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Usos e Nomes Da Cidade - Maria Alice
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CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM – MAIO DE 2009
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CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Nomes e usos da cidade. Boletim CEDES [on-line], Rio de
Janeiro, maio de 2009, pp. 03-08. Acessado em: (...) Disponível em: http://cedes.iuperj.br. ISSN: 1982-
1522.
NOMES E USOS DA CIDADE
Maria Alice Rezende de Carvalho1
Recentemente, um considerável número de estudos sobre a cidade tem
destacado a dificuldade de se entender a experiência urbana contemporânea a partir
do modelo da cidade industrial de massa. Como se sabe, a chamada revolução
industrial de fins do século XVIII forçou a concentração populacional em um mesmo
território, segmentando socialmente e diferenciando funcionalmente espaços e
habitantes. Nascia a cidade especificamente moderna.
Esse modelo de cidade, contudo, não foi o resultado “natural” da crise das
sociedades tradicionais e do nascimento das fábricas. Sua emergência, ao contrário,
era imprevisível e decorreu do embate de agências intelectuais e políticas muito
poderosas, representadas por filantropos, literatos, socialistas, autoridades sanitárias e
policiais, lideranças operárias e empresariais, educadores e religiosos.
Tal debate foi crucial à modelagem não apenas da nova cidade, como da própria
era moderna. Em primeiro lugar, porque os argumentos mobilizados por aqueles atores
deslocaram hábitos mentais antigos e estabeleceram explicações racionais para as
ocorrências. Mas, sobretudo, porque, em o fazendo, formularam princípios prescritivos
quanto à ordem que a sociedade deveria assumir. De modo que analítica e
moralmente, ou seja, tanto no plano cognitivo, quanto no plano normativo, forjaram um
modelo de cidade que se impôs ao mundo e que, ao avançar, apagou os rastros da sua
invenção. De contingente, portanto, passou a “natural”, prescindindo de qualquer fonte
de justificação. A cidade, enfim, era a evidência da natureza utilitária da maioria da
humanidade e da sua capacidade de associação para realização pacífica de seus
interesses. Os grandes boulevards dignificarão essa representação do utilitarismo.
Foi apenas nas últimas décadas do século XX, quando os pressupostos da 1 Professora do Departamento de Sociologia da PUC-Rio, membro da coordenação do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES/IUPERJ) e Presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), biênio 2009-2010.
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modernidade começaram a ser questionados, que os artefatos modernos conheceram
um processo de gradativa “desnaturalização” – dentre os quais, as cidades. A partir
daí, erigiram-se duas grandes vertentes de discussão sobre as vicissitudes
contemporâneas do urbano. São, em parte, faces da mesma moeda: de um lado, a
vertente que questiona teoricamente a noção de cidade, tendo em vista sua afinidade
genética com outras noções em declínio, como a de trabalho ou mesmo a de planta
fabril, em uma economia dita informacional. Nesse caso, opera-se com a crítica
disciplinar sistemática, mobilizando-se a teoria sociológica para evidenciar, por
exemplo, os limites heurísticos do conceito de cidade. Há, também nesse flanco, uma
variante menos sistemática e mais fenomenológica, que comparece, por exemplo, no
trabalho recente de Mike Daves, intitulado “Planeta Favela”. Nele o rendimento
heurístico da noção de cidade é questionado pela saturação de retratos empíricos da
sua falência vis-à-vis a eclosão planetária de favelas.
A outra vertente é a que toma a história como um instrumento crítico, de modo a
descortinar formas concorrentes de representação do mesmo fenômeno, que, contudo,
permaneceram ocultadas pela hegemonia de certa configuração.
No que se refere especificamente à noção de cidade industrial de massa, a
crítica histórica parece ser mais promissora, uma vez que a Sociologia, como disciplina,
é parte do problema. Foi a Sociologia, afinal, que afirmou a universalidade daquele tipo
de cidade, de tal modo que a ela se poderá chamar de “cidade sociológica”.
Assim, para a finalidade desse texto, será importante considerar que a cidade
que conhecemos, aquela a que nos habituamos e que, inclusive, tendemos a
considerar “natural”, é uma forma de pouco mais de 200 anos. E que a ela estão
associados os signos da economia, da coordenação que o mercado imprime à vida
social. Antes disso, porém, a experiência urbana não foi desimportante. Ao contrário.
No Ocidente, pelo menos a partir do século XIV, algumas cidades se destacaram por
sua magnificência, em um contexto em que o mercado era bem menos saliente do que
a política, do que o exercício do poder. Portanto, uma das possibilidades de relativizar
a onipresença da “cidade sociológica” é reafirmar a importância contemporânea da
política, ou melhor, da cidade como espaço da política, na expectativa de que uma
nova disputa entre representações, a exemplo da que ocorreu no início do século XIX,
possa ampliar nosso repertório analítico e nosso horizonte de experiências.
O texto, a seguir, trata de representações acerca das cidades brasileiras.
Considera que o tratamento sociológico conferido a elas, sendo também uma narrativa
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em competição, é muitíssimo recente e, de certo ponto de vista, “despolitizador” do
debate que envolveu, desde a origem, o mundo urbano brasileiro. Em outras palavras,
a academização do conhecimento acerca das nossas cidades retraiu – ao que parece,
e a despeito de suas intenções – o campo de disputa envolvido na caracterização de
suas potencialidades. O tema talvez valha uma história.
***
A cidade colonial brasileira nasceu como entreposto comercial e centro
administrativo, subtraída, portanto, das fricções políticas que eram inerentes às
formações urbanas do renascimento europeu. Aqui estiveram originalmente ausentes
as disputas entre “graúdos” e “miúdos” que marcaram a Florença renascentista, assim
como Paris, Reims ou Castres, onde o termo “menus” e a situação tributária a que
aludia foram fontes de violentas revoltas.
De fato, à diferença de outras regiões européias, o chamado renascimento
português, não conhecendo descontinuidades profundas em relação ao mundo feudal,
manteve as cidades quietas. E a nova estratificação ligada à economia, à propriedade
urbana, ao dinheiro, à influência no espaço citadino combinou-se mais docilmente ao
princípio da hierarquia que presidira o período precedente. O próprio império
ultramarino dos séculos XV e XVI jogou papel relevante na conformação desse
quietismo urbano, pois pôde manter inalterada a trama de direitos corporativos, ao
tempo em que assegurava ao rei luso novos territórios materiais e simbólicos,
juridicamente desimpedidos para o pleno exercício do seu poder.
Nesse império ultramarino, como se sabe, as colônias africanas perdurarão
como feitorias, com a função quase exclusiva de suprir de escravos as lavouras
americanas. As vilas brasileiras, porém, conheceram crescente complexificação social
e, logo, política, do que dão testemunho as rebeliões nativistas do século XVIII e início
do século XIX, que acabaram por embalar o projeto de parte da elite metropolitana de
“emancipar” o Brasil e conferir-lhe posição idêntica a de Portugal no âmbito de um
império federado. Mas o traslado da Coroa portuguesa e o subseqüente rompimento
com as Cortes de Lisboa, em 1822, impuseram dinâmica política diversa. O Brasil
tornou-se independente, preservando, no entanto, o arranjo econômico-social do
mundo agrário, na expectativa de que, entre outras coisas, a expansão daquela ordem
impusesse contenção à buliçosa experiência citadina brasileira.
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Pode-se dizer, portanto, que durante o século XIX, nossas cidades foram alvo de
desdobrados cuidados das autoridades metropolitanas e, após a independência, tema
relevantíssimo do debate entre antagonistas políticos da hora (partido português vs.
partido brasileiro; luzias vs. saquaremas; republicanos vs. monarquistas). Assim, a
despeito de sua anêmica conformação política original, o mundo urbano brasileiro, tão
logo se desfez do quietismo português, revelou-se um ambiente de tensões e animado
por disputas políticas.
Nas regiões economicamente dinâmicas, como foram, em períodos diversos,
Minas Gerais, Pernambuco e Bahia, por exemplo, tem-se a célere constituição de um
estrato de funcionários da justiça e ordem pública – sintoma do crescente enraizamento
populacional nas cidades e do esforço em estender o alcance da Coroa até lá,
contrariando, muitas vezes, interesses das classes senhoriais locais. As cidades e vilas
mineiras ilustram esse processo, assim como aquelas, menos lembradas, do
Recôncavo baiano. Nas demais regiões, sobretudo as do norte ou do “Brasil de dentro”,
a que se costuma atribuir a inexistência de vestígios de uma cultura de fixação, ainda lá
se destaca o ambiente da urbe, embora mais movediço, cujo soerguimento e colapso
tendiam a acompanhar as rotas econômicas mais promissoras.
De qualquer modo, no começo do século XX, a literatura que pretendeu
entender as grandes linhas geratrizes do Brasil, ecoou essas percepções
remanescentes do Império e tomou a cidade como embrião do corpo político nacional,
muito antes de apontá-la como vórtice da evolução econômica e praça de negócios.
Capistrano de Abreu, ao narrar a saga dos caboclos brasileiros na confluência
das três bacias hidrográficas do país, Euclides da Cunha, em seus estudos sobre a
Amazônia, e Oliveira Vianna, no clássico “Populações Meridionais do Brasil”, para
mencionar apenas alguns exemplos dessa floração de intérpretes brasileiros, têm, em
comum, o diagnóstico de um povo livre, que vaga ainda sem forma, matéria bruta do
Estado-nação e da embrionária autonomia jurisdicional da cidade vis-à-vis a grande
propriedade. Tratava-se, evidentemente, de uma representação metafórica da
potencialidade política do povo, para quem a conquista da cidade seria o momento de
encontro com o Estado e não com o mercado, como alertava Oliveira Vianna no
contexto liberalizante da República Velha.
O tema da precedência da política, assumido pelo ensaísmo brasileiro dos anos
1910 e 1920, conheceu renovação nos estudos de antropólogos americanos
convidados a lecionar na Universidade de São Paulo durante a década de 1930,
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sobretudo Emílio Willems, autor de “Uma Vila Brasileira”, e Marvin Harris, com o seu
“Town and Country in Brazil”. Suas pesquisas levavam em consideração, basicamente,
traços culturais de pequenas comunidades brasileiras, nas quais buscavam
surpreender a política como ethos, isto é, como um hábito da vida coletiva, ainda pouco
tocada pelas formas impessoais de coordenação social. Destacaram, assim, padrões
tradicionais de comportamento, principalmente a centralidade da família no
concernente à definição de práticas e ideais. Sua expectativa era a de acompanhar o
início de um processo de individualização e secularização, de destruição, enfim, da
“estrutura de laços coletivistas” em prol de “certo número de ações de ênfase mais
individualista”, como escreveu Willems.
Os resultados dessas pesquisas começaram a ser publicados nas décadas de
1940 e 1950, incorporando aspectos conceituais e metodológicos que já continham, em
alguma medida, uma crítica à teoria da modernização e à crença em uma destruição
completa dos padrões retrógados da mentalidade a partir do desenvolvimento
mercantil. Se observado, por exemplo, o trabalho de Antônio Cândido – “Parceiros do
Rio Bonito” –, ver-se-á que a análise de um pequeno vilarejo brasileiro serve, ali, ao
propósito de apontar um continuum modernizador, que não permitia a mobilização do
repertório conceitual do folk e também não avalizava crenças na completa superação
do tradicional.
De forma similar, os estudos mineiros sobre cidades renovariam o diagnóstico
da precedência da política. Minas Gerais, por aquela época, se definiria pelos estudos
políticos de pequenas cidades brasileiras, embora, lá, o espaço privilegiado para essa
reflexão não tenha sido a universidade, como em São Paulo, mas a Revista Brasileira
de Estudos Políticos, cujos autores foram os intelectuais reunidos em torno do jurista
Orlando de Carvalho, seu editor. Tal fato parece ter determinado a aproximação
daquele círculo intelectual com a tradição municipalista, distanciando-se da visada
antropológica que presidia a pesquisa urbana em São Paulo. Mais tarde, quando a
revista se abriu à influência da literatura norte-americana, seria a sociologia política dos
partidos e eleições que dominaria o campo de estudos urbanos mineiros, refreando,
mais uma vez, o viés etnográfico que costumava cercar aquele objeto.
Em suma, encerrada a primeira metade do século XX – o país mergulhado no
esforço desenvolvimentista do período JK – cidade e política eram, ainda, termos
indissociáveis no Brasil. É, portanto, muito recente, entre nós, a emergência da cidade
“sociológica”, isto é, de uma noção de cidade naturalizada e impermeável a outras
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formas de experimentação do urbano. Principalmente àquelas que a tomam como um
espaço de associação, autonomia e inovação, e não apenas de individuação,
dependência e rotina. De fato, no Brasil, a cidade sociológica, por excelência, é a
cidade de São Paulo, onde o paralelismo dos fenômenos da urbanização e da
industrialização tende a acompanhar, embora com a distância temporal de um século,
o padrão europeu. E onde, de forma mais contundente, a sociologia disciplinar disputou
com a política a questão da cidade.