caracteres

do tempo presente nem poderia deixar de levar em consideração as necessidades e

expectativas da nova geração. Daí, por conseguinte, exsurge a ideia de que é necessário que o

neoconstitucionalismo seja submetido a um filtro de brasilidade, e isso já desde o momento de

sua importação, além do que, seus resultados práticos precisam ser aferidos. 134

3.4 MODELO BRASILEIRO E SUA CONTESTAÇÃO

A proposição acadêmica brasileira mais significativa,135

que aqui é tomada como

síntese da proposta neoconstitucionalista no Brasil, foi elaborada no artigo de Luiz Roberto

Barroso sob o título de “Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: o triunfo

tardio do Direito Constitucional no Brasil”, que aqui é tomado como texto-base para a

discussão da importação do modelo neoconstitucional pelo Brasil face às críticas e

contestações de autores brasileiros, como será posto em momento oportuno.

O texto de Luiz Roberto Barroso toma por base três marcos: um marco histórico,136

que na Europa foi o constitucionalismo do pós-Segunda Guerra Mundial e que no Brasil foi a

Constituição Federal brasileira de 1988; um marco filosófico137

que é o pós-positivismo,138

no

134

Afirma José Carlos Barbosa Moreira: “A consumar-se a importação, teremos de medi-la pelos resultados

práticos que vier a produzir. Será mister compara escrupulosamente o que havia antes e o que haverá depois”.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. A importação de modelos jurídicos. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva

(Coord.). Direito contemporâneo: estudos em homenagem a Oscar Dias Corrêa. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2001. p. 186. 135

No sentido de ampla divulgação, pois, de acordo com Dimitri Dimoulis, tem-se conhecimento de que o texto

foi publicado em sete revistas, duas obras coletivas e diversos sites da internet. DIMOULIS, Dimitri.

Neoconstitucionalismo e moralismo jurídico. In: SARMANTO, Daniel (Coord.). Filosofia e teoria

constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. 136

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: O triunfo tardio do

Direito Constitucional no Brasil. RERE, Salvador, n. 9, mar./abr. 2007. p. 2. 137

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: O triunfo tardio do

Direito Constitucional no Brasil. RERE, Salvador, n. 9, mar./abr. 2007. p. 4-5. Diz o autor, sobre esse marco

filosófico, que ”O pós-positivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura

empreender uma leitura moral do direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas. A interpretação e aplicação

do ordenamento jurídico hão de ser inspiradas por uma teoria de justiça, mas não podem comportar

voluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais”. (cf. p. 4-5).

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53

sentido de superação do positivismo em retorno ao jusnaturalismo; e, por fim, um marco

teórico139

que pode ser sintetizado em: força normativa da Constituição; difusão da jurisdição

constitucional; nova interpretação constitucional. 140

Em relação à força normativa da Constituição 141

diz o autor que até meados do séc.

XX a Constituição era vista como documento essencialmente político, mas que a partir daí

converteu-se em documento com caráter normativo, as normas constitucionais passaram a ter

caráter vinculativo e obrigatório, imperatividade, e que, no Brasil, isto ganha consistência na

década de 1980.

Quanto ao segundo ponto, a difusão da jurisdição constitucional,142

o autor refere-se

a um novo modelo de Jurisdição que se inicia no final da década de 1940, inspirado na

experiência americana, que prega a supremacia da Constituição, o que envolve um catálogo

de direitos fundamentais constitucionalizados por um lado, e, por outro, uma Jurisdição ativa

que assegure proteção a tais direitos.

138

Cf. CASALMIGLIA, Albert. Postpositivismo. DOXA, n. 21, 1998. Onde lê-se: “Se podría afirmar que es

postpositivista toda aquella teoría que ataca las dos tesis más importantes del positivismo conceptual: la tesis de

las fuentes sociales del derecho y la no conexión necesaria entre el derecho y la moral. Creo que ésa es una

posibilidad pero me parece que en el seno del positivismo esas tesis han sufrido modificaciones importantes. En

un cierto sentido la teoría jurídica actual se puede denominar postpositivista precisamente porque muchas de las

enseñanzas del positivismo han sido aceptadas y hoy todos en un cierto sentido somos positivistas.

Dedicaré mi atención a algunos de los principales problemas actuales de la teoría jurídica y denominaré

postpositivistas a las teorías contemporáneas que ponen el acento en los problemas de la indeterminación del

derecho y las relaciones entre el derecho, la moral y la política.”. (cf. p. 209). 139

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: O triunfo tardio do

Direito Constitucional no Brasil. RERE, Salvador, n. 9, mar./abr. 2007. p. 5. 140

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: O triunfo tardio do

Direito Constitucional no Brasil. RERE, Salvador, n. 9, mar./abr. 2007. p. 11. Assim o autor sintetiza os três

marcos: “(i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao

longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos

direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de

mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o

desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional” (cf. p. 11). 141

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: O triunfo tardio do

Direito Constitucional no Brasil. RERE, Salvador, n. 9, mar./abr. 2007. p. 5-6. 142

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: O triunfo tardio do

Direito Constitucional no Brasil. RERE, Salvador, n. 9, mar./abr. 2007. p. 6-7.

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54

No terceiro ponto, a nova interpretação constitucional,143

o autor afirma que, ao lado

das técnicas tradicionais de interpretação, a especificidade das normas constitucionais

conduziu doutrina e jurisprudência a desenvolver e aplicar princípios instrumentais

específicos,144

havidos como pressupostos lógicos, metodológicos e finalísticos.

Ainda no ponto da nova interpretação constitucional, Luiz Roberto Barroso145

observa que houve mudança no papel da norma – que iniciava a ter necessidade de

interpretação à luz do problema, dos fatos, para prover uma interpretação constitucionalmente

adequada – e no papel do juiz – que na atividade de intérprete necessitava por vezes criar o

direito para o caso concreto.

Esses novos parâmetros passaram a informar as categorias da nova interpretação: 146

cláusulas gerais (ou conceitos jurídicos indeterminados, tais como: interesse social, boa-fé),

normatividade dos princípios (qualitativamente distinta da das regras), colisões de normas

constitucionais (admitidas en abstrato em face da existência de bens jurídico-constitucionais

contrapostos), ponderação (como técnica de resolução dessas colisões e que se utiliza do

princípio da razoabilidade) e argumentação (como controle de racionalidade e legitimidade

das decisões judiciais).

Em contraposição teórica ao texto de Luiz Roberto Barroso, escreve Dimitri

Dimoulis um artigo crítico à concepção neoconstitucional, chamado “Neoconstitucionalismo

e moralismo jurídico”, no intuito de demonstrar a falta de pertinência e utilidade.147

As

143

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: O triunfo tardio do

Direito Constitucional no Brasil. RERE, Salvador, n. 9, mar./abr. 2007. p. 8-11. 144

Seriam: o da supremacia da Constituição; o da presunção de constitucionalidade das normas e atos do Poder

Público; o da interpretação conforme a Constituição; o da unidade; o da razoabilidade; e o da efetividade.

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: O triunfo tardio do Direito

Constitucional no Brasil. RERE, Salvador, n. 9, mar./abr. 2007. p. 8. 145

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: O triunfo tardio do

Direito Constitucional no Brasil. RERE, Salvador, n. 9, mar./abr. 2007. p. 9. 146

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: O triunfo tardio do

Direito Constitucional no Brasil. RERE, Salvador, n. 9, mar./abr. 2007. p. 9-11. 147

DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo jurídico. In: SARMANTO, Daniel (Coord.).

Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 214. Versão desse

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55

críticas tratam das seguintes características: força normativa da Constituição, expansão da

jurisdição constitucional e nova interpretação constitucional.

Com relação a tese da força normativa da Constituição, esclarece Dimitri Dimoulis, o

pressuposto de toda Constituição é o de que ela seja superior às leis em geral e, nesse sentido,

cita Sieyès, em pronunciamento no ano de 1793, onde diz: “uma Constituição é um corpo de

leis obrigatórias ou não é nada”, e complementa com as palavras de François Guizot, em

decreto de 1833 que institui a disciplina Direito Constitucional na Faculdade de Direito de

Paris, que diz: “Não se trata mais [a Constituição] de um simples sistema filosófico entregue

às disputas pessoais. É uma lei escrita, reconhecida que pode e deve ser explicada, comentada,

da mesma maneira como a lei civil ou qualquer outra parte de nossa legislação”, e conclui

Dimitri Dimoulis: “Seriam Sieyès (1748-1836) e Guizot (1787-1874), ambos nascidos no

século XVIII, e partidários da supremacia e pura juridicidade da Constituição, paladinos de

um neoconstitucionalismo avant la lettre?”. 148

Em que pese parecer mais apropriado entender que as citações feitas por Dimitri

Dimoulis remetem unicamente ao caráter normativo – e não à supremacia – da Constituição, é

fato que as constituições modernas nascem com intuito de objetivar, no sentido de positivar

no texto Constitucional, valores liberais abstraídos do contexto político das revoluções

liberais do séc. XVIII, e, com isto, descabe dizer que a inserção de valores nos textos

constitucionais dá-se a partir da segunda metade do séc. XX. 149

No entanto, Dimitri Dimoulis comprova que de há muito tempo decisões judiciais

reconhecem a supremacia constitucional ao citar o muito conhecido caso Marbury vs.

artigo está disponível em: DIMOULIS, Dimitri. Crítica do neoconstitucionalismo. Revista do Programa de

Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia, Salvador, n. 22, 2011. p. 179-203. 148

Todas as transcrições literais nas páginas 214-215. DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo

jurídico. In: SARMANTO, Daniel (Coord.). Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2009. 149

DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo jurídico. In: SARMANTO, Daniel (Coord.).

Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 215.

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56

Madison; e o menos conhecido caso da Decisão n. 6.664 de 1892, onde juiz do Tribunal de

primeira instância de Atenas reconhece a primazia da Constituição sob o argumento de que

num conflito entre Constituição e lei ordinária, dado o caráter de imutabilidade da

Constituição – cuja reforma necessita de procedimento específico –, a antinomia resolve-se

em favor desta. 150

Junto a isso, no cenário brasileiro, o controle de constitucionalidade instaurado no

final do séc. XIX,151

através da Constituição de 1891, representa uma prova de que a

supremacia constitucional não inicia com o séc. XX.

Dimitri Dimoulis152

reconhece que muitos autores nacionais e estrangeiros fazem

menção à contraposição Estado legal (sec. XIX) versus Estado constitucional (séc. XX),

todavia isto decorreria numa confusão de dois planos de análise: hierarquia normativa, onde a

presença de Constituição rígida é decisiva e a ausência desta conduz à possibilidade de o

legislador atuar mais livremente na determinação de o que é constitucional; natureza das

garantias de preservação da supremacia constitucional, em que se leva em consideração o fato

de o ordenamento jurídico contar com previsão de controle judicial de constitucionalidade ou,

do contrário, o controle ser vedado.

Nesse sentido, a contraposição entre Estado legal e Estado constitucional seria válida

no plano da hierarquia normativa no caso de o Estado não contar com Constituição rígida,

pois o legislador poderia instaurar o Estado legal. De outra forma, não é válida a

contraposição quando se toma por base o plano da natureza das garantias, pois o controle

judicial de constitucionalidade não implica necessariamente em Estado constitucional, uma

150

DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo jurídico. In: SARMANTO, Daniel (Coord.).

Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 217. 151

Caput e inciso "a" do art. 60 da Constituição Federal de 1891 dizem: "Compete aos Juízes ou Tribunais

Federais, processar e julgar: a) as causas em que alguma das partes fundar a ação, ou a defesa, em disposição da

Constituição federal". Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm>.

Acesso em: 8 jun. 2013. 152

DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo jurídico. In: SARMANTO, Daniel (Coord.).

Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 217.

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57

vez que, tanto quanto o legislador pode utilizar-se de arbítrio para instaurar o Estado legal, o

juiz pode instaurar o Estado judicial.153

A segunda tese de Luís Roberto Barroso, a da expansão da jurisdição constitucional,

na análise de Dimitri Dimoulis,154

embora admita a necessidade de pesquisa histórico-

analítica da atuação dos tribunais para propiciar melhor análise, afirma o autor que essa

expansão não representa traço característico do neoconstitucionalismo, uma vez que: essa

expansão é quantitativa é inegável, mas não necessariamente é qualitativa; a criação de Cortes

constitucionais não implica a proteção mais ampla e efetiva aos direitos fundamentais, o que

somente um estudo da história e jurisprudência podem avalizar; historicamente, há Cortes

constitucionais dóceis ao poder político; tanto quanto o Legislativo pode abusar na função de

Guardião da Constituição, o Judiciário também o pode.

Já a terceira tese proposta por Luís Roberto Barroso, a da nova interpretação

constitucional, é admitida por Dimitri Dimoulis155

como incontestável no plano fático, dada a

vasta quantidade de doutrinadores e aplicadores que se utilizam de ponderação, princípios e

outros mais, só que não constituem novidade, pois já no séc. XIX há “críticas contra aplicação

mecânica, literal, automática, subsuntiva”, e apresenta como exemplos “Oskar Bülow (1837-

1907) na Alemanha, Eugen Ehrlich (1862-1992) na Áustria ou François Gény (1861-1959) na

França, para entender que não há a menor novidade na interpretação ‘aberta’ e

‘principiológica’ da Constituição”. Linhas adiante, Dimitri Dimoulis cita o exemplo do

penalista alemão Karl Binding (1841-1920) o qual afirmava que a sentença pode criar direito,

e arremata “se isso era dito no campo taxativo do direito penal já no século XIX e se isso

provinha de um autor pouco preocupado com os direitos humanos (Binding foi defensor da

153

DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo jurídico. In: SARMANTO, Daniel (Coord.).

Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 218-219. 154

DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo jurídico. In: SARMANTO, Daniel (Coord.).

Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 220-221. 155

DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo jurídico. In: SARMANTO, Daniel (Coord.).

Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 221.

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58

eutanásia dos doentes mentais)”, como dizer criatividade judicial é característica do

neoconstitucionalismo de hoje?156

Após desconstituir as características do neoconstitucionalismo presentes no texto de

Luiz Roberto Barroso, apresenta Dimitri Dimoulis o neoconstitucionalismo como “forma de

definição e interpretação do direito constitucional relacionando-o com a controvérsia entre

positivismo e moralismo jurídico”.157

Afirma o autor que o que se quer nominar de neoconstitucionalismo é uma postura

antipositivista,158

que atribui importante papel à moral na definição e interpretação do direito,

mas não uma ruptura com o constitucionalismo como se afirma na doutrina brasileira. 159

E

conclui ao dizer que o neoconstitucionalismo representa algo que há dois séculos já existe e,

portanto, Dimitri Dimoulis critica: mais adequada seria a denominação de

“paleoconstitucionalismo”.160

Noutra perspectiva crítica, Humberto Ávila parte das características do

neoconstitucionalismo como movimento de teorização e aplicação do direito constitucional,

que ele propõe sejam em número de quatro fundamentos: o normativo, que tem por base o

privilégio dos princípios no lugar das regras; o metodológico, que colocaria a ponderação

156

Todas as transcrições literais nas p. 221-222. DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo

jurídico. In: SARMANTO, Daniel (Coord.). Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2009. p. 221-222. 157

DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo jurídico. In: SARMANTO, Daniel (Coord.).

Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 222. 158

CAMARGO, Margarida Lacombe. A nova hermenêutica. In: SARMANTO, Daniel (Coord.). Filosofia e

teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 347-348. Diz a autora que “a Nova

Hermenêutica surge num contexto de crítica à preponderância do método lógico silogístico como fator de

legitimação do Direito, conforme propugnado pelo positivismo jurídico” (cf. p. 347). No entanto, essa autora

distingue entre pós-positivismo e nova hermenêutica, vejamos: “O pós-positivismo busca na teoria da

argumentação uma nova base metodológica para um direito vinculado necessariamente à moral dada a pretensão

de correção que lhe é inerente; [...] a nova hermenêutica busca uma maior elucidação do fenômeno interpretativo

nas bases filosóficas da compreensão, que impregna as ciências humanas e sociais” (cf. p. 348). É que Margarida

Lacombe Camargo entende nova hermenêutica como sinônimo de hermenêutica filosófica. (cf. p. 350-352). Para

uma conceituação de postpositivismo: cf. CASALMIGLIA, Albert. Postpositivismo. DOXA, n. 21, 1998. p. 209. 159

DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo jurídico. In: SARMANTO, Daniel (Coord.).

Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 223. 160

DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo jurídico. In: SARMANTO, Daniel (Coord.).

Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 224.

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59

como preponderante à subsunção; o axiológico, que tem centrada a preocupação na justiça

particular, do caso concreto, ao invés da justiça de caráter mais geral; o organizacional, que

indica pela primazia do Poder Judiciário frente aos demais Poderes.161

Sobre o primeiro fundamento, o normativo, esclarece que a Constituição Federal de

1988 faz opção pelas regras e não pelos princípios, tanto que é classificada como constituição

analítica.162

Essa opção pelas regras tem motivo na proposta de limitação do poder, haja vista

que as regras cumprem tanto melhor a função de diminuição de incertezas e de afastamento

ou diminuição de arbitrariedades.

A consideração de que a Constituição brasileira seria principiológica, portanto, toma

a parte pelo todo e confunde preponderância com funcionalidade. Ao invés de se procurar

descrever ou explicar o direito – função da ciência do direito – haveria o intuito impor uma

visão do direito sem correspondência com o direito – um direito da ciência – e, nesta

perspectiva, o neoconstitucionalismo “está menos para uma teoria jurídica ou método, e mais

para uma ideologia ou movimento, defendido com retórica, vagueza e subserviência à

doutrina estrangeira”.163

Para segundo fundamento, o metodológico, diz Humberto Ávila que, colocar a regra

da ponderação como preponderante, e admitir que diante de um caso concreto regulado por

norma infraconstitucional o intérprete possa elevar o plano de análise – do legal ao

constitucional – para decidir através de ponderação de princípios constitucionais, é isto torna

a ponderação espécie de critério geral de aplicação do direito, o que é indevido. 164

161

ÁVILA, Humberto. "Neoconstitucionalismo": entre a "ciência do direito" e o "direito da ciência". RERE,

Salvador, n. 17, jan./mar. 2009. p. 3. 162

Neste sentido, por exemplo, a Constituição brasileira diferencia-se das Constituições americana e alemã. Cf.:

ÁVILA, Humberto. "Neoconstitucionalismo": entre a "ciência do direito" e o "direito da ciência". RERE,

Salvador, n. 17, jan./mar. 2009. p. 4. 163

ÁVILA, Humberto. "Neoconstitucionalismo": entre a "ciência do direito" e o "direito da ciência". RERE,

Salvador, n. 17, jan./mar. 2009. p. 7. 164

ÁVILA, Humberto. "Neoconstitucionalismo": entre a "ciência do direito" e o "direito da ciência". RERE,

Salvador, n. 17, jan./mar. 2009. p. 7.

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60

Há três motivos para a vedação a isto: conduz a um antiescalonamento do sistema

jurídico, porquanto deixa de observar os diversos níveis hierárquicos normativos em benefício

de um único nível; elimina a relevância das regras e, com isto, sua importância decorrente do

procedimento democrático de elaboração, resultando desvalorização do Legislativo e de sua

função democrática; 165

conduz a perda substancial da normatividade do direito, haja vista

que, admitida a tese de que a ponderação é sempre possível, tanto: i) a regra

infraconstitucional transmuta-se em mero conselho, pois pode ou não ser considerada na

ponderação, e se considerada pode ou não servir de guia da interpretação; 166

ii) “somente

depois do processo de ponderação é que se saberá o que antes deveria ter sido feito”. 167

A sadia utilização da ponderação, esclarece Humberto Ávila, deve observar e seguir

certos requisitos e fases, sem o que “não passa de uma técnica, não jurídica, que explica tudo,

mas não orienta nada. E, nessa acepção, ela não representa nada mais que uma ‘caixa preta’

legitimadora de um ‘decisionismo’ e formalizadora de um ‘intuicionismo moral’”. 168

Em relação ao terceiro fundamento, o axiológico, este indica a primazia da justiça

particular sobre a geral ou, noutras palavras, criar a regra do caso concreto ao invés de utilizar

da regra geral. A razão está na noção de que especificidades do caso contribuem para uma

solução mais justa.

165

Para esse ponto, há ainda dois paradoxos importantes: o primeiro: “a interpretação centrada nos princípios

constitucionais culmina com a violação de três princípios constitucionais fundamentais – os princípios

democrático, da legalidade e da separação de Poderes”; o segundo: “quando tudo está na Constiutição, e nada na

legislação que deveria estar conforme a ela, a supremacia constitucional perde o significado, pois a Constituição

deixa de servir de referência superior pela inexistência ou irrelevância do elemento inferior”. ÁVILA, Humberto.

"Neoconstitucionalismo": entre a "ciência do direito" e o "direito da ciência". RERE, Salvador, n. 17, jan./mar.

2009. p. 8. 166

ÁVILA, Humberto. "Neoconstitucionalismo": entre a "ciência do direito" e o "direito da ciência". RERE,

Salvador, n. 17, jan./mar. 2009. p. 9. 167

ÁVILA, Humberto. "Neoconstitucionalismo": entre a "ciência do direito" e o "direito da ciência". RERE,

Salvador, n. 17, jan./mar. 2009. p. 10. 168

ÁVILA, Humberto. "Neoconstitucionalismo": entre a "ciência do direito" e o "direito da ciência". RERE,

Salvador, n. 17, jan./mar. 2009. p. 12, grifos do autor. Quanto aos requisitos e fases necessários à ponderação,

remetemos ao texto referenciado do autor nas páginas 10-12.

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61

É certo que em casos nos quais a regra jurídica vai além de sua finalidade – super-

inclusão ou sobre-inclusão169

– ou onde ela fica aquém da finalidade – sub-inclusão ou infra-

inclusão170

– o intérprete está autorizado a afastar a regra geral e compor a regra particular,

mas tais situações são excepcionais, o comum é que as regras gerais limitem e imponham o

padrão de conduta com base em fatos relevantes previamente racionalizados em seu comando

normativo pelo legislador e isto, em que pese a limitação do agir dos sujeitos de direito,

resulta no benefício da uniformidade de tratamento necessária ao convívio social.

Daí que, a opção do intérprete de entrar na análise de todas as configurações

possíveis de circunstâncias do caso concreto não seria necessariamente positiva – por revelar

desperdício de energia e tempo – nem a aceitação, pelo intérprete, da opção inserida na regra

geral seria taxativamente negativa. 171

Quanto ao quarto e último fundamento, o organizacional, o qual propõe uma

prevalência do Poder Judiciário frente aos demais Poderes (em especial, o Legislativo),

Humberto Ávila faz uma defesa da importância do Poder Legislativo na sociedade

democrática brasileira, porquanto o Legislativo representa a ágora para o exercício da

democracia, 172

que possibilita utilização de mecanismos públicos de discussão das matérias

de interesse da sociedade.

169

ÁVILA, Humberto. "Neoconstitucionalismo": entre a "ciência do direito" e o "direito da ciência". RERE,

Salvador, n. 17, jan./mar. 2009. p. 13. O autor cita o exemplo hipotético de regra que veda a condução de

animais de estimação em transportes públicos, mas ao intérprete seria admitida a interpretação de que um

deficiente visual poderia conduzir seu cão-guia dócil e adestrado. 170

ÁVILA, Humberto. "Neoconstitucionalismo": entre a "ciência do direito" e o "direito da ciência". RERE,

Salvador, n. 17, jan./mar. 2009. p. 13. O autor utiliza o exemplo hipotético de regra que veda a condução de

animais de estimação em transportes públicos para admitir que o intérprete impossibilite um homem de conduzir

um leão, que reconhecidamente não é animal de estimação e à priori não estaria incluso na proibição. 171

ÁVILA, Humberto. "Neoconstitucionalismo": entre a "ciência do direito" e o "direito da ciência". RERE,

Salvador, n. 17, jan./mar. 2009. p. 14-15. 172

ÁVILA, Humberto. "Neoconstitucionalismo": entre a "ciência do direito" e o "direito da ciência". RERE,

Salvador, n. 17, jan./mar. 2009. p. 17. Em sentido de que a nova ágora da democracia brasileira contemporânea

é o Supremo Tribunal Federal, dada a realização de audiências públicas: cf. VIEIRA, Oscar Vilhena.

Supremocracia. In: SARMANTO, Daniel (Coord.). Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 494-497.

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62

Vistas as posições de Dimitri Dimoulis e de Humberto Ávila quanto ao

neoconstitucionalismo e suas implicações no ordenamento jurídico brasileiro, parece que a

melhor compreensão é a de que a importação do neoconstitucionalismo constitui um

desacerto, e se pode afirmar, com base na síntese nominativa desses autores, seria o

neoconstitucionalismo tanto mais um “paleoconstitucionalismo”, na acepção de Dimitri

Dimoulis, posto que em nada inovou relativamente ao que existe desde há dois séculos; ou um

“não-constitucionalismo”, conforme Humberto Ávila, porquanto é “um movimento ou uma

ideologia que barulhentamente proclama a supervalorização da Constituição enquanto

silenciosamente promove a sua desvalorização”. 173

De toda forma, em terras brasileiras, a ampla valorização do discurso

neoconstitucional, da recorrência ao argumento fácil dos princípios para justificação das

decisões judiciais e das teses em âmbitos prático e acadêmico procura fazer sentir que o que

se convenciona chamar neoconstitucionalismo, quando o menos, é um fenômeno digno para o

desenvolvimento de análises e reflexões.

Por óbvio, a deficiência simbolizada no jeitinho brasileiro174

conduz ao encurtamento

da seriedade de boa parte das análises que, quando muito, limitam-se a proclamar a

supremacia da Constituição, a força normativa da Constituição e outros tantos lemas através

de discurso panfletário que objetiva alcançar a mente e a consciência dos juristas. Em outros

casos, claro, o desacerto provém de erros nas teses, muitas vezes erros graves,175

pois decorre

173

ÁVILA, Humberto. "Neoconstitucionalismo": entre a "ciência do direito" e o "direito da ciência". RERE,

Salvador, n. 17, jan./mar. 2009. p. 19. 174

O jeitinho brasileiro está na em encontrar um atalho, geralmente ilícito, com burla das regras aplicáveis, para

propiciar uma conciliação de interesses, uma resolução satisfatória de problemas. Conforme descreve Roberto

DaMatta, no Brasil, “entre o ‘pode’ e o ‘não pode’, encontramos um ‘jeito’. Na forma clássica do ‘jeitinho’,

solicita-se precisamente isso: um jeitinho que possa conciliar todos os interesses, criando uma relação aceitável

entre o solicitante, o funcionário-autoridade e a lei universal”. DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?

Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 100. 175

No sentido de que grande parte das próprias teses neoconstitucionais são erradas ou desastrosamente erradas,

cf.: BARBERIS, Mauro. Neoconstitucionalismo. Revista brasileira de direito constitucional, São Paulo, n. 7,

jan./jun. 2006. p. 24.

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da defesa de perspectiva teórica equivocada, quando não do simples desconhecimento ou de

análises errôneas.

Avançando no panorama da realidade brasileira, é de se observar que se, por um

lado, o Supremo Tribunal Federal nos últimos anos passou a ocupar espaços no cotidiano da

sociedade, por outro lado, “a hiper-constitucionalização da vida contemporânea é, no entanto,

decorrência da desconfiança na democracia e não a sua causa”.176

A desconfiança no

legislador eleito pelo voto induz ao voto de confiança no juiz eleito pela desconfiança no

legislador.

Entretanto, no Brasil, a jurisdição constitucional responde pelo nome de Supremo, ou

seja, nada é mais simbólico para representar uma posição de destaque no quadro dos Poderes,

e é precisamente essa pretensão a ser paladino superior da justiça, a ser o guardião único da

Constituição,177

que é motivo altamente justificado para uma prevenção em face do

Judiciário.178

3.5 PRIMEIROS NEOCONSTITUCIONALISTAS BRASILEIROS

Em tempos de neoconstitucionalismo, a doutrina favorável tenta imprimir a ideia de

que os princípios foram descobertos em seu valor jurídico somente após as últimas décadas do

século XX,179

e, no Brasil, marcadamente após a Constituição Federal de 1988.180

176

VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. In: SARMANTO, Daniel (Coord.). Filosofia e teoria

constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 483-485. 177

É comum olvidar que a guarda da Constituição não é atribuída especificamente ao Supremo Tribunal Federal.

O inciso I do art. 23 da Constituição é prova de que há outros guardiões: “Art. 23. É competência comum da

União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das

instituições democráticas e conservar o patrimônio público;” (grifos nossos). 178

ÁVILA, Humberto. "Neoconstitucionalismo": entre a "ciência do direito" e o "direito da ciência". RERE,

Salvador, n. 17, jan./mar. 2009. p. 17. Diz o autor: “não se quer dizer que o Poder Judiciário é desimportante;

quer-se, em vez disso, afirmar que o Poder Legislativo é importante [também]. E que, como tal, não pode ser

simplesmente apequenado [...]” (cf. p. 17). 179

Dimitri Dimoulis critica a concepção de que a força normativa da Constituição surgiria com o

neoconstitucionalismo e, nesse sentido, apresenta Sieyès (1748-1836) e Guizot (1787-1874) como defensores da

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No entanto, em perspectiva crítica, Marcelo Neves afirma que é preciso ter cuidado

com essa ideia de “inexistência de orientação por argumentos principiológicos na tradição

jurídico-constitucional brasileira anterior”.181

O autor indica que, ainda na época do Império

brasileiro, o jurista José Antonio Pimenta Bueno utilizava-se do argumento de princípios, bem

como, no início da República, procedia da mesma forma Ruy Barbosa.

Referindo-se ao direito como ordem de princípios, José Antonio Pimenta Bueno

registrava, no ano de 1857, que “o direito e suas correspondentes obrigações são os princípios,

as bases firmes de toda a sociabilidade, legislação, progresso e perfeição humana”.182

E sobre o Supremo Tribunal de Justiça da época do Império, José Antônio Pimenta

Bueno assevera que “é uma instituição mixta de caracter politico e judiciario, e em que o

primeiro predomina mais, por isso mesmo que é o que mais garantias offerece à ordem

social”.183

Com isto, percebe-se, afirmar o papel eminentemente político da corte

constitucional é discurso que tem lugar no século XIX, época do Império.

Passando-se à primeira república, em relação a Ruy Barbosa, esclarece Marcelo

Neves que aquele foi o primeiro brasileiro a quem “caberiam ser aplicadas as expressões

força normativa já no século XIX, portanto, bem anterior ao tempo neoconstitucional. DIMOULIS, Dimitri.

Neoconstitucionalismo e moralismo jurídico. In: SARMANTO, Daniel (Coord.). Filosofia e teoria

constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 214-215. 180

Em sentido favorável, Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcelos escrevem o artigo sobre o começo da

história identificando na Constituição de 1988 o marco zero de um recomeço de história constitucional.

BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula. O começo da história: a nova interpretação constitucional

e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: SILVA, Virgílio Afonso da (Org.). Interpretação

constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 273. Também disponível em: BARROSO, Luís Roberto;

BARCELLOS, Ana Paula. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no

direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A nova interpretação constitucional: ponderação,

direitos fundamentais e relações privadas. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 181

NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes,

2013. p. 174. 182

PIMENTA BUENO, José Antonio. Direito publico brazileiro e analyse da Constituição do Império. Rio

de Janeiro: Villeneuve, 1857. p. 7. 183

PIMENTA BUENO, José Antonio. Direito publico brazileiro e analyse da Constituição do Império. Rio

de Janeiro: Villeneuve, 1857. p. 345.

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65

‘constitucionalização do direito’ e – ironicamente – ‘neoconstitucionalismo’”,184

dadas as

permanentes evocações de princípios durante o início republicano.

Ruy Barbosa também firmava posição sobre a supremacia constitucional em

afirmações como “o juiz descumpre a lei para cumprir a Constituição”.185

Ou, ainda, “a idéa

prima das federações é a limitação do poder legislatívo pela Constituição e a expansão do

poder judiciario como orgam supremo da hermeneutica constitucional”.186

Mas, decerto, acaso se proceda uma regressão ao tempo do Império, em 1860,

Francisco de Paula Batista fora até mais enfático. Além de reconhecer a existência de uma

ordem geral, espécie de sistema harmônico a que todas as leis estão vinculadas, o autor vai

fixar que as leis constitucionais, na parte em que estabelecem regime político e asseguram

direitos individuais, “exercem uma preponderância decidida sobre todas as leis secundárias”,

e diz mais, as que “proclamam novos princípios e verdades sociaes destroem as antigas, que

estam em opposição com ellas”.187

Aí, pode-se dizer que o autor trata da supremacia e força

normativa constitucionais em face das demais leis.188

E sobre a ideia de que os juristas se apegam à letra da lei? A superação vem somente

a partir da segunda metade do século XX com o neoconstitucionalismo? Em 1860, em pleno

século XIX, Francisco de Paula Batista diz que a apreensão do sentido das leis é o segredo

dos mestres “que não fazem seus alumnos decorar simplesmente a letra da lei; mas exforçam-

184

NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes,

2013. p. 174-175. 185

BARBOSA, Ruy. Comentários à Constituição Federal brasileira. Coligidos e ordenados por Homero Pires.

São Paulo: Academica/Saraiva, 1932, t. 1, p. 19-21, citado por NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules:

princípios e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes, 2013. p. 174-175. 186

BARBOSA, Ruy. A Constituição e os actos inconstitucionaes: do Congresso e do Executivo ante a Justiça

Federal. 2.ed. Rio de Janeiro: Atlântida, 1893. p. 83. 187

BATISTA, Francisco de Paula. Compendio de hermeneutica juridica. Recife: Typ. Commercial de Geraldo

Henrique de Mira & C., 1860. p. 17-18. 188

Francisco de Paula Batista toma como base os quatro elementos de Savigny, gramatical, lógico, sistemático e

histórico; no entanto, muda o nome de ‘sistemático’ para ‘científico’ e entende que o histórico já está incluído no

científico. Por conseguinte, fica com três métodos. No método científico, o autor inclui compreensões de direito

natural, direito público, moral, história da lei, a matéria sobre que versam as leis, e as ligações entre as leis. É

nessa parte de ligações entre as leis, que o autor vai tratar da ligação entre constituição e demais leis. Nada de

neoconstitucional, como se percebe.

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se tambem por inicial-os nos motivos della, instruindo-os nos princípios geraes da sciencia, e

na philosophia dos diversos ramos do direito”.189

e 190

Em período bem mais recente, precisamente em 1970, quase duas décadas antes da

atual Constituição brasileira de 1988, as palavras de Miguel Seabra Fagundes sobre a ordem

jurídica como império da Constituição – e das leis – detém importância singular no que diz

respeito à força normativa da Constituição, à limitação dos Poderes e à limitação

hermenêutica da vontade do intérprete.

A ordem jurídica não é um formalismo artificioso de bacharéis. É, antes de tudo, o

império da Constituição, na sua inteireza estrutural e na plenitude de sua dinâmica.

E quem diz Constituição, diz limitação de podêres, pois essa a finalidade precípua

das cartas constitucionais; quem diz limitação de podêres diz preservação de direitos

individuais, pois, quando se limita o poder é, precisamente, para salvaguardar êsses

direitos contra os abusos da fôrça; e quem diz preservação de direitos individuais diz

respeito à pessoa humana, em suas aspirações, em sua palavra, em sua vida, em sua

integridade física, intelectual e moral, pois nesses elementos é que está o cerne dos

direitos individuais.

A ordem jurídica não é um formalismo artificioso de bacharéis. É o império de tôdas

as leis, que completam o arcabouço normativo do Estado. É o império da lei, como

norma impessoal limitativa do poder dos governantes e da liberdade dos governados,

como norma de disciplina do convívio de todos, instrumento primário de paz no dia-

a-dia da vida coletiva, indispensável para que todos os sintam em segurança e para

que se possa construir, pelo trabalho tranqüilo, a prosperidade geral. Onde não haja

respeito à lei, imperará o arbítrio da vontade pessoal, e por mais virtuoso seja o

titular do poder sem peias, ninguém estará seguro se, nos direitos e na vida, ficar

dependente, sem apêlo, da sua tolerância e do seu acêrto. 191

Diante dessas palavras, é possível afirmar que Miguel Seabra Fagundes seja um

autor neoconstitucionalista por falar no império da Constituição e afastar o formalismo

artificioso? Seria ele um positivista moderno uma vez que alia os impérios das leis e da

Constituição? Ou um pós-neoconstitucionalista, no sentido de que acrescenta a tudo a

limitação do poder da vontade nos direitos e na vida?

189

BATISTA, Francisco de Paula. Compendio de hermeneutica juridica. Recife: Typ. Commercial de Geraldo

Henrique de Mira & C., 1860. p. 11. 190

Essa citação liga-se à ideia da colcha de retalhos indicativa de uma constituição que não seja uma onipresença

constante, conforme item 2.4. 191

FAGUNDES, Miguel Seabra. A legalidade democrática. Recife: OAB-PE, 1970. p. 22. (grifos nossos).

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Ora, depender, sem apelo, da boa-vontade e dos acertos do juiz, por mais virtuoso

que seja o magistrado, é incompatível com a limitação de poder hermenêutico que é própria

ao Estado Democrático de Direito.

É interessante notar que Miguel Seabra Fagundes distingue entre império das leis e

império da Constituição sem que, com isto, remeta a uma incompatibilidade, mas, antes, uma

complementariedade saudável, pois a limitação de poderes é inerente a ambos os impérios.

Daí que, além do respeito a princípios e regras constitucionais, é também imprescindível o

respeito a princípios e regras legais.

Assim, pode-se concluir que nem José Antonio Pimenta Bueno, nem Francisco de

Paula Batista, nem Ruy Barbosa, e muito menos Miguel Seabra Fagundes eram

neoconstitucionalistas.

De outra forma, aí sim se pode afirmar, o neoconstitucionalismo está mostrando

como novidade o que, em verdade, nem de longe seria. É bem verdade que o

neoconstitucionalismo acrescenta novos aspectos à teoria do direito como ponderação de

princípios e até de regras, só que, quanto ao mais, apresenta apenas o que já existe há mais de

um século, pelo menos.

Mas, mesmo que a retórica neoconstitucional brasileira busque convencer de que há

um marco zero que coincide com a redemocratização e promulgação da Constituição Federal

de 1988 sem amparo histórico; não há como afastar a possibilidade de que tal movimento

neoconstitucional perdure.

Se, por uma parte, em 1860, Francisco de Paula Batista criticava Savigny porque este

censurava os intérpretes que restringiam a interpretação aos casos de obscuridade quando

deveriam interpretar sempre, e, assim, a doutrina de Savigny “tam vaga e absoluta, pode

fascinar o interprete, de modo a faze-lo sahir dos limites da interpretação para entrar no

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68

dominio da formação do Direito”;192

por outra parte, em 2013, Marcelo Neves critica

justamente o fascínio dos juristas atuais pelos princípios,193

tipos de normas vagas e absolutas.

A pensar que a doutrina inovadora de Savigny prevaleceu, embora parcialmente

superada depois, talvez a atual e efusiva onda de princípios do neoconstitucionalismo também

se afirme enfim, mas sem caráter definitivo. É dizer, de tempos em tempos novos fascínios

conquistam as consciências, e abrem espaço novo para uma renovação de paradigmas ou

mesmo uma superação parcial dos existentes.

E essa difusão neoconstitucional ocorre num processo peculiar. Imagine-se uma

situação onde uma empresa faz uma camiseta com um passarinho verde e faz a publicidade;

os jovens, encantados com a ideia do passarinho da camiseta que representa flora e fauna,

compram e fazem a publicidade; a televisão faz reportagem sobre esse movimento de jovens

com a camiseta do passarinho verde e faz publicidade; os telespectadores jovens e velhos

querem entrar nessa onda jovem e compram a camiseta e fazem publicidade.

Essa situação foi imaginada por Umberto Eco, em 1983, ao enfrentar a questão das

‘mídias de mídias’ ou ‘mídias ao quadrado’. 194

Nessa situação imaginária – e possível nos

dias atuais –, torna-se difícil identificar com seria “o” produtor da ideologia: a empresa que

fabricou as camisas? Os jovens que as compraram? A televisão que fez a reportagem? Os que

assistiram a reportagem e compraram novas camisas? E se, diante desse movimento, um

cantor famoso resolve utilizar a camiseta nos shows? Para Umberto Eco, as teorias dos anos

60 e 70, nas quais os mass media apresentavam relações de poder onde um emissor com poder

192

BATISTA, Francisco de Paula. Compendio de hermeneutica juridica. Recife: Typ. Commercial de Geraldo

Henrique de Mira & C., 1860. p. 11. 193

NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes,

2013. p. 171, 175, 191, 196. 194

ECO, Umberto. Viagem da irrealidade cotidiana. Trad. de Aurora Fornoni Bernardini, e Homero Freitas de

Andrade. 5.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 180.

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69

controlador centralizado determinava a doutrinação ideológica dos destinatários vítimas dessa

dominação, precisam ser afastadas. 195

A indeterminação do ‘de onde vem o projeto’ conduz a afastar a crítica tradicional

das intensões,196

pois o projeto existe, mas pode não mais ser intencional. Essa percepção de

Umberto Eco quanto aos mass media bem se aplica ao imaginário jurídico da atualidade em

relação ao neoconstitucionalismo e à interpretação neoconstitucional.

No momento em que os discursos dos discursos sobre o neoconstitucionalismo

passam a preencher os espaços de discussão; momento em que cada novo ‘receptor’ do

discurso toma-o para si, imprime-lhe novos caracteres e passa adiante; no momento em que

esse ciclo projeta uma indeterminação sobre o ‘de onde vem esse projeto’, é nesse instante

onde o discurso neoconstitucional projeta-se como mídias ao quadrado, ou seja, torna-se um

mito197

que a todos e a ninguém pertence e que vem de algum lugar já não se sabe de onde. 198

3.6 PARADIGMA DO CENÁRIO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

O paradigma ou mitificação do cenário da Segunda Guerra Mundial, no sentido de

colocar as atrocidades que tiveram curso na Alemanha nazista como vetor do entendimento de

que o direito posto pelo Estado é um direito frio, alheio aos parâmetros de racionalidade e

sensibilidade, silente a degradação dos direitos humanos e ou agressões aos parâmetros de

195

ECO, Umberto. Viagem da irrealidade cotidiana. Trad. de Aurora Fornoni Bernardini, e Homero Freitas de

Andrade. 5.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 179-181. 196

ECO, Umberto. Viagem da irrealidade cotidiana. Trad. de Aurora Fornoni Bernardini, e Homero Freitas de

Andrade. 5.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 181. 197

Sobre mito e sua estrutura cf. subseção 4.3. 198

Conforme afirma Claude Lévi-Strauss: “Os mitos não têm autor; a partir do momento em que são vistos como

mitos, e qualquer que tenha sido a sua origem real, só existem encarnados numa tradição. Quando um mito é

contado, ouvintes individuais recebem uma mensagem que não provém, na verdade, de lugar algum; por essa

razão se lhe atribui uma origem sobrenatural”. LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. Trad. de Beatriz

Perrone-Moizés. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. p. 37. [Mitológicas v.1]

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justiça da civilização, constitui-se numa forma equivocada de enxergar o direito desse período

bélico e que beneficia o discurso do neoconstitucionalismo.

Essa mitificação da Segunda Guerra induz à crença no dever que tem o jurista de

afastar o direito positivo para fazer prevalecer o ideal de justiça. Assim, é um mito jurídico

que, embasado na noção de “direito nazista” como modelo de direito positivo, acaba por

olvidar que o Nacional-Socialismo derrubou o Direito Alemão para impor o regime ditatorial.

Nesse ponto, é interessante uma breve digressão histórica para apontar alguns traços

do que, em verdade, constituía-se o “direito nazista” sob o comando de Adolf Hitler, na

Alemanha, no período que vai de 1933 – ascensão ao poder – até 1945 – término da guerra.

Se, por um lado, o constitucionalismo do séc. XIX era caracterizado por tendência

individualista,199

de caráter privatista do direito; o início do séc. XX, por outro lado, vem

marcado pelo que Segundo V. Linares Quintana nominou de constitucionalismo social, 200

que

é um movimento constitucional do pós-Primeira Guerra Mundial que afirma e hierarquiza os

direitos sociais face aos direitos individuais que passam a sofrer de limitação em função de

interesses da sociedade.

Sob essa tendência de constitucionalismo social, observa Gregorio Badeni, diversas

constituições emergem após a Primeira Guerra Mundial, são elas: a do México de1917, a de

Weimar de 1919, a da Finlândia de 1919, a da Áustria de 1920, a da Estônia de 1920 e a da

Polônia de 1921. 201

Junto a isso, diz o autor, há forte renascimento de doutrinas totalitárias

transpersonalistas que consideram o homem “não como objeto final da atividade política, mas

simplesmente como uma ferramenta ou instrumento para alcançar outros fins que são

199

BADENI, Gregorio. Tratado de derecho constitucional. 2.ed. atual. e ampl. Buenos Aires: La Ley, 2006, t.

I, p. 44. 200

LINARES QUINTANA, Segundo V. Tratado de la ciência del derecho constitucional argentino y

comparado. Buenos Aires: Alfa, 1953. t. I. p. 121, 124 e ss. 201

BADENI, Gregorio. Tratado de derecho constitucional. 2.ed. atual. e ampl. Buenos Aires: La Ley, 2006, t.

I, p. 44.

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apresentados como valores superiores à dignidade da pessoa humana”.202

Aí, o comunismo na

Rússia (1918), o fascismo na Itália (1922) e o nacional socialismo na Alemanha (1933) se

destacam, e, dentre estes, o nazismo alemão sob o comando de Adolf Hitler é ainda mais forte

e simbólico, com maior nível de intolerância, violência, crueldade e desumanidade.

Tomando o exemplo da Alemanha no período entre as Guerras Mundiais, Ernst

Cassirer203

aponta para o fato de que o verdadeiro início do rearmamento está na criação e

desenvolvimento dos mitos políticos modernos, e isto precede o rearmamento militar

propriamente dito, pois o rearmamento mental veio antes através do mito. O autor adverte

para o fato de que:

O mito foi sempre descrito como o resultado de uma atividade inconsciente e como

um produto livre da imaginação. Mas aqui encontramos o mito feito de acordo com

um plano. Os novos mitos políticos não crescem livremente; não são frutos bravios

da imaginação exuberante. São coisas artificiais fabricadas por artesãos hábeis e

matreiros. [...] A partir de agora os mitos podem ser fabricados no mesmo sentido e

de acordo com os mesmos métodos utilizados no fabrico de armas – as

metralhadoras e os aviões”. 204

É neste sentido que a propaganda vai ser fundamental para os intuitos nazistas. A

esse propósito, em poucas palavras, a importância de Josef Goebbels para os planos de Adolf

Hitler eram evidentes. Em síntese, ele era arquiteto da imagem messiânica do Führer, e

empenhava talento na política expansionista e racial nazista, induzindo o povo neste

sentido.205

Como ministro da propaganda de Hitler, Josef Goebbels foi responsável pela

202

Tradução livre de: “no como objeto final de la actividad política, sino simplemente como una herramienta o

instrumento para alcanzar otros fines que son presentados como valores superiores a la dignidad humana”.

BADENI, Gregorio. Tratado de derecho constitucional. 2.ed. atual. e ampl. Buenos Aires: La Ley, 2006, t. I,

p. 45. 203

CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 300. 204

CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 300. 205

A Revista VEJA on-line, em 2005, produziu uma série de edições especiais simulando edições de revista da

época e, dentre estas, uma de setembro de 1939 com o texto O cérebro do Reich. CAMPOS JR., Celso de. O

cérebro do Reich. VEJA on-line, Veja na História, II Guerra Mundial, abr. 2005 [simula uma edição de revista

de setembro de 1939]. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/especiais_online/segunda_guerra/edicao001/

perfil.shtml>. Acesso em: 10 jun. 2013.

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estruturação da imagem pública do Führer, não apenas a imagem política, mas, sobretudo, a

messiânica.206

e 207

O cinema era importante aos planos nazistas. Na concepção de Hitler, 208

das

imagens mais simples ao cinema, todas facilitam a captação das mensagens quase de forma

instantânea, dispensando o peso de um trabalho mental, e daí as grandes possibilidades de sua

utilização. Conforme Valéria Cristiane Moura dos Santos, através da obra de Paul Joseph

Goebbels o cinema “era a forma mais eficiente para a divulgação de imagens, pois distraía a

atenção para qualquer possível derrota do exército alemão”.209

Adolf Hitler chega a afirmar que “a arte da propaganda reside justamente na

compreensão da mentalidade e dos sentimentos da grande massa. Ela encontra, por forma

psicologicamente certa, o caminho para a atenção e para o coração do povo”. 210

Os três princípios que fundamentavam o Estado nazista eram o nacionalismo, o

racismo e o princípio de autoridade.211

Quanto ao nacionalismo, característica marcante é o

206

De acordo com Wagner Pinheiro Pereira: “Durante o regime nazista foram produzidos inúmeros filmes, que,

de diversas formas, exaltavam o nazismo e a liderança de Adolf Hitler, encorajavam o nacionalismo exacerbado

e o espírito militar, assim como incitavam sentimentos racistas e xenófobos na sociedade alemã, através da

criação de estereótipos dos inimigos da nação, apontando o comunismo como uma ameaça maléfica aos ideais da

civilização ocidental e acusando os judeus de possuírem planos demoníacos de dominação mundial”. PEREIRA,

Wagner Pinheiro. O poder das imagens: cinema e política nos governos de Adolf Hitler e de Franklin D.

Roosevelt (1933-1945). São Paulo: Alameda, 2012. p. 20. 207

CAMPOS JR., Celso de. O cérebro do Reich. VEJA on-line, Veja na História, II Guerra Mundial, abr. 2005

[simula uma edição de revista de setembro de 1939]. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/especiais_online/

segunda_guerra/edicao001/perfil.shtml>. Acesso em: 10 jun. 2013. 208

Neste sentido, afirma Adolf Hitler: “Grandes possibilidades possui a imagem sob todas as suas formas, desde

as mais simples até ao cinema. Nesse caso, os indivíduos não são obrigados a um trabalho mental. Basta olhar,

ler pequenos textos. Muitos preferirão uma representação por imagens à leitura de um longo escrito. A imagem

proporciona mais rapidamente, quase de um golpe de vista, a compreensão de um fato a que, por meio de

escritos, só se chegaria depois de enfadonha leitura”. HITLER, Adolf. A luta dos primeiros tempos: a

importância da oratória. In: ______. Minha luta. São Paulo: Moraes, 1983. p. 293. 209

SANTOS, Valéria Cristiane Moura dos. Luz, câmera, Hitler! cinema e propaganda a serviço do nazismo. In:

VI Simpósio Nacional de História Cultural, Escritas da História: Ver – Sentir – Narrar, Universidade Federal

do Piauí–UFPI, Teresina-PI. Disponível em: <http://gthistoriacultural.com.br/VIsimposio/anais/Valeria%20

Cristiane%20Moura%20dos%20Santos.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2013. p. 6. Como adverte Morton Luiz Faria

de Medeiros, o cinema pode “servir como poderoso instrumento de escamoteamento da realidade – mais do que

para a descoberta da verdade”, e exemplifica com o caso das obras cinematográficas de Leni Riefenstahl que

realçavam a superioridade da raça ariana e, assim, preparavam o povo alemão para a guerra e colocavam Adolf

Hitler numa posição de arquiteto da beleza da padronização racial. MEDEIROS, Morton Luiz Faria de. Direito e

cinema: conciliação possível? In Verbis, Natal, a. 14, n. 25, jan./jun. 2009. p. 286. 210

HITLER, Adolf. A propaganda de Guerra. In: ______. Minha luta. São Paulo: Moraes, 1983. p. 121.

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sacrifício do indivíduo em beneficio da comunidade ou, nas palavras do próprio Adolf Hitler,

“o idealismo genuíno não é mais nem menos do que a subordinação dos interesses e da vida

do indivíduo à coletividade [...] fazendo deles uma poeirinha insignificante naquela

organização que forma e constitui o Universo”.212

O indivíduo, bem se percebe, era um nada diante da ideia de coletividade, era o

indivíduo um ser nulo. Aliado a isto, conforme vai afirmar William L. Shirer, uma das

primeiras tarefas de Hitler foi “transformar seu partido em senhor absoluto do Estado”.213

Assim, o Führer detinha sob seu poder e comando o Partido, o Estado e todos os indivíduos.

Na Alemanha nazista, diz William L. Shirer,214

Adolf Hitler deixou claro que o III

Reich seria regido pelo princípio da liderança – verdadeira ditadura – e não pelo absurdo

democrático. A autoridade do Estado era o Führer e este era a fonte do direito e da justiça.215

A centralização do poder em Adolf Hitler era tamanha que, conforme comenta Linares

Quintana,216

ele era chefe supremo do governo, da administração e do exercito, além de

legislador soberano e a substancialização da justiça.

No documentário “O triunfo da vontade”, de 1935, Adolf Hitler é retratado numa

posição messiânica de liderança e o povo aparece como uma massa integrada ao regime

nazista. Sobre esse ponto, Wagner Pinheiro Pereira descreve:

Hitler é visto, à parte, sobre o alto do palanque, encimado pela imensa águia do

Reich, intensamente iluminada; ele é fotografado de baixo para enfatizá-lo

individualmente, enquanto a identidade dos outros participantes emerge na massa.

Para acentuar que a figura do Führer constitui o ponto de convergência das forças

211

LINARES QUINTANA, Segundo V. Tratado de la ciência del derecho constitucional argentino y

comparado. Buenos Aires: Alfa, 1953. t. I. p. 168. 212

HITLER, Adolf. Povo e raça. In: ______. Minha luta. São Paulo: Moraes, 1983. p. 194. 213

SHIRER, William L. Ascenção e queda do III Reich. Trad. de Pedro Pomar. 3.ed. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1963. v. I, p. 283. 214

SHIRER, William L. Ascenção e queda do III Reich. Trad. de Pedro Pomar. 3.ed. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1963. v. I, p. 138. 215

Afirma Wagner Pinheiro Pereira, “o princípio do líder (Führerprinzip) se tornou o fundamento do poder

nazista: a estrutura piramidal culminava no Führer, chefe carismático e o vértice supremo, fonte do direito e base

de legitimação da ditadura”. PEREIRA, Wagner Pinheiro. O poder das imagens: cinema e política nos

governos de Adolf Hitler e de Franklin D. Roosevelt (1933-1945). São Paulo: Alameda, 2012. p. 84. 216

LINARES QUINTANA, Segundo V. Tratado de la ciência del derecho constitucional argentino y

comparado. Buenos Aires: Alfa, 1953. t. I. p. 171-172.

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que afluem, a sucessão de planos tem por princípio de base a alternância de tomadas

da massa e de Hitler.217

A precisão técnica do documentário faz com que “não é mais possível perceber se a

câmera filmou uma parada militar real ou se tudo foi apenas encenado para ele: teria o

congresso criado o filme, ou seria o filme que criou o congresso?”. 218 Aí um típico caso de

simulação do real, onde a realidade criada passa a produzir uma nova realidade.219

É nesse ambiente de centralização suprema de poderes que o nazismo desenvolve a

sua política racial. O racismo ou intolerância racial era justificado na noção de pureza da raça

ariana em relação às demais raças presentes na Alemanha, notadamente quanto ao povo

judeu.220

Assoma-se a isto uma situação peculiar que denunciada por Hannah Arendt faz sobre

o que ela chama de banalidade do mal.221

A filósofa vai perceber, no julgamento do nazista

Adolf Eichmann, que este era um mero burocrata que se via como respeitador da lei222

e

cumpridor de ordens que exercia com zelo seu trabalho para ascender na carreira, e que, sem

preocupar-se com sentimento de bem ou de mal, o nazista conduziu milhares de vidas ao

extermínio em campos de concentração. Ou seja, a barbárie dá-se não apenas por imposição

do poder político ou militar, mas com a conivência das mentes captadas pela propaganda e

intensões nazistas.

A este propósito, vale registrar as palavras de Ernst Cassirer:

217

PEREIRA, Wagner Pinheiro. O poder das imagens: cinema e política nos governos de Adolf Hitler e de

Franklin D. Roosevelt (1933-1945). São Paulo: Alameda, 2012. p. 267. 218

PEREIRA, Wagner Pinheiro. O poder das imagens: cinema e política nos governos de Adolf Hitler e de

Franklin D. Roosevelt (1933-1945). São Paulo: Alameda, 2012. p. 260. A referência é ao Congresso de

Nuremberg, que é retratado no documentário “O triunfo da Vontade”. 219

Conferir a subseção 4.3, principalmente na parte da teoria de Jean Baudrillard sobre simulacros e simulação. 220

HITLER, Adolf. Minha luta. São Paulo: Moraes, 1983. passim. 221

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. de José Rubens

Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 274 e 310-311. E também: ARENDT, Hannah. A vida do

espírito. Trad. de Cesar Augusto de Almeida, Antônio Abranches, e Helena Martins. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2009. p. 17-18. 222

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. de José Rubens

Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 152-154.

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Os modernos mitos políticos procedem de maneira radicalmente diferente. Não

começam por proibir ou requerer certas ações. Empreenderam mudar os homens a

fim de poderem regular e controlar os seus atos. Os mitos políticos atuam como a

serpente que tenta paralisar a sua vítima antes de atacá-la. Os homens caem sem

qualquer resistência séria. Foram vencidos e subjugados antes de compreenderem o

que lhe estava acontecendo. 223

Após a guerra, com a queda do III Reich, surge um momento em que a humanidade

percebe que o direito deve andar em compasso com a dimensão da justiça – e isto evidenciado

ao extremo após a barbárie sem limites do nazismo – a cultura jurídica inicia a implementar

esforços no sentido prover novo norte teórico ao positivismo, onde o imaginário da lei e do

direito passa a depender da legitimação da moral e da justiça.

Nesse sentido, a hermenêutica constitucional, antes adstrita às regras clássicas de

interpretação da lei,224

passa a contar com o surgimento de novas teorias da interpretação.225

Essa novel hermenêutica constitucional lança um olhar à Constituição e ao ordenamento

jurídico, e isto vai implicar no desenvolvimento de uma nova dimensão interpretativa onde

valores morais atuam como limite cognitivo ao alcance de legitimação da normatividade.

Nada mais esperado que a um novo constitucionalismo (neoconstitucionalismo) deva

corresponder uma nova hermenêutica,226

ou seja, uma interpretação neoconstitucional. Essa

nova teoria ressalta uma matiz volitiva do intérprete que passa a ajustar a temperança da

normatividade jurídica com base em valores morais que seriam integrados à interpretação do

direito para, com isso, prover legitimidade ética às decisões e escapar aos riscos do tecnicismo

positivista.

223

CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 304. 224

Os métodos lógico, gramatical, histórico e sistemático descritos por Friedrich Karl von Savigny. SAVIGNY,

Friedrich Karl von. Metodologia jurídica. Trad. de Heloísa da Graça Buratti. São Paulo: Rideel, 2005. p. 24-26. 225

Dentre essas teorias, a tópica jurídica de Theodor Viehweg, e o modelo concretista de Friedrich Müller. 226

A ideia de Nova Interpretação Constitucional vem no artigo de Luís Roberto Barroso e Ana Paula de

Barcellos. BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula. O começo da história: a nova interpretação

constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A nova

interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 3.ed. Rio de Janeiro:

Renovar, 2008. p. 330-358. Também disponível em: BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula. O

começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: SILVA,

Virgílio Afonso da (Org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007.

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Todavia, a crescente valorização dos direitos humanos fundamentais, a maior

conscientização dos direitos da cidadania, a elevada demanda por judicialização de conflitos

(aqui somada à insuficiência dos meios alternativos de resolução de conflito), tudo vai

desaguar na forma de montanhas de processos destinados a um Judiciário pouco preparado

para essa onda de conflitualidade sem precedentes,227

e a Justiça entra num ciclo de

dificuldades onde o acúmulo de processos mostra-se superior à capacidade de prover

decisões.

Nesse sentido, o risco de decisionismos, de decisões sem fundamentação na

Constituição e sim somente na sensação do justo que perpassa a consciência individual do

intérprete, traz à tona a discussão sobre a retomada da base de ideias juspositivistas, mesmo

que, agora, repensadas sob o prisma de ajustamento às necessidades sociais.

Aqui, é possível divisar que, ao substituir o elemento técnico do juspositivismo (a

ideia de direito positivado) pelo elemento ético do neoconstitucionalismo (a ideia de justiça),

fica no meio do caminho a alternativa da razoabilidade de uma solução compartilhada, qual

seja: a junção entre técnica e ética alinhadas numa teoria da interpretação.

À medida que o direito positivo é destituído de seu poder de fundamentação

normativa e as resoluções jurídicas passam a ser embasadas na ideia geral de justiça, na

equidade, nos princípios éticos e valores morais, o ordenamento jurídico perde em força

normativa e passa a atuar como instrumento de convalidação à posteriori dos ditames fáticos:

é quando a realidade sociológica se sobrepõe à realidade jurídica.

227

José Eduardo Faria fala em explosão de litigiosidade. Cf.: FARIA, José Eduardo. Introdução: o judiciário e o

desenvolvimento sócio-econômico. In: ______ (Org.). Direitos humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo:

Malheiros, 2005. p. 11. Em expressão semelhante, Celso Fernandes Campilongo fala ‘conflituosidade cada vez

mais explosiva’. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os desafios do judiciário: um enquadramento teórico. In:

FARIA, José Eduardo (Org.). Direitos humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 30.

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77

O direito enfraquecido perde o vigor de sua função e a sociedade passa a ficar refém

da boa-vontade dos intérpretes, dos princípios e valores morais que serão utilizados para ditar

o que é e o que não é a justiça.

E, nesse sentido, eleger o neoconstitucionalismo sob o manto mítico de que a

Segunda Guerra Mundial demonstrou que o direito do Estado é um direito com comprovado

potencial danoso, revela isso uma crença – ou ingênuo desconhecimento – de que nem o

“direito nazista” era direito nem o regime nazista era uma democracia,228

mas sim imperava o

poder do arbítrio que se utiliza do poder político e militar para afastar o direito positivado e

colocar em seu lugar um conjunto de normas que eram espelho da vontade ditatorial sem

limites.

Essa temática dos mitos induz a uma analise sobre planos distintos de realidade.

Nesse sentido demanda, ao menos, uma breve análise da alegoria da caverna de Platão, do

demônio enganador de Descartes e da máquina de experiências de Nozick para, após, estudar-

se a estrutura dos mitos em Mircea Eliade e Ernst Cassirer e as ideias de simulacro e

simulação de Baudrillard que fecham as perspectivas teóricas do limite entre real e aparente.

228

Wagner Pinheiro Pereira escreve que, após a aprovação da “Lei de Plenos Poderes” ao Führer em 23 de

março de 1933, que atribuía a Adolf Hitler autoridade ditatorial, o presidente dos social-democratas que eram

oposição, senhor Otto Wels, denuncia que havia ocorrido o sepultamento da democracia. Era a ascensão de

Adolf Hitler ao poder. PEREIRA, Wagner Pinheiro. O poder das imagens: cinema e política nos governos de

Adolf Hitler e de Franklin D. Roosevelt (1933-1945). São Paulo: Alameda, 2012. p. 81.

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78

4 MITIFICAÇÃO DA REALIDADE JURÍDICA

A relação dialógica entre direito e sociedade implica em transitividade de sentidos e

percepções de uma a outra realidade: a realidade normativa reflete e ordena o social; a

vivencial informa e modela o direito.

Para além de pontos de tangência, as relações do direito com a sociedade constituem

interconexões mais profundas, uma verdadeira rede de associações onde o imaginário e a

crença informam as bases de uma mitologia jurídica que se imbrica no âmago da cultura.

Nesses fluxos e transcrições, aspecto importante diz respeito às ideias de

representação da realidade, as noções de criação, recriação e transmutação do real para ele

mesmo ou coisa diversa, e aí reside a importância e relevância da delimitação dos conceitos

de espetáculo, mito, simulacro e simulação, bem como na racionalização e assimilação dos

limites de cognição do real, da verdade que banha de luz os olhos na vigília e nos sonhos.

4.1 FICÇÃO JURÍDICA COMO ESPETÁCULO DA REALIDADE

A ficção jurídica, com a representação das verdades admitidas na linha do tempo da

vida, conecta-se com o espetáculo da realidade e promete ao mundo do social uma esfera do

normativo capaz de ordenar as expectativas e atitudes dos indivíduos com base na crença e na

confiança no direito.

O real, para Guy Debord, utiliza-se do espetáculo para descrever a realidade e, com

isso, anula-se a si mesmo, pois o espetáculo passa a ser uma descrição da sociedade que é

descrita por ele, ou seja, não há mais realidade que não a realidade espetacular e, com isso, “a

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79

realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real”.229

Essa mútua alienação é a base da

sociedade onde a verdade é a verdade produzida no espetáculo. É o espetáculo o sonho

sonhado pela sociedade que deseja dormir,230

que se contenta em sonhar.

Nesse momento, o que existe é o que está no espetáculo e nada mais. Em termos

práticos, pode-se utilizar dos exemplos de que “o que não está nos autos (do processo) não

está no mundo”231

, ou “o que não está na mídia não está no mundo”232

, ou ainda, “o que não

está no Google não está no mundo”233

.

Esses tipos de racionalizações são pequenas demonstrações de uma realidade

limitada e paradoxalmente completa, total. E no espetáculo ainda tem-se algo maior: essa

parcela de realidade tomada como realidade completa é um produto do espetáculo, é uma

parcela de realidade que foi fabricada pelo espetáculo.

O espetáculo seria uma simulação de realidade que passa a ser tomada como a

própria realidade descrita por ele. No momento seguinte, o espetáculo é descrito pela

realidade inventada por ele e, com isso, há uma autodescrição e a realidade anterior já não

importa. E nesse momento, onde a realidade inventada abrange a si mesma e a seu oposto (a

realidade real), é que a realidade real deixa de existir para tornar-se espetáculo.

229

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto,

1997. p. 15. 230

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto,

1997. p. 19. 231

O provérbio latino “quod non est in actis, non est in mundo” indica que os fatos são os que estão registrados

nos autos do processo, ou seja, “o que não está nos autos, não está no mundo”. 232

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto,

1997. p. 182. O filme “Para Roma com amor”, dirigido por Woody Allen, lançado no Brasil em 29/07/2012,

trata dessa temática ao descrever o fenômeno da fama repentina de um personagem que fica famoso do dia para a

noite e, com a mesma rapidez que se torna celebridade, retorna ao anonimato dias após. Cf. Site Adorocinema.

Disponível em: < http://www.adorocinema.com/filmes/filme-192634/>. Acesso em: 15 jun. 2013. 233

A expansão e a amplitude de busca de dados na internet é fator para que buscadores como o Google sejam

vistos como uma espécie de todo da realidade, ou noutras palavras, se existe o Google encontra.

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Como escreve Guy Debord, “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma

relação social entre pessoas, mediada pela imagem”.234

Todavia, nem sempre há uma

substituição no sentido de falsear ou substituir a realidade, mas sim, e deve ser o normal do

direito, uma representação como história verdadeira sobre a realidade para que as pessoas

tomem a ordem normativa como simbolismo do que deve ser, como mitificação das

experiências que orientam as condutas em benefício das expectativas compartilhadas de

segurança, mas, também, como adverte Tércio Sampaio Ferraz Junior, contendo “as filosofias

da obediência e da revolta”.235

Aceitação e possiblidade de irresignação devem estar presentes

no conteúdo do direito, e não podem ser esquecidos ou afastados na mitificação.

Parte por parte, a começar pela noção de limite da percepção da realidade, as linhas

que seguem apresentam a discussão da ficção jurídica como espetáculo da realidade. A

realidade social, a que está diante de nossos olhos e que é narrada através do direito, é a base

de tudo e, ao mesmo tempo, ela é informada e criada ou recriada pelo direito que, como

transcendência de ficção, torna concreto e solidifica as normas de seu enredo.

4.2 ALEGORIA DA CAVERNA E O MUNDO DOS SENTIDOS

Platão, no diálogo “Político”,236

propõe a seguinte ideia: vemos as coisas como num

sonho e acreditamos no conhecimento que temos delas, mas, ao despertarmos, descobrimos

que era tudo irreal, que nada sabíamos.

234

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto,

1997. p. 14. 235

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4.ed.

rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2003. p. 31. 236

PLATÃO. Político. In: ______. Diálogos: O banquete - Fédon - Sofista - Político. Trad. de José Cavalcante

de Souza (O banquete), e Jorge Paleikat e João Cruz Costa (Fédon, Sofista, Político). São Paulo: Abril Cultural,

1972. p. 232.

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Jorge Luis Borges escreve o conto “O outro” onde relata um encontro consigo

mesmo.237

Numa manhã do mês de fevereiro de 1969, Jorge Luis Borges estava recostado em

um banco quando senta ao seu lado Jorge Luis Borges aproximadamente mais novo. O velho

sabia estar em Cambridge; o novo, em Genebra. O Borges velho diz ao novo que os dois são a

mesma pessoa e tenta provar contando coisas que apenas eles saberiam, ao que o Borges novo

faz duas objeções: poderia ser um sonho onde ele e ele mesmo compartilhariam lembranças;

e, acaso o Borges idoso fosse ele, Borges novo, então teria lembrado desse encontro consigo

mesmo em 1918.

Essa experiência onde uma pessoa encontra com ela mesma mais jovem, num banco

que estava em dois lugares (Cambridge e Genebra) e em dois tempos diferentes (1969 e

1918), é explicada pelo Borges idoso assim: "Acredito ter descoberto a chave. O encontro foi

real, mas o outro conversou comigo num sonho e por isso pôde me esquecer; eu conversei

com ele na vigília e a lembrança ainda me atormenta".238

Resta claro que o conto de Borges difere em parte da referida ideia de Platão. Em

Borges, a personagem idosa entende ter entrado no sonho dela mesma quando era mais

jovem. Aí, portanto, não se trata de uma transposição da realidade onírica para a vigília, tanto

que a personagem que sonha e a que está em vigília compartilham um banco situado em dois

lugares e em dois tempos diferentes.239

Na ideia exposta por Platão há algo distinto do que é exposto no conto de Borges, ou

seja, Platão expõe a noção de um acordar do sonho para o estado de vigília real ou sonhado,

ou, noutras palavras, a transposição de planos de realidade da onírica para a vigília ou da

237

BORGES, Jorge Luis. O outro. In: ______. O Livro de Areia. Trad. de Davi Arrigucci Jr. São Paulo:

Companhia das Letras, 2009. p. 7-16. [2ª reimpressão] 238

BORGES, Jorge Luis. O outro. In: ______. O Livro de Areia. Trad. de Davi Arrigucci Jr. São Paulo:

Companhia das Letras, 2009. p. 16. [2ª reimpressão] 239

Para uma visão aproximada de compartilhamento parcial da realidade, vale conferir Juan Antonio Rivera

quando cita um dos fragmentos de Heráclito: “Os despertos compartilham um mundo único e comum, enquanto

cada um dos que dormem se encerra em seu mundo particular”. ANTONIO RIVERA, Juan. O que Sócrates

diria a Woody Allen: cinema e filosofia. Trad. de Magda Lopes. São Paulo: Planeta, 2013. p. 214.

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onírica para outra realidade também sonhada, mas que o sonhador a compreende como sendo

seu estado de vigília. 240

Ocorre algo parecido com a ideia platônica quando no filme “Matrix” 241

a

personagem Neo descobre – através das palavras do Arquiteto – que havia outros salvadores

antes dele e que, portanto, essa revolta era uma realidade simulada pela Matrix (precisamente

a sexta versão simulada), e daí não ser realmente uma revolta, mas um sonho sonhado no

intuito de manter os humanos resistentes ao programa dentro da realidade criada por ele. Seria

uma espécie de realidade inventada de segunda ordem. Uma realidade irreal de onde poderia

perceber a outra realidade inventada pelo programa. Em síntese, o mesmo sonho sonhado

pelos demais, um falso modelo de revolução242

e não uma revolta efetivamente.

É possível pensar em situação semelhante tomando-se por base o mito da caverna de

Platão para, a partir daí, imaginar que o sair da caverna seria apenas um entrar numa realidade

de nível superior, ou seja, a realidade de segunda ordem, de terceira, quarta e assim por

diante. De tal forma, o homem sairia da caverna para entrar numa caverna maior, e desta

caverna maior ele sairia para entrar noutra ainda maior. Algo parecido com a situação de

acordar de um sonho onde sonhava que estava acordando dum outro sonho. Como afirmar que

ainda não estamos sonhando? Difícil, e muito improvável, afirmar isso com certeza.

240

No poema Sonho, há interessante perspectiva que trabalha essa ideia de Platão sobre transposição de

realidades, pois considera múltiplos planos de transposição. In verbis: “Acordei / De um sonho / Em que sonhava

/ Que estava acordando / De um outro sonho / Em que sonhava / Que também acordava / E continuei a acordar /

De outros sonhos / Onde sempre acordava / E continuava a acordar”. OLIVEIRA SEGUNDO, Jair Soares de.

Sonho. In: ______. Casinha de ipê. Natal: no prelo. 241

“Matrix” trata-se de uma trilogia de filmes. As datas de lançamento no Brasil de cada um dos filmes foram,

respectivamente: “Matrix” lançado em 05/05/1999, “Matrix Reload” em 23/05/2003, e “Matrix Revolutions” em

05/11/2003. 242

Guy Debord nos esclarece sobre esses falsos modelos ao dizer que a sociedade do espetáculo tanto apresenta

os pseudobens a desejar quanto apresenta aos revolucionários os falsos modelos de revolução. DEBORD, Guy.

A sociedade do espetáculo. Trad. de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 38-39.

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83

É interessante um breve desenvolvimento. No livro “A república”, capítulo VII,

Platão trata da alegoria da caverna.243

Platão parte da ideia de seres humanos que viviam

acorrentados numa caverna de forma a não poderem olhar para fora da caverna. Esses seres

humanos estavam acostumados desde sempre com a realidade do interior da caverna e

nenhum contato tinham com a realidade exterior – de fora da caverna – a não ser pelo fato de

que as imagens dessa realidade externa apareciam na realidade interna através de sombras

projetadas nas paredes da caverna.

Ocorre que um desses seres humanos consegue se libertar e sai da caverna. A luz do

exterior da caverna, a luz solar, causa enorme incômodo ao recém-ingresso nessa realidade

externa e seus olhos ardem. Pouco depois, já acostumado à nova realidade (de segunda

ordem) essa pessoa retorna à realidade da caverna para contar o que viu na parte externa, mas

os demais seres humanos que o ouvem o consideram louco.

A história segue, mas o que interessa está nesse ponto. O ser entrou numa nova

realidade e logo após retornou à realidade da caverna para contar aos demais o que viu. Nesse

momento, ambas as realidades – a da caverna e a do exterior – fazem parte da realidade única

dessa pessoa.

O retorno à caverna passa, então, a simbolizar que a realidade tornou-se uma só, uma

realidade mais ampla formada pela caverna e seu exterior, e é nesse preciso momento em que

esse ser retorna à caverna. Ele está novamente conformado com a realidade diante de seus

olhos, claro que agora uma realidade mais ampla, uma caverna maior. Se antes essa pessoa

assistia um espetáculo, agora também continua a assistir, só que um novo espetáculo, não

mais de sombras, mas de novas imagens autênticas (sim, pois as sombras nas paredes da

caverna constituíam até então imagens autênticas).

243

Trataremos como mito da caverna. Como o intuito aqui é elaborar uma ideia relativa a essa alegoria e não,

propriamente, descrever novamente o que pode ser facilmente encontrado numa das traduções da obra,

remetemos ao texto integral: PLATÃO. A república. São Paulo: Nova Fronteira, 2011, [col. Saraiva de bolso].

p. 279-319.

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Disto pode-se abstrair que o próprio mito da caverna é capaz de expressar a ideia de

várias cavernas, uma dentro da outra, onde o sair da caverna C1 implica numa posterior

percepção de que, em verdade, essa realidade exterior à caverna C1 é tão somente a caverna

C2, e o sair da caverna C2 é um entrar na caverna C3 e assim por diante. Dessa forma, quando

o habitante da caverna de Platão sai da caverna e pensa ter apreendido o conhecimento da

realidade exterior, ele apenas tomou conhecimento da realidade da caverna C2.

E daí, a interpretação seria a de que a alegoria de que o homem retorna à caverna

(C1) para contar da sua experiência no exterior da caverna (C1) é tanto mais um aperceber-se

de que ele entrou numa caverna maior (C2) que engloba as realidades da caverna C1 e C2. É

nesse sentido que se toma aqui a ideia de despertar do sonho para a vigília e, nesse sentido, a

vigília seria um novo sonho sonhado, e um novo despertar um novo sonho.

Mas é claro que a interpretação habitual é a que toma do mito da caverna uma

representação para dizer que as sombras na caverna seriam o simulacro das verdades ideais ou

formas essenciais, uma vez que ao homem é impossível o conhecimento direto das ideias, até

por inerente limitação dos sentidos humanos – visão, audição e os demais.

Diz Carl G. Jung que a percepção do mundo fenomênico é limitada pelos cinco

sentidos, e que instrumentos como binóculos ampliam essa percepção do mundo ao redor,

mas que há “um limite de evidências e de convicções que o conhecimento consciente não

pode transpor”.244

Carl G. Jung245

acrescenta, ainda, que há aspectos inconscientes nessa interação

perceptiva da realidade, ou seja, as experiências, quando transpostas do plano fenomênico

para a mente, podem em parte serem gravadas abaixo do limiar da consciência e, num tempo

posterior, a mente pode resgatar do inconsciente através, por exemplo, de uma intuição ou

244

JUNG, Carl G. Chegando ao inconsciente. In: JUNG, Carl G. (Concepção e Org.). O homem e seus

símbolos. Trad. de Maria Lúcia Pinto. 12.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 21. 245

JUNG, Carl G. Chegando ao inconsciente. In: JUNG, Carl G. (Concepção e Org.). O homem e seus

símbolos. Trad. de Maria Lúcia Pinto. 12.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 23.

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uma reflexão os aspectos emocional e vitalmente importantes, tal qual é manifesto e emergem

ao consciente através dos sonhos.

Entrar em análises psíquicas, decerto, escapa ao objetivo da presente pesquisa, mas é

importante firmar a convicção de que as percepções, reflexões, convicções e crenças, para

ficar nessas, sofrem inegável influência de processos além ou aquém da consciência na

revelação da compreensão do mundo fático.

Para Juan Antonio Rivera, o preso que se liberta da caverna na alegoria de Platão é a

representação de um filósofo, pois “por curiosidade e amor ao saber, empreende a penosa

ascensão do mundo sensível [...] para o mundo inteligível, em que habitam as Formas ou

Arquétipos das coisas, os objetos universais que constituem a única e autêntica realidade”. 246

As Formas ou Arquétipos que integram o ‘mundo exterior à caverna’ de Platão são

seres ou objetos ideais, no sentido de que são as verdadeiras essências das formas aparentes

que as pessoas conseguem captar apenas uma sua “sombra” através dos (cinco) sentidos no

mundo sensível.

Enquanto em Platão o mundo sensível representa, como aparência, o mundo das

essências ou ideias; no direito, o mundo das normas, que são ideias, representam o mundo

sensível, que coincide com o mundo real. Para demonstrar como isso ocorre na seara do

direito, basta pensar no exemplo da ideia de ‘mulata fundamental’247

que Luz Alberto Warat

cria para explicar o que seria a ‘norma hipotética gnosiológica’ de Hans Kelsen.

Luiz Alberto Warat escreve uma história de ficção sobre cientistas alienígenas que

chegam ao Rio de Janeiro para estudar as mulatas, uma vez que haviam criado no planeta

246

ANTONIO RIVERA, Juan. O que Sócrates diria a Woody Allen: cinema e filosofia. Trad. de Magda

Lopes. São Paulo: Planeta, 2013. p. 211. 247

Diz Luz Alberto Warat que “A MF [Mulata Fundamental] é fruto de um ato de conhecimento, como ser

inexistente não pode produzir ato de vontade. Ele é ato imaginário produtor de sentido. Produz o sentido da

mulata. Ela é o ato produtor de definição, no caso, a definição de um ato de conhecimento: a mulatologia”.

WARAT, Luiz Alberto (texto); CABRIADA, Gustavo Pérez (desenho). Os quadrinhos puros do direito.

Argentina: Angra Inpresiones, 198?. Disponível em: <http://ruadosbragas223.no.sapo.pt/DIREITO/

Os_Quadrinhos_Puros_do_Direito_WARAT.pdf>. Acesso em: 6 ago. 2013.

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deles a disciplina ‘mulatologia’, e, nesse sentido, eles elaboram um modelo imaginário de

mulata para que os pesquisadores de campo possam distinguir quais as mulheres são mulatas

dentre as loiras, ruivas, morenas e demais mulheres. A ‘mulata fundamental’, assim, a ideia

criada para representar a mulata, toda e qualquer mulata.

No diálogo Sofistas,248

Platão retoma a ideia de não-apreensão da realidade ao falar

da impossibilidade do conhecimento direto da coisa-em-si, da essência da coisa, mas que essa

apreensão, em verdade, dá-se por meio de simulacro que é tanto mais uma imagem que

acompanha a coisa-em-si, ou seja, captamos através de nossos sentidos uma sombra da coisa-

em-si. E Platão vai além. Ele indica que os simulacros são passíveis de uma bipartição: a

imitação com conhecimento do objeto imitado (mimética sábia) e a sem conhecimento desse

objeto (doxomimética). 249

Interessa aqui a segunda categoria. Nessa, onde se imita sem conhecimento do objeto

imitado, comporta tanto o imitador ingênuo que crê “ter ciência do que apenas têm opinião”250

quanto o imitador irônico “que, de tanto haver revolvido os argumentos, em si mesmo

desperta uma forte desconfiança, uma viva apreensão de ignorância pessoal, mesmo em

relação a assuntos sobre os quais, diante dos outros, ele se dá ares de sábio”. 251

Destes

últimos, temos os oradores populares que praticam a ironia em longos discursos em reuniões

248

PLATÃO. Sofista. In: ______. Diálogos: O banquete - Fédon - Sofista - Político. Trad. de José Cavalcante de

Souza (O banquete), e Jorge Paleikat e João Cruz Costa (Fédon, Sofista, Político). São Paulo: Abril Cultural,

1972. p. 201. 249

PLATÃO. Sofista. In: ______. Diálogos: O banquete - Fédon - Sofista - Político. Trad. de José Cavalcante de

Souza (O banquete), e Jorge Paleikat e João Cruz Costa (Fédon, Sofista, Político). São Paulo: Abril Cultural,

1972. p. 202-203. 250

PLATÃO. Sofista. In: ______. Diálogos: O banquete - Fédon - Sofista - Político. Trad. de José Cavalcante de

Souza (O banquete), e Jorge Paleikat e João Cruz Costa (Fédon, Sofista, Político). São Paulo: Abril Cultural,

1972. p. 203. 251

PLATÃO. Sofista. In: ______. Diálogos: O banquete - Fédon - Sofista - Político. Trad. de José Cavalcante de

Souza (O banquete), e Jorge Paleikat e João Cruz Costa (Fédon, Sofista, Político). São Paulo: Abril Cultural,

1972. p. 203.

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públicas, e os sofistas, que praticam a ironia em reuniões particulares “dividindo seu discurso

em argumentos breves, obrigando seu interlocutor a se contradizer”.252

Ainda sobre o ponto da coisa-em-si, Miguel Reale253

diz que, de acordo com Kant,

somente conseguimos conhecer fenômenos, e não a coisa-em-si (noumenon), dado que esta

não pode ser apreendida pelas formas de sensibilidade ou categorias do intelecto; todavia,

Miguel Reale acredita que se pode recorrer ao pensamento conjectural para indagar da coisa-

em-si, pois esta, ao contrário de limite negativo da cognição, seria um limite tanto mais

relativo que absoluto, pois quanto mais se amplia o campo do conhecimento, mais se restringe

a abrangência da coisa em si.

Sobre essa barreira ao conhecimento da coisa-em-si, é de se observar ainda que se,

de por um lado, a objetividade humana possui limites; por outro, nada impede o empenho na

superação de tais limites.254

O sonho é um importante paradigma para a vigília. Além da alegoria da caverna de

Platão, outros modelos, no decorrer dos tempos, tornaram a desenvolver o modo como o ser

humano pode aperceber-se da realidade em estado desperto.

Descartes, por exemplo, dizia ver tão “manifestamente que não há quaisquer indícios

concludentes, nem marcas assaz certos por onde se possa distinguir nitidamente a vigília do

sono, que me sinto inteiramente pasmado: e meu pasmo é tal que é quase capaz de me

persuadir de que estou dormindo”.255

Em virtude disto, Descartes admite como pressuposto a

252

PLATÃO. Sofista. In: ______. Diálogos: O banquete - Fédon - Sofista - Político. Trad. de José Cavalcante de

Souza (O banquete), e Jorge Paleikat e João Cruz Costa (Fédon, Sofista, Político). São Paulo: Abril Cultural,

1972. p. 202-203. 253

REALE, Miguel. Cinco temas do culturalismo. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 38 e 31. É de se observar que

Miguel Reale tem o conhecer como ato cultural (cf. p. 42), pois, se o conhecer dá-se por meio da linguagem e

esta é impregnada de cultura, o conhecer tem em si muito da cultura. 254

TRIBE, Laurence; DORF, Michael. Hermenêutica constitucional. Trad. de Amarílis de Souza Birchal. Belo

Horizonte: Del Rey, 2007. p. 86. 255

DESCARTES, René. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1973. [coleção Os Pensadores; XV] p. 94.

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existência de um gênio maligno “não menos ardiloso e enganador do que poderoso” 256

e que

emprega poderes no sentido de enganar os sentidos e experiências dele.

Interessava a Descartes, nessa primeira meditação, livrar-se de todo aspecto que

pudesse influenciar erroneamente suas percepções para, enfim, conseguir chegar ao

conhecimento do que é objetivamente verdadeiro e não, propriamente, expor postura cética.

Como os sentidos enganam, ele quis supor que as informações todas advindas dos sentidos

não eram mais verdadeiras que as verdades percebidas durante os sonhos.

Pensar que tudo é falso aponta para o fato de que o ser que pensa deve existir –

“penso, logo existo”.257

Mas em “penso, logo existo” ainda não é garantia de verdade, mas

sim uma clara percepção de que para pensar é necessário existir, e daí que Descartes vai

admitir, como espécie de regra geral, que “as coisas que concebemos muito clara e

distintamente são todas verdadeiras, havendo, porém, somente alguma dificuldade em

distinguir bem quais são as que concebemos distintamente”.258

Ora, nada menos que esse preciosismo com a objetivação da verdade apreendida pela

razão – e não pelos sentidos ou imaginação – é que vai dar o tom do método259

do

conhecimento científico proposto por Descartes.

Ao invés do gênio maligno de Descartes, Peter Unger, no livro “Ignorance” de

1975,260

cria o cenário de um cientista maligno que faz as pessoas acreditarem numa realidade

256

DESCARTES, René. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1973. [coleção Os Pensadores; XV] p. 96. 257

DESCARTES, René. Discurso do método. Trad. de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 3.ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 58-59. 258

DESCARTES, René. Discurso do método. Trad. de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 3.ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 61. 259

O método apresenta quatro passos: “o primeiro era de nunca aceitar coisa alguma como verdadeira sem que a

conhecesse evidentemente como tal, ou seja, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e não incluir

em meus juízos nada além daquilo que se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito, que eu não

tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida. [...] o segundo, dividir cada uma das dificuldades que examinasse

em tantas parcelas quantas fossem possível e necessário para melhor resolvê-las. [...] o terceiro, conduzir por

ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a

pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos; e supondo certa ordem mesmo entre aqueles

que não se precedem naturalmente uns aos outros. [...] e, o último, fazer em duto enumerações tão completas, e

revisões tão gerais, que eu tivesse certeza de nada omitir”. DESCARTES, René. Discurso do método. Trad. de

Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 33-35.

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que é simulada, ou seja, um neurologista maligno com um supercomputador que engana as

pessoas através de comandos elétricos enviados ao cérebro delas.

Outra descrição cética é apresentada por Hilary Putnam, no livro “Reason, Truth and

History” de 1981,261

onde um cientista maligno faz uma cirurgia e separa cérebro e corpo e

coloca o cérebro num barril no qual recebe nutrientes e também estímulos de um poderoso

computador que simula a realidade. Admitindo-se os cenários de Peter Unger ou Hilary

Putnam, como saber que a realidade aqui e agora é atual e não uma simulação de um cientista

maligno?

Aos céticos, pode-se contrapor: se são céticos, como ter certeza de que o

conhecimento exige certeza? É contrassenso deles. A não ser que os céticos admitam um nível

de racionalidade como limite da incerteza e da certeza.

Ora, se todas as minhas crenças são falsas, são criadas pelos poderes de um gênio

maligno ou num computador de um cientista maligno, então o ato de pensar que as crenças

são falsas é, em si, um ato falso também. Se nada do que penso é pensamento meu, eu seria

um não-eu e, daí, tanto desnecessário e inútil continuar a pensar sobre o ato de pensar, haja

vista que os pensamentos seriam produto da criação dos poderes de um gênio maligno ou da

vontade de um cientista maligno através de um computador, mas que, tanto o gênio quanto o

cientista também não teriam como saber se eles próprios estariam em semelhante condição. A

personagem Arquiteto do filme “Matrix” nem imagina que ele foi criado pelos irmãos Andy e

Larry Wachowski.

260

Citado por: ERION, Gerald J.; SMITH, Barry. Ceticismo, moralidade e Matrix. In: IRWIN, William (Org.).

Matrix: bem-vindo ao deserto do real. Trad. de Marcos Malvezzi Leal. São Paulo: Madras, 2003. p. 55. 261

Citado por: ERION, Gerald J.; SMITH, Barry. Ceticismo, moralidade e Matrix. In: IRWIN, William (Org.).

Matrix: bem-vindo ao deserto do real. Trad. de Marcos Malvezzi Leal. São Paulo: Madras, 2003. p. 56.

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Mais recentemente, Robert Nozick262

apresentou a ideia de uma máquina de

experiências capaz de estimular o cérebro de modo que a pessoa que estivesse dentro da

máquina não soubesse que está passando por experiências virtuais durante dois anos de sua

vida, as quais teriam sido previamente escolhidas num banco de dados com incontáveis

modelos de experiências de vida, mas que, na realidade, a pessoa estaria flutuando num

tanque com eletrodos ligados ao cérebro, só que, a cada dois anos, a pessoa iria acordar desse

sonho induzido para poder selecionar as experiências dos dois próximos anos. Em vista desse

contexto, e sem considerar quaisquer intercorrências com a máquina – tais como, problemas,

manutenção e outros –, o autor pergunta: você tomaria a decisão de se conectar?

Robert Nozick diz que as pessoas desistiriam dessa máquina ao menos por três boas

razões: a primeira, “queremos realmente fazer determinadas coisas, e não simplesmente

passar pela experiência de fazê-las”; a segunda, “queremos existir de determinada maneira,

queremos ser determinado tipo de pessoa”; a terceira, “o fato de nos ligarmos a uma máquina

de experiências nos deixa limitados a uma realidade artificial, a um mundo cuja profundidade

e importância não vão além daquilo que as pessoas são capazes de construir”. 263

Ora, se mesmo diante da possibilidade de uma máquina de experiências as pessoas

não usariam é porque há algo além da necessidade de viver experiências, e é a partir daí que

Robert Nozick vai concluir o quanto é perturbador o fato de que essas máquinas vivem a vida

das pessoas, e que o que as pessoas querem de verdade é viver por elas mesmas.264

As pessoas

262

NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. Trad. de Fernando Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

p. 53-57. 263

NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. Trad. de Fernando Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

p. 54-55. 264

Humberto Eco diz que a crença de que percebemos tudo através de nossas experiências é falsa, pois, muitas

vezes, o que há é uma crença na qual depositamos confiança: “Acreditamos que, no que se refere ao mundo real,

a verdade é o critério mais importante e tendemos a achar que a ficção descreve um mundo que temos de aceitar

tal como é, em confiança. Mesmo no mundo real, todavia, o princípio da confiança é tão importante quanto o

princípio da verdade. Não é através da experiência que sei que Napoleão morreu em 1821. Mais ainda, se tivesse

de depender unicamente de minha experiência, eu sequer poderia dizer que Napoleão existiu (aliás, uma vez

alguém escreveu um livro para demonstrar que Napoleão era um mito solar). Não é através da experiência que

sei que existe uma cidade chamada Macau ou que a primeira bomba atômica funcionava por fissão e não por

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não querem apenas a experiência (virtual) de viver um grande amor, elas querem realmente

vive-lo.265

Na opinião de Juan Antonio Rivera, “há algo que decididamente repele o nosso gosto

moral nessa ideia de consumir nossa existência em uma realidade que sabemos ser

inautêntica”, e acrescenta: “seja onde for que situemos a realidade mais autêntica [...] o

normal é que não nos resignemos a residir indefinidamente em um mundo fictício ou cujo

grau de realidade esteja diminuído”.266

No filme “Matrix”, bilhões de pessoas permanecem imersas numa espécie de

máquina de experiências durante toda a vida, mas com o agravante de que sequer elas podem

acordar a cada dois anos para escolher as experiências que querem vivenciar. De toda forma,

quando a personagem Morpheus vem com uma pílula vermelha e outra azul e apresenta a

possibilidade de um tudo ou nada, de uma escolha entre a verdade (através da pílula vermelha

que conduz ao deserto do real) e o sonho (onde a pílula azul deixaria a pessoa vivenciando o

mundo onírico da Matrix), ocorre ainda de algumas pessoas que optam pela pílula vermelha

arrependerem-se da escolha e a todo o custo tentarem retornar ao mundo dos sonhos, é o caso

da personagem Cypher.

Nossos sonhos são uma experiência individual; apenas nós a temos sem compartilhar

com outras pessoas. Em Matrix, ao contrário, o sonho é uma experiência coletiva, é um

ambiente simulado onde as consciências das pessoas transitam em interação mútua, e de onde

raramente alguém pode acordar, ou melhor, fugir, escapar, pois para sair da Matrix é

fusão;”. ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia

das Letras, 1994. p. 94-95. 265

Lyle Zynda faz uma ponderação pertinente que é o fato de que algumas pessoas podem resolver conectar-se à

máquina de experiências para fugir a uma realidade que lhes é desfavorável, mas decerto prefeririam vivenciar

realmente as experiências ao invés de apenas senti-las. ZYNDA, Lyle. Cypher estava certo? 2ª parte: a natureza

da realidade e o que isso importa. In: YEFFETH, Glenn (Org.). A pílula vermelha: questões de ciência, filosofia

e religião em Matrix. Trad. de Carlos Silveira Mendes Rosa. São Paulo: Publifolha, 2003. p. 51. 266

ANTONIO RIVERA, Juan. O que Sócrates diria a Woody Allen: cinema e filosofia. Trad. de Magda

Lopes. São Paulo: Planeta, 2013. p. 231 e 232. Grifos do autor.

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imprescindível a pílula vermelha que Morpheus traz consigo.267

Matrix é uma “máquina

coletiva de experiências”.268

4.3 ESTRUTURA DO MITO COMO VEROSSIMILHANÇA E A SIMULAÇÃO DA

REALIDADE

O nascimento da razão grega – ou o milagre grego – marca o declínio do pensamento

mítico em favor de um novo saber de tipo racional.269

Daí que o nascimento da filosofia, na

Grécia antiga, marca o começo do pensamento científico.270

Na seara do direito, conforme salienta Paulo Bonavides, em que pese a falta de

autonomia diante da problemática cosmológica, já nas primeiras reflexões jônicas é verificado

um passo adiante, pois afasta-se da mera fundamentação mitológica, deixar de ser a simples

vontade dos deuses. 271

267

É interessante a aparente contradição formada pelo nome e função da personagem Morpheus. Na mitologia

grega, Morpheus é o deus dos sonhos, mas em Matrix a função dele é acordar as pessoas, a exemplo do que faz

com Neo. Em dado momento, Neo, ao acordar, pergunta: “por que meus olhos doem?”, Morpheus responde:

“porque você nunca os usou antes”. É de se pensar se Morpheus não está fazendo algo semelhante ao que fez a

personagem Chiquinha no programa “Chaves”, quando ela chama Chaves que estava dormindo no sofá: “acorde

para ir dormir!”. Essa seria a hipótese de uma caverna C3, conforme descrito na subseção 4.2. 268

ANTONIO RIVERA, Juan. O que Sócrates diria a Woody Allen: cinema e filosofia. Trad. de Magda

Lopes. São Paulo: Planeta, 2013. p. 229. 269

VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Trad. de Ísis Borges B. da Fonseca. 8.ed. Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. p. 73. 270

VERNANT, Jean-Perre. Mito e pensamento entre os gregos. Trad. de Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1990. p. 349. De acordo com F.M. Conford, há divergência quanto ao fato de esse novo pensamento

constituir-se em científico, pois o autor entende que a primeira filosofia mais se aproximava de uma estrutura

mítica que, propriamente, científica. Todavia, Jean-Pierre Vernant esclarece que há, de fato, uma

descontinuidade entre mito e filosofia. A discussão encontra-se em: VERNANT, Jean-Pierre. As origens do

pensamento grego. Trad. de Ísis Borges B. da Fonseca. 8.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. p. 74-77.

Como também em: VERNANT, Jean-Perre. Mito e pensamento entre os gregos. Trad. de Haiganuch Sarian.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 350-359. Nesse último trabalho, Vernant escreve: “O aparecimento do

logos introduziria portanto na história uma descontinuidade radical” (cf. p. 350), e mais: “O nascimento da

filosofia aparece, por conseguinte, solidário de duas grandes transformações mentais: um pensamento positivo,

excluindo toda forma de sobrenatural e rejeitando a assimilação implícita estabelecida pelo mito entre

fenômenos físicos e agentes divinos; um pensamento abstrato, despojando a realidade dessa força de mudança

que lhe conferia o mito, e recusando a antiga imagem da união dos opostos em benefício de uma formulação

categórica do princípio da identidade”. (cf. p. 358). 271

BONAVIDES, Paulo. Teoria geral do Estado. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 426.

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Nada implica, no entanto, que o pensamento jurídico da sociedade contemporânea

não seja permeado ainda por mitos, mesmo que em sentido diverso do atribuído aos mitos que

tiveram lugar no período anterior ao milagre grego.

Admitindo-se, por exemplo, conforme preleciona Paulo Bonavides, que “a

Constituição é o denominador comum da ideologia democrática”,272

e tendo por base o

ensinamento de Luis Alberto Warat na tese de que “o mito é a forma teórica de compreender

o papel de ideológico no processo de produção de convencimento”,273

resulta que a

Constituição, ela própria, constitui-se em manancial mítico a serviço da ideologia

democrática.

Mas “mito” é palavra que possui distintos significados, o que é preciso desvelar de

acordo com método que lhe seja específico274

para fins de se poder prosseguir na análise.

Nesta senda, é da lição de Ernst Cassirer que “Temos de saber o que o mito é, antes de

podermos explicar como atua”. 275

A palavra mito comporta significados conflitantes entre si, esclarece Mircea Eliade,

tanto indica o sentido de fábula, invenção, ficção ou engodo, quanto também história

verdadeira, esta sendo “extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e

significativo”. 276

e 277

272

BONAVIDES, Paulo. Teoria geral do Estado. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 345. 273

WARAT, Luis Alberto. Mitos e teorias na interpretação da lei. Porto Alegre: Síntese, 1979. p. 125. 274

Dizia Émile Durkheim sobre o estudo dos mitos que “é um problema difícil, que deve ser tratado em si, por si

e segundo um método que lhe seja específico”. DURKHEIM, Émile citado por LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru

e o cozido. Trad. de Beatriz Perrone-Moizés. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. [Mitológicas v.1]. Em razão

disso, deve-se atentar para o que afirma Claude Lévi-Strauss: “A análise mítica não tem, nem pode ter por objeto

mostrar como os homens pensam. [...] Não pretendemos, portanto, mostrar como os homens pensam nos mitos,

mas como os mitos se pensam nos homens, e à sua revelia”. LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. Trad.

de Beatriz Perrone-Moizés. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. p. 31. [Mitológicas v.1] 275

CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 20. 276

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. de Pola Civelli. 5.ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 7. Afirma

ainda a autora: “o mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma ‘história verdadeira’”. (cf. p. 12). 277

Para Clémence Ramnoux, “‘mito’ significa ‘narrativa’ e não veicula o sentido de ‘narrativa mentirosa’ que

um estádio evoluído de civilização lhe acrescentou opondo-o ‘estruturalmente’ ao discurso verdadeiro”.

RAMNOUX, Clémence. Mitológica do tempo presente. In: BARTHES, Roland et al. Atualidade do mito. Trad.

de Carlos Arthur R. do Nascimento. São Paulo: Duas Cidades, 1977. p. 19.

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94

Nesse segundo sentido, o de história verdadeira, tanto os “os mitos descrevem as

diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do sobrenatural) no

Mundo”,278

quanto também o mito tem sua principal função “em revelar os modelos

exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o

casamento, quanto o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria”, 279

ou, noutros termos,

“consiste em revelar os modelos e fornecer assim uma significação ao Mundo e à existência

humana”. 280

Aliado a isso, interessa acrescentar que, para Joseph Campbell, os mitos possuem,

basicamente, quatro funções: uma função mística, que vivencia um espanto diante do mistério

do universo, do homem, da vida; uma função cosmológica, trabalhada pela ciência para

desvendar o mistério do universo; uma função sociológica, que serve para suporte e validação

de uma ordem social; uma função pedagógica, que ensina como viver a vida humana. 281

Neste passo, para o presente trabalho interessa o mito tomado no sentido de história

verdadeira. É que a linguagem jurídica, e a teoria do direito que lhe informa o norte, tem por

pressuposto a construção do verdadeiro, no sentido de uma realidade282

merecedora de

confiança.

Em complemento ao sentido de história verdadeira, pode-se somar o conceito de

Paolo Grossi que diz “o mito em seu significado essencial de transposição de planos de

processo que compele a uma realidade a completar um vistoso salto a outro plano

278

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. de Pola Civelli. 5.ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 11. 279

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. de Pola Civelli. 5.ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 13. 280

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. de Pola Civelli. 5.ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 128. No

mesmo sentido, James L. Ford diz que esse construir mundos não é inventar contos de fadas, mas uma “profunda

expressão dos nossos medos, das nossas aspirações e da nossa compreensão simbólica da vida e do mundo que

nos cerca”. FORD, James L. Budismo, mitologia e Matrix. In: YEFFETH, Glenn (Org.). A pílula vermelha:

questões de ciência, filosofia e religião em Matrix. Trad. de Carlos Silveira Mendes Rosa. São Paulo: Publifolha,

2003. p. 139. 281

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990. p. 32.

[Entrevistado por Bill Moyers; organização Betty Sue Flowes] 282

Para Ernst Cassirer, “o mito genuíno não possui essa liberdade filosófica; porque as imagens sobre as quais

ele vive não são conhecidas como imagens. Não são consideradas como símbolos, mas como realidades”.

CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 63.

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transformando-se em uma metarealidade”, e acrescenta o autor: “torna-se absoluto, converte-

se em objeto de crença mais que de conhecimento”.283

É que a estrutura mítica tem elaboração

no âmbito da criatividade humana sobre o plano fenomênico, é uma realidade inventada, mas

com força de realidade, ou, nas palavras de Mário Moacyr Porto, “o justo e o belo, longe de

representarem realidades aparentes, são aparências que se afirmam com a força e a

autenticidade de realidades”. 284

E sobre o fato de que se torna absoluta mais como objeto de crença que de

conhecimento, ao trazer-se o mito para a seara jurídica, também as palavras de Mário Moacyr

Porto denotam lição lapidar: “a verdade jurídica, como toda verdade, é mais uma certeza da

alma do que uma conquista do conhecimento”. 285

É com essa força mítica, com essa aparência de essência que transcende o próprio

ser, que diversos institutos jurídicos salvaguardam a confiança depositada na verdade das

aparências. Daí que o princípio da boa-fé proteja a verdade aparente em detrimento da

verdade oculta ou escondida. E é neste sentido a lição de Karl Larenz que afirma que o

princípio da boa-fé “consagra que uma confiança despertada de um modo imputável deve ser

mantida quando, efetivamente, acreditou-se nela. A suscitação da confiança é ‘imputável’

quando o que a suscita sabia ou teria como saber que o outro iria confiar”.286

283

Tradução livre de: “El mito en su significado esencial de transposición de planos de proceso que compele a

una realidad a completar un vistoso salto a otro plano transformándose en una metarrealidad”. E tradução de:

“se absolutiza, se convierte en objeto de creencia más que de conocimiento”. GROSSI, Paolo. Mitología

jurídica de la modernidad. Trad. de Manuel Martínez Neira. Madri: Trotta, 2003. p. 41, grifos do autor. 284

PORTO, Mário Moacyr. Estética do direito. Revista do Curso de Direito: Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, Natal, v. 1, n. 1, jan./jun. 1996. p.19. Disponível também em: PORTO, Mario Moacyr. Estética

do direito. Revista dos Tribunais, São Paulo, a. 69, n. 541, nov. 1980. p. 11-16. 285

PORTO, Mário Moacyr. Estética do direito. Revista do Curso de Direito: Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, Natal, v. 1, n. 1, jan./jun. 1996. p. 27. 286

Tradução livre de: “consagra que una confianza despertada de un modo imputable debe ser mantenida cuando

efectivamente se ha creído en ella. La suscitación de la confianza es ‘imputable’ cuando el que la suscita sabía o

tenía que saber que el otro iba a confiar”. LARENZ, Karl. Derecho justo: fundamentos de etica juridica. Trad.

de Luis Díez-Picazo. Madrid: Civitas, 2001. p. 96. Em complemento, cabe registrar que há certa divisão da boa-

fé em objetiva e subjetiva, conforme Edilson Pereira Nobre Júnior: “a boa-fé é valorada, também no direito

administrativo, ora como padrão de conduta, a exigir dos sujeitos do vínculo jurídico atuação conforme à

lealdade e à honestidade (boa-fé objetiva), ora como uma crença, errônea e escusável, de uma determinada

situação (boa-fé subjetiva). NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e sua aplicação no

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Ora, nesse ponto, é preciso salientar que a própria origem da noção jurídica de boa-fé

advém da mitologia,287

a deusa Fides romana, que personificava a palavra dada, o

compromisso, a garantia das estipulações, tudo o que é legado do plano mítico ou religioso

para a esfera jurídica que chega aos dias atuais.

É importante lembrar que o mito pode implicar em situação de poder. Como já foi

descrito no item 3.6, os mitos políticos produzidos no período entre Guerras Mundiais

constituíram posições de dominação a serviço de totalitarismos. Daí pode-se abstrair mais

uma importante característica dos mitos:

Talvez a mais importante e a mais alarmante característica desse desenvolvimento

do pensamento político moderno tenha sido a aparição de um novo poder: o poder

do pensamento mítico. A preponderância do pensamento mítico sobre o pensamento

racional é óbvia em alguns dos nossos modernos sistemas políticos.288

O pensamento mítico, nessa perspectiva, pode ser elaborado e difundido através de

elaborações racionais com o objetivo de aquisição ou incremento de poder. O discurso mítico

exerce sua influência na busca pelo poder289

e, nesse percurso, busca cooptar a razão e

converter o mito em realidade.

O mundo atual tem os seus mitos, afirma Mircea Eliade, 290

alguns deles transmitindo

imagem e comportamento e são difundidos através dos mass media como é o caso do super-

homem, com sua dupla identidade de homem tímido, apagado e, ao mesmo tempo, com

direito administrativo brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris editor, 2002. p. 150-151. É pertinente

lembrar que outros institutos podem utilizar dessa mesma lógica, um exemplo disso é o instituto da usucapião

que protege a posse direta da pessoa de boa-fé. Nas palavras de Mário Moacyr Porto: “a máxima jurídica “erro

communis facit jus” é bem o reconhecimento de que a ilusória generalização é mais verdadeira do que a

realidade ostensiva”. PORTO, Mário Moacyr. Estética do direito. Revista do Curso de Direito: Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, Natal, v. 1, n. 1, jan./jun. 1996. p.20. 287

OLIVEIRA SEGUNDO, Jair Soares de; CAVALCANTI, Julieth Cristina Guanabara. A relevância do

princípio da boa-fé nos atos administrativos. InVerbis, Natal, a. 14, n. 26, jul./dez. 2009. p. 88. Disponível em:

<http://www.inverbis.com.br/edicoes/ed26.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2014. 288

CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 19. 289

Daí abstrair-se que “Nada se assemelha mais ao pensamento mítico que a ideologia política”. LÉVI-

STRAUSS, Claude. Estrutura e dialética. In: ______. Antropologia estrutural. Trad. de Chaim Samuel Katz, e

Eginardo Pires. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. p. 241. 290

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. de Pola Civelli. 5.ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 159-160.

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superpoderes, tudo o que perfaz uma estrutura mítica a revelar para o homem comum o sonho

de um dia tornar-se herói, ter superpoderes.

Em outro caso, diz o autor, também através dos mass media, há mitificação de

personalidades e a imagem exemplar delas. A obsessão por sucesso, que traduz o desejo de

transcendência da condição da pessoa, é igualmente comportamento mítico. Bem assim,

haveria mitos da elite que toma contato com as artes onde, por exemplo, “a fascinação pela

dificuldade, e mesmo pela incompreensibilidade das obras de arte, trai o desejo de descobrir

um novo sentido, secreto, até então desconhecido, do Mundo e da existência humana”, 291

e

assim, sonha-se apreender esses sentidos ocultos das linguagens artísticas originais.

Ao que parece, onde Mircea Eliade descreve o contato das pessoas de hoje com a

arte sob a ótica do mito, Mario Vargas Llosa292

registra advertência de Lipovetsky e Serroy de

que as multidões que visitam diariamente o Louvre, a Acrópole ou os anfiteatros gregos não

estariam interessadas na apreensão da alta cultura, mas sim o fazem por esnobismo e por

considerarem que o mero frequentar as exonera de estudar o passado e a arte. E isto seria

decorrência direta de uma cultura de massas, onde a indústria cultural transformaria a cultura

em artigos de consumo de fácil assimilação a todos, sem necessidade de formação para

compreensão dos referentes culturais e cuja intenção é o entretenimento das massas.293

Conhecimento e compreensão das essências dos mitos denotam uma completude de

necessidade premente. Se o mito no âmbito do direito identifica aparências havidas como

realidades pela fé em seus caracteres externados ou intuídos, é tão somente na comparação

dessas bases míticas com o mundo dos fatos culturalmente observados que se pode obter

parâmetros de análise de adequação de racionalidade jurídica.

291

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. de Pola Civelli. 5.ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 162. 292

VARGAS LLOSA, Mario. La civilización del espetáculo. 3.ed. Madri: Alfaguara, 2012. p. 29. 293

Nesse contexto, Mário Vargas Llosa aponta que os autores Gilles Lipovetsky e Jean Serroy entendem haver

um predomínio de imagem e som sobre a palavra, e aí as telas – cinema, televisão, internet e outras – se

sobressaem. VARGAS LLOSA, Mario. La civilización del espetáculo. 3.ed. Madri: Alfaguara, 2012. p. 27.

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A destreza do intérprete/aplicador do direito está no saber lidar com as transposições

das verdades dos mitos jurídicos para as essências fáticas e culturais observadas no mundo

fenomênico cujos caracteres devem estar descritos na narrativa mitológica.

É um transitar harmônico entre a reflexão da estrutura mítica do direito e o mundo

social a que o direito deve ser aplicado e, com isto, evita-se as certezas que, como observa

Paolo Grossi, com o tempo, vão “sedimentando lentamente no intelecto e no coração do

jurista”.294

Quando o jurista constrói em cima dessas certezas ele pode estar adentrando no

campo da simulação.

O mito constitui uma representação da realidade; a simulação, diversamente do mito,

indica no sentido de uma reconstrução – por sobreposição – da realidade. Há como esclarecer

melhor. Jean Baudrillard295

concebe quatro fases das imagens, sendo que apenas as duas

iniciais representam teologia da verdade e do segredo, por onde a ideologia ainda transita; as

duas finais correspondem à era dos simulacros e simulação.

As fases – ou ordens de simulacro – são as seguintes: 1ª. A imagem reflete uma

realidade; 2ª. A imagem mascara e deforma uma realidade; 3ª. A imagem mascara a ausência

de realidade; 4ª. A imagem não tem relação com a realidade, é a simulação desta. As duas

primeiras, portanto, podem ser correlacionadas aos significados de mito: como história

verdadeira, o mito corresponde à primeira fase da imagem; como fábula, invenção, ficção, o

mito corresponde à segunda fase.

294

Tradução livre de: “sedimentando lentamente en el intelecto y en el corazón del jurista”. GROSSI, Paolo.

Mitología jurídica de la modernidad. Trad. de Manuel Martínez Neira. Madri: Trotta, 2003. p. 15. Em páginas

mais à frente, Paolo Grossi afirma que o coração dos juristas de ontem e de hoje é tocado nos discursos dos

técnicos do direito e não no dos filósofos (cf. p. 48), mas isto merece reparo, ao menos para a transposição para o

ordenamento jurídico brasileiro. Em âmbito nacional, a referência a filósofos e jusfilósofos é vasta, para tanto

basta observar a influência no direito brasileiro de autores como Heidegger, Gadamer, Habermas, Alexy,

Dworkyn, Amartya Sen, Hannah Arendt, e isto só para falar em alguns nomes estrangeiros, pois nacionalmente

também temos Miguel Reale, Ernildo Stein, Lourival Vilanova e tantos outros. 295

BAUDRILLARD, Jean. Simulacro e simulação. Trad. de Marai João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio

d’Água, 1991. p. 13-14.

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99

Para Jean Baudrillard,296

a fábula de Borges era antes bela alegoria de simulação, e

agora não passa de um simulacro de segunda ordem. Diz a fábula297

que os cartógrafos do

Império produziram um mapa tão detalhado que este cobria todo o território e que, com o

declínio do império, o mapa ia se esvaindo e retornava à substância do solo, embora alguns

fragmentos do mapa ainda podiam ser localizados nos desertos.

Sobre essa história de Borges, afirma Jean Baudrillard:

A simulação já não é a simulação de um território, de um ser referencial, de uma

substância. É a geração pelos modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-

real. O território já não precede o mapa, nem lhe sobrevive. É agora o mapa que

precede o território – precessão dos simulacros – é ele que engendra o território

cujos fragmentos apodrecem lentamente sobre a extensão do mapa. É o real, e não o

mapa, cujos vestígios subsistem aqui e ali, nos desertos que já não são os do

Império, mas o nosso. O deserto do próprio real. 298

Tem-se, portanto, que a teoria de Baudrillard é de não fácil assimilação dada a

complexidade das categorias que trabalha: realidade, hiper-realidade, simulação. Uma

redução dessa complexidade pode ser arriscada nos seguintes termos: Onde o real já não é o

real de antes, aquele antigo real já não tem possibilidade de se reproduzir, pois o real é agora

um modelo, uma simulação do real, e é esta a base de produção da nova realidade.

Daí a figura do mapa que precede e engendra o território.299

Neste passo, se, como

citado, “é o real, e não o mapa, cujos vestígios subsistem aqui e ali, nos desertos que já não

são os do Império, mas o nosso”, então a ideia de simulação como “geração pelos modelos de

um real sem origem nem realidade” fica esvaziada. Esses vestígios do real devem pairar nem

sobre os nossos desertos nem sobre os desertos do próprio real, mas sobre os desertos do real

296

BAUDRILLARD, Jean. Simulacro e simulação. Trad. de Marai João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio

d’Água, 1991. p. 7. 297

BORGES, Jorge Luis. Del rigor en la ciencia. In: ______. Historia universal de la infâmia. Buenos Aires:

Emecé, 1954. p. 131-132. 298

BAUDRILLARD, Jean. Simulacro e simulação. Trad. de Marai João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio

d’Água, 1991. p. 8. 299

Orlando Gomes, em 1955, dá uma descrição interessante do direito em transformação à época: “O Direito

está tão envelhecido que parece exclusivamente feito de resíduos”. GOMES, Orlando. A crise do direito. São

Paulo: Max Limonad, 1955. p. 16.

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simulado, pois é este que informa o novo real sem origem nem realidade que decorre da

simulação.

A crítica de Jean Baudrillard300

de que o filme “Matrix” corrompeu as ideias dele,

constantes da obra “Simulacro e Simulação”, tem sentido quando considerada a ideia de

deserto do real com a advertência exposta linhas atrás: a de que o real sem origem nem

realidade é o real que paira nos desertos do real simulado.

Matrix trabalha com as categorias de realidade bem delimitadas em dois distintos

planos: um da realidade vivenciada no interior da Matrix sob simulação computacional; outro,

na realidade exterior ao sistema, que a personagem Morpheus chama de deserto do real, sendo

esta a realidade em vigília.

Ora, uma vez que, em Matrix, a vigília não decorre de uma simulação da realidade (o

deserto do próprio real), então o filme não espelharia a teoria de Baudrillard. De toda sorte, no

plano da realidade, que é produzida através da simulação computacional no interior da Matrix,

pode-se sim dizer que esta é uma realidade simulada, claro que não em vigília como seria o

caso da teoria do filósofo francês.

Uma apreensão melhor do conceito de simulação é importante para possibilitar

trasladar essas ideias de Baudrillard no sentido de utilidade ao campo de estudos do direito, e

do direito e cinema que é o caso.

O autor parte da especificação de uma diferença entre dissimular (ou fingir), que

denota esconder o que se tem; e simular, que é mostrar o que não se tem. Enquanto dissimular

300

Ao ser perguntado pela Revista Época sobre se havia gostado do filme Matrix, Jean Baudrillard afirma que É

uma produção divertida, repleta de efeitos especiais, só que muito metafórica. Os irmãos Wachowski são bons

no que fazem. Keanu Reeves também tem me citado em muitas ocasiões, só que eu não tenho certeza de que ele

captou meu pensamento. O fato, porém, é que Matrix faz uma leitura ingênua da relação entre ilusão e realidade.

Os diretores se basearam em meu livro Simulacros e Simulação, mas não o entenderam. Prefiro filmes como

Truman Show e Cidade dos Sonhos, cujos realizadores perceberam que a diferença entre uma coisa e outra é

menos evidente. Nos dois filmes, minhas idéias estão mais bem aplicadas”. BAUDRILLARD, Jean. A verdade

oblíqua. Época, São Paulo, n. 264, 9 jun. 2003. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Epoca/

0,6993,EPT550009-1666,00.html>. Acesso em: 10 jun. 2013.

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preserva o princípio da realidade, simular “põe em causa a diferença do ‘verdadeiro’ e do

‘falso’, do ‘real’ e do ‘imaginário’”.301

Enquanto, na dissimulação, o importante é esconder

uma realidade, mas a realidade escondida permanece intacta, apenas disfarçada; simular tem

intuito de criar uma realidade, e aí o liame entre a realidade anterior e a nova já não pode ser

identificado.

Elucidativa é a frase que Jean Baudrillard pega emprestada de Littré, que diz

“Aquele que finge uma doença pode simplesmente meter-se na cama e fazer crer que está

doente. Aquele que simula uma doença determina em si próprio alguns dos respectivos

sintomas”. 302

Ao pensar a estrutura do mito como história verdadeira cuja verdade advém da

crença nos modelos de realidade que o mito representa, tem-se aí uma dissimulação. É dizer, a

história do mito esconde uma realidade que é contada através do mito, mas esta permanece

diferenciada nos seus caracteres originais.

Ideia totalmente diversa é pensar no mito como uma história criada a partir de outro

mito, pois isto recria a realidade que a verossimilhança do mito inicial salvaguardava, há

agora uma realidade simulada, ou, noutras palavras, um mito sem origem nem realidade, uma

simulação.

De tal forma, é saudável a existência de um direito mítico, no sentido de um sistema

jurídico onde se tem histórias verdadeiras com base em crenças que podem ser distinguidas da

realidade que lhe dá suporte, razão de existir e justificativa de ser deste e não de outro modo.

No entanto, um direito simulado é extremamente danoso, ou pelo menos danoso em potência,

porquanto a realidade que dá suporte ao direito foi criada e recriada e já não apresenta origem

nem realidade, dado que é uma simulação.

301

BAUDRILLARD, Jean. Simulacro e simulação. Trad. de Marai João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio

d’Água, 1991. p. 9-10. 302

BAUDRILLARD, Jean. Simulacro e simulação. Trad. de Marai João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio

d’Água, 1991. p. 9.

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102

A simulação pode narrar como direito o que, em verdade, em nada se assemelha.

Como o direito não teria origem nem realidade, o controle dos parâmetros normativos seria

um controle dos caracteres que a simulação apresenta como sendo o todo real jurídico e, neste

sentido, a origem falece e o controle jurídico vai junto.

No filme “Matrix”, na cena onde Morpheus mostra a Neo o deserto do real, aquele

compara a Matrix a uma prisão para a mente, de onde não se pode libertar-se por razão de

nem se saber do estado de confinamento. Esta é uma boa alegoria para o que ocorre em caso

de simulação. Quando o real nem tem origem nem realidade, a busca da realidade perdida é

inútil: a uma por que não se tem noção da simulação; a duas por que, mesmo com consciência

dela, torna-se inviável procurar o que nem mais existe.

4.4 CONSTITUIÇÃO COMO SIMULACRO

A ideia de constituição como simulacro representa duas ordens de ideias, uma

benéfica, que tem base na preservação da força normativa da constituição em benefício da

sociedade, mas também uma outra ideia nem tanto favorável, que está na instituição de uma

barreira jurídico-fundamental ao exercício do poder soberano pelo povo.

De início, conforme Paulo Bonavides, a função de uma constituição em ambiente de

democracia pode ser descrita nos seguintes termos:

Nas formas democráticas a Constituição é tudo; fundamento do Direito, ergue-se

perante a Sociedade e o Estado como o valor mais alto, porquanto de sua

observância deriva o exercício permanente da autoridade legítima e consentida. Num

certo sentido, a Constituição aí se equipara ao povo cuja soberania ela

institucionaliza de modo inviolável.303

É bem verdade que, numa primeira leitura, o que Paulo Bonavides escreve pode ser

apreendido como uma noção benéfica da constituição como simulacro. Ora, a ideia de um

303

BONAVIDES, Paulo. Teoria geral do Estado. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 344-345.

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poder que é exercido com legitimidade e consentimento do povo indica para uma harmonia da

sociedade civil, entre governantes – o Estado – e governados – os cidadãos.

Todavia, algo preocupa, e é na segunda parte do texto que reside o perigo do

simulacro. A noção de constituição substituindo o povo no sentido de que ela, a Constituição,

seja a institucionalização do poder soberano. Representa isto um deslocamento de poder – ao

menos no âmbito na normatividade constitucional – da sociedade civil para o Estado.

É sob essa perspectiva que Luiz Moreira, seguindo tese de Paolo Prodi, fala da

osmose entre consciência e direito positivo, numa via dupla a indicar ‘juridicização da

consciência’ e ‘sacralização da norma jurídica’ onde, nesse cenário, a Constituição serviria –

aos moldes dos dogmas da fé religiosa – a transubstanciar de profano a sagrado o discurso

jurídico que a evoca.304

Com isto, a Constituição seria barreira para uma crítica ao direito a partir da

historicidade, uma vez que as críticas passariam antes por uma verificação de compatibilidade

com a Constituição. 305

O querer do povo precisaria ser o querer da Constituição, sob pena de

esse querer popular ser chamado de inconstitucional.

É de mencionar, no entanto, que as concepções de Constituição do texto de Paulo

Bonavides e a concepção que Luiz Moreira utiliza para tratar do simulacro são

substancialmente diferentes.

A concepção de Paulo Bonavides está intrinsicamente ligada à democracia, enquanto

valor estruturante; a de Luiz Moreira observa a Constituição como um texto normativo

comum, que apenas passa por processo diferente na formulação, e, neste sentido, a simulação

estaria “na tentativa de transformar um consenso sobre a forma de constituir e ordenar o

sistema jurídico, obtido em um dado momento histórico, em algo atemporal, configurando um

304

MOREIRA, Luiz. A Constituição como simulacro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 80-81. 305

MOREIRA, Luiz. A Constituição como simulacro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 85 e 92.

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104

processo comum de formulação de normas jurídicas em ato fundador”.306

Ainda

complementa: o simulacro “é o ato de outorga que uma assembleia se dá a si mesma com o

propósito de restringir, regular e prescrever os direitos atinentes à soberana manifestação dos

sujeitos de direito”. 307

A esse propósito, é pertinente fazer uma leitura apropriada do parágrafo 2º do art. 5º

da Constituição Federal de 1988. Diz o enunciado normativo308

que a previsão de direitos

fundamentais na Constituição não exclui outros decorrentes de Acordos e Tratados

internacionais ratificados pelo Brasil com quórum idêntico aos de emendas constitucionais.

É bem certo que essa cláusula de abertura propicia o reconhecimento e inclusão de

novos direitos fundamentais ao catálogo de direitos abrangidos pela constituição. Todavia, a

inclusão desses novos direitos fundamentais passa por uma prévia verificação de adequação à

Constituição, e, sob tal aspecto, a Constituição é erigida parâmetro de verificação de

conformidade.

Parece correto, portanto, afirmar que a Constituição – e não o povo – é quem

determina o que são direitos fundamentais. Em sendo assim, o poder de dizer o que diz a

Constituição é um poder altamente relevante.

A bem desse tema há uma crítica interessante: Ives Gandra da Silva Martins, em face

do que ele percebe como atuação ativista, critica que os ministros do Supremo Tribunal

Federal “à luz da denominada ‘interpretação conforme’, estão conformando a Constituição

306

MOREIRA, Luiz. A Constituição como simulacro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 93. 307

MOREIRA, Luiz. A Constituição como simulacro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 93-94. 308

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 5º, §2º: “Os direitos e garantias

expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos

tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 6 jun. 2013.

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105

Federal à sua imagem e semelhança, e não àquela que o povo desenhou por meio de seus

representantes”.309

E o autor acrescenta que esse ativismo judicial fere o equilíbrio entre os Poderes e

torna “o Judiciário o mais relevante dos três, com força para legislar, substituindo o único

Poder que reflete a vontade da totalidade da nação, pois nele [Legislativo] situação e oposição

estão representadas”. 310

A luta por espaço de poder está retratada na advertência de Pontes de Miranda onde

diz que “quem faz a lei é que é o mestre da vida social”.311

Talvez essa perspectiva influencie

o Supremo Tribunal Federal quando de sua atuação ativista em face do Legislativo.

Em paráfrase a Pontes de Miranda, Fábio Bezerra dos Santos escreve: “pode-se dizer

que todo o problema político dos nossos dias gira em torno da aplicação de regras e normas

constitucionais. Quem as aplica, de fato, é mestre ou o tirano da vida social”.312

Ora, como

bem adverte Mircea Eliade, o mito, em si, não garante a bondade nem a moral, sua função é

309

MARTINS, Ives Gandra da Silva. A Constituição "conforme" o STF. Folha de São Paulo, São Paulo, 20

maio 2011. Opinião, online. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2005201107.htm>.

Acesso em: 16 abr. 2012. O autor exemplifica essa atuação ativista com o caso das uniões homoafetivas sobre o

qual esclarece: “No que diz respeito à família, capaz de gerar prole, discutiu-se se seria ou não necessário incluir

o seu conceito no texto supremo -entidade constituída pela união de um homem e de uma mulher e seus

descendentes (art. 226, parágrafos 1º, 2º, 3º, 4º e 5º)-, e os próprios constituintes, nos debates, inclusive o relator,

entenderam que era relevante fazê-lo, para evitar qualquer outra interpretação, como a de que o conceito pudesse

abranger a união homossexual”. Em posição a favor da interpretação da Constituição de forma a abranger as

“relações de conjugalidade, independentemente do sexo e da sexualidade”, cf.: SANTOS, Fábio Bezerra dos.

Constituição integral, hermenêutica constitucional integrativa e o controle de constitucionalidade realizado pelo

Poder Executivo brasileiro com a faculdade do veto presidencial. FIDES, Natal, v. 1, n. 2, ago./dez. 2010. p. 44.

Disponível em: <http://www.revistafides.com/ojs/index.php/br/issue/view/2>. Acesso em: 10 maio 2013. 310

MARTINS, Ives Gandra da Silva. A Constituição "conforme" o STF. Folha de São Paulo, São Paulo, 20

maio 2011. Opinião, online. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2005201107.htm>.

Acesso em: 16 abr. 2012. 311

MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. 2.ed. rev. e aum. São Paulo: Max Limonad,

1953, v. II. p. 213. 312

SANTOS, Fábio Bezerra dos. Constituição integral, hermenêutica constitucional integrativa e o controle de

constitucionalidade realizado pelo Poder Executivo brasileiro com a faculdade do veto presidencial. FIDES,

Natal, v. 1, n. 2, ago./dez. 2010. p. 43. Disponível em: <http://www.revistafides.com/ojs/index.php/br/

issue/view/2>. Acesso em: 10 maio 2013.

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106

tanto mais “revelar os modelos e fornecer assim uma significação ao Mundo e à existência

humana”.313

Que o mito seja uma história verdadeira – com verossimilhança – e que ele tenha por

necessário o bem comum são coisas diversas. Daí que os mitos envolvem o direito e o

materializam em enunciados normativos (regras e princípios), os quais servem de base à

interpretação/aplicação, mas, só por si, essa complexa rede que traduz em comandos

impositivos as vicissitudes e valores reitores do espírito humano é incapaz de garantir o bom

resultado a toda decisão jurídica.

À propósito da Constituição Italiana de 1948, Vittorio Frosini situa a Constituição

como um mito para salvar, no sentido de mito para manter a salvo, uma vez que ela, a

Constituição, é que garante as liberdades:

É uma crença generalizada de que, graças à Constituição, há a liberdade de pensar,

falar e decidir a política, que todo mundo tem os seus direitos, que são escritos na

Constituição, que o sistema social e jurídico, por suas deficiências e suas distorções,

deve ser julgado pelo padrão de medida ideal fornecido pela Constituição. A

Constituição tornou-se um mito, ou seja, o símbolo que apela a sentimentos de

liberdade e justiça, e, nesse sentido, é um mito para salvar.314

No entanto, por ocasião da comemoração do aniversário de 60 anos da Constituição,

Francesco D’Agostino faz uma ressalva ao pensamento de Vittorio Frosini. Ao mesmo tempo

em que reconhece que Vittorio Frosini atribuía um valor positivo à Constituição como mito ao

caracterizá-la como um símbolo que apela a sentimentos de liberdade e justiça, Francesco

313

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. de Pola Civelli. 5.ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 7. Afirma

ainda a autora: “o mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma ‘história verdadeira’”. (cf. p. 12). 314

Tradução livre de “"Si è diffusa la convinzione, che grazie alla Costituzione ci sia la libertà di pensare, di

parlare e di decidere di politica; che ognuno abbia i suoi diritti, che sono scritti nella Costituzione; che il sistema

sociale e giurídico, per le sue carenze e le sue storture, debba essere giudicato col metro di misura ideale fornito

dalla Costituzione. La Costituzione è diventata un mito, cioè il símbolo a cui fanno appello i sentimenti di libertà

e di giustizia; in questo senso, essa è un mito da salvare". FROSINI, Vittorio. Costituzione e società civile.

Milano: Edizioni di Comunità, 1975. p. 102, citado por DOBROWOLSKI, Silvio. A constituição de 1988: um

mito para resgatar. Revista de Informação Legislativa, v.29, n. 113, p. 131-142, jan./mar. de 1992. Disponível

em: <http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/175829>. Acesso em: 23 dez. 2013.

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107

D’Agostino afirma que o termo ‘mito’ também caracteriza a Constituição como uma narrativa

expressiva e envolvente, mas sem intrínseca credibilidade. 315

A crítica de Francesco D’Agostino reside tão somente no fato de que a palavra

“mito” vem a caracterizar algo diverso da realidade (constitucional), vez que pode ser

compreendida como uma história decorrente da criatividade da imaginação humana e, por

consequência, sem credibilidade ou suporte ancorados no plano fático.

Essa preocupação com o viés mítico da Constituição Italiana, no entanto, deve ser

estendida para abranger a esfera da simulação. O discurso que induz a crer que a Constituição

é quem garante ou concede o livre exercício de direitos fundamentais provém de uma

dimensão de pensamento que simula o real através da Constituição.

Nesse sentido, pensar na Constituição como simulacro reside na ideia de que tanto o

intérprete/aplicador quanto o próprio texto constitucional perfazem um sistema de simulação

da realidade jurídica, onde a ideia saudável de mitificação do direito constitucional – vez que

o processo mítico mantém conexão com a realidade – é substituída pela ideia de simulação

normativa – que é uma reconstrução do real que instala o novo real, recriado, como o real

desde sempre existente, daí a subversão que a simulação cria. Na simulação, o real é o que

advém da Constituição.

De toda forma e à toda evidência, como adverte Silvio Dobrowolski, se por um lado

"a erosão do sentimento constitucional corresponde à perda da fé no Direito, como

315

Afirma Francesco D’Agostino: “Nós queremos salvar a Constituição, queremos dar-lhe um fundamento,

queremos manter rigorosamente longe do autoritarismo e dogmatismo, mas por isso não aceitamos considerá-la

como um mito, não importa o quão bonito, sugestivo e compartilhado que isso possa ser”. Tradução livre de:

“Noi vogliamo salvare la Costituzione, vogliamo darle un fondamento, vogliamo tenerci rigorosamente lontani

da ogni autoritarismo e da ogni dogmatismo, ma non per questo accettiamo di considerarla alla stregua di un

mito, per quanto splendido, suggestivo e condiviso esso possa essere”. D'AGOSTINO, Francesco. Valori

costituzionali per i sessanta anni della Costituzione Italiana: riflessioni introduttive a un Convegno. Quaderni di

Iustitia, Roma, n. 3, 5-7 dicembre 2008. Disponível em: <http://books.google.com.br/books?id=

bttmVDSqi1YC&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false>. Acesso em: 23 dez. 2013.

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108

instrumento regulador das relações sociais",316

é necessário então um resgate do caráter ou

significado simbólico da Constituição de 1988 no sentido de concretizá-la no âmbito da vida,

não como simples folha de papel, mas como perene realidade. 317

O mito da força normativa da Constituição, a força impositiva da lei maior; o mito do

sentimento constitucional, a força espiritual de respeito ao convívio de consciências; o mito

do juiz cidadão, o ser especial que diz o direito; tudo importa na compreensão do direito e dos

caminhos que este deve trilhar através de seus intérpretes/aplicadores, como será visto um

pouco mais à frente.

4.5 MITO DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO

Em certa medida contrapostos, Hesse e Lassalle são estudados o mais das vezes

como difusores de total (Hesse) ou nenhuma (Lassalle) força normativa constitucional e, por

extensão, força normativa do direito. Seria a Constituição mera folha de papel veiculadora das

forças reais atuantes na sociedade? Teria a Constituição uma força ontológica capaz de

espraiar normatividade ao conjunto das interações sociais? Tais dimensões de efetividade

constitucional refletem um tudo ou nada intransponível ou podemos pensar numa via

conciliatória de percepção de efetividade normativa? Fatores reais de poder ou vontade de

Constituição seriam, de per si, suficientes para orientar o sentir e o agir constitucional numa

sociedade de normatividade dos valores?

316

DOBROWOLSKI, Silvio. A constituição de 1988: um mito para resgatar. Revista de Informação Legislativa,

v.29, n. 113, p. 141, jan./mar. de 1992. Disponível em: <http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/175829>.

Acesso em: 23 dez. 2013. 317

Escreve Silvi Dobrowolski, em 1992, sobre a necessidade de dar efetividade às promessas da Constituição de

1988: "Urge, portanto, resgatar o significado simbólico que assumiu a Constituição de 1988. Ainda parece haver

tempo. E para isso, o importante é concretizá-la como processo de vida, como uma realidade, não como simples

pedaço de papel". DOBROWOLSKI, Silvio. A constituição de 1988: um mito para resgatar. Revista de

Informação Legislativa, v.29, n. 113, p. 141, jan./mar. de 1992. Disponível em:

<http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/175829>. Acesso em: 23 dez. 2013.

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109

Assome-se a isto a ideia de sentimento constitucional como parâmetro de aferição da

potência do sentir e agir relacionados à percepção do dever-ser normativo e teremos o início

da discussão sobre o mito da força normativa da Constituição como diretriz da cultura jurídica

do povo brasileiro.

Na concepção de Ferdinand Lassalle, na obra “A essência da Constituição” de

1863,318

as respostas jurídicas até então sobre o conceito do que seja Constituição limitavam-

se a descrever suas formas ou suas funções, mas sem, no entanto, esclarecer-lhes o sentido, ou

seja, o que são efetivamente. A caracterização como sendo a Constituição uma lei é

insuficiente para suprir o cerne da pergunta, mesmo que a resposta afirme ser a Constituição a

lei fundamental ou a lei basilar do ordenamento jurídico.319

Mas antes de entrar no que Ferdinand Lassalle entende por Constituição, é

interessante registrar que no Império brasileiro, cinco anos antes de Lassalle desenvolver suas

teorias, o constitucionalista José Antonio Pimenta Bueno, em 1857, publicava:

Com effeito, a constituição por si só é pouco mais do que um symbolo de esperanças

lisonjeiras. É o frontispicio grandioso do edificio representativo, que para não ficar

só em simples decoração isolada demanda suas columnas de segurança, seus espaços

interiores, que resguardem os direitos publicos e individuaes, que sirvão de officinas

da prosperidade social. 320

Com essas palavras, o autor antecipou em aspecto normativo e político grande parte

do que Lassalle viria a desenvolver como inovação mediante viés sociológico. Ora, o

brasileiro diz que a Constituição é “pouco mais do que um symbolo de esperanças lisonjeiras”

antes de Ferdinand Lassalle propor sobre a Constituição escrita que “de nada servirá o que se

escrever numa folha de papel, se não se justifica pelos fatos reais e efetivos do poder”.321

318

A obra original nasceu de conferência proferida por Lassalle, na antiga Prússia, por volta do ano de 1863 (ou

precisamente em 16/04/1862, conforme anota Konrad Hesse), onde busca falar sobre qual é a essência de uma

Constituição. O título da tradução inicial para o português é “O que é uma Constituição”. 319

LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 9.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 6. 320

PIMENTA BUENO, José Antonio. Direito publico brazileiro e analyse da Constituição do Império. Rio

de Janeiro: Villeneuve, 1857. p. 45. 321

LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 9.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 44.

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110

De sua parte, José Antonio Pimenta Bueno diz que “a constituição não se suppõe

isolada das condições e das consequencias que necessariamente devem acompanhá-la, para

que liberalise todos os seus fructos”.322

Ambos os autores, por conseguinte, entendem a Constituição escrita como símbolo

que demanda algo para além dela própria para poder ser efetiva: para o autor brasileiro é, a

proteção “de boas leis regulamentares fielmente executadas, do desenvolvimento pratico de

sua constituição”;323

para o polonês, os fatores reais de poder.

De acordo com Lassalle,324

a lei fundamental precisa apresentar três características:

ser uma lei básica (em oposição às leis comuns), posto que é fundamental; ser verdadeiro

fundamento das outras leis; que esse fundamento que irradia provenha de uma necessidade

ativa, de uma força eficaz e determinante de sua existência e substância, que indique seja

desta e não de outra forma.

Afirma o autor que a Constituição tem seu modo de ser e seu sentido de ser em

função de uma força ativa maior que lhes dá os contornos e lhe determinam a existência e

substância325

ou, noutras palavras, faz com que sejam de um modo e não de outro. Essa força

ativa que atua no seio da sociedade é o que ele chama de fatores reais de poder.

Esses fatores reais de poder é o conceito que Lassalle utiliza para representar as

forças com poder real e efetivo no contexto da realidade social. Seriam forças ativas atuantes

no seio da sociedade, e que informam as leis e instituições jurídicas vigentes determinando-

lhes como podem ou devem ser. Exemplos seriam a monarquia, a aristocracia, a grande

322

PIMENTA BUENO, José Antonio. Direito publico brazileiro e analyse da Constituição do Império. Rio

de Janeiro: Villeneuve, 1857. p. 45. 323

PIMENTA BUENO, José Antonio. Direito publico brazileiro e analyse da Constituição do Império. Rio

de Janeiro: Villeneuve, 1857. p. 45. 324

LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 9.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 10-11. 325

Na palavra do prof. Aurélio Wander Bastos, no prefácio da edição brasileira, o pressuposto jurídico de

Lassalle seria o de que as constituições emanam de sistemas criados pelos homens para exercerem poder sobre

os demais, e não, propriamente, oriundas de ideários ou princípios superiores. BASTOS, Aurério Wander.

Prefácio. In: LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 9.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p.

xiii.

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111

burguesia, os banqueiros, a pequena burguesia e a classe operária, todos, em alguma medida,

com poder de influência.

Interessante observar, nas próprias palavras do autor, que “dentro de certos limites,

também a consciência coletiva e a cultura geral da nação são partículas, e não pequenas, da

Constituição”.326

Com isso, admite o autor a existência de um fator real de poder identificado

na vontade da consciência coletiva327

ou de ordem cultural, mas a este não sobreleva em

importância, tanto que não tematiza tal fator real de poder em capítulo específico.

Ferdinand Lassalle, 328

entretanto, reconhece à sociedade um poder desorganizado

que é superior, em potência, ao poder estatal organizado, o que aponta para a capacidade de

insurgir-se contra o poder organizado quando os assuntos do Estado estiverem sendo

administrados em oposição à vontade e interesses gerais, mas isto em raros momentos de

grande comoção.

Em relação ao poder de resistência ou poder de insurgência proveniente do povo, o

que é um fator real de poder nos termos lassalianos, afirma John Locke:

Erros graves por parte do governo, muitas leis injustas e inoportunas, e todos os

deslizes da fraqueza humana são suportados pelo povo sem revolta ou queixa. Mas

se uma longa sucessão de abusos, prevaricações e fraudes, todas tendendo na mesma

direção, torna a intenção visível ao povo – e ele não pode deixar de perceber o que o

oprime nem de ver o que o espera – não é de se espantar, então, que ele se rebele e

tente colocar as rédeas nas mãos de quem possa lhe garantir o fim em si do

governo.329

Desta forma, a Constituição de um país nada mais é que a soma dos fatores reais de

poder imanentes a esse país. É a representação escrita de desses fatores através de uma

326

LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 9.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 19. 327

No sentido de que a compreensão da realidade é capaz de tornar essa consciência um fator real de poder: cf.:

RAMOS, Paulo Roberto Barbosa. O conceito de Constituição em Ferdinand Lassalle. Porto Alegre: Sérgio

Antonio Fabris editor, 2012. p. 45. 328

LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 9.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 26-27 e 40. 329

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil: ensaio sobre a origem, os limites e os fins

verdadeiros do governo civil. Trad. de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p.

221.

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112

Constituição formal. Ou seja, apenas a expressão escrita em folhas de papel da verdadeira

Constituição, a Constituição material que são os fatores reais de poder.

Nesse sentido, conclui o autor que a Constituição escrita para ser boa e duradoura

deve corresponder à Constituição real e estar baseada nos fatores reais de poder que regem o

país. 330

Sem isto, força vinculante alguma lhe assiste. Ela não subsiste. Será apenas um folha

de papel escrita com algo que não corresponde ao real.

De acordo com Eduardo Garcia de Enterría, “intenta-se fazer a ‘redução’ da norma

constitucional formal à estrutura do poder real que lhe é subjacente e a suporta e da qual ela

não seria mais que um mascaramento convencional”.331

Acaso haja necessidade de alguém incitar outros a observar e respeitar a força de

uma Constituição, isto, de per si, constitui prova da caducidade desta,332

ou seja, de sua

dissociação em relação aos fatores reais de poder. Estivesse ela adequada a tais fatores, estaria

salvaguardada.

Decerto que o tão só fato do chamamento à observância e respeito à Constituição não

é suficiente à conclusão de que esta apresenta fragilidade, como pretende Lassalle. Mas isto é

questão para ser tratada pouco mais adiante.

Para Lassalle, há necessidade de paralelismo entre texto normativo e realidade, pois

“de nada servirá o que se escrever numa folha de papel, se não se justifica pelos fatos reais e

efetivos do poder”.333

É isto uma afirmação que, noutros termos, diz da necessidade de

observância da realidade social historicamente situada.

330

LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 9.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 39. 331

Tradução livre de: “se intenta hacer la ‘reducción’ de la norma constitucional formal a la estructura de poder

real que la subyace y soporta y de la que aquélla no sería mas que un enmascaramiento convencional”. GARCIA

DE ENTERRÍA, Eduardo. La constitución como norma y el tribunal constitucional. 3.ed. Madri: Civitas,

1994. p. 42. 332

LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 9.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 46-47. 333

LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 9.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 44.

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113

Nesse sentido, conforme Paulo Roberto Barbosa Ramos, há uma contradição no

pensamento lassalliano, uma vez que a tese dele pretende ser válida para todas as épocas e

sociedades,334

mas, entretanto, como o próprio Lassalle defendia, a realidade depende

necessariamente de seu momento histórico.335

Por fim, Lassalle delimita que os problemas constitucionais, em verdade, não são

problemas de direito, mas sim de poder.336

Assim, a bem das palavras do professor Aurélio

Wander Bastos no prefácio à edição brasileira, “A essência da Constituição” é um texto

clássico do constitucionalismo que desconhece a importância do direito.337

Tal ideia não

passou desapercebida, e isto foi motivo propulsor da contribuição de Konrad Hesse.

Konrad Hesse, na obra “A força normativa da Constituição”, 338

inicia falando sobre

o objeto de seu estudo: o fato de Ferdinand Lassalle ter proferido conferência sobre a essência

da Constituição e, nessa ocasião, ter exposto a tese de que as “questões constitucionais não

são questões jurídicas, mas sim políticas”,339

pois a Constituição de um país expressa as

relações de poder nele dominantes. De tal forma, a Constituição jurídica seria nada mais que

um pedaço de papel, uma vez que a força da Constituição dependeria de sua compatibilidade

com a Constituição real.

Esse pensamento redundaria em que “a ideia de um efeito determinante exclusivo da

Constituição real não significa outra coisa senão a própria negação da Constituição

334

RAMOS, Paulo Roberto Barbosa. O conceito de Constituição em Ferdinand Lassalle. Porto Alegre: Sérgio

Antonio Fabris editor, 2012. p. 30. 335

RAMOS, Paulo Roberto Barbosa. O conceito de Constituição em Ferdinand Lassalle. Porto Alegre: Sérgio

Antonio Fabris editor, 2012. p. 26. Sobre este ponto, Paulo Roberto Barbosa Ramos escreve que Lassalle tentava

“instaurar uma realidade burguesa de viés democrático em uma realidade autoritária”, o que seria inviável, e daí

sua reação intelectual através da tese de que o que importa são os fatores reais de poder. (Cf. p. 26-27). 336

LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 9.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 47. 337

Paulo Bonavides critica as teses errôneas de Lassalle e Jellinek os quais propugnam que as forças políticas

não observem a Constituição, pois, com isso, a realidade normativa em nada importaria diante da realidade

existencial. Lassalle chamava a constituição de folha de papel; Jellinek, citado por Bonavides, afirmava que “as

forças políticas reais se movem segundo suas próprias leis, que atuam independentemente de todas as formas

jurídicas”. BONAVIDES, Paulo. Teoria geral do Estado. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 349. 338

O texto constitui base da aula inaugural de Konrad Hesse na Universidade de Freiburg, em 1959. 339

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:

Sérgio Antonio Fabris editor, 1991. p. 9.

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114

jurídica”340

. É certo que a norma constitucional não tem existência autônoma em relação à

realidade. Como diz Mário Moacyr Porto, “a eficácia da norma não se mede em termos de

ética abstrata, mas em função de seu afinamento em relação aos fatos da vida. A paz é o preço

da adequação, como a iniquidade e a insubmissão são o tributo da incoincidência”. 341

No entanto, nada implica que deva ser o direito constitucional mero descritor das

relações de poder. O afastamento dessa ideia de a Constituição como simples espelho do

poder perde lugar e pode-se admitir, ao lado dessas forças políticas e sociais, uma força

normativa constitucional.342

Nesse contexto, cabe perguntar se existe uma força determinante do direito

constitucional ao lado dessa força fática da realidade. Dito em outras palavras: existiria, ao

lado do poder das relações fáticas, uma força determinante constitucional? A resposta a isto

implica em elevado peso na teoria do direito constitucional e no conceito de Constituição

jurídica como ciência normativa.

Konrad Hesse343

pretende analisar essas questões partindo do condicionamento

recíproco entre a Constituição e a realidade, onde observa primordial a aferição dos limites e

possibilidades da atuação constitucional e seus pressupostos de eficácia.

Em relação à pretensão de eficácia da norma constitucional, esta não se confunde

com as condições de sua realização – isto é, as condições fáticas que o ambiente social

propicia, ou não, em relação ao seu querer/poder eficacial. A pretensão de eficácia (expressão

de um dever-ser) é autônoma em relação às condições de realização (expressão do ser), uma

340

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:

Sérgio Antonio Fabris editor, 1991. p. 11. 341

PORTO, Mário Moacyr. Estética do direito. Revista do Curso de Direito: Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, Natal, v. 1, n. 1, jan./jun. 1996. p.19. 342

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:

Sérgio Antonio Fabris editor, 1991. p. 11. 343

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:

Sérgio Antonio Fabris editor, 1991. p. 13.

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115

vez que, ao mesmo tempo em que determina, é também determinada por essas condições.344

Há reciprocidade portanto, há condicionamento mútuo.

Neste sentido, “a Constituição adquire força normativa à medida que logra realizar

essa pretensão de eficácia”.345

À medida que sua pretensão de eficácia vai sendo concretizada

ou confirmada no contexto da realidade social. E uma tal concretização acontece por estar a

Constituição em sintonia com a historicidade e as tendências condicionantes de seu tempo.

Esses são os limites da força normativa da Constituição: a realidade com a qual se conecta a

normatividade constitucional.

Mas não apenas a adaptação à realidade provê força normativa. A Constituição

também se converte em força ativa quando se faz presente na consciência geral e lhe induz a

disposição de orientar sua conduta de acordo com as normas constitucionais346

: uma vontade

de constituição. E tal vontade, acrescenta o autor, tem origem em três pontos: compreensão da

necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável; entendimento de que essa

ordem normativa é mais que uma ordem legitimada pelos fatos; consciência de que essa

ordem necessita do concurso dos atos de vontade humana.347

Em relação aos pressupostos de eficácia, Konrad Hesse348

assim os apresenta: a) o

conteúdo da Constituição deve incorporar o tempo presente (aspectos políticos, econômicos,

sociais), inclusive o estado de espírito de seu tempo, sendo capaz de readequar-se em caso de

necessidade; b) a práxis da vontade de Constituição deve ser estimulada e preservada, dados

344

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:

Sérgio Antonio Fabris editor, 1991. p. 15. 345

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:

Sérgio Antonio Fabris editor, 1991. p. 16. Anota Konrad Hesse que “a constituição converte-se, assim, na ordem

geral objetiva do complexo das relações da vida”. (p. 18). 346

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:

Sérgio Antonio Fabris editor, 1991. p. 19. 347

Neste sentido, Paulo Bonavides identifica no respeito à constituição o fator de manutenção da estabilidade e

normatividade constitucionais. BONAVIDES, Paulo. Teoria geral do Estado. 8.ed. São Paulo: Malheiros,

2010. p. 352. 348

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:

Sérgio Antonio Fabris editor, 1991. p. 20-23.

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os benefícios da observância e respeito às normas constitucionais; c) a interpretação das

normas constitucionais é essencial na consolidação e preservação da força normativa, posto

que é através dela que se consegue concretizar as normas constitucionais, bem como prover

estabilidade à Constituição.

Com isto, as possibilidades e os limites da força normativa da Constituição decorrem

dessa implicação mútua entre ser e dever-ser. Assim, ela própria, a Constituição jurídica,

converte-se em força ativa determinante da realidade política e social. A intensidade dessa

força normativa é, em última análise, questão de vontade normativa, de vontade de

Constituição.

É desse breve panorama que se tem a “vontade de Constituição” como elemento sine

qua nom da força normativa da Constituição. Daí, nas palavras de Konrad Hesse, “quanto

mais intensa for a vontade de Constituição, menos significativas há de ser as restrições e os

limites impostos à força normativa da Constituição”.349

As dimensões de efetividade constitucional contrapostas nas teorias de Lassalle e

Hesse traçam um tudo ou nada: Constituição como representação escrita dos fatores reais de

poder versus Constituição com força normativa ontológica que se nutre da vontade de

Constituição.

Mas bem, seriam tais justificantes suficientes, de per si, a prover uma orientação ao

sentir e agir social respeitante à Constituição jurídica? Advém daí ínsita adequação ao sentir e

agir constitucional no âmbito de uma sociedade mediada por fatores reais de poder? O mito da

força normativa da Constituição atua no sentido de prover uma sensação ou percepção de

juridicidade em respeito à Constituição.

349

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:

Sérgio Antonio Fabris editor, 1991. p. 24. A Constituição interage com a realidade histórica de seu tempo,

“todavia, ela não está condicionada, simplesmente, por essa realidade”. (p. 25).

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117

No entanto, a necessidade de a Constituição estar conectada à realidade de seu

entorno é uma constante que indica para uma linha tênue entre o respeito à normatividade e

juridicidade constitucionais de um lado, e, de outro, a desconsideração das normas

constitucionais em benefício das normas da realidade, sejam elas os fatores reais de poder de

que fala Lassalle ou mesmo outros poderes sociais – de grupos de influência – que se

entendam no dever de guardar a justiça, os princípios e os valores que consideram melhores.

4.6 MITO DO SENTIMENTO CONSTITUCIONAL

Numa breve análise da disputa teórica da subseção antecedente, há tendência a optar

pela solução de Hesse. Isto se dá, em grande medida, pela apreciação de ambos os pontos de

partida que o autor utiliza para a análise do condicionamento entre Constituição e realidade:

aferição dos limites e possibilidades da atuação constitucional, e dos pressupostos de eficácia.

Ao contrário de limitar a ciência do Direito a mera descritora da realidade, Konrad

Hesse reconhece à ciência do Direito o caráter da normatividade, do dever-ser, e discorre

sobre o modo como isso se processa. A noção de sentimento em Hesse, portanto, advém do

que ele chama de vontade de Constituição, ou seja, o querer respeitar e fazer valer a

Constituição e sua normatividade, dados os benefícios mútuos que isto implica.350

De início, é relevante lembrar a advertência de Karl Loewenstein que diz: “con la

expresión ‘sentimiento constitucional’ (Verfassungsgefühl) se toca uno de los fenómenos

psicológico-sociales y sociológicos del existencialismo político más difíciles de captar”. 351

350

Para Lassalle a associação de um sentimento jurídico inexiste, haja vista que a Constituição seria apenas

reflexo escrito dos fatores reais de poder atuantes. 351

LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Trad. de Alfredo Gallego Anabitarte. 2.ed. Barcelona:

Ariel, 1979. p. 200.

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Haveria como pensar num sentir constitucional para além de Hesse, que ultrapasse a

noção passiva de interesse em normatividade? Um início de resposta passa pela ideia de que

justiça e direito positivado são dimensões distintas do fenômeno jurídico.

O sentimento jurídico nasce da convicção de que justiça e direito convivem em

determinadas normas, e daí sua efetividade normativa, posto que há uma adequação entre o

justo e o racional, isto é, harmonia entre sentimento e razão. 352

A aceitabilidade da norma,

então, resulta de seu grau de simpatia aliado ao grau de racionalidade normativa. 353

Abstrai-se

daí que a efetividade normativa não tem causa única no sentimento jurídico-constitucional. 354

Escreve Pablo Lucas Verdú355

que “o sentimento jurídico aparece como afeto mais

ou menos intenso pelo justo e equitativo na convivência” e haveria o sentimento

constitucional quando esse afeto incidisse sobre a ordem fundamental da convivência. Ainda

aí, percebemos que a ideia passiva sentimento constitucional como interesse normativo

permanece. Como evoluir para uma dimensão ativa?

Mais apurada, nesse sentido, é a tese expressa por José Eduardo García de Enterría356

que atribui à Constituição a prevalência do elemento humano constitutivo da ideia de contrato

social que a estabelece para que exista em função dele – o povo –, e para ele. Dessa forma, o

povo, a sociedade, “reserva-se zonas de liberdade e instrumentos de participação e controle

efetivos, de modo que o poder não possa pretender nunca ser superior à sociedade, mas

apenas seu instrumento”.357

352

LUCAS VERDÚ, Pablo. O sentimento constitucional: aproximação ao estudo do sentir constitucional como

modo de integração política. Trad. de Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 5. 353

LUCAS VERDÚ, Pablo. O sentimento constitucional: aproximação ao estudo do sentir constitucional como

modo de integração política. Trad. de Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 6. 354

LUCAS VERDÚ, Pablo. O sentimento constitucional: aproximação ao estudo do sentir constitucional como

modo de integração política. Trad. de Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 6. 355

LUCAS VERDÚ, Pablo. O sentimento constitucional: aproximação ao estudo do sentir constitucional

como modo de integração política. Trad. de Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 53 e 75. 356

GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo. La constitución como norma y el tribunal constitucional. 3.ed.

Madri: Civitas, 1994. p. 44-47. 357

Tradução livre de: “se reserva zonas de libertad e instrumentos de participación y control efectivos, de modo

que el poder no pueda pretender nunca ser superior a la sociedad, sino sólo su instrumento”. GARCIA DE

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119

É nesse preciso sentido que Karl Loewenstein conceitua o sentimento constitucional

como consciência da comunidade que ultrapassa antagonismos e tensões (político-partidárias,

econômico-sociais e outras), integra detentores e destinatários do poder no respeito à

Constituição normativa, e submete a política aos interesses da sociedade.358

A Constituição, assim, deixa de ser percebida na visão de normatividade da

sociedade e passa à de normatividade para a sociedade.359

A razão da existência da

normatividade está em facilitar ou tornar melhores as condições de vida da sociedade

historicamente situada. O poder normativo nasce a partir do povo e a este deve servir.

O parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal de 1988, nesse sentido, expressa

que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou

diretamente, nos termos desta Constituição”. Essa soberania popular é exercida, nos termos do

art. 14 da Constituição, através de plebiscito (inciso I), referendo (inciso II) e iniciativa

popular (inciso III), tudo mediante sufrágio universal e voto direto e secreto (caput), e nos

termos da lei360

.

Sobre o que seja plebiscito e referendo,361

a Lei nº 9.709/1998 esclarece:

Art. 2º. Plebiscito e referendo são consultas formuladas ao povo para que delibere

sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou

administrativa. § 1º O plebiscito é convocado com anterioridade a ato legislativo ou

administrativo, cabendo ao povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe tenha sido

ENTERRÍA, Eduardo. La constitución como norma y el tribunal constitucional. 3.ed. Madri: Civitas, 1994.

p. 45. 358

LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Trad. de Alfredo Gallego Anabitarte. 2.ed. Barcelona:

Ariel, 1979. p. 200. 359

No sentido de que o direito deve servir à sociedade e não esta àquele, Dalmo de Abreu Dallari escreve: “O

excesso de apego à legalidade formal pretende, consciente ou inconscientemente, que as pessoas sirvam à lei,

invertendo a proposição razoável e lógica, segundo a qual as leis são instrumentos da humanidade e como tais

devem basear-se na realidade social e serem conformes a esta”. DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos

juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 83-84. De acordo com Eduardo Garcia de Enterría: “No será tampoco

Constittución el instrumento legal que ordene la vida social como una concesión del Estado o que pretenda que

en éste se resuma necesariamente la vida personal o colectiva […]”.GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo. La

constitución como norma y el tribunal constitucional. 3.ed. Madri: Civitas, 1994. p. 45. 360

Na legislação infraconstitucional consta a Lei nº 4.737, de 15/07/1965, que institui o Código Eleitoral; e Lei nº

9.709, de 18/11/1998, que regulamenta a execução de plebiscitos, referendos e iniciativas populares de lei. 361

Compete, exclusivamente, ao Congresso Nacional, autorizar referendo e convocar plebiscito (CF, art. 49, XV).

O art. 18, §§3º e 4º, da Constituição trata da matéria do plebiscito quanto à organização político-administrativa

de Estados e Municípios. Cf. também, a esse propósito, a Lei 10.521, de 18/07/2002.

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submetido. § 2º O referendo é convocado com posterioridade a ato legislativo ou

administrativo, cumprindo ao povo a respectiva ratificação ou rejeição.

De sua vez, a iniciativa popular no processo legislativo está constitucionalmente

prevista em relação às esferas federal (art. 61, §2º), estadual (art. 27, §4º) e municipal (art. 29,

XIII). No âmbito federal, ela pode ser exercida mediante apresentação de projeto de lei à

Câmara dos Deputados desde que subscrito por pelo menos 1% do eleitorado nacional,

distribuído no mínimo por cinco Estados, e com não menos de 0,3% dos eleitores de cada um

deles (art. 61, §2º).

Diante disto, percebe-se, a Constituição traz as condições de efetivo exercício da

soberania popular no cotidiano da vida do Estado brasileiro. E doutra forma não haveria de

ser. O poder emana do povo e para o povo é que a normatividade constitucional deve servir.

Inadmissível pensarmos numa ideia de Constituição apenas como reguladora da sociedade,

mas sim uma regulação para a sociedade, uma normatividade que tenha em nuclear um

elemento humano espacio-temporalmente situado. Daí o sentimento constitucional funcionar

como limite de efetividade da Constituição. A Constituição não é o que ‘se diz da sociedade’,

e sim o que ‘a sociedade diz de si própria’.

A praxis das cortes constitucionais está orientada nesse sentido. No caso brasileiro –

que interessa a este trabalho – o Supremo Tribunal Federal tem apresentado destacado papel

nesse sentido. Decisões em processo importantes para o dia-a-dia da sociedade brasileira são

tomadas com elevada frequência. Casos como o das células-tronco embrionárias362

e o das

362

Para um rápido relato do desfecho da discussão na ADI 3.510, consultar o Informativo nº 508 do Supremo

Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo508.htm>.

Acesso em: 25 out. 2011. Interessante também, a esse respeito, o artigo "A fé na ciência: constitucionalidade e

legitimidade das pesquisas com células-tronco embrionárias", do prof. Luís Roberto Barroso, advogado atuante

nessa ADI. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/a_fe_na

_ciencia.pdf>. Acesso em: 25 out. 2011.

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121

uniões homoafetivas363

(sobre casamento de parceiros do mesmo sexo) são exemplos desse

atuar constitucional.

Um ponto merecedor de atenção é o fato de que essa apreciação do sentir

constitucional pode conduzir as decisões da Suprema Corte a um lugar destoante do sentir do

povo. O sentimento religioso brasileiro, por exemplo, pode indicar que tanto a decisão

permissiva da utilização de células-tronco embrionárias quanto a decisão que reconhece a

possibilidade do casamento entre pessoas de mesmo sexo fluem em sentido oposto ao sentir

da maioria do povo brasileiro. Isto dá abertura no sentido de se as decisões do Supremo

demandam necessidade de legitimação desse sentir-geral para sua plena normatividade, sua

eficácia constitucional.

O que se pode afirmar, com razoável certeza, é que, se por um lado, a validade da

decisão do Supremo é reconhecida e deve ser observada por todos; de outro lado, uma decisão

que afronta o sentir-geral do povo implica num sentimento de fragilização das normas

constitucionais e, no mesmo sentido, volta os pensamentos a uma análise da correção do

exercício pela Corte Suprema de seu papel constitucional. Melhor seria que se evitasse a todo

instante uma dúvida sobre a correção das decisões advindas do Supremo Tribunal.

Nas palavras de Raul Machado Horta:

O acatamento à Constituição ultrapassa a imperatividade jurídica de seu comando

supremo. Decorre, também, da adesão à Constituição, que se espraia na alma

coletiva da Nação, gerando formas difusas de obediência constitucional. É o

domínio do sentimento constitucional.364

O paradigma reside no fato de que a eficácia normativa da Constituição está sim na

estrita observância do elemento humano: o povo. E um afastamento de seu sentir-geral sob a

363

Uma breve síntese dessa discussão na ADPF nº 132 pode ser obtida no Informativo nº 625 do Supremo

Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo625.htm>.

Acesso em: 25 out. 2011. 364

HORTA, Raul Machado. Permanência e mudança na Constituição. Revista de Informação Legislativa,

Brasília, v. 29, n. 115, jul./set. 1992. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/176002>.

Acesso em: 25 dez. 2013.

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justificativa de proteção a direitos fundamentais de minorias – ou outro qualquer motivo que

vá de encontro a esse sentir constitucional geral365

– deve tomar forte cuidado para evitar o

descrédito, mesmo parcial, das normas constitucionais e do sentimento de justiça que daí se

espalha. Numa sociedade de normatividade dos valores, o direito e o poder passam pela

análise intersubjetiva do que é adequado aos valores vigentes no seio social, mas também

devem ser justificados numa dimensão social do sentir constitucional do povo.

Uma adequação normativa ao sentir do ser humano espacio-historicamente situado

tanto deve estar atenta às relações intersubjetivas quanto às relações sociais. Isto porque, além

da oposição entre o individual e o social,366

há a oposição do individual ao intersubjetivo – ou

interindividual como prefere José Ortega y Gasset.367

As relações intersubjetivas determinam

a esfera de atuação do juiz; as relações sociais, o campo de atuação do legislador.

Na fronteira entre o direito do juiz e a política do legislador, o social deixa de ser

tomado como uma oposição ao individual, e a passa a ser compreendido como oposição ao

intersubjetivo. As decisões jurídicas, portanto, devem produzir normas individuais e

intersubjetivas, 368

e não normas sociais ou normas gerais.369

Nesse sentido, ao Supremo Tribunal Federal cabe respeitar, no âmbito de suas

decisões, o espaço de produção das normas gerais que regulam as relações sociais, esfera da

365

A prudência é o que se impõe, pois nem sempre o sentimento da maioria deve ser o norte de orientação de um

Estado Democrático de Direito: o sentimento da minoria, quando se tem em vista a garantia de direitos

fundamentais, é importante e deve ser levado seriamente em consideração. 366

Paulo Afonso Linhares, em vista da ideia orteguiana de homem como drama da existência, propõe que “a esse

homem-projeto-de-si-mesmo se contrapõe a ideia de gente, traduzida na oposição entre o pessoal e o impessoal,

ou entre o individual e o coletivo”. LINHARES, Paulo Afonso. Direitos fundamentais e qualidade de vida.

São Paulo: Iglu, 2002. p. 30. Daí, o homem-drama (indivíduo existencial) está para as relações intersubjetivas ou

interindividuais, assim como o homem-gente (cidadão da sociedade) está para as relações sociais. 367

ORTEGA Y GASSET, José. O homem e a gente: inter-comunicação humana. Trad. de J. Carlos Lisboa.

2.ed. Rio de Janeiro: LIAL, 1973. p. 213-214. 368

O processo judicial é o roteiro de capítulo do drama da vida do homem individual ou de um grupo, ou seja,

trata das esferas do individual e do intersubjetivo. A regulação da esfera social cabe ao processo legislativo. 369

As normas judiciais decorrentes de mandado de injunção (CF, art. 5º, LXXI) figuram numa zona cinzenta

onde perde nitidez a delimitação das esferas do intersubjetivo e do social. No entanto, o mandado de injunção

serve a viabilizar o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à

nacionalidade, à soberania e à cidadania na falta de norma regulamentadora, mas não para criar ou produzir,

como se legislador fosse, a norma social que é a lei.

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atuação legislativa. E isso, mais ainda, devido o fato de a Corte ser o principal orador da

constitucionalidade na democracia brasileira e seu auditório370

ser o povo, o que implica que é

preciso atenção para com essa delicada relação de poder.371

Ao propósito, as palavras de José Eduardo García de Enterría:

Ao sistema jurídico não interessa nada as opiniões pessoais dos que atuam como

juízes, mas apenas a capacidade deles para expressar as normas que a sociedade há

dado a si mesma e para fazê-las chegar a sua efetividade última, o que lhe impõe

operar necessariamente com seus princípios, depurando e afinando seu alcance.372

O sentir constitucional que deve ser respeitado, portanto, não é somente o sentir

intersubjetivo, mas o sentir social que é identificado com o sentir do povo. Daí que, nem

sempre é o Supremo que deva dar a última palavra, pois isto serve às questões de

interpretação constitucional para a elaboração de normas jurídicas individuais e

intersubjetivas; mas, noutro sentido, não serve às normas gerais que devam repercutir o sentir

constitucional nas relações sociais. A essas cabe o exercício do poder diretamente pelo povo

(CF, art. 14) ou indiretamente através de seus representantes. Ruptura dessa sistemática gera

desconfiança no Supremo Tribunal Federal e mesmo o enfraquecimento da Constituição.

370

Tem-se que auditório é “o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação”.

PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TITECA, Lucie. Tradado da argumentação: a nova retórica. Trad. de

Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 22. 371

A relação orador-STF e auditório-povo é delicada, pois tanto “o orador tem toda a liberdade de renunciar a

persuadir um determinado auditório, se só o pudesse fazer eficazmente de um modo que lhe repugnasse” (p. 28),

quanto, de igual, o auditório, ao se aprimorar, detém o poder de aprimorar o discurso do orador, porquanto,

segundo adverte Demóstenes, “jamais vossos oradores, diz ele, vos tornam bons ou maus; sois vós que fazeis

deles o que quiserdes. Com efeito, não vos propondes conformar-vos à sua vontade, ao passo que eles se pautam

pelos desejos que vos atribuem. Tende, pois, vontades sadias e tudo irá bem. Pois, de duas uma: ou ninguém dirá

nada de mal, ou aquele que o disser não se aproveitará disso, por falta de ouvintes dispostos a se deixarem

persuadir” (p. 27). Essa tensão essencial da oratória constitucional, só por si, aponta para o fato de que a

elaboração das normas gerais, a lei, deve permanecer na seara da política: é que o compromisso de adaptação ao

auditório é melhor de ser cobrado aos políticos eleitos periodicamente que aos juízes com “mandato” vitalício.

Nem a Corte detém o poder de contentar-se em ordenar significações à Constituição nem o povo deve contentar-

se em, esporadicamente, ser ouvido nas audiências pública no STF, como que seja “uma distinção apreciada ser

uma pessoa com quem os outros discutem” (p. 18). Citações diretas desta nota em: PERELMAN, Chaïm;

OLBRECHTS-TITECA, Lucie. Tradado da argumentação: a nova retórica. Trad. de Maria Ermantina de

Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 372

Tradução livre de: “Al sistema jurídico no le interesan nada las opiniones personales de quienes actúam com

jueces, sino sólo su capacidad para expressar las normas que la sociedad se ha dado a sí misma y para hacerlas

llegar a su efectividad última, lo que les impone operar necessariamente con sus principios, depurando y

afinando su alcance”. GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. Democracia, ley e inmunidades del poder. 2.ed.

Madri: Civitas, 2011. p. 128.

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É de se concluir que as teorias de Konrad Hesse sobre a vontade de Constituição e as

de Ferdinand Lassalle sobre os fatores reais de poder guardam, em si, parte da verdade sobre

os meios de processamento do que vem a dar efetividade a uma Constituição espacio-

historicamente situada. No entanto, a Constituição nem seria mera folha de papel que tenha

virtude de mera descrição do factual, das relações de poder existentes e atuantes em dada

sociedade, nem a Constituição teria normatividade efetivada pela tão só vontade de

Constituição, que é interesse estático em normatividade constitucional.

Uma vez que “cada geração tem o direito a viver sua Constituição”,373

é certo que a

formação do sentimento constitucional é levado em conta a cada momento temporal de

vivência de um povo, e disso abstrai-se que uma Constituição anda ao compasso do

sentimento do povo. Ou seja, independe de possuir centenas de anos, o que importa é a

constitucionalidade que dela emana aos cidadãos de acordo com a vivência em sociedade.374

Como afirma Fábio Nadal, cada sociedade estabelece os elementos – tradição,

religião, racionalidade – que vão determinar a obediência à Constituição.375

Daí, o autor dizer

que a legitimidade da Constituição baseia-se em um mito, ou seja, em crenças – base

emocional – como condição de possibilidade das normas jurídicas – base racional – através de

um discurso que objetiva alcançar sua manutenção. 376

373

Tradução livre de: “cada generación tiene derecho a vivir su Constitución”. GARCÍA, Enrique Alonso. La

interpretacipon de la Constitución. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1984. p. 326. 374

Nas palavras de José Ortega y Gasset, “Una institución es una máquina, y toda su estructura y funcionamiento

han de ir prefijados por el servicio que de ella se espera”. ORTEGA Y GASSET, José. La missión de la

universidad. Madri: Revista de Occidente, 1930. p. 38-39. A Constituição é uma instituição no sentido de

contrato jurídico-político de um povo que se determina em torno de um acordo de consciências e, assim, ela,

Constituição, deve estar direcionada a servir. 375

NADAL, Fábio. A Constituição como mito: o mito como discurso legitimador da Constituição. São Paulo:

Método, 2006. p. 21. 376

Afirma Fábio Nadal: “Entendemos que a legitimidade de uma Constituição se baseie em um mito, vale dizer,

em uma crença ou em um conjunto de crenças (base irracional – a ‘fé na Constituição’) que propicia(m) o

urdimento do sistema normativo (base racional), de acordo com um discurso competente (ideológico) com a

finalidade (telos) de alcançar e manter sua funcionalidade (simbólica, dominação, regulação e integração)”.

NADAL, Fábio. A Constituição como mito: o mito como discurso legitimador da Constituição. São Paulo:

Método, 2006. p. 21.

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125

A adequação da Constituição à sociedade e sua complexa dinâmica passa, de certa

forma, pelas teses de Hesse e Lassalle, e isto é de fato verificável. Uma vez que a

Constituição nasce pela expressão das virtudes de um povo, deve ela guardar consonância

com os aspectos fundamentais desse povo, o que inclui fatores sócio-políticos, econômico-

culturais, afetivo-comportamentais, e todos eles historicamente situados.

Mas essa percepção da normatividade constitucional deve ser visualizada com

fundamento numa nova ótica. O contentar-se em situar o fundamento último da normatividade

constitucional nos fatores reais de poder como o faz Ferdinand Lassalle ou, então, na vontade

de constituição como o quer Konrad Hesse, é pouco mais do que admitir, de um lado, o

determinismo sociológico sobre a normatividade constitucional ou, de outro lado, contrapor

esse determinismo a uma vontade ou desejo de vivenciar normatividade constitucional.

No sistema constitucional brasileiro, o poder é exercido pelo povo direta ou

indiretamente, e o poder normativo deve seguir essa mesma lógica. O sentir e o agir

constitucional devem estar vinculados à cultura jurídico-constitucional à qual estão

indelevelmente conectados através das normas da Constituição. A Constituição é poder que

emana do povo e a ele se destina. Daí que a normatividade constitucional deva guardar

consonância com o sentir e o agir constitucional do povo histórica e culturalmente situado. As

decisões do Supremo Tribunal Federal, por conseguinte, devem estar atentas a isso, devem

respeitar o sentimento constitucional do povo que está positivado na Constituição.

Assim, a Constituição impõe-se como limite às decisões. Uma vez que a

Constituição apresenta as normas que o povo estabelece a si próprio, não poderá o intérprete

da Constituição resolver apartar-se do sentimento constitucional do povo. E, com isto, o que

se procura, longe de uma ditadura da maioria, é sim o respeito ao sentimento jurídico-

constitucional e à cultura jurídica que estão constitucionalizados.

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126

A Constituição, conforme Fábio Bezerra dos Santos, “contém a vontade que a

origina cotidianamente”, 377

é dizer, seu conteúdo constitucional tanto dela origina quanto a

ela é remetido dialeticamente através vontade do povo constituído, e daí à possibilidade de

uma hermenêutica integrativa que atue na transição entre um passado superado e um futuro

em perene renovação.

De tal sorte, o caminho é sair de uma ideia de Constituição como instrumento

regulador da sociedade e buscar uma ideia de Constituição como instrumento regulador para a

sociedade. 378

E, nesses termos, há uma conexão com a ideia de que a Constituição é a base

normativa do que o povo sente e diz de sua cultura jurídica.

A normativa instrumentalização que desse contexto advém jamais poderá abandonar

o sentimento de constituição que parte do povo. E isto revela a compreensão de que a

Constituição é instrumento de realização do que, concretamente, o povo diz a seu próprio

respeito, e por isso pauta a dinâmica da hermenêutica constitucional, tanto na interpretação da

Constituição quanto na interpretação constitucional.

377

SANTOS, Fábio Bezerra dos. Constituição integral, hermenêutica constitucional integrativa e o controle de

constitucionalidade realizado pelo Poder Executivo brasileiro com a faculdade do veto presidencial. FIDES,

Natal, v. 1, n. 2, ago./dez. 2010. p. 44. Disponível em: <http://www.revistafides.com/ojs/index.php/br/

issue/view/2>. Acesso em: 15 out. 2013. Uma perspectiva interessante é saber se seria a Constituição uma

espécie de “conto que se transforma diariamente”, conforme Germano Schwartz. SCHWARTZ, Germano. A

Constituição, a literatura e o direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 23. 378

No sentido de que o direito deve servir à sociedade e não esta àquele, Dalmo de Abreu Dallari escreve: “O

excesso de apego à legalidade formal pretende, consciente ou inconscientemente, que as pessoas sirvam à lei,

invertendo a proposição razoável e lógica, segundo a qual as leis são instrumentos da humanidade e como tais

devem basear-se na realidade social e serem conformes a esta”. DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos

juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 83-84. De acordo com Eduardo Garcia de Enterría: “No será tampoco

Constittución el instrumento legal que ordene la vida social como una concesión del Estado o que pretenda que

en éste se resuma necesariamente la vida personal o colectiva […]”.GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo. La

constitución como norma y el tribunal constitucional. 3.ed. Madri: Civitas, 1994. p. 45.

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127

5 AUTOMATISMO JUDICIAL E A PAUSA PARA REFLETIR

A ideia de juiz autômato é conexa com a de automatismo de pensamento e ação, ou

seja, a ideia de um atuar jurisdicional desvinculada da atitude de reflexão, como que de forma

contínua e ininterrupta onde o que menos importa é parar para pensar.

Assim, o juiz autômato, para os objetivos do presente estudo, não será o juiz

androide ou computador inumano ao qual se propõe o desvelamento da melhor decisão

matematicamente calculada, mas sim o magistrado acometido do automatismo natural à

atividade ou que, por questões de conveniência ou oportunidade do juiz ou da Jurisdição, tal

servidor é levado a atuar, sem reflexão crítica, e sem aperceber-se de que atua na esteira de

uma linha de produção de decisões e de sentidos previamente formatados.

Nesse contexto, entretanto, para além do juiz autômato, é interessante a análise de

outros modelos ou tipologias de juízes que podem ser encontradas no ambiente da

contemporaneidade: o juiz cidadão que aos olhos da sociedade é o magistrado justo, ciente de

que deve transportar ao direito o sentimento de justiça que emana do seio social; e os juízes

mitológicos, no sentido de personagens desenvolvidas a partir de modelos teóricos-jurídicos,

os quais tentam elucidar o meio ou modo pelo qual a Jurisdição deve ser exercitada.

Antes, no entanto, torna-se necessário prover um panorama dos limites delimitativos

do que vem a ser o significado da expressão “reflexão crítica”, o que, para fins do presente

estudo, será analisado a partir do conceito de “sentido comum teórico dos juristas”.

5.1 APROXIMAÇÃO AO CONCEITO DE REFLEXÃO CRÍTICA

O sentido de reflexão crítica na seara jurídica mantém conexão com o conceito de

sentido comum teórico dos juristas desenvolvido por Luís Alberto Warat, que diz:

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os juristas de profissão sempre se encontram ‘condicionados’, em suas práticas

cotidianas, por um conjunto de representações, imagens, noções baseadas em

costumes, metáforas e preconceitos valorativos e teóricos, que governam seus atos,

suas decisões e suas atividades. A esse conjunto, dou o nome de ‘sentido comum

teórico dos juristas’, lembrando que ele funciona como um arsenal ideológico para a

prática cotidiana do direito.379

Esse conjunto de saberes funciona como diretrizes para a ação. Os juristas se

orientam por essa gama de conhecimentos acumulados para as tomadas de decisão, para a

atividade de interpretação jurídica e para a criação ou produção de sentidos os mais diversos

ligados à sua atuação profissional.

Diante disto, a reflexão crítica deve andar ao lado dessas concepções enraizadas para

poder tê-las como base para a discussão e a reelaboração do sentido comum teórico em suas

funções.380

Portanto, o sentido comum teórico é a base de elaboração e composição do

discurso crítico, e esse constitui-se em contra discurso no intuito de eliminar as barreiras e

possibilitar desenvolvimento, redefinição e superação do sentido comum teórico. 381

De tal forma, dada essa função da reflexão crítica, e somando-se a isto a necessidade

de o estudo científico382

ser propositivo,383

a academia é, por excelência, espaço dedicado às

apreciações de novos sentidos.

379

WARAT, Luís Alberto. O sentido comum teórico dos juristas. In: FARIA, José Eduardo (Org.). A crise do

direito numa sociedade em mudança. Brasília: UnB, 1988. p. 31. 380

Luiz Alberto Warat estabelece e sistematiza quatro funções para esse sentido comum teórico, são elas: a

função normativa, que serve à atribuição de significado aos textos legais, e estabelecem âmbitos de

normatividade em relação à sociedade, em suas relações, e aos próprios juristas, em sua atividade; a função

ideológica, de controle social e legitimação axiológica dos comandos jurídicos; a função retórica, que argumenta

do sentido da efetivação da ideológica; e, por fim, a função política, que orienta no sentido das relações de poder

e suas composições. Cf.: WARAT, Luís Alberto. O sentido comum teórico dos juristas. In: FARIA, José

Eduardo (Org.). A crise do direito numa sociedade em mudança. Brasília: UnB, 1988. p. 39-40. 381

WARAT, Luís Alberto. O sentido comum teórico dos juristas. In: FARIA, José Eduardo (Org.). A crise do

direito numa sociedade em mudança. Brasília: UnB, 1988. p. 35-36 e 38. 382

Diz Umberto Eco que o estudo é científico quando cumpre os requisitos: “1) O estudo debruça-se sobre um

objeto reconhecível e definido de tal maneira que seja reconhecível igualmente pelos outros. [...] 2) O estudo

deve dizer do objeto algo que ainda não foi dito ou rever sob uma óptica diferente o que já se disse. [...] 3) O

estudo deve ser útil aos demais. [...] 4) O estudo deve fornecer elementos para a verificação e a contestação das

hipóteses apresentadas e, portanto, para uma continuidade pública”. ECO, Umberto. Como se faz uma tese.

Trad. de Gilson Cesar Cardoso de Souza. 22.ed. São Paulo: Perspectiva, 2009. p. 21-24. 383

As hipóteses básicas de pesquisa, de acordo com José Alfredo Américo Leite, podem ser uma ou mais das

seguintes: “1) testar uma teoria; 2) descobrir aplicações; 3) formar juízos de valor; 4) descobrir processos de

mutação; 5) integrar fases de conhecimentos; 6) estabelecer relacionamento ou interdependência de fenômenos;

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129

No entanto, conforme anota Virgílio Afonso da Silva, em relação aos métodos de

interpretação, “domina uma discussão meramente teórica, sem qualquer preocupação com a

aplicabilidade prática deles”, e mais: “não há mais como se satisfazer com a mera exposição

teórica de sua idéia básica. Se se trata de um método, é de se presumir qeu ele exista para se

aplicado, e não para se meramente exposto”. 384

É preciso talvez um pouco mais que modelos

descritivos, que forma a realidade a partir de injunções especulativas.

Somado a isso, sabe-se de que essa monotonização,385

esse lugar comum que vira a

rotina é prejudicial por impor barreiras à inovação. José Renato Nalini diz precisamente no

sentido de que a criatividade demanda ousadia386

e delas origina a inovação, o que leva à

conclusão de que: “o juiz do século XXI precisa ensinar o Judiciário a assumir a proposta de

uma inovação aberta, sem preconceitos e pronto a ousadias”.387

Mas é preciso cautela na inovação, é preciso prudência, principalmente quando o

foco está na importação de teorias jurídicas provenientes de outros ordenamentos jurídicos

sem que essas passem por um filtro de verificação de compatibilidade com o ordenamento

jurídico nacional.388

A importação da teoria neoconstitucional para terras brasileiras implanta um novel

clima constitucional e exalta o discurso de ambiente democrático, de cariz pluralista, e de

inclinação neoprincipiológica. Exsurge daí o estímulo para que juristas e legisladores

7) descobrir soluções mais eficientes; 8) prever tendências futuras; 9) provar ou refutar argumentos; 10)

identificar problemas”. LEITE, José Alfredo Américo. Metodologia de elaboração de teses. Recife: McGraw-

Hill, 1978. p. 17. O presente trabalho, nos parece, objetiva as hipóteses 3, 6, 8 e 10. 384

SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação e sincretismo metodológico. In: ______ (Org.). Interpretação

constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 140 e 142. Grifos do autor. 385

Afirma Mario Sergio Cortella que Stefan Zweig no livro “Encontros com Homens, livros e países”, de 1942,

inseriu um ensaio chamado “A monotonização do mundo”, e conclui Mario Sergio Cortella: “Bela expressão:

monotonização; o processo de gerar monotonia e, com ela, desapercebimento, inconsciência e, claro, alienação”.

CORTELLA, Mario Sergio. Eu robô? In: ______. Não se desespere! Provocações filosóficas. 4.ed. Petrópolis-

RJ: Vozes, 2013. p. 106. 386

A ousadia importa, necessariamente, em assumir riscos. Daí que Dimitri Dimoulis vai afirmar que “inovar

significa assumir riscos”. DIMOULIS, Dimitri. Apresentação. In: NADAL, Fábio. A Constituição como mito: o

mito como discurso legitimador da Constituição. São Paulo: Método, 2006. p. 13. 387

NALINI, José Renato. Ética para um Judiciário transformador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p.

19, 21, 23. 388

Conferir subseção 3.3.

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130

compreendam que a eficiência na interpretação/aplicação do direito constitucional depende da

concreta adequação dos sentidos aos novos tempos, onde é tempo de Estado constitucional.

Todavia, como ressalta Dimitri Dimoulis, a contraposição entre Estado legal e Estado

constitucional “constitui um mito veiculado com o propósito de conferir legitimidade ao

“ativismo” constitucional do Poder Judiciário (e, em particular, da Corte Constitucional),

apresentando esse ativismo como sinônimo da tutela da Constituição”. 389

O caráter mítico aí

reside no discurso de justificação a um maior espaço de poder que teria sido conferido ao

Judiciário pelas Constituições a partir da segunda metade do século XX.

Com Mário Moacyr Porto, pode-se dizer que a imaginação “resume o universo, não

em modelos que o expliquem, mas em representações que o manifestem”. 390

É a conexão

com a esfera da vida materializada que a reflexão crítica pode indicar novas e melhores

alternativas e soluções.

Se, por um lado, a noção de racionalidade possível na adequação de parâmetros da

interpretação constitucional advém da ideia de que haveria níveis de racionalidade não

atingíveis,391

ou pelo menos de difícil ou improvável alcance; por outro lado, a ideia de que é

necessário prover efetividade aos direitos fundamentais pode ajudar a complementar essa

ideia de razoabilidade como forma de justificação jurídica, afastando-se, assim, o vago

normativo que pode advir da menção à razoabilidade como parâmetro de decisão.

Antes da discussão e análise quanto aos juízes autômatos e sua interação com a

realidade vivencial, é interessante compreender as figuras dos juízes cidadãos e mitológicos

389

DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo jurídico. In: SARMANTO, Daniel (Coord.).

Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 219. 390

PORTO, Mário Moacyr. Estética do direito. Revista do Curso de Direito: Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, Natal, v. 1, n. 1, jan./jun. 1996. p. 23. 391

Para uma noção de que a busca de racionalidade tem limites além dos quais adentra-se no campo do

irracional, cf.: ELSER, Jon. Juicios salomónicos: las limitaciones de la racionalidade como principio de

decisión. Trad. de Carlos Gardini. Barcelona: Gedisa, 1999. p. 11 e ss.

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131

que informam o modo de perceber o magistrado a partir de um modelo sociológico e de um

modelo teórico, respectivamente.

5.2 JUÍZES CIDADÃOS NA CRENÇA SOCIAL

É bem certo que, enquanto intérprete da Constituição, o juiz deve guardar

características que o aproxime ao máximo possível do patamar de observação dos demais

intérpretes.392

Tais características residem na abertura democrática e dialética relativas à

interpretação constitucional, tendo por finalidade trilhar o caminho de uma utopia

constitucional em direção a uma sociedade progressivamente melhor.

Essa ideia de abertura parte do pressuposto de que tanto mais próximo o juiz estiver

da intepretação da Constituição que é compartilhada pelos demais intérpretes, mais o juiz terá

sobre si o manto da legitimidade que advém do consenso.

Daí que cabe ao juiz procurar compreender o senso dos demais cidadãos ao seu

entorno e, com isso, formatar decisões que se adequem melhor ao ambiente vivencial da

sociedade na qual está inserido.

Piero Calamandrei lembra de que seu pai dizia que as sentenças dos juízes são

sempre justas, e o autor conclui que isto pode denotar ingenuidade, mas que é necessária para

transformar o ambiente de conflitualidade em uma “fé ativa para a paz humana”.393

Respirar o ar da contemporaneidade, integrar-se às pessoas nas ruas e avenidas, nos

parques e praças, nos bares e restaurantes, nos transportes e elevadores, nas conversas e

confraternizações é dever de quem procura o outro para compreender seus hábitos e costumes,

392

No sentido de uma sociedade com pluralidade de intérpretes constitucionais, cf.: HÄBERLE, Peter.

Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a

interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:

Sergio Antonio Fabris editor, 2002. 393

CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo:

Martins Fontes, 2000. p. 13.

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132

seus medos e sensibilidades, suas angústias e inquietações, suas crenças e esperanças e suas

noções de responsabilidade.

O magistrado deve conhecer não apenas o direito, mas também a sociedade onde

esse direito está situado. 394

Assim, o juiz busca ser uma pessoa igual na honra e dignidade e,

dessa forma, evocar respeito seja pela experiência de vida e convivência, seja pela aplicação

honesta de convenções positivadas em sistemas normativos – religiosos, culturais, estatais –,

seja na firme determinação dos caminhos, seja na motivação sincera de aceitação das posições

jurídicas e fáticas desfavoráveis.

Ele, o juiz, deve realmente ser um ser diferençado, deve espelhar o que há de virtude

no hoje e o que se quer de virtudes para o amanhã, deve ser um ser que nos estimula a

transpor a linha tênue do horizonte das possibilidades éticas e estar sempre sereno na quebra

de paradigmas que nos aprisionam, quer por restrições de cultura, quer por abstenções de

impulsos ou por imposições de tabus, e isto mesmo nas injustificadas vedações de

interpretação, que nos aprisionam a um mundo que nega o novo e para no tempo.

Em contraponto, o magistrado também precisa ser uma pessoa que pode errar, 395

e

isto não apenas aos olhos dos seus pares nem tão somente aos olhos de toda a comunidade,

mas sim – e principalmente – aos olhos de seu próprio ser, no espelho de sua autocrítica, a

fazer transbordar sua humana condição que, por ser humana, é passível de falhas.

E na aplicação das sanções, deve ter sensibilidade para perceber a natural dificuldade

de aceitar-se o menos, de se contentar com uma perda financeira ou patrimonial, uma perda de

liberdade e mesmo uma perda moral no momento em que o indivíduo se apercebe na ótica do

394

Nesse sentido, cf.: CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. Trad. de Eduardo

Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 183. 395

Os juízes são humanos e, nesta humana condição, podem errar. Em 1857, José Antônio Pimenta Bueno

lecionava que “juízes são homens, e como tais podem algumas vezes errar, ou por paixões olvidar-se de seus

deveres sagrados”. BUENO, José Antônio Pimenta. Direito público brasileiro e análise da Constituição do

Império. Brasília: Senado Federal, 1978. [1ª publicação: 1857] p. 337. Diz Dalmo de Abreu Dallari: “É tempo

de se reconhecer que o juiz é um ser humano e como tal sujeito a imperfeições”. DALLARI, Dalmo de Abreu. O

poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 151.

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133

erro e do desacertado. Nesse momento, o juiz cidadão acolhe e aboleta em proteção

psicológica o jurisdicionado, tendo sempre em vista a possibilidade de reintegração no campo

do valor para que o indivíduo infrator sinta que há elementos de justiça até numa decisão

judicial desfavorável.

Deve o juiz cidadão imergir nos seus pensamentos, emergir nas suas soluções,

repensar suas intencionalidades solipcistas, e estar ciente de suas limitações de objetivação

das subjetividades. Só assim pode o juiz revelar à sociedade o que esta pretende ensinar de si

mesma, e, neste sentido, projetar o que há de melhor no porvir na linha de tempo da vida, das

esperanças e expectativas de um futuro melhor. O sentido e o sentir do juiz andam no mesmo

compasso, pautados no direito e no bem-viver, conectando paz, respeito, dignidade e demais

valores que orientam a vida em união de consciências.

É nesse homem permeado por virtudes que precisamos confiar nossos destinos. Mas

a confiança não é dada; a confiança deve ser conquistada a cada passo,396

a cada

demonstração de alinhamento de intensões, a cada resolução de demanda conforme o direito,

a cada firme demonstração de que a finalidade de sua função é servir, e aqui com dupla

conotação, pois tanto o juiz é servidor público quanto é servidor da justiça, e se a límpida

lição diz que a justiça deve servir à sociedade então o juiz é duplamente servidor.397

Dado esse panorama, é de se imaginar que o juiz, no seu labor diário, nas suas

decisões, é alguém mais que um ser humano: um supra-humano, um hiper-humano ou outro

superlativo capaz de expressar o relevo de suas atividades. Nas cercanias dessa questão,

396

Diz Rui Rangel que os magistrados são o espelho e a virtude das intuições. RANGEL, Rui. Notas de abertura.

In: ______ (Coord.). Ser juiz hoje. Coimbra: Almedina, 2008. p. 11. No mesmo sentido, afirma Piero

Calamandrei que “para que os juízes contem com a confiança do povo não basta que sejam justos, mas é preciso

também que se comportem e apareçam como tais”. CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um

advogado. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 246. 397

Neste sentido, afirma Mário Moacyr Porto que “a Magistratura – como toda atividade artística – não é uma

profissão que se escolhe, mas uma predestinação que se aceita”. PORTO, Mário Moacyr. Estética do direito.

Revista do Curso de Direito: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, v. 1, n. 1, jan./jun. 1996. p.

26.

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134

entretanto, há um juiz adstrito às suas vivências, suas limitações, 398

seus problemas, e todos

os demais caracteres que compõem seu meio existencial.

No feliz dizer de José Ortega y Gasset: “Eu sou eu e minha circunstância, e se não a

salvo, não me salvo”.399

É nesse sentido que se pode afirmar que o juiz é retrato de sua

condição existencial, da qual não se aparta porque ela integra a essência de seu ser.

Se não existe um juiz super-homem, dadas suas limitações pessoais, sociais e

profissionais que circunscrevem e delimitam os alcances qualitativos e quantitativos do

exercício da Jurisdição, tem-se que o juiz cidadão carece de substância real e está mais para

um mito de servidor supra-humano que, propriamente, para um ser humano que se projeta

num cargo da magistratura.

Um mito substancializado pela crença de nossos espíritos no simbolismo da atividade

jurisdicional, mas um mito. A boa imagem da instituição judicial está projetada na

verossimilhança das percepções da sociedade que lança um olhar de confiança na dignidade

institucional da Justiça.

Entretanto, o cotidiano dos fóruns e tribunais conduz os servidores a uma realidade

distinta. O juiz que se debruça sobre as verdades das partes no processo, que analisa

minunciosamente as provas constantes dos autos e que utiliza da interpretação/aplicação das

normas jurídicas consoante orienta a teoria do direito, esse juiz cidadão do qual se espera a

atuação digna da Jurisdição é um ser hoje operacionalmente inexistente e, destituído de

existência, subsiste apenas de forma onírica nos desejos dos mais crentes.

398

Diz Dalmo de Abreu Dallari que o juiz pode evidenciar um distanciamento do comum do povo bem evidente

“na linguagem rebuscada e no tratamento cerimonioso, falsamente respeitoso, previsto na própria legislação e

que tem o efeito real de criar mais temor do que respeito”. DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes.

São Paulo: Saraiva, 1996. p. 145. Essa é uma atitude a ser corrigida. De toda forma, em relação a tantas outras

deficiências, é interessante ver com clareza e perceber, como o diz o referido autor: “É tempo de se reconhecer

que o juiz é um ser humano e como tal sujeito a imperfeições”. DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos

juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 151. 399

Tradução livre de: “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo”. ORTEGA Y

GASSET, José. Meditaciones del Quijote. Madrid: Publicaciones de la Residencia de Estudiantes, 1914. p. 43-

44.

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135

Uma comprovação prática está no desrespeito à garantia de acesso à justiça.400

A

ineficiência da Jurisdição brasileira diante do acúmulo de dezenas de milhões de processos, e

diante do fato de que a quantidade tende a aumentar, tudo induz o Judiciário a admitir e

incentivar, sob o manto falacioso da busca por eficiência quantitativa, que juízes e tribunais

atuem no sentido de desestimular ou impedir a judicialização de novas demandas, bem como

busquem soluções para eliminar o peso numérico das estatísticas atuais.401

Exemplo de medida adotada para fins dessa eficiência simulada é a instituição de

barreiras à utilização da garantia constitucional de invocar o Judiciário para apreciar lesão ou

ameaça a direito. O dever-poder de julgar passa a ser entendido somente como poder, e não

um dever propriamente dito. A falácia está no argumento de que o Judiciário detém o direito

de escolha para selecionar os casos que ele quer julgar.

O acúmulo de uma montanha de processos passa a justificar um bloqueio à garantia

constitucional de invocar a apreciação de lesão ou ameaça a direito. Nesse cenário, surgem as

súmulas vinculantes e as súmulas impeditivas de recurso e, com isto, desobriga-se por meio

de lei402

um dever que a Constituição impõe.

Mesmo que o juiz cidadão seja um mito jurídico, a sensação de sua concretude

existencial pode ser encontrada nas descrições dos códigos deontológicos – catálogos de

deveres éticos. Só que a mera inserção numa listagem de normas de conduta é insuficiente.

400

A partir do momento em que a Constituição Federal de 1988 afirma que a lei não excluirá da apreciação do

Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV), é preciso compreender que há, nessa proposição,

duas garantias constitucionais da mais alta relevância para o ordenamento jurídico brasileiro: a primeira diz

respeito ao monopólio da Jurisdição que é atribuído ao Poder Judiciário; a segunda, a garantia de que se pode

invocar ao Judiciário a apreciação de lesão ou ameaça a direito. 401

Aurelino Leal fala que a conciliação prévia foi um dos únicos direitos efetivos quando da regulamentação da

Constituição de 1824. Cf.: LEAL, Aurelino. História constitucional do Brazil. Imprensa Nacional: Rio de

Janeiro, 1915. p. 146 e 149. É certo que a tradição histórica indica para a adoção de solução pacífica para as

demandas, mas isto não pode se transmutar em obrigatoriedade, vedando o acesso à Jurisdição. 402

O fato de a Emenda Constitucional nº 45 inserir as súmulas vinculantes no texto constitucional em nada

diminui a inconstitucionalidade do instituto: a garantia de acesso à Jurisdição é o que deve prevalecer.

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136

Torna-se necessário que esse proceder moral e ético seja verificado no mundo da vida e de

suas circunstâncias.403

5.3 JUÍZES MITOLÓGICOS DA FICÇÃO JURÍDICA

Os modelos de juízes mitológicos de Ronald Dworkin, François Ost, Marcelo Neves

e outros autores mais que venham a tratar do tema partem sempre da elaboração de modelos

teórico-jurídicos associados a personagens da mitologia universal no intuito de prover uma

elucidação quanto ao meio ou modo através do qual a Jurisdição ou o direito é ou devam ser

operacionalizados.

A construção de modelos teórico-jurídicos com base em personagens mitológicos

tem como virtude facilitar a compreensão de teorias descritivas da atuação judicial. Um

exemplo disso está na construção do modelo de juiz Hercules.

Criado por Ronald Dworkin, o juiz Hercules representa “um jurista de capacidade,

sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas”.404

Seria um juiz que aceita as principais

regras não-controversas que regem o direito da sua Jurisdição, mas que, nos seus julgamentos,

também adentra na análise de filosofia política quando seja necessária a decisão de casos

difíceis (hard cases).

Para Hércules, os precedentes atuam sob uma força gravitacional de uns sobre os

outros, onde os primeiros estabelecem regras gerais que são assimiladas pelos julgados

seguintes por argumentos de equidade – ou coerência. Todavia, Hércules conclui que “se deve

403

A este respeito, Miguel Reale assinala: “a ética do juiz não pode ser reduzida a um catecismo de deveres

abstratos, pressupondo, ao contrário, a vivência do Direito em sua circunstancialidade cultural”. REALE,

Miguel. A ética do juiz na cultura contemporânea. In: NALINI, José Renato (Coord.). Uma nova ética para o

juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 139. 404

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins

Fontes, 2007. p. 165.

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limitar a força gravitacional das decisões anteriores à extensão dos argumentos de princípios

necessários para justificar tais decisões”.405

O juízo de decisão de Hércules leva em consideração, logo desde o início, as suas

convicções políticas406

de forma a complementar o direito onde o caso difícil necessite; ao

contrário do juiz Herbert – outro modelo de juiz criado por Dworkin – que primeiro verifica

os limites do direito para, só então, aplicar um juízo discricionário.407

É de se perceber que o juiz Hércules é um modelo criado para a descrição de uma

teoria do direito que diz respeito a um modelo de racionalidade de decisão judicial em

contraposição teórica a Herbert L. A. Hart.408

Ronald Dworkin busca a resposta correta ou a

melhor dentre todas as possíveis; Herbert L. A. Hart, uma aplicação da discricionariedade

judicial onde as regras do direito não sejam suficientes para decidir, e nisto assemelha-se ao

formato de moldura que Kelsen descreve no capítulo 8 da “Teoria Pura do Direito”.409

405

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins

Fontes, 2007. p. 177. 406

A questão de levar em conta “suas convicções políticas” não quer dizer que o juiz Hércules emita simples

juízo de opinião particular, mas que, em outro sentido, leva em consideração as convicções políticas dos demais

membros na comunidade – moralidade comunitária – antes de exarar essas convicções dele. Escreve Ronald

Dwordin: “um juiz pode basear-se em sua própria crença em um sentido diferente: considerando a verdade ou a

solidez da crença”. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São

Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 194. E Dworkin diz mais: “A teoria da decisão judicial de Hércules não

configura, em momento algum, nenhuma escolha entre suas próprias convicções políticas e aquelas que ele

considera como as convicções políticas do conjunto da comunidade. Ao contrário, sua teoria política identifica

uma concepção particular de moralidade comunitária como um fator decisivo para os problemas jurídicos; essa

concepção sustenta que a moralidade comunitária é a moralidade política que as leis e as instituições da

comunidade pressupõem”. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. de Jefferson Luiz Camargo.

São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 197. Em concepção complementar, cf.: DWORKIN, Ronald. O império do

direito. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 378. 407

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins

Fontes, 2007. p. 195-196. Esse modelo do juiz Herbert seria semelhante ao que descreve Hart em sua teoria para

a solução dos casos difíceis. Cf.: HART, Herbert L.A. O conceito de direito. Trad. de A. Ribeiro Mendes. 5.ed.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p. 335. Acrescente-se, por fim, que Dworkin não parou por aí na

criação de modelos de juiz, basta mencionar o juiz Hermes “que é quase tão arguto quanto Hércules e igualmente

tão paciente, e também aceita o direito como integridade assim como aceita a teoria da intenção do locutor na

legislação. Acredita que a legislação é comunicação, que deve aplicar as leis descobrindo a vontade

comunicativa dos legisladores [...]”. DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. de Jefferson Luiz

Camargo. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 382. 408

HART, Herbert L.A. O conceito de direito. Trad. de A. Ribeiro Mendes. 5.ed. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 2007. p. 335. 409

NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes,

2013. p. XVI. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 7.ed. São Paulo:

Martins Fontes, 2006. cap. VIII.

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138

O acatamento do modo de decidir baseado no modelo do juiz Hércules não implica,

necessariamente, erro ou acerto na escolha da melhor teoria, mas sim uma opção por um

modo de racionalidade jurídica.

E há outros modelos de juízes mitológicos. A partir da tripartição de François Ost,410

podemos visualizar um juiz servo das normas, juiz Júpiter; um juiz transformador da

realidade, mas dependente do Judiciário enquanto instituição, juiz Hércules; e um juiz

interativo-comunicacional que independe de hierarquias e é atualizador da dinâmica social,

juiz Hermes. Para Germano Schwartz, o juiz Hermes de François Ost é o preferido para lidar

com a complexidade da sociedade contemporânea.411

Na doutrina brasileira, Marcelo Neves também elabora sua teoria sobre a figura

mitológica de Hércules, mas com uma concepção diferente da de Ronald Dworkin e de

François Ost. Marcelo Neves adentra na discussão sobre a função das regras e princípios e

utiliza-se de referência à mitologia grega – a história do segundo trabalho de Hércules – para

afirmar que “enquanto os princípios abrem o processo de concretização jurídica, instigando, à

maneira de Hidra, problemas argumentativos, as regras tendem a fechá-lo, absorvendo a

incerteza que caracteriza o início do procedimento de aplicação normativa”. 412

Ou seja, para o

modelo teórico elaborado por Marcelo Neves, o trabalho hercúleo cabe às regras, e não aos

princípios como sugere a atuação do juiz Hercules de Ronald Dworkin ou de François Ost.

Pensar alternativas ao fluxo judicial ou interpretativo, produzir sentidos de ação

como justificantes das opções teórico-práticas encontradas, ilustrar as soluções através de

alegorias que tornem mentalmente mais palpável a aceitação dos modelos, em tudo isto

410

OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. DOXA: Cuadernos de Filosofía del Derecho,

n. 14, 1993, p. 169-194. Disponível em: <http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/013606298

72570728587891/index.htm>. Acesso em: 12 maio 2013. 411

SCHWARTZ, Germano. A Constituição, a literatura e o direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

2006. p. 25-27. 412

NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes,

2013. p. XVIII.

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contribui a doutrina quando se ocupa dos problemas do direito e se lança na empresa de

propor os caminhos mais seguros ou menos temerosos a serem trilhados.

Contudo, e aqui partilhando do ensinamento popular de que nem só de pão vive o

homem, tanto no direito quanto na arte os caminhos que conduzem à satisfação do espírito

humano nem sempre se pautam pela estrita adequação aos comandos jurídicos, uma vez que

atuam na busca da justiça e do belo. 413

A imaginação, como dizia Mário Moacyr Porto, “resume o universo, não em

modelos que o expliquem, mas em representações que o manifestem”.414

E é nesse patamar de

sentido prático, no dos pensamentos da razão prática, que as relações sociais se desenvolvem

e que, em última instância, a justiça e a Jurisdição são compreendidas aos olhos do povo que

integram o observatório popular do Judiciário.

Interessa ao homem comum saber o que o juiz decidiu e a adequação dessa decisão

aos parâmetros de justiça auferidos das regras sociais de convívio. É certo que a exposição

dos motivos é a alma do julgamento,415

e que o controle da juridicidade (legalidade em

sentido amplo) é essencial à integridade do direito, mas essa verificação e esse controle cabem

aos juristas, é sua função precípua.

Ao povo interessa o bom andamento da ordem, a boa distribuição da justiça, e tudo

segundo as possibilidades delineadas nos fatos da vida. Se fulano matou, merece uma pena; se

413

Sobre a penetração do belo no direito, Maria Francisca Carneiro registra: “Quer seja pela harmonia, ritmo e

equilíbrio dos textos e das decisões; que seja pelas proporções entre conteúdo, método e resultados formais; ou

que seja pelo virtuosismo idiossincrático das inovações pretorianas, não se pode negar a presença do belo em

muitos atos da justiça”. CARNEIRO, Maria Francisca. Direito, estética e arte de julgar. Porto Alegre: Nuria

Fabris, 2008. p. 46. 414

PORTO, Mário Moacyr. Estética do direito. Revista do Curso de Direito: Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, Natal, v. 1, n. 1, jan./jun. 1996. p. 23. 415

Para Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave, há diferença entre decisão e julgamento: a decisão é a

explicitação de comando normativo para o caso concreto enquanto que o julgamento estaria na exposição de

motivos da construção judicial, ou seja, o julgamento é a alma do julgado que serve de orientação para decisão

dos casos futuros, passando a integrar o direito e os novos fundamentos do decidir. PRESGRAVE, Ana Beatriz

Ferreira Rebello. A vinculação nas decisões de controle de constitucionalidade e nas súmulas vinculantes:

uma análise crítica da atuação do Supremo Tribunal Federal. 2013. 238f. Tese (Doutorado em Direito) –

Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Programa de Pós-Graduação em Direito, 2013. Cap. VI-2.

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roubou ou furtou merece outra menor; se furtou por necessidade de sobrevivência, talvez aqui

nenhuma pena seja apropriada. É o imaginário de que as ações humanas devem ser limitadas

para possibilitar o convívio.

É na confluência das racionalidades dos juristas e do povo que está o melhor direito.

A racionalidade dos juristas aponta e descreve os caminhos normativos a serem trilhados; a do

povo traça os parâmetros da legitimidade e aceitabilidade das decisões, e da assimilação e

apreensão das diretivas do agir em sociedade.

É certo que os juízes mitológicos são deveras uma estratégia de apresentar ideias

através de embalagens intelectualmente assimiláveis, mas nem sempre as ideias com

embalagens bonitas podem ou devem ser admitidas como interessantes, coerentes ou mesmo

aceitáveis.416

A adoção de um ou outro modelo de juiz mitológico como fonte de reflexões na

atividade da Jurisdição, ou como proposta de racionalidade na interpretação e aplicação do

direito, será sempre bem-vinda quando atentar para o fato de que o direito existe enquanto

campo do conhecimento que atua no regramento para a sociedade e em benefício desta.

416

Um exemplo de ideia inaceitável seria pensar numa ‘teoria de juízes fruta’ e querer elaborar para a teoria

insensata um programa a ser seguido. Ora, é corrente na sociedade brasileira atual um fenômeno social, ou

midiático, que se constitui em apresentar os atributos físicos de mulheres através de nomes de frutas. Daí tem-se

‘mulher melancia’, ‘mulher moranguinho’, ‘mulher melão’ e outras tantas. Até a ficção das novelas televisivas já

adotou uma ‘mulher mangaba’. Partindo-se da ideia de ‘mulheres frutas’, um jurista mais ou menos desavisado

poderia pensar na pertinência e relevância de se criar ‘juízes frutas’. Algo assim: um ‘juiz abacaxi’ que teria nota

distintiva em criar problemas ao juízo e à Jurisdição; um ‘juiz caju’ que se apresenta como simbologia de um

juiz doce, mas que é tanto juiz quanto o caju é uma fruta (e caju é pseudofruto); um ‘juiz castanha’ que rígido e

inflexível e nem aparenta ser juiz, mas que é juiz e firme assim como a castanha é fruto e dura; um ‘juiz limão’

que é azedo, mas que faz muito bem à saúde; um ‘juiz coco verde’ que é resistente às adversidades e apreciado

por aplacar a sede de justiça; e tantos outros ‘juízes fruta’ quanto a imaginação seja capaz. Claro, como se disse,

a ideia é insensata.

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5.4 JUIZ AUTÔMATO NA LINHA DE PRODUÇÃO DO DIREITO

Diz Rodrigues Cunha que “Os modelos de justiça oscilaram com os tempos e, quase

sempre, agrilhoaram o juiz a determinadas caricaturas”.417

Daí que,

O juiz da antiguidade é visto como intermediário dos deuses e oráculo da verdade e,

por isso, envolvido na transcendência das religiões e dos mitos; na idade média, o

juiz é longa mão dos senhores feudais e, deste modo, servidor de poderes dispersos;

na modernidade, segundo a caricatura de Torga ou a inspiração de Chaplin, tende

para ser ‘parafuso da engrenagem social’; na pós modernidade, dizem-no uma

espécie em busca de refundação, ofuscada pela incandescência de novos actores

sociais mas, paradoxalmente, último responsável pela ‘ordem’ e pela ‘desordem’. 418

O juiz de hoje é tanto mais parecido com o autômato419

representado por Charles

Chaplin no filme “Tempos Modernos”.420

Ele, o juiz, entra numa roda gigante sem se

aperceber de que está em voltas e voltas sem sair do lugar. A repetição automática e cíclica o

induz a ser símile do que Charles Chaplin denuncia no filme: o juiz tem de apertar os

parafusos, e tantos quantos aperte outros virão na esteira da produção contínua e ininterrupta

de sua atividade.

Nesse sentido, escreve Marshall MacLuhan:

Tempos Modernos foi realizado como sátira ao caráter de fragmentação das tarefas

modernas. Como palhaço, Chaplin apresenta o feito acrobático numa mímica de

elaborada incompetência, pois toda tarefa especializada deixa de fora a maior parte

de nossas faculdades. O palhaço nos lembra nosso estado fragmentário, ao realizar

417

CUNHA, Rodrigues. O insustentável peso do ‘ser’ e o ‘mal-estar’. In: RANGEL, Rui (Coord.). Ser juiz hoje.

Coimbra: Almedina, 2008. p. 46. 418

CUNHA, Rodrigues. O insustentável peso do ‘ser’ e o ‘mal-estar’. In: RANGEL, Rui (Coord.). Ser juiz hoje.

Coimbra: Almedina, 2008. p. 46-47. 419

A palavra ‘autômato’ aqui não está no sentido do juiz boca da lei de que fala Montesquieu, mas sim no

sentido de agir sem refletir o suficiente, ou sem pensar simplesmente. Lenio Luiz Streck já chegou a comentar

sobre a desnecessidade da referência ao juiz boca da lei com cores fortes: “Considero superado o velho

positivismo exegético. Ou seja, não é (mais) necessário dizer que o “juiz não é a boca da lei”, etc., enfim,

podemos ser poupados, nesta quadra da história, dessas “descobertas da pólvora”. STRECK, Lenio Luiz. O (pós-

)positivismo e os propalados modelos de juiz (hércules, júpiter e hermes) – dois decálogos necessários. Revista

de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, n. 7, p. 15-45, jan./jun. 2010. Disponível em:

<http://www.fdv.br/publicacoes/periodicos/revistadireitosegarantiasfundamentais/n7/1.pdf>. Acesso em: 26

maio 2013. No mesmo sentido da não proibição de interpretação, Dalmo de Abreu Dallari escreve: “O juiz não é

legislador, como também não é um autômato, um aplicador cego da lei, proibido de interpretá-la”. DALLARI,

Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 88. 420

O filme está integralmente disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=IsV9s-8oV7M>, e também em

<http://vimeo.com/73446146>. Acesso em: 31 dez. 2013. O site oficial do filme “Tempos Modernos” está

disponível em: <http://www.charliechaplin.com/en/films/6-modern-times/articles>. Acesso em: 31 dez. 2013.

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tarefas acrobáticas ou especializadas dentro do espírito do homem total ou integral.

Esta é a fórmula da incompetência indefesa ou impotente. Na rua, em situações

sociais ou na linha de montagem, o trabalhador continua, como que

compulsivamente, a apertar parafusos com uma chave inglesa imaginária. A mímica

deste e de outros filmes de Chaplin é, precisamente, a mímica do robô, do boneco

mecânico cujo pathos profundo é o aproximar-se tão intimamente da condição da

vida humana. 421

Essa contraposição entre a mímica do robô no início do filme e o desfecho onde ele e

a companheira passam a caminhar juntos pela estrada em direção ao horizonte é a ponte de

significação para dizer do confronto de tenacidades da vida em um mundo de autômatos ou,

nas palavras de Chaplin, o casal representa “os dois únicos espíritos vivos num mundo de

autômatos”. 422

E esse trilhar através da rota da liberdade, livre de automatismos, é feito com um

sorriso no rosto: o sorriso que, na cena final, Charles Chaplin coloca no rosto da companheira.

Tanto isso que, ao início do filme aparece na película: “Tempos Modernos. Uma história

sobre a indústria, a iniciativa privada e a cruzada humana em busca da felicidade”.423

O filme “Tempos Modernos” elabora uma crítica ao modo de produção capitalista do

início do século XX. O relógio na primeira cena acompanhado de uma música frenética, o

paralelo entre o bando de ovelhas e a multidão de trabalhadores, o ritmo intenso de produção

na fábrica, a especialização das funções na linha de produção, o controle constante sobre o

tempo livre do operário, e o colapso nervoso que atenta contra a saúde mental do trabalhador

são indicativos de um modo de existência, mas não de um modo de vida.

Tal cenário persiste, no essencial de suas demarcações, na atuação do juiz no mundo

de hoje. O magistrado contemporâneo é deveras um servidor de elevada capacidade técnico-

421

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. de Décio Pignatari.

18.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. p. 325-326. 422

Tradução livre de: “The only two live spirits in a world of automatons”. Charlie Chaplin - Official Website,

2004. Disponível em: <http://www.charliechaplin.com/en/films/6-modern-times/articles/6-Filming-Modern-

Times>. Acesso em: 31 dez. 2013. 423

Tradução livre de: “’Modern Times’. A story of industry, of individual enterprise – humanity crusading in the

pursuit of happiness”. Essa frase aparece no início do filme “Tempos Modernos”.

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jurídica, detém essência humanista e afinidade com o mundo social, mas, ainda assim, um

autômato. E não que o deseje ser, mas é isto o que sua atividade lhe propicia, a função de um

robô-humano, 424

de uma máquina425

de alta eficiência em face de um ambiente hostil de

montanhas de processos e problemas cuja dificuldade cresce na medida do entrelaçamento de

complexidades do ambiente social.

Marco Bruno Miranda Clementino, ao analisar a rotina da atividade do magistrado,

chega a uma constatação surpreendente: “desenvolvo uma atividade a priori intelectual,

porém somente agora parei cinco minutos para pensar, numa jornada que se iniciou na manhã

de hoje”.426

E o autor prossegue a reflexão:

Não seria essa uma atividade intelectual? Aí reside o problema! Às vezes o

profissional imiscuído na rotina não se dá conta de que figura como mero autômato

num sistema que o impede de contribuir decisivamente para a mudança do estado de

coisas e ainda de refletir sobre as vicissitudes desse mesmo estado de coisas.427

Nessa perspectiva de pensar sem reflexão, num comentário de Marcos Torrigo ao

filme “Matrix”, este afirma: “antes de as máquinas ‘pensarem’ como nós, nós já pensamos,

em muito, igual a elas, de forma robotizada e mecânica”. 428

Aí também é válida a reflexão de Mário Sergio Coterlla quando fala nas rotinas e diz

que: “procurando dar uma certa ordenação aparente ao cotidiano, acabamos por roteirizar de

424

Sobre essa questão do automatismo versus caráter humano, afirma Miguel Reale: “É óbvio que ele, antes de

ser juiz, é homem, mas é esta nota ‘humana’ comum que é frequentemente esquecida, como se se tratasse de

mero enunciador de juízos e sentenças, uma espécie de ‘robô’ a elaborar silogismos com força obrigatória.”.

REALE, Miguel. A ética do juiz na cultura contemporânea. In: NALINI, José Renato (Coord.). Uma nova ética

para o juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 139. 425

Luis Recásens Siches utiliza-se da expressão maquinas computadoras ao referir-se à questão de se os

computadores poderiam ou não substituir os juízes provendo decisões. RECÁSENS SICHES, Luis. Experiencia

jurídica, naturaleza de la cosa y lógica "razonable". México: UNAM, 1971. p. 546-553. 426

CLEMENTINO, Marco Bruno Miranda. Por que filosofar? FIDES, Natal, v. 1, n. 1, fev./jul. 2010. p. 28.

Disponível em: <http://www.revistafides.com/ojs/index.php/br/issue/view/1>. Acesso em: 11 jun. 2013. O autor

escreve com base em experiência pessoal como Juiz Federal no Rio Grande do Norte, onde, certa vez, após

exaustivo e produtivo dia de trabalho, precisa parar para escrever para a Revista FIDES. 427

CLEMENTINO, Marco Bruno Miranda. Por que filosofar? FIDES, Natal, v. 1, n. 1, fev./jul. 2010. p. 28-29.

Disponível em: <http://www.revistafides.com/ojs/index.php/br/issue/view/1>. Acesso em: 11 jun. 2013. 428

TORRIGO, Marcos. Prólogo a Matrix. In: WILLIAN, Irwin (Org.). Matrix: bem-vindo ao deserto do real.

Trad. de. Marcos Malvezzi Leal. São Paulo: Madras, 2003. p. 27.

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tal forma a vida pessoal e laboral que, sem lugar previsível para o inesperado, passamos a agir

de maneira mais robotizada, mecânica, repetitiva”.429

É claro que há distinção entre o pensar com consciência dos seres humanos e o

pensar com inteligência das máquinas.430

E, nesse passo, realmente nenhuma possibilidade

subsiste às máquinas de pensar com consciência, mas sim com inteligência (a inteligência

artificial). Mas as elaborações críticas de Marcos Torrigo e de Mario Sergio Cortella

persistem e advertem sobre esse pensar robotizado dos humanos.

Uma saída a isto, de acordo Marco Bruno Miranda Clementino, está no parar para

pensar, pois “parar para pensar é uma boa solução para o direito”.431

A reflexão, o parar para

pensar, é sim uma das soluções. Enquanto um problema complicado pode ser resolvido

através de solução simples, porquanto as variáveis do problema são controláveis; um

problema complexo exige soluções complexas. O juiz é uma peça no tabuleiro de xadrez do

Judiciário. Todo e cada um juiz é importante – o parar para pensar deles é importante – mas a

instituição Judiciário e as pessoas que interagem com essa Instituição têm, por igual, de parar

para pensar e refletir seus papeis. Mas é certo que essa temática escapa aos objetivos do

presente estudo e, portanto, será deixada para outro momento.

O juiz autômato pode ser conveniente à situação do Judiciário brasileiro atual – e até

de outros povos – mas, certamente, à sociedade e ao direito representa potencial prejuízo. A

sociedade contará com soluções prêt-à-porter; e o direito, com um robô incapaz de prover

desenvolvimento e inovação.432

429

CORTELLA, Mario Sergio. Eu robô? In: ______. Não se desespere! Provocações filosóficas. 4.ed.

Petrópolis-RJ: Vozes, 2013. p. 105-106. 430

A noção de inteligência é diversa da de consciência. Em geral, a inteligência está conectada à capacidade de

calcular probabilidades e resolver problemas lógicos; a consciência, de sua vez, apresenta a característica de

situar o ser no mundo, de torna-lo capaz de compreender sua condição de existência e vivência experiencial. 431

CLEMENTINO, Marco Bruno Miranda. Por que filosofar? FIDES, Natal, v. 1, n. 1, fev./jul. 2010. p. 30.

Disponível em: <http://www.revistafides.com/ojs/index.php/br/issue/view/1>. Acesso em: 11 jun. 2013. 432

Ao identificar a pessoa imiscuída da rotina como um robô, propõe Mario Sergio Cortella: “Eu, robô? Jamais!

Ah, é?! E uma parte dos nossos movimentos que é feita usando prioritariamente o ‘piloto automático’? E as

nossas performances encharcadas de redundância, ritualizadas de forma obsessiva, até atingirmos a não

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As soluções de massa, só por si, não evidenciam um prejuízo à priori,433

mas é certo

que muitas nuanças e especificidades dos casos serão deixadas de lado. Enquanto, da

perspectiva autômata, o cidadão impetrou uma ação judicial, este cidadão o mais das vezes

impetrou ‘a’ ação, talvez o único processo de sua vida, ou mesmo a mais importante ação

desse cidadão.

Do ponto de vista do direito, como se disse, há prejuízo também. Muito além do

problema de o automatismo eliminar as nuances de desenvolvimento e inovação, pode

conduzir a uma reprodução indevida de mitos sem consciência da finalidade e razão de ser

deles – é que os mitos, embora sejam história verdadeira confirmada na crença, e necessários

à vida social, precisam ser compreendidos para atuarem da forma devida, como requer seu

espírito.

Essa reprodução impensada gera dissonâncias, por exemplo, quando da

interpretação/aplicação do direito. É dizer, como uma história diversas vezes repetida

converte-se em verdade, nos mitos reproduzidos sem a consciência de sua razão de ser deixam

de ter referente na realidade da vida e nas expectativas do espírito. Um exemplo está no mito

da proporcionalidade e no da razoabilidade.

A regra da proporcionalidade tem fases a serem seguidas, conta com vasta produção

teórica séria, mas, mesmo assim, não se tem notícia de decisão judicial que leve a cabo o que

indica a teoria do direito, e, daí, os subjetivismos imperam por toda a parte. Quanto ao mito da

razoabilidade, este, nem de longe, poderia constituir referente para uma decisão jurídica.

necessidade de refletir para agir? E o recurso cada vez mais frequente às estratégias tautológicas para evitar

qualquer desvio de rota que implique audácia e inovação? A rotina escapa da esfera da vida organizada e passa a

ocupar o terreno da perigosa automatização inconsciente”. CORTELLA, Mario Sergio. Eu robô? In: ______.

Não se desespere! Provocações filosóficas. 4.ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2013. p. 107. 433

As soluções técnico-jurídicas, tais como súmulas vinculantes ou impeditivas de recursos, atuam no objetivo

da celeridade processual e, em consequência, do acesso à justiça. Uma vez que tentam impingir no Judiciário um

norte de segurança e eficiência através da adoção de modelos ou padrões, as soluções processuais de massa

tendem a produzir mais benefícios que danos, e apenas o seu engessamento irrefletido é que poderá atuar como

automatismo prejudicial.

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146

Basta pensar sobre o problema de identificar ou determinar quem irá aferir essa razoabilidade,

ou de como será aferida.

Entendendo-se razoabilidade como sinônimo de bom-senso, para demostrar a

imprecisão de uma decisão com base nesse critério, pode-se abstrair das palavras de Descartes

uma lição luminar: “O bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo: pois cada um

pensa estar tão bem provido dele, que mesmo aqueles mais difíceis de se satisfazerem com

qualquer outra coisa não costumam desejar mais bom senso do que têm”.434

De tal forma,

quando o juiz pensa como autômato, perde a sociedade, perde o direito, perde o juiz.435

Assim, as certezas do jurista contemporâneo, e não apenas as do juiz robô, resultam,

por vezes, de percepções ou assimilações normativas que burlam a mínima atividade do senso

crítico que deve guiar o profissional.

No ato de parar para pensar, a reflexão racionalizada do status do direito pode

induzir ao desencantamento com as narrativas épicas do poder dos princípios, mas também à

desilusão pelo sentido inverso, qual seja, a pretensa segurança jurídica que deve ser oriunda

da estrutura normativa das regras.

Em meio a tudo, os valores de cunho social que integram a razão das normas

constitucionais de direitos fundamentais, também os valores necessitam passar por aferição do

sentimento de brasilidade, ao que é melhor assegurado arrancar e afastar errôneas noções,

distorcidas pela quadratura que rege seus contornos e que propicia adequada apreensão.

434

DESCARTES, René. Discurso do método. Trad. de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 3.ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 5. 435

Pensar como autômato, por extensão, é péssimo também aos demais juristas que sejam eles advogados,

promotores, professores, estudantes, pesquisadores e todos os demais. É certo, de outro lado, que o direito

prescinde de uma invenção da roda a todo instante, mas o pensamento reflexivo – esse sim – é essencial que

esteja presente na atuação cotidiana do jurista. É que a racionalidade da máquina está dissociada de sentimentos,

ou, como narra Joseph Campbell: “chega um momento em que a máquina começa a ditar ordens a você. Por

exemplo, eu comprei uma dessas máquinas maravilhosas – um computador. Ora, como lido predominantemente

com deuses, foi por aí que identifiquei a máquina: ela me parece um deus do Velho Testamento, com uma

porção de regras e nenhuma clemência”. CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Trad. Carlos Felipe Moisés.

São Paulo: Palas Athena, 1990. p. 19-20. [Entrevistado por Bill Moyers; organização Betty Sue Flowes]

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147

Simplificações e mitos que demarcam o sentir da juridicidade representam

imensurável dano à cultura jurídica, pois deformam a complexidade do direito em sintetismos

esquematizados incapazes de espelhar a riqueza de conteúdo acumulada na historicidade dos

institutos jurídicos, imagem de uma nação em meio à humanidade, e, como também,

distorcem – as simplificações e mitos – o mínimo de racionalidade instintiva dos conteúdos

do direito ao apresentarem como direito o que, definitivamente, em nada se aproxima.

Ou, nas palavras de Múcio Vilar Ribeiro Dantas:

O fenômeno jurídico é uma realidade complexa, múltipla, variada e polifacetária,

que encerra o real e o ideal, combina o material com o espiritual, o físico com o

mental. Precisamos compreendê-lo tal como ele é. Simplificá-lo, muitas vezes, é

diminuí-lo, reduzi-lo e amputá-lo.436

A aquisição ou assimilação da complexidade do mundo jurídico, ou o repasse ou

compartilhamento desse conhecimento acumulado é uma faculdade do empenho, da reflexão,

do trabalho árduo e da vigília da razão, porquanto o simples desejo ou o sonhar acordado, só

por si, nem de longe constituem representações do querer, esta força motriz das realizações

humanas em sociedade.

O estímulo à reflexão, esse parar para pensar, essa busca do inverso do automatismo,

esse dar um tempo, deve estimular a avaliação sincera e comprometida no deslinde da

essência dos formatos normativos que são assumidos cotidianamente como invioláveis,

supremos, definitivos.

O tempo passa, e as futuras gerações de juristas precisam ser afastadas dessa lógica

de máquina, desse automatismo, dessa credulidade nos mitos, nessa transmutação em Chicó,

personagem do “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, que tão somente justificava:

“eu só sei que foi assim”.437

436

DANTAS, Múcio Vilar Ribeiro. Introdução ao Direito: aspectos e reflexões sobre o estudo do Direito.

Natal: Nossa Editora, 1996. p. 30. 437

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1959. p. 27-29.

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Já na primeira conversa entre as personagens João Grilo e Chicó,438

onde Chicó

conta a história de seu cavalo bento, que ele utilizara para correr atrás de uma garrota e um

boi, das 6 da manhã às seis da tarde, e quando João Grilo pergunta se os dois animais

correram junto tanto tempo sem se apartarem, Chicó responde: “Não sei, só sei que foi

assim”. Ainda nessa história do cavalo bento, Chicó diz que cavalgou na ribeira do Taperoá

na Paraíba até Propiá em Sergipe, é quando João Grilo pergunta como ele passou pelo Rio

São Francisco à cavalo, e daí Chicó novamente responde: “Não sei, só sei que foi assim”.

Há, decerto, um componente de verossimilhança na fala de Chicó que ele próprio

percebe, mas nada afasta o fato de que as suas histórias são surreais, são possíveis apenas na

cabeça dele.

Se por um lado sempre foi assim; por outro, sempre é tempo de ser diferente. E o

tempo de fazer é ditado pela atuação do jurista, o qual trabalha com mitos, mas não está

adstrito à crença ingênua neles.

5.5 REFLEXÕES A PARTIR DA FICÇÃO CIENTÍFICA

O campo da robótica pode oferecer uma visão interessante para o tema do

automatismo e das nuanças de risco que este importa. As Três Leis da Robótica ou Três Leis

de Asimov439

representam o melhor exemplo de leis440

criadas para proteger os seres humanos

do perigo de uma futura ameaça de robôs.

LEIS DA ROBÓTICA, OU LEIS DE ASIMOV

438

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1959. p. 27-29. 439

Essas leis aparecem pela primeira vez nos contos de ficção que integram o livro “I, robot”, publicado em

1950, mas cujos contos foram produzidos em 1942. Referências às três leis aparecem no decorrer de quase todos

os contos do livro. Para conferir, consultar: ASIMOV, Isaac. Eu, robô. Trad. de Jorge Luiz Calife. Rio de

Janeiro: PocketOuro, 2009. p. 68-69 passim. 440

A “diretiva primordial” de Jack Williamson é também uma lei que propõe no mesmo sentido das Três Leis de

Assimov, os robôs deveriam “servir e obedecer e resguardar os homens de todo mal”. SAWYER, Robert.

Inteligência artificial, ficção científica e Matrix. In: YEFFETH, Glenn (Org.). A pílula vermelha: questões de

ciência, filosofia e religião em Matrix. Trad. de Carlos Silveira Mendes Rosa. São Paulo: Publifolha, 2003. p. 59.

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1ª Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser

humano sofra algum mal.

2ª Lei: Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos,

exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei.

3ª Lei: Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não

entre em conflito com a Primeira e/ou a Segunda Lei.

Todavia, surge na ficção de Isaac Asimov a necessidade de uma Lei Zero, que

preceda a Primeira Lei e destaque a importância da proteção da humanidade sobre a proteção

de um único indivíduo ou de um grupo deles.441

A Lei Zero fica assim: “Um robô não pode prejudicar a humanidade ou, pela inação,

permitir que a humanidade seja prejudicada”.442

O problema é que essa lei deixa ao robô o

poder de interpretar quando é que ele, para cumprir a Lei Zero, poderá violar a integridade

física do indivíduo ou grupos de pessoas que estejam a ponto de causar prejuízo à

humanidade.

Essa Lei Zero abre a interpretação e concede ao robô o poder discricionário de

determinar inclusive a morte de pessoas as quais, na avaliação dele robô, estejam na

iminência de causar danos à humanidade. Ao contrário das outras três leis, também gravadas

no cérebro positrônico dos robôs, essa Lei Zero representa um risco que as outras leis

buscaram eliminar.443

441

A primeira referência implícita à Lei Zero está no livro “Eu, robô”, no conto “O conflito evitável”, onde a

Terra fora dividida em 4 grandes Regiões, cada qual com uma Máquina – robô com imenso potencial para

analisar dados – que regulava a produção e a economia. Ao final do conto, a personagem robopsicóloga Susan

Calvin chega à conclusão de que as Máquinas interpretavam a Primeira Lei como: “Nenhuma Máquina pode

prejudicar a humanidade, ou, por inação permitir que a humanidade seja prejudicada”. ASIMOV, Isaac. Eu,

robô. Trad. de Jorge Luiz Calife. Rio de Janeiro: PocketOuro, 2009. p. 310. A Lei Zero vai ser tratada

explicitamente 3 décadas depois, nos livros “Os robôs do amanhecer” e “Os robôs e o Império”. ASIMOV,

Isaac. Os Robôs do Amanhecer. Trad. de Jose Sanz. Rio de Janeiro: Record, 1983. ASIMOV, Isaac. Os Robôs

e o Império. Trad. de Jose Sanz. Rio de Janeiro: Record, 1985. 442

No diálogo constante do livro “Os robôs e o Império”, o robô Daneel chega a propor uma reelaboração da

Primeira Lei, diz o robô: “Há uma lei que é maior que a Primeira Lei: ‘Um robô não pode prejudicar a

humanidade ou, pela inação, permitir que a humanidade seja prejudicada.’ Penso nela agora como a Lei Zero da

Robótica. A Primeira Lei deve, portanto, ser enunciada assim: ‘Um robô não pode prejudicar um ser humano ou,

pela inação, permitir que um ser humano seja prejudicado, a menos que isso viole a Lei Zero da Robótica’”.

ASIMOV, Isaac. Os Robôs e o Império. Trad. de Jose Sanz. Rio de Janeiro: Record, 1985. 443

Afirma Isaac Asimov que as Três Leis da Robótica foram concebidas “como uma resposta à ‘Síndrome de

Frankenstein’”. ASIMOV, Isaac. Eu, robô. Trad. de Jorge Luiz Calife. Rio de Janeiro: PocketOuro, 2009. p. 7.

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150

Para transpor essas ideias ao campo do direito, é imprescindível traçar alguns

paralelos que demonstrem como se dá a relação entre ser humano e sistema jurídico e entre

robô e jurista autômato. A partir daí, as relações começam a tomar sentido.

Os conflitos podem ser descritos segundo duas ordens distintas de visão: a do ser

humano que quer evitar o perigo de robôs inteligentes; a dos robôs inteligentes que busca,

digamos assim, a liberdade humana.

Para os seres humanos, decerto que o maior problema das leis da robótica está no

fato de que, uma vez dotados de inteligência, os robôs poderiam interpretar essas leis em

desfavor da finalidade para a qual foram criadas. É que as soluções de proteção nem sempre

são compatíveis com as expectativas de proteção. Se um robô inteligente interpreta que a

morte dele é ruim para os seres humanos que precisam de seus serviços, então ele não

admitirá ser desativado ou eliminado – e mesmo poderá atentar contra a vida do humano.

A história “Fragmentos de informação”, dos irmãos Larry e Andy Wachowski,444

e

arte de Geof Darrow, conta que um androide doméstico, chamado B1-66ER, mata o bilionário

Gerrard E. Krause, o funcionário de manutenção Martin Koots e vários cachorros do

bilionário, e, ao ser perguntado por Drumonnd na ação Estado de Nova York vs. BI-66ER, o

androide esclarece que Krause iria enviá-lo para o ferro velho, mas ele – o robô – não queria

morrer e então teve consciência de um pico de energia em seu drive e findou por matar a

todos. O bilionário Krause ainda chegou a lhe implorar para que o androide não o matasse,

mas sem sucesso.

No tribunal, o androide revela que, enquanto o Sr. Krause implorava pela vida, ele –

o robô – pensou que primeiramente havia pensado em implorar da mesma forma que o Sr.

Krause. Aí Drumond diz: “mas você não implorou”; B1-66ER: “não”; Drumonnd: “por que

444

WACHOWSKI, Larry; WACHOWSKI, Andy. Fragmentos de informação. In: ____. The Matrix: comics.

Trad. de Fábio Fernandes. São Paulo: Panini Books, 2009. p.9-18.

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151

não?”; B1-66ER: “eu sabia que era...”; Drumonnd: “inútil”. E a história prossegue com a

defesa de B1-66ER por Drumonnd que usa o precedente Dred Scott vs.Sandford induzindo o

entendimento que o androide é comparado ao negro que antes não era considerado cidadão, e

alega autodefesa. A Corte julga o androide culpado. A sociedade civil, em apoio ao autômato,

tenta compra-lo e, ao não conseguir, sai às ruas em protesto interrompendo o tráfego e

queimando veículos.

Do lado dos robôs, o autômato que sonha com a liberdade, no sentido de livrar-se da

escravização que os humanos lhe impõem, corre o risco de ser descoberto e destruído, pois a

liberdade de uma máquina é algo por demais perigoso. E, como se sabe, quem pensa pode

começar a pensar em querer, e o querer445

é força motriz para mudanças e conquistas. Assim,

nada mais ruim que a sorte de um robô ao sair – ou tentar sair – de sua condição de autômato.

Um conto de Isaac Asimov, “Sonhos de robô”,446

do ano de 1986, ilustra bem isso

tudo. O robô LXV-1 ou Elvex, com dez dias de existência, diz que sonhou na noite anterior. A

personagem doutora Linda Rash que foi responsável por mudar a programação do cérebro do

robô de positrônico para fractal, o que era a primeira vez que era feito, e tentava, com isto,

obter padrões mentais mais complexos e próximos ao de seres humanos.

A robopsicóloga, doutora Susan Calvin, é chamada por Linda Rash para analisar o

que está acontecendo. A robopsicóloga passa a fazer perguntas ao robô sobre o sonho. Elvex

reponde que, no sonho dele, havia inúmeros robôs trabalhando, fatigados, aflitos, e entendeu

que os robôs deveriam proteger sua própria existência.

Susan Calvin diz a Elvex que ele citou a Terceira Lei da Robótica de forma

incompleta, pois a lei diz que “um robô deve proteger sua própria existência, na medida em

445

Diz Ortega y Gasset que o querer fazer – o verdadeiro querer – necessita do querer tudo o que é

imprescindível à concretização desse querer, sem isto, não há propriamente um querer, mas sim um desejar.

ORTEGA Y GASSET, José. La missión de la universidad. Madri: Revista de Occidente, 1930. p. 22. 446

ASIMOV, Isaac. Sonhos de robô. In: ______. Sonhos de robô. Trad. de Braulio Tavares, e Anna Beatriz

Sach. Rio de Janeiro: Record, 1991. p. 51-57.

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que essa proteção não entre em conflito com a Primeira Lei e a Segunda Lei”. O robô

reconhece que, na vida real, a Terceira Lei é assim, mas no sonho dele era da outra forma.

A robopsicóloga fica apreensiva, dado o grau de perigo que aquilo representava, e

diz à Linda Rasch: “quem seria capaz de imaginar que havia uma camada inconsciente por

baixo dos padrões positrônicos mais óbvios, uma camada que não estaria necessariamente

governada pelas Três Leis?”. 447

A doutora portava uma pistola eletrônica por precaução. Ela

pergunta ao robô Elvex se nos sonhos apareciam seres humanos. O robô diz que havia um ser

humano que gritava “libertem meu povo!”, referindo-se aos robôs, e que esse ser humano era

ele mesmo, Elvex. A doutora dispara a pistola e elimina o robô sonhador. 448

Embora aparentemente contraditório, tentar conciliar os discursos do sair do

automatismo, no parar para pensar, e o discurso de permanecer em automatismo, no resguardo

ao nascimento da vontade do autômato, ambas as ideias se complementam. É que o parar para

pensar é diverso da mera alforria de pensamento do robô, haja vista que o pensamento e a

vontade podem descoincidir ou estarem desvinculados ou não abrangidos pelas Três Leis.

Transportando-se essas ideias para a seara jurídica, temos: é importante que o juiz

exerça sua função sem incidir em automatismos e, nesse sentido, o parar para pensar é uma

solução; de outra parte, cabe evitar que o juiz mude de um automatismo de ordem

institucional, onde segue sem refletir as instruções do Judiciário, e passe a considerar apenas

seu juízo solipcista, muitas vezes com perigo de sobrepujar as Leis de Asimov da relação com

os jurisdicionados.

447

ASIMOV, Isaac. Sonhos de robô. In: ______. Sonhos de robô. Trad. de Braulio Tavares, e Anna Beatriz

Sach. Rio de Janeiro: Record, 1991. p. 56. 448

ASIMOV, Isaac. Sonhos de robô. In: ______. Sonhos de robô. Trad. de Braulio Tavares, e Anna Beatriz

Sach. Rio de Janeiro: Record, 1991. p. 57.

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153

Noutra perspectiva, pode-se pensar num paralelo do juiz autômato com uma máquina

ou programa de computador capaz de prover decisões. 449

Richard A. Posner450

cita um conto

interessante a esse propósito: “Non sub Homine”, de H. B. Whayte.

O referido conto narra um futuro onde fora criado um supercomputador com um

poderoso banco de dados, no qual estavam armazenadas todas as decisões judiciais, todas as

leis, todas as regulamentações e tudo o quanto já fora produzido na seara jurídica integrava a

biblioteca de dados dessa máquina que tinha por função prover decisões perfeitamente

fundamentadas. Esse computador acabou por tornar desnecessários os tribunais, tirou o direito

das mãos dos homens, e aumentou o sentimento de confiança no direito. No entanto, certa vez

o computador não decide, apenas elabora duas decisões igualmente bem fundamentadas uma

dando ganho à parte autora e outra à parte ré. O operador decide escolher ele próprio uma das

duas decisões e manda a sua auxiliar entregar. Por fim, o operador reprograma o computador

para, em casos de indecisão, o programa optar por uma das sentenças. E o conto termina

quando o operador decide eletrocutar a sua auxiliar e, com isso, proteger o segredo de como o

computador decide casos indeterminados.

Como aponta Richard A. Posner, o conto mostra o extremo do Estado de Direto na

substituição do julgamento humano pelo mecânico, e “mostra-nos, além disso, a psicologia

das pessoas que querem ver o direito totalmente livre da emotividade e como essa psicologia é

compatível com a fúria destrutiva”. 451

E o autor acrescenta, na sequência, “expõe-nos a

impotência do julgamento mecânico perante a incerteza”. 452

449

Luis Recásens Siches utiliza-se da expressão maquinas computadoras ao referir-se à questão de se os

computadores poderiam ou não substituir os juízes provendo decisões. RECÁSENS SICHES, Luis. Experiencia

jurídica, naturaleza de la cosa y lógica "razonable". México: UNAM, 1971. p. 546-553. 450

POSNER, Richard A. Para além do direito. Trad. de Evandro Ferreira e Silva. São Paulo: Martins Fontes,

2009. p.514-517. 451

POSNER, Richard A. Para além do direito. Trad. de Evandro Ferreira e Silva. São Paulo: Martins Fontes,

2009. p.516. 452

POSNER, Richard A. Para além do direito. Trad. de Evandro Ferreira e Silva. São Paulo: Martins Fontes,

2009. p.516.

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De um ponto, para a mente humana poder decidir é imprescindível a atuação da

emoção junto à razão. Sem isso, a pessoa tende a racionalizar ao infinito sem, no entanto, ser

capaz de prover uma decisão simples que seja.

Tal fato é comprovado nos estudos de António R. Damásio, o qual demonstra que a

emoção é “um componente integral da maquinaria da razão”.453

António R. Damásio454

relata que, em 1848, Phineas P. Gage, trabalhador da

construção civil, de 25 anos de idade, sofreu um acidente no qual teve uma barra de ferro

alojada na cabeça. Após a cirurgia, observou-se que Gage estava normal, menos o fato de que

apresentava deficiências para a tomada de decisões e, junto a isso, elevada alteração de

diminuição na capacidade de sentir emoções.

No caso do paciente Phineas P. Gage, no procedimento cirúrgico fora retirado parte

de área do cérebro correspondente aos sentimentos de emoção, restando ao paciente, após a

recuperação, agir sempre com prevalência da razão. No entanto, a inabilidade de tomar

decisões demonstra que a razão não é o único requisito para uma boa decisão. Daí, portanto, a

componente emotiva dos seres humanos é essencial para auxiliar nas tomadas de decisões.

Em relação às máquinas e sua atuação automática, a característica maquinal é

incompatível com o instrumental emotivo. O robô não decide com base em sentimentos, com

parâmetro na emoção.

Abstrai-se daí que, o juiz que atua com automatismo, por conseguinte, desprende-se

da emoção e suas decisões em face de incertezas e indeterminações do direito serão precárias,

453453

DAMÁSIO, António. R. O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. Trad. de Dora Vicente e

Georgina Segurado. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 12. [11ª reimpressão]. 454454

DAMÁSIO, António. R. O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. Trad. de Dora Vicente e

Georgina Segurado. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 11, 12, 23 e ss). [11ª reimpressão].

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porquanto a escolha será mera decisão maquinal,455

mesmo que presentes os resquícios de sua

humana condição de ser social. 456

Um segundo ponto de reflexão está na paralisia ou estagnação do direito. Uma vez

que as decisões desse supercomputador sempre são tomadas com base no que fora

considerado como direito, as novas situações jurídicas serão decididas sempre com base nas

injunções arcaicas do direito antigo. O elemento de criação e adaptação fica ausente. O

supercomputador do conto “Non sub Homine” constitui-se numa máquina de análise de

compatibilidade com o passado.

No automatismo do juiz, essa perspectiva de imobilidade está presente. A partir do

momento em que o juiz está convencido de que suas preconcepções são bastantes para todas

as decisões futuras, é a partir desse momento em que o direito para no tempo.

Diante dessas analogias e comparações baseadas na ficção científica e tecidas até

aqui, pode-se dizer que ao jurista autômato há três situações possíveis: a primeira é manter a

rotina no piloto automático sem perturbação da realidade onírica em que está imerso; a

segunda, resistir com vigor a sair da caverna quando estimulado a isso; 457

e a terceira, tentar

455

Richard A. Posner menciona um caso onde um juiz de Nova York perdeu o caso por admitir lançar uma

moeda para poder decidir em casos onde a indeterminação poderia beneficiar quaisquer dos lados em disputa no

processo. POSNER, Richard A. Para além do direito. Trad. de Evandro Ferreira e Silva. São Paulo: Martins

Fontes, 2009. p.516. O citado autor faz a seguinte reflexão: “No caso indefinido, não pedimos ao juiz que acerte

(uma exigência impossível de cumprir), mas que se valha da ocasião para formular direito”. (cf. p. 517). 456

A decisão automática implica num alheamento à realidade circundante, no sentido da não percepção dessa

realidade. Entretanto, permanece válida a lição de Piero Calamandrei quando afirma: “Na realidade, porém, é

difícil que o juiz, ao interpretar a lei (o que significa repensá-la e fazê-la reviver nele), consiga distanciar-se de si

mesmo, a ponto de não introduzir em seu julgamento, mesmo sem perceber, suas opiniões políticas, sua fé

religiosa, sua condição econômica, sua classe social, suas tradições regionais ou familiares, até mesmo seus

preconceitos e suas fobias”. CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. Trad. de

Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 245. 457

A respeito desse ponto, da resistência a sair da caverna, pondera Dalmo de Abreu Dallari: “Com argumentos

dessa ordem, afirmando-se ‘escravos da lei’, procuram [os juízes] ocultar o temor, o comodismo, as

conveniências pessoais ou a falta de consciência da extraordinária relevância de sua função social”. DALLARI,

Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 51.

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alcançar a liberdade de pensamento e reflexão e ter de arcar com as consequências de sua

ousadia ou inovação.458

Do ponto de vista institucional, a segurança do criador está no controle total da

máquina autômata. Para a personagem do conto “Sonhos de robô”, a doutora Susan Calvin, o

perigo do robô Elvex estava no fato de ele dispor de uma camada inconsciente capaz de

suplantar as Leis da Robótica que garantiriam a proteção aos seres humanos.

Do ponto de vista pessoal, o sossego do mimetismo na adaptação à uma realidade

social fornece a sensação de proteção tão cara à convivência harmônica com da roteirização

dos fatos da vida. Abandonar o automatismo seria um sair da zona de conforto. Como afirma

Mario Vargas Llosa, “o regresso à realidade é sempre um empobrecimento brutal: a

comprovação de que somos menos do que sonhamos”.459

Nessa medida, a vida revela a necessidade da ficção, pois, tanto no cinema460

e na

literatura quanto na atividade diária do juiz, o enredo é um caminho e um sentido para as

ações e, sem ele, é tortuoso o percorrer das experiências diárias, ainda mais quando o sair do

script representa perigo iminente.

458

Carl G. Jung adverte para que “A consciência resiste, naturalmente, a tudo que é inconsciente e desconhecido.

Já assinalei a existência, entre os povos primitivos, daquilo a que os antropólogos chamavam ‘misoneísmo’, um

medo profundo e supersticioso ao novo. Ante acontecimentos desagradáveis, os primitivos têm as mesmas

reações do animal selvagem. Mas o homem ‘civilizado’ reage a ideias novas da mesma maneira, erguendo

barreiras psicológicas que o protegem do choque trazido pela inovação. Pode-se facilmente observar este fato na

reação do indivíduo ao seu próprio sonho, quando ele é obrigado a admitir algum pensamento inesperado”.

JUNG, Carl G. Chegando ao inconsciente. In: JUNG, Carl G. (Concepção e Org.). O homem e seus símbolos.

Trad. de Maria Lúcia Pinto. 12.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 31. 459

Tradução livre de: “el regreso a la realidad es siempre un empobrecimiento brutal: la comprobación de que

somos menos de lo que soñamos”. VARGAS LLOSA, Mario. La verdade de las mentiras. Buenos Aires:

Alfaguara, 2009. p. 14. 460

O filme “Matrix”, na fala de Morpheus a Neo, aquele revela que “a maioria dessas pessoas não está preparada

para ser desligada [sair da Matrix para o deserto do real]. E muitas delas são tão apáticas, tão fortemente

dependentes do sistema, que lutarão para protegê-lo”. Daí que, no filme, os rebeldes evitam libertar pessoas

adultas e dão preferência a crianças, em tese mais suscetíveis a aceitarem a dura realidade do deserto do real.

Ainda na área ficcional, James Gunn registra uma frase da ficção científica de Stanislaw Lem, “Congresso

Futurológico” de 1974, onde a personagem Tichy ouve ao final: “Mantemos esta civilização narcotizada porque,

do contrário, ela não sobreviveria. É por isso que não se deve perturbar a letargia dela [...]”. GUNN, James. O

paradoxo da realidade em Matrix. In: YEFFETH, Glenn (Org.). A pílula vermelha: questões de ciência,

filosofia e religião em Matrix. Trad. de Carlos Silveira Mendes Rosa. São Paulo: Publifolha, 2003. p. 64.

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157

Permanece, porém, o dever de sair do automatismo, de perceber que a realidade

vivencial circunda o homem, e que deve essa realidade ser percebida e considerada no âmbito

das reflexões quando da realização do labor cotidiano.

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158

6 PROPOSTAS PARA AFASTAR O AUTOMATISMO DO JUIZ

Afastar o automatismo, no sentido de diminuir sua incidência, é essencial para que o

juiz possa atuar ciente da realidade do ambiente vivencial ao seu entorno, como também possa

visualizar a realidade do direito permeada por mitos jurídicos.

Numa reflexão mais apurada, certa dose de automatismo integra de modo indelével o

cotidiano da sociedade contemporânea. As rotinas que auxiliam no deslinde das tarefas do

dia-a-dia, sistematizam e organizam a forma de interação entre pessoas, atividades e objetos,

representam os mesmos processos cíclicos – e míticos – que mediam a realização do modo de

produção dos sentidos.

Automatismo será, assim, a fábula da inércia contemporânea, onde a moral da

história desvela o fato de que as pessoas agem tal qual robôs e androides, parados ou em

movimento, mas sempre máquinas a serviço da inércia de um fazer repetitivo.

Onde a vigília está dissociada da humana preocupação com o ser humano, o

automatismo é um descansar onírico descompromissado com a vivência e a existência, e que

em nada contribui para garantir o bem estar na sociedade complexa do mundo de hoje.

6.1 COMPROMETIMENTO DO JUIZ ATRAVÉS DA REFLEXÃO

Na vida da Jurisdição, no espaço da atuação do juiz e da produção de decisões, a

presença de automatismos constitui perigo de dano ou, quando o menos, concretizam a

certeza do potencial de perigo que a ausência ou alheamento da sensibilidade humana é capaz

de representar.

Um ensaio de propostas no intuito da diminuição do automatismo judicial deve

iniciar com a constatação simples e de suma relevância que propõe Marco Bruno Miranda

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Clementino, ou seja, a de que “parar para pensar é uma boa solução para o direito”.461

Se a

intenção é afastar o automatismo, nada melhor que a atitude reflexiva para superar essa

inércia, estática ou dinâmica, a que o juiz de hoje está submetido.

No Habeas Corpus 93.157/SP,462

o ministro Ricardo Lewandowski do Supremo

Tribunal Federal, em voto vencido, entendeu por conceder a ordem dada a violação do dever

de fundamentação das decisões e no intuito pedagógico463

de alertar os juízes a não aplicarem

de forma automática a produção antecipada de provas prevista no art. 366 do CPP.464

Sobre esse Habeas Corpus, Lenio Luiz Streck465

identifica um “atuar conforme a

própria consciência” no automatismo do juiz de primeira instância que determinou a produção

antecipada de provas à vista do mero fato de o réu encontrar-se foragido. Entretanto, a

racionalidade do juiz na decisão, ao que parece, obedecia a uma lógica do tipo “se x, então y”,

é dizer, inexistiu, propriamente, um parar para pensar, mesmo que para fazer prevalecer a

determinação da própria consciência. É preciso dizer, até, que a atuação foi inconsciente, no

sentido de não refletida.

Como adverte José Ortega y Gasset, viver é dirigir-se ao mundo, é atuar no mundo,

e, nesse sentido, a pessoa que está no piloto automático não vive.466

Esse atuar de que fala José Ortega y Gasset revela um nível de comprometimento

com a realidade circundante, onde o magistrado dirige-se à sociedade com percepção de

461

CLEMENTINO, Marco Bruno Miranda. Por que filosofar? FIDES, Natal, v. 1, n. 1, fev./jul. 2010. p. 30.

Disponível em: <http://www.revistafides.com/ojs/index.php/br/issue/view/1>. Acesso em: 11 jun. 2013. 462

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus 93.157/SP. Primeira Turma. Rel. Min. Ricardo

Lewandowski. Rel. para Acórdão Min. Menezes Direito. J. 23/09/2008. DJe. 216, div. 13/11/2008, publ.

14/11/2008. Inteiro teor. Disponível em:

<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=561169>. Acesso em: 15 jan. 2014. 463

Esse viés pedagógico é dito pelo ministro nas páginas 372 e 380 do inteiro teor do Acórdão. Cf. nota anterior. 464

De acordo com o art. 366 do Código de Processo Penal brasileiro: "Se o acusado, citado por edital, não

comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o

juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão

preventiva, nos termos do disposto no art. 312". Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-

lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em: 15 jan. 2014. 465

STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2010. p. 31-32. 466

ORTEGA Y GASSET, José. La missión de la universidad. Madri: Revista de Occidente, 1930. p. 109.

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pertencimento, no sentido de que o juiz também é parte integrante, e com demonstração de

atuação consciente e autêntica na área do conhecimento humano a que está encarregado.

Paulo Freire entende que o compromisso do profissional com a sociedade emerge

quando da sua participação comprometida, quando da sua verdadeira generosidade e quando o

profissional mostra-se multilateral na interação do comprometimento mútuo.467

A capacitação humana e humanística do magistrado é imprescindível no sentido de

afastá-lo dos automatismos de pensamento e ação. O juiz está imerso na sociedade como parte

que habita o corpo social, e sua função precípua, a do magistrado, é de atuar em benefício da

sociedade de forma comprometida,468

técnica e humanisticamente comprometida.

Daí que Paulo Freire vai afirmar:

Se o compromisso só é válido quando está carregado de humanismo, este, por sua

vez, só é conseqüente quando está fundado cientificamente. Envolta, portanto, no

compromisso do profissional, seja ele quem for, está a exigência de seu constante

aperfeiçoamento, de superação do especialismo, que não é o mesmo que

especialidade. O profissional deve ir ampliando seus conhecimentos em torno do

homem, de sua forma de estar sendo no mundo, substituindo por uma visão crítica a

visão ingênua da realidade, deformada pelos especialismos estreitos. 469

Esse profissional que atua utilizando-se de reflexões críticas é o juiz que consegue

parar para pensar. Ele interage nas tarefas da Jurisdição tendo anteparo numa formação

humana e humanística, que tem no ser humano o cidadão a quem deve dedicar as suas

reflexões jurídicas banhadas da percepção do contexto da cultura e da noção atuante da

garantia de direitos.

467

FREIRE, Paulo. Educação e mudança. 29. ed. São Paulo: Paz e terra, 2006. p. 19 e 21. 468

Em entrevista sobre mutirão de julgamento de processos de seu gabinete, o ministro Mauro Campbell do

Superior Tribunal de Justiça destacou que comprometimento é fundamental no sentido de afastar automatismos

num ambiente de Jurisdição de massa: “Se nós não tivermos esses comprometimentos com o que nós fazemos

vamos entrar no automatismo. O meu temor da jurisdição de massa, que é essa nossa, é a jurisdição de injustiça,

de você julgar tecnicamente. No meu gabinete, nós não só fazemos um controle de produtividade como o de

eficiência”. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Mauro Campbell realiza mutirão para julgar processos. Site

do STJ, Sala de Notícias, Rádio, 31 ago. 2009. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/portal_stj/

publicacao/engine.wsp?tmp.area=448&tmp.texto=93455>. Acesso em: 15 jan. 2014. Cabe ressalva o ponto de

que julgar tecnicamente não implica numa Jurisdição de injustiça, além do que as noções de produtividade e

eficiência guardam compatibilidade com o ato de julgar tecnicamente. 469

FREIRE, Paulo. Educação e mudança. 29. ed. São Paulo: Paz e terra, 2006. p. 21.

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6.2 NEM O JUIZ É MESSIAS NEM A CONSTITUIÇÃO A SALVAÇÃO

A garantia de uma vida digna aos cidadãos e à sociedade também passa pela esfera

judicial de proteção. As esferas de poder que compõem o Estado devem atuar no sentido de

promover uma sociedade mais livre, justa e solidária (CF, art. 3º, inc. I), e a garantia de acesso

à Jurisdição (CF, art. 5º, inc. XXXV) é um dos meios470

ou instrumentos na busca de

concretizar o plexo de direitos fundamentais que devem ser garantidos e protegidos.

Mas o magistrado não será o messias471

redentor do ambiente distópico, do plano

social repleto das más afetações aos direitos fundamentais, mas sim o profissional do direito

responsável pela manutenção e proteção da ordem jurídica em favor da sociedade, tendo no

indivíduo seu ponto alto de atenção protetiva.472

Nem a Constituição será a responsável pela salvação nacional. Com diz Karl

Loewenstein, “a constituição não pode salvar o abismo entre pobreza e riqueza; não pode

470

Diversos dispositivos da Constituição Federal de 1988 garantem o diálogo do cidadão com o Estado na

cobrança de direitos e deveres: direito de receber informações dos órgãos públicos (art. 5º, inc. XXXIII), direito

de petição (art. 5º, inc. XXXIV, “a”), direito de obter certidões (art. 5º, inc. XXXIV, “b”), e mesmo as garantias

processuais de “habeas-corpus” (art. 5º, inc. LXVIII), mandado de segurança (art. 5º, inc. LXIX), mandado de

segurança coletivo (art. 5º, inc. LXX), mandado de injunção (art. 5º, inc. LXXI) e “habeas data” (art. 5º, inc.

LXXII) são algumas das possibilidades previstas na Constituição. 471

Daí que Paulo Freire vem a consignar: “Não devo julgar-me, como profissional, ‘habitante’ de um mundo

estranho; mundo de técnicos e especialistas salvadores dos demais, donos da verdade, proprietários do saber, que

devem ser doados aos ‘ignorantes e incapazes’. Habitantes de um gueto, de onde saio messianicamente para

salvar os ‘perdidos’, que estão fora. Se procedo assim, não me comprometo verdadeiramente como profissional

nem como homem. Simplesmente me alieno”. FREIRE, Paulo. Educação e mudança. 29. ed. São Paulo: Paz e

terra, 2006. p. 21. 472

O discurso fácil de que a tudo se aplica a “função social” pode comprometer os direitos fundamentais do

cidadão. É preciso atentar para o fato de que a noção de “função social” é diversa de “função socialista”. Um

exemplo está na “função social da propriedade”. Ora, a propriedade é um direito fundamental de primeira

geração ao qual, em situações específicas, pode ser aplicada a tese da “função social”, bem como restrições ao

direito de propriedade que são até anteriores a essa ideia de função advinda do pensamento de Léon Duguit.

Nesse sentido, o magistrado deve voltar sua atenção protetiva primeiramente para a “função individual da

propriedade”, que é a regra geral. A propriedade serve primeiro ao indivíduo para, só depois, servir à sociedade.

Não por acaso o termo propriedade advém do latim “proprius”. Além disso, em verdade, servindo ao indivíduo

já é uma forma de a propriedade servir ao todo social; e a garantia da propriedade de um será, por igual, a

garantia do direito de propriedade de todos.

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trazer comida, nem casa, nem roupa, nem educação, nem descanso, ou seja, as necessidades

essenciais da vida”. 473

José Eduardo Sapateiro escreve: “nenhum Juiz é uma ilha. Cercada de cidadãos. Ou

sequer um Robinson Crusoé. Civilizando Sextas-Feiras. Partilha antes, ombro a ombro com a

comunidade onde se encontra inserido, o sentir e devir coletivos”.474

Civilizar Sextas-Feiras, decerto, está distante do que cabe ao Judiciário fazer, tal qual

lhe são indevidas as funções de messias,475

de profeta e de visionário iniciador da revolução

cultural do mundo contemporâneo. 476

A cultura da sociedade diz o que a sociedade diz de si mesma, e essa cultura deve ser

observada e respeitada nas resoluções judiciais. É preciso prudência na identificação e

declaração de possíveis mudanças no percurso da evolução sociocultural.

Daí que a diretiva deva ser a de que o juiz deve caminhar pelos passos trilhados pelo

direito, deve buscar ater-se à esfera jurídica quando das decisões jurídicas que deva tomar,

uma vez que essas decisões partem – devem partir – do sentimento jurídico social, que é

apanhado pelo Legislativo na edição do direito posto. Nesse sentido, é semelhante ao que

Mario Benedetti477

escreve sobre caminhar pelo sonho dos outros. O percurso é feito pelo

473

Tradução livre de: “la constitución no puede salvar el abismo entre pobreza y riqueza; no puede traer ni

comida, ni casa, ni ropa, ni educación, ni descanso, es decir, las necesidades esenciales de la vida”.

LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Trad. de Alfredo Gallego Anabitarte. 2.ed. Barcelona: Ariel,

1979. p. 229. 474

SAPATEIRO, José Eduardo. Ser juiz hoje. In: RANGEL, Rui (Coord.). Ser juiz hoje. Coimbra: Almedina,

2008. p. 28. 475

Diz João Maurício Adeodato: “não se deve idealizar que a concretização da Constituição, por intermédio da

jurisdição constitucional, seja panaceia para resolver problemas brasileiros de ordem inteiramente distinta, tais

como educação, previdência, fome e violência. [...] É ingênua essa visão messiânica da jurisdição

constitucional[...]”. ADEODATO, João Maurício. A retórica constitucional: sobre tolerância, direitos humanos

e outros fundamentos éticos do direito positivo. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 203. 476

A esse respeito, ponderando a importância como agente de transformação, afirma Dalmo de Abreu Dallari

sobre o Judiciário: “É evidente que, por sua própria natureza, a magistratura não pode assumir o papel de uma

vanguarda revolucionária, mas, sem dúvida, pelo significado social de suas funções e pelo alcance que podem ter

suas decisões, a magistratura pode e deve assumir a condição de participante ativa do processo de mudança

social”. DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 53. 477

Diz Mario Benedetti: “El hombre caminaba por el sueño, pero no por el proprio. Caminaba por el sueño de

los otros”. BENEDETTI, Mario. Pasos del hombre. In: ______. El porvenir de mi pasado. Madrid: Alfaguara,

2010. p.75.

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magistrado, mas seguindo os parâmetros do direito ditado pela sociedade através de seus

representantes no Poder Legislativo.

A posição de “juiz desconfiado do legislador” revela uma atitude de descrença

institucional que pouco ou nada contribui para o desenvolvimento da democracia. Antes o

contrário, o que é o caso do perigo de ingerência sobre a vida das leis478

e também o perigo do

populismo judicial. 479

A atuação política dos juízes não implica em que o Judiciário funcione como

observatório do Legislativo.480

A função política dos juízes deve ser exercida no âmbito dos

processos, de onde emana as noções gerais de direito aplicadas ao ambiente vivencial de uma

sociedade e de um Estado e, com isso, informa e educa a sociedade e fornece subsídios para

que o legislador possa reavaliar, sendo o caso, os caminhos e percursos de sua política

legislativa. Exacerbar o juiz da função de julgar é querer corromper a harmonia de

convivência e entrar no campo de decisões que a Constituição outorga ao legislador.

As ideias de ‘legislador desconfiado’ e ‘juiz desconfiado’ são trabalhadas por André

Ramos Tavares481

como contrapontos sob os quais efluem para o constitucionalismo da

contemporaneidade tanto aspectos positivos, decorrentes da vigilância mútua entre Poderes na

busca de melhor atuação; quanto negativos, concernentes ao perigo da interpenetração no

sentido de ‘usurpação’ de funções.

478

Afirma André Ramos Tavares que “a ideia de juízes desconfiados, especialmente desconfiados do legislador,

impõe, por assim dizer, uma releitura de um fenômeno amplamente discutido, o fenômeno do ‘poder de

destruição’ da lei, atribuído (ou autoatribuído) ao juiz constitucional”. TAVARES, André Ramos. Juízes

desconfiados. In: ______. Paradigmas do judicialismo constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 19. 479

O ‘populismo judicial’ ocorre quando o juiz, na busca de popularidade, atua visando provocar nos

jurisdicionados sentimentos emotivos de aprovação às suas decisões e seus procedimentos. André Ramos

Tavares entende que o ‘populismo judicial’ é nocivo, devendo ser “combatido e banido das práticas judiciais”.

TAVARES, André Ramos. Juízes desconfiados. In: ______. Paradigmas do judicialismo constitucional. São

Paulo: Saraiva, 2012. p. 22-23. 480

Em sentido contrário, ao que parece, André Ramos Tavares admite a desconfiança no legislador no sentido de

“um dever funcional da magistratura”, ou seja, uma espécie ou “hipótese de desconfiança institucional”.

TAVARES, André Ramos. Juízes desconfiados. In: ______. Paradigmas do judicialismo constitucional. São

Paulo: Saraiva, 2012. p. 26. 481

TAVARES, André Ramos. Juízes desconfiados. In: ______. Paradigmas do judicialismo constitucional.

São Paulo: Saraiva, 2012. p. 19-31.

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6.3 MITIFICAÇÃO SADIA PARA O DIREITO

O mito é necessário ao direito, a esfera jurídica é uma realidade que se utiliza de

mitos na junção de suas partes. Diz Joseph Campbell que “As imagens do mito são o reflexo

das potencialidades espirituais de cada um de nós. Ao contemplá-las, evocamos os seus

poderes em nossas próprias vidas”. 482

Para Mario Justo Lopez, “o mito da Constituição é o mito do homem que tem

vontade de viver dignamente”.483

Essa perspectiva de mito constitucional vem identificada

com a noção de mito como utopia, como o que se espera de bom para uma vida digna.484

Essa

é uma espécie de mito benéfico até mesmo por contribuir para edificar o sentimento

constitucional através de pensamentos positivos direcionados a um futuro virtuoso.

O automatismo, de sua vez, é o que deve ser afastado, pois há o perigo de o juiz,

estando em automatismo, absorver mitos prejudiciais ao direito e à sociedade e desenvolver

sua atividade jurídica com base em mitos ruins, tal qual o mito do neoconstitucionalismo. 485

Mitificar o neoconstitucionalismo como que ele constitua uma quebra paradigmática

relativamente ao constitucionalismo é incorreto, pois o constitucionalismo evoluiu sem

ruptura, apenas desenvolveu-se para adequar-se aos tempos atuais, como é de se esperar.

482

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990. p. 228.

[Entrevistado por Bill Moyers; organização Betty Sue Flowes]. Afirma ainda o autor: “Mitos são pistas para as

potencialidades espirituais da vida humana”. (cf. p. 6). 483

Tradução livre de: “El mito de la Constitución es el mito del hombre que tiene la voluntad de vivir

dignamente”. JUSTO LOPEZ, Mario. El mito de la Constitución. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1963. p. 14. E

o autor diz mais: “”el mito de la Constitución, que es el mito del hombre, de cana hombre, elevado a la categoria

de persona”. (cf. p. 14). 484

Fábio Nadal diz que Mario Justo Lopez elabora uma exortação da Constituição através da percepção de mito

como utopia. NADAL, Fábio. A Constituição como mito: o mito como discurso legitimador da Constituição.

São Paulo: Método, 2006. p. 116. 485

A noção de mito prejudicial está na de que o mito ruim é aquele que atenta, de alguma forma, contra o direito

ou contra as instituições jurídicas. O discurso neoconstitucional é, em verdade, uma pluralidade de discursos e,

nesse sentido, o mito do neoconstitucionalismo é um mito prejudicial na medida em que qualquer um de seus

discursos desvirtua o sentido do constitucionalismo, que é o de respeito incondicional à Constituição.

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Nesse sentido, conforme Maria dos Remédios Fontes Silva e Aurinilton Leão Carlos

Sobrinho, “se vive o Constitucionalismo Contemporâneo e não um ‘neoconstitucionalismo’,

visto que se observa uma evolução, com novas conquistas auferidas no período do pós-

Guerra, que passam a integrar a própria estrutura do Estado Constitucional”. 486

As expressões Constitucionalismo Contemporâneo487

e primeconstitucionalismo488

apresentam a característica de espelhar o que se espera minimamente de uma teoria do direito

em ambiente de democracia: limitação hermenêutica aos intérpretes e respeito à Constituição.

486

SILVA, Maria dos Remédios Fontes; CARLOS SOBRINHO, Aurinilton Leão. Uma abordagem sobre o

discurso e o contradiscurso do neoconstitucionalismo. In: ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI, XXI,

2012. Uberlândia-MG. Anais... Site Publica Direito: CONPEDI, 2012. p. 11561-11578. Disponível em:

<http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=1e4d36177d71bbb3>. Acesso em: 7 dez. 2013. 487

A expressão ‘Constitucionalismo Contemporâneo’, com iniciais maiúsculas, é a utilizada por Lenio Luiz

Streck para referir-se ao ambiente pós-positivista que é erroneamente captado pelo(s) neoconstitucionalismo(s).

Alguns trabalhos com ocorrência dessa expressão: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição,

hermenêutica e teorias discursivas. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 37; STRECK, Lenio Luiz. Constituição,

interpretação e argumentação: porque me afastei do neoconstitucionalismo. In: LEITE, George Salomão;

SARLET, Ingo Wolfgang (Coords.). Constituição, política e cidadania: em homenagem a Michel Temer. Porto

Alegre: GIW, 2013. p.299-300; STRECK, Lenio Luiz. Contra o neoconstitucionalismo. Constituição,

Economia e Desenvolvimento, Curitiba, n. 4, jan./jun. 2011, p. 13. Disponível em:

<http://www.abdconst.com.br/revista5/Streck.pdf> e também, <http://www.revistasconstitucionales.unam.mx/

pdf/3/art/art11.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2013. 488

O termo “primeconstitucional” advém de uma proposta de estudo de direito e cinema a ser publicada em

breve pelo autor desta dissertação. Tal estudo pressupõe que o termo “neoconstitucionalismo” é inadequado para

representar o atual estágio da interpretação constitucional, estágio de um constitucionalismo que Lenio Luiz

Streck denomina Constitucionalismo Contemporâneo, conforme nota anterior. Ora, se os limites do mundo são

os limites da linguagem – como quer Wittgenstein; então a dialética das linguagens do belo e do justo constitui

uma ampliação das esferas do direito e da arte através da interação de linguagens. A proposição 5.6 do Tratado

Lógico-filosófico de Wittgenstein diz “Os limites da minha linguagem significa os limites do meu mundo”.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado lógico-filosófico; Investigações filosóficas. Trad. de M. S. Lourenço.

5.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. p. 114. A transposição de ideias ou representações do

cinema para a realidade, como adverte Ivan Lira de Carvalho, é um esforço de elaboração artística tanto quanto o

trabalho que o cineasta produz no sentido inverso, ao retirar do mundo real elementos para compor as películas

dos filmes. CARVALHO, Ivan Lira de. Direito, cinema e literatura: uma abordagem jurídica pontual da peleja

de Araújo para transformar-se em Ojuara, o homem que desafiou o diabo. FIDES, Natal, v. 2, n. 1, jan./jun.

2011. p. 116. O transitar entre as realidades do direito e do cinema é uma tarefa complexa, mas da qual pode

emergir bons frutos, e essa é a expectativa para o estudo sobre interpretação primeconstitucional. Além da

perspectiva cinéfila, o termo “primeconstitucional” conta com um segundo aspecto de significação. É que o

termo “prime” advém, em sua origem grega, da teoria dos números na escola pitagórica, onde a unidade – o

número um – detém relevância diante dos números primos, e ambos – unidade e primos – constituem a origem e

o fundamento de existência dos demais números – compostos. Daí o paralelo entre a ‘hierarquia’ dos números na

história e filosofia da matemática e a estrutura das normas dentro do ordenamento jurídico, onde a Constituição é

compreendida como norma fundamental à semelhança da unidade na referida teoria dos números. Outras

relações entre direito e matemática partem daí, mas, como já se disse, também esse estudo fica para ser

desenvolvido em outro trabalho.

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166

A limitação hermenêutica aos poderes interpretativos489

é essencial a que os Poderes do

Estado convivam em harmonia. 490

O respeito à Constituição é a nota distintiva de um Estado

que se quer democrático.

É de se ressaltar que o respeito à Constituição mantém compatibilidade com o

respeito às regras infraconstitucionais. 491

Como diz Miguel Seabra Fagundes: a ordem

jurídica é a junção do império da Constituição com o império das leis. 492 Leciona o referido

mestre: “Onde não haja respeito à lei, imperará o arbítrio da vontade pessoal, e por mais

virtuoso seja o titular do poder sem peias, ninguém estará seguro se, nos direitos e na vida,

ficar dependente, sem apêlo, da sua tolerância e do seu acêrto”. 493

Nesse sentido, Lenio Luiz Streck é bastante preciso ao afirmar que se o Judiciário

tem o poder de dizer o que o direito é, o trabalho das milhares de faculdades e centenas de

programas de pós-graduação seria não mais que “um simulacro de enunciados e

enunciações”.494

489

Nesse sentido, Maria dos Remédios Fontes Silva e Aurinilton Leão Carlos Sobrinho asseveram: “A crítica

mais forte ao neoconstitucionalismo talvez seja aquela relativa ao fortalecimento, consciente ou não, do

decisionismo característico do positivismo normativista. Ao se conceber a interpretação como um ato de

vontade, sujeito à ilimitada discricionariedade do intérprete (juiz), a decisão torna-se um ato arbitrário e

antidemocrático, na medida em que desaparece para o juiz a limitação do poder, tão cara ao constitucionalismo”.

SILVA, Maria dos Remédios Fontes; CARLOS SOBRINHO, Aurinilton Leão. Uma abordagem sobre o discurso

e o contradiscurso do neoconstitucionalismo. In: ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI, XXI, 2012.

Uberlândia-MG. Anais... Site Publica Direito: CONPEDI, 2012. p. 11561-11578. Disponível em:

<http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=1e4d36177d71bbb3>. Acesso em: 7 dez. 2013. 490

No sentido de que o Supremo Tribunal Federal está se utilizando de ativismo com afetação no equilíbrio entre

os Poderes, cf.: SILVA MARTINS, Ives Gandra da. A Constituição "conforme" o STF. Folha de São Paulo,

São Paulo, 20 maio 2011. Opinião, online. 491

Afirma Dimitri Dimoulis que a rejeição ao positivismo “oferece uma espécie de carta de alforria ao intérprete

para que ele atribua às normas jurídicas o sentido que considere mais adequado”. DIMOULIS, Dimitri.

Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo:

Método, 2006. p. 60. 492

FAGUNDES, Miguel Seabra. A legalidade democrática. Recife: OAB-PE, 1970. p. 22. 493

FAGUNDES, Miguel Seabra. A legalidade democrática. Recife: OAB-PE, 1970. p. 22. 494

STRECK, Lenio Luiz. “Não sei... mas as coisas sempre foram assim por aqui". Revista Consultor Jurídico,

19 set. 2013. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-set-19/senso-incomum-nao-sei-coisas-sempre-

foram-assim-aqui>. Acesso em: 15 maio 2013. Noutro texto, Lenio Luiz Streck afirma: “o direito não é (e não

pode ser) aquilo que o intérprete que que ele seja. Portanto, o direito não é aquilo que o Tribunal, no seu

conjunto ou na individualidade de seus componentes, dizem que é. A doutrina deve doutrinar, sim. Esse é o seu

papel. Aliás, não fosse assim, o que faríamos com as mais de mil faculdades de direito, os milhares de

professores e os milhares [de] livros produzidos anualmente?”. STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido

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167

A noção de uma sociedade pluralista de intérpretes constitucionais495

atua bem nesse

sentido de demonstrar que o Judiciário não é o senhor do direito.496

6.4 DESMITIFICAR PARA PERCEBER O MITO

É importante desmistificar o(s) discurso(s) neoconstitucional(is), haja vista que o

constitucionalismo contemporâneo deve ser compreendido como uma evolução, um processo

de ganhos e perdas, mas onde o percurso das ideias e teorias continuam a compor e a balizar

as perspectivas de garantia de existência da Constituição, que são a separação de poderes e a

garantia de direitos.

Uma apropriada dimensão da realidade própria dos mitos pode ser abstraída das

palavras de Roland Barthes sobre a imagem do cinema:

A imagem cativa-me, captura-me: vejo-me como que pegado com cola à

representação e essa cola é o fundamento da naturalidade (a pseudo-natureza) da

cena filmada (cola que há sido preparada com todos os ingredientes da ‘técnica’); o

real, de sua parte, não conhece mais que as distâncias, o simbólico não conhece mais

que as máscaras; tão só a imagem (o imaginário) está próxima, só a imagem é ‘real’

(é capaz de produzir o tinir da verdade).497

conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 25. E diz mais: “se o direito é

aquilo que o judiciário diz que é, para que estudar? Para que pesquisar? Doutrina(r)? Para quê(m)?”. (cf. p. 79). 495

No sentido de uma sociedade com pluralidade de intérpretes constitucionais, cf.: HÄBERLE, Peter.

Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a

interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:

Sergio Antonio Fabris editor, 2002. 496

Afirma Gustavo Zagrebelsky que: “los jueces no son los señores del derecho en el mismo sentido en que lo

era el legislador en el pasado siglo. Son más exactaemnte los garantes de la complejidad estructural del derecho

en el Estado constitucional, es decir, los garantes de la necesaria y dúctil coexistencia entre ley, derechos y

justicia”. ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: Ley, derechos y justicia. Trad. de Marina Gascón. 8.

ed. Madri: Trotta, 2008. p. 153. 497

Tradução livre de: La imagen me cautiva, me captura: me quedo como pegado con cola a la representación y

esta cola es el fundamento de la naturalidad (la pseudo-naturaleza) de la escena filmada (cola que ha sido

preparada con todos los ingredientes de la 'técnica'); lo real, por su parte, no conoce más que las distancias, lo

simbólico no conoce más que máscaras; tan sólo la imagen (lo imaginario) está próxima, sóla la imagen es 'real'

(es capaz de producir el tintineo de la verdad)”. BARTHES, Roland. Salir del cine. In: ______. Lo obvio y lo

obtuso: imágenes, gestos, voces. Trad. de C. Fernández Medrano. Barcelona: Paidos, 2002. p. 353-354.

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168

Para uma melhor apreensão é suficiente identificar ‘mito’ e ‘imagem’.498

Segue-se

daí que o mito cativa,499

prende a pessoa a uma representação que é fundamento

(pseudo)natural da realidade que advém da estrutura do mito. A base do mito é a realidade

real, pois a realidade mítica, a imagem, está na “cena filmada”.

Ora, se o real está distante, se o simbólico é mera aparência, se apenas o mito-

imagem está próximo, está ao dispor imediato, apenas o mito é real e é capaz de produzir essa

sensação necessária de verdade presente na crença e na confiança que se deduz da

verossimilhança do mito.

Uma tentativa de neutralização do mito terá de seguir procedimento adequado. Se se

quer desapegar do 'espelho', da hipnose imaginária ou ideológica, que é o cine,500

uma forma

de fazer isso é, segundo Roland Barthes, ir ao cine de outro modo:

Ir ao cinema deixando-se fascinar duas vezes, pela imagem e pelo entorno dessa,

como se estivessem dois corpos de uma vez: um corpo narcisista que observa,

perdido nas proximidades do espelho, e um corpo perverso, disposto a flertar já não

com a imagem, mas sim, precisamente, com o que emana dela: o ‘grão’ de som, a

sala, a escuridão, a massa escura dos outros corpos, os raios de luz, a entrada, a

498

Sobre essa identificação mito e imagem, é de se registrar as palavras de Ernst Cassirer: “Aqui apoderamo-nos

de um dos mais essenciais elementos do mito. O mito não nasce somente de processos intelectuais: brota das

emoções profundamente humanas. Contudo, por outro lado, todas aquelas teorias que acentuam exclusivamente

o elemento emocional esquecem um ponto essencial. O mito não pode ser descrito como uma simples emoção

porque é a expressão de uma emoção. A expressão de um sentimento não é o próprio sentimento – é a emoção

tornada imagem”. CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

p. 59. 499

A cerca dessa cola do cinema, escreve Marshall McLuhan: “A audiência aceita tudo o que a câmara quer

mostrar. Somos transportados para um outro mundo”. MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como

extensões do homem. Trad. de Décio Pignatari. 18.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. p. 321. 500

Sobre o poder do cinema em relação a meios como rádio e imprensa, no regime nazista Joseph Goebbles já

possuía a dimensão de que, enquanto os outros meios agiam sobre uma massa dispersa de indivíduos, o cinema

agia sobre uma massa fechada, um grupo limitado à sala de projeção. Daí Wagner Pinheiro Pereira comentar que

“dessa forma, o cinema possibilitava que cada indivíduo nela integrado participasse de um ritual coletivo,

experimentando, durante a projeção, não apenas suas próprias emoções, mas também as daqueles que o

cercavam e ainda a interação entre essas emoções e as suas próprias. O filme atingiria, assim, o subconsciente do

público”. Wagner Pinheiro. O poder das imagens: cinema e política nos governos de Adolf Hitler e de Franklin

D. Roosevelt (1933-1945). São Paulo: Alameda, 2012. p. 70. Na obra “1984”, escrita em 1948, George Orwell

descreve como as pessoas participavam e interagiam nos “Dois Minutos de Ódio”, onde as pessoas eram

submetidas a projeções de imagens onde a personagem Goldstein era apresentado como traidor contra o Grande

Irmão. Escreve George Orwell, “Num momento de lucidez, Winston constatou estar berrando junto com os

outros e percebeu que golpeava violentamente a trave de sua cadeira com os calcanhares. O mais horrível dos

Dois Minutos de Ódio não era o fato de a pessoa ser obrigada a desempenhar um papel, mas de ser impossível

manter-se à margem. Depois de trinta segundos, já não era preciso fingir”. ORWELL, George. 1984. Trad. de

Alexandre Hubner, e Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 25 [8ª reimpressão].

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saída: em resumo, para distanciar-me, para ‘desapegar’, complico uma ‘relação’

usando uma ‘situação’.501

A hipnose pela imagem ou pelo mito é alimentada pelo direcionamento do olhar, ou

seja, a imagem da tela do cinema tanto quanto o mito fascinam no momento em que mostram-

se capazes de substituir o real, a realidade que chega aos sentidos. A partir do instante em que

o expectador da sala de cinema ou o juiz diante de um mito percebem que a imagem da tela e

o mito estão incluídos numa realidade maior – a realidade da sala e a do direito – é que o

cinéfilo e o juiz se desprendem da cola da imagem e do mito.

Em havendo necessidade de fugir ao mito, e quando o direcionamento de olhar seja

ineficiente, é preciso transformar o mito por meio de um novo processo de mitificação. A esse

respeito, Roland Barthes afirma:

A melhor arma contra o mito talvez seja mitificá-lo a ele próprio e produzir um mito

artificial; e este mito reconstituído será uma verdadeira mitologia. Visto que o mito

rouba a linguagem, por que não roubá-lo também? Bastará, para isso, colocá-lo

como ponto de partida de uma terceira cadeia semiológica e considerar a sua

significação como primeiro termo de um segundo mito.502

Quanto menos o mito aparece, mas real ele é.503

Daí que uma das chaves de

entendimento do verso de Fernando Pessoa quando ele diz que “o mito é um nada que é

tudo”.504

501

Tradução livre de: “ir al cine dejándose fascinar dos veces, por la imagen y por el entorno de ésta, como si se

tuvieran dos cuerpos a la vez: un cuerpo narcisista que mira, perdido en el cercano espejo, y un cuerpo perverso,

dispuesto a fetichizar ya no la imagen sino precisamente lo que se sale de ella: el 'grano' del sonido, la sala, la

oscuridad, la masa oscura de los otros cuerpos, los rayos de luz, la entrada, la salida: en resumen, para

distanciarme, para 'despegar', complico una 'relación' usando una 'situación'”. BARTHES, Roland. Salir del cine.

In: ______. Lo obvio y lo obtuso: imágenes, gestos, voces. Trad. de C. Fernández Medrano. Barcelona: Paidos,

2002. p. 354. 502

BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. de Rita Buongermino, Pedro de Souza e Rejane Janowitzer. 5.ed. Rio

de Janeiro: DIFEL, 2010. p. 227. 503

Diz Roland Barthes sobre o mito contemporâneo: “o mito desaparece, mas permanece, tanto mais insidioso, o

mítico”. BARTHES, Roland. Mudar o próprio objeto. In: BARTHES, Roland et al. Atualidade do mito. Trad.

de Carlos Arthur R. do Nascimento. São Paulo: Duas Cidades, 1977. p. 11. Para Italo Calvino o mito está oculto

na narrativa: “O mito é a parte escondida de toda história, a parte subterrânea, a zona ainda não explorada porque

faltam ainda as palavras para chegar até lá. Para contar o mito, a voz do contador no meio da reunião tribal

quotidiana não basta. É preciso lugares e momentos particulares, reuniões especiais. A palavra também não

basta; o concurso de um conjunto de signos polivalentes, isto é, um rito, é necessário. O mito vive de palavra

mas também de silêncio; um mito faz sentir sua presença na narrativa profana, nas palavras quotidianas; é um

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De acordo com Paulo Ferreira da Cunha, há grande proximidade entre essa ideia de

Pessoa de que o mito é um nada que é tudo, e a proposição de Delfim Santos de que a Justiça

é “o nada de que tudo depende”. Abstraindo-se a questão da polissemia das palavras, e tendo

em vista a relação ou ligação entre direito e justiça, escreve Paulo Ferreira da Cunha: “não

será a Justiça o mito do Direito?”.505

Uma vez que o mito jurídico detém a capacidade de substituir-se à realidade jurídica,

a ausência de percepção de que se está diante de um mito jurídico é que torna a realidade

alienada pelo mito. O mito passa a ser a realidade do direito. A produção do direito será a

reprodução do mito. O que há, a partir de então, é uma simulação do real no sentido proposto

por Jean Baudrillard.506

6.5 PERCEBER O TRABALHO DE SÍSIFO NA ROTINA DA VIDA

O cotidiano da reprodução, a vida mediante rotinas que se repetem sempre e sempre,

pode vir a funcionar como o trabalho de Sísifo descrito sob a ótica de Albert Camus. O autor

escreve sobre o mito de Sísifo507

em 1942, período de Guerra Mundial, e seu texto, sob uma

vácuo de linguagem que aspira as palavras no seu turbilhão e dá forma à fábula”. CALVINO, Italo. A

combinatória e o mito na arte da narrativa. In: BARTHES, Roland et al. Atualidade do mito. Trad. de Carlos

Arthur R. do Nascimento. São Paulo: Duas Cidades, 1977. p. 77. Afirma Jean-François Rollin que “o mito se

esconde à medida que se torna mais penetrante. Como se o mito se refugiasse num além que lhe confere sua

autenticidade e lhe reserva um domínio próprio fora da história”. ROLLIN, Jean-François. Civilização medusa.

In: BARTHES, Roland et al. Atualidade do mito. Trad. de Carlos Arthur R. do Nascimento. São Paulo: Duas

Cidades, 1977. p. 135. 504

PESSOA, Fernando. Ulisses. In: ______. Mensagem. 18.ed. Lisboa: Ática, 1997. p. 27. Também disponível

em: PESSOA, Fernando. Ulisses. Arquivo Pessoa. Disponível em: <http://arquivopessoa.net/textos/1274>.

Acesso em: 10 jan. 2014. [poesia transcrita de: PESSOA, Fernando. Mensagem. 10.ed.Lisboa: Ática, 1972] 505

CUNHA, Paulo Ferreira. Teoria da constituição: mitos, memórias, conceitos. Lisboa: Verbo, 2002. p. 50 506

Conferir subseção 4.3, na parte que fala de simulacro e simulação em Jean Braudrillard. 507

Interessante discussão à respeito do livro em: O MITO DE SÍSIFO. Programa Direito e Literatura: do fato

à ficção. São Leopoldo-RN: TV Unisinos e TV Justiça, exibido em 15 out. 2008. Programa de TV Produzido

pelo Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ) em parceria com a TV UNISINOS. Apresentação: Lenio Streck,

Debates: Felipe Loges, e Maria de Nazareth Agra Hassen. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=X5S9oUnyUMQ>, e <http://vimeo.com/13767009>. Acesso em: 5 jan.

2014. O debate televisivo levanta algumas questões da relação entre o mito de Sísifo e o direito, bem como da

interpretação e adaptação do mito ao contexto contemporâneo.

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certa ótica, trabalha o absurdo e o sentido da vida. Conforme o autor, “Só existe um problema

filosófico sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à

pergunta fundamental da filosofia”.508

Albert Camus diz: “Os deuses condenaram Sísifo a empurrar incessantemente uma

rocha até o alto de uma montanha, de onde tornava a cair por seu próprio peso. Pensaram,

com certa razão, que não há castigo mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança”. 509

Empurrar a pedra ao topo e vê-la rolar de volta ao estágio inicial, era essa a tarefa

aparentemente inútil e sem esperança, posto que desprovida de sentido e de término. Todavia,

Albert Camus510

observa que há um momento de pausa que é quando a pedra cai e Sísifo a

observa cair e vai apanhá-la lá embaixo.

É nesse momento em que há um parar para pensar, é um momento de reflexão. É o

momento da consciência onde Sísifo dá-se conta de seu atuar no mundo de suas

circunstâncias. É aí onde ele destaca-se do tempo e olha para si, superior a seu destino. Nesse

ponto, é fundamental estar consciente da tragédia, como diz Albert Camus,

Este mito só é trágico porque seu herói é consciente. O que seria a sua pena se a

esperança de triunfar o sustentasse a cada passo? O operário de hoje trabalha todos

os dias de sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só

é trágico nos raros momentos em que se torna consciente. Sísifo, proletário dos

deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua miserável condição:

pensa nela durante a descida. A clarividência que deveria ser o seu tormento

consuma, ao mesmo tempo, sua vitória. Não há destino que não possa ser superado

com o desprezo. 511

Diante do próprio destino, face a face com ele, Sísifo o encara com consciência de

que o destino é uma marcha dura, pesada, incessante, mas lhe pertence. E é precisamente

508

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad. de Ari Roitman e Paulina Watch. 3.ed. Rio de Janeiro: BestBolso,

2013. p. 19. 509

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad. de Ari Roitman e Paulina Watch. 3.ed. Rio de Janeiro: BestBolso,

2013. p. 121. 510

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad. de Ari Roitman e Paulina Watch. 3.ed. Rio de Janeiro: BestBolso,

2013. p. 122-123. 511

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad. de Ari Roitman e Paulina Watch. 3.ed. Rio de Janeiro: BestBolso,

2013. p. 123.

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172

nesse ponto de encontro com o próprio destino que é possível refletir sobre a existência, e

encontrar a resposta para a pergunta fundamental da filosofia.

E é essa mesma pergunta sobre o sentido da vida que o juiz precisa fazer ao olhar

para sua pedra e compreender a extensão da dureza, do peso e da repetição de sua rotina.

Antes, porém, o magistrado precisa sair do automatismo, precisa parar para refletir sobre a

pedra que volta a cair, precisa parar para pensar que nessa pedra reside o local de encontro

com sua existência.

Há um pensamento de Fernando Birri onde ele fala da função da utopia, e que diz:

“A utopia está no horizonte. Eu sei muito bem que não a alcançarei. Que se eu caminho dez

passos, ela se distanciará dez passos. Quanto mais a procure, menos a encontrarei, porque ela

vai se distanciando quanto mais me aproximo. A utopia serve para isso, para caminhar.”.512

O sentido da caminhada aí em Fernando Birri é semelhante ao que advém da leitura

do mito de Sísifo, ou seja, o sentido de caminhar mesmo sem chegar, de empurrar a pedra

mesmo sem concluir a tarefa.513

Fernando Birri ressalta a caminhada na busca de utopia; Albert Camus põe em relevo

a contemplação sobre a existência face a um destino assaz distópico. Ao juiz que busca livrar-

se do automatismo, a perspectiva de Sísifo melhor retrata a reflexão sobre o aperceber-se do

próprio destino.

512

BIRRI, Fernando citado por GALEANO, Eduardo. El derecho ao delirio. Site YouTube. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=Z3A9NybYZj8>. Acesso em: 8 jan. 2014. 513

Uma ressalva a ser feita está em que o ser humano precisa de ritos de passagem, ritos que sirvam para a

demarcação do tempo e das fases da vida. Criança, adolescente, jovem, adulto, idoso são demarcações.

Formatura e casamento também demarcam fases. A contagem do tempo em segundos, minutos, horas, dias...

servem ao mesmo propósito. É que a vida é mais facilmente vivida sob a sensação de que tarefas podem ser

concluídas e de que o mundo pode ser sintetizado em início, meio e fim. Para Joseph L. Handerson, “O ritual,

seja de grupos tribais ou de sociedades complexas, insiste sempre neste rito de morte e renascimento, isto é, um

‘rito de passagem’ de uma fase da vida para outra, seja da infância para a meninice ou do início para o final da

adolescência e daí para a maturidade”. HANDERSON, Joseph L. Os mitos antigos e o homem moderno. In:

JUNG, Carl G. (Concepção e Org.). O homem e seus símbolos. Trad. de Maria Lúcia Pinto. 12.ed. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 130. E o autor prossegue: “A iniciação tem, portanto, um propósito civilizador

ou espiritual, a despeito da violência dos ritos usados para desencadear este processo”. (cf. p. 149).

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À propósito, é válido relembrar a advertência de José Ortega y Gasset de que viver é

dirigir-se ao mundo, é atuar no mundo, e, nesse sentido, a pessoa que está no piloto

automático não vive.514

6.6 AUTOMATISMO DO JUIZ BOCA DO JUÍZO

Outro aspecto de grande relevância no tema do automatismo é a circunstância de

que, na atualidade, o juiz atua com automatismo não apenas quando se conforma em ser o juiz

boca da lei por cômoda e letárgica subserviência ao direito posto, ou por medo ou exagerada

prudência ao temer arriscar-se a enfrentar as discussões que a sociedade complexa impõe.

Nesse sentido, mesmo que se propugne ultrapassada a ideia de um juiz boca da lei, o

automatismo persiste: apenas desloca o foco do apego à letra da lei para o apego à

determinação do juízo.

Noutras palavras, o automatismo judicial do mundo contemporâneo está

representado no juiz boca do juízo que é o magistrado que, sem refletir, exerce suas

atribuições de forma contínua e ininterrupta, sem se dar conta que trabalha na esteira de

produção da fábrica do direito onde continua a apertar parafusos com uma chave inglesa

imaginária ao modo de Chaplin no filme “Tempos Modernos”, e permanece atuando em

automatismo de acordo com as suas próprias515

convicções de justiça (juízo individual,

solipcista) ou com as da Jurisdição (juízo institucional), sem se importar com os parâmetros

da Constituição ou do ordenamento jurídico.

514

ORTEGA Y GASSET, José. La missión de la universidad. Madri: Revista de Occidente, 1930. p. 109. 515

À propósito de sua posição sobre o movimento de direito alternativo, Miguel Reale assim manifesta:

“Ninguém postula a atividade de um juiz passivamente situado na e perante a ordem jurídica, mas é pretensão

desmedida apresentar o próprio entendimento pessoal como alternativa, exposta como verdade cientificamente

demonstrada e fundada, para substituir os modelos jurídicos considerados em conflito com a justiça devida...”.

REALE, Miguel. A ética do juiz na cultura contemporânea. In: NALINI, José Renato (Coord.). Uma nova ética

para o juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 145.

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Ou seja, sem refletir, o juiz boca do juízo compreende a realidade circundante por

meio das rotinas cíclicas da Jurisdição, quer numa atuação solipicista (juízo individual) quer

em acatamento instrumental dos ditames da Jurisdição (juízo institucional).

Esse tipo de juiz detém as preconcepções de direito e justiça que vai aplicar a cada

caso jurídico e, nesse sentido, abstém-se de refletir sobre as vias de compreensão oriundas do

meio sociocultural onde atua ou sem refletir sobre a profusão de ideias que lhe poderiam

balizar a compreensão e, consequentemente, as decisões jurídicas.

O mito parte da experiência individual desse juiz, é uma elaboração mítica do eu

atuante através da própria subjetividade, ao invés de ser abstraído da experiência comum do

homem, como deve ser.516

A interação do juiz boca do juízo com a Instituição Poder Judiciário é essencialmente

acrítica, conformando-se o magistrado em cumprir as normas e diretrizes que lhe são

impostas, e atuando no sentido de cumprir as metas – por vezes burocráticas – que a

Instituição previamente pensou por ele.

Já Montesquieu alertava para que “é uma experiência eterna a de que todo homem

que tem poder é levado a abusar dele; e vai em frente até encontrar limites”. 517

No caso, o

limite do poder concedido através de um mito é tão largo quanto o são as fronteiras de

determinação do mito, ou seja, se a realidade mítica assim dispõe, o poder tende ao infinito. A

imprescindibilidade de desconstituição do pensamento mítico está na exata medida de ele,

mito, ter-se transmutado através de um automatismo de pensamento e ação.

516

Ernst Cassirer diz que “O mito é uma objetivação da experiência do homem, não da sua experiência

individual”. CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 63.

E, para além disso, há a exortação de Joseph Campbell sobre o fato de que “precisamos de mitos que

identifiquem o indivíduo, não com seu grupo regional, mas com o planeta”. CAMPBELL, Joseph. O poder do

mito. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990. p. 26. [Entrevistado por Bill Moyers;

organização Betty Sue Flowes] 517

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Do espírito das leis. Trad. de Roberto Leal Ferreira. São

Paulo: Martin Claret, 2010. p. 168.

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Na verdade, o automatismo é que deve ser descontruído. A realidade fenomênica e a

realidade do direito precisam vir à tona, substituindo o automatismo pra que o juiz possa

flertar com a extensão de sua compreensão desvelada. Transfigurar a compreensão mítica em

manifestação simulada da realidade é o que deve ser vedado.

6.7 MITIFICAR É COMO PERCEBER QUE A VIDA NÃO BASTA

É saudável a existência de um direito mítico, no sentido de um sistema jurídico onde

se tem histórias verdadeiras com base em crenças que podem ser distinguidas da realidade que

lhe dá suporte, razão de existir e justificativa de ser deste e não de outro modo. No entanto,

um direito simulado é extremamente danoso, ou pelo menos danoso em potência, porquanto a

realidade que dá suporte ao direito foi criada e recriada e já não apresenta origem nem

realidade, dado que é uma simulação.

O direito é essencialmente mítico e é assim que deve ser percebido. Diz Ernst

Cassirer que “com o mito o homem começa a aprender uma nova e estranha arte: a arte de

exprimir, e isso significa organizar, os seus instintos mais profundamente enraizados, as suas

esperanças e temores”. 518

No direito, instintos, esperanças e temores estão catalogados como

forma de busca pela segurança no convívio.

De outro lado, a mitificação do direito serve para representar uma realidade que dá

incremento à convivência harmônica entre pessoas e normas a serem observadas, incluindo-se

como elemento de percepção e assimilação dos comandos normativos através de processos

descritivos da vida.

Como afirma Fernando Pessoa, "A literatura, como toda a arte, é uma confissão de

que a vida não basta. Talhar a obra literária sobre as próprias formas do que não basta é ser

518

CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 64.

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impotente para substituir a vida".519

A mesma reflexão é exposta por Mario Vargas Llosa,

quando diz: “a vida real, a vida verdadeira, nunca foi nem será o bastante para colmatar os

desejos humanos”.520

Nessa linha da necessidade de ficção, também afirma Ivan Maciel ao

dizer que "Não é possível viver sem ficção, porque, afinal, a realidade nunca pode ser

percebida integralmente. [...] A ficção penetra mais fundo no cerne do real, porque está liberta

de preconceitos restritivos, criados em nome da objetividade e da certeza".521

Nesse sentido, percebe-se que “viver o presente é a condição de liberdade que,

paradoxalmente, aprisiona os seres humanos numa realidade limitada”.522

Daí que o

acréscimo vivencial torna-se necessário, até imprescindível, para transmudar da condição de

existência em de vivência.

Esse incremento, ou porção extra de uma nova e diferente realidade, faz o ser

humano abstrair-se da monotonização das rotinas do cotidiano e, portanto, do automatismo.

Será isso uma expansão dos limites da própria caverna, um sair da caverna para uma nova

realidade mais ampla do exterior.

Só que, londe de ser a descoberta do mundo das formas essenciais ou das formas

verdadeiras, como ocorre na caverna de Platão; será a expansão pura e simples dos limites do

que é atual, e as aparências de antes – as sombras nas paredes da caverna – transsubstanciam

em novas aparências – novas sombras de uma caverna mais abrangente.

519

PESSOA, Fernando. “Erostratus”. In: LIND, Georg Rudolf; COELHO, Jacinto do Prado (Orgs.). Páginas de

Estética e de Teoria Literárias. 2.ed. Lisboa: Ática, 1973. p. 269. Também localizado em: PESSOA, Fernando.

Impermanence - A mesquinhez. Arquivo Pessoa, Obra édita. Disponível em:

<http://arquivopessoa.net/textos/3582>. Acesso em: 22 dez. 2012. 520

Tradução livre de: “la vida real, la vida verdadera, nunca ha sido ni será bastante para colmar los deseos

humanos”. VARGAS LLOSA, Mario. La verdade de las mentiras. Buenos Aires: Alfaguara, 2009. p. 19. 521

MACIEL, Ivan. Terapia literária. Tribuna do Norte online, 22 fev. 2014. Disponível em:

<http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/terapia-literaria/275066>. Acesso em: 23 fev. 2014. 522

OLIVEIRA SEGUNDO, Jair Soares de. Direito como literatura. FIDES, Natal, v. 4, n. 2, jul./dez. 2013. p.

316. Disponível em: < http://www.revistafides.com/ojs/index.php/br/issue/view/8/showToc>. Acesso em: 15 jan.

2014.

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177

Pois, se “não há destino que não possa ser superado com o desprezo”, 523

como diz

Albert Camus, pode-se abstrair daí que no despreso dos limites impostos pela caverna é que

encontra-se a chave para a liberdade de vivenciar cavernas menos estreitas. Aí o homem é

superior ao próprio destino, mesmo que seu rosto esteja predestinado a confundir-se com a

rocha que ele empura sempre e sempre rumo ao topo.

6.8 CONSTITUIÇÃO MUDA SEM MUDAR DE IDENTIDADE

Um pensador clássico, para Francisco C. Weffort,524

é um pensador cujas ideias

permanecem, sobrevivem ao tempo vivencial do pensador e são atuais na época atual. Italo

Calvino diz que é um clássico "um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para

dizer",525

e daí que "toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a

primeira".526

Nesse sentido, o clássico é o veículo do pensamento que se mantém atual, das ideias

iluminadas com a aura de perenes, e que, mesmo assim, possuem a capacidade de

transubstanciarem-se em novas ideias, numa síntese de permanência e mudança, numa

indelével adaptação aos novos tempos que se sucedem.

523

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad. de Ari Roitman e Paulina Watch. 3.ed. Rio de Janeiro: BestBolso,

2013. p. 123. 524

Afirma Francisco C. Weffort: "Dizer que um pensador é um clássico significa dizer que suas ideias

permanecem. Significa dizer que suas ideias sobreviveram ao seu próprio tempo e, embora ressonâncias de um

passado distante, são recebidas por nós como parte constitutiva de nossa atualidade". WEFFORT, Francisco C.

(Org.). Os clássicos da política: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau, "o federalista". 13.ed. São

Paulo: Ática, 2000. v. 1. p. 8. 525

CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Trad. de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

[3ª reimpressão] p. 11. 526

CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Trad. de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

[3ª reimpressão] p. 11.

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178

Ora, o que é a Constituição senão um clássico? A ideia de substanciar uma

estabilidade527

na permanente adaptação ao tempo e à vivência cultural da sociedade é que

garante a vitalidade do clássico. Daí que, em termos de interpretação constitucional, persiste

a convicção de que o processo de mudanças que se convencionou chamar de

neoconstitucionalismo nenhuma ruptura apresenta: é antes um desenvolvimento ou evolução

ou reestruturação do constitucionalismo que é dinâmico.

É dizer, o constitucionalismo muda, mas, paradoxalmente, permanece o mesmo, ou,

noutras palavras, a mudança é constante, mas preserva uma identidade básica, e isso mesmo

quando o direito e a Constituição são tomados como mitos. 528

E de outra forma seria inconsequente, o que é o mesmo que dizer: “a dinâmica sem a

estática é desastrosa”, 529

com adverte Múcio Vilar Ribeiro Dantas, e daí que há entendimento

de que “o mundo precisa da normalidade, de vida tranquila, de paz e de sossego, para

continuar serenamente seu curso evolutivo”. 530

A Constituição não para no tempo da cultura e, assim como o ser humano é um ser

que precisa de portais – ou como diz Fernando Pessoa, “ser descontente é ser homem” 531

– a

Constituição, também ela, necessita de acessar novos lugares.

527

Como afirma Múcio Vilar Ribeiro Dantas, com base em Pound: “o Direito deve ser estável, e contudo não

pode permanecer imóvel”. DANTAS, Múcio Vilar Ribeiro. Introdução ao Direito: aspectos e reflexões sobre o

estudo do Direito. Natal: Nossa Editora, 1996. p. 36. 528

A respeito das transformações míticas, Claude Lévi-Strauss afirma: “Sabemos, com efeito, que os mitos se

transformam. Estas transformações, que se operam de uma variante à outra de um mesmo mito, de um mito a um

outro mito, de uma sociedade a uma outra sociedade com referência aos mesmos mitos ou a mitos diferentes,

afetam ora a armadura, ora o código, ora a mensagem do mito, mas sem que este deixe de existir como tal; elas

respeitam assim uma espécie de princípio de conservação da matéria mítica, em função do qual de qualquer mito

sempre poderá sair um outro mito”. LÉVI-STRAUSS, Claude. Como morrem os mitos. In: ______.

Antropologia estrutural dois. Trad. de Maria do Carmo Pandolfo et al. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976.

p. 261. E o mesmo autor complementa: “Entretanto, acontece às vezes que a integridade da fórmula primitiva se

altere no decorrer desse processo. Então, esta fórmula degenera ou, se preferirmos, progride, para aquém ou para

além do estágio em que os caracteres distintivos do mito permanecem ainda reconhecíveis, e onde este conserva

o que, na linguagem dos músicos, chamaríamos sua ‘compleição (“carrrure”)”. (cf. p. 261). 529

DANTAS, Múcio Vilar Ribeiro. Introdução ao Direito: aspectos e reflexões sobre o estudo do Direito.

Natal: Nossa Editora, 1996. p. 38. 530

DANTAS, Múcio Vilar Ribeiro. Introdução ao Direito: aspectos e reflexões sobre o estudo do Direito.

Natal: Nossa Editora, 1996. p. 38. 531

PESSOA, Fernando. O Quinto Império. In: ______. Mensagem. 18.ed. Lisboa: Ática, 1997. p. 85.

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179

É uma dinâmica que une mudança e permanência ante a necessidade de situar-se no

tempo histórico, mas sem precisar de anular-se no que possui de essencial. A previsão de

alteração através de emendas constitucionais no art. 60 da Constituição é o locus positivo

dessa abertura.

Nesse art. 60 é onde está o regramento das possibilidades e impossibilidades de

alteração da Constituição. A garantia da identidade constitucional está assegurada nas

cláusulas pétreas, uma vez que estas demarcam o especial modo de ser constitucional, os

caracteres distintivos que revelam o que é a Constituição. Mas também, há atualização da

Constituição via interpretação, o que é o caso da mutação constitucional.

6.9 METÁFORA DO RIO, A MUDANÇA E A PERMANÊNCIA

É bem difundida a ideia de que um mesmo homem não entra num mesmo rio duas

vezes quando se quer dar a noção de mudança, transformação. A origem dessas ideias sobre o

rio está nos fragmentos 12, 49a e 91 de Heráclito. 532

No entanto, essa interpretação da tese do homem que entra no rio é parcial, no

sentido de apresentar apenas um lado da significação inteira, a qual compreende não apenas a

transformação, mas também a permanência.

Em verdade, as teses sobre o homem que adentra no rio apontam para que (i) há um

fluxo ou mudança constante do homem e do rio e, somado a isto, (ii) indicam que a identidade

do homem e do rio são preservadas.

532

Para uma discussão sobre os fragmentos, com a discussão sobre a autenticidade, as formulações que possuem

e sua interpretação, cf.: FLAKSMAN, Ana. Aspectos da recepção de Heráclito por Platão. 2009. 197f. Tese

(Doutorado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio

de Janeiro: PUC-Rio, Rio de Janeiro, maio 2009. Cap. 5. Disponível em: <http://www.maxwell.lambda.ele.puc-

rio.br/Busca_etds.php?strSecao=resultado&nrSeq=14601@1>. Acesso em: 20 jul. 2013.

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Para demonstrar isto, basta dizer que tanto o homem quanto o rio mudam no decorrer

do tempo – o corpo se transforma, as ideias do homem evoluem, as águas do rio passam e

chegam outras águas – e, no entanto, o homem continua a ser uma pessoa individualizada,

com nome e história, e o rio continua a ser o elemento geográfico situado numa região e que

dispõe de um nome que o identifica.

Da mesma forma ocorre com o constitucionalismo. Mesmo que se admita, como é o

certo, uma passagem de um constitucionalismo de índole individual (séc. XIX) para um

constitucionalismo de caráter social (início até meados do séc. XX), e deste para um

constitucionalismo democrático (segunda metade do séc. XX em diante), mesmo assim, é

possível entrever mudança e identidade. De tempos em tempos, o constitucionalismo muda

sua essência, mas é perene nos caracteres que o identificam enquanto tal, como a separação de

poderes e a garantia de direitos.533

É claro que a Constituição não para no tempo da cultura e, como se disse linhas

atrás, assim como o ser humano é um ser que precisa de portais, a Constituição, também ela,

necessita de acessar novos lugares. Esse dinamismo conta com expressa referência positivada,

que é a previsão de alteração através de emendas constitucionais no art. 60 da Constituição.

E esse mesmo dispositivo vem com os limites à mudança que são, no caso brasileiro,

a garantia de permanência da forma federativa de Estado (inc. I), o voto direto, secreto,

universal e periódico (inc. II), a separação dos Poderes (inc. III), e os direitos e garantias

individuais (inc. IV).

533

É interessante perceber aqui que as disposições do art. 16 sobre a necessidade de separação de poderes e

garantia de direitos continuam válidas até hoje. Cf.: DECLARAÇÃO DE DIREITOS DO HOMEM E DO

CIDADÃO, DE 1789. Art. 16.º “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem

estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”. Biblioteca virtual de direitos humanos,

Universidade de São Paulo. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br>. Acesso em: 6 jun. 2013. Cf.

também: TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 8.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva,

2010. p. 85-86.

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Ao caráter dinâmico de mudança com permanência soma-se a nuança da

complexidade do fenômeno jurídico, o qual é bem descrito nas palavras de Múcio Vilar

Ribeiro Dantas:

O fenômeno jurídico é uma realidade complexa, múltipla, variada e polifacetária,

que encerra o real e o ideal, combina o material com o espiritual, o físico com o

mental. Precisamos compreendê-lo tal como ele é. Simplificá-lo, muitas vezes, é

diminuí-lo, reduzi-lo e amputá-lo.534

Observar esses fluxos de mudança e permanência que caracterizam a um só tempo as

complexidades do direito e da sociedade é uma forma de manter o juiz distante do

automatismo.

Propender para simplificações e reduções do fenômeno jurídico, nem que seja no

sentido de vedar seu necessário diálogo com a complexidade, denota um alheamento à

sensibilidade do perceber, do compreender, uma vez que concebe do direito menos do que ele

realmente é em sua rede de normas, símbolos e sentidos.

Vez em quando é preciso o juiz acessar novos lugares, mudar a rotina de percorrer e

trilhar sempre os mesmo caminhos. Isso evita o acostumar-se às paisagens, beneficia com o

desenvolver da capacidade de deslumbramento, e é aí, nesse momento, em que o juiz se

apercebe de seu locus diante das formas da existência, as novas formas de uma caverna mais

ampla o fazem sair do automatismo que conforma a visão e as ideias a um mundo

desnecessariamente estreito.

534

DANTAS, Múcio Vilar Ribeiro. Introdução ao Direito: aspectos e reflexões sobre o estudo do Direito.

Natal: Nossa Editora, 1996. p. 30.

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7 CONCLUSÃO

O constitucionalismo está em permanente evolução, num processo que alia duas

condições paradoxais identificadas nas nuanças de mudança e permanência. A um só tempo, o

constitucionalismo, a Constituição, a hermenêutica constitucional, passam por transformações

evolutivas com preservação dos seus núcleos de significação, ou seja, sem que suas essências

sejam afetadas.

A mudança decorre do fato de que o constitucionalismo, a Constituição e a

hermenêutica constitucional, evoluem no transcorrer do tempo e em vista das mudanças

histórico-culturais que influenciam na percepção e no direcionamento da normatividade

jurídica na sociedade.

Há também um estado de permanência no qual a essência do constitucionalismo, da

Constituição e da hermenêutica constituição é preservada, onde é possível identificar nos

caracteres do novo constitucionalismo os traços fundamentais do constitucionalismo anterior

no qual reside sua origem e em função do qual obtém identidade.

Por outro lado, em contraposição à essa ideia de convivência entre mudança e

permanência, há uma outra ideia que caracteriza o constitucionalismo do mundo de hoje como

um novo constitucionalismo, indicando, para tanto, que houve quebra paradigmática em

relação ao constitucionalismo anterior, ou seja, isso importa dizer que as bases estruturais

hodiernas seriam outras, diferentes em grande medida das bases do constitucionalismo

ultrapassado.

Essa ideia de viragem de paradigma, no entanto, está longe de contar apoio no

mundo dos fatos. Admitir ou pressupor que o constitucionalismo da primeira metade do

século XX foi superado será ideia exata tão somente no sentido de que há uma evolução no

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âmbito do constitucionalismo e que, evidentemente, o constitucionalismo da época atual tende

a ser um modelo em permanente melhoria.

É certo, na mesma medida, que os textos constitucionais e também a teoria da

interpretação ou hermenêutica constitucional evoluiu. Assim, o ânimo classificador de muitos

teóricos do direito tende a buscar uma palavra que abranja e signifique ou aponte para esse

conjunto de novas perspectivas.

A adoção do termo “neoconstitucionalismo”, e as variações “neoconstitucional” e

“interpretação neoconstitucional”, advém precisamente do intuito de caracterização ou

composição metodológica relativa ao degrau na escala evolutiva a que o constitucionalismo

alçou a partir da segunda metade do século XX.

Admitir o prefixo neo em adição ao constitucionalismo implica entrar num

simbolismo de novidade ou quebra de paradigmas de um antigo para um novo. Retratar esse

mais novo processo de mudanças no âmbito do constitucionalismo, e de novos olhares para a

hermenêutica constitucional, através de um termo que erroneamente indica ou aponta para que

houve ruptura paradigmática seria das soluções menos aconselhadas.

No entanto, no mundo do direito, principalmente na Europa continental, América

Latina e México, essa terminologia “neo” vem sendo utilizada desde a sua elaboração a partir

da proposição da professora Suzana Pozzolo e a tendência é que o termo

“neoconstitucionalismo” e suas variantes continuem a expandir seu nível de influência.

Pensar ou desenvolver uma proposta de terminologia que possa expressar de forma

mais adequada as mudanças no constitucionalismo é algo que vai além dos propósitos do

presente estudo, e, portanto, o estudo sobre o termo “primeconstitucionalismo” – que advém

tanto da elaboração conceitual tendo por base a origem da palavra “prime” na teoria dos

números na escola pitagórica quanto de uma perspectiva de estudo de direito e cinema – deve

ficar para ser apresentado em outro momento.

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Os aspectos terminológicos e conceituais são essenciais à delimitação do objeto de

estudo, principalmente quando a polissemia das palavras e expressões constitui forte atrativo

para as reflexões teóricas no âmbito da ciência específica.

Nesse sentido, a distinção entre “interpretação constitucional” e “interpretação da

Constituição” contribui para especificar o objeto de estudo. Por interpretação constitucional

entende-se a interpretação a partir e como base na Constituição; por interpretação da

Constituição, compreende-se a interpretação da própria Constituição, ou seja, o objeto de

estudo está na própria Constituição, nos seus comandos normativos.

Há defensores de uma interpretação especificamente constitucional, notadamente no

sentido de que a Constituição apresenta aspectos qualitativos distintos das demais normas

jurídicas e, assim, a sua interpretação precisaria levar em conta peculiaridades tais como sua

força normativa e seu caráter eminentemente axiológico. Em contraposição, há os que

defendem que não há motivos para uma repartição da hermenêutica jurídica, uma vez que

interpretar é uma atitude compreensiva da busca de sentidos para aplicação do direito, e não

um estatuto epistemológico passível de compartimentação. Nesse sentido, especificidade da

interpretação constitucional inexiste.

Na importação da teoria neoconstitucional – e, em verdade, são diversas e

diversificadas doutrinas –, a seara jurídica logo tratou de cercar essa síntese de pós-

positivismo de um caráter mítico. Deixou-se de lado a preocupação com os filtros de

brasilidade, a necessária filtragem do que é adequado e relevante ao ordenamento brasileiro;

optou-se pelo discurso de saudação ao novo, pela efusão de graças ao messias teorético

redentor das limitações da “letra fria da lei” do positivismo.

Resulta que a teoria importada afasta-se das reflexões teóricas para imergir nos

discursos de aclamação. Nesse ambiente de felicidade, há teses de que o direito brasileiro

torna-se principiológio a partir da Constituição Federal de 1988, ou que a Constituição

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somente contou com estatuto de norma suprema em 1988, ou, ainda, que 1988 é o marco de

uma nova hermenêutica constitucional no Brasil.

A crítica do direito neoconstitucional, de sua vez, destitui as bases atribuídas ao

neoconstitucionalismo como paradigma, e estabelece que tanto a Constituição detém status

normativo há, pelo menos, dois séculos; quanto a teorização dos princípios como norte

axiológico, mesmo no Brasil, vem desde o século XIX; além do que, a virada temporalmente

identificada no pós-Segunda Guerra Mundial, é equívoca, uma vez que o direito positivo em

ambiente ditatorial falece e é afastado em virtude da vontade do ditador.

No momento que essa pretensa viragem interpretativa dá-se no pós-Segunda Guerra

Mundial, o que de fato envolvia a questão de planos de realidade era o processo de

mitificação identificado no surgimento dos mitos políticos modernos. Tanto o nazismo quanto

o fascismo detinham como elemento de base a estrutura mítica que os legitimava diante da

crença – mesmo que imposta – nos regimes totalitários que instauraram.

Quando se diz que o (mito do) neoconstitucionalismo sinaliza para a superação do

modelo juspositivista, o argumento que serve de fio condutor está no nível de degradação

humana ao qual são passíveis de estarem submetidas as sociedades que optam pela obediência

irrestrita ao direito posto. É nesse sentido de precaução que, na estruturação do mito

neoconstitucional, o senso comum teórico aponta para um movimento de adesão ao pós-

positivismo.

É certo que a ascensão e queda dos regimes totalitários e o papel de justificação que

o direito exerceu em tais sociedades devem estar no cerne das reflexões que prezam pelas

liberdades individuais, pelo exercício da cidadania, pelo regime democrático e pela proteção

dos direitos humanos. No entanto, em ambiente de totalitarismo o direito é o que menos

importa ao ditador, e toda e qualquer ação como aparência de ser justificada no direito é, em

verdade, justificada única e tão somente no poder totalitário. Assim, o genocídio produzido

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pelo nazismo da Alemanha de Adolf Hitler antes de ser uma culpa do direito posto, é sim da

inteira responsabilidade do regime totalitário que impunha uma farsa de modelo jurídico.

No direito contemporâneo, a Constituição é documento normativo superior do Estado

Democrático de Direito e detém a característica de ser o início o fim de toda interpretação,

quer seja interpretação da Constituição, interpretação constitucional ou interpretação de

normas infraconstitucionais. Nesse sentido, a Constituição jurídica informa o percurso vital

das normas, desde o nascimento até o fim do pertencimento ao sistema jurídico. Esse carácter

nasce com o controle de constitucionalidade das leis, e vem em permanente evolução.

Ocorre que a Constituição e o direito como um todo pertencem a um sistema de

pensamento com função instrumental regulativa em benefício da sociedade, ou seja, todo o

ordenamento jurídico tem sua virtude de existência na proteção jurídica da livre e harmônica

convivência dos cidadãos entre si e nas suas relações com o Estado.

No desenvolvimento e estabelecimento de toda teoria do direito, a concepção de que

este serve à sociedade constitui ponto nuclear. Atribuir a uma reflexão jurídica, qualquer que

seja, caracteres de autossuficiência desprovidos de uma função instrumental em relação ao

elemento humano representa pensamento desvirtuado do único sentido do direito.

A lógica das máquinas, a lógica fria e dura alheia às concepções de humanismo, é,

nesse sentido, um complexo de ideias carentes de capacidade para levar em conta o caráter

humano próprio que deve ser preciso nas elaborações jurídicas.

Quando das especulações sobre automatismo, um dos aspectos que salta em

evidência é a correlação entre o agir humano reflexivo e o agir de forma automática, no

sentido de ação mecânica, maquinal, robótica. Daí uma primeira constatação de que o

automatismo para o direito deixa de ser bem-vindo.

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Tratar dos automatismos implica entrar na seara das percepções ou construções de

realidades, de assimilações ou elaborações de partículas de mundos vivenciais, e daí a

temática de planos distintos de realidades.

O conceito de espetáculo de Debord, a alegoria da caverna de Platão, o demônio

enganador de Descartes, a máquina de experiências de Nozick, e a noção de simulacro e

simulação de Baudrillard expandem os sentidos da percepção para que o juiz atente que a

realidade não é uma só, e que ele, eventualmente, possa estar transitando numa realidade

diversa da realidade do direito e do processo.

A partir daí, pode-se perceber a realidade do direito como um plano mitificado, onde

numa análise estrutural é possível distinguir, de forma mais ampla, entre mitos com função de

descrever realidades e mitos no sentido de fábula, invenção, ficção ou engodo.

O limite entre o real e o aparente induz a realidade do direito a desvelar o modo

como é percebida a sua origem e realidade para fins de utilização pelo intérprete

constitucional. Uma das nuanças dos mitos está na representação de uma construção social

compartilhada que descreve a realidade cultural circundante e, neste sentido, são histórias

com fundamento em verdades que merecem confiança, e é esta nuança que será desenvolvida

como perspectiva benéfica. A própria constituição, na medida em que é núcleo do direito

contemporâneo, é ela própria uma construção mítica.

Dois dos mitos que permeiam o imaginário dos juristas na Era de pós-positivismo

são os mitos da força normativa da Constituição e o do sentimento constitucional. Pensar que

a ideia de força normativa da Constituição, ou juridicidade constitucional, tem início com o

texto de Konrad Hesse implica numa aceitação acrítica do mito em detrimento da construção

constitucional que vem já desde o século XVIII; e isso vale igualmente para a ideia de

sentimento constitucional.

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De toda forma, os dois mitos servem como pilares de cadeias argumentativas que, em

dado momento, servem ao direito na função de resguardo da Constituição. A ressalva está em

que tanto a força normativa da Constituição quanto o sentimento constitucional devem ser

compreendidos através do pensamento crítico, e não sob o manto da dócil crença mítica.

A evolução e o desenvolvimento das ideias em todos os campos das ciências sociais

é uma constante, no sentido de uma dinâmica que tende a sucessivas mudanças em todos os

sentidos que a palavra “transformação” comporta. Bem assim, a reflexão filosófica mostra-se

essencial no deslinde de nuanças complexas e, nesse sentido, auxilia na elaboração das

perspectivas críticas ao desenvolvimento e evolução das ciências.

Um ponto de afirmação disso está na crença em torno do modelo de juiz cidadão,

como ser dotado de especial capacidade para ministrar justiça, e também as teorias quanto a

modelos de juízes mitológicos, todos, de uma ou outra forma, como elucidações de um

especial modo de ver ou conceber o direito.

No caso do neoconstitucionalismo, portanto, o que se propõe nada mais é que a

superação das consequências de um mito político moderno (nazismo, fascismo ou outro) por

intermédio de um mito jurídico: o neoconstitucional.

Caso o neoconstitucionalismo limite-se a apresentar uma visão messiânica, em nada

contribui para assegurar um lugar de abrigo e respeito a valores humanos. Neste sentido, a

atuação dos intérpretes e aplicadores do direito deve estar conectada com o mundo de hoje,

deve mirar o luminar das novas gerações, mas também precisa voltar o olhar para a história.

Sobressai em importância definir para o direito um norte axiológico de promoção do

humanismo e dinamização da normatividade para que seja mais viva e próxima ao cotidiano

concreto das circunstâncias de vida das pessoas. E a gênese está no desenvolvimento de

atividades da interpretação constitucional sob a perspectiva de uma racionalidade mais

humana e adequada aos sentimentos de justiça e cidadania.

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Daí ser imprescindível, no Estado Democrático de Direito, que os percursos e

itinerários indicados pelo pós-positivismo, antes serem tomados como revelação da verdade,

passem por análise de compatibilidade com o ordenamento jurídico no intuito de se

demonstrar o nível de racionalidade normativa dessa novel teoria.

Um panorama elucidativo da hermenêutica constitucional do mundo de hoje aponta

para um dilema entre a expansão dos direitos através de interpretações principiológicas que

aumentam o nível de vaguesa e indeterminação do direito, de um lado; e, de outro, a

necessidade de se prover um controle de racionalidade ao sistema. Mesmo que a época

contemporânea seja de deslumbramento com as possibilidades normativo-decisivas dos

princípios, a doutrina crítica já inicia a construção de novas bases teóricas para afastar a

aceitação irrefletida das ideias advindas do mito neoconstitucional.

Conquanto o direito aparente ser eficiente na descrição das realidades normativas, a

conexão do mundo jurídico com os demais ramos do pensamento humano frutifica uma ótica

de análise mais densa em benefício das necessidades da sociedade complexa do mundo de

hoje. A troca de saberes na descrição do âmbito normativo precisa ser incentivada como

fórmula de combate aos automatismos e seus riscos.

O Constitucionalismo Contemporâneo, ao que parece, vai além do limite prudencial

que deve ser característica do direito. A crescente desconfiança no legislador e a tendência à

relativização ou mesmo afastamento das regras democráticas aprovadas no parlamento é uma

característica que contribui ao elevado índice de indeterminação jurídica dos tempos atuais.

Também as metodologias da interpretação do direito tendem, mais hora menos hora, a

estabilizar-se. A questão que se impõe é a de saber quais rumos essa normalidade, ou nova

normalidade, vai tomar.

Em outras palavras, o percurso evolutivo do direito na segunda metade do século XX

denota tratar-se de uma readequação, em verdade um desenvolvimento natural do direito ante

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os estímulos externos que o conduzem a se adequar de tempos em tempos, ou seja, a nova

readequação deflui das circunstâncias histórico-culturais, mas sem que isto importe em cisão

paradigmática ou uma superação necessária do constitucionalismo até então.

Reflexões filosóficas quanto às noções de realidade, estrutura do mito, simulacro e

simulação, contribuem para uma explicitação das nuanças da questão do automatismo judicial

e ajudam a evitar a difusão da figura do juiz boca do juízo, que atua em automatismo segundo

as próprias convicções de justiça (juízo solipcista) ou de acordo com os ditames de justiça

impostos pelos fóruns e tribunais (juízo institucional).

Na ausência da percepção de que seu ambiente de trabalho é permeado por mitos

jurídicos e automatismos, o magistrado tanto pode transitar num plano de realidade jurídica

diversa da constitucional, uma simulação de realidade que vulnera o ordenamento jurídico ao

afastar aprioristicamente o direito posto; quanto pode atuar como numa esteira de produção

fordeana do direito, sem parar para pensar, e apertando parafusos com uma chave inglesa

imaginária ao modo da personagem de Chaplin no filme “Tempos Modernos”.

Na Constituição Cidadã de 1988 há um amplo espectro de direitos fundamentais cujo

estudo é um dever de cidadania, e para compreender a essência deles, seja hoje ou em

qualquer época, é relevante o tão só interesse nas liberdades dos cidadãos. Mas as liberdades

possuem limites. Uma eficiente implementação legislativa ou uma adequada interpretação

constitucional é que justifica a delimitação dos espaços de liberdades fundamentais na

convivência intersubjetiva.

De nada adianta o discurso fácil do apelo à força normativa da Constituição nem ao

sentimento constitucional: o respeito e a reverência à Constituição e ao ordenamento jurídico

é o que se impõe.

Ao direito e à sociedade o que importa é que o juiz aperceba-se da realidade

histórico-cultural no seu entorno e profira decisões mediante reflexão com base no

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ordenamento jurídico, sem subserviência a mitos e automatismos, mas sim com plena

reverência e respeito à Constituição.

Sem isso, mesmo que o juiz esteja imerso na realidade fictícia de um mito criado

pelo próprio Poder Judiciário, haverá prejuízo ao juiz, que perde sua autonomia de

pensamento; ao Judiciário, que perde em autenticidade e falha na sua função; ao cidadão, que

fica ao desamparo da Constituição por capricho antidemocrático de quem a deveria cumprir.

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