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    Um programa de Histria num contexto de mudanas sociopoltcas e paradigmticas: a voz dos professores*Lana Mara de Castro Siman**

    Discutem-se resultados de uma pesquisa que visou explicar as reaes dos professores em face do programa de Histria de Minas Gerais de 1987 baseado no paradigma marxista de interpretao da Histria e identificar a direo das mudanas que emergem destas reaes: ruptura com o paradigma marxista? Concluiu-se que os professores viviam um processo de transio paradigmtica, no qual procuravam con-ciliar o paradigma marxista e a Nova Histria, articulado s mudanas sociopolticas que se produziam na sociedade brasileira e no contexto internacional.Palavras-chave: Ensino de Histria Mudanas sociopolticas Mudanas curri-culares

    A History curriculum in a context of socio-political and paradigmatic chan-ges: the teachers voicesThis article presents the results of a research that intends to explain the paradoxical reactions of teachers to the new History program based on the marxist paradigm and

    * Artigo recebido em abril de 2006 e aprovado para publicao em junho de 2006.** Professora do Programa de Ps-graduao em Educao da UFMG e Assessora Pedaggica do Centro de Formao de Professores em Cincias Humanas (CEFOR, PUC-MINAS). E-mail: [email protected]. Neste artigo, encontram-se dados e reflexes extradas de nossa tese de doutorado, apresentada Universidade Laval, em junho de 1997, sob o ttulo Chan-gement paradigmatique et enjeux sociopolitiques en enseignement de lhistoire; le cas du programme dhistoire du Minas Gerais (Brsil) et les ractions paradoxales des ensignants. Orientao: Prof. Christian Laville.

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    to identify the changes emerging from these reactions. Our research has lead us to the conclusion that teachers were in process of paradigms changing, trying to adjust the Marxist view with that of the New History and taking into account, at the same time, the political and social changes prevailing in the brazilian society.Keywords: History teaching Socio-political changes Curriculum changes

    Un programme dhistoire dans un contexte de changements sociopolitiques et paradigmatiques: la voix des enseignantsOn discute ici les rsultats dune recherche dont le but fut dexpliquer les ractions des enseignants dhistoire face un programme - fond sur le paradigme marxiste - et identifier la direction des changements qui mergent de ces ractions : doit-on y voir une rupture avec le paradigme marxiste ? On a conclut que les enseignants exprimentent un processus de transition de paradigme, cherchant concilier le paradigme marxiste avec celui de la Nouvelle Histoire. Cela se fait en conjonction avec les enjeux sociopolitiques qui se produisent dans la socit brsilienne.Mots-clefs: Enseignement dhistoire Hangements sociopolitiques Changement de programme

    A Histria, mais do que as outras disciplinas presentes nos currculos escolares, um campo privilegiado de embates sociopolticos. Laville assinalou que isto se deve provavelmente ao fato de que (...) ns continuamos a lhe atribuir uma grande importncia para constituir as representaes polticas e sociais, a memria histrica e a identidade dos cidados.1 Poderamos multi-plicar os exemplos sobre os usos da Histria e da memria histrica para dirigir as condutas em diferentes sociedades atravs do tempo, e mostrar sobretudo, como insiste Laville, que este papel formador das conscincias um papel que se disputa vigorosamente nas nossas sociedades, sem que nem sempre fique claro o que est em jogo, assim como as contradies e os paradoxos presentes.2 Este bem o nosso caso, quando os anos 1970, para inmeros professores de Histria, parecem ter-se constiudo na virada para a tomada de conscincia das disputas poltco-ideolgicas em torno do ensino de Histria. Do combate contra as medidas do regime militar afetando o ensino da Histria, o movimento de

    1 Christian Laville, Lhistoire entre la pdagogie et lhistoriographie. Rflexions en marge du colloque La Rvolution franaise enseigne dans le monde, Internationale schulbuchforschung, n 14, 1992, p. 407-414. Traduo livre do francs.2 Ibid., p. 408.

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    renovao deste ensino3 passa crtica da memria histrica oficial e do ensino tradicional, para, em seguida, oferecer, nos anos 1980, novas proposies con-ceituais e metodolgicas para a Histria e o seu ensino. Nos anos 1990-2000, situando-nos num contexto democrtico, o ensino de Histria quer responder aos objetivos do jogo democrtico, que se distancia da perspectiva da frente de combate dos anos 1970 e 1980 e abraa novas perspectivas historiogrficas e metodolgicas, oriundas dos anos 1990.

    Neste artigo, temos por objetivo apresentar o essencial de uma pesquisa que realizamos junto a professores da rede municipal de ensino de Belo Ho-rizonte sobre seus posicionamentos diante do Programa de Histria de 1986 em vigor da segunda metade dos anos 1980 segunda metade dos anos 1990 e de cujo processo de elaborao haviam participado. Quase vinte anos se passaram entre a elaborao deste programa e os atuais programas de Minas Gerais, tambm elaborados com a participao de professores. Ter vivenciado as duas experincias, a primeira na condio de pesquisadora e a segunda na condio de coordenadora da reforma,4 nos leva a retomar as concluses a que pudemos chegar por meio da referida pesquisa e nos perguntar: o que teria emergido poca (metade dos anos 1990) como tendncia dominante de mudana que se efetivaria nos anos 2000? Se no, por que razes? Quais os novos desafios colocados para o ensino de Histria no contexto sociopoltico

    3 Na ocasio da elaborao de nossa tese, para construir uma interpretao da evoluo do movimento de renovao do ensino de Histria e dos embates sociopolticos em torno de suas reformas, ns utilizamos, dentre outras fontes, a Revista Brasileira de Histria e a Revista da Associao Nacional dos Professores Universitrios de Histria (ANPUH), ANAIS dos Encon-tros Nacionais: Perspectivas do Ensino da Histria e Pesquisadores do Ensino de Histria. Recenseamos tambm outros estudos e, dentre estes, destacamos: Circe M. Bittencourt, Os confrontos de uma disciplina escolar: da histria sagrada histria profana, Revista Brasileira de Histria, vol. 13, n 26 (1993), p. 193-221. Cadernos Cedes, n 10 (1985), 71 p.; Da R. Fene-lon, A questo dos estudos sociais. Cadernos Cedes, n 10 (1984), p. 11-23; Conceio Cabrini et al. O ensino de histria reviso urgente, So Paulo, Brasiliense, 1986; Cadernos Cedes, n 10 (1985); Francisco Iglesias, A histria falsificada, Cadernos de debate, n 1, 1976, p. 21-23; Selva G. Fonseca, Caminhos da histria ensinada, So Paulo, Papirus, 1993; Elza Nadai, A escola pblica contempornea: os currculos oficiais de histria, Revista Brasileira de Histria, n 6, 1985, p. 99-116.4 Durante o ano de 2004, a Secretaria do Estado de Educao de Minas Gerais desenvolveu, com a participao de professores, um projeto de mudana curricular de todas as disciplinas do ensino fundamental e mdio, visando introduzir inovaes nas concepes e nas prticas dos professores e formular um Currculo Bsico Comum para todo o Estado de Minas Gerais. Ver SECRETARIA DO ESTADO DE EDUCAO DE MINAS GERAIS, Proposta curricular de Histria para o ensino fundamental, 2004, e SECRETARIA DO ESTADO DE EDUCAO DE MINAS GERAIS, Proposta curricular de Histria para o ensino mdio.

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    atual? Em torno de que aspectos se situam as tenses, as disputas, os dilemas e os avanos? Estas questes tm orientado uma nova pesquisa que estamos realizando, e convidamos os leitores a t-las em mente, quando da leitura do presente trabalho, considerando, evidentemente, as especificidades da reali-dade do estado da federao brasileira ao qual pertencem.

    A pesquisa e o seu contexto

    Em 1984, no contexto da redemocratizao da vida poltica brasileira, os professores de Histria puderam apresentar, na grande maioria dos estados da federao, seus projetos de mudana de programa. No estado de Minas Gerais, foi apresentado um projeto de programa de inspirao francamente marxista, contra a viso que prevalecia anteriormente, positivista e conservadora, e que parecia responder, ento, s aspiraes e s lutas dos professores.5

    Contudo, quando foi posto em prtica, trs anos mais tarde, o pro-grama recebeu severas crticas dos setores liberais e conservadores da so-ciedade e, mais surpreendentemente, dos prprios professores envolvidos no seu desenvolvimento.

    Neste estudo, buscamos compreender as reaes dos professores e, ao mesmo tempo, descobrir a direo das mudanas desejadas, manifestas nestas

    5 O programa de Histria de Minas Gerais de 1987, apoiado no paradigma do materialismo histrico na sua verso dos modos de produo (asitico, feudal, capitalista, socialista e comunista), ofereceu os critrios de organizao dos contedos. Propunha-se estudar, neste programa, durante cada um dos anos da segunda metade do ensino fundamental (de 5 8 sries), um ou dois estgios pelos quais as sociedades evoluem ao longo da histria da humani-dade, integrando a histria nacional como um estudo de caso da histria universal. Sublinha-va-se que os estudos de caso (leia-se histria do Brasil) no se deveriam fazer de maneira linear, mas a partir de sua situao na evoluo histrica. Assim, as sociedades que tiveram maneiras anlogas de produzir e de se organizar poderiam ser estudadas conjuntamente. Propunha-se, igualmente, que o ensino tradicional da Histria, caracterizado pela sua forma narrativa, descritiva e linear, fundada nas aes individuais, principalmente de natureza pol-tico-institucional, deve ser substitudo por uma abordagem explicativa, total, fundada na luta de classes e no processo de evoluo das estruturas materiais da sociedade. Duas perspectivas de metodologia de ensino, conflituosas nos seus fundamentos, esto presentes. De um lado, a perspectiva que privilegia a transmisso de um saber dado por adquirido e acabado, mas cuja natureza , todavia, transformada. Preocupa-se a partir de ento em desenvolver nos alunos capacidades de compreenso e explicao histrica atravs da aquisio de um sistema de re-ferncia conceitual de alto nvel de abstrao. De outro lado, h a perspectiva que privilegia a participao dos alunos na construo do conhecimento histrico. Nesta perspectiva, prev-se que os alunos aprendam por meio de procedimentos de produo do conhecimento histrico. Examinar: MINAS GERAIS, Secretaria do Estado de Educao, Programa de histria para o 1 e 2 graus, Belo Horizonte, SEE, 1987, 44 p.

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    reaes. Para isto, realizamos uma enquete, junto a cerca de 100 professores da rede Municipal de Belo Horizonte, visando responder s seguintes questes: Qual a variedade de posies dos professores em face do programa e como eles as explicam? Em que medida as posies dos professores so influen-ciadas pelas perspectivas historiogrficas e pedaggicas e pelas mudanas de programa em curso no contexto sociopoltico? Se o programa dever ser refeito, qual o sentido atribudo s mudanas desejadas: uma ruptura com a perspectiva marxista ou simplesmente seu remanejamento?

    Considerando os aspectos constitutivos de nosso problema de pesquisa, construmos um quadro terico, no qual buscamos estabelecer relaes entre mudana de programa, mudana paradigmtica e embates sociopolticos.

    Mudana de programa, mudana paradigmtica e embates sociopolticos

    A partir de contribuies de alguns tericos do currculo, filiados ao movimento da Nova Sociologia,6 elaboramos uma perspectiva de anlise que considera o currculo ou um programa escolar como o resultado no apenas de uma seleo de certos elementos da cultura de uma sociedade, feitos por indivduos ou grupos de indivduos, com base em seus quadros de refe-rncia, mas tambm como resultado da maneira como estes quadros foram construdos e disputados no interior de processos histrico-socioculturais e polticos especficos. Dizer, portanto, como muitas pesquisas j o fizeram,7 que um programa o resultado das escolhas dos professores, as quais so in-fluenciadas pelos seus quadros de referncia, no nos parece suficiente, pois, como diz Popkewitz, a partir de uma premissa do pensamento dialtico, the structure of consciousness does not emerge from thoughts or ideas alone but from our

    6 Lemos, dentre outros: Jean-Claude Forquin, La sociologie du curriculum en Grande-Bretagne: une nouvelle approche des enjeux sociaux de la scolarisation, Cahiers du centre de recherches sociologiques, 1983, p. 25-56; Jean-Franois Perret e Philippe Perrenoud, Qui dfinit le curriculum, pour qui?, S. l., IRDP/Delval, 1990; Thomas S. Popkewitz, Knowledge and interest in curriculum studies, Critical Studies in Teacher Education: its folklore, theory and practice, Londres, Falmer Press, 1987, p. 335-354.7 Dentre os estudos, destacamos Ronald W. Evans, Teachers Conceptions of History, Theory and Research in Social Education, vol. XVII, n 3, 1989, p. 210-240; Jesse Goodman e Susan Adler, Becoming an elementary social studies teacher: a study of perspectives, Theory and Research in Social Education, vol. XIII, n 2, 1985, p. 1-20; Maggy Hodeige, Les motivations des changements dans les programmes dhistoire, La pense et les hommes, n 5, 1987, p. 33-49; S. H. Edgerton, Curriculum Politics and Policies, Torsten Husen e T. Ne-ville Postlethwaite, International Encyclopedia of Education, 2e d., vol. 3, Oxford, Pergamon, 1994, p. 1334-1337.

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    historical participation in social relation.8 Com efeito, o que os professores pensam, o que orienta suas escolhas resulta desta interao complexa entre diferentes dimenses da vida social. Kliebard resume bem os aspectos socio-polticos que intervm na operao de construo dos programas

    (...) while the curriculum is a product of a selective tradition [escreve ele], is not always either conspicuous or calculate. Rather, its expression is the outcome of a complex interplay of competing values and traditions as signified by different interest groups and, at least in part, reflecting the meanings they attribute to social, political, and economic conditions.9

    O programa em questo, ns j sublinhamos, foi elaborado e implantado num contexto de fortes reivindicaes sociais, quando muitos reclamavam a democratizao da vida poltica institucional e da sociedade. poca, os professores combatiam a poltica que se propunha para o ensino da Histria, reclamando, ao mesmo tempo, maiores e profundas mudanas. Registre-se ainda que instncias institucionais encorajavam suas reivindicaes, propondo um programa de mudana.10

    Durante estes anos, os professores, suas associaes (ANPUH, AGB) protestaram contra a introduo dos estudos sociais americana, que deve-riam substituir o ensino de Histria e Geografia em todos os nveis de ensino; contra os cursos de OSPB (Organizao Social e Poltica Brasileira), que se tornaram obrigatrios e sob o controle do Servio de Segurana Nacional (SNI, Decreto no 869/1969).

    Ora, se h conscincia da necessidade de vigiar a Histria e o seu ensino para que ela no se torne um instrumento na mo das foras do contrapoder, h igualmente uma conscincia de que a Histria pode ser um instrumento que serve utilmente ao projeto daqueles que detm o poder. Como nos lembra Chesneaux, o passado ao mesmo tempo um jogo de lutas e um elemento constitutivo das relaes de foras polticas.11 Neste sentido, assinala-se um

    8 Thomas S. Popkewitz, Knowledge and Interest in Curriculum Studies, Thomas S. Pop-kewitz (ed.), Critical Studies in Teacher Education: its folklore, theory and practice, Londres, Falmer Press, 1987, p. 335-354.9 Herbert M. Kliebard, Construction of a History of the American Curriculum, Philip W. Jackson, Handbook of Research on Curriculum, New York, Macmillan, 1992, p. 157.10 Trata-se do projeto Educao para a mudana da Secretaria do Estado de Educao de Minas Gerais, ao qual j fizemos aluso neste trabalho. A este propsito, ler Luiz Antnio da Cunha, Educao, Estado e Democracia no Brasil, So Paulo, Cortez Editora, 1991, p. 160-193.11 Jean, Du pass faisons table rase?, Paris, Maspero, 1976, p. 7.

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    relatrio produzido por uma equipe permanente da Escola Superior de Guerra (ESG), indicando claramente o que pensam os idelogos do regime a propsito da funo social da Histria:

    (...) a Histria tem um papel importante para o fortalecimento do poder nacio-nal e, sobretudo, em pocas como esta que ns vivemos. A Histria oferece s elites e aos que exercem o poder poltico a inspirao que os ajuda a escolher o melhor caminho, o mais rpido para atingir os objetivos nacionais.12

    Vistos com os conceitos empregados por Ferro,13 o combate dos profes-sores foi tambm contra a memria histrica oficial. Que foras conservadoras e os militares no poder e mesmo setores liberais decidam fazer a guerra ao programa de inspirao marxista, como j mencionamos, no de espantar.14 Mas, como compreender os professores que haviam desejado durante anos um tal programa, mesmo os historiadores que se opunham presena das foras conservadoras a intervirem no ensino de Histria? Poderia haver uma explicao, em razo do jogo poltico que se disputa?

    Efetivamente, as mudanas sociais existentes no curso deste processo de democratizao parecem haver repercutido na produo histrica e no ensino da histria. Jaime Pinsky estima que, anteriormente, a esquerda se contentava em substituir a viso positivista da histria por uma viso estalinista da his-tria ou teleolgica, supondo que h uma causa primeira, explicando todos os fenmenos e que estes tendem a uma finalidade necessria.15 Esta viso, segundo o autor, podia justificar-se no contexto de combate contra a ditadura militar, quando os grupos de esquerda se uniram em uma frente de combate contra um adversrio comum. Mas, uma vez o adversrio tendo desaparecido, a redemocratizao em curso, esta frente no h mais razo de existir. Uma diversidade de grupos e de perspectivas de esquerda coexistem sobre a cena social, com vises, estratgias e interesses diferentes. Este pluralismo da

    12 Citado em Maria Ins Salgado de Souza, Os empresrios e a educao: o IPES e a poltica educacional aps 1964, Petrpolis, Vozes, 1981, p. 176.13 Marc Ferro, Lhistoire sous surveillance. Science et conscience de lhistoire, Paris, Calmann-Lvy, 1985.14 Importante ressaltar que o Programa de So Paulo apoiado, sobretudo, na perspectiva mar-xista revisionista no interior da Histria Social inglesa alvo tambm de veementes crticas dos setores militares e conservadores. Esses embates foram registrados pela Revista Brasileira de Histria. Ver: Revista Brasileira de Histria, vol. 7, n 14 (1988), p. 231-261.15 Jaime Pinski, Nao e Ensino de Histria no Brasil, O Ensino de Histria e a Criao do Fato, So Paulo, Contexto, 1988, p. 19.

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    esquerda, estima Pinski, no deixa de repercutir na pesquisa histrica e no ensino de histria e sobre a conscincia histrica dos professores.

    Nossa convivncia no meio do ensino da Histria e algumas pesquisas preliminares nos levam a pensar que o raciocnio de Pinski poderia aplicar-se aos problemas encontrados pelo novo programa de Histria de Minas Gerais. fortemente provvel que a preocupao que havia presidido a concepo e a elaborao do programa pelos professores no encontrava os mesmos ecos pouco tempo mais tarde, quando os professores se situavam num contexto poltico-ideolgico substancialmente transformado.

    Nesta perspectiva, indagamos sobre a existncia de diferentes projetos e interesses em disputa, mais precisamente, qual a direo de mudana presente no atual programa e quais seriam as presentes nas reaes dos professores a este: so elas a de um simples remanejamento em que predominam as con-tinuidades com o paradigma em vigor ou se trata de uma ruptura total, na qual um novo paradigma se impe? Para abordar esta questo, lanamos mo das referncias fornecidas por Thomas Kuhn (1983), construdas para explicar a histria das teorias cientficas16 e das fornecidas por Ansart (1990) e Bourdieu (1980), que adaptam os conceitos desta teoria ao caso das cincias humanas.17 Para Thomas Kuhun, a mudana de um paradigma para outro tem um carter revolucionrio, ou seja, de ruptura, e a existncia de paradigmas concorrentes se restringe aos perodos de transio ou de crise paradigmtica. No entanto, para Ansart, a passagem de um paradigma a outro nem sempre tem um carter revolucionrio, porm, mais freqentemente, esta passagem se faz atravs de deslocamentos, de retoques sucessivos ou, ainda, pela substituio do privilgio de uma dada explicao por outra, do que propriamente atravs de rupturas. Tanto Ansart (1990) como Bourdieu (1972) ressaltam a existncia de paradig-mas correntes independentemente dos momentos de crises paradigmticas e relacionam a existncia destes, assim como a das mudanas paradigmticas,

    16 Ver notadamente sua obra La structure des rvolutions scientifiques, Paris, Flammarion, 1983. Referimo-nos aqui aos seus conceitos de paradigma e de mudana de paradigmtica. Embora diferentes definies de paradigma tenham sido dadas por ele, ns podemos dizer, de uma maneira geral, que um paradigma uma viso do saber considerada como vlida e prefervel em relao a qualquer outra pela maioria dos membros de uma comunidade cientfica, num dado momento.17 Podemos ler em Pierre Ansart, Les sociologies contemporaines, Paris, Flammarion, 1990 ; Pierre Bourdieu, Questions de sociologie , Paris, Les ditions de Minuit, 1972..

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    aos embates polticos. Esta perspectiva se aplica compreenso do nosso problema, sobretudo porque, como nos lembra Laville,

    (...) continua-se a atribuir ao ensino de histria uma grande importncia para constituir as representaes polticas e sociais dos cidados, sua memria hist-rica, sua identidade,18 o que faz com que este papel formador das conscincias e das identidades seja um papel disputado vigorosamente nas sociedades sem que se tenha claro, no entanto, a natureza destas disputas, os paradoxos e as contradies a presentes.19

    Laville20 sugere ainda que estas disputas e estes paradoxos podem ser eluci-dados, se empregarmos os conceitos de poder e contrapoder, inspirados nos conceitos de Histria e contra-Histria propostos por Ferro.21

    De posse deste conjunto de referncias tericas, pudemos distinguir no movimento de renovao do ensino de Histria no Brasil22 trs grandes momentos os anos 1970: o tempo de vigilncia e combate; os anos 1980: tempo de transio democrtica e de construo de alternativas ao ensino de Histria; os anos 1990: tempo de consolidao democrtica.23 No interior deste movimento, pudemos identificar, no plano historiogrfico, a passagem de uma memria oficial a uma memria de classe que se torna cada vez mais plural, nuanada e diversificada. No plano pedaggico, assistimos passagem de uma histria narrativa, baseada na memorizao, para uma histria explicativa e, desta, para uma histria-problema. As rupturas e as continuidades identifica-das no interior destas mudanas paradigmticas encontram-se relacionadas s mudanas dos embates sociopolticos produzidos nos anos 1970-1990. Assim, ao delimitarmos as condies sociais de produo e implantao do programa, supnhamos que estas mesmas condies estariam influenciando as posies dos professores e que poderiam, portanto, explicar suas reaes paradoxais.

    18 Christian Laville, Lhistoire entre la pdagogie et lhistoriographie. Rflexions en marge du colloque La Rvolution franaise enseigne dans le monde, Internationale schulbuchforschung, 14 (1992), p. 407-414.19 Idem, p. 408.20 Idem, p. 407-414. 21 Marc Ferro, Lhistoire sous surveillance, Paris, Calmann-Lvy, 1985.22 A anlise deste movimento foi feita a partir de uma ampla consulta bibliogrfica e docu-mental, conforme consta do captulo no 2 de nossa tese.23 Esta periodizao encontra-se desenvolvida no captulo 2 de nossa tese, op.cit.

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    Aspectos metodolgicos

    Nos anos de 1994-1995, quando foi desenvolvida esta pesquisa, havia 59 escolas pblicas de nvel fundamental pertencentes rede municipal de ensino de Belo Horizonte, distribudas, na sua grande maioria, nas zonas perifricas da cidade. Estas escolas possuam, poca, 250 professores de Histria. Na impossibilidade de se obter uma lista fivel do universo destes professores segundo sua insero ou no em projetos pedaggicos,24 optamos por selecion-los a partir da lista das escolas. Para esta seleo, foi feita uma amostragem, pelo mtodo da amostragem sistemtica que combina procedimentos probabilsticos e no probabilsticos. Uma vez escolhidas as escolas, todos os professores a elas pertencentes fizeram parte da amostragem, perfazendo um total de 180, sendo que apenas 96 participaram efetivamente da pesquisa.

    Dois instrumentos de pesquisa foram utilizados: o questionrio e a entrevista.

    Aos 180 professores foi distribudo um questionrio de 25 (vinte e cin-co) questes fechadas e de escolha mltipla, sendo que grande nmero delas foram construdas com base na escala de Likert, cujo objetivo era mensurar as variaes de pensamento dos professores quanto:

    a) aos eixos centrais (historiogrficos e pedaggicos) sobre os quais o programa se articula;

    b) s razes que podem explicar suas reaes de adeso e de rejeio ao programa: razes de ordem conceptual e ideolgica (concepes de histria e de seu ensino), razes de ordem contextual (ligadas ao contexto escolar e ao contexto sociopoltico);

    c) s perspectivas de mudanas que se apresentam na atualidade;d) s formas e s modalidades mais adequadas para proceder a uma

    prxima reforma. Alm destes aspectos, os professores foram solicitados a apresentar seus

    dados de identificao pessoal e dados relativos sua experincia profissional e de formao universitria.

    As entrevistas semidirigidas foram feitas junto a 10 professores, repre-sentantes dos cinco diferentes grupos de posicionamento em face do programa,

    24 A rede municipal de ensino de Belo Horizonte oferecia s escolas a oportunidade de elabo-rarem projetos pedaggigos e, a partir da aprovao destes, os professores so remunerados por cinco horas suplementares para o desenvolvimento dos mesmos. Considerando a importncia desta varivel, decidimos por control-la.

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    identificados a partir do questionrio: adeso sem restrio; adeso com poucas restries; adeso com muitas restries; rejeio; ausncia de posicionamento. Atravs destas entrevistas, buscou-se permitir aos professores nuanarem e aprofundarem suas posies assumidas no questionrio.

    De uma maneira sinttica, passamos a apresentar os principais resulta-dos obtidos atravs dos questionrios e das entrevistas, agrupando os dados em funo do grau de adeso ao programa e das explicaes que deram aos seus posicionamentos, demandadas por quesitos do questionrio e aprofun-dadas nas entrevistas. A partir das respostas dadas a estas questes, pode-se constatar que:

    somente 9% dos professores aderem ao programa sem restries; a maior parte dos professores, ou seja, 81%, faz restries ao progra-

    ma, sendo que 54% aderem com pouca restrio e 27%, com muitas restries;

    6% dos respondentes no aderem ao programa; 3% no chegaram a se posicionar a seu respeito.

    Grupo de adeso total ao programa

    Todos que se situam no grupo dos que aderem ao programa sem restri-es 9 (nove) professores justificaram sua posio, tanto atravs do ques-tionrio quanto da entrevista, a partir de um total acordo com a concepo de Histria, de seu ensino e das finalidades sociais nele presentes. No entanto, quando um representante deste grupo foi entrevistado, assinalou que em sua escola vrias adaptaes tm sido promovidas, com o objetivo de tornar o programa mais acessvel s condies de aprendizagem dos alunos. A adeso total concepo de Histria por este veiculada foi, ao longo da entrevista, inmeras vezes reforada:

    O ponto positivo deste programa, alm do emprego do mtodo de anlise da realidade social (o mtodo dialtico), reside tambm nesta possibilidade de colocar em relao as diferentes realidades que fazem parte de uma totalida-de global (...) Nossa histria a histria da humanidade, quer dizer, o que se passa na China, ou em Cuba ou nos Estados Unidos, ou aquilo que se passa em Portugal (...), na frica nos pertence assim como o que se passa no Brasil, e ajuda a melhor compreender minha realidade.

    Os professores deste grupo mostram-se, no entanto, divididos quanto existncia das condies materiais necessrias implantao do programa.

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    Grupo de rejeio ao programa

    Interessante notar que os que rejeitam o programa consideram que as proposies mais pertinentes para explicar sua posio so igualmente as relativas concepo de Histria, de seu ensino, atribuindo uma baixa im-portncia s condies materiais necessrias para a implantao do programa. No entanto, quando das entrevistas, pde-se constatar que eles rejeitam o programa integralmente, no o tendo jamais implementado em sala de aula, mas, no entanto, no se dizem em ruptura com o marxismo.

    Grupo dos que aderem ao programa com poucas e com muitas restries

    As razes que os professores que se situam nestes grupos apontaram para justificar suas posies so comuns em sua maior parte: fazem restries aos fundamentos metodolgicos do programa, considerando que apresenta os conhecimentos de maneira acabada, incontestvel e distante das capacidades cognitivas e do universo sociocultural dos alunos, no favorecendo, portanto, o desenvolvimento do pensamento crtico e da aprendizagem.

    Ambos os grupos consideraram que o programa deve ser liberado da viso ortodoxa do marxismo: mecanicista, linear e economicista. Esta pers-pectiva que esteve na base do front de combat feito pelos professores, numa situao de contrapoder, nos anos de maior vigilncia dos militares sobre o ensino de Histria, parece no mais satisfazer grande maioria dos professores de ambos os grupos:

    Eu creio que o programa veicula uma perspectiva anos 80. Uma perspectiva ortodoxa propriamente dita, uma viso economicista, materialista. Ele veicula um materialismo histrico, mas uma histria material, um determinismo eco-nmico (...), uma viso segundo a qual as coisas se passam em funo deste determinismo. Eu penso que a conjuntura internacional mudou. Mesmo antes eu j acreditava que o marxismo havia necessidade de ser visto sob um ngulo menos ortodoxo; eu penso ainda mais. Eu constato que a queda do muro de Berlim, a queda do socialismo europeu, o desabamento do socialismo real nos conduziu a reinter-pretar a histria, a nos fazer ver que o processo histrico complexo (...).

    No entanto, eles se distinguem quanto ao nvel de ruptura com o para-digma marxista. Os que aderem com poucas restries, diferentemente dos que aderem com muitas restries, no consideram que o quadro terico do marxismo esteja superado na atualidade.

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    Grupo sem posicionamento

    Os trs professores deste grupo privilegiaram duas razes diferentes para explicar seus posicionamentos em face do programa, a saber: baixa penetrao do programa na escola em que trabalham; curta experincia como professor. A entrevista, no entanto, revelou que eles fazem ao programa crticas semelhantes s dos que se situam no grupo de adeso com muitas restries.

    Os diferentes posicionamentos e contexto sociopoltico e historiogrfico

    Contextualizando o conjunto de dados relativos ao perfil dos professores sobre o plano sociopoltico e historiogrfico, podemos observar que a maioria deles pertencem a uma gerao marcada pelo contexto sociopoltico das d-cadas 1970-1980 e 1980-1990. No entanto, a formao universitria da maioria deles coincide com os anos mais duros da ditadura militar. Estes professores viveram e, por vezes. se engajaram em lutas nas quais o marxismo, na sua verso ortodoxa, nutria os projetos polticos de transformao da sociedade, orientava seus cursos de formao de mestres e se constitua numa ameaa potencial para a direita, que os combatia duramente. Estes foram, portanto, formados no contexto de vigilncia e de combate a que fizemos aluso. Assim, estes professores, mesmo que critiquem o programa, no o rejeitam total-mente. Entretanto, na dcada de 1980-1990, quando se engajam no trabalho e fazem cursos de ps-graduao stricto e lato sensu, processam-se mudanas contextuais e historiogrficas na sociedade brasileira, de grande importncia. Durante este perodo, o Brasil comea a se redemocratizar, e os setores de es-querda, incluindo a o movimento de renovao do ensino de Histria dos que permaneceram unidos durante um longo tempo, mostram suas cores variadas. Estes anos tambm viram o mundo comunista fracassar e os fundamentos polticos do materialismo histrico serem confundidos e destrudos. Por con-seqncia, a produo historiogrfica brasileira faz seus deslocamentos episte-molgicos ou rupturas, com uma cultura histrica solidamente assentada desde os anos 1930.

    Tendncia dominante de mudana?

    Pode-se constatar, atravs de suas respostas ao questionrio, que, do total de 78 professores que aderem ao paradigma marxista com poucas e mui-

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    tas crticas, 52% deles se manifestaram favorveis a que o prximo programa seja estruturado a partir de temas representativos da histria nacional e da experincia social dos alunos, e os que recusam se encontram divididos entre um ensino temtico estruturado a partir de certos temas representativos da histria nacional e da histria internacional. Numa outra questo, em que se visou levar os professores a expressarem melhor suas idias a respeito de um novo programa, pode-se constatar a existncia de:

    um acordo quanto integrao de princpios didticos metodolgicos inspirados na Nova Histria e no construtivismo, tais como o emprego dos procedimentos de produo do conhecimento histrico e da par-ticipao ativa dos alunos neste processo. Esta nova viso do processo ensino-aprendizagem favoreceria, segundo eles prprios, a formao de um cidado crtico e participativo, necessria ao desenvolvimento de uma nova cultura democrtica no pas;

    um dilema na maneira de abordar a relao passado-presente: privi-legiar a histria a partir de periodizao linear ou a histria proble-ma?;

    um conflito quanto ao emprego do quadro do marxismo na sua verso ortodoxa. Enquanto os que se situam no grupo de adeso se mantm fiis ao emprego do marxismo na sua verso ortodoxa, os que se situam nos outros grupos, portanto a maioria dos professores, querem um marxismo liberado de sua viso ortodoxa, assim como a introduo de outras interpretaes da Histria.

    Estes pontos foram objeto de aprofundamento nas entrevistas, nas quais se pde ver que existe, por parte da maioria dos professores, uma clareza quanto necessidade de se introduzirem outras interpretaes que privi-legiem temas ligados vida social e cultural de diferentes sociedades, sem, contudo, se desvincularem da interpretao marxista da histria. No entanto, eles continuam temerosos quanto ao emprego de uma histria-problema ou de uma histria-temtica, como se pode constatar:

    (...) o trabalho com temas deve ser bem organizado porque o professor, ele mesmo pode se perder (...) Esta uma via interessante, mas exige boas bases, pois as discusses podem se tornar sem interesse; se o aluno no tem bases slidas, ser difcil para ele seguir o curso.

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    Um programa de Histria num contexto de mudanas sociopolticas e paradigmticas: a voz dos professores

    Consideraes gerais

    Tanto as certezas, quanto as incompreenses e os dilemas vividos pela maioria dos professores indicam que eles esto vivendo um processo ao mesmo tempo de transio e de crise paradigmtica, sobretudo no plano historiogr-fico, no qual domina uma situao de rupturas e continuidades em relao tradio marxista, tal como ocorre no plano da historiografia brasileira. Como nos lembra Khun,25 as crises so condies prvias e necessrias ao apareci-mento de novas teorias ou de novos paradigmas. Muitos tm assinalado que estamos atravessando uma crise profunda, provocada pelo esgotamento das teorias gerais de interpretao dos fenmenos sociais, pelo desabamento das certezas de um discurso unitrio sobre o homem e a sociedade e pelo desa-parecimento das utopias, o que pode ser muito bem sintetizado atravs de algumas falas dos professores:

    Eu penso que ns vivemos um perodo de mudana marcado por medo e dificuldade. Eu no sei verdadeiramente em que direo ir. Ns sabemos que certas coisas devem mudar, mas ns no sabemos claramente quais so elas.(...) Agora ns sabemos que necessrio construir um caminho novo, pois no h nenhum caminho construdo.Eu creio que a queda do socialismo influencia a posio do professor de his-tria e gera nele muitas dvidas. Por exemplo, eu, que fui formado no quadro dos dois blocos, o socialismo e o capitalismo. O regime socialista representava a soluo. Agora, com o vazio criado pela queda desta ideologia um fator desestabilizador. Em direo a qual situao de substituio ns devemos ir?

    Os professores revelaram tanto por meio do questionrio quanto das entrevistas que o princpio da participao fundamental para a formao de uma nova cultura democrtica dever ser intensivamente aplicado quando da prxima operao de elaborao do programa. Espera-se, assim, que, atra-vs de discusses e negociaes sucessivas, entre os diferentes segmentos da comunidade escolar e, sobretudo, entre os professores, se possa chegar a certos consensos.

    Situando-nos num contexto de um processo democrtico, no qual um novo paradigma emergente se torne dominante, podemos configurar, a partir das respostas fornecidas pelos professores, um programa de Histria cujas grandes linhas respondam aos objetivos do jogo democrtico e que se distan-

    25 Kuhn, op.cit., notadamente os captulos VI e VII.

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    cie da perspectiva do front de combate dos anos 1980 e que abrace as novas perspectivas historiogrficas e metodolgicas oriundas dos anos 1990.

    Esperamos que este estudo a respeito das mudanas processadas no ensino de Histria, no contexto dos anos 1980-1990, possa lanar luzes tanto sobre a complexidade que encerram as operaes de elaborao de programas de ensino de Histria, num contexto de participao poltica e de mudanas paradigmticas, como nos colocar novas indagaes para o atual contexto em que vivemos.

    Rupturas e continuidades no ensino de Histria (1970-1990)Aspectos considerados Programa dos anos 1970 Programa dos anos 1980 Programa dos anos 1990

    Finalidades e funo social do ensino de Histria

    Formao de um ser humano ajustado e integrado ordem estabelecida.Formao da conscincia histrica baseada na idia de unidade nacional.

    Formao de um ser humano capaz de no aceitar de manei-ra passiva a ao da sociedade sobre ele e de ser um sujeito participante das transforma-es histricas.Formao da conscincia his-trica baseada no antagonismo de classe.

    Formao de um ser humano capaz de no aceitar de manei-ra passiva a ao da sociedade sobre ele e de ser um sujeito participante das transforma-es histricas.Formao da conscincia hist-rica baseada na idia da diversi-dade sociocultural.

    Concepo de Histria Centrada numa sucesso de acontecimentos de ordem po-ltico-institucional e de aes individuais daqueles que de-tm o poder.Predominncia de aes polti-cas na explicao das mudanas histricas.

    Centrada no estudo da evoluo das sociedades humanas, em funo do conceito de modo de produo.Compreenso da totalidade do processo histrico.

    Centrada no estudo do pas-sado a partir de problemas do presente.Compreenso das particula-ridades e especificidade dos problemas histricos.

    Contedo Evidncia dos acontecimen-tos e das personagens polticas oficiais.Histria nacional e histria uni-versal vistas separadamente.

    nfase na totalidade do pro-cesso histrico e das estruturas materiais da sociedade.Histria nacional um caso, ilustrando a totalidade do pro-cesso histrico capitalista, de carter universal.

    nfase na multiplicidade de dimenses da Histria.A Histria nacional um caso especfico do processo histrico mundial.

    Temporalidade histrica Tempo de curta durao, cons-titudo pela sucesso cronolgi-ca e linear dos acontecimentos, sobretudo por aqueles de or-dem poltico-institucional.

    Tempo de longa durao, aque-le das estruturas econmicas, marcado pela passagem de um modo de produo a outro.

    Tempo multivariado em funo das diferentes dimenses da vida humana e de seus ritmos diversos.

    Objetivos do ensino e orienta-es metodolgicas

    Desenvolvimento de capaci-dades cognitivas elementares: descrio, enumerao, etc.Aquisio de conhecimentos factuais pela memorizao.

    Desenvolvimento de capaci-dade de alto grau de abstrao, por uma larga utilizao da rede conceptual do materialismo histrico.Aquisio de um quadro de anlise e colocao em evidn-cia de alguns procedimentos mentais ativos de construo do conhecimento.

    Desenvolvimento de capacida-des cognitivas pela utilizao de conceitos oriundos de dife-rentes quadros tericos.Aquisio de conhecimentos crticos a partir do mtodo de produo do conhecimento histrico.

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