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40 IMPRENSA | MARÇO 2010 V ocês querem ir para um lugar mais re- servado? Vem comi- go.” O famoso bordão criado pelo jornalista Goulart de Andrade há mais de 30 anos parece fazer parte de seu coti- diano. Foi assim que ele nos recebeu para esta entrevista, no restauran- te Templo da Carne, em São Paulo. Em contraste com figura delicada, de postura levemente arqueada e cabelos inteiramente brancos, Gou- lart chegou animado e falante, com uma caixa de charutos na mão – aos 76 anos, 51 de jornalismo, parece empolgado como um foca. Naque- la tarde, algumas semanas antes da reestreia no SBT, Goulart havia acabado de almoçar com seu sócio, acompanhado de uma garrafa de merlot chileno. “Bebo vinho há 25 anos em todos os almoços e jantares. Todos”, conta, alertando que convites para almoço e jan- tares devem levar isso em consideração. É uma de suas regras sociais. Não hesita em também nos oferecer uma bebida: “Querem uma vodca?” Há muitos anos Goulart é sinônimo de televi- são, imediatamente associado ao programa “Co- mando da Madrugada”, que chamou atenção no fim da década de 1970 não só pelo horário, mas também pelas reportagens insólitas com forte aroma de jornalismo gonzo, repletas de temas po- lêmicos, planos-sequência e tomadas inusitadas. " Exemplos não faltam. Goulart fez uma matéria sobre parto cesariano na qual filmou o nascimento do neto. Também registrou sua própria cirur- gia de ponte de safena (que contou com uma inesperada parada cardíaca) e exibiu a autópsia do corpo de PC Farias, tesoureiro da campanha presi- dencial de Fernando Collor de Mello. E não foi só pauta médica. Para fazer diferentes matérias, já vestiu rou- pa de palhaço; piloto; mergulhador; travesti; operário. O resultado é um programa que resistiu ao tempo, às emissoras e aos novos formatos. Apesar de toda experiência, Gou- lart estava fora do ar há cerca de seis meses. Engana-se, porém, quem pensa que seu ritmo de trabalhou diminuiu. Nesse período, dedicou- se a sua produtora e ministrou pa- lestras. Até receber o convite para voltar ao SBT, “uma emissora na qual sempre fui muito feliz”, comenta. Na rede de Silvio Santos, será colaborador do jornalístico “SBT Repórter”. De acordo com o cronograma, Goulart fará uma matéria por mês para a atração. A primei- ra será sobre a “indústria da morte” – comér- cios e serviços que esperam pela triste notícia de um falecimento. Ele também se prepara para trazer de volta o “Comando da Madrugada”. “Eu mandei um recado para o Silvio, para ver se ele me empresta as madrugadas”, afirma sorrindo. Acostumado às câmeras, Goulart é do tipo de PERFIL VAI COM ELE DE VOLTA ÀS MADRUGADAS AOS 51 ANOS DE CARREIRA – E COM PLANOS DE PRODUZIR UM GAME SHOW – GOULART DE ANDRADE APRESENTA SEUS NOVOS PROJETOS PARA TELEVISÃO POR ANA IGNACIO DA REPORTAGEM POR PAMELA FORTI DA REPORTAGEM FOTOS: ADOLFO VARGAS

VAI COM ELEportalimprensa.com.br/tv60anos/pdfs/70_04_IMPRENSA_MAR%C7O_2010_ED... · na qual filmou o nascimento do neto. Também registrou sua própria cirur-gia de ponte de safena

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Vocês querem ir para um lugar mais re-servado? Vem comi-go.” O famoso bordão criado pelo jornalista

Goulart de Andrade há mais de 30 anos parece fazer parte de seu coti-diano. Foi assim que ele nos recebeu para esta entrevista, no restauran-te Templo da Carne, em São Paulo. Em contraste com figura delicada, de postura levemente arqueada e cabelos inteiramente brancos, Gou-lart chegou animado e falante, com uma caixa de charutos na mão – aos 76 anos, 51 de jornalismo, parece empolgado como um foca. Naque-la tarde, algumas semanas antes da reestreia no SBT, Goulart havia acabado de almoçar com seu sócio, acompanhado de uma garrafa de merlot chileno. “Bebo vinho há 25 anos em todos os almoços e jantares. Todos”, conta, alertando que convites para almoço e jan-tares devem levar isso em consideração. É uma de suas regras sociais. Não hesita em também nos oferecer uma bebida: “Querem uma vodca?”

Há muitos anos Goulart é sinônimo de televi-são, imediatamente associado ao programa “Co-mando da Madrugada”, que chamou atenção no fim da década de 1970 não só pelo horário, mas também pelas reportagens insólitas com forte aroma de jornalismo gonzo, repletas de temas po-lêmicos, planos-sequência e tomadas inusitadas.

"Exemplos não faltam. Goulart fez uma matéria sobre parto cesariano na qual filmou o nascimento do neto. Também registrou sua própria cirur-gia de ponte de safena (que contou com uma inesperada parada cardíaca) e exibiu a autópsia do corpo de PC Farias, tesoureiro da campanha presi-dencial de Fernando Collor de Mello. E não foi só pauta médica. Para fazer diferentes matérias, já vestiu rou-pa de palhaço; piloto; mergulhador; travesti; operário. O resultado é um programa que resistiu ao tempo, às emissoras e aos novos formatos.

Apesar de toda experiência, Gou-lart estava fora do ar há cerca de seis meses. Engana-se, porém, quem pensa que seu ritmo de trabalhou diminuiu. Nesse período, dedicou-se a sua produtora e ministrou pa-lestras. Até receber o convite para

voltar ao SBT, “uma emissora na qual sempre fui muito feliz”, comenta. Na rede de Silvio Santos, será colaborador do jornalístico “SBT Repórter”.

De acordo com o cronograma, Goulart fará uma matéria por mês para a atração. A primei-ra será sobre a “indústria da morte” – comér-cios e serviços que esperam pela triste notícia de um falecimento. Ele também se prepara para trazer de volta o “Comando da Madrugada”. “Eu mandei um recado para o Silvio, para ver se ele me empresta as madrugadas”, afirma sorrindo. Acostumado às câmeras, Goulart é do tipo de

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VAI COM ELE

DE VOLTA ÀS MADRUGADAS

AOS 51 ANOS DE CARREIRA – E

COM PLANOS DE PRODUZIR

UM GAME SHOW – GOULART DE ANDRADE APRESENTA

SEUS NOVOS PROJETOS

PARA TELEVISÃO

POR ANA IGNACIODA REPORTAGEM

POR PAMELA FORTIDA REPORTAGEM

FOTOS: ADOLFO VARGAS

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"DESGOSTOSO

é FICAR FORA

DO AR. PRA MIM,

ISSO é OxIGêNIO.

EU FAçO PARTE

DISSO, é MEU

OFíCIO. NÃO é

PROFISSÃO, NÃO

é TRAbALHO,

NÃO é CONTRATO,

é OFíCIO"

lista. “O superintendente da TV Rio, Péricles do Amaral, me apresentou o Goulart e disse: ‘Este será o repórter mais criativo do Brasil’. Ainda é.”

Depois da TV Rio, passou por Continental e Tupi. Fez dublagem ao vivo, comemorou a chegada do quadruplex – “o primeiro videotape que permi-tia produzir uma coisa e exibir depois” – e viu a TV ganhar cores. Na época, o empresário e diretor de televisão Walter Clark o convidou para fazer parte da equipe que fundaria a TV Globo. Ambos haviam sido colegas de trabalho na extinta TV Rio: “Eu fa-lei ‘não, Vento [apelido de Clark], estou na Tupi, não vou nessa aventura’. Aí ele convidou o Boni [José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, ex-diretor da emissora]”. Na época, a TV Tupi era a número um no país e era difícil acreditar que outra emissora poderia tomar seu posto. Apesar disso, Goulart não tem ressentimentos. “Ele [Boni] é melhor do que eu. Eu jamais seria executivo de televisão: sou um fazedor. Ele é craque. O Boni, além de craque, é precioso. Ele não tinha que ter se aposentado da Globo. Mas isso é outra história”, avalia.

Apesar disso, pouco tempo depois, Goulart aca-bou entrando para o time de jornalistas da recém-criada emissora. Estreou na década de 1970 e logo teve a ideia de registrar o que se passava na madru-gada paulistana, com pequenos flashes nos inter-valos dos filmes exibidos também de madrugada. Boni aprovou o projeto e Goulart o colocou em prática. O público também deu seu aval. Os rápidos flashes deram origem ao famoso “Comando”.

A reportagem inaugural nasceu quando um ca-minhão do Instituto Médico Legal (IML) passou pela praça Marechal Deodoro, nas proximidades da antiga sede da Globo em São Paulo. Goulart pediu ao motorista da emissora que seguisse o caminhão.

jornalista que parece não se cansar do trabalho. “Desgostoso é ficar fora do ar. Pra mim, isso é oxigênio. Eu faço parte disso, é meu ofício. Não é profissão, não é trabalho, não é contrato, é ofí-cio. Tenho o ofício de fazer jornalismo pra tele-visão.” Há um tom de orgulho no falar, como se cada sílaba reforçasse uma missão. “Eu acordo e durmo pensando nisso. Eu vivo isso.”

ROMANCE COM A TV Aos cinco anos de idade, em um quarto de hotel

com sua avó, Goulart repousava em sua cama en-quanto ouvia a um radinho. Acompanhava as no-tícias sobre a 2ª Guerra Mundial e, fascinado, des-cobriu o que queria fazer. Criado em Ipanema, anos mais tarde, estreou em um diário carioca. Em segui-da, trabalhou no Última Hora e também em rádio, mas foi a TV que o cativou de verdade. “Televisão pra mim é um personagem inesquecível, do qual não consigo me separar. Não sei se é uma amante, se é uma filha... Porque TV é mulher”, diz. O romance com a telinha se firmou ao longo da carreira.

Amante da sétima arte, também fez roteiros de filmes e trabalhou em um documentário so-bre Brasília. Dali em diante tornou-se conhecido nas redações de televisão. Sua carreira se confun-de com a própria evolução do veículo. Produziu e dirigiu inúmeros programas que remetem aos primórdios da TV brasileira, como “Brasil 63” e “Sumaré 22 horas”. Foi também idealizador dos populares “Fantástico” e “Globo Repórter”, en-tre outros. Ainda no início da vida profissional, o jornalista já demonstrava forte personalidade e talento para a televisão. “Conheci ele em 1959 no bar Imperátor, posto 6, Copacabana”, lembra o cantor Moacyr Franco, amigo pessoal do jorna-

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da Madrugada”, que meses depois seria rebati-zado de “Comando da Madrugada”. Apesar do sucesso, as críticas eram grandes e nem todos aceitavam bem as inovações trazidas por Gou-lart. Certa vez, Boni disse a Goulart: “Estou cansado de ficar defendendo você”. Ele resol-veu que era hora de mudar. Pediu apenas para levar as fitas do “Comando” e, com o programa a tiracolo, começou a povoar as madrugadas de outras emissoras como Gazeta, Manchete, SBT, Bandeirantes e Record.

Sempre no ar, Goulart pode, como poucos, fazer uma avaliação consciente da TV brasileira. Palavra de quem viveu a evolução e as mudanças do veículo e passou por muitas emissoras. “Às vezes me parece que foram esquecendo do conte-údo, ou fomos escravizados por conteúdo popular porque o Ibope indica que a classe C até a Z domi-na o país. Então acham que é necessário produzir alguma coisa pra esse pessoal entender”, critica. Goulart defende a difusão de programas de con-teúdo mais cultural e intelectualizado. “Acho que o veículo deveria estar disposto a traduzir infor-mação e não reality show. Televisão, na minha ótica, é a visão de uma coisa que você pega aqui e quer mandar lá longe.” É o que Goulart faz há mais de 50 anos. Leva aos espectadores informa-ções e imagens que não encontrariam por aí.

Das milhares de horas de gravações que Gou-lart acumulou em cinco décadas de carreira, al-gumas causaram muito falatório. Um dos episó-dios mais questionados foi a exibição da autópsia de Paulo César Farias, assassinado em 1996. Goulart afirma, sem titubear, que nunca foi ta-chado de sensacionalista, mas muita gente con-siderou as imagens exibidas chocantes demais.

Eram duas da manhã. O carro foi até um prédio, os peritos entraram e arrombaram a porta de um apartamento pequeno, onde jazia um sujeito morto e solitário. “Essa matéria foi perfeita. Foi o absolu-to plano-sequência. A gente mostrou arrombando a porta. O Capeta foi na cama, no prato de comi-da interrompido, na vitrola com um disco da Elis Regina fazendo ‘tchack-tchack’... A história do homem eu não contei, porque não conhecia. Mas contei a história desse caminhão que estava pas-sando e cumpriu o projeto dele”, relembra, citando o cinegrafista com nome endiabrado que também fez sucesso como escudeiro fiel do jornalista.

A reação do público – e da direção da Globo – foi instantânea. “O Boni veio pra São Paulo e falou: ‘Você enlouqueceu? Quebrou o padrão da Globo!’” Em meio à polêmica, Goulart pen-sou em parar. “Eu era um repórter de rua que não tinha nada a ver com ‘os Globais’”, explica. Contudo, Boni apostou no sucesso do quadro e insistiu para que ele continuasse, apesar das críticas recebidas pela cúpula do jornalismo da emissora. “Mas eu traí ele um pouco”, confessa. A princípio, a ideia era que ele ocupasse o inter-valo entre um filme e outro, mas Goulart ultra-passou a cota e passou a inserir seus quadros em todos os intervalos comerciais das madrugadas, por conta própria. “Eu entrava com uma matéria de dez minutos e a pessoa esquecia o filme. Mas o pessoal queria meu programa e não o filme. Eu competi com o filme. E ganhei!”, comemora.

ENTRE FUROS E POLêMICASAs primeiras reportagens foram exibidas em

1978 e somente em 1982 é que Goulart ganhou oficialmente um programa só dele, o “Plantão

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Para ele, o grande problema foi ter quebrado um paradigma. “Quando você quebra algum padrão, ver uma autópsia é falta de respeito? Por quê? Um cadáver é igual a um objeto. Você precisa ter um olhar especial sobre aquilo que eles estavam fazendo. Houve uma comoção ge-ral. Será que é crítica ou inveja? Hoje você não vê nenhum acontecimento desse, em que não estejam presentes 160 paparazzi, 26 câmeras... Só que lá era só eu”, provoca. Amigo de Gou-lart há mais de 50 anos, Rolando Boldrin atesta o caráter arrojado do jornalista. “Tem um ta-lento fora do comum. É um repórter que não existe no Brasil. Ele faz a reportagem de uma maneira única. O tipo de matéria que faz e o repórter que é não existem mais.”, declara o apresentador da TV Cultura.

Pioneiro da televisão brasileira e represen-tante de uma geração de “fazedores da telinha” – como ele mesmo gosta de se definir –, Gou-lart gosta de contar histórias e falar “das coisas”. Esbanja simpatia e se conecta às pessoas com fa-cilidade. Poder de quem faz televisão. “Goulart de Andrade é meu amigo, meu sócio, meu pai, meu primo, meu tio. Ele é um cara descolado, pra frente, com o espírito muito jovem. Está sempre com a autoestima lá em cima, tem um puta astral legal. Se você está junto dele, está sempre apren-dendo alguma coisa. Nunca está pra baixo, está sempre buscando fazer alguma coisa”, enaltece Márcio Palha, empresário e sócio de Goulart.

Com o pique que lhe é peculiar, sua produtora independente não para nem um instante. Além de se dedicar ao SBT, Goulart conta que está acer-tando a produção do game show “Estádio de direi-to”, uma competição interativa entre estudantes universitários de direito. Em sua casa tem ainda um estúdio gastronômico, onde gosta de testar receitas e dar asas aos dons culinários. “Minha mulher diz: ‘Você é um grande cozinheiro que in-siste em fazer televisão’.” Em meio a tudo isso, é difícil acreditar que Goulart possa pensar em se aposentar algum dia. Os amigos também não têm certeza. Moacyr Franco, que além de amigo é seu vizinho, não se compromete: “Não sei se ele vai cansar. Mas ninguém vai se cansar de ver Goulart de Andrade”. O jornalista garante que tem pla-nos de parar. “Eu vou fazer minha última matéria. Uma eu já fiz, mas foi quase morte, não foi morte. Eu tive uma parada cardíaca. E o Capeta gravou. Agora, só falta a de verdade. Aí eu paro, pô!”. Não há como afirmar, afinal de contas, ele já voltou uma vez. Mas é melhor não duvidar.

AbRAçANDO O CAPETADE CIMA PARA bAIxO: NA TV GLObO

NA DéCADA DE 1970; COM JECE VALADÃO; COM bETO CARREIRO; E COM

SEU FAMOSO CAMERAMAN, O CAPETA