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Entre a paixão e o interesse – O amadorismo e o profissionalismo no futebol brasileiro Por José Geraldo do Carmo Salles _________________________________________ Tese Apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Gama Filho Como Requisito Parcial à Obtenção do Título de Doutor em Educação Física Julho, 2004

 · vii AGRADECIMENTOS À Deus Aos meus Anjos da Guarda (invisíveis e materializados) Ao Prof. Dr. Antonio Jorge G. Soares, por ter depositado tanta confiança em minha capacidade,

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Entre a paixão e o interesse – O amadorismo e oprofissionalismo no futebol brasileiro

Por

José Geraldo do Carmo Salles

_________________________________________

Tese Apresentada aoPrograma de Pós-Graduação em Educação Física da

Universidade Gama FilhoComo Requisito Parcial à Obtenção doTítulo de Doutor em Educação Física

Julho, 2004

iii

iv

v

DEDICATÓRIA

Aos meus professores

Sílvia M. Saraiva Valente Chiapeta

Paulo Lanes Lobato

Pedro Alves Paiva

“Tu te tornas responsável por aquilo que cativas”.(Saint-Exupéry)

vi

“(.. .)Vi rapazes e moças festejando a derrota para não deixarem de festejar

qualquer coisa,pois seus corações estavam programados para a alegria;

(. . .)”

(Carlos Drummond de Andrade ) 1

1 - Perder, Ganhar, Viver. Jornal do Brasil. Caderno de Esportes - 06 de julho de 1982

vii

AGRADECIMENTOS

À Deus

Aos meus Anjos da Guarda ( i nv i s í ve is e mate r ia l i zados )

Ao Pro f . D r . Antonio Jorge G. Soares , po r te r depos i tado tan ta con f iança em minhacapac idade, me mos t rado sempre os caminhos , as p i s tas e segu i r comigo. . . Obr igado meuamigo .

Ao meu amigo Adr iano Costa

Ao Pro f . D r . Manoel J . Gomes Tubino

Aos Pro f . D r . Lamar t ine Pere i ra DaCosta

Ao Pro f . D r . Hugo R. Loviso lo

A Pro f ª . D r ª . Vera L . Menezes Costa

Ao Pro f . D r . Rober to Ferre i ra dos Santos

Ao meu i rmão Dení lson V. do C. Sa l les

A minha i rmã Eva Inez do Carmo

A minha mãe Custódia Corrêa do Carmo

A minha cunhada Mar ia do Carmo P imente l

Aos meus sobr inhos : Ka l i l , Marcos e Lucas

Aos meus amigos : I l ane Mol ica e George Lodder L isboa

Aos amigo(a )s : Mara S i l va Iamim , Mara Denise R . Dias , Gera ld ine R . Dias (Ga l ) , RenatoCruz , So lange Brandão Star l ing , R i ta de Cáss ia S i lva , Le id ina He lena Si l va , Eve l ine TorresPere i ra , Eduardo José Ferre i ra Lopes , Mar ia Cecí l ia de Paula S i lva (C iça ) , Bruno O. LAbraão, Rosana Santos, V in íc ius de Ol ive i ra .

Aos meus amigos do handebo l de Ju iz de Fora . Em espec ia l a Cláudio H. D ias e sua famí l i a

Ao meu amigo Pedro Paulo Nunes

Aos meus p ro fessores UFV: José E l ias R igue ira , Mar ia Aparec ida Cordei ro , Ad i lson Oses ,Roseny M. Maf f ia , Anton io José Nata l i , Rannah Manezenco , José Car los de Paula , Adalber toRigue i ra V ianna , José Alber to P in to , Emmi Miot in , Mar is te la Moura S i l va , José de Fát imaJuvêncio , Ronaldo Sérg io Giannichi , Mar ia Tereza Böhme , Mar ia Tereza Saad Lopes

Aos Pro fessores : Rosa Ol ivera Fontes e Maur íc io Fontes – UFV

Aos func ionár ios do DES: Lúcia He lena Campos e José Franc isco Sobr inho DES-UFV

Aos novos amigos : Bianca B isso l i , Luciana Pe i l , Márcia Morel , Marco A. Santoro , EuzaGomes, Kát ia Passos , Regina Costa , Ana V i tór ia , Andréa Berga l lo

Aos Pro fessores da UGF: Helder G. Resende , Ni lda Tevês , Ludmi la Mourão .

Aos meus co legas p ro fesso res e a lunos da Univers idade Federa l de V içosa

Aos meus amigos ca r iocas : Bruno Far ias Dantas , Márcia D ’Ol i , Ana Paula Ramos , Márc iaMaia , Ricardo Menezes

A Pol lyanna P . Almeida , pe la p rec iosa rev i são o r tog rá f i ca

Aos func ionár ios do Programa de Pós-Graduação da UGF: Fabr i , Evel ine , Alan

A Margar ida , Perpétua e Suel i – Sec re tá r ia da Pró -Re i to r ia de Pós Graduação da UFV

As instituições: Univers idade Federa l de V içosa e Univers idade Gama F i lho

viii

SALLES, José Geraldo do C. (2004). Entre a paixão e o interesse – Oamadorismo e o profissionalismo no futebol brasileiro. Tese de doutorado.Programa de Pós-Graduação em Educação Física. UGF. Rio de Janeiro.

ResumoEste estudo tem como objetivo realizar uma análise do discurso circulante acerca dosdilemas entre o amadorismo e o profissionalismo no seio do futebol ao longo do seudesenvolvimento na sociedade brasileira. O esporte moderno nos termos de NorbertElias (1992) seria uma mimese da guerra, mas uma guerra sem os riscos diretos doconfronto com fim letal. Todavia, rapidamente tornou-se também um ramo de negóciona ordem capitalista, onde a lógica basal é o acúmulo. O esporte, ao ser governadopelos interesses, passou a ser um local de negócios, apostas e divertimentos, seafastou dos ideais da busca da honra e da glória, sem interesses pecuniários. Diantedesta transformação, a manutenção do ideal amador teria sido apenas uma brevereação das elites em manter as barreiras de distinção social e frear a popularizaçãoque, de certa forma feria, ou invadia, um de seus espaços para emulação de status.Entretanto, a partir do momento em que o esporte se tornou um dos principais meiosde entretenimento tanto na possibilidade da prática, quanto na esfera do consumo deespetáculo, novas demandas passaram a governá-lo, fazendo surgir o profissionalesportivo. Obviamente, o surgimento desta bifurcação amadorismo-profissionalismoprovocaria uma tensão entre os idealizadores do esporte, aqueles que o pretendiamapenas como um meio de distinção e refinamento, aliado aos ideais educativos ealguns praticantes que rapidamente demonstraram outros interesses relacionados aojogo, tais como ascensão social e sobrevivência. Ao admitir o profissionalismocolocava-se em jogo o ideal educativo e moral preconizado pelas elites, pois oesporte, como ramo do negócio, parecia macular a competição, que passaria a sergovernada pelo interesse. O interesse pecuniário do atleta passou a ser questionadodiante dos ideais civilizatórios do esporte. Observemos que a desconfiança sobre alegitimidade e moralidade desse interesse estava presente no início do debate entreamadoristas e profissionalistas desde a transformação do esporte na Inglaterra. Nofutebol brasileiro entre as décadas de 20 e 40, ocorria, por parte de algunsinteressados na manutenção do amadorismo, uma narrativa de que os interessesindividuais proporcionados pelo profissionalismo pudessem corromper os valoreseducativos e morais do esporte. Diante de tal desconfiança, como trabalhar com aidéia de transparência e credibilidade no esporte, se cada jogador persegue seu auto-interesse? Como manter o valor da honestidade, se o jogador de futebol pode sevender individualmente? Essas são possíveis questões que pareciam pairar sobre apossibilidade de profissionalização do esporte no final do século XIX e primeirasdécadas do século XX. Na atualidade, os termos amador e profissional no espaçoesportivo permitem ser utilizados para se qualificar positiva como negativamente ovínculo do atleta. São termos polissêmicos que apresentam fluidez de sentido econtradições, dependendo do contexto em que é empregado. Nossa principal hipóteseé que, a narrativa esportiva brasileira (dirigentes, torcedores, jogadores e da mídia)apresenta deslocamentos e ambigüidades entre o discurso romântico, cifrado pelosideais amadores, e o discurso profissional, em que a racionalidade econômica deveimperar. Todavia, nos anos de 1930 tensões e retóricas a favor ou contra aimplantação do profissionalismo estiveram presentes nas páginas dos periódicosnacionais, mas o profissionalismo se afirmou. Em contrapartida, o discurso amadorpermaneceu no seio dessa nova ética, com forte traço romântico, e passou a ser umaespécie de regulação, de freio, do interesse desmedido que pode ameaçar os valoresdo esporte no profissionalismo.

ix

SALLES, José Geraldo do C. (2004). Between the passion and the interest -the amateurism and the professionalism in the Brazilian soccer. Doctoratethesis of Program of Pos-Graduation in Physical Education. UGF. Rio deJaneiro.

AbstractThis objective of this study was to carry through an analysis of the circulating speechconcerning the quandaries between the amateurism and the professionalism soccerduring its development in the Brazilian society. According Norbert Elias (1992), themodern sport would be one “mimesis” of the war, but a war without the risks right-handers of the confrontation with lethal end. However, quickly became a branch ofbusiness in the capitalist order, where the basal logic is the accumulation. The sport,being ruled by interests, started to be a place business-oriented, appositive andamusements, it moved away from the ideals of the search for honor and glory, withoutpecuniary interests. Ahead of this transformation, the maintenance of the amateur idealwould have been only one brief reaction of the elites in keeping the barriers of socialdistinction and braking the population that, of certain form, wounded, or invaded, one ofits spaces for emulation of status. However, from the moment the sport became one ofthe main ways of entertainment, both in the possibility of the practice and in the sphereof the spectacle consumption, new demands had started to govern it, making to appearthe sportive professional. Obviously, the sprouting of this bifurcation amateurism-professionalism would provoke a tension enters the idealizers of the sport, those whoonly intended it as a way of distinction and refinement, ally to the educative ideals andsome practitioners who had quickly demonstrated other related interests to the game,such as social ascension and survival. When admitting the professionalism theeducative and moral ideal praised by the elites was observed; therefore the sport, asbranch of the business, seemed to stain the competition, which would be governed bythe interest. The pecuniary interest of the athlete passed to be questioned in relation tothe civil ideals of the sport. Let us observe that the diffidence on the legitimacy andmorality of this interest was present in the beginning of the debate between amateursand professionals since the transformation of the sport in England. In Brazilian soccerbetween the decades of 20 and 40, it occurred, on the part of some interested partiesin the maintenance of the amateurism, a narrative that the individual interestsproportionate by the professionalism could corrupt the educative and moral values ofthe sport. With such diffidence, how to work with the idea of transparency andcredibility in the sport, if each player pursues its auto-interest? How to keep the valueof the honesty, if the soccer player can sell himself individually? These are possiblequestions that seemed to hang on the possibility of professionalization of the sport inthe end of XIX century and first decades of XX the century. In the present time, theterms amateur and professional in sports can be used to characterize, both positive asnegative, the bond of the athlete. They are polissemic terms that present sensiblefluidity and contradictions, depending on the context where they are used. Our mainhypothesis is that the Brazilian sportive narrative (leading, fans, players and media)presents displacements and ambiguities between the romantic speech, ciphered for theamateur ideals, e the professional speech, where the economic rationality must reign.However, in the years of 1930 tensions and rhetorical pro or against the implantation ofthe professionalism had been gifts in the periodic pages of the national ones, but theprofessionalism has affirmed. On the other hand, the amateur speech remained in thisnew ethics, with strong romantic trace and e started to be a species of regulation,brake, of the measureless interest that can threaten the values of the sport in theprofessionalism.

x

LISTA DE QUADROSQuadros Pág.

01 Ano de implantação do regime profissional em alguns países ........... 203

02 Manifesto dos Clubes da primeira divisão e do Clube dos 13 ............ 293

03 Número de atletas que solicitaram oficialmente a reversão deprofissional para amador entre 1992 e 1996 ...................................... 312

04 Números absolutos de jogadores que foram profissionalizados e dejogadores que solicitaram a reversão na CBF .................................... 313

05 Conceituações entre status do atleta, organização, práticas,competições e entidades esportivas nas leis esportivas nacionais daEra Vargas até os anos 80 .................................................................. 320

06 Conceituações entre status do atleta, organização, práticas,competições e entidades esportivas nas leis esportivas nacionais daConstituição de 1988 e suas regulamentações .................................. 321

07 Conceituações entre status do atleta, organização, práticas,competições e entidades esportivas nas leis esportivas nacionais daLei Zico a Lei Pelé ...............................................................................

322

08 Conceituações entre status do atleta, organização, práticas,competições e entidades esportivas nas leis esportivas nacionais daMaguito Vilela as leis atuais ............................................................... 323

09 Principais transações financeiras do futebol mundial até 2002 .......... 434

10 Imagens relacionadas ao amadorismo e ao profissionalismo antesda oficialização do regime profissional (até 1933) na percepção dosinteressados na manutenção do regime amador ................................ 458

11 Imagens relacionadas ao amadorismo e ao profissionalismo depoisda oficialização do profissionalismo, durante o período deimplantação do profissionalismo, na percepção dos interessadospela manutenção do regime amador.................................................. 459

12 Imagens relacionadas ao amadorismo e ao profissionalismo antesda oficialização do regime profissional (até 1933), na percepção dosinteressados pela implantação do profissionalismo............................. 459

13 Imagens relacionadas ao amadorismo e ao profissionalismo depoisda oficialização do regime profissional, na percepção dosinteressados pela implantação do profissionalismo ............................ 459

xi

LISTA DE FIGURASFigura

nºPág.

01 Equipe do Vasco da Gama – 1923....................................................... 130

02 Equipe do Vasco da Gama -1929........................................................ 170

03 Anunciando o surgimento de uma liga para os profissionais - Jornaldo F.F.C................................................................................................ 192

04 Anúncio da fundação do profissionalismo no futebol metropolitano -Jornal do F.F.C ................................................................................... 218

05 O profissionalismo no início de sua fase de realização - Jornal doF.F.C. ................................................................................................... 235

06 Porque a AMEA terá que ser desfiliada da CBD..................................245

07 1ª Partida entre profissionais do Rio de Janeiro e de São Paulo(Fluminense x Corinthians). Jornal do F.F.C........................................ 248

08 Bangu - 1ª Equipe campeã da Liga de Profissionais no Rio deJaneiro.................................................................................................. 249

09 Charge Políticos Futebol Clube – Bancada da bola - Folha de SãoPaulo.................................................................................................... 278

10 Jornal o Dia, 27 de abr/2001 – Capa.................................................... 331

11 Jornal Extra, 30 de mar/2001 – Capa .................................................. 333

12 Afonsinho no Botafogo em 1968 ......................................................... 344

13 Afonsinho ............................................................................................. 347

14 Charge de Henfil - Renovação de contrato de Jairzinho...................... 359

15 Afonsinho em 1972 jogando pelo Santos. F. C. Agachado.................. 371

16 Bebeto no Flamengo em 1986............................................................. 377

17 Bebeto – Copa América 1989 ............................................................. 381

18 Bebeto no Vasco da Gama -1990 ....................................................... 392

19 Um cartola acima de suspeitas ........................................................... 398

20 Entrevista David Fischel ..................................................................... 402

xii

21 Romário nos três clubes: Flamengo, Vasco e Fluminense ................. 411

22 Charge – Romário cortejado pelos clubes Flamengo e Fluminense ... 414

23 Ronaldo ingrato - Coluna Tabelinha..................................................... 416

24 Carteira Profissional do Ronaldo ......................................................... 418

25 Euronaldo ............................................................................................ 428

26 Ronaldo à venda ................................................................................. 431

27 Ronaldo à venda 2 ............................................................................. 433

28 Charge - Breve aqui, mais um fora de série ........................................ 435

29 Gradiente - Amadorismo e profissionalismo no futebol brasileirodesde o início do século 20.................................................................. 441

30 Entrevista com Felipe .......................................................................... 445

31 Entrevista com Liedson ....................................................................... 447

xiii

SUMÁRIO

Página

LISTA DE QUADROS ....................................................................................................... ixLISTA DE FIGURAS ......................................................................................................... x

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 01

PARTE 1O AMADORISMO E O PROFISSIONALISMO NO ESPORTE:MAPEANDO OS CONCEITOS .................................................................................. 34

Capítulo IA aproximação dos conceitos ....................................................................................... 34

Capítulo IIO amadorismo nos Jogos Olímpicos ............................................................................ 47

2.1 - O status do atleta nos Jogos Olímpicos Antigos ............................................. 542.2 - O status do atleta nos Jogos Olímpicos Modernos ......................................... 61

PARTE 2A PROFISSIONALIZAÇAO DO FUTEBOL ........................................................... 84

Capítulo IIIO processo de profissionalização do futebol na Inglaterra ........................................ 84

Capítulo IVA rápida difusão do futebol – Uma volta pela história do futebol brasileiro atravésdo Rio de Janeiro ............................................................................................................ 106

Capítulo VA tensão inicial do processo de profissionalização do futebol brasileiro ................ 115

Capítulo VIRegaste e reestruturação do futebol brasileiro: o amadorismo em crise................. 125

6.1 - A vitória do clube de Regatas Vasco da Gama em 1923 e a cisão naMETRO ........................................................................................................ 128

6.2 - A fundação da AMEA – A busca do controle planejada pelos grandesclubes............................................................................................................ 138

xiv

6.3 - As Leis de Inscrição e de Estágio implantadas pela AMEA ......................... 148

Capítulo VIIRussinho – Uma entrevista provocadora .................................................................... 167

Capítulo VIIIA tensão dos anos finais da década de 20 e anos iniciais da década de 30 – OJornal do Fluminense Football Club preparando o terreno para oprofissionalismo ............................................................................................................. 186

Capítulo IXO profissionalismo do futebol brasileiro ...................................................................... 202

9.1 - Argumentos favoráveis e contrários ao profissionalismo até sua instauração. 2089.2 - A instauração do profissionalismo ................................................................... 2179.3 - Argumentos após a instauração do regime profissional .................................. 224

PARTE 3A LEGISLAÇÃO ESPORTIVA BRASILEIRA: AMADORISMO,PROFISSIONALISMO E FUTEBOL ....................................................................... 251

Capítulo XDo Estado Novo a Constituição de 1988 ...................................................................... 256

10.1 - Decreto-Lei 3.199 de 1941 ........................................................................... 25810.2 - Lei 6.251 de 08 de outubro de 1975, regulamentada pelo decreto nº

80.228 de 25 de agosto de 1977 .................................................................. 26410.3 - Constituição de 1988 .................................................................................... 268

Capítulo XIOs alicerces recentes das leis atuais ........................................................................... 275

11.1 - O curto período do governo Collor ............................................................... 27511.2 - Lei nº 8.672 de 06 de julho de 1993 (A Lei Zico) .......................................... 27611.3 - Lei nº 9.615 de 24 de março de 1998 (A Lei Pelé) ....................................... 290

Capítulo XIIAs Leis atuais................................................................................................................... 301

12.1 - Lei nº 9. 981 de 14 de julho de 2000 (Lei Maguito Vilela) ............................ 30112.2 - Lei nº 10.672 de 15 de maio de 2003 ........................................................... 303

Capítulo XIIIA reversão do profissionalismo – Que historia é essa? ............................................. 306

xv

Capítulo XIVConsiderações acerca dos termos amador e profissional nas leis brasileiras ....... 316

PARTE 4A PERMANÊNCIA DAS NARRATIVAS AMADORAS NO CONTEXTO DOFUTEBOL PROFISSIONAL ....................................................................................... 328

Capítulo XVAfonsinho – Uma voz inquietante ou um mito da resistência? .................................. 343

Capítulo XVIReleitura do caso Bebeto – A transferência do Flamengo para o Vasco da Gama... 376

Capítulo XVIIDavid Fischel – Um dirigente modelo? ......................................................................... 396

Capítulo XVIIIRonaldo Nazário – O homem de 100 milhões .............................................................. 415

CONCLUSÃO ................................................................................................................... 438

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 462

1

INTRODUÇÃO

“A avareza, ou o desejo de ganho, é uma paixão universalque age em todos os tempos, em todos os lugares, esobre todas as pessoas”.

(David Hume)

O esporte moderno nasce no seio das escolas públicas inglesas

como meio de educar o gentleman (o gentil homem inglês). Neste contexto

educacional, o esporte passa a representar uma forma civilizadora de polir

os instintos humanos (agressividade, violência, paixão etc), tal como

concebe Norbert Elias (19921, 19932). O esporte nos termos de Elias é uma

mimese da guerra, mas sem os riscos diretos do confronto armado. Todavia,

rapidamente tornou-se também um ramo da ordem capitalista, em que a

lógica basal é o acúmulo. O esporte, ao ser governado pelos interesses

passou a ser um local de negócios, apostas e divertimentos. Diante desta

transformação, a manutenção do ideal amador teria sido apenas uma breve

reação das elites em manter as barreiras de distinção social e frear a

popularização que de certa forma, feria, ou invadia, um de seus espaços

para emulação de status, com descreve Veblen (1974)3. O esporte foi

1 - El ias , Norber t . (1992) . Ensaio sobre o despor to e a v iolência . In : Norbert El iase Er ic Dunning. A busca da exci tação. Lisboa. Disfel .

2 - El ias , Norber t . (1993) . Um ensaio sobre el deporte e la v iolência . IN: Norber tEl ias & Eric Dunning. Deporte y ocio en el proceso de la c iv i l ización. México.Fondo de Cultura Económica.

3 - Veblen, Thorstein . (1974). A teor ia da classe ociosa – Um estudo econômicodas ins t i tu ições . Os pensadores . Rio de Janeiro: Abri l Cultural . No capí tulo II I -

2

cultuado como um espaço propício para se demonstrar o ócio conspícuo,

necessário ao status da aristocracia e, conseqüentemente, o amadorismo

seria uma lógica desta predisposição de se fazer notar socialmente.

O modelo de esporte implantado pelos ingleses repercutiu mundo

afora e passou a ser uma referência para que as principais organizações

esportivas se pautassem. Entretanto, a partir do momento em que o esporte

se tornou um dos principais meios de entretenimento, rapidamente ocorreu

uma nova perspectiva ao surgir a possibilidade do profissional esportivo.

Obviamente, o surgimento desta bifurcação amadorismo/profissionalismo

provocaria uma tensão entre os idealizadores do esporte (aqueles que o

pretendiam apenas como um meio de distinção e refinamento, aliado aos

ideais educativos) e alguns praticantes que rapidamente demonstraram

outros interesses relacionados ao jogo. Parece que, ao se admitir o

profissionalismo, colocava-se em jogo esse ideal educativo e moral, pois o

esporte, como ramo do negócio, parecia macular a competição, que passaria

a ser governada pelo interesse. A competição passou a representar um local

de demonstração da capacidade de empreendimento do clube, inicialmente,

e mais tarde, também, dos seus patrocinadores. O tipo de vínculo do atleta

tornou-se o elemento basilar deste embate entre o interesse e os valores

morais educativos. O interesse financeiro do atleta passou a ser questionado

frente aos interesses da educação civilizatória do esporte.

Ócio conspícuo, Veblen argumenta acerca da necessidade de demonstrar asfaçanhas honoríf icas. “( . . . ) À medida que aumenta a densidade da população e asrelações humanas se tornam mais numerosas e complexas , todos os detalhes davida sofrem um processo de e laboração e seleção; e neste processo de e laboração,o uso de troféus se desenvolve num sis tema de posições, t í tu los graus e insígnias ,

3

Observemos que a desconfiança sobre a legitimidade e moralidade

deste interesse estava presente no início do debate entre amadoristas e

profissionalistas desde a transformação do esporte na Inglaterra.4 Tanto os

defensores do amadorismo, quanto aqueles que traçavam um novo modelo -

o profissionalismo -, utilizavam os argumentos da dúvida no

desenvolvimento de suas narrativas.

Essa velha desconfiança permanece mesmo na atualidade. Em

alguns momentos, ainda se questiona o interesse do indivíduo sobre o

esporte. Parece que o negócio no seio do esporte poderá corrompê-lo. Não

se pode admitir o esportista mercenário5, pois o homem que luta por dinheiro

está sujeito a se corromper. Parece que tal percepção se sustentava na

mesma linha de raciocínio utilizada por Maquiavel, quando alertara o Rei de

Florença no século XIV sobre a composição dos exércitos mercenários.6 No

futebol mantém-se uma narrativa sobre a desconfiança de que o interesse

do indivíduo, proporcionado pelo profissionalismo, possa corromper os

valores educativos e morais que foram implantados e refinados pelos ideais

amadores. Diante de tal desconfiança, como trabalhar com a idéia de

transparência e credibilidade no esporte, se cada jogador persegue seu

no qual os exemplos t íp icos são os emblemas heráldicos, as medalhas e ascondecorações honor íf icas .” (p .300)

4 - Na Inglaterra , quest ionava-se a credibi l idade do jogador que gostar ia de sededicar exclusivamente à prát ica do futebol. Murray, Bil l . (2000). Uma his tór iade fu tebol. São Paulo. Hedra.

5 - Na Par te 4 veremos como esta tensão ainda permanece presente na a tual idade.

6 - Maquiavel suger ia ao Rei que na composição do exérci to , não admit issesol tados contratados. Ele propôs a composição de um exerci to patr ió t ico sem oselementos mercenár ios , por acredi tar que o indivíduo lu tar por dinheiro estar iasujei to a se vender para as tropas in imigas. Maquiavel , Nicolau. (1999) . OPríncipe. São Paulo: Nova Cultural Ltda.

4

auto-interesse? Como manter o valor da honestidade, se o jogador pode se

vender individualmente? Essas são possíveis questões que pareciam pairar

sobre a possibilidade de profissionalização do esporte no final do século XIX

e primeiras décadas do século XX.

A permanência de valores do amadorismo parece funcionar como

uma espécie de contrapeso diante do medo de que o interesse individual (ou

interesses) do atleta no campo do negócio supere os valores morais na

competição. Há um medo explícito de que o negócio exacerbado faça com

que se perca a crença na competição. Se isso ocorresse, seria ruim para

todos, jogadores, dirigentes, patrocinadores e também a mídia. Essa tensão

desencadeada pela possibilidade de os interesses individuais (dos atletas)

tornarem superiores aos interesses coletivos foi, durante muito anos, uma

aflição dos idealizadores dos Jogos Olímpicos Modernos. A possibilidade de

se estabelecerem limites para os atletas de todas as nacionalidades filiadas

ao COI teria desencadeado vários transtornos no seio do movimento

olímpico desde o final do século XIX. Os praticantes, aqueles que se

destacavam pelas suas habilidades, passaram a buscar no esporte outras

possibilidades pessoais do que simplesmente os prazeres e os benefícios de

uma vida esportiva, como eram pretendidas pelos puritanos que fomentaram

a reestruturação do esporte moderno.

Inicialmente, o esporte com os ideais amadores mantiveram-se em

um local de honra e glória. Era um espaço de destaque, distinto do local de

interesse pela sobrevivência. Os indivíduos que o praticavam o faziam pelo

5

prazer, pelo reconhecimento, pela honra e glória. Todavia, ainda no século

XIX, o esporte atravessa as fronteiras das classes e passa a representar

outras possibilidades para os praticantes, principalmente para aqueles que

não poderiam continuar a praticá-lo descompromissadamente, tendo que

dividir o tempo de dedicação ao esporte com o trabalho pela sobrevivência.

Desta forma, o interesse individual frente ao esporte passou a substituir, em

parte, a honra e a glória nos termos aristocráticos. Obviamente que grande

parte dos atletas, inicialmente, conciliava tais propósitos, mas em períodos

mais recentes essa harmonia não parece tão clara, na percepção dos

torcedores, dirigentes e da mídia e freqüentemente torna-se questionada.

Possivelmente, Coubertin e seus aliados se sustentavam na perspectiva do

vínculo esportivo incondicional, embasado apenas nos benefícios heróicos e

de apuração humana, seja física, moral ou espiritual.7 Os ingleses

reformadores do esporte parecem ter bebido inicialmente nestas mesmas

fontes.

Como o esporte moderno rapidamente passou a se estabelecer na

lógica do interesse, um local de entretenimento coletivo, o treinamento e a

eficácia passaram a exigir tempo e dedicação. Mesmo a elite praticante logo

percebeu a dificuldade de se estabelecer em uma vida regrada exigida pela

competência esportiva (divisão do tempo entre os compromissos diários e o

treinamento necessário).8 O esportista pertencente a elite deveriam se

7 - Ver: DaCosta , Lamart ine P. (1999). O ol impismo e o equi l íbr io do homem. In :Tavares , Otávio & DaCosta, Lamart ine P. Estudos Olímpicos. Rio de Janeiro.Edi tora Gama Fi lho.

8 - Um bom exemplo deste fa to pode ser percebido no f i lme Carruagens de Fogo,que conta a his tór ia real de dois at le tas que par t ic iparam dos Jogos Olímpicos de

6

dedicar, ou contratar alguém para assim fazê-lo. Observemos que já estava

em questão o apreço público, o consumidor do espetáculo esportivo. O

praticante, aquele que o fazia por prazer e desinteressadamente, apenas

com a sua dedicação amadora não seria mais suficiente para sustentar o

anseio do torcedor que pagava para ver os jogos. Como adequar os

interesses e as paixões que afloram desta interação dos distintos

segmentos, em que cada qual busca sua própria lógica de vinculação? O

esporte gera a conciliação de lógicas e interesses distintos.

David Hume (1970)9 argumentou que era uma conseqüência

infalível de todas as profissões permitir que o amor do ganho prevalecesse

sobre o amor do prazer. O acúmulo de dinheiro através do trabalho tornou-

se uma ordem admitida como forma de substituição das paixões violentas. O

comércio passou a representar uma forma “douceur” 10 de conquista,

diferente da pilhagem que ocorria na época. Nesta perspectiva o acúmulo, o

ganhar dinheiro de forma doce, tornou-se uma diretriz freqüente na

Par is , representando a bandeira da Inglaterra. Segundo Si lva (1996), duasquestões centrais são abordadas no f i lme: a ident idade dos at le tas (HeroldAbrahams, era f i lho de um judeu, nascido na Ingla terra , e Er ic Liddell , que eraf i lho de missionár io escocês, nascido na China) e o amadorismo nos esportesingleses , pautado nos valores das classes de el i te . Ver: Si lva, Leidina Helena deO. (1998). Carruagens de Fogo: notas sobre a inst i tucional ização do esporte . In :Motus Corpores . Revista de d ivulgação cient íf ica do Mestrado e Doutorado emEducação Fís ica. V.5 . n .1 maio, 1998 Rio de Janeiro. Edi tora Central UGF.

9 - Hume, David. (1986) . Escr i tos sobre economia. São Paulo. Abri l Cul tural .

10 - Esta expressão ut i l izada por Hirschman (2000) remete a idéia de doçura, maso próprio admite a d if iculdade de se traduzir esta expressão, ut i l izada pelapr imeira vez como qualif icat ivo associado ao comércio por Jacques Savary, emsua obra La parfai t négociant ( l ivro dest inado aos homens de negócio do séculoXVII , escr i to em 1675). O comércio era v is to como uma forma doce de acúmulosem comparação com o acúmulo em forma de pi lhagem que acontecia em outrasépocas. Hirschman, Albert O. (2000) . As paixões e os interesses . Rio de Janeiro.Paz e Terra.

7

expansão do capitalismo (Hirschman, 2000) 11. O esporte, na esteira desta

expansão, também teve que se adequar a estas novas configurações

sociais. Como conciliar as apostas – que sempre estiveram associadas as

competições esportivas -, e o mercado de trabalho que surgia neste campo

com os ideais aristocráticos do amadorismo?

Hirschman (2000), ao apresentar os pressupostos políticos para o

capitalismo antes do seu triunfo, argumenta que, em algum momento da

idade moderna, o ganhar dinheiro passou a ser considerado superior ao

comportamento orientado pelas paixões. As análises de Hirschman

sustentam-se nos apontamentos de Hume, Smith, Mandeville, Santo

Agostinho, Rousseau, entre outros. Argumenta Hirschman que, o fato de a

humanidade ter passado a admitir a busca da satisfação no interesses

materiais (o acúmulo) e o papel de coibir as ingovernáveis e destrutivas

paixões do homem teria provocado o triunfo do capitalismo. Durante longo

tempo da história da humanidade, essas paixões foram colocadas como

pecado mortal da avareza. Hirschman argumenta que as transformações

sociais nascem da continuidade entre o velho e o novo, ao contrário de uma

ruptura brusca, como apontou Max Weber em A ética protestante e o espírito

do capitalismo.12

11 - Segundo Hirschman (2000) , para o surgimento do capi ta l ismo, foi necessár ioque o in teresse entrasse como moderador das paixões. Hirschman enfat iza umaespécie de ruptura social , onde o novo nasce do velho e essa quebra promove astransformações .

12 - Segundo Weber, o ganhar d inheiro dentro de uma ordem econômica moderna,legalmente, é f ruto do resul tado da vir tude e a prof ic iência de uma vocação. Estaidéia pecul iar do dever prof iss ional torna-se a maior caracter ís t ica da ét ica socialda cul tura capi tal is ta , sua base fundamental . (p .28) Weber , Max. (2001) A ét icaprotes tante e o espír i to do capi ta l ismo. São Paulo. Pioneira Thomson Learning.

8

No momento em que o futebol caminhava para o profissionalismo,

parece que o dilema principal se dava sobre o ganhar dinheiro no espaço do

jogo, o que a classe detentora do poder sobre a organização e controle do

esporte não queria admitir, julgando tal feito como perda dos ideais

civilizatórios do esporte. Possivelmente, os dirigentes esportivos

desprezavam a possibilidade de que alguém pudesse demonstrar interesse

econômico sobre um espaço que deveria ser destinado à confraternização

de cidadãos refinados. Portanto, parece que, quando o amadorismo

esportivo foi substituído pelo profissionalismo e evidentemente absorveu

princípios orientadores do capitalismo, o futebol e outros esportes foram

lugares de resistência à lógica do dinheiro, como princípio superior para os

dirigentes esportivos românticos e puritanos. Possivelmente em função da

própria estrutura de ‘guerra’ do esporte - uma guerra de infantaria e de

emulação entre comunidades -, a defesa do ideal de amor e paixão, da

honra do grupo, foi o argumento central das elites.

Segundo Weber (2001), a “ânsia por lucro”, o “impulso para a

aquisição”, “o quanto dinheiro melhor” tornaram-se a força mais significativa

da vida moderna - comum a todos os cidadãos. “Este impulso existiu e existe

(...) em todo tipo de gente e classe social, em todas as épocas e nações,

onde quer que, de alguma forma se apresentou ou se apresenta a

possibilidade objetiva para tal.” (p.9).

Apesar desta inquietude e repulsa quanto à possibilidade de ganho

no esporte, rapidamente os dirigentes ingleses perceberam que deveriam

ceder às pressões das classes operárias que pleiteavam as mudanças, sob

9

pena de perderem o comando do esporte. Desta forma, na Inglaterra

construiu-se um sistema dual: ligas amadoras e ligas profissionais. O sentido

pragmático da cultura inglesa separou e distinguiu as elites por este

mecanismo. Todavia, apesar da transformação exigida pelos operários

praticantes, o comando e controle do jogo permaneceram nas mãos das

mesmas elites dirigentes.

Observemos que o futebol que chegou ao Brasil pelos filhos de

imigrantes que estudavam na Europa foi aquele do modelo amador das

escolas européias.13 Contudo, o futebol rapidamente se populariza,

mantendo os ideais aristocráticos.14 Esta popularização se deu, no entanto,

para além das camadas privilegiadas da sociedade na época.15 Desta

forma, o futebol no Brasil tornou-se também um local de aposta, de

sobrevivência e de entretenimento, como ocorrera no velho continente,

13 - Pereira (2000) argumenta que os implantadores do futebol car ioca nãoobservaram a grande difusão do futebol no país que fo i seguido como modelo. “Ossportmen cariocas t ransformaram um espor te prat icado por operár ios das maisdiversas procedências em um símbolo de elegância e sof is t icação.” (p .40) Pereiraargumenta, a inda, que desde f ins do século XIX grande contingentes detrabalhadores foram atra ídos pelo fu tebol br i tânico e que estes indivíduos estavamlonge do ref inamento alardeado pelos esport is tas car iocas. Pereira , LeonardoAffonso de M. (2000). Footbal lmania – Uma his tór ia social do futebol no Rio deJaneiro, 1902-1938. Rio de Janeiro . Nova Fronteira .

Não é nosso propósi to polemizar acerca do mito fundador “Chales Mil ler” .Nosso in teresse recai sobre o fu tebol adotado pela população a part ir das úl t imasdécadas do século XIX. Uma abordagem diferenciada sobre a chegada do futebolno Brasi l pode ser observada em Santos Neto, José Moraes dos. (2002) . Visão deJogo – Pr imórdios do futebol no Brasi l . São Paulo. Cosac & Naify

14 - As denominações acerca do futebol mant inham até bem recentementeexpressões da l íngua inglesa, ta is como corner , back, offside, foot-bal l , Keeper ,l inesman, fu l l-back. Santos, José Rufino (1981). Histór ia Pol í t ica do FutebolBrasi le iro. São Paulo. Brasi l iense.

15 - Pereira (2000) argumenta que, a inda na pr imeira década do século XX, “ofutebol transformava-se num jogo prat icado por grupos de diversos perf issociais .” (p.72) Segundo Pereira , somente em 1907 apareceram nas páginas dosjornais mais de 40 novas associações dest inadas à prát ica do futebol, que selocal izavam nas mais d ist in tas regiões da c idade, do subúrbio ao centro .

10

mesmo que inicialmente cravejado de preconceitos por parte da elite, quanto

aos praticantes populares e seus interesses.16

O Brasil, nação em desenvolvimento, queria se repaginar sobre os

ideais da cultura européia e o futebol, pela sua rápida aceitação, passou a

ser colocado como um destes mecanismos de afirmação cultural.17

Entretanto, por que ao copiar um modelo de desenvolvimento do esporte,

optou-se pelo amadorismo, e não pelo profissionalismo que já estava

disseminado na Europa desde as décadas finais do século XIX? Obviamente

que esta interrogativa ingênua é de fácil resposta. Os primeiros dirigentes

brasileiros eram filhos das elites e para eles o que importava

primordialmente era o status social. O ganhar dinheiro no espaço do jogo

soava com uma desfaçatez para uma classe de privilegiados. O esporte

constituiu desde cedo um espaço apropriado para ancorar tradições

românticas.18

16 - Ao f inal do século XIX, o Brasi l havia abol ido a escravidão e sua populaçãoem expansão já era formada por união de diferentes raças: negros, índios,brancos. Essa fusão de indivíduos de or igens d iferentes t rouxe caracter ís t icasbem singulares a cul tura brasi le ira . O futebol, obviamente pela sua faci l idade deprát ica e necessidade de baixo custo, tornou-se rapidamente um elemento do lazerdesta população em expansão. (Ver Santos, 1981). Essa é uma hipótese d ifundidana sociedade bras i le ira.

17 - Wit ter , José Sebast ião . (1990). O que é fu tebol . São Paulo . Brasi l iense.

18 - O concei to de romantismo ser ia f ruto de um grande movimento in telectual ear t ís t ico surgido no f inal do século XVIII no ocidente , que segundo Campbell(2001) torna-se de d if íc i l def in ição, por três motivos: 1º) o fenômeno compreendeo desenvolvimento em quase todos os campos da vida in te lectual e cul tural ; 2º) asmais inf luentes def in ições ter iam sido formuladas por antagonistas; e 3º) deveser entendido como um impulso, e não como um sis tema unif icador de idéias .Ser ia um impulso para o caos. “Uma def in ição fechada do romantismo. . . não émuito românt ica”, como “se um importante aspecto do romant ismo é a rebel ião ,então rebelar-se contra o romantismo também podia ser romântico.” (p .252)Campbell . Colin. (2001) . A ét ica romântica e o espír i to do consumismo moderno.Rio de Janeiro. Rocco. Para nosso propósi to, sem, no entanto, ter a pretensão dese reduzir à dif iculdade apontada por Campbell , i remos adotá- lo , a grosso modo,como uma at i tude, um comportamento que desper ta o sent imental ismo exacerbado,

11

Entretanto, os dirigentes esportivos brasileiros perceberam que o

futebol, ao ganhar espaço social, fomentava novos mecanismos de

sustentabilidade. Não havia mais espaço apenas para aquele futebol de

refinamento e confraternização da classe endinheirada. O prestígio dos seus

clubes só seria possível através das vitórias. Essa necessidade de vitória

levou rapidamente à busca da competência, em que a valorização do

jogador passou a ser condicionada à sua capacidade de promover o

entretenimento. Nesta perspectiva, tornava-se necessário abrir as portas dos

clubes (mesmo que apenas do campo de futebol) para indivíduos de outras

classes, sem o rigoroso crivo social apregoado pelos associados. 19

Como veremos no desenvolvimento deste estudo, ainda na fase de

consolidação do futebol no Brasil (entre o final da década de 10 e década de

20 do século XX) os ideais amadores passaram a ser questionados.20 O

desenvolvimento do esporte e do futebol, aqui como em qualquer lugar, não

poderia se manter amador diante do processo de popularização e

consolidação em uma sociedade que tentava se estabelecer como

capitalista.

o individual ismo. Modo de ser do indivíduo que é muito sonhador, sent imental ,emotivo etc . Ati tude do indivíduo que é desprovido de prudência prát ica, de sensode real idade, aquele que se deixa guiar pela imaginação, se entrega ao devaneiode forma i r racional .

19 - Isso foi uma prát ica usual u t i l izada pelos pr incipais c lubes na época. Algunsjogadores de camadas populares almejavam jogar nos grandes clubes e , por isso,admit iam que seus v ínculos in icialmente se dessem apenas no espaço do jogo.Outra estratégia também ut i l izada fo i a cr iação de uma categoria denominada desócio-jogador. Uma espécie de autor ização para que es tes jogadores t ivessemalguma “l iberdade” nas dependências dos clubes (Santos, 1981).

20 - Santos (1981) argumenta que esse confl i to também ter ia ocorr ido nos rádios,ao trocar o s is tema de sócios pelos anúncios .

12

Desde os anos finais da década de 20 até o ano de 1933,

permanecia o debate acerca do perfil esportivo que deveria ser seguido no

Brasil. Interessante observar que, embora esta tensão pudesse ser fruto da

pressão das classes populares, era travada pelos membros da elite. De um

lado, os defensores do profissionalismo que acreditavam no

desenvolvimento do esporte e da ascendente indústria do entretenimento, e

do outro, os defensores do amadorismo que desejavam manter os ideais

aristocráticos e a adequada sociabilidade entre as “boas famílias”.

Naturalmente que os amadoristas saíram derrotados, pois a lógica do

desenvolvimento da indústria do futebol não deixava espaço para a

manutenção de todos os ideais. 21

Todavia, os argumentos dos pro-profissionalistas não excluíam os

ideais civilizatórios do esporte e também não perdiam de vista o temor que

as relações explícitas em termos financeiros poderiam provocar no

desenvolvimento do futebol em geral, bem como em seus respectivos

clubes. Tanto temiam, que algumas limitações desenvolvidas ainda no

período do amadorismo foram mantidas (como, por exemplo, ter sede social

e campo de futebol, arcar com jóia de admissão22, o jogador deveria saber

21 - Caldas (1990) relata que, a par t ir da implantação do prof iss ionalismo, osquadros amadores não conseguiam mais manter a a tenção dos torcedores quecompareciam aos campos para ver os quadros profiss ionais jogarem. Pagavamingressos para ver a equipe principal formada pelos prof iss ionais . Os jogos entreamadores eram apenas uma atração prel iminar aos jogos dos profiss ionais . Caldas,Waldenyr . (1990). O pontapé in ic ial – memória do futebol brasi le iro . São Paulo .Ibrasa.

Um cronista espor t ivo refer iu a ta is jogos como “amansa sol” , uma vez que osprof iss ionais somente jogavam ao f inal da tarde, depois que a temperaturaest ivesse branda e o efei to do sol já não provocasse tanto desgaste . (Revista Fon-fon , 03 de ago/1933, p .7)

22 - É um valor que o in teressado em se tornar sócio de um clube dever ia pagar .Hoje esta taxa é denominada de cota . Cada clube, em função da sua estru tura e

13

ler e escrever.) 23 e, posteriormente, ao processo de profissionalização

outras foram implantadas, tais como: valores máximos dos salários, tempo

mínimo de permanência no clube e exclusão da substituição aos jogadores

que iniciassem os jogos. Tratava-se de medidas que assegurassem a

ordem, evitando as querelas entre os clubes e os jogadores contratados. O

mercado profissional era regulado.

. . .

Hirschman (1992)24, ao analisar algumas transformações sociais

marcantes na história recente da humanidade em torno da cidadania 25,

propõe três teses para argumentar acerca da tensão provocadas por

algumas destas transformações: da perversidade, da futilidade e da ameaça.

Seus pressupostos são de que estas teses são utilizadas na retórica dos

conservadores e reacionários e também dos chamados liberais e

progressistas. Tais teses, em geral, são utilizadas no balizamento das

argumentações, mas não necessariamente as três seriam utilizadas em

todas as retóricas.

grupo social a que se dest ina tem um valor específ ico. É uma estratégia decontrole sobre o perf i l do associado.

23 - Veremos esses mecanismos de controle na Par te 2 no Capí tu lo IV.Na Inglaterra fo i acei to o prof iss ional ismo, mas aos jogadores prof iss ionais fo ivetada a par t ic ipação em qualquer comitê , bem como comparecerem às reuniõesda associação. Lever , Janet . (1983). A loucura do futebol . Rio de Janeiro . RecordS.A.

24 - Hirschman, Albert . O. (2000). A retór ica da in transigência . São Paulo.Companhia das le tras .

25 - Como exemplo para suas argumentações, Hirschman trabalhou com trêsmarcos sócio-pol í t icos: Revolução francesa (caracter izado pela ascensão das

14

Na tese da perversidade, ou do efeito perverso, o autor argumenta

que “qualquer ação proposital para melhorar um aspecto da ordem

econômica, social ou política só serve para exacerbar a situação que se

deseja remediar.” (p.15) Segundo Hirschman, a tentativa de conduzir a

sociedade à determinada direção fará que ela se mova a uma direção

contrária. Neste ponto de vista, a mudança proposta poderia provocar um

efeito perverso à aquele esperado.

Quanto à tese da futilidade, aponta Hirschman que os argumentos

utilizados são colocados na perspectiva da nulidade da ação esperada:

“sustenta que as tentativas de transformações social serão infrutíferas, que

simplesmente não conseguiram deixar sua marca.” (p.15) A tentativa de

mudança, neste caso, não teria o seu propósito satisfeito, pois seriam

mudanças de fachada, uma espécie de maquiagem ilusória, visto que as

estruturas profundas da sociedade permaneceriam intactas.

Finalmente, na tese da ameaça, Hirschman esclarece que o

argumento utilizado pelos atores é o do perigo eminente: “o custo da reforma

ou mudança proposta é alto demais, pois coloca em perigo outra preciosa

realização anterior.” (p.16) Nesta retórica, os atores argumentam que a

mudança proposta, mesmo que seja desejável em si, provocaria custos ou

seqüela intolerável. Portanto, mesmo que haja expectativa de mudança

satisfatória, deveria ponderar se tais mudanças se justificam em função do

custo de sua implantação. Hirschman trabalha no plano das idéias. Ele

apresentou as mudanças sociais e os argumentos utilizados pelos

l iberdades individuais) , Sufrágio universal ( relacionado à ascensão dademocracia) e Welfare State (Ascensão dos d ire i tos c iv is) .

15

reformadores e contrários a tais transformações. Sua intenção foi mapear a

intransigência praticada tanto por reacionários quanto pelos progressistas.

Diante deste modelo de Hirschman (1992), pretendemos

demonstrar que estas três teses por ele elaboradas também estiveram

presentes na retórica dos dirigentes do futebol brasileiro durante os anos

que antecederam o processo de profissionalização, e ainda permanecem,

em alguma medida, nos argumentos atuais. Veremos na Parte 2 deste

estudo que os pressupostos utilizados tanto pelos amadoristas, quanto pelos

pro-profissionalistas, são dotados de argumentos da intransigência acerca

do efeito perverso, de futilidade e da ameaça. Nas narrativas atuais

relacionadas às mudanças das leis esportivas (Lei do passe, Estatuto do

torcedor, responsabilidade fiscal dos clubes), também percebe-se que tais

argumentos surgem nos discursos tanto dos fomentadores das mudanças,

quanto daqueles que as combatem.26

Segundo Hirschman (1992), “a perturbadora experiência de ver-se

excluído, não só das opiniões, mas de toda a experiência de vida de grande

número dos nossos contemporâneos, é, com efeito, típica das sociedades

democráticas modernas.” (p.9) Possivelmente este sentimento quanto à

possibilidade de exclusão do espaço de jogo em detrimento à competência

dos jogadores remunerados tenha provocado descontentamento dos

jogadores da elite, aqueles que praticavam o esporte como lazer e/ou status

social, sem o interesse econômico sobre a atividade. Sentimentos similares

26 - Vejamos que as recentes mudanças nas le is esport ivas bras i le iras sãofreqüentemente quest ionadas. Alguns dir igentes espor t ivos combatem

16

também poderiam ter sido originados pelos dirigentes, para os quais as

mudanças oriundas com a chegada do regime profissional poderiam

provocar, principalmente, a perda do poder. Hirschman nos faz lembrar que

a própria democracia foi vista com suspeição no século XIX e no início do

século XX.

. . .

Os termos amador e profissional no espaço esportivo permitem ser

utilizados tanto para se qualificar positiva e negativamente determinados

vínculos do atleta. São termos polissêmicos e versáteis. Ser amador ou

profissional tornou-se valor que pode ser empregado conforme o contexto.

Todavia, a utilização dos referidos termos como critério para conceituar o

vínculo do jogador geralmente apresenta contradições.

Várias questões surgiram no decorrer do estudo. Qual é o

significado e valor atribuído ao termo amador na história do futebol

brasileiro? Quais implicações e dilemas o amadorismo e seus valores

criaram no desenvolvimento do futebol antes e depois deste profissionalizar-

se? Uma vez profissionalizado, como manter a emoção se o interesse

econômico passou a ser admitido? O que existe em comum nesse longo

processo de tensão nas narrativas produzidas pelo futebol brasileiro, que ora

valoriza o amadorismo, ora o desvaloriza, ora valoriza o profissionalismo, ora

o desvaloriza?

ferrenhamente os argumentos daqueles que tentam implantar novas d iretr izes parao espor te brasi le iro.

17

As narrativas acerca do profissionalismo esportivo e suas

transformações em espetáculo popular parecem admitir (ou compactuar,

mesmo que de forma pouco explícita) parte dos apontamentos realizados

por Santo Agostinho, quando, no início da Era Cristã, distinguia os três

principais pecados aos quais o homem estava sujeito: ânsia por dinheiro,

ânsia por bens materiais e o desejo sexual, conforme apontou Hirschman

(2000:18). Observemos que a transformação da estrutura esportiva para

concepções mais modernas, ao abandonar o amadorismo (como princípio

da ética e da moral) e encampar o profissionalismo, pareceu aproximar-se

deste dois primeiros pecados discriminados por Santo Agostinho. O desejo

de ostentação de bens matérias e a ânsia por dinheiro tornaram-se também

os referenciais das conquistas a serem almejadas pelos atletas, desde muito

cedo, onde já não se contentavam apenas com os prêmios simbólicos

(Mandell, 1986) 27 ou honoríficos (Veblen, 1974), como outrora. Essa lógica

foi utilizada como argumento contrário à profissionalização do futebol.

De acordo com Hirschman (2000), Santo Agostinho agia com

imparcialidade no julgamento destas três paixões humanas. Todavia, admitia

atenuante, quando alguma delas combinava com “um forte anseio por louvor

e glória”, da forma que agiam os primeiros romanos, “os quais

demonstravam amor babilônico por sua pátria terrestre, e que substituíram o

27 - Mandel l argumenta que, embora os at le tas vencedores em Olímpia e outrosfest ivais na Grécia , a inda nos Jogos Gregos Antigos, recebessem as dis t inçõessimbólicas (coroas de louro, c in tas e ramas de ol iva) , já buscavam sercontemplados com os prêmios em espécie e em metal concedidos pelas c idades eseus tr iunfadores . Prat icamente nenhum at le ta demonstrava interesse em compet irem eventos dotados exclusivamente por prêmios s imbólicos. (p .67/70) . Mandell ,Richard . D. (1986). Histor ia cul tural del depor te . Barcelona. Ediciones Bel laterra

18

desejo de riqueza e muitos outros vícios, por esse seu único vício: o anseio

pelo louvor,” (p.18)

“Santo Agostinho concebe a possibilidade de um vício exercer aação refreadora sobre outro. De qualquer maneira, a suaaprovação da busca da glória, ainda que limitada, abriu umabrecha que viria a ser aprofundada para além do que seusensinamentos autorizavam, pelos representantes do idealcavalheiresco e aristocrático; este transformou a busca da honrae glória no critério de avaliação da virtude e grandeza do homem.(...) O amor da glória, em contraste com a busca exclusivamenteprivada de riquezas, podia ter um valor social compensador.”(p.18)

Alguns historiadores, tais como Mandell (1986) e Diem (1966)28,

apontam que os jogos gregos representavam uma homenagem das cidades

e das famílias aos seus deuses e divindades como forma de agradecimento.

Eram cerimoniais sagrados. As competições se davam através da

confrontação de alguns indivíduos que fossem capazes de demonstrar

capacidade de superação, contudo, essa superação individual do atleta

recaia sobre valores coletivos, representados pela cidade e pela família. A

honra e a glória individual eram também a honra e a glória da sua

comunidade. Vejamos como esta situação recebeu novos valores na

atualidade; o jogador continua representando coletividades, porém uma

coletividade com contornos mais extensos. Passa a representar valores

coletivos em diferentes esferas sociais. Se antes ele representava núcleos

menores (famílias e cidades), os atletas atuais são representações de tribos

28 - Diem, Carl . (1966) . Histor ia de los deportes . Barcelona. Luis de Caralt . Vol I

19

mais numerosas.29 Essas tribos, no sentido de Mafessoli (1987),30 se

formaram de contorno bastante distinto dos princípios que sedimentaram as

coletividades sociais na antigüidade. Todavia, se a busca de honra no

esporte amador assemelhava-se ao ideal agostiniano, no esporte

profissional a honra não está associada somente aos feitos e às vitórias;

está ligada também ao valor de mercado, ao acúmulo de capitais seja pelos

jogadores ou pelos clubes. Geralmente, as vitórias e feitos correlacionam-se

com o valor da acumulação.

As transformações dos propósitos das competições originaram

novos valores, diferentes daqueles que caracterizavam os jogos em forma

de passatempo de outrora, bem como os rituais greco-romanos.31 A cultura

espiritual e de homenagem às divindades parece não fazer mais parte dos

rituais esportivos modernos, pelo menos de forma explícita, como apontou

29 - Os dois c lubes considerados de maiores torcidas no Brasi l (Flamengo eCorinthians) são denominados de nações. No s i te de busca google, existem 821home pages que fazem alusão à nação Rubro-Negra, a lém de dois recentes l ivroscom seus t í tulos relacionados a esta denominação: Alves, Ivan. (1989). Umanação chamada Flamengo. Rio de Janeiro. Edi tora Europa; e , Coutinho, Ediberto.(1990) . Nação Rubro Negra. Rio de Janeiro. Record.

No google, também podem ser encontrados 431 home-pages que se referem ànação Corinthiana. h t tp : / /www.google .com.br

30 - Maffesol i (1987) argumenta que exis te uma rede invis ível de l igação paraaf in idades de gostos, sent imentos e necessidades . O sujei to es tá l igado aos outrospor alguns sent imentos colet ivos, o que lhe faz compart i lhar nessa comunidade deforma pecul iar às ações colet ivas de cunho universal , conforme ocorre com ostorcedores das agremiações espor t ivas e tantos outros movimentos socia is .Maffesol i denominou de t r ibos essa comunidade formada por estes indivíduos degosto e af in idades comuns. Maffesol i , Michel . (1987). O tempo das tr ibos . Odecl ín io da individual idade na sociedade de massa. Rio de Janeiro. Forense.

31 - Segundo Yalour is (2004), não havia fest ival rel ig ioso que não incorporasse ocul to dos deuses a celebração dos jogos. “ . . . As c idades e os c idadãos competiamentre s i para ver que demonstrar ia de modo mais eloqüente, o seu respei to paracom os Deuses de Olímpia. . . .” Yalouris , Nicolaos. (2004) . Yalouris , Nicolaos(2004) . In : Tsirakis , Stykianos (Org.) Os jogos Olímpicos na Grécia Antiga. SãoPaulo. Odysseus Edi tora .

20

Mandell e Yalouris. A competição passou a se estabelecer sobre novos

sentimentos, uma paixão que a princípio parece não ter relação direta com

os jogos antigos.32 Entretanto, os aspectos em que se desenvolvem essas

paixões por um clube parecem ainda pouco claros em termos sociológicos.

Na sociedade brasileira, o ganhar dinheiro no futebol, ainda hoje,

apesar de já terem se passado sete décadas da regulamentação

profissional, em algumas situações parece não ser legítimo, principalmente

quando se ganha muito dinheiro. Portanto, o que parece gerar polêmica,

causar revoltas, não é o dinheiro que se ganha para a sobrevivência ou para

a boa vida, mas o excesso de capital envolvido nas negociações.33

Antes da profissionalização também existia uma inquietude devida

aos valores pagos a título de auxílio para o transporte, conforme denunciou

o jogador Russinho na década de 1930. O próprio Coubertin teria colocado

em dúvida se haveria a possibilidade de o atleta ser restituído de suas

despesas, ainda nos primeiros Jogos Olímpicos Modernos.34

32 - “Os helênicos ant igos acreditavam que a vi tór ia em Olímpia era devida aofavor dos deuses. O vencedor era o seu elei to , a quem eles ajudavam a conquistaro premio legendár io e cujo nome permanecia nos lábios de todos os homens atémesmo depois que o f io de sua exis tência fosse cortado.” (p .150) Pentázou, M.(2004) . Honras confer idas aos vencedores. In : Tsi rakis , Stykianos. (Org.) . OsJogos Olímpicos na Grécia Antiga . São Paulo. Odysseus Editora .

33 - Entretanto, apenas 3,57% dos jogadores recebem mais de 20 salár ios mínimos(SM) (O Globo, 25 de mai/2003, p .50) , num universo de 11 mil jogadoresfederados em 2003 (Home page da CBF, acessado em 10/05/2003). (1 SM, 240reais , corresponde aproximadamente a 80 dólares) .

34 - Relatou Couber t in que, na tentat iva de se def inir um concei to sobre amador ,em 1909 foi enviado a todas as federações dos países in tegrantes do COI umformulár io constando as seguintes questões:

“1 - O prof iss ional em um despor to poderia ser amador noutro? ; 2 - O professorpoder ia ser amador nos despor tos que não ensinava? ; 3 - O amador que se tornouprof iss ional não poder ia recuperar a sua qual idade de amador? Admite exceções aesta regra? Quais? ; 4 - Deveria se admit ir o pagamento de compensaçõeseconômicas aos amadores pelos gastos de transporte e de hotel? Até que l imite? ; e5 - O at le ta dever ia perder a sua qual idade de amador pelo s imples contacto com

21

Parece ainda que, no caso do futebol brasileiro, o fato de se ter

vinculado, ainda nas primeiras décadas do séc. XX, os valores pagos aos

jogadores, a título de gratificações, 35 com as simbologias do ‘jogo do bicho’

mostra a predisposição de macular tais ganhos. Paradoxalmente, a

ilegalidade do ‘jogo do bicho’ na sociedade brasileira apresenta-se de forma

contraditória, pois é legitimado pelo interesse popular na aposta, porém

mantém o ‘ranço’ de um produto da contravenção. O combate a este crime,

como é considerado pelas leis e autoridades, não apresenta eficiência, e a

sociedade convive pacificamente com os inúmeros anotadores36 que são

encontrados em praticamente todos os bairros da cidade do Rio de Janeiro e

outros Estados. Portanto, o futebol, ao vincular-se a esta contravenção37,

parece tornar-se impuro, questionado, colocando em evidência os valores

profanos.

. . .

um prof iss ional?” (p.119). Couber t in , Pierre de. (1997). Memorias o l ímpicas .España. Zimmermann Asociados SL.

35 - Bicho refere-se a um incentivo f inanceiro extra, com o qual os c lubesgrat if icam seus jogadores por vi tór ias ou resul tados necessár ios . Às vezes, umempate ou uma derrota por contagem mínima pode ser suf ic iente para umacolocação na tabela de classif icação. Também é um expediente u t i l izado quandose pretende incent ivar os jogadores de outra equipe, quando se está em jogo umresul tado que pode favorecer uma outra equipe. Ver sobre a or igem do termo em:Michel Herchmann e Kátia Lerner (1993). Lance de Sor te . O futebol e o jogo dobicho na Bel le Époque Car ioca. Rio de Janeiro . Diador im Ed.

36 - Nome que se dá ao encarregado de preencher a papeleta com a opinião e ovalor das apostas.

37 - Ver : Herschmann, Micael & Lerner , Kátia . (1993).

22

Depois de implantado o regime profissional, a crítica passou a se

estabelecer sob outros princípios, entretanto, quase sempre contrapondo o

interesse aos vínculos de pertencimento. A tensão provocada pelo interesse

financeiro, no período da implantação da profissionalização do futebol, ainda

permanece atual da mesma forma quando era empregado o amadorismo

marrom.38 Os valores morais e éticos, portanto, amadores, continuam sendo

focos das narrativas jornalísticas, mediadores entre o compromisso

profissional e os vínculos afetivos. Essas tensões serão observadas na Parte

4 deste estudo.

Tal engenharia, no plano argumentativo pode ser retirada da análise

de Hirschman (2000). Hirschman atribui a Montesquieu a idéia de uma ‘mão

invisível’; uma força que faz da busca das satisfações e das paixões

individuais uma canalização de força, mesmo que inconsciente para o bem

coletivo. (p.18)

Entretanto, as paixões foram questionadas por outros filósofos e

escritores religiosos que a combatiam, acreditando tratar-se de ocorrências

pecaminosas. As paixões heróicas passaram a ser apontadas de forma

distintas, tendo referências contraditórias em relação ao engrandecimento do

homem. Thomas Hobbes a colocava com simples autopreservação; La

Rochefoucauld a relacionava ao amor próprio; Pascal traduzia em vaidade e

fuga desesperada do verdadeiro autoconhecimento; e Racine descrevia as

paixões heróicas com degradantes (Hirschman, 2000 p.19). No século XVII,

coube ao Estado tentar manter o controle das manifestações e as mais

38 - Também denominado de amadorismo encober to , amadorismo cor-de-rosa,fa lso-amadorismo, pseudo-amadorismo, amadorismo canalha etc .

23

perigosas conseqüências das paixões, todavia, as repressões utilizadas

parecem não terem sido satisfatórias como aponta Hirschman (p.23).

A solução passou a ser mobilização das paixões, em vez da sua

repressão. Para Hirschman, o filósofo político Giambattista Vico39, no século

XVIII, era um dos preconizadores da transformação das paixões destrutivas

em algo construtivo, “as paixões dos homens inteiramente ocupados na

busca de sua vantagem privada são transformadas em uma ordem civil que

permitem aos homens viver em sociedades humanas.” (Vico, citado por

Hirschmam, 2000: 24). Observemos que Norbert Elias e Eric Dunning (1992)

sinalizam com a mesma lógica do deslocamento ao discorrerem sobre as

tensões no campo esportivo. Segundo Elias e Dunning, o esporte na

condição de lazer tem função de canalizar as tensões, isto é, o controle da

excitação. A excitação que se busca no espaço de lazer é considerada, de

certo modo, singular pelos autores. “Trata-se, em geral, de uma excitação

agradável. Embora possua algumas características básicas em comum com

a excitação que as pessoas experimentam em situações críticas sérias,

revela qualidades específicas.” (p.101)

Como manter os ideais educativos do esporte, preconizados pelo

ethos amador, na lógica do mercado onde a vitória se correlaciona com o

desenvolvimento do clube e com o acúmulo de capital? Qual seria o

contrapeso nesta nova dinâmica para mediar lógicas que à primeira vista

parecem contraditórias?

39 - Seu nome oficial era Giovanni Bat t is ta Vico.

24

O discurso do amadorismo é, de certa forma, a semântica

encontrada nas narrativas jornalísticas para falar de amor, paixão e

agressividade que o esporte solicita de seus protagonistas e expectadores.

Parece que, apesar da profissionalização é importante manter ‘vivas’ as

marcas que enfatizem o compromisso amador, como amor, paixão, raça,

onde o esporte seja um espaço capacitado para a mobilização de afetos.

Como combinar o “douceur” papel do capitalismo, do acúmulo de capital, em

um local que representa o esporte como mimese da guerra e espaço para

distinção da honra e da glória?

Os ideais românticos, estabelecidos por intermédio dos sonhos e

dos devaneios dos torcedores, parecem ser propulsores da ‘chama’ que

fazem do futebol este espaço de ancoragem de sentimentos paradoxais.

Como forma de passatempo, o futebol constituía-se em um espaço de festa

e confraternização que deveria ocorrer através da emulação desvinculada

dos interesses financeiros. Alguns cientistas sociais, cronistas, jornalistas e

torcedores, ainda hoje, apesar de todas as movimentações financeiras do

mundo esportivo, preconizam que o esporte deveria representar um espaço

sagrado, em que o dinheiro não deveria gerir os sentimentos, como lamenta,

por exemplo, o romântico Eduardo Galeano (1995), em seu livro El fútbol a

sol y sombra.40

40 - Galeano, Eduardo. (1995). El fú tbol a sol y sombra. Buenos Aires . Catálogos.

Galeano em entrevis ta ao jornal o Globo em 2003 reaf irma que “o fu tebolprof iss ional , o fu tebol como negócio , parece cada vez mais uma piada de maugosto”, cr i t icando o fato de a FIFA ter conduzido Ricardo Texeira ao cargo dedirei tor da just iça e do jogo l impo. Todavia, apesar de clamar por um esportesagrado, fora do espor te-negócio, admite que o futebol cont inua sendo o espor temais apaixonante, af irmando que até agora não se inventou nada digno decomparação. Casto , Lúcio. (2003, 6 de ju lho) . “Nada se compara ao fu tebol” –Entrevis ta com Eduardo Galeano. In: O Globo. Caderno Esporte , p 54.

25

Entretanto, outros acadêmicos acreditam que, apesar da

comercialização ‘dita’ exacerbada, ainda encontra espaço para o

romantismo e para manifestações sagradas, conforme aponta Helal

(1997:39). O espetáculo esportivo, apesar da desconfiança de que alguns

resultados possam ser fabricados, 41 ainda consegue se sustentar com

emoção, paixão e imaginação. O torcedor, mesmo aquele de clubes de

pequena expressão, acreditam (ou imaginam) que a vitória será possível.

Observemos que os devaneios são apropriados para sustentar o vínculo do

torcedor.

Pela sua própria dinâmica o esporte requer agressividade, paixão,

dedicação e amor à causa. É uma guerra simbólica onde tais valores devem

ser realçados. Ao se profissionalizar, estes sentimentos têm que ser

mantidos, mas a eles é agregado o comércio, uma racionalidade econômica.

Os interesses econômicos devem ser contrapesados pelos sentimentos de

amor ao clube, a comunidade. Portanto, cabe ao atleta agir centrado nesta

racionalidade, sem, no entanto, perder ou ignorar a imagem do vínculo

afetivo. Vejamos que os ideais amadores funcionam como uma espécie de

mecanismo regulador do comportamento que o profissional deverá

apresentar em suas ações.

Nossa principal hipótese é que, na narrativa esportiva brasileira,

seja dos dirigentes, torcedores, jogadores e da mídia, ocorrem

41 - Um exemplo recente desta desconf iança sobre a fabr icação de resul tados fo i af inal da Copa do Mundo de 1998, realizada na França, quando alguns cronis tas ,jornal is tas e torcedores suspei tavam (ou colocavam em dúvidas) que a v i tór ia daseleção francesa sobre a brasi le ira na f inal ter ia s ido favorecida por alguns

26

deslocamentos e fusões entre o discurso romântico, cifrado pelos ideais

amadores, e econômico, na perspectiva do ethos profissional.

Este estudo tem como objetivo realizar uma análise do discurso

circulante acerca dos dilemas entre o amadorismo e o profissionalismo no

seio do futebol, ao longo do seu desenvolvimento na sociedade brasileira.

Optamos por um “olhar etnográfico” dos conteúdos jornalísticos relacionados

ao futebol, prioritariamente na imprensa carioca.

O percurso analítico será o seguinte: 1) analisar a construção do

conceito de amador no seio do esporte brasileiro, por intermédio das leis

federais, bem como no seio do movimento esportivo internacional,

especificamente relacionado ao Comitê Olímpico Internacional - COI; 2)

analisar o período de profissionalização do futebol brasileiro, a transição

entre a fase amadora e profissional, sob as três teses propostas por

Hirschman: perversidade, futilidade e ameaça. Também trabalharemos com

um quarto argumento, que freqüentemente é utilizado na retórica dos atores

sociais, o romantismo; e 3) demonstrar que as narrativas atuais do futebol

ainda apresentam marcas do discurso amador.

O nosso texto terá a seguinte estruturação:

Na Parte 1 (O amadorismo e o profissionalismo no esporte:

Mapeando os conceitos)42 procuramos observar como os conceitos foram

jogadores e comissão técnica. Essa imagem de desconfiança permanece namemória social , quando a convulsão do Ronaldo Nazár io surge no embate .

42 - Sal les , José Geraldo do C & Soares, Antonio J . (2002) . Evolução da concepçãodo amadorismo no Movimento Olímpico Internacional: uma aproximaçãoconcei tual . In : Márcio Turini & Lamart ine P. Dacosta . (Orgs . ) . Coletânea detextos em Estudos Olímpicos. Vol 2 . Rio de Janeiro. Edi tora Gama Fi lho. A par t irdas cr i t icas e sugestões que recebemos no Fórum Olímpico 2002, buscamos re-processar este texto , acrescentando alguns argumentos que não estavam

27

apropriados ao longo do tempo, visitando a literatura nacional e

internacional. No capítulo I – A aproximação dos conceitos, realizamos uma

caminhada por enciclopédias e obras nacionais e internacionais onde os

termos começavam a ser utilizados e fundamentados. No capítulo II – O

amadorismo nos Jogos Olímpicos, procuramos entender como o termo foi

discutido e conceituado no seio deste movimento internacional.

Nossas apreciações começaram desde os Jogos Olímpicos Antigos.

Entretanto, estamos cientes de que o conceito de amador ainda não existia

naquele período, embora os comportamentos descritos de alguns atletas

possam se adequar aos princípios que mais tarde seriam considerados

amadores. Os autores de algumas destas obras que consultamos parecem

ter ignorado a temporalidade quanto à utilização deste conceito, referindo-se

a amadorismo e profissionalismo no esporte grego. Possivelmente seus

apontamentos estavam referiam-se a condutas e atitudes dos atletas

naquele tempo, a partir dos conceitos do século XIX.

Os jogos modernos passaram a sofrer transformações significativas.

Entretanto, as mais expressivas foram: o interesse da mídia que,

conseqüentemente, fomentou também o interesse de algumas das mais

conceituadas e ricas empresas multinacionais e os recordes (a instauração

de limites a serem atingidos como referência de competência).

Na Parte 2 (A profissionalização do futebol), buscamos

compreender o processo da profissionalização do futebol na Inglaterra e sua

contemplados no texto orig inal . Este estudo foi apresentado no Fórum Olímpico2002 – Rio de Janeiro. 25 a 28 de ju lho.

28

tardia aceitação no Brasil. Em alguns países esse processo ocorreu ainda

nos anos finais do século XIX.

Inicialmente, no capítulo III (O processo de profissionalização do

futebol na Inglaterra) realizamos uma incursão pelo profissionalismo inglês,

por acreditarmos que as modificações na estrutura geral da modalidade em

diversas nações tenham se dado com forte influência dos ingleses.

No capítulo IV (A rápida difusão do futebol – Uma volta pela história

do futebol brasileiro através do Rio de Janeiro), analisamos a trajetória da

implantação e sedimentação do futebol na cultura brasileira, onde

realizaremos uma contextualização partindo das querelas no Estado do Rio

de Janeiro, que naquele momento era a Capital Federal, 43 onde as

discussões tomavam forma.

No capítulo V (A tensão inicial do processo de profissionalização do

futebol brasileiro), observamos os embates que se davam entre os clubes,

federações e dirigentes sobre a expectativa gerada pela possibilidade de

adoção do profissionalismo.

No capítulo VI (Resgate e reestruturação do futebol brasileiro: o

amadorismo em crise), analisaremos o futebol carioca nos anos 20, onde

abordaremos outros três episódios: Na seção 6.1 - (A vitória do Clube de

Regatas Vasco da Gama em 1923 e a cisão na METRO), narraremos a

vitória do Vasco da Gama, no campeonato estadual de 1923, que ocasionou

uma ruptura na Liga Metropolitana de Esportes Terrestres - METRO entre os

principais clubes naquela época; Na seção 6.2 - (A fundação da AMEA – A

43 - O Rio de Janeiro per tencia ao ext into Estado da Guanabara .

29

busca do controle planejada pelos grandes clubes), observaremos a cisão

dos clubes e a fundação da Associação Metropolitana de Esportes Athléticos

- AMEA; e na seção 6.3 - (As Leis de inscrições e de estágios implantadas

pela AMEA), a intensificação do discurso anti-profissional na mídia carioca.

No capítulo VII (Russinho – Uma entrevista provocadora),

analisaremos as declarações contundentes e provocadoras do jogador do

Vasco da Gama “Russinho”, em entrevista ao jornal ‘O Globo’ nos primórdios

dos anos 30, período em que se preparavam a consolidação e o

reconhecimento do profissionalismo no futebol brasileiro. Russinho afirmava

naquele tempo que o amadorismo era uma farsa e que os jogadores já eram

profissionais da bola, ainda que marginalizados pelo fato de ter no esporte

sua fonte de renda e sustento.

No capítulo VIII (A tensão dos anos finais da década de 20 e os

anos iniciais da década de 30 – o Jornal do Fluminense Football Club

preparando o terreno para o profissionalismo), presenciamos como o veículo

informativo do clube tricolor tentava construir o terreno para a implantação

do profissionalismo, chamando a atenção dos seus leitores para as mazelas

que vinham ocorrendo no futebol carioca. Entretanto, observemos que o

próprio jornal dava voz aos descontentes com a possibilidade de mudança

do regime regente do futebol carioca.

Finalmente no capítulo IX (O profissionalismo do futebol brasileiro),

apresentamos os argumentos que foram utilizados pelas diferentes frentes

para justificar e negar a implantação do regime profissional. Este capítulo foi

30

dividido em três sessões: 9.1 - (Argumentos favoráveis e contrários ao

profissionalismo até sua instauração); 9.2 - (A instauração do

profissionalismo); e 9.3 - (Argumentos após a instauração do regime

profissional) Na primeira, recortamos argumentos favoráveis e contrários ao

profissionalismo até o período de sua instauração. Na segunda sessão,

tratamos da instauração do profissionalismo e dos embates entre os

dirigentes. E, finalmente, na terceira sessão, observamos os argumentos dos

pró-profissionalistas e dos inconformados com a adoção do novo regime.

Os argumentos aqui apresentados foram retirados de fontes

primárias, jornais de época. Presenciamos também que o embate se dava

entre os jornais e seus diretores que se posicionavam e defendiam de forma

parcial seus pontos de vista.

Na Parte 3 (A legislação esportiva brasileira: amadorismo,

profissionalismo e o futebol), realizamos um levantamento nos textos

constitucionais desde as primeiras leis que abordavam a prática esportiva no

Estado Novo até as leis atuais.

Nos capítulos X, XI e XII, mapeamos os conceitos à luz dos textos-

leis, os quais correlacionam ou diferenciam os limites entre as condições, os

direitos e princípios do atleta amador e do atleta profissional, bem como das

instituições esportivas.

No capítulo XIII (A reversão do profissionalismo – Que historia é

essa?), trataremos da possibilidade de o jogador de futebol retornar à

condição de amador após ter se profissionalizado dentro dos termos das leis

trabalhistas. Cabe à Confederação Brasileira de Futebol permitir, ou revogar

31

a sua condição de profissional. Ou seja, o jogador pode retornar ao status

amador sobre uma concessão oficial.

No capítulo XIV (Considerações finais acerca dos termos amador e

profissional nas leis brasileiras), procuramos através de quadros apresentar

as especificações codificadas nos textos-leis, quanto ao status do atleta, tipo

de prática, formas de organizações e quais modalidades recebiam

tratamento específico ou especial.

Observamos que os legisladores não conseguiam estabelecer

parâmetros de diferenciamento com clareza e precisão, onde os textos

constantemente deixam margens a questionamentos e dúvidas constantes,

o que os tornavam (e em certa medida ainda os tornam) inoperantes para o

Estado diante das instituições esportivas. As primeiras leis objetivavam

colocar o estado à frente das manifestações esportivas, que até então

apresentavam um caráter essencialmente privado (Negreiros, 2002)44,

entretanto, os mecanismos utilizados nem sempre conseguiam na prática

realizar este controle.

Negreiros argumenta que a ingerência do Estado nas atividades

esportivas não ocorrera simplesmente por desejo da nova estrutura do poder

editada pela era Vargas, mas porque a própria sociedade entendia que essa

intervenção seria benéfica naquele momento.45

44 - Negreiros , Pl ín io Labriola (2002). Ber l im – 1936 e o corpo a serviço da nação:organizando e d iscipl inando o fu tebol . In : Marcio Turini & Lamart ine DaCosta .(Org.) . Coletânea de textos em Estudos Olímpicos. Vol 2 . Fórum Olímpico. Rio deJaneiro. Edi tora Gama Fi lho. 239-268p.

45 - Negreiros aponta que a ingerência do Estado no espor te tenha se dado apedido dos próprios d ir igentes espor t ivos e pela pressão de alguns setores(Entidades estudant is e mil i tares) , em função da par t ic ipação da representaçãobrasi le ira nos Jogos Olímpicos de Berl im em 1936. Após a implantação do

32

Na parte 4 (A permanência das narrativas amadoras no contexto

do futebol profissional), selecionamos argumentos que enfatizam as

marcas que caracterizam a dificuldade de estabelecer os limites entre o

comportamento amador e envolvimento profissional presentes nas narrativas

da mídia brasileira acerca do fenômeno esportivo, principalmente no futebol.

Focamos nossas análises na tentativa de entender como estes

conceitos se fundamentaram (e ainda fundamentam) em um discurso

carregado de ambigüidades, ou contradições, e são re-adaptados a cada

momento que objetiva discutir o compromisso dos personagens que

sustentam as narrativas esportivas.

Os capítulos ficaram assim constituídos:

No capítulo XV (Afonsinho – Uma voz inquietante ou um mito da

resistência?), analisaremos o episódio do jogador “Afonsinho”, ocorrido nos

finais dos anos 60 e início dos anos 70, quando insatisfeito com sua

condição no elenco do Botafogo, rebelou-se aos mandos dos cartolas e

conseguiu na justiça o seu passe livre, abrindo um precedente que marcaria

determinantemente as relações trabalhistas, a partir daquele instante, entre

os jogadores e seus clubes. Ao re-visitarmos este acontecimento, deparamo-

prof iss ional ismo no futebol, duas organizações tentavam se estabelecer comoórgão máximo na direção do futebol brasi le iro: a Confederação Brasi le ira deDespor tos (CBD) e a Federação Brasi le ira de Futebol (FBF). O Comitê OlímpicoInternacional somente reconhecer ia uma ent idade por país , o que provocou grandetranstorno no espor te nacional que pretendia representar o Brasi l naquele evento.Estra tegicamente era prudente para o Governo Vargas enviar uma delegaçãorepresentat iva para os jogos organizados pelos nazis tas . Como o impasse entreCBD e FBF não foi solucionado, coube a Vargas mediar e in terfer ia nasorganizações espor t ivas. (Negreiros , 2002)

33

nos com outros episódios marcantes daquele período glorioso do futebol

brasileiro, a conquista do tricampeonato mundial no México;

No capítulo XVI (Releitura do caso Bebeto – A transferência do

Flamengo para o Vasco da Gama), analisaremos o episódio da transferência

do jogador Bebeto, que, nos finais dos anos 80, deixou o Flamengo e se

transferiu para a equipe arqui-rival Vasco da Gama, gerando um embate de

elevada simbologia dentro do campo esportivo. Esta transferência

impulsionou várias narrativas acerca do comprometimento e do vínculo entre

o jogador e o clube. Tal acontecimento foi estudado por Helal e Coelho em

1995 no texto denominado Modernidade e tradição no futebol brasileiro: O

“caso Bebeto”.46

No capítulo XVII (David Fischel – Um dirigente modelo?),

observaremos as declarações do Sr. David Ficher, presidente do Fluminense

Football Club, sobre as novas perspectivas que demandam para o esporte

em tempo de crise financeira e a contratação de Romário para a temporada

do ano comemorativo do centenário do Fluminense.

No capítulo XVIII (Ronaldo Nazário – O homem de 100 milhões),

narraremos a rápida trajetória da vida esportiva do Ronaldinho e

principalmente a sua transferência da Internazionale de Milão para o clube

espanhol Real Madrid após a Copa do Mundo de 2002, que gerou a

discussão acerca do envolvimento profissional.

46 - Helal , Ronaldo & Coelho, Maria Claudia. (1995). Modernidade e tradição nofutebol brasi le iro: O “caso Bebeto” In : Pesquisa de Campo – Revista do Núcleode Sociologia do Futebol; UERJ/Depar tamento Cultural /SR-3 nº 2 (1995). 91-99p

34

PARTE 1

O AMADORISMO E O PROFISSIONALISMO NOESPORTE: MAPEANDO OS CONCEITOS 47

“Não gostamos que países comprem desportistase dêem a eles um passaporte sem umajustificativa social”.

(Jacques Rogge)48

Capítulo IA aproximação dos conceitos

Faremos uma revisão conceitual, na qual se busca diferenciar os

conceitos, bem como aproximá-los ao campo esportivo através da literatura

e das enciclopédias.

Durante algum período, o conceito de amador parecia estar

vinculado a uma relativa incompetência ou, ainda, à incapacidade de

desenvolver uma tarefa de forma brilhante, conforme aponta o Dictionnaire

47 - Os apontamentos prel iminares deste estudo foram publicados na Coletânea detexto em Estudos Olímpicos. Sal les , José Geraldo do Carmo & Soares, AntonioJorge G. (2002). Evolução da concepção do amadorismo no movimento ol ímpicointernacional : uma aproximação concei tual . In : Turini , Márcio & DaCosta ,Lamart ine P. (Orgs.) . Coletânea de textos em estudos ol ímpicos. Rio de Janeiro .UGF. Vol 2 . p .437-453.

48 - Jacques Rogge é presidente do COI. Tal s i tuação tem ocorr ido inclusive entrepaíses onde os vínculos raciais não apresentam descendências . (Jornal Lance, 8 deoutubro de 2003, p .2) .

35

de la langue francaise, em 186349, quando coloca: “Ser amador é ser um

homem de um talento medíocre” (p.132). Todavia, esta percepção parece ter

sido referência para outras interpretações com a mesma perspectiva. O

Dicionário Universal da língua Portuguesa (1972)50 define amador como

“Aquele que entende superficialmente de alguma coisa.” (p.264)

O conceito de amador surgiu fora do campo esportivo, inicialmente

relacionado à arte em geral, no século XIX. Tais definições, no entanto,

parecem que, inicialmente, não se aplicavam ao esporte, o que somente

veio ocorrer a partir da tensão da profissionalização do futebol em alguns

países europeus, tais como Inglaterra e Escócia.51 Por analogia, pode-se

imaginar que o crescimento esportivo e as tensões ocorridas no seio do

esporte mundial na virada do século XIX para o XX tenham impulsionado a

discussão acerca da conceituação. À frente, veremos como este conceito

encontrou dificuldades para ser fundamentado mesmo no Comitê Olímpico

Internacional, instituição que tentava garantir um distanciamento entre o

esporte amador e profissional.

Entretanto, na primeira década do século XX, o Standard dictionary

(1906)52 trazia uma definição que se aproxima dos conceitos encontrados

49 - Dict ionnnaire de la Langue Française (1863). Londres. Librair ie de L.Hachet te. Et Cie . “Cest um amateur , e’es t um homme d’um talentmedíocre”.(p.132)

50 - Dicionár io Universal da Língua Portuguesa (1972). Vol 1 A-B. São Paulo.Comp. Melhoramento.

51 - O profiss ional ismo do futebol inglês e escocês ocorreu nos anos de 1885 e1893, respect ivamente.

52 - Standard Dict ionary (1906). London. Librar ies Rose“ (1) Pract ic ing an ar t or occupat ion for the love of i t , but not as a profession; as ,an amateur sculptor ; (3) – In ath let ic spor ts , an ath lete who has not engaged incontests open to professional a th lete , or used any ath let ic ar t as a l ivel ihood. The

36

ainda hoje, a qual será transcrita na íntegra. Inicialmente, a definição aplica-

se às artes e, posteriormente, aborda a questão esportiva:

“1 – Praticar uma arte ou ocupação somente por amor, mas não éum profissional, é um escultor amador.3 – Em esportes atléticos, um atleta que não tem comprometidoem competir aberto ao profissional atleta, ou usado alguma arteatlética como um encapuzado. O termo varia em emprego, e éusualmente melhor definido na regulamentação das associaçõesatléticas, mas a definição é passível de trocas.” (p.63)

Em 1935, a The Columbia Encyclopedia já apresentava um conceito

de amador relacionado ao campo esportivo, que era admitido pela Amateur

Athetic Union dos Estados Unidos, estabelecendo que “um amador esportivo

é aquele que engaja no esporte somente para o prazer e benefícios físicos e

mentais, ou os benefícios sociais derivado dele.” (p.59) 53 Esta definição

parece oportuna, na medida em que teria surgido em um período próximo à

profissionalização do futebol brasileiro. Possivelmente, a profissionalização

do futebol no Brasil tenha sido estruturada admitindo preceitos e

conceituação desenvolvidos pelos ingleses.

Recentemente, presenciamos o embate acadêmico e federativo em

tentar estabelecer uma definição do termo, entretanto veremos, na seção

relacionada aos Jogos Olímpicos, que esta situação não foi resolvida.

Segundo Hobsbawn (1989)54, o conceito de amador, na era dos impérios,

term varies in usage, and is usual ly more specif ical ly def ined in the regulat ionsof a th le t ic associat ions, but the def ini t ion is l iable to change”. (p .63)

53 - “an amateur spor tsman is one who engages in sports solely for the p leasureand physical , mental , or socia l benef i ts he der ives there f rom.”

54 - Hobsbawn, Er ic. (1989) . A era dos impérios: 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz eTerra.

37

aplicava-se a “aquele que dedicasse, mais tempo na prática de um esporte

que um operário poderia dedicar, entendendo que o tempo livre/disponível

para a burguesia na época era maior, então era considerada amadora.”

(p.233-270)

Tubino et al (1997)55 conceituam amadorismo como ‘Esporte como

competição, mas com a finalidade de proporcionar prazer, lazer, saúde e

educação.” Segundo os autores, isto teria sido proposto para extinguir “a

imagem de competição em que as apostas de dinheiro, comuns naquela

época, deturpavam os objetivos mais elevados do esporte.” (p.12) Buscavam

os ingleses um esporte livre das perversidades que o acompanhavam no

final do século XIX, principalmente a partir do ressurgimento dos Jogos

Olímpicos. Pretendiam os ingleses fomentar um esporte com base nos

preceitos do fair play, capaz de ressaltar as virtudes dos homens. Desta

forma, o fair play surge como uma característica do esporte moderno56

55 - Tubino, Manoel . J . G. e t a l l i . (1997). A evolução do espor te . In: Educaçãopara o espor te . Telecurso 2000. São Paulo: Edi tora Globo S.A.

56 - Par lebas, Pierre (1998), conceitua o espor te moderno como uma “si tuaçãomotr iz de enfrentamento codif icado”, que se caracter iza pela “presença defederações, instância de dir igentes , regulamentos legí t imos, competiçõesconsagradas, disposi t ivos de s tatus, calendár ios, recompensas e sançõesfor temente elaboradas” (p.40) Parlebas, Pierre . (1988). Elementos de sociologiadel depor te . Junta de Andalucia - Malaga (Spain) .Para El ias (1990), a inst i tucional ização dos espor tes modernos da forma que oconhecemos, ter ia surgido na Inglaterra no séc. XVIII , como fruto da conformaçãosocial que vinha se processando naquela sociedade desde há muito tempo.Segundo Elias , isso foi ref lexo de um processo de pacif icação pol í t ica e socialque ocorr ia em diversos setores , chegando até aos jogos e passatempos. El ias ,Norber t (1990). O processo civ i l izador . Uma his tór ia de costumes. Rio de Janeiro.Jorge Zahar Edi tor Ltda.Si lva (2002), argumenta que os valores do espor te moderno, suasregulamentações, o concei to de fair p lay e de amadorismo ter iam surgidoamplamente embasados e e ivados de valores e regulamentações da igreja catól ica .Si lva, Leidina H. de O. (2002). Igreja Catól ica, a t iv idades corporais e esportes:superando preconcei tos . (Tese de doutorado) . Programa de Pós-Graduação emEducação Física - UGF. Rio de Janeiro.

38

diretamente vinculado ao amadorismo. Conforme Tubino et al (1997), esta

“expressão pode ser entendida como uma atitude elegante, ética da

aceitação e respeito às regras e aos códigos esportivos, em que os

competidores devem ver seus oponentes apenas como adversários

esportivos, mas não inimigos.” (p.12)

Ommo Grupe (1988)57, em ‘O desporto de alto nível (ainda) tem

futuro?’, entende o amadorismo como um compromisso particular, e não

uma obrigação atribuída ao atleta. Constitui um apelo à consciência

desportiva do indivíduo. De acordo Grupe, o ideal do amadorismo está

relacionado “com um tipo de autocompromisso e destinava-se a preservar

um caráter nobre e cavalheiresco pela renúncia a todas as variedades de

profissionalização da atividade atlética.” (p.11)

Eric Dunning (1992) define ethos amador como a ideologia

desportiva dominante na Grã-Bretanha moderna, berço do esporte moderno.

Coloca, ainda, que o componente principal deste ethos é o ideal da pratica

de desporto ‘por divertimento’.

“esta mobilização dos valores amadores, com acento tônico noprazer, como um ingrediente essencial do desporto surgiu numestágio inicial do desenvolvimento das modernas formas dedesporto num tempo em que, acima de tudo, o desportoprofissional, tal como conhecemos hoje dificilmente existia.”(p.313)

57 - Grupe, Ommo. (1988) . O despor to de al to n ível (ainda) tem futuro? Umatenta t iva de def inição. Lisboa. Codex.

39

Segundo Dunning, desde muito cedo surgiam críticas ao perfil

amador implantado pelos ingleses. Trollope apresentou, em 1868, sua crítica

aos rumos que o esporte estava conduzindo os homens.

“[Os desportos] estão a tornar-se excessivos e os homens que ospraticam permitiram que lhes fosse lembrado que o sucessovulgar não vale nada... Tudo isso provém do excesso deentusiasmo sobre o assunto, do desejo de alcançar comdemasiada perfeição um objetivo que, para ser agradável, deveriaser um prazer e não um negócio... [Esta] é a rocha contra a qualos nossos desportos podem talvez naufragar. Sempre que setorne pouco razoável nas suas despesas, arrogante nas suasexigências, imoral e egoísta nas suas tendências, ou, pior do quetudo, pouco limpo e desonesto no seu movimento desencadearácontra si a opinião pública, face à qual será incapaz de semanter.” (Trollope apud Dunning, 1992, p.313) (grifos nossos)

Nota-se que Trollope parecia estar envolto a sentimentos

românticos, que colocava o esporte como um valor moral, um privilégio para

aquele que o praticava.

Dunning argumenta que possivelmente, estas críticas tivessem

como alvo o culto dos jogos nas escolas públicas inglesas, quando coloca

que este movimento possivelmente nasceu nas escolas da elite. Na maioria

dessas escolas, os alunos não necessitavam da formação acadêmica para

sua carreira profissional, visto que já eram indivíduos privilegiados

economicamente pela família, e o culto dos jogos era uma forma de

autopromoção e tornava-se um negócio. Este culto dos jogos nas escolas

públicas sustentava-se, principalmente, sobre cinco componentes:

“1) a tendência para nomear e promover pessoal de acordo comum critério desportivo mais do que segundo um critérioacadêmico; 2) a seleção de prefeitos, isto é, dos rapazes que

40

assumiam os comandos nas escolas, com base, em especial, nacapacidade demonstrada no desporto; 3) a elevação do desportoa uma posição dominante e, em certos casos, proeminente, nocurrículo; 4) a racionalização educativa do desporto, em particulardas equipes, como instrumento de treino do caráter; e, 5) aparticipação de membros do pessoal docente na organização enos jogos dos seus alunos.” (p.314)

Apontou Dunning que o ethos amador na Grã-Bretanha antes da

década de 1880 se encontrava de maneira relativamente incipiente. “A moral

amadora era um conjunto de valores amorfos, articulado de maneira vaga no

que diz respeito às funções do desporto e aos padrões que se acreditava

serem necessários a sua realização.” (p.314)

Com o prenúncio do surgimento do profissionalismo no futebol e no

rúgbi, as elites dominantes sentiram a necessidade de consolidar o perfil

amador, uma vez que sentiam como ameaça a tentativa de

profissionalização fomentada pela classe média e pelas classes

trabalhadoras. Portanto, a cristalização dos princípios amadores surgiu como

uma ideologia elaborada a partir do interesse da elite inglesa (Dunning,

1992:315).

Segundo Dunning (1992), estavam em jogo o prestígio e o privilégio

da elite das escolas públicas e, por isso, acreditavam que a fundamentação

dos ideais amadores poderia manter o domínio. Portanto, sob esta ideologia,

a moral amadora apresentava uma função determinante. Segundo Vinnai

(1974)58, as regras do amadorismo teriam surgido como mais um

mecanismo de fechamento do estrato superior inglês, não tanto por

58 - Vinnai , Gerhard. (1974). El fú tbol como ideología. Bueno Aires . Sigloveint iuno edi tores S.A.

41

idealismo, mas para manter as classes populares fora do esporte, que a elite

pretendiam reservar como seu espaço privado de diversão.

Deste modo, percebe-se que o conceito de amador, bem como a

sua derivação, amadorismo, foi elaborado desde o século XIX, período em

que se consolidavam as principais transformações esportivas no cenário

mundial. Todavia, podemos perceber, por meio das fontes acima

apresentadas, que o conceito originou inicialmente nas artes e sua adoção

no esporte parece ter sido implantada pelos ingleses no momento em que o

esporte assumia uma nova fase, considerada pelos historiadores como o

surgimento do esporte moderno. De uma concepção de incompetência, ou

mediocridade, passou a assumir novos valores, aplicados à nova dinâmica

social, vinculada ao perfil aristocrático, até que recebeu no esporte um

aparato romântico, que se aplicava a uma visão singular da classe

dominante, buscando atender a excentricidade dos indivíduos de tempo

disponíveis, conforme apontou Hobsbawm (1989).

A palavra profissional, pertinente à profissão, trata-se de “pessoa

que exerce por ofício uma profissão, um mister, por oposição ao amador”

(Delta Larousse, 1970). Observemos que o termo é conceituado como

oposição ao termo amador.59 A mesma referência coloca ainda que

profissionalismo refere-se à “dedicação profissional a uma atividade ou

carreira que outros cultivam com amadores.” (p.5552) Para a referida obra,

os termos são conceituados em oposição. Já o dicionário Houaiss (2001)

estabelece que profissional é aquele “que [m] exerce uma atividade por

42

profissão” (p.358), enquanto amador refere-se a “que [m] não é profissional –

apreciador.” (p.21) No esporte, como poderíamos entender esta diferença

embasada em tais conceitos? Pareceram bastante frouxas as conceituações

para conseguir englobar o esporte e suas variadas possibilidades. Hoje,

encontramos elevado número de atletas remunerados nas mais distintas

modalidades, todavia, alguns são conceituados com esportistas amadores,

outros como profissionais.

O Conselho Nacional de Desporto (CND), órgão criado em 1941 por

intermédio do decreto-lei nº 3.199 de 11 de abril, estabelecia, como suas

principais atribuições, estudar e promover medidas no sentido de garantir a

disciplina e a organização das associações e demais entidades desportivas

do país, bem como “incentivar o desenvolvimento do amadorismo”, opinando

quanto às subvenções que deveriam ser concebidas pelo governo federal as

organizações desportivas no país (Delta Larousse, 1970: p.2148). Portanto,

a organização do esporte amador estaria a cargo do CND, que deveria criar

mecanismos de desenvolvimento e difusão do esporte amador. Esta lei,

contudo, ficou praticamente vinculada ao processo de intervenção nos

clubes e associações, onde seu processo de apoio e incentivo financeiro

acontecia de forma diferenciada para cada modalidade. Vários esportes

olímpicos nacionais, até bem pouco tempo, só conseguiam apoio financeiro

para levar as equipes a algumas competições oficiais, não estabelecendo

uma política de apoio freqüente para intercâmbio (amistosos, torneios etc).

Muitos deles só sobreviveram devido ao interesse de clubes e empresas,

59 - Todavia, a refer ida enciclopédia não traz uma def in ição do termo amador, nemda palavra amadorismo.

43

bem como de alguns atletas que financiam a sua prática, como é o caso, por

exemplo, do handebol em diversos estados brasileiros. Veremos na Parte 3

deste estudo como estes conceitos são apresentados nas leis esportivas

brasileiras.

Embora, seja clara a tentativa de se definirem os espaços e as

competências, oficialmente as estruturas gerais de administração esportiva

demandam outros viés de análises que colocam a especificação das leis em

cheque, quanto aos significados atribuídos aos conceitos.

Maria Helena Diniz (1998), no Dicionário jurídico60, coloca os

esportes profissional e amador vinculados ao desporto de rendimento, que

são conceituados dentro do direito esportivo. Amador encontra-se definido

como “aquele que pratica desporto por prazer e não por profissão” (p.185) e

profissionalismo, como “situação do atleta que recebe remuneração para

prática do desporto” (p.780). Quanto ao desporto de rendimento, a obra o

conceitua da seguinte forma: “É o praticado com o escopo de obter

resultados e integrar pessoas e comunidades do país entre si e com outras

nações.” Nesta mesma definição, encontramos ainda uma subdivisão que

tenta esclarecer as situações possíveis no desporto de rendimento: a)

esporte profissional; b) esporte não profissional; e c) esporte amador,

conforme transcrevemos abaixo:

“a) Profissional – havendo remuneração pactuada em contratoformal de trabalho entre o atleta e a entidade de prática desportiva(p.110); b) Não profissional – compreendendo o desportosemiprofissional: expresso em contrato próprio e específico de

60 - Diniz , Maria Helena (1998). Dicionár io Jur íd ico . São Paulo: Saraiva

44

estágio, com atletas entre 14 e 18 anos de idade, e pela existênciade incentivos materiais que não caracterizem remuneraçãoderivada de contrato de trabalho (p.110) e;61

c) Amador – identificado pela liberdade de prática e pelainexistência de qualquer forma de remuneração ou de incentivosmateriais para atletas de qualquer idade.” (p.110)

Editada em 193562, a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira

coloca que amador é “aquele que pratica o desporto apenas por amor ao

desporto, sem por seu intermédio alcançar direta ou indiretamente, qualquer

benefício”. A obra coloca ainda que esta conceituação pode ser diferenciada

em cada modalidade e de acordo com os regulamentos internacionais.

Todavia, “as leis só permitem, de um modo geral, o pagamento das

despesas exatas resultantes para o atleta das deslocações por motivo de

participação em provas.” A referida obra reafirma: “Os atletas amadores não

podem receber prêmios em dinheiro, exceto no hipismo, no tiro e na vela;

algumas modalidades como o foot-ball, admitem o regime da retribuição dos

salários perdidos.” (p.245) Por que naquela época o hipismo, o tiro e a vela

61 - Mesmo em competições of ic iais , no espor te de al to rendimento, é possívelencontrar dis t in tas formas de vínculo do at le ta , como, por exemplo, na Copa doBrasi l de fu tebol, quando ocorrem si tuações em que alguns clubes, pornecessidades momentâneas, recorrem à categor ia de base (*) , so l ic i tando at le taspara supr ir uma ausência ou def ic iência na equipe pr incipal . Isso acarreta naunião, em um mesmo espaço, de at le tas prof iss ionais e d i tos ‘não prof iss ionais’(**) . Tal constatação nos remete novamente para a necessidade de se anal isaremtais conceitos não somente re lacionados à modalidade, mas também aoenvolvimento do at le ta .(*) Em alguns momentos , na denominação popular , a categor ia de base éconsiderada amadora.(**) A equipe do São Paulo teve que recorrer à categor ia de base para conseguirum subst i tu to para o jogador Kaká, que estava contundido, v isando o jogo contrao Gama – DF pela Copa do Brasi l no dia 26 de março de 2003. Para seu lugar fo irequis i tado o jovem jogador Marco Antonio de 18 anos. (Jornal Lance, 26 demar/2003, p .3)

62 - Ju lgamos per t inente es ta def inição, por se tra tar de uma concei tuaçãodesenvolvida no per íodo em que o fu tebol brasi le iro se tornava profiss ional noBrasi l . Grande Enciclopédia Por tuguesa e Brasi le ira . (1935) Vol II . Lisboa: Riode Janeiro: Edi tor ia l Enciclopédia Limitada

45

já podiam ser remunerados contrapondo as referências morais do

amadorismo? Eles não pertenciam à elite? Ou será pelo fato de que, desde

muito cedo, já estavam articulados à bolsa de aposta? A enciclopédia tenta

explicar ou absorver a realidade, assim, acaba de surgir a contradição do

conceito amador com a prática dos esportes.

Bastos (1985)63 argumenta que foram inúmeras as solicitações do

Comitê Olímpico Internacional (COI) para que as nações buscassem a

unificação eficaz dos conceitos entre amadorismo e profissionalismo. Coloca

o autor:

“Nunca se pensaria na possibilidade de os clubes e associaçõesde desportos amadores, do tempo das ‘balizas as costas’ e dosjogos na ‘eira do trigo’, se transformarem nos mais poderososimpérios profissionais, multimilionários, capazes de pagar aosseus atletas importâncias superiores às de um ministro e derealizar transferências por somas elevadíssimas.” (p.10)

Segundo Bastos (1985), tal mudança se deu porque “o atleta tomou

consciência do valor de sua atividade” (p.10)64 e também por exigência do

público consumidor do espetáculo esportivo, conforme relata abaixo:

“(...), o público exige-lhe uma exibição cada vez mais perfeita, cujonível só é possível atingir quando se transforma a vida de o atletaem profissão. Poderá realizar-se então uma preparação metódicae consciente, dirigida a um fim que é distinto da simples euforia

63 - Esta obra foi f inal izada em maio de 1950, em Lisboa, conforme informaçõesna página 175. Esta edição foi produzida pelo Ministér io de Educação e Culturado Governo Por tuguês. Bastos , José Pereira . (1985). Desporto prof iss ional .Coleção Desporto e sociedade – Antropologia de textos – nº 4. Lisboa, MEC.

64 - Parece-nos que Bastos admite uma anál ise muito s implif icada do fenômeno.

46

pessoal e das vantagens higiênicas e salutares que podem advirdos jogos e desportos escolares e amadores.” (p.10)

Bastos (1985) coloca, ainda, que não é por exclusão de partes que

se conseguirá uma definição de esporte profissional, como é usualmente

feito. Afirma, ainda, que por intermédio da definição dada pela organização

do desporto amador, denominada Comitê Olímpico, é equivocado determinar

que os demais praticantes de esporte, que não se encaixam nesta definição,

sejam profissionais. Segundo o autor, o COI considerava amador “o

desportista que se entrega a prática de qualquer modalidade sem outro

interesse que não seja o do simples revigoramento físico, euforia da saúde e

passatempo higiênico.” (p.63)

Todavia, Bastos (1985) acusa o COI de nunca ter se aventurado na

definição do profissionalismo. Em primeiro lugar, “porque não podia reunir

idéias uniformes sobre a questão e, em segundo lugar, porque não lhe

interessava demasiado chegar a essa definição.” (p.83) As acusações de

Bastos centram-se na perspectiva político-econômica dos Estados-nação

aliados ao COI, uma vez que os interesses são distintos e as formas de

controle adotadas não permitem uma homogeneização universal.

Portanto, percebemos a dificuldade de entendimento do conceito

acerca do amadorismo e profissionalismo relacionados ao campo esportivo.

Os apontamentos dos autores são, na maioria das vezes, ineficazes para

responder pela diversidade de perspectiva. A dinâmica dos esportes é mais

plural e complexa que os conceitos de profissionalismo e amadorismo.

47

Capítulo IIO amadorismo nos Jogos Olímpicos

Como percebemos na seção anterior, o conceito de amadorismo no

esporte apresenta-se frouxo diante de variadas perspectivas em que se

pretende empregá-lo. Trata-se de um conceito fluido, dotado de polissemia e

ambigüidade, onde seus contornos tornam-se obscuros, não se afinam,

deixando margens para inúmeras possibilidades de interpretação. Desta

forma, o controle que se buscava exercer sobre os esportistas esbarrava em

questões específicas de cada esporte e suas associações, originando uma

discussão que o COI acabou por flexibilizar (ou fazer ‘vista grossa’), devido à

falta de critérios e argumentos que conseguissem uma definição que

encampasse todos os atletas e esportes e se aplicasse a todas as nações.

Simson e Jennings (1992)65 colocam em suspeição o real interesse do COI

em controlar o perfil dos atletas.

Parece que, inicialmente, se buscava relacionar o amadorismo com

sinônimo de olimpismo66, em que o amor desinteressado pelo esporte fosse

o valor vigente. Todavia, a definição de olimpismo admite muitas

65 - Simson, Vyv e Jennings, Andrew (1992). Os senhores dos anéis . Poder ,d inheiro e drogas nas Olimpíadas modernas. São Paulo. Edi tora Best Sel ler . Osautores argumentam acerca das t ransformações do mundo ol ímpico a par t i r dosinteresses dos dir igentes do COI e outras associações esport ivas que se in ter-relacionam. Apresentam pis tas de como os jogos são ut i l izados para cr iar umest i lo de vida fabuloso para um círculo res tr i to de dir igentes, que mantém ocontrole como forma de prest íg io, poder e , sobretudo, r iqueza.

66 - A Car ta Olímpica def ine Olimpismo como “uma f i losof ia de vida que exal ta ecombina em um todo equil ibrado as qual idades de corpo, espír i to e mente.”(p.11) .Comitê Olímpico Internacional . (1994) . Car ta Olímpica: Pr incípioFundamental nº 2 . Lausanne: COI

48

interpretações.67 Nosso interesse nesta seção é refletir sobre o conceito de

amadorismo no movimento olímpico. Devido à fluidez do conceito,

visualizamos a necessidade de fazer uma breve análise histórica através dos

Jogos Olímpicos antigos e modernos.

O conceito de amador inicialmente estabelecido relacionava-se com

a atitude do esportista; praticar esporte representava parte do estilo de vida

e do pertencimento social identificado com os valores da nobreza. No

entanto, para os Jogos Olímpicos Modernos reeditados ou reinventados pelo

Barão Pierre de Coubertin, tal conceito visava livrar o esporte da

“mentalidade do lucro”, uma vez que esta atitude se apresentava contra ao

processo de purificação, do exercício moral que se pretendia com os jogos

(Tavares, 1999. p.31). Hoje, tal preceito perdeu força e se tornou uma

espécie de fantasia, que é reinventado em algumas situações, uma espécie

de “dever ser” esportivo, que se fragmentou diante da dinâmica que o

esporte assume na sociedade. O status de atleta amador idealizado pelo

Barão perdeu-se com o tempo, onde outros fatores passaram a determinar a

condição esportiva adotada por cada Estado-nação. Portanto, os valores

estabelecidos sobre o amadorismo foram apropriados de diferentes formas

de acordo com as estruturas políticas e culturais dos diferentes contextos.

Diante deste campo fluido e ambíguo, como fundamentar um conceito que

se aplique em diferentes contextos políticos, econômicos, culturais e

históricos? Os ideais olímpicos para Coubertin deveriam estabelecer que “é

67 - Ver trabalho de Tavares , Otávio. (1999). Referências teór icas para o concei tode ‘Olimpismo’ . In: Otávio Tavares & Lamart ine P. DaCosta . Estudos Olímpicos.O autor apresenta no quadro 1 – Uma s ín tese dos valores, aspirações e objet ivosdo Olimpismo. (p .32) .

49

essencial no esporte não apenas ‘desenvolver o corpo’, mas cumprir a

‘tarefa da perfeição moral’, esforçando-se para que a realização atlética seja

um meio de formação e desenvolvimento.” (Tavares, 1999, p.31)

Esta perfeição moral a que Coubertin se refere deparou-se, na

atualidade, com novas especificidades não imaginadas naquele tempo, tais

como: mercados consumidores de eventos, bolsas de apostas, interesses

públicos, tvs etc, que dotam o esporte atual de valores que não eram

observados ao final do século XIX e início do século XX, quando o esporte

passava a despertar o interesse em escala planetária, recebendo a

denominação de esporte moderno. Todavia, observa-se que o processo de

incorporação destes novos valores no espaço esportivo não foge da

estrutura que ocorre em praticamente todos os outros espaços sociais (arte,

economia, ciências, religião etc). A transição ou mudança de comportamento

necessária para a evolução (ou renovação) das condutas humanas em

geral, em qualquer área de conhecimento humano, relaciona-se a entraves

temporais, onde as mudanças necessitam vencer alguns percalços, tais

como preconceito, medo, conservadorismo, entre outros. As transformações

sociais são reflexos de tensões travadas cotidianamente entre os

conservadores e os reformadores. Parece que no esporte ocorre da mesma

forma; o conservadorismo e a tentativa de manutenção de poder por parte

das elites dominantes permanecem criando uma barreira a novas reflexões e

mudanças (Elias e Dunning, 1992). Todavia, podemos pensar que os ideais

50

olímpicos de Coubertin teriam por intenção, já na época, coibir práticas de

apostas ou negócios que interfeririam no espírito olímpico ou aristocrático.

As “fraudes” detectadas a partir dos valores do amadorismo, desde

cedo passaram a margear o movimento olímpico. Cada Estado-nação

buscava ostentar seus ideais econômicos e políticos – reforçando a sua

ideologia mediante as provas esportivas -, colocando em xeque a moral

idealizada por Coubertin. Nos países soviéticos, os atletas eram

´funcionários´ do Estado, uma vez que o regime vigente naquela época era o

empregador. O esporte, entre outros objetivos sociais e políticos, funcionava

como meio de afirmação da URSS no cenário internacional. Com o mesmo

propósito nos Estados Unidos, o treinamento dos atletas era subsidiado pela

concessão de bolsas universitárias, no sentido de garantir total dedicação ao

esporte. Diante destas estratégias, como controlar os princípios amadores

estabelecidos perante os poderes dos Estados? Tal força ficou ainda mais

evidente, no período da guerra fria,68 na disputa esportiva entre o bloco

soviético e os Estados Unidos. As Olimpíadas de Moscou (1980) e Los

Angeles (1984) ficaram marcadas pelo boicote das principais forças

esportivas em apoio aos Estados Unidos e à URSS, respectivamente. Por

outro lado, como o esporte de rendimento poderia manter-se amador sem a

interferência do Estado, que cada vez mais utilizava o espaço esportivo para

sua auto-afirmação internacional? Estava em jogo a representação dos

68 - Tubino (1996), argumenta que, a par t ir de 1950 o espor te se transformou emmais um palco da guerra fr ia entre os blocos socia l is ta e capi ta l is ta . Tubino,Manoel J . Gomes (1996) . O esporte educacional como uma dimensão social dofenômeno esport ivo no Brasi l . In : Memórias – Conferência bras i le ira de esporteeducacional . Rio de Janeiro. Edi tor ia Central de UGF. 9-16p

51

poderes e das políticas sócio-econômicas de cada Estado-nação. A

representação esportiva participando deste amplo processo de emulação

deveria ser capaz de demonstrar a superioridade.

Desde 1986, o COI retirou o termo “amador” da Carta Olímpica, não

limitando a participação dos atletas a um tipo específico de vinculação.

Anteriormente, a Carta Olímpica estabelecia o seguinte conceito de atleta

amador:

“Amador é aquele que pratica esporte apenas por prazer e parausufruir tão somente dos benefícios físicos, metais e sociais quederivam dele, e cuja participação não é nada mais do querecreação sem ganho material de nenhuma natureza, direta ouindireta.” (Carta Olímpica, COI) 69

Tal concepção não se adequava à realidade esportiva, mas durante

muito tempo se tentou fazer valer deste princípio na narrativa oficial do

Comitê Olímpico Internacional. Como entender que desde cedo o COI

passou a permitir a abertura para algumas modalidades esportivas

profissionalizadas?

O Conselho da Europa (CE), em 198070, apresentou um extenso

relatório, onde defendiam a criação de um espaço olímpico definitivo, em

69 - Essa in terpretação da car ta ol ímpica deixava dúvidas em muitas organizaçõesesport ivas . Alguns at le tas t iveram suas medalhas caçadas por suspei ta de nãoserem at le tas amadores, como foi o caso do at le ta nor te-americano J im Thorpe,que foi obr igado a devolver duas medalhas de ouro conquis tadas em Estocolmoem 1932. Ele ter ia admit ido que recebera d inheiro (25 dólares) , como ajuda decusto, jogando beisebol por uma equipe de Fayet tevi l le – Carolina do Norte .Receber pela prát ica esport iva, mesmo em forma de ajuda de custos , era naquelaépoca uma at i tude grave contra as le is ol ímpicas .

70 - Conselho da Europa. (1986). Os Jogos Olímpicos e as suas perspect ivasfuturas . Lisboa. MEC. Desporto .

52

que as forças esportivas se encontrassem a cada quatro anos, acabando

com a mudança territorial para a realização dos jogos. Tal proposta

centrava-se no que eles chamavam de recuperação do espírito olímpico.

Mas que “espírito olímpico” era este? Pelo relatório apresentado,

poderíamos acreditar que este “espírito olímpico” se relacionava

prioritariamente ao ethos amador. Parece que insistiam em ignorar as

transformações e as novas dinâmicas sociais que já haviam sido

estabelecidas mundialmente, idealizando, desta forma, princípios

anacrônicos, para o campo esportivo, onde o ideal do “Barão” ainda era visto

como norte para as realizações e celebrações esportivas. Todavia, o

prefaceador da referida obra, João C. Boaventura, parece não comungar

com os propósitos do CE, deixando marcada a dificuldade de estabelecer

consensos sobre tais princípios: “o espírito olímpico não se perdeu. Afeiçou-

se ao tempo”. Seu prefácio pareceu-nos não estar em consonância com o

relatório do Conselho da Europa de 1980. Se o ‘espírito olímpico’ se

aperfeiçoou ao longo do tempo, como acredita Boaventura, parece-nos que

seria também natural que algumas modificações ocorressem quanto ao

vínculo dos atletas.

Juan Jose Sebreli (1998)71 aponta que, nos primeiros Jogos

Olímpicos, quando eram realizados em concomitância com feiras e

exposições internacionais, eram exibidas as mercadorias dos mais

importantes empreendimentos capitalistas do planeta. O esporte não era

mais que um simples meio de publicidade para o comércio mundial dos

71 - Sebrel i , Juan José. (1998 ) . La era del fú tbol . Bueno Aires. Sudamericana S.A.

53

produtos expostos nas feiras. Os Jogos Olímpicos rapidamente tornaram-se

um produto, e deixaram de ser apenas meio de propaganda para exposições

e feiras. Passou a ser um evento capaz de se autogerenciar, gerando seu

próprio interesse desvinculado da sua função de propaganda.

Possivelmente, os mais otimistas naquela época não apostariam no sucesso

alcançado e no montante financeiro que os jogos são capazes de gerar e

mover na atualidade. Também não poderíamos afirmar que transformar os

jogos neste mega evento financeiro tenha sido o propósito dos românticos,

seus puritanos idealizadores.

Observemos que intensas modificações na estrutura geral do

esporte internacional se deram neste último século, devido ao interesse da

mídia, principalmente a TV, o que acarretou o aumento do interesse público

pelos espetáculos esportivos. Presenciamos também o “casamento” do

esporte com algumas empresas multinacionais, que rapidamente

conseguiram perceber que este evento era um universo fecundo para a

comercialização de seus produtos, onde o mundo do negócio passou a ser

permeado por bens culturais na vida moderna (Ferreira e Costa, 2002).72

Vejamos o ponto de vista destas autoras acerca do comércio estabelecido

sobre a imagem do corpo: “Atletas, em suas mais diferentes atividades, com

seus corpos-emblemas, seduzem e vendem os mais variados produtos.

Como é possível calcular o lucro real extraído das imagens desses corpos

em movimentos?” (p.281)

72 - Ferreira, Nilda Tevês. & Costas , Vera L. M. (2002). O imaginár io dos at le tasOlímpicos brasi le iros: A Dança de Apolo e Dionísio. In : Turini, Márcio. &

54

A máxima do comércio capitalista, a obtenção de lucro, vem

assegurar no esporte sua possibilidade de presença em um espaço que

mantém freqüente uma massa de consumidores. Obviamente, nesta nova

conformação do esporte, o corpo do atleta (seus contornos, seus gestos,

seus equipamentos) passa a representar uma singularidade distinta

daquelas que foram preconizadas pelos idealizadores do esporte moderno

no final do século XIX, representado pela figura emblemática de Coubertin.

2.1 - O status do atleta nos Jogos Olímpicos Antigos

Inicialmente, incomodava-nos a utilização do termo amador

referente aos Jogos Olímpicos Antigos. Acreditamos inclusive que tal

terminologia não seja adequada àquele período histórico e poderíamos estar

caindo em um essencialismo ou anacronismo, ao forçar a utilização desta

especificação. Todavia, Richard Mandell (1986)73, quando publicou seus

apontamento históricos sobre a história mundial do esporte desde o período

Pré-helênico, em Historia cultural del deporte, utilizou o termo ao dizer que, a

partir do século V a.C., o nobre-esportista-amador-herói homérico por

excelência desaparece completamente da competição pública (p.76). Porém,

na seqüência de seus apontamentos, ele coloca como sinônimo de ‘amateur’

a expressão ‘aficionados’, quando afirma que

Dacosta , Lamart ine. Coletânea de textos em es tudos ol ímpicos . V.2 (CDRoom).Rio de Janeiro. Edi tora Gama Fi lho. 281-289p.73 - Mandel l , Richard. D. (1986). Histor ia cul tural del desporte. Barcelona.Ediciones Bal la terra .

55

“Na história das Olimpíadas daquela época as listas devencedores nos grandes festivais esportivos continham menosnomes de aficionados e mais de profissionais cuidadosamenteselecionados e treinados procedentes das províncias e maisespecialmente da Sicília e sul da Itália.” (p.76)

Esta explicação inicial se faz necessária por razões terminológicas.

Não gostaríamos de ser acusados de reducionismo histórico e, conforme já

apontamos alhures, o termo amador teria sido implantado pelos ingleses

somente na reformulação esportiva ocorrida no século XIX, quando

historicamente ficou conhecido como esporte moderno, e no ressurgimento

dos Jogos Olímpicos. Vimos também que este termo teria originalmente sido

utilizado para descrever o artista que apresentava relativa mediocridade em

suas artes, conforme apontava o Dictionnaire de la langue francaise, em

1863.

Portanto, utilizaremos este termo na mesma perspectiva apontada

por Mandell, entendendo o ‘amador’ daquela época como um apaixonado,

aquele que se dedicava ao esporte sem os interesses financeiros que

tentam descaracterizá-lo a partir do surgimento do esporte moderno.

Reportando ao CE, retomamos os argumentos apresentados em

seu relatório, referindo-se aos jogos antigos. Relatam que, nos primeiros

jogos, a vitória e os prêmios eram colocados como uma espécie de valor

espiritual.

56

Segundo Yalouris (2004)74, tanto as cidades quanto os cidadãos se

entregavam à competição tentando demonstrar de modo mais eloqüente a

sua reverência para com os Deuses do Olimpo.

Pentázou (2004)75 relata também a importância deste valor

espiritual e o que a vitória representava para o atleta:

“Os helênicos antigos acreditavam que a vitória em Olímpia eradevida ao favor dos deuses. O vencedor era o seu eleito, a quemeles ajudavam a conquistar o prêmio legendário e cujo nomepermanecia nos lábios de todos os homens até mesmo depoisque o fio de sua existência fosse cortado.” (p.150)

Referindo-se a recompensa, o CE relata a estrutura e o ritual de

premiação:

“Uma corroa de oliveira – oliveira, a arvore da paz – era toda arecompensa. Para a receber, os vencedores colocavam uma faixade lã vermelha envolvendo a fronte e levavam uma palma na mãodireita, dirigindo-se na alvorada para o templo de Zeus. Recebiamestes símbolos de distinção das mãos dos HELLANÓDICES,depois da vitória ter sido proclamada pelos arautos queanunciavam o seu nome, o nome do pai e o da cidade de ondeeram originários.” (CE, 1986. p.22)

Os relatores colocam ainda que os vencedores eram aclamados

como heróis em todo o território grego, prestígio que se estendia à sua

cidade de origem, onde virava uma espécie de Semi-Deus. Acreditava-se

74 - Yalour is , Nicolaos . (2004). A importância e o prest íg io dos jogos. In :Tsirakis , Stykianos. (Org.) . Os Jogos Olímpicos na Grécia Antiga. São Paulo .Odysseus Editora. (p .81) .

57

que a honra máxima concedida ao esportista vencedor era o direito de ter

uma estátua em Altis com o seu nome. Nota-se, no entanto, que o próprio

CE se contradiz em relação ao prêmio na citação acima, pois desde aquele

tempo, alguns atletas poderiam ser recompensados pelos seus feitos

heróicos com valores financeiros, conforme o parágrafo 94 do relatório.

“Cidades houve que tributavam recompensas materiais, por vezes

substanciais, ao seu vencedor; essa recompensa que pode ter atingido os

500 dracmas...”76 (p.22)

O relatório apresenta argumentos quando se refere ao ‘Espírito dos

Jogos Olímpicos’, levando-nos a relativizar o ideal coubertiniano da

importância da participação como um valor situado acima do da vitória. No

parágrafo 80, ao mencionar sobre as eliminatórias dos jogos antigos, aponta

a exigência de um grau de performance para a participação em Olímpia77.

No parágrafo 95, coloca que

“nas competições desportivas os antigos nunca tiveram outrasambições que as do triunfo dos seus concorrentes. A noção derecorde era-lhes totalmente estranha. A performance, quecaracteriza o desporto moderno, não existia. Apenas eranecessário ser o melhor.” (p.23)

75 - Pentazou, M. (2004). Honras conferidas aos vencedores. In : Tsirakis ,Stykianos. (Org.) . Os Jogos Olímpicos na Grécia Antiga. São Paulo . OdysseusEditora .

76 - Moeda grega na época, que até hoje ainda é referência das t rocas gregas. Estes500 dracmas correspondiam na época a 500 carneiros , conforme o CE.

77 “As el iminatór ias - Depois de tr in ta dias de preparação em El is , os juizes-árbi tros , os Hel lanódices , se lecionavam os concorrentes a f im de os apresentaremnum espetáculo perfei to , digno da reputação de Olímpia. Durante essasel iminatór ias , os at le tas eram julgados pelas suas prát icas , resis tência , técnica etambém pelo caráter e pelo valor moral” . (p .21)

58

Entretanto, não podemos ratificar a interpretação da CE, ao afirmar

que não havia performance. Sabe-se que a palavra performance, de origem

inglesa, se refere à atuação, ao desempenho e rendimento, contudo, tanto

os jogos modernos quanto os antigos tiveram a excelência e a maximização

do rendimento como ideal e objetivo de demonstração da superação

humana e das cidades às quais pertenciam os atletas na época. Os triunfos

dos concorrentes nos Jogos Antigos simplesmente parecem indicar a noção

de performance e a emulação entre cidades na época.

A remuneração ao atleta também já se fazia presente desde os

primeiros Jogos Olímpicos Gregos, conforme atesta o CE em seu relatório:

“Numerosos atletas optaram por um carreirismo de alto lucro na competição,

não hesitando mudar de cidadania, ou seja, alugarem-se à cidade que mais

lhes pagasse.” (p.24)78 A vontade de ver triunfar o nome da sua cidade fazia

com que alguns imperadores alugassem ou comprassem a atuação de

atletas de outras cidades, conforme lamentava o Filostrato de Lemnos, no

terceiro século d.C., quando deplorava a decadência dos costumes atléticos,

escrevendo a propósito dos heróis desportivos:

“O estado de regabofe em que os atletas vivem, libertinagem eimoderação de desejos ilícitos, induz neles a compra e venda devitórias. Uns fazem dinheiro com a glória, penso que para fazeremface a muitos e numerosos desejos... Outros compram vitóriasfáceis para enjeitarem a vida efeminada... Não exceptuo destacorrupção os treinadores que se tornaram preparadores físicos

78 - Esta af irmat iva acerca do al to lucro nos pareceu uma in terpretação forçada dorelatór io, pois não apresentaram nenhuma comparação com outras remunerações.Possivelmente es tamos diante de mais uma das cr i t icas dos pur i tanos em relaçãoaos indivíduos que optam por careira espor t iva patrocinada.

59

pelo desejo de lucros... não se importando minimamente com aglória dos atletas; são eles os conselheiros das maquinaçõesapostadas nos seus interesses privados. Isto tem que ser ditocontra esses mercadores, vendilhões do valor atlético.” (p.24) 79

Nos argumentos acima, poderemos vislumbrar dois tipos de crítica.

A primeira retrata ampla negociação e intercâmbios de atletas entre as polis.

Esse intercâmbio aponta para o fato de que as raízes ou o grau de

comprometimento dos atletas eram frágeis, pois bastava uma proposta

melhor para que ele trocasse a bandeira da cidade que defendia. A segunda

refere-se à decadência dos valores e à corrupção no espaço das

competições esportivas. Observemos que as críticas e o desgosto com o

esporte apresentam o mesmo tipo de retórica ainda em nossos dias.80

Percebe-se ainda que estava em jogo a idéia da corrupção, da

desvalorização moral e do amor provocado pelo dinheiro.

79 - Temos consciência de que es tamos l idando com fontes secundár ias e , portanto,sabemos que estas podem ter algum grau de deturpação.

80 - Tanto a FIFA quanto o COI tem demonstrado insat is fação com a troca decidadania de at le tas para representar outras nações d is t in tas à sua or igem. Opresidente do COI, Sr . Jacques Rogger , demonstrou indignação, ao se deparar coma transferência de a t le tas afr icanos que passaram a competir representando outrosEstados-nação. (Jornal Lance, 8 de out /2003, p.2) . O presidente da FIFA, Sr .Joseph Blat ter , af irmou ser contrár io à estratégia ut i l izada por alguns países embusca de at le tas prof iss ionais para sua representação em eventos espor t ivos. Essainquietude se deu em função da tentat iva da federação de fu tebol do Catar tentarcontratar jogadores in ternacionais para formar sua seleção. Três jogadoresbrasi le iros ter iam sido contratados pelo Catar , para que aquele pequeno paíschegasse à Copa do Mundo de 2006. (Jornal Lance, 9 de mar/2004, p .21) . Diantedesta possibi l idade, o Comitê de Emergência da FIFA resolveu agir , implantandonovas normas para a natural ização esport iva (Relatór io da Reunião da FIFA emZurique, 17 de mar/2004 – s i te da FIFA). Entretanto, essa possibi l idade denatural ização no futebol ter ia começado ainda na pr imeira Copa do mundo em1930, quando a equipe norte-americana esteve no mundial com seis jogadoresescoceses. Várias seleções que se tornaram campeãs mundiais o f izeram, tendojogadores importados, como foi o caso de João José Mazzola , campeão mundialpelo Brasi l em 1958 e na Copa do mundo de 1962 passou a representar a seleçãoi tal iana (Assaf , Rober to . & Mil ler , Oscar . (2004) . As muitas pátr ias do futebol .In : Revista Lance A+. Ano 4, nº 186. 20 a 26 de mar/2004. (p .40-41) .

60

Outro fato marcante relacionado à remuneração empregada nos

Jogos Olímpicos Antigos teria ocorrido diante da invasão da Grécia pelos

romanos em 456 a.C., destituindo os gregos de sua independência. Todavia,

interessou aos romanos manter a tradição dos jogos, quando passaram a

incentivar seus jovens a desafiarem os povos helênicos. Tal atitude

transformou os jogos em desavença e putrefação. Visando a superação dos

gregos, os romanos profissionalizaram81 os seus atletas. Mesmo assim,

quando estes não conseguiam suplantar os helênicos de forma competitiva,

tentavam suborná-los. A influência do dinheiro aumentou então a ira entre

invasores e dominados, provocando uma crescente tensão entre estas duas

nações.

Segundo Mandell (1986), foi esta desvirtuação dos ideais olímpicos

que provocou a sua abolição no ano 393 d.C. no império de Teodósio, por

este acreditar que há muito estava morto o ideal olímpico pretendido pelos

povos gregos. Tal descrição significa a desvirtuação dos ideais dos Jogos

Olímpicos Antigos ou demonstra a imposição de valores avessos às

dinâmicas sociais e culturais, que rapidamente perdem (e perderam) sua

força e funcionalidade diante das interações humanas? Poderíamos refletir

esta troca de cidadania por parte do atleta, onde se buscava, além do

prestígio moral e de status, sua realização financeira ou sobrevivência.

81 - A terminologia profiss ional ização é u t i l izada pelo CE, todavia, pensamos queo mais adequado ser ia u t i l izar o termo remuneração. Possivelmente fosse naturalut i l izar vários t ipos de remuneração entre os gregos, o que, no entanto, ta lvez nãopossa representar prof issão, na medida em que profissão na imagem moderna seassocia à idéia de trabalho com venda de mão-de-obra. Naquele momento, osescravos eram responsáveis pelo t rabalho e os cidadãos, pela polí t ica, pelas ar tese pelos esportes (Mandel l , 1986).

61

Parece uma ação normal que atravessa a história ocidental. O atleta se

colocava já naquele tempo sobre o ponto de vista da ação racional

individual, em que a glória de ser um atleta olímpico era prestígio para

usufruir alguns privilégios. Possivelmente seus interesses individuais já

apareciam em alguma medida, como superiores aos interesses coletivos,

conforme apontou Hirschman (2000).

2.2 - O status do atleta nos Jogos Olímpicos Modernos

A retomada dos Jogos Olímpicos em 1896, em Atenas, buscou

reativar ou reinventar as tradições esportivas gregas, promovendo os

encontros e as emulações esportivas entre os Estados-nação. Observemos

que os Jogos Olímpicos Modernos são uma típica invenção das tradições no

sentido de Eric Hobsbawm (1997)82, pois os jogos tornam os gregos o

argumento legitimador da busca de continuidade, como o berço da

civilização ocidental. O evento que se iniciou com a participação de apenas

nove Estados-nação rapidamente difundiu-se e despertou grande interesse.

Até Estocolmo (1912), os jogos não provocam uma adesão popular

significativa, o que se comprova pelo fato de os jogos acontecerem

geralmente vinculados a outros eventos - por exemplo, vinculados às feiras

internacionais. A partir desta data, os Jogos Olímpicos tornaram-se vulto de

82 - Hobsbawm, Ér ic . (1997). A produção em massa de t radições, Europa, 1870 a1914. In : Ér ic Hobsbawm & Terense Ranger . (Orgs.) A invenção das tradições.Rio de Janeiro. Paz e Terra.

62

mega-eventos para época, uma celebração de expressão mundial,

provocando modificações organizacionais e de caráter político-econômico.

Juntamente com o Campeonato Mundial de Futebol, tornaram-se os eventos

esportivos de maior interesse sócio-econômico mundial.

Os Jogos Olímpicos Modernos, que na sua gênese eram cultuados

como um espaço de confraternização entre atletas de ‘espírito amador’,

rapidamente se desvirtuaram dos ideais83 inicialmente propostos pelo Barão

de Coubertin. Desde suas primeiras edições, começaram a surgir atropelos

que provocassem incômodo aos organizadores, no tocante ao perfil dos

participantes.84 Coubertin, ao vincular os ideais olímpicos aos preceitos

ingleses, que fomentava um esporte de caráter aristocrático, fundamentado

nas atitudes morais da elite aristocrática, não via com ‘bons olhos’ a

83 - Em edição especial , O Globo 2000 coloca o desvir tuamento dos IdeaisOlímpicos nos Jogos Olímpicos de Par is em 1900, no texto Amadorismo, no mausent ido : “A desorganização das competições inf luenciou dire tamente osresul tados. Na maratona, por exemplo, vár ios at le tas estrangeiros se queixaramque o público francês não apenas torcia pelos seus compatr io tas , mas tambémsegurava seus concorrentes . O americano Dick Grant, que terminou a prova emsexto lugar , contou que um cicl is ta o derrubara quando ele estava preste aul trapassar o vencedor”. (p .32)

84 - Nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912, o americano James FrancisThorpe, campeão das provas da pentat lo e decat lo , foi acusado de ser umprof issional e o COI, em 1913, anulou todos seus fei tos o l ímpicos, a legando ofato de que es te ter ia recebido dinheiro para jogar beisebol, o que contrar iava osideais Olímpicos. (Folha de São Paulo. A Histór ia das Olimpíadas. 10 de jun/1996– São Paulo) . Entre tanto, o mesmo cri tér io não ter ia s ido apl icado para outrosat letas , como o caso do campeão de Ginást ica Olímpica, o I ta l iano AlbertoBragl ia - medalha de ouro em 1908 e 1912 - , que entre as duas ol impíadas seexibia em circos ganhando dinheiro. (ht tp/ /www. olympic games.coi .spc.html.dnk.)

No Brasi l , O Bi-campeão Olímpico de sal to Trip lo, Adhemar Ferreira da Si lva(Helsinque/1952 e Melbourne/1956) recusou uma casa que quiseram lhe dar comoprêmio, pois se a acei tasse corr ia o r isco de ser impedido de ir às o l impíadas, poistal premiação poderia comprometer seu perf i l amador . Prado, Renato M. (2003) .Santa Ignorância. In : O Globo. Caderno Especial Pan.03 de ago/2003. p .4

63

apropriação deste movimento por parte das classes trabalhadoras, conforme

relata Cardoso (1996)85:

“Os inventores do amadorismo queriam, em primeiro lugar, afastarda arena os trabalhadores, o esporte estava reservado a quempudesse se dedicar a ele em tempo integral edesinteressadamente, enquanto o comum dos mortais suava paragarantir o pão de cada dia. Este era o motivo oculto. Abertamentese temia que o dinheiro transformasse a competição esportiva emespetáculo de show-business.” (p.7)

Na concepção de Coubertin, segundo Cardoso (1996), “O

profissionalismo se constitui no pior inimigo dos esportes. (...) Os exercícios

físicos têm absoluta necessidade para prosperar de uma atmosfera de

desinteresse e de cavalheirismo.” (p.7) Entendia o Barão que o

profissionalismo traria perdas irremediáveis ao conceito esportivo que se

pretendia com os Jogos Olímpicos.

Valente (2002)86 argumenta que, desde o início do século XX, a

máxima Coubertiniana, compreendida em “Citius, Altius, Fortius”,87

começaram a retratar outras magnitudes relacionadas plenamente ao mundo

capitalista, tais como maior agilidade administrativa, financeira e de

marketing. O esporte passou a ser mais uma mercadoria, uma nova vertente

do capitalismo. Observemos que Valente opta por uma transposição

85 - Cardoso, Maurício. (1996) . 100 anos das Olimpíadas. De Atenas a Atlanta .São Paulo . Scri t ta .

86 - Valente, Edison Francisco. (2002) . O Ideal Olímpico e o Espor te Para Todos.In : Coletânea de textos em estudos ol ímpicos. V.2. Marcio Tur ini & Lamart ine PDaCosta . (Fórum Olímpico 2002). Rio de Janeiro . Edi tora Gama Fi lho.

87 - O mais veloz, o mais a l to e o mais for te.

64

mecânica da máxima de Coubertin. Tais valores, no entanto, podem ser

associados aos ritmos presentes nas grandes metrópoles capitalistas do

início do século XX (Sevcenko, 1992)88 ou apenas revelar valores do atleta

esportivo.

Bastos (1985) assinala que, embora seja articulado o envolvimento

de Coubertin com os ideais olímpicos, quanto ao amadorismo, ele “nunca

aprofundou a questão. Mal a conheceu, e nunca a compreendeu. Segundo o

autor percebe-se o fato porque Coubertain foi ‘sportman’ e ‘gentleman’.

Tinha recursos mais do que suficientes de vida e praticava o “desporto pelo

desporto” (p.79). Entretanto, pela própria descrição, o amadorismo para o

Barão era sua própria experiência. Neste ponto de vista, acusá-lo de não

conhecer o tema nos pareceu uma falta de cuidado de Bastos.

Bastos argumenta que, para se absorver da pouca importância que

se dava à definição do tema, o Barão teria comentado: “para mim, o

desporto é uma religião com igreja, dogmas e cultos..., sobretudo

sentimentos religiosos. Assim, julgo infantis todas estas “coisas grandes” o

fato de alguém ganhar uma moeda de cem francos...” (Coubertin, citado por

Bastos 1985. p. 79) Todavia, freqüentemente, o ‘Barão’ era solicitado a

apresentar uma intervenção neste sentido, quando julgavam que o ‘espírito

olímpico’ estava sendo ferido.

Parece-nos que a atitude de Coubertin de não se preocupar com

uma definição exata do termo era uma forma de evitar tensões entre os

Estados-nação e evitar o comprometimento de realização dos jogos, visto

88 - Sevcenko, Nicolau. (1992). Orfeu extát ico na metrópole. São Paulo.Companhia das le tras .

65

que, caso fosse definido o exato perfil do atleta, seria prudente realizar a

‘caça às bruxas’. Deveria aprofundar as investigações a partir das denúncias

apontadas e, caso fossem constatadas as irregularidades, deveriam haver

punições. Portanto, pareceu-nos que este acordo tácito em torno do conceito

visava a preservação dos jogos.

A preocupação com uma definição da categoria dos atletas dentro

do COI surgiu desde os primeiros jogos modernos. Coubertin (1997)89, em

suas memórias olímpicas, argumentou que, em 1902, foi enviado um

questionário em três idiomas a todas as sociedades que não haviam

produzido respostas claras sobre o assunto.

Admite Coubertin (1997) que a definição de amador, que até então

era sido o modelo utilizado, não mais era eficiente. Tratava-se de uma

definição elaborada pelos ingleses, estabelecida quando o atleta deixava de

ser amador. Portanto, a definição inglesa apresentada pelo Barão opera na

exclusão:

“1 – Quando se aceita um prêmio em metálico; 2 – Quando secompete com um profissional; 3 – Quando se recebe um saláriocomo professor ou monitor de exercícios físicos; 4 – Quando separticipa em concursos abertos a todos.” (p.116)

Relatou ainda Coubertin que, desde 1909, no Congresso Olímpico

de Berlim na Alemanha, na tentativa de se estabelecer um conceito

89 - Couber t in , Pierre de. (1997) . Memorias o límpicas . España. ZimmermannAsociados SL.

66

universal, haviam sido enviadas às federações de cada país integrante um

formulário contendo as seguintes questões:

“1 - O profissional em um desporto poderia ser amador noutro?; 2- O professor poderia ser amador nos desportos que nãoensinava?; 3 - O amador que se tornou profissional não poderiarecuperar a sua qualidade de amador? Admite exceções a estaregra? Quais?; 4 - Deveria se admitir o pagamento decompensações econômicas aos amadores pelos gastos detransporte e de hotel? Até que limite?; e 5 - O atleta deveriaperder a sua qualidade de amador pelo simples contacto com umprofissional?” (p.119)

Lamentou o Barão que, apesar do largo prazo concedido para os

colegas estudarem as respostas, eles não deram conta dos documentos

recebidos. As respostas eram disparadamente contraditórias e, nem mesmo

dentro de um país, as respostas se aproximavam. Coubertin conclui com

desânimo, lamentando que pelas conclusões não poderiam ser obtidas

respostas convergentes:

“Afirmações; nada de argumentos. Fantasias; nenhuma reflexãoautêntica” (...) Porem, desde então, os problemas do amadorismoperderam para mim o pouco de interesse que, todaviaconservavam. Estava convencido mais do que nunca de queprofessor e profissional não devem medir-se pela mesmaespumadeira; que o juramento, não é de palavra ou de desfile,senão o detalhado e firmado, e a única maneira de projetar umaverdadeira luz sobre o passado desportivo de um homem, postoque um falso juramento o desqualifica em tal caso para sempre eem todos os terrenos; que a distinção de castas não deve julgarnenhum papel no desporte; que passaram o tempo em que sepodia pedir aos atletas que se pagassem viagens ealojamentos; que a condição de amador nada tem que ver comos regulamentos administrativos de um determinado grupodesportivo, etc.; etc., e também que existem muitos falsosamadores que devem ser perseguidos e muitos faltos profissionaisa quem deve indultar, etc., etc. Porém, quem e isso que acabo deescrever? Que blasfêmia! Deveria exclamar, como o pároco de

67

Alfonso Daudet surpreendido em pela canção da bebida;Misericórdia! Se meus fregueses me escutaram!” (p.120) (grifosnossos)

Em 1914, no Congresso Olímpico de Paris, apesar da tentativa, não

foi possível estabelecer uma definição concreta para a palavra “amador”

conforme foi pretendido pelos dirigentes do movimento olímpico (Garcia,

citado por Bastos 1985. p.82).

No Congresso Olímpico de Praga, em 1925, buscou-se também um

entendimento da questão, quando foram estabelecidos dois critérios para

filtrar a participação de atletas que se beneficiavam direta ou indiretamente

das questões financeiras, conforme aponta Bastos (1985): “(a) aquele que

foi ou tenha sido profissional no seu sport ou noutro qualquer; b) aquele que

tenha recebido compensação por salário perdido.” (p.80)

Segundo Bastos (1985), o COI também nunca se aventurou em

buscar uma definição para o profissionalismo esportivo, fato que na

percepção do autor se deu por falta de idéias comuns, que representassem

os diversos Estados, e também porque parecia não interessar chegar a uma

clara definição.

Todavia, apesar da resistência e da tentativa em frear a participação

de atletas que não contemplassem os critérios estabelecidos para os

encontros, desde muito cedo, os jogos começaram a ter problemas em

controlar o que era ser amador. Por um lado, o COI tentava impor restrições,

mas esbarrava nos interesses dos Estados-nação em utilizar o esporte como

propaganda.

68

Os dois blocos econômicos em vigência durante a guerra fria (EUA

e URSS) utilizaram recursos para estabelecer sua hegemonia e propagar

sua concepção política via esporte, o mesmo teria acontecido com a

Alemanha em seu período de nazismo.90 Como exercer um controle que

conseguisse neutralizar a utilização do esporte para disseminar projetos

políticos? Como elaborar um mecanismo que conseguisse controlar todas as

nações em relação aos critérios do amadorismo? Estas podem constituir as

principais dificuldades encontradas pelo COI na vigilância da manutenção

dos ideais pretendidos para o amadorismo, pois não seria possível

contemplar todos os interesses particulares dos países participantes do

círculo olímpico.

Cada regime político admitia para si um formato de vinculação

esportiva. Em algumas nações, era o governo que patrocinava o treinamento

dos atletas, enquanto em outros o incentivo vinha da iniciativa privada

(empresa, instituições de ensino etc). Desta forma, exercer um controle geral

por parte do COI tornou-se praticamente inviável.

Segundo Cardoso (1996), o amadorismo teria caído no início dos

anos de 1980, quando o COI passou a entender que “o esporte era um bem

de imenso valor agregado e que o dinheiro gerado por ele era suficiente para

todos, inclusive para os atletas.” (p.8)91 Todavia, antes da década de 80,

90 - Holmes, Judi th . (1971) . Olimpíada 1936 – Glória do Reich de Hit ler . Rio deJaneiro. Edi tora Renes Ltda. A autora fa la da tentat iva de Hit ler em transformar oespetáculo em uma supremacia da raça ar iana.

91 - Holmes (1971) re la ta que algumas federações ut i l izavam seus at le tasol ímpicos para exibição, visando arrecadações f inanceiras: “Embora os at le tas nãofossem remunerados, a Associat ion Athlet ic Univers i ty - A.A.U. recebeu bomdinheiro, o que fez muita gente pensar que os at le tas amadores estavam sendoexplorados para supr ir de ouro os cofres da A.A.U” (p .135). Após suas v i tór ias

69

inúmeros foram os casos de atletas que feriram o conceito de amadorismo,

mas que os mecanismos não conseguiam os eliminar dos jogos. Cardoso

(1996) traz um relato da dificuldade de padronizar as exigências frente a

todos os competidores:

“Vasily Kusnetsov, medalha de bronze do decatlo em 1960, eraprofessor de anatomia numa escola. Mas ele só dava aulas demanhã. As tardes estavam reservadas para treinar. Enquantoisso, no ocidente, dito capitalista, um atleta era proibido de daraulas de educação física porque isso significava que ele estatirando proveito pessoal de atividade esportiva.” (p.8)

Algumas modalidades resistiram individualmente em admitir que os

atletas profissionalizados competissem até recentemente. Outras ainda

buscavam mecanismos específicos para regular a participação, para evitar

que as seleções principais participassem dos Jogos Olímpicos, como é o

caso do futebol.92 Ainda hoje se observa uma tensão entre os dirigentes da

FIFA e do COI.93

Também parece evidente a existência de um conflito de interesses

entre os organismos internacionais que controlavam algumas modalidades e

o COI, no sentido de flexibilizar o direito à participação, cujas federações já

o l ímpicas, Jesse Owens teve que percorrer vár ios países europeus, exibindo emnome da federação nor te-americana.

92 - Acredi tam alguns dir igentes da FIFA que, se fosse permit ido que as seleçõespudessem ir aos Jogos Olímpicos com suas equipes pr incipais , d iminuir ia aexpectat iva deposi tada sobre as Copas do Mundo. Isso poder ia representartambém redução nos valores ar recadados durante o per íodo da Copa do Mundo edas el iminatór ias cont inentais . (Fifa News)

93 - Para os Jogos Olímpicos de Atenas 2004, a FIFA não queira admit i r que osjogadores de fu tebol t ivessem, caso fossem pegos no exame ant idoping, asmesmas punições que os demais a t le tas (Jornal Lance, 11 de mai/2004).

70

apresentavam um grau de organização que não se relacionava

prioritariamente a alguns princípios do amadorismo adotados pelo COI.

Para a competição de futebol, por exemplo, presente desde 1900

(Paris), foram adotadas medidas diferenciadas quanto à participação das

equipes. Em 1984, o COI permitiu a inscrição de atletas profissionais, desde

que não tivessem competido em Copa do Mundo.94 A partir de 1992 (Jogos

Olímpicos de Barcelona), as seleções puderam contar com três jogadores

acima de 23 anos, independentemente de terem ou não disputado mundiais.

Desta forma, o regulamento específico do futebol passou a permitir que três

atletas integrantes das seleções pudessem ser selecionados entre os

principais ídolos da modalidade, independentemente de já serem atletas

consagrado como celebridade esportiva mundial, desde que fosse do

interesse da confederação do seu país. Interessante observar que, no caso

da seleção brasileira de futebol, que participara das últimas edições dos

Jogos Olímpicos (1996 e 2000), mesmo aqueles jogadores com idade

inferior aos 23 anos exigidos pelo regulamento já eram atletas

profissionalizados. Portanto, o conceito amador parece não ser apropriado

ao futebol olímpico. Até que ponto a FIFA teria interesse em que os

expoentes da modalidade participassem dos Jogos Olímpicos?

A vitória da equipe Uruguai nos jogos de 1924 e 1928 teria

provocado desconforto aos organizadores do evento que viram a hegemonia

da equipe latino-americana desbancar as forças esportivas européias.

Alegavam que a equipe uruguaia utilizava em suas equipes, naqueles jogos,

94 - Enciclopédia do futebol Brasi le iro - Lance. (2001). V 2. Arete Editor ial S/A.

71

atletas que eram semiprofissionais ou, ainda, atletas enquadrados em uma

espécie de profissionalismo marrom, contrariando os ideais esportivos.

Devido ao impasse de como coibir a participação dos atletas uruguaios e de

outras nações que se apresentassem da mesma forma, os organizadores

optaram por não realizar a competição de futebol nos Jogos de Los Angeles

em 1932 (Cardoso, 2000)95. Tal atitude, naquela época, teria sido apoiada

pela FIFA, que havia promovido, em 1930, o primeiro Campeonato Mundial

de Futebol no Uruguai,96 idéia que já vinha se arrastando desde 1905

(Duarte, 1994).97 O retorno do futebol aos Jogos Olímpicos se deu em 1936

nos jogos de Berlim, na Alemanha.

Esta primeira Copa do Mundo98 foi boicotada pelos ingleses e seus

apoiadores (Escócia, Irlanda e País de Gales), que ignoravam a criação da

FIFA em 1904. Para os ingleses era uma afronta à utilização de uma

denominação francesa para a associação: Fédération Internationale de

95 - Cardoso, Maurício. (2000). Os arquivos das Olimpíadas. São Paulo . PandaBooks.

96 - Somente em 1920, na gestão de f rancês Jules Rimet é que a FIFA começou ase organizar , o que conduziu à real ização do 1º Mundial de futebol no Uruguai . Ahis tór ia da Copa – 1º Fascículo - Folha de São Paulo , 15 de mai/1994. p .2.

97 - Duarte , Orlando (1994) . Todas as copas do mundo. São Paulo. Makron Books.

98 - Nenhuma das potencias do futebol europeu acei tou disputar a Copa deMontevidéu por três motivos pr incipalmente: (1) por razões pol í t icas , af inal osingleses ignoravam a FIFA; (2) os países do velho Continente prefer iam que otorneio fossem disputado mais próximo; e (3) razões f inanceiras , pois o p lanetavivia efei tos da Grande Depressão de 1929 e a v iagem a América do Sul era longae demorada, e n inguém t inha dinheiro suf iciente para gasta . Ainda não havia vôodireto da Europa para Montevidéu. Todavia, os organizadores uruguaios sedispusessem a pagar todas as despesas de traje to e es tada dos par t ic ipantes.Suplemento Especial Is to É. 30, a Copa sul-americana. Fascículo 2. (1982) . Riode Janeiro. Is to É. (p.19)

72

Football Association. Segundo Lancellotti (1982)99 a demora de três décadas

para a consolidação dos sonhos de Jules Rimet se deveu porque o Barão de

Coubertin, um de seus incentivadores, com seus ideais românticos pretendia

que o campeonato mundial fosse uma competição para amadores. Todavia,

na Inglaterra o futebol já havia se tornado profissional. E acreditavam alguns

(alemães, suíços e suecos) que a presença dos ingleses era imprescindível

para o evento. Por outro lado, franceses, belgas e espanhóis não tinham

interesse de serem “arrasados pela técnica superior dos ‘mercenários’ da

Ilhas.” (Lancellotti, 1982:14)

A exclusão dos atletas profissionais ocorreu também no

basquetebol. Somente em 1992, na XXV Olimpíada de Barcelona, os

Estados Unidos puderam incluir em sua equipe os principais atletas da Liga

Norte-americana de Basquetebol (NBA). Esportistas consagrados e

profissionais como Michael Jordan, Larry Bird, John Stochton e Magic

Johnson estiveram presentes, além das outras principais forças do

basquetebol mundial. No entanto, o basquetebol brasileiro, desde muito

tempo, já podia competir com suas principais forças, todos eles, desde cedo

“profissionais” na modalidade, embora o esporte fosse considerado

amador.100 Como entender esta lógica que admitia a participação dos

atletas profissionais brasileiros, mascarados como amadores, há muito

tempo, mas os diferenciava dos atletas norte-americanos? Parece que estes

99 - Mesmo sem a presença dos ingleses e seus irmãos de impér io, osorganizadores resolveram manter as regras da In ternat ional Football AssociationBoard . Lancel lo t t i , Si lv io (1982) . O sonho de Jules Rimet . Suplemento Especialde Is to É - Espanha 82 – Fascículo 1 . Rio de Janeiro . Is to É.

73

critérios diferenciados em cada modalidade revelavam uma tensão entre o

COI e as respectivas federações, confederações nacionais e internacionais.

O relatório do CE (1986) lamentava: “Não são os atletas, mas as

nações que se defrontam. A vitória torna-se mais uma conquista de um

Estado, cujas cores triunfam, do que a pertença atlética das equipas

vencedoras.” (p.33) O lamento parece desconsiderar a história dos Jogos

Olímpicos Antigos, conforme podemos encontrar em Mandell (1986). No

período grego-romano, as Polis não eram representadas pelos atletas?

Ainda que o COI tente abafar a competição entre nações, pois entendem os

organizadores que as vitórias são individualizadas, a própria estrutura dos

jogos favorece que a imprensa destaque essa emulação, apresentando o

quadro de medalhas e dando ênfase aos países vencedores do maior

número de provas. Outro exemplo que caracteriza essa emulação se dá

sobre as principais empresas fornecedoras de materiais esportivos para os

atletas, como a matéria do jornal Folha de São Paulo: “Reebock vence a

Olimpíada das multis”.101 Possivelmente, este comportamento de rivalidade

100 - Veremos essa especif icação na Par te 3 deste estudo, referentes às le isesport ivas brasi le iras .

101 Durante os Jogos Olímpicos de Seul , em 1988, o jornal Folha de São Paulo nãose l imitou a apresentar o quadro de medalhas re lacionado aos países . Apresentoutambém um ranking de medalhas re lacionado às pr incipais empresas de mater ia lespor t ivo. Em uma repor tagem cuja manchete fo i : Reebock vence a Olimpíada das‘mult is’ , coloca a empresa nor te-americana como vencedora do market ingespor t ivo em Atlanta . A repor tagem af irmava que os at le tas exclusivos daReebock ganharam mais medalhas de ouro do que das empresas concorrentes:Empresa Origem Ouro Prata Bronze TotalReebok USA 19 18 16 53Mizuno Japão 13,5 15 13,5 42Speedo USA 10 7 6 23Adidas Alemanha 9 1 0 10Asics Japão * * * 56Fonte: Folha de São Paulo, 11 de ago/1996, p.10. Números fornecidos pelasempresas . A Nike não divulgou seu balanço.

74

tenha sido fruto da tentativa dos principais Estados-nação de se fazerem

soberanos e superiores aos demais competidores, o que parece ter

reforçado, desta forma, o ‘espírito patriótico coletivo’. Poderíamos comparar,

desta forma, a estrutura dos Jogos Olímpicos como uma ‘mimese da guerra’,

na perspectiva de Elias (1992), todavia, uma guerra simbólica em que não

existem as destruições físicas, mas travada sobre o aniquilamento

emocional dos países concorrentes. A própria estrutura do esporte permite

este tipo de narrativa.102

A profissionalização parece ter atingido todos os níveis nos jogos.

Os aparatos tecnológicos e novos métodos de treinamento passaram a ser

empregados, desencadeando uma nova perspectiva para os encontros

esportivos. A cada Jogos Olímpicos, novas tecnologias são apresentadas,

elevando a expectativa de melhores rendimentos. Desta forma, calçados,

roupas, equipamentos de competição, instalações esportivas, entre outros,

são re-projetados, visando à ampliação do espetáculo esportivo.

Possivelmente, todas estas novas tecnologias comprometam os ‘princípios

amadores’, que poderiam ser preservados nos jogos.

102 - Embora possa parecer ingênuo, vem dotado de uma conotação quest ionávelem algumas s i tuações, como, por exemplo, a v ivenciada pelo jogador de futebolDenílson do clube espanhol Betis , que, na tenta t iva de demonstrar seuenvolvimento, acabou sendo tragado por uma narrat iva que lhe causou embaraçose contestação. Dení lson, sobre o encontro com uma equipe r ival , declarou “Temosde morrer para matá- los, massacrá- los no bom sentido da palavra”. Estadeclaração foi quest ionada pelo Comitê Antivio lência do fu tebol espanhol , queexigiu uma retratação (Veja, 12 de mar/2003, p .49) . Dení lson, no entanto , disseque apenas tentava incentivar os demais companheiros para o jogo. Observemosaqui uma narrat iva que caracter iza o esporte como mimese da guerra no sent ido deElias .

75

Como já sinalizamos anteriormente, as manifestações esportivas

passaram a representar uma fonte de propagação de poder, de

competência, de prestígio, não só pessoal, mas das coletividades. Os

Estados-nação devem permanentemente reforçar os laços de unidade e de

coesão interna para garantir sua autodeterminação. A nação tem que ser

permanentemente construída e o esporte neste sentido, tornou-se, ao longo

do século XX, um dispositivo importante na afirmação de laço de

pertencimento no interior dos Estados-nação, na medida em que o esporte

traz a emulação com os ‘outros’. Assim, o esporte forneceu a alteridade

necessária para formar laços de solidariedade e cumplicidade interna, na

perspectiva apontada por Hobsbawm (1990)103, onde argumenta que um dos

caminhos para a constituição da nação e do nacionalismo é a identificação

de opositores, seja interno ou externo, gerando coesão e agregação.

Os Estados apropriaram-se desta possibilidade de autopromoção,

através do esporte, sustentados na possibilidade de coesões fornecidas pelo

ambiente esportivo. Raymond Boudon (1995)104, em Tratado de sociologia,

chama de ‘socialidade’105 esta capacidade humana de manter coesos os

grupos e as redes. Alerta Boudon que, “para nos restringir ao essencial, a

103 - Hobsbawn, Er ic . (1990). Nações e nacional ismo desde 1780: programa, mito ereal idade. Rio de Janeiro. Paz e Terra.

104 - Boudon, Raymond. (1995). Tratado de sociologia . Rio de Janeiro. ZaharEditor

105 - Boudon dis t ingue sociabi l idade de social idade . Sociabi l idade é “a capacidadehumana de estabelecer redes, a través das quais as unidades de at iv idades,individuais ou colet ivas, fazem circular as informações que exprimem seusinteresses , gosto, paixões, opiniões” (p.65) , enquanto social idade é “a capacidadede manter coesos os grupos e as redes, de lhes assegurar a coerência e a coesãoque os const i tuem em sociedades: podemos designar por morfologias as formas desolidar iedade social que são a t r ibo, a c idade a nação. . .” (p .66)

76

nação, na medida em que é concebida, representada, desejada, sentida e

vivida como um organismo coletivo, tende a tornar obsoletos todos os

grupos sociais intermediários.” (p.66) Segundo esse autor, a nação coloca o

indivíduo como célula do organismo nacional. Nesta perspectiva, o esporte

parece ser um espaço ideal para fundamentar e desenvolver a imagem de

nação soberana e forte, para os de “dentro” e os de “fora”. Para Weber

(1974)106, nação “significa acima de tudo, que podemos arrancar de certos

grupos de homens um sentimento específico de solidariedade frente a outros

grupos.” Para ele, esse conceito pertence ao domínio dos valores. Como

manter o desinteresse dos indivíduos praticantes do esporte, quando os

Estados passam a ter grande interesse nesses eventos?

A união do Estado-nação com a iniciativa privada para a promoção

dos encontros esportivos também desencadeou uma contestação do CE. O

Conselho considerava esta apropriação comprometedora dos princípios que

deveriam ser observados nos eventos, visto que os interesses financeiros e

comerciais passaram a ser mais importantes do que as próprias

competições:

“Hoje em dia as mais importantes competições dos Jogosdeixaram de ser desportivas, tornaram-se financeiras, comerciaise publicitárias. Milhares de firmas de todo o gênero, desdeempresas de betão armado, fabricantes de cronômetros,companhias de eletrônica, cadeias de televisão, passando pelasindústrias de solas de borracha dos sapatos de desporto, estão namira dos lucros e da publicidade que podem fazer, graças aosJogos que cada vez mais se confundem com a feira comercial, deque se tornaram pretextos.” (p.34)

106 - Weber , Max. (1974) . A nação. In : Gerthe, H. H. & Mil ls , W. (Orgs.) . Ensaiosde sociologia . Rio de Janeiro . Zahar editora.

77

Observemos, mais uma vez, que a contestação do CE se vincula

principalmente à idéia de que o dinheiro corrói a moral e desvirtua o ‘espírito

olímpico’. Nota-se, no entanto, que estas feiras comerciais e exposições

apenas se adaptaram a nova realidade. Hoje as imagens de satélites levam

os produtos para dentro das casas dos potenciais consumidores.

A abdicação da concepção de amadorismo, diante da rápida

abertura ao profissionalismo, parece ter sido acompanhada pela influência

cada vez mais freqüente dos patrocinadores e pela vinculação aos meios de

comunicação, principalmente a TV, que projeta no evento uma forma

imediata de promoção de espetáculo em escala planetária, desencadeando

uma nova concepção dos eventos esportivos. Os atletas já não podiam

representar seus Estados-nações sem apresentarem alto grau de

performance (exigência de índice e apelo pela vitória), o que demandava

dedicação ao treinamento. Transformar estes homens comuns em ‘atletas’

com elevado grau de superação demandava um aparato de profissionais e

de tecnologias. Como exigir este elevado nível de exigência performática do

atleta sem que ele tivesse tempo para se dedicar? Nesta perspectiva, o

‘homem desinteressado’, aquele que idealizava o esporte com princípios

morais e éticos – o romântico, forçadamente teve que ceder espaço para o

‘homem atleta’, treinado, condicionado e respaldado pelos implementos

modernos. Pareceu que as lamentações do CE perdiam de vista estas

modificações, apesar de terem sido elaboradas já em 1986. Conforme

lamentava o CE, o ‘status’ de esporte amador perdeu o sentido, já não

interessava se não pudesse demonstrar e propagar valores econômicos. As

78

empresas e, especificamente, a TV trataram de fomentar um esporte capaz

de impulsionar o consumo. Diante disso, como manter uma estrutura

amadora para um evento que a cada nova edição se mostrava altamente

tecnológico e associado a produtos e a altos investimentos financeiros? 107

O 11º Congresso Olímpico, realizado em Baden-Baden na

Alemanha, em 1981, tentou novamente reacender a discussão sobre o

amadorismo, considerado por alguns representantes de Federações e

Comitês Olímpicos como fundamental para o resgate dos ideais olímpicos,

que, segundo eles, estaria se deteriorando. Todavia, mais uma vez, os

discursos a este respeito não se aperfeiçoaram (COI, 1982), deixando

frustrados seus defensores diante da força que o esporte passou a ter na

indústria do entretenimento.

O período de administração do COI pelo espanhol José Antonio

Samaranch começou logo após o Congresso Olímpico realizado em Baden

Baden, na Alemanha, em 1981. A partir desde momento, pode-se perceber

uma modificação na estrutura de gerenciamento dos esportes olímpicos,

onde os princípios até então relacionados ao amadorismo foram perdendo

espaço perante os elevados investimentos financeiros em todos os níveis.

107 - . A mesma posição de lamentação do CE também foi colocada por Carvalho(2001) quando se refer ia ao abandono dos pr incípios do amadorismo, devido àaber tura ao prof iss ional ismo, que foi “acompanhada pela inf luência , cada vezmais acentuada, dos ‘patrocinadores’ f inanceiros e da in tervenção dos grandesmeios de comunicação (em especial da TV).” (p.5) . Cavalho, A. M. (2001).Contradições do Olimpismo. Disponível em: www.pcp.pt /avante/htm. (em 07 dejunho de 2002)

79

Segundo Fontenelle (1996)108, durante os 20 anos (1952-1972) em

que o norte-americano Avery Brundage presidiu o COI, ele resistiu à

admissão dos atletas profissionais nos modelos que são percebidos hoje,

onde não são mais camuflados os ganhos e as gratificações. Segundo

Fontenelle o Sr Brundage era muito conservador para admitir tal mudança.

Diríamos, um romântico que não cedia ao ritmo das transformações.

Sebreli (1998) também apresenta suas reflexões acerca dos

idealizadores dos princípios amadores:

“Os nostálgicos do esporte amador, incontaminados deinteresses econômicos, e inclusive opositores aos mesmos,duvidam e ocultam que o esporte de massa, já desde seucomeço amadorista, esteve indissociavelmente ligado ao mundodo comércio e da indústria.” (p.205)

Observemos que ambos Fontenelle e Sebreli apontam que os

conservadores e os nostálgicos pareciam esquecer que, desde o princípio

dos Jogos Olímpicos Modernos, o envolvimento com empresas privadas já

era evidente. As feiras e exposições eram exibições de mercadorias das

mais poderosas empresas capitalistas do mundo, no entanto, os primeiros

jogos tiveram que se aliar a elas para conseguir despertar o interesse

público; hoje ocorre o inverso.

Apesar de todas as transformações ocorridas no perfil dos atletas e

nas características dos Jogos Olímpicos perceptíveis, já na metade do

século XX, somente a partir de 1981 é que o COI passou a ter

108 - Fontenel le , André. (1996). Teatro amador . In : Folha de São Paulo . A histór iadas Olimpíadas. Fascículo 2 . 10 de jul /1996. p .8

80

responsabilidade de controle sobre o perfil dos praticantes para as

federações específicas109, bem como retirou da Carta Olímpica em 1986,

conforme já relatado, o termo amador.

Os argumentos estruturados por Pierre de Coubertin pareciam

relacionar-se a uma ideologia dominante, que via o esporte sob uma lógica

puritana, romântica e destinada à celebração de uma classe dominante.

Observemos que o amadorismo se respaldava a parâmetros que

impossibilitava a aceitação de atletas remunerados. O amadorismo

vinculava-se principalmente: a) ao estilo distinto de vida; b) ao desinteresse

pecuniário; c) à participação pela participação; e d) ao desejo da vitória nos

princípios do fair play.110 Isto é, como não havia ganhos pecuniários, já que

era pautado no respeito à vitória e na participação dentro das regras do jogo,

as competições podiam prevalecer demarcando um estilo de vida de caráter

nobre, o que também permitia a elevação espiritual e a prevalência da

competência humana.

Os conceitos sobre amador não conseguem abarcar de forma

satisfatória todos segmentos esportivos (federações, confederações etc),

109 - Data de inclusão de at le tas prof iss ionais nos Jogos Olímpicos.1984 – Futebol1992 – Basquetebol1996 – Cicl ismo1998 – Hóquei ( jogos de Inverso – Nagano – Japão)

A his tór ia das Olimpíadas – Folha de São Paulo, 10 de jun/1996, p .8

110 - Fair p lay refere-se ao valor moral ( individual ou colet ivo) de conduta naprát ica espor t iva. É considerado o jogo l impo.“A adesão voluntár ia as regras espor t ivas, pr incípios e códigos de conduta,zelando pelas regras , observando os princípios da just iça , renunciando avantagens injust içadas, decl inando ganhos mater iais , enf im, todos os meios deelevar o esporte a um nível cul tural realmente mais al to .” (Tavares , 1999:31) . In:Otávio Tavares & Lamart ine P. DaCosta . (1999) (Orgs.) Estudos Olímpicos. Riode Janeiro. UGF

81

bem como os interesses particulares dos praticantes, uma vez que podemos

perceber diversas formas de engajamento, deixando-os frouxos,

inoperantes, não atingindo ao longo da história os valores morais e distintos

pretendidos.

Parece que, nos Jogos Olímpicos Antigos, bem como nos Jogos

Olímpicos Modernos, o esporte sempre conviveu com a tensão entre os

sentimentos românticos de pertencimento e a luta pela sobrevivência de

indivíduos e/ou o processo de instauração de uma indústria de

entretenimento. Como separar o artista e o operário da lógica desta

indústria? Os ideais esportivos fragmentam-se nesta transição e confusão

entre o esporte espetáculo vinculado ao show-business e o esporte

idealizado como representação de caráter de identidade coletiva.

Portanto, podemos perceber que o conceito de amador que as

principais entidades desportivas internacionais tentavam seguir tornou-se

inoperante na atualidade. A própria dinâmica do esporte, em certa medida,

inibia o consenso quanto a esta definição. Naturalmente, que em um espaço

onde diferentes projetos políticos-sociais estão entrelaçados seria muito

complicado estabelecer uma rigidez para determinar o direito a participação.

A solução seria a busca de uma ética profissional esportiva, mas sem

romper por completo com os vínculos amadores, principalmente aqueles

relacionados aos princípios morais e éticos, necessários para a manutenção

dos padrões civilizatórios.

82

Também nos pareceu que os ideais esportivos reeditados pelo

Barão de Coubertin não tenham saído apenas da historiografia dos Jogos

Olímpicos Antigos. Suas concepções de esporte foram sedimentadas em

um espaço de indivíduos privilegiados, onde o romantismo era valorizado,

em que a competição se assemelhava muitos aos ideais de honra e glória

que alguns atletas demonstravam no passado. Coubertin parece ter

desprezado, no entanto, que o indivíduo pudesse competir também pela

necessidade de sobrevivência, algo que já ocorria desde os Jogos

Olímpicos Antigos. Os interesse financeiros do atleta não foram observados

pelo Barão. Idealizou o retorno dos jogos apenas como uma espécie de

confraternização para uma classe de indivíduos privilegiados. Entretanto,

paralelo a estes ideais românticos e civilizatórios do final do século XIX,

também já estavam presentes à luta pela sobrevivência e o campo esportivo

não ficaria fora deste contexto. O esporte, nessa versão moderna,

rapidamente se tornou envolto pelos interesses. Daí, a necessidade de uma

fusão entre o discurso romântico de pertencimento e econômico, onde ora

se tende para um dos lados.

O poder econômico ao perceber o espaço esportivo como um

eficiente local de divulgação de seus produtos acabou por transformá-lo

também em uma mercadoria. Essa talvez seja a maior crítica dos românticos

e puritanos. A partir da entrada das empresas financiadoras os valores

foram redimensionados sobre outros pontos de vista. Aquele espaço,

inicialmente destinado ao lazer e a recreação passou a representar uma

potente fonte de renda. Portanto, o esporte, como ramo do entretenimento

83

foi transformado também em um produto do trabalho humano. O jogador,

aquele que demonstrasse produtividade e competência passou a ser uma

mercadoria de grande poder nas relações de trocas, na perspectiva

apontada por Karl Marx.111 Obviamente, a magnitude desta transformação

provocaria uma tensão entre aqueles que entendiam a necessidade de

modificação das relações, entre jogadores e clubes, nesta nova perspectiva

que se desenvolvia e, aqueles que pensavam o esporte como um local de

distinção, de honra e de glória.

111 - Marx ao fa la da t ransformação do trabalho humano em mercador ia , quest ionase ser ia possível comparar os d iferentes gêneros de trabalho humano entre s i paraconduzi- los a uma medida comum. Para Marx, “A força de trabalho do homem é aforça única que cr ia valores, e as mercador ias só são consideradas valores porquecontêm trabalho humano”. (p.15) Marx, Kar l (2004). O capi ta l : extratos de PaulLafargue. São Paulo Conrad Editora do Brasi l .

84

PARTE 2

O PROFISSIONALISMO NO FUTEBOL

“O futebol estava em perfeita sintonia com o ritmo que arevolução de 30 empreendeu para realizar transformações nopaís. Não foi só a educação escolar, a produção científica, aliteratura, o cinema, o teatro e a música que reapareciamfortes. O futebol também. Revolucionando o seu própriouniverso, disposto a incrementar uma dinâmica profissionalque eliminasse definitivamente os resquícios do elitismoburocrático.”

Waldenyr Caldas, 1990112

Capítulo IIIO processo de profissionalização do futebol na Inglaterra

A crise por que passará a afirmação do futebol no Brasil parece não

ter sido tão original como se pensava após nos inteirarmos dos relatos da

época da sua implantação até se chegar a um esporte profissional. Ao

debruçar sobre a historiografia mundial do futebol, percebe-se que a saída

de uma condição de esporte amador para um esporte profissional

apresentou tensões também em outros países onde o esporte teria

aparecido inicialmente como passatempo das classes financeiramente

privilegiadas. Sua apropriação pelas classes populares pode ser

112 - Caldas, Waldenyr . (1990). O pontapé in icia l – memória do futebol brasi le iro .São Paulo . Ibrasa . (p .190)

85

compreendida pelo que Norbert Elias (1990)113 chamou de assimilação e

emancipação ao se referir sobre o processo de expansão de ações sociais.

George Balandier (1976)114 alerta para o fato de que a dinâmica das

grandes alterações sociais, em muitos casos, continua mal conhecida e

duvidosa. Essas tensões ainda encontram-se pouco conhecidas ou cravadas

de conjecturas pouco claras. Nota-se, na historiografia do futebol brasileiro,

que essa perspectiva apontada por Balandier parece adequada. Grandes

lacunas ainda merecem investigações.

O futebol difundiu-se em escala global desde o início do século XX.

Antes, restringia-se aos principais países europeus e alguns latino-

americanos. A conquista de outras nações ocorreu paulatinamente e,

atualmente, é o maior fenômeno esportivo mundial. Todavia, o processo de

massificação mundial dos esportes teria ocorrido devido à aliança com a

imprensa e a mídia em geral (Lovisolo, 2000)115. Foi por intermédio da

transmissão da imagem, a partir da década de 70 do século XX, que o

futebol pôde ser apreciado por todo o mundo, fazendo surgir em escala

amplificada os ‘ídolos’, as ‘estrelas’ e os ‘heróis’ esportivos (Helal, 1998)116.

113 - El ias , Norbert . (1990). O processo civ i l izador: uma his tór ia dos costumes.Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editora.

114 - Balandier , Georges. (1976). As dinâmicas sociais – sentido e poder . SãoPaulo - Rio de Janeiro. Difel .

115 - Lovisolo, Hugo. (2000). Saudoso futebol, fu tebol quer ido: a ident idade dadenúncia . In : Helal , Ronaldo; Soares , Antonio, J . & Lovisolo , Hugo. A invençãodo país do futebol – Mídia, raça e idolatr ia . Rio de Janeiro. Mauad. Lovisoloargumenta que a popular ização do esporte fo i f ru to da al iança com a imprensa e ,por in termédio dos seus jornal is tas , contr ibuiu determinantemente para suaexpansão (p .83) .

116 - Helal , Ronaldo. (1998). Mídia, construção da derrota e o mito do herói . In :Motus Corporis . Rio de Janeiro, UGF v.5, n . 2 , p .141-155, nov. (p .145) .

86

As imagens transmitidas pelas TVs reforçaram esse gosto e envolvimento

popular e, hoje, a FIFA coloca-se entre as entidades de maior prestígio

mundial.

Em vários países, esta popularização se deu de forma rápida, ainda

antes da metade do século XX, como ocorreu em alguns países: Inglaterra,

Itália, França, Alemanha, Argentina, Uruguai, México, entre outros. Em

outros, no entanto, apesar de inúmeras tentativas da FIFA, o sucesso não foi

atingido conforme a expectativa, como é o caso dos Estados Unidos e do

Canadá, onde o futebol, pelo menos com o público masculino, não

conseguiu se estabelecer. À medida que se desenvolveu, nas principais

nações onde hoje é um esporte popular, observa-se que no passado era um

esporte de elite. Inicialmente utilizado como passatempo das elites, foi

cedendo lugar a um empreendimento financeiro que gera uma fortuna de

aproximadamente 250 bilhões de dólares por ano.117

Nesta seção, será apresentada uma breve descrição do processo

de profissionalização na Inglaterra. Optou-se por este país, pela importância

do desenvolvimento esportivo inglês no contexto mundial (Elias, 1992)118 e,

principalmente, pelo ao fato de ser este o país que oficialmente recebe o

título e os créditos de “criadores da modalidade”119, além de ter organizado o

117 - Site CBF News – www.cbfnews.bol .com.br 19k (Acessado em 20 de ago/2002)

118 - Fala des ta importância a par t i r da codif icação do esporte moderno no se iodas escolas inglesas . El ias , Norber t . (1992). A gênese do desporto: um problemasociológico. In : Norber t , El ias & Eric Dunning. A busca da exci tação. Lisboa.Disfel .

119 - Bi l l Murray re la ta que, a té a of ic ia l ização do futebol em 1863, havia vár iosjogos com as mesmas caracter ís t icas ( rugby, futebol americano e o fu tebol) e ,por tanto, “não há um pr imeiro fu tebol, pois a or igem de todos eles é muito ant iga,que desde o século XIX, na maior ia das faculdades e univers idades nor te-

87

esporte e sido a referência de aprendizagem para outras nações,

expandindo-o para além das fronteiras da Grã-bretanha.

O historiador inglês Bill Murray (2000) relata que o processo de

popularização e organização oficial da modalidade na Inglaterra teria sido

proveniente dos ex-alunos dos internatos ingleses, que, ao deixarem as

instituições, buscaram a continuidade da prática:

“Os internatos particulares ingleses não inventaram o futebol.Porém, foram seus old boys (ex-alunos) que – depois de entraremno comércio ou iniciarem a vida profissional, e ansiosos emcontinuar praticando os esportes favoritos da faculdade – deram oimpulso para a elaboração dos primeiros regulamentos nacionais.Antes disso, cada escola jogava segundo suas próprias regras.”(p.21)

As escolas inglesas também teriam funcionado como espaço de

conhecimento e dispersão do esporte moderno, por intermédio dos

estudantes de outras nações, filhos das elites, como também da burguesia

emergente mundial, que buscavam suas formações nestas instituições na

época (Bourdieu, 1983: 139)120. Ao retornarem, levavam-no aos seus países,

contribuindo, desta forma, para que o esporte se tornasse este fenômeno

popular. O futebol seria uma síntese desta expansão.

Na Inglaterra, teria sido o futebol, durante os primeiros anos após

sua oficialização, em 1863, um evento para a recreação da aristocracia e

elite burguesa, conforme relatara Janet Lever (1983)121, ao sinalizar que “o

americanas, ass im como na Grã-Bretanha, prat icava alguma forma de futebol” .Murray, Bi l l . (2000) . Uma his tór ia de fu tebol . São Paulo . Hedra. (p .20).

120 - Bourdieu, Pierre. (1983). Questões de sociologia . Rio de Janeiro. Marco Zero.

121 - Lever , Janet . (1983). A loucura do futebol . Rio de Janeiro. Record S.A.

88

futebol permaneceu como uma recreação aristocrática até o final da década

de 1870, quando foi ensinado às classes trabalhadoras industriais

emergentes pelos clérigos, homens de negócios e diretores de fábricas.”

(p.61)

Eric Robsbawn (1997)122 afirma que o futebol já era praticado por

integrantes das classes trabalhadoras, principalmente pela necessidade de

se recrutarem jogadores para formarem equipes, pois somente entre os

aristocratas e elites não era possível. “E altamente provável que os

jogadores de futebol tendessem a ser recrutados entre os operários

habilidosos.”(p.297) Essa apropriação operária possivelmente teria

provocado a sua difusão nos novos centros urbanos, deixando de ser um

privilégio das classes médias endinheiradas e da aristocracia.

Murray (2000) relata que alguns clubes surgiram no espaço do

trabalho e eram financiados pelos proprietários de indústrias, outros clubes,

no entanto, provenientes do empenho e da vontade dos próprios

trabalhadores, se auto-sustentavam. O autor deixa pistas da formação dos

clubes na época: “Quaisquer que sejam as origens, os clubes de maior

sucesso eram constituídos por jogadores da classe operária.” (p.26)

Marcelo Proni (2000)123 relaciona alguns fatores que contribuíram

para o sucesso alcançado pelo futebol junto aos operários das fábricas na

Inglaterra: a) os trabalhadores das industrias tinham folgas aos sábados à

122 - Hobsbawm, Er ic . (1997). A produção em massa de t radições: Europa, 1789 a1914. In : Hobsbawm, Er ic & Rangel Terence. A invenção de tradições . Rio deJaneiro . Paz e Terra.

89

tarde, ao contrário dos demais trabalhadores de outros setores; b) o futebol

funcionava como um canal alternativo de comunicação entre as classes

(aristocracia, burguesia e operários); e c) o surgimento de “um estilo de vida

mais amoldado as condições materiais das prósperas mais opressivas –

cidades inglesas.” (p.26)

Júlio Frydenberg (1998)124 constatou que, na Argentina, o

desenvolvimento do futebol apresentou características similares, onde o

processo de apropriação da modalidade teve uma trajetória bem próxima ao

que ocorrera na Inglaterra. Inicialmente, a modalidade vinculava-se ao

elitismo, tendo o fair play como a sustentação dos princípios esportivos.

Entretanto, “a prática do futebol foi disseminando entre os setores populares

portenhos desde os primeiros anos do século XX.” (p.51)

Richard Giulianotti (2002)125 afirma que, com a expansão da

modalidade no final do século XIX, na Inglaterra, ocorreram tensões entre as

classes e as regiões.(p.19) Tais conflitos teriam ocorrido dentro das classes

médias, divididas por regiões, sobre a aceitação do profissionalismo. No sul,

os resistentes à mudança do regime se manifestavam apoiados pela FA,

tendo como símbolo o Corinthians; no norte e na região central, as classes

médias trabalhadoras, os industriais e a pequena burguesia dominavam

123 - Proni , Marcelo Weishaupt . (2000) . A metamorfose do futebol . Campinas.Unicamp.

124 - Frydenberg, Júl io D. (1998). Redefin ición del fútbol af icionado e del fútbolof ic ia l . In : Pablo Alabarces , Rober to Di Gano & Júl io Frydenberg. (Orgs) Depor tey sociedad. Bueno Aires . Eudeba.

125 - Giul ianot t i , Richard . (2002). Sociologia do futebol – d imensões h is tór icas esociocul turais do esporte das mult idões. São Paulo Nova Alexandria .

90

grande parte dos clubes bem-sucedidos e defendiam a regulamentação do

regime profissional.

A criação da Football Association constituiu no final do século XIX a

principal força da corrente amadora na Inglaterra, que tentava neutralizar os

defensores do profissionalismo, considerados comprometedores dos valores

honrados e idealizados para a prática esportiva. Aidan Hamilton (2001)126

apresenta um relato de William Pickford, um jornalista engajado nos ideais

amadores, que defendia tais princípios para o futebol inglês. Observe como

Pickford representava seus ideais de esportista verdadeiramente amador:

“Os jogadores escolhidos para representar a nova associação empartidas contra os condados vizinhos iam a Brighton, Portsmouth,Salisbury e Reading pagando as próprias despesas. Além disso,compravam suas próprias camisas e, numa esplêndida ocasião,todo o time pagou solenemente sua entrada de seis pence para sever jogando!” (p.5)

Pela narrativa de Pickford. Pode-se perceber o perfil do praticante

delineado pela Football Association para o esporte britânico. Os ideais

estabelecidos pela classe burguesa ancoravam em um ‘estilo de vida’

articulado com o poder e as posses do indivíduo. Seriam amadores aqueles

que pudessem financiar suas atuações no momento de passatempo e não

vislumbrassem outras finalidades para a prática esportiva, a não ser o

compromisso com a própria atividade. O relato acima diz respeito do

envolvimento daqueles que se intitulavam verdadeiros amadores: “pela

seríssima convicção que tinha de que o football deveria ser apenas um

126 - Hamil ton, Aidan. (2001) . Um jogo in te iramente d iferente! Futebol : Amaestr ia brasi le ira de um legado br i tânico. Rio de Janeiro . Gryphus

91

passatempo.”(Hamilton, 2001:6). Observa-se que estavam em jogo a

representação, o pertencimento e a afirmação da comunidade.

Tais ideais respaldavam-se no compromisso e no pertencimento. O

jogador era um cavalheiro, um gentleman e, como tal, o esporte deveria ser

apenas uma forma de passatempo agradável na companhia de pessoas que

adotavam o mesmo princípio. O local de jogo representava o local de

afirmação destes valores.

Eric Dunning (1992)127 apontava que o ethos amador era a ideologia

eiva que dominava a Grã-Bretanha moderna, princípio observado em todo

mundo.

Ser amador no esporte, naquele momento, representava a ética

aclamada pela sociedade aristocrática e alta burguesia; em uma sociedade

onde se valorizava a acumulação proporcionada pelas indústrias e pelo

comércio, o esporte representava o não-trabalho, um espaço para emulação

desvinculada dos interesses. Também significava distinção que estabelecia

a diferença e o distanciamento entre os homens de posses e de prestígio em

relação aos demais cidadãos – os trabalhadores.

Desde cedo, o futebol tornou-se um espetáculo capaz de atrair a

atenção das pessoas que estavam dispostas a pagar para admirá-lo. Este

desejo, portanto, teria provocado a busca de desempenho, forçando as

equipes a mudarem sua postura em relação ao envolvimento dos jogadores

(Proni, 2000:27). Dessa forma, novos aspectos passaram a ser observados

127 - Dunning, Er ic . (1992) . A dinâmica do despor to moderno: notas sobre a lu tapelos resul tados e o s ignif icado social do despor to . In: El ias , Nobert . A busca daexci tação. Lisboa. Disfel . 299-326

92

na composição das equipes, visando melhorar a qualidade do espetáculo.

Os valores morais e éticos que fundamentavam o amadorismo não eram

mais suficientes para garantir a adesão dos espectadores. A competência

esportiva, desde aquele momento, já não era privilégio dos membros da elite

e, desta forma, na ânsia de ver o esporte triunfar em forma de ‘espetáculo

público’ mais atraente, as equipes tiveram que admitir a presença dos

jogadores populares das classes operárias capazes de melhorar a estética

do jogo, elevando, com isso, a possibilidade de rendas para o clube com a

venda dos ingressos.

Todavia, estas modificações estruturais, rapidamente, provocaram o

descontentamento dos dirigentes da Football Association, que passaram a

intensificar o combate aos jogadores remunerados, aqueles que jogavam por

interesse (Proni, 2000:27).

Interessante observar que os discursos relacionados aos princípios

amadores atacavam prioritariamente os jogadores que exigiam receber, mas

não questionavam os benefícios que essas bilheterias proporcionavam aos

clubes.128 Os dirigentes já compreendiam que a presença dos espectadores

e as rendas geradas eram benéficas para o engrandecimento do clube e do

próprio esporte. Proni (2000) argumenta que os defensores do amadorismo,

no entanto, não estavam preocupados apenas com os princípios amadores,

mas também com o controle da modalidade. “Estava em jogo não apenas a

128 - Observa-se que a lógica é semelhante à da re l igião. A igreja ar recadadinheiro, mas seus clér icos não estão lá para obter lucro ou salár ios.

93

preservação dos princípios éticos do esporte amador, mas o próprio controle

da modalidade.”(p.27)

Neste momento, seria possível especular sobre o pensamento dos

amadores daquela época: “vamos manter nosso passatempo somente entre

nós, onde buscaremos nossa diversão de forma exclusiva, ou vamos admitir

a inclusão de outros jogadores que venham a valorizar o espetáculo

esportivo?” Obviamente que a hipótese acima elaborada é contra-factual e

demasiadamente oportunista. Por hora, sugere-se apenas que os valores

morais se confrontavam com a busca pelo desenvolvimento do esporte e

com a acumulação.

Lever (1983)129 afirmou que o profissionalismo passou a ser uma

questão moral, que demonstrava a existência de um conflito de classes

através do futebol. Já em 1880, o futebol era capaz de atrair 10 mil

espectadores pagantes para uma partida, o que poderia reverter para

pagamento dos “jogadores para disporem de mais tempo para aperfeiçoar

suas habilidades.”(p.61) Se havia dinheiro, por que não utilizá-lo no

melhoramento da qualidade do jogo, buscar a excelência? Investir na

excelência dos jogos passou a ser um princípio sustentado por alguns

dirigentes e solicitado por parte dos jogadores.

De fato, esta atitude começou a mexer com as bases fundamentais

do amadorismo, onde o dinheiro passou a ser utilizado também na

remuneração do jogador que dedicava seu tempo para cumprir as

129 - Janet Lever aponta uma publicação de 1875 de James Walvin, The Peoples’sGame: A social History of Bris t ish Footbal l , onde já se relatavam os conf l i tos declasses , devido à prof iss ional ização do futebol.

94

exigências do clube. Parecia estar em jogo a competência necessária para

melhorar o espetáculo. Devido à busca da superação do rendimento,

procura pela eficácia atlética, foi possível a abertura de espaços para que os

operários se apropriassem do esporte e também passassem a ser “matéria-

prima” disponível no mercado esportivo que se formava.

Lever (1983) afirma que a remuneração provocou um impasse entre

os dirigentes ingleses e a resposta veio na ameaça dos clubes do norte (que

remuneravam seus jogadores) em abandonar a FA e criar sua própria

competição. A mesma constatação foi feita por Murray (2000), porém, coloca

que neste período ocorreram confusas restrições, que logo foram

abandonadas.

A aceitação dos jogadores profissionais pela Football Association

teria ocorrido em 1885. Conforme Lever, aqueles que detinham o poder

criaram barreiras:

“Chegou a um acordo em 1885, quando a Football Associationaceitou os profissionais, mas proibiu-os de servirem em qualquercomitê ou comparecerem às reuniões da associação. Ou seja, acompensação para a presença de profissionais no campo era ocontrole administrativo do futebol por amadores.”(p.61) 130

Entretanto, Murray (2000) coloca que a solução teria vindo com a

criação da Liga de Futebol (LF), a qual pretendia ter no seu gerenciamento a

participação também dos escoceses e, por isso, não foi adotada a

130 - Lever apropr iou dos apontamentos do l ivro de Gadner , Paul (1976) Thesimplest game: the intel l igente American’s guide to the world o f soccer . Boston.Li t t le Brown.

95

denominação de Liga Inglesa de futebol, que inicialmente havia sido

cogitada, mas não se adequava à inclusão dos clubes escoceses.

As argumentações de Murray (2000) apontam que, antes da

legalização do profissionalismo na Inglaterra, os salários pagos aos

jogadores eram insuficientes, fazendo com que buscassem outras fontes de

sobrevivência.131 Com a legalização, novos parâmetros de controle

passaram a ser utilizados, principalmente na relação trabalhista entre os

empregadores e seus funcionários. Essa situação foi defendida pelos

proprietários industriais do norte, que viam na profissionalização uma forma

de restauração das relações. Com a legalização profissional, o jogador

passaria a estar vinculado a um contrato, tendo seus salários definidos

nestes contratos (Murray, p.33).

Com a legalização estabeleceu-se o valor. Para os jogadores

ingleses a remuneração anual máxima estava fixada em 280 libras, inclusive

aponta Murray que se proibiam as bonificações, consideradas prejudiciais

ao esporte:

“Os grandes clubes desejavam oferecer salários maiores, maseram vedados pelos que queriam manter certa igualdade. Ojogador tinha pouco a dizer sobre o assunto. Pior ainda, era“preso” por um sistema de contratação e transferência, que davaao clube um controle praticamente total sobre ele. Com o contrato

131 - Observa-se que, no Brasi l , mesmo no f inal do século XX, 64 anos após aconcret ização do prof iss ional ismo, ainda ocorr ia o mesmo. A Folha de São Pauloapresentou em edições especiais , no ano de 1997, uma sér ie de repor tagensint i tulada “País do Futebol” , onde apontara os fatos e mazelas mais vis íveis dofutebol bras i le iro. Na edição de 23 de fevereiro, t rás uma reportagem sobre acondição do jogador , Abismo econômico cria mundo de mil ionários e miseráveis .A repor tagem aponta o percentual de jogadores que ganhavam 1SM(aproximadamente 80 dólares) , onde 50,8 % dos jogadores profiss ionaisbrasi le iros, regis trados na CBF em 1986, estavam nesta faixa salar ial . Folha deSão Paulo . Especial . País do Futebol . 23 de fevereiro de 1997.

96

assinado (com um pagamento máximo de dez libras), o jogadortornava-se propriedade do clube e não podia sair exceto com suapermissão. Se o clube oferecia ao jogador o mesmo salário pagono ano anterior, não tinha do que queixar.” (p.33)

Murray ironiza a atitude dos dirigentes, colocando que tal atitude era

uma variante do socialismo no campo esportivo, jamais tolerada fora de

campo.

Para assegurar suas resoluções, bem como evitar o êxodo dos

jogadores em busca de melhores salários, um acordo entre os dirigentes da

LF inglesa e seus pares na Escócia, Irlanda e País de Gales, bem como a

Liga do Sul da Inglaterra, proibia os jogadores de atuarem fora do Reino

Unido até 1920 (Murray, 2000). Nota-se que esta pressão dos dirigentes

visava coibir o êxodo dos jogadores em busca de melhor remuneração e,

por intermédio deste acordo, o jogador ficaria sem opção, sujeitos a

determinações dos dirigentes.

Até que o profissionalismo passasse a ter total aceitação pública, os

clubes britânicos que já adotavam em seus quadros os jogadores

remunerados os requisitavam das inúmeras associações de amadores,

geridas por órgãos municipais (igrejas, escolas, batalhões de brigada etc)

que promoviam torneios onde os rapazes podiam ser descobertos por

‘olheiros’132 dos times profissionais (Murray, 2000:32). Depara-se com uma

132 - Este termo está presente no l ivro de Murray, todavia , pode ter s ido opção dotradutor , pelo fato desta expressão ser conhecida na nossa l íngua e bastante atual .Entretanto, Penna o def ine como “aquele que descobre jogadores em clubes dointer ior” (p.158) . Penna Leonam. (1998). Dicionár io popular do futebol : o ABCdas arquibancadas. Rio de Janeiro. Nova Fronteira .São os chamados caça- ta lentos, que cot idianamente vis i tam os centro detreinamento , escol inha, c lubes, comunidades onde o fu tebol é prat icado,objet ivando selecionar os jovens at le tas que possam ser contratados ou

97

narrativa brasileira, quanto à forma de inserção e à apropriação do jogador

pelos clubes. Observa-se que esta dinâmica no esporte parece ter sido

muito semelhante em diversos países. Igrejas, escolas, militares foram

determinantes na confirmação do perfil esportivo em diversas nações.

Na Inglaterra, naquele período, as instituições de ensino eram os

organismos que sustentavam o amadorismo, enquanto alguns clubes já

demonstravam a possibilidade de se desenvolver o futebol, tendo em suas

equipes os atletas profissionais; para isso, pressionavam os órgãos

dirigentes que zelavam pelo amadorismo. Entretanto, alguns clubes

permaneciam empenhados e comprometidos com os seus ideais esportivos

amadores, como era o caso do Corinthians Sport Club133, que, inclusive, se

recusava a disputar campeonatos em que estivessem presentes equipes

profissionais. Segundo Nicolini (2000), o Corinthians da Inglaterra

permanece até hoje como um baluarte do esporte amador. Não foi possível

perceber como Nicoline se apropria do conceito de amador para afirmar que

esse clube permanece mantendo esse status.

Segundo Lever (1983), os amadores que dirigiam a associação

eram das elites inglesas, inclusive alguns deles membros da nobreza,

comercial izados. Sal les , José Geraldo do C. (2004). Escola de fu tebol : cr iação,seleção de a t iv idades, p lanejamento, organização e controle . (No prelo)

133 - Nicol in i , Henr ique apresenta um argumento carregado de folclore acerca doespír i to esport ivo, comprometido com os ideais amadores do Corinthians.“Segundo nos conta ( . . . ) , esse clube era tão puro e correto em seu cavalheir ismoque, se o Corinthians f izesse um pênal t i , o goleiro do t ime nem se mexia paradefendê- lo . A própr ia equipe se punia da fal ta cometida”. Nicolini , Henrique.(2000) . Tietê: o r io do esporte . São Paulo. Phorte Editora .Segundo Hamil ton (2001), o Corinthians, inclusive, recusava a adoção da regra dapenal idade máxima, por negar a admit i r que cavalheiros cometer iam fal tas . Nota-se aqui uma evidente marca romântica .

98

enquanto os dirigentes dos clubes eram provenientes da classe média e

também dos nouveau riche. Lever (1983) realizou sua análise apoiada

novamente em Walvin, ao apontar os fatos:

“Foi à comunidade dos industriais, empresários e comerciantesbem-sucedidos que se instituiu como a benfeitora do esporte; aoinvés de ganharem dinheiro, esperava-se que tais homensfizessem doações ou empréstimos sem juros aos clubes, nosmomentos de dificuldades. Esperava-se também queaproveitassem suas posições fora dos clubes para ofereceremaos jogadores empregos de tempo parcial e depois de encerradasas carreiras futebolísticas, como um meio de atrair os talentos deprimeira categoria para suas equipes. O que eles obtinham emtroca era o prazer de servir a suas comunidades, o poder decontrolar os times que amavam e a publicidade gratuita para atrairnovos negócios e promover ligações políticas.” (p.62)

O processo de profissionalização alcançado em 1885 teria surgido

pela constatação da inevitável transformação ocorrida no perfil do jogador,

que já entendia sua ação como força capaz de gerar lucros para os clubes e

federações e por perceber “o poder que residia em suas chuteiras.”(Murray,

2000. p.32) Diante da pressão dos jogadores e de alguns senhores

interessados, a FA não teve como negar o reconhecimento do novo regime.

Neste contexto, as argumentações eram colocadas buscando

justificar a forma de envolvimento entre os dirigentes e os jogadores com os

clubes. Os dirigentes queixavam-se do fato de os jogadores não

demonstrarem o mesmo tipo de envolvimento afetivo que eles, exigindo

dinheiro para jogar. Sustentavam-se na lógica do comprometimento

emocional, desvinculado do interesse pecuniário, entendendo que o clube

deveria ser um espaço de relações sociais e que o futebol deveria ser

99

entendido como uma complementação desta sociabilidade. Para os

dirigentes, os jogadores deveriam se enquadrar nesta mesma perspectiva.

De certo modo, queriam, inclusive, impor que os jogadores se

enquadrassem nesta mesma lógica e, portanto, não achavam legítima a

reivindicação do regime profissionalizante. Todavia, os argumentos de

alguns jogadores, principalmente os defensores da profissionalização,

evocavam outras questões.

Os jogadores argumentavam que os dirigentes usufruíam dos

benefícios proporcionados pelos cargos que ocupavam, adquirindo poder e

prestígio social e, obviamente, os ‘lucros indiretos’. Para os jogadores, no

entanto, restava apenas o prestígio esportivo, isto é, só teriam

reconhecimento público mediante as façanhas esportivas do clube.

Os jogadores questionavam, ainda, o fato de que os benefícios e o

vínculo dos dirigentes poderiam se estender por vários anos, o que

simbolizava uma maneira desigual de envolvimento, diferentemente dos

atletas que em pouco tempo encerravam sua carreira esportiva e

rapidamente perdiam sua estima perante a sociedade e os associados do

clube, ou seja, para o jogador, o prestígio era efêmero, enquanto a trajetória

do dirigente poderia ser duradoura. Devido a estes argumentos, observados

principalmente, pelos jogadores populares, surgia a simpatia pelo regime

profissional.

A não aceitação pelos clubes do sul impulsionou naquela região a

criação de uma nova entidade Associação de Futebol Amador, destinada a

100

manter firme os ideais amadores. Tal associação, no entanto, não obteve o

êxito esperado, durando menos de uma década (1907 a 1914).

A importância do futebol na nova cultura inglesa podia ser

constatada desde cedo pelo aumento do número de torcedores, bem como

pela composição desta torcida, formada por indivíduos de distintas classes

(Giulianotti, 2002. p.20). Desde 1888, a média de público nos jogos vinha

apresentando aumento substancial. No ano de 1888, a média era de 4.600

pessoas e, em 1895, já atingiria 7.900. Dez anos depois, chegaria a 13.200

pagantes, em média (p.20).

Os maiores clubes na época eram favoráveis a um mercado livre de

trabalho para os jogadores, mas alguns diretores apontavam que os salários

eram altos e comprometiam as finanças. A tentativa do teto salarial de 4

libras esterlinas, imposto pela FA em 1901, não era respeitada (Giulianotti,

2002. p.21). Para ludibriar as imposições da federação, os clubes efetuavam

pagamentos clandestinos e/ou arranjavam postos de trabalho falsificados,

como mecanismo para remunerar indiretamente os jogadores. Observa-se

que a idéia de limitação provavelmente se sustentava na prerrogativa de

tentar controlar o fluxo de jogadores entre os clubes e, desta forma, aliviar a

pressão que os dirigentes poderiam sofrer de forma generalizada.

Na Inglaterra, o rugby também teria passado por crises similares

durante o período de sua afirmação. A tensão entre o amadorismo e

profissionalismo também fizera parte da solidificação da modalidade,

101

conforme apontam Eric Dunning e Kenneth Sheard (1989)134, em La

séparation des deux rugbys, quando desenvolveram um estudo mostrando a

trajetória de afirmação da modalidade entre os praticantes do norte e do sul,

onde originaram duas ligas independentes: uma que manteve o vínculo

estritamente amador e outra que gerenciaria a modalidade

profissionalmente. As associações eram administradas por duas

organizações distintas: a l’Union – Rugby Football Union, que se refere

exclusivamente a um ethos puramente amador, e a Ligue de Rugby, que

admitia jogadores amadores e profissionais. Interessante observar que,

diferentemente do futebol, na Inglaterra, o rugby profissional, na atualidade,

não tem o mesmo prestígio, ficando a organização amadora como a

principal força da modalidade perante a população. As empresas que

patrocinam os eventos de rugby demonstram mais estima pela liga

amadora, uma vez que ela desperta mais a simpatia popular. Surge, então,

o paradoxo. Conseqüentemente, a organização amadora do rugby recebe a

atenção da mídia e dos principais investidores no campo esportivo.

Nota-se que as narrativas destes autores consultados (Lever, 1983;

Proni, 2000; Giulianotti, 2000; Murray, 2000; Hamilton, 2001; entre outros)

apontam para a tensão entre os indivíduos que queriam manter o futebol

como fonte de lazer, dentro do ‘espírito amador’- os românticos puritanos, e

os interessados em consolidar a remuneração oficializada, por intermédio do

regime profissional. Todavia, rapidamente viram surgir uma demanda

134 - Dunning, Er ic & Sheard, Kenneth . (1989). La separat ion des deux rugbys. In :Actes de la recherché en sciences socials . n º 79, septembre. Paris . College deFrance.

102

popular que ansiava por um esporte mais competitivo. Para os

conservadores, os valores éticos e morais foram desvirtuados daquilo que

Dunning (1992) chamou de ideologia elaborada e cristalizada,

“isto é, constituía uma representação coletiva, desenvolvida pelosmembros de uma coletividade em oposição aos membros de outraque consideravam uma ameaça, quer em relação à suaproeminência organizativa e de jogo, quer quanto às formas dedesporto, tal como entendiam que devia ser praticado.” (p.315)

Vejamos a idéia de que o profissionalismo era visto como uma

ameaça aos valores sociais. Os conservadores se pautavam nesta

perspectiva da ameaça para contra argumentar sobre as transformações

(Hirschman 1992).

A concepção romântica, visionária, que condicionava o futebol

inglês a um ethos de uma classe de privilegiados, onde os indivíduos de boa

família podiam ampliar seus contatos, criando elos de comprometimento,

respeitabilidade e prestígio, rapidamente tornou-se frágil, provocando uma

mudança estrutural no esporte dentro da sociedade inglesa. Desde os anos

finais do século XIX, a sociedade passou a valorizar o futebol como

espetáculo público.

Dunning argumenta que o ethos amador já estava presente na Grã-

Bretanha antes da década de 1880, mas de forma relativamente rudimentar.

Tratava-se de um conjunto de valores amorfo, “articulado de maneira vaga

no que diz respeito às funções do desporto e aos padrões que se acreditava

serem necessários a sua realização.” (p.314)

103

Parece que os atritos, os percalços, as desconfianças, as

prerrogativas que marcaram o processo da profissionalização inglesa

estenderam-se a outros países, como aconteceria mais tarde na Argentina,

no Uruguai e Brasil. Um esporte que, ao se tornar popular, necessitou da

reestruturação de suas bases organizativas, mediante a nova demanda

social que estabelecia, ao seu redor, uma tensão entre as classes que

dominavam a modalidade em conflito e as classes de baixo. Veblen

(1974)135, apontara este mesmo fato ao desenvolver seus estudos sobre a

estrutura econômica das instituições. Argumentou Veblen que se tratava de

uma tensão dos indivíduos de baixo, para ascender e conquistar o espaço

nas camadas superiores; em contrapartida, existem a desconfiança e o

fechamento dos indivíduos das classes superiores que queriam manter o

espaço de distinção.

Parece que os indivíduos que se colocavam como responsáveis

pela implantação do futebol, mesmo algumas décadas depois, não

imaginavam a crescente expansão da modalidade em praticamente todos os

espaços urbanos e sua aceitação em todas as camadas sociais. Pensavam

e tentavam manter o futebol como um espaço de diferenciação social. Nos

anos finais do século XIX e décadas iniciais do século XX, esta foi a tônica

135 - Veblen, ao real izar um estudo econômico das inst i tu ições, constatou que asclasses ociosas impunham às classes infer iores muitos traços de sua estru tura devida social , como resul tado do prolongamento cont ínuo, do cul t ivo mais ou menospersis tente dos traços ar is tocrát icos que propagavam. Segundo Veblen, na medidaem que as r iquezas foram acumuladas, desenvolveu-se uma classe ociosa, e oacesso a es ta c lasse se fazia por meio da demonstração pecuniár ia , is to é , acapacidade de ostentação pública. O ócio precisava ser v is to . Parece possível queo espor te tenha desempenhado este papel no f inal do século XIX e in íc io doséculo XX. Todavia, o espor te desde aquele momento poss ibi l i tava que osindivíduos de classes infer iores buscassem prest ígio , ao se aproximarem dasclasses super iores .

104

do debate – a idéia de diferenciação do espaço social – onde os “filhos de

boa família” pretendiam ter o clube como seu local de distinção em relação

às classes populares. Possivelmente, esta idéia de fechamento que

imperava nos principais clubes ingleses foi refletida também na formação

dos clubes de elite brasileiros, naturalmente tendo o ideal amador inglês

como pano de fundo.

Tendo em seus quadros de jogadores os “filhos abastados”, a idéia

da remuneração dos jogadores parecia inaceitável, por ser corrompedora

dos ‘valores do esporte’. Se o praticante tinha dinheiro, não havia

necessidade de remuneração. A partir do momento em que o futebol se

tornou um espetáculo, novos valores e aspiração passam a reger o

desenvolvimento da modalidade. A competência técnica e a habilidade eram

requisitadas independentemente da classe a que o jogador pertencesse,

obviamente, ainda com grande resistência de alguns conservadores.

Todavia, ficava difícil reservar espaço nas equipes para os jogadores das

‘elites’, se eles não fossem capazes de corresponder ao desempenho do

jogo. Portanto, o privilégio da prática passava a ser questionado, se o

praticante não respondesse com um futebol eficiente.

A competência esportiva individual (ou excelência esportiva) era a

força que os indivíduos das classes populares utilizavam neste combate e a

forma de pressionar a sua inclusão. Poderíamos aqui pensar nas análises

realizadas por Roberto DaMatta (1982)136 acerca do futebol brasileiro, ao

136 - Segundo DaMatta , o futebol é “uma forma de igualdade aber ta e al tamentedemocrát ica, pois que in teiramente fundada no desempenho” (p .39) . DaMatta ,Rober to. (1982). Espor te na sociedade: um ensaio sobre o fu tebol brasi le iro In:

105

apontá-lo como um espaço onde o desempenho é o fiel da balança.

Rapidamente os clubes perceberam a necessidade de ter em suas equipes

jogadores que correspondessem ao novo rumo do esporte. Ter os melhores

jogadores neste contexto passou a ser sinônimo de prestígio para os

associados e dirigentes do clube. Portanto, ostentar em suas equipes os

melhores jogadores, mesmo tendo que remunerá-los, representava uma

nova forma de poder, entretanto, não somente o poder simbólico da

representação esportiva, ao se ter uma equipe vencedora com jogadores

competentes, mas também os benefícios financeiros diretos que as

bilheterias favoreciam, provenientes dos reflexos despertados pela

excelência esportiva apresentada por estes jogadores.

Mediante as argumentações dos autores citados, ousamos, neste

momento, apontar algumas hipóteses que julgamos ter contribuído para a

implantação do profissionalismo na Inglaterra. Acreditamos, ainda, que tais

fatores possam estar inter-relacionados e se assemelham bastante aos

motivos que conduziram à profissionalização brasileira: a) a busca do

jogador da classe trabalhadora para melhorar a competência do jogo acabou

se tornando um local de ascensão social via esporte; b) a necessidade dos

clubes em melhorar suas equipes, mostrando-se competitivos e suplantando

os clubes rivais; c) a elevação do nível técnico do espetáculo; d) o atrativo

popular pelo espetáculo esportivo, inclusive pelo fato de que passou a ser

um espetáculo pago e, com isso, a cobrança do público pagante pelo

melhoramento da eficiência e qualidade; e e) o elevado envolvimento das

Rober to DaMatta , R. et al . Universo do futebol : espor te e sociedade brasi le ira .Rio de Janeiro. Pinalotheke.

106

classes populares na prática e, consecutivamente, a elevada demanda de

jogadores qualificados.

O levantamento da historiografia do futebol inglês foi realizado

objetivando-se o conhecimento dos percursos e tensões provocados pela

profissionalização do esporte, no país que serviu de espelho para o modelo

esportivo adotado no Brasil (Elias e Dunning, 1992), bem como em outros

países ocidentais. Observa-se que a tensão apresentada nas narrativas se

assemelha ao que se vivenciou aqui no Brasil nas décadas de 1920 e 1930

do século XX. Todavia, é interessante observar que, apesar de se ter

seguido o modelo inglês para a formação dos clubes brasileiros, o processo

de profissionalização encontrou forte resistência, mesmo após a

consolidação da profissionalização na Inglaterra.

Nos capítulos seguintes, objetivou-se analisar, no Brasil, o modo

como o terreno foi preparado e as tensões travadas entre os pró-

profissionalismo e aqueles que insistiam em manter o esporte como caráter

de distinção social e lazer.

Capítulo IVA rápida difusão do futebol - Uma volta pela história dofutebol brasileiro através do Rio de Janeiro

107

Conforme Pereira (2000), desde o início do século XX, o esporte

vinha sendo divulgado pelos jornais e periódicos da época. Nesta obra,

aparecem fotocópias de imagens jornalísticas datadas desde 1902. Embora

naquela época fossem informações que vinculavam o esporte ao modismo

elegante, já se presenciava maior atenção ao futebol, em detrimentos aos

demais esportes da época. O fato de o futebol ter adquirido prestígio nas

altas rodas cariocas despertou a atenção de comerciantes e empresários

que viam neste esporte uma grande possibilidade de lucro. Portanto, a idéia

do lucro e do interesse econômico já estava presente desde os anos

iniciais. Pode-se perceber que o mesmo teria ocorrido na Inglaterra, como

analisado anteriormente. Portanto, no Brasil, parece ter sido uma

conseqüência da expansão da modalidade em todos os sentidos. A partir

deste instante, “os jornais esportivos multiplicavam-se, tendo já no futebol

um de seus assuntos principais.” (Pereira, 2000. p. 77) 137.

Portanto, ao contrário da “profecia” de Graciliano Ramos, em 1921,

o futebol não se constituiu como “um fogo de palha”, um modismo

passageiro na cultura brasileira. Parece que Graciliano falhou em sua

profecia, pois Pereira nos demonstra que neste período o futebol já havia

ganhado a atenção popular.138

137 - Pereira coloca que mesmo os grandes jornais adotar iam a part i r de então umaati tude bem diferente com o jogo. Ao contrár io do desleixo de anos anter iores ,e les passavam a not ic iar cada uma das disputas do campeonato, chegando, porvezes, a desculpar-se com o público le i tor , quando, em ocasiões especiais como ocarnaval , precisava trazer a seção esport iva “mais reduzida e sem a ampli tude”habi tual . (Pereira 2000. p .77) .

138 - Ver Soares , Antonio, J . & Lovisolo , Hugo. (2001). O futebol é fogo de palha:a “profer ia” de Graci l iano Ramos. In : Ronaldo Helal , Antonio Jorge Soares &Hugo Lovisolo . A invenção do país do futebol . Rio de Janeiro. Mauad.

108

A modalidade alcançou praticamente todos os segmentos sociais.

Os jornais buscavam, desta forma, corresponder às expectativas dos seus

leitores e, portanto, o futebol tornou-se rapidamente um importante atrativo.

Pereira (2000) relata que, a partir de 1905, quando o futebol deixou

para trás sua feição de novidade, ganhou a marca de um esporte triunfante.

Por chamar a atenção de “uma mocidade dispersa”, o futebol dava motivo

para a formação de inúmeras associações. Segundo Pereira, ao final de

1906, já haviam sido fundados mais de 30 clubes. Essa popularização

crescente desencadeou um descontentamento por parte de alguns

segmentos, imprensa e jogadores dos clubes de elite, que começaram a

perceber a popularidade repentina do futebol como uma afronta ao

cavalheirismo e ao fair-play, desviando a modalidade dos princípios

pretendidos pelos verdadeiros sportsmen. (p.60)

Essa nova perspectiva deflagrada pela apropriação popular do

esporte impulsionou uma nova tentativa de se frear esse crescente avanço

de popularidade, que, segundo Pereira (2000), não se restringia apenas ao

futebol, uma vez que essa busca pela distinção de classes se aplicava

também ao remo. Um dos mecanismos utilizados para a contenção desta

‘invasão desqualificada’ se deu inicialmente por intermédio da cobrança de

taxas elevadas para o ingresso nas associações elitistas. Mais tarde,

quando perceberam que a medida ainda não estava filtrando alguns

indivíduos, criaram outras medidas de contenção (Caldas, 1990)139, que era

139 - A AMEA cr iava outros mecanismos de controle sobre o jogador:1) “Todo e qualquer jogador at le ta de fu tebol deverá apresentar à comissão desindicância , a cada noventa d ias , a prova de que trabalha”;

109

a necessidade de o pretendente a sócio mencionar, na proposta de filiação

ao clube, o posto que ocupava no trabalho. Estavam vetados aqueles que

porventura tivessem ocupado funções operárias: “não ser nem ter sido

profissional de qualquer serviço braçal.” (p.63) Observa-se como o

fechamento se dava diante do perfil elitista. Pretendiam com tal medida

coibir a presença de pessoas cujos trabalhos fossem sem qualificação

social, isto é, proibiam a prática de jogadores que se ocupassem de

trabalhos que não exigissem qualificação do indivíduo.

As análises de Pereira apontam que o esporte em determinado

momento exerceu a função de mecanismo de diferenciação, uma vez que “o

campo dos direitos civis não servia mais para distinguir os indivíduos.”(p.67)

A aparência (roupas e modos) passou a ser um dos mecanismos iniciais de

diferenciação. Portanto, vestir-se bem, comportar-se com bons modos, ter

gestos refinados constituíam o “cartão de visitas” do indivíduo,

indiferentemente de sua condição econômica, naquele espaço público em

expansão, onde os mecanismos de controle sobre os indivíduos eram

deficitários, pois não havia como controlar a origem, a procedência, os

vínculos dos indivíduos nos grandes centros urbanos. Observa-se que os

mecanismos de controle eram inoperantes, pelo menos no plano visual,

exceto quando se pertencia à raça negra, pois nesta condição os

2) “Na prova apresentada à comissão de s indicância deve constar o valor do seuordenado”;3) “Todos e qualquer at le ta do futebol devem ler e escrever corretamente”;4) “Antes do jogo, o at le ta deverá preencher a ‘papeleta de inscr ição’ para poderadentrar ao gramado, d iante do árbitro, do pres idente da Associação ou de umfiscal da Comissão de s indicância”. Caldas (1990) .

110

mecanismos de despistamentos perdiam, em parte, seu sentido. Disfarçar

as evidências da raça não era (e não é) possível.

Somente quando surgiram outros mecanismos de controle (carros,

relógios de marca, roupas de grifes) é que novamente outras estruturas de

controle foram apropriadas. Richard Sennett (1989)140 relata que Jean-

Jacques Rousseau, analisando as metrópoles, comparou a cidade a um

grande teatro, onde os indivíduos representam a vida pública. Segundo

Sennett, Rousseau lamentava que o surgimento das grandes metrópoles,

ainda no século XVIII, dificultou ou praticamente extinguiu o mecanismo de

controle sobre o cidadão, pois suas posições sociais ficaram camufladas.

Nesta nova cidade, com sua expansão, o indivíduo pode representar um

status incompatível com condição social. Devido à complexidade das

relações nas grandes cidades, não se pode ter certeza do tipo de homem

com o qual se está tratando. O homem tornou-se um ator, que representa o

perfil que lhe é conveniente em algumas circunstâncias. Sennett relata que

as pessoas manipulam suas aparências, buscando receber a aprovação

dos outros e, desta forma, sentir-se bem consigo mesma. É provável (a

certa medida até aceitável) que o jogador de futebol tenha agido com a

mesma estratégia.

Nicolau Sevcenko (1992)141 entendia a expansão do futebol

também como um embaralhamento das posições sociais:

140 - Sennet t coloca que as pessoas são dependentes das outras para conseguiremter uma percepção de s i próprias . Sennet t , Richard. (1989) . O declín io do homempúblico – as t i ranias da in t imidade. São Paulo . Companhia das Letras .

141 - Sevcenko, Nicolau. (1992). Orfeu extát ico na metrópole. São Paulo.Companhia das Letras.

111

“Fosse como fosse, visto pelo alto ou pela base da hierarquiasocial, no centro ou na periferia, o futebol propiciava oembaralhamento das posições relativas, suscitava identificaçõesdesautorizadas, invadia espaços interditos e desafiava tanto otempo do trabalho quanto o do lazer. Esse componenteindisciplinado, essa pressão insurgente contra espaços erestrições discriminadoras, se incomodava alguns grupos, poroutra lado atraia multidões.” (p.61)

Esta trajetória da incorporação do futebol na sociedade brasileira

modificou as estruturas gerais das organizações esportivas da época.

Quando a prática passou a ser difundida por praticamente todas as parcelas

populacionais, os clubes de menores expressões econômicas, os dos

subúrbios, começaram a reivindicar a participação nos principais eventos.

Essa busca de espaço comum provocou desestabilidade nas ligas que

gerenciavam o esporte dos clubes de elite. Diante desta pressão, tais clubes

buscavam manter seus distanciamentos, invocando outros mecanismos de

diferenciação, como pagamentos de elevadas taxas, exigência de

instalações esportivas modernas, entre outros (Pereira, 2000). Entretanto, as

pressões exercidas pelos clubes dos subúrbios e de menores expressões

funcionaram como propulsores das transformações políticas e gerenciais por

que o esporte foi passando.

As modificações, embora pareçam penosas, através de muitas

lutas, desmandos dos mais fortes142, repressão política, entre outros fatos,

142 - No Livro de Flor iano Peixoto Correa, aparece na página 120 uma foto ondedois pol ic iais es tão re t irando de campo um jogador negro. Abaixo da fo to , Corrêacoloca: “Um f lagrante t ípico do amadorismo: dois gr i los conduzem preso ojogador Nilo”. Pensamos que a fo to poder ia sugest ionar outras in terpretações.Todavia, é emblemática a forma com que o autor se apropr ia desta imagem para

112

ocorreu de forma bastante rápida. Os dados apresentados por Pereira

(2000) mostram que, em 1907, os jornais cariocas notificavam cerca de 77

clubes de diferentes condições sociais e, em 1915, este número era quase

três vezes maior. Pereira afirma ter realizado levantamentos diários no jornal

Imparcial, onde constatou que eram freqüentes os surgimentos de novas

associações, quando contabilizou a existência de 216 clubes.

Esse elevado número de clubes teria provocado,

conseqüentemente, o surgimento de outras ligas143 para que pudesse

organizar os campeonatos para todos estes novos clubes e suas demandas.

Todavia, tais associações não permaneciam ativas por muito tempo, em

razão de seu gerenciamento se tornar inoperante, devido a tensões entre os

clubes afiliados e seus distintos propósitos. Todavia, a cada temporada,

nova associação surgia e arrebanhava os dissidentes das outras

associações que se mostravam insatisfeitos com sua organização de

origem, bem como os novos clubes que surgiam. Segundo Melo (2000),

estas ligas populares eram denominadas de barbantes.144

apresentar sua argumentação sobre o racismo no futebol brasi le iro. Corrêa,Flor iano P. (1933). Grandezas e misér ias do nosso futebol . Rio de Janeiro . Flores& Mano Editores .

143 - Pereira (2000) relaciona inúmeras l igas que surgiram naquele per íodo: LigaSport iva Suburbana - 1912; Federação Brasi le ira de Foot-bal l - 1913; LigaSport iva de Foot-bal l - 1913; Liga Meridional de Foot-bal l - 1915; AssociaçãoBrasi leira de Sports At lét icos - 1915; Associação Carioca de Foot-bal l - 1915;Liga Sport iva Fluminense - 1915; Liga Municipal de Foot-bal l - 1916 e; LigaMetropoli tana - 1917. (p.121)

144 - Eram ass im denominadas “em referência às tampas de cerveja de baixaqual idade, produzidas no fundo dos quintais das residências car iocas” (p .23).Melo, Victor A. (2000) . Futebol: que his tór ia é essa?! In : Paulo Cesar R. Carrano.Futebol : paixão e pol í t ica . Rio de Janeiro. DP & A edi tora .

113

Outra possível hipótese referia-se à liberdade do jogador em se

mudar de equipe naquela época, uma vez que não havia nenhum regimento

que o obrigava a permanecer na mesma associação por determinado tempo

(Caldas, 1990:59). Poderia mudar por vontade própria ou por convite para

participar de outra liga que lhe parecesse mais interessante. Possivelmente,

os melhores jogadores que despontavam a cada temporada, desde aquele

período, já eram requisitados por outras equipes, o que poderia provocar o

desinteresse de alguns jogadores e do público por alguns clubes e ligas que

não apresentavam jogadores com bom nível técnico. O amadorismo marrom

poderia estar sendo cultivado por estes clubes periféricos, fazendo com que

a permanência do jogador em uma equipe fosse temporária. Diante das

possibilidades de melhoria (benefícios financeiros, prestígio, organizações

apresentadas por algumas das ligas etc), o jogador buscava o clube que lhe

fosse mais conveniente e lhe proporcionasse melhores perspectivas

financeira. Dessa forma, o universo de escolha dos jogadores já não mais se

limitava aos jogadores da elite. Tal situação pode ser entendida como

natural pela formação da população brasileira, que se encontrava em plena

expansão, onde a pobreza e a miséria já eram inquietantes.

A Liga Metropolitana fundada em 1917, a liga da elite, exigia que os

clubes que propusessem a filiação ao seu quadro que cumprissem algumas

exigências, tais como: possuir sede social, um campo de futebol, arcar com

uma jóia de admissão, pagar mensalidades e repassar a liga 10% da renda

bruta de seus jogos145. De acordo com Pereira (2000), estes requisitos não

145 - Os valores pagos como jó ia de admissão eram discrepantes e funcionavamcomo fator de controle para que os clubes pudessem per tencer às l igas e

114

eram possíveis para grande parte dos clubes menores. Conforme será

apresentado nos próximos capítulos, a ascensão do Vasco à primeira

divisão do futebol carioca provocou desestabilidade interna dentro da Liga

Metropolitana, devido à insatisfação das demais equipes frente ao sucesso

do Vasco na composição da equipe. A vitória do Vasco e outros problemas

fizeram surgir a AMEA e os desfechos subseqüentes.

Caldas (1990) afirmou que os demais times fundadores da AMEA

não teriam convidado o Vasco para integrar-se a eles. Todavia, coloca

Soares (1998146, 1999a147) que o Vasco teria sido convidado, mas o mesmo

se recusou a participar da AMEA, por sentir-se desprestigiado quanto a sua

representação, não tendo sido assegurado o mesmo poder de voto, em

relação aos demais clubes.

Observa-se que a divisão destas duas associações (METRO e

AMEA) se tornou um efetivo espaço de competição para o embate dos

dirigentes, onde a luta pelo poder era o principal fato. Naquele momento, os

princípios morais que fundamentavam as argumentações dos dirigentes

esportivos acerca do amadorismo já não se encontravam frouxos, sem as

fortes convicções que outrora valorizavam.

associações. Para se f i l iar à Liga Metropoli tana, o clube deveria pagar 2 :000$000,enquanto na Liga Municipal de Footbal l a jóia era de apenas 100$000. Apesar deser um valor bem menor , a inda assim, bastante elevado para inib ir que algunsclubes de condições econômicas infer iores se f i l iassem (Pereira , 2000. p . 121-122).

146 - Soares , Antonio Jorge. G. (1998). Futebol, raça e nacionalidade no Brasi l :re le i tura da his tór ia of icia l . (Tese de doutorado) . Programa de Pós-Graduação emEducação Física . UGF. Rio de Janeiro.

147 - Soares , Antonio J . G. (1999a) . Histór ia e invenção de tradições no campo dofutebol . In: Lúcia L. Ol iveira, Marieta de M. Ferreira & Celso Castro . Estudoshis tór icos: Espor te e lazer . Rio de Janeiro. Fundação Getúl io Vargas.

115

Segundo Soares (1998), a fundação da AMEA, a partir de novos

levantamentos, é mais bem explicada pela tensão entre a manutenção da

ética do amadorismo e a rápida popularização do futebol nos anos de 1910 e

1920 do século XX e pela dinâmica das instituições esportivas, ao contrário

da versão admitida por jornalistas e cronistas, que apontam ser o racismo a

principal razão da fundação da AMEA.

Parece que todos estes acontecimentos foram utilizados como

princípios norteadores para a discussão e o amadurecimento da proposta de

profissionalismo do futebol brasileiro. Se nos primeiros anos da década de

1910 os principais clubes de elite do futebol do Rio de Janeiro não admitiam

a possibilidade de profissionalismo, com as modificações ocorridas neste

período passaram a repensar suas opiniões.

Discutir o profissionalismo será o foco dos próximos capítulos.

Interessa-nos neste instante entender como o processo de massificação do

futebol se deu de forma tão rápida, observando-se as premissas de o futebol

naquela época ser considerado como um esporte para o lazer da classe de

elite, conforme apontamentos de Pereira, Caldas, Santos, entre outros.

Pareceu-nos que as barreiras impostas pela elite para barrar as camadas

socialmente menos favorecidas foram rapidamente quebradas. Qual seria o

motivo desta rápida abertura? Quais motivos passaram a dominar esta

mudança de perfil na aceitação dos clubes e seus associados? Estas

interrogativas passam a ser os balizamentos para futuras análises.

116

Capítulo VA tensão inicial do processo de profissionalização do futebolbrasileiro

A vivacidade para manter os princípios do ‘espírito’ amador no

esporte foi cultivada por vários clubes e seus dirigentes, durante as primeiras

décadas do século XX, pois acreditavam ser aquela a estrutura mais

apropriada para o gerenciamento e controle das agremiações, isto é, um

passatempo alegre e festivo, onde se reuniam os indivíduos socialmente

bem relacionados. Os associados dos clubes formados pelos burgueses e

elites buscavam atividades que pudessem refletir o seu estilo de vida, e o

esporte representava bem esta possibilidade. Veblen (1974) coloca no

capítulo XIV (A cultura superior como expressão da cultura pecuniária) que,

desde muito cedo, a vinculação aos esportes constitui uma forma de

refinamento aceito e de elevado prestígio social, pois, na sua percepção, o

mundo esportivo favorece o temperamento juvenil. Hobsbawm (1988)148

aponta a importância elementar do esporte no novo estilo de vida da classe

burguesa. O futebol parece ter correspondido a esta busca de um estilo de

vida jovial.

Fontes históricas retratam a tentativa em conservar o futebol como

esporte da elite, tentando coibir a presença de classes consideradas

inferiores do ponto de vista econômico e cultural (Pereira, 2000; Daólio,

2000; Caldas, 1990; Cunha, s/d). Os conservadores brasileiros buscavam

148 - Hobsbawm, Er ic . (1988). A era dos impér ios 1975 – 1914. Rio de Janeiro. Paze Terra.

117

um esporte com possibilidade de distinção social, possivelmente fruto da

influência da cultura européia, que praticava o esporte sem admitir outros

vínculos que não o prazer e o divertimento, conforme aportaram Elias e

Dunning (1992). Todavia, apesar desta constatação, quanto às tentativas de

exclusão das classes populares, parece que esta tentativa não foi eficiente,

pois não conseguiu frear o avanço do futebol nos mais distintos estratos

sociais. Ricardo Lucena (2002)149 argumentou que, no Brasil, a emergência

e difusão de práticas esportivas, que inicialmente surgiram como fruto de

uma classe, expandiram para outros segmentos, às vezes, de forma

involuntária e não planejada. Vejamos que em poucas décadas o futebol já

havia se tornado um esporte popular. Elias (1990)150 argumenta que

“Em todas as ondas de expansão que ocorrem quanto ao modelode conduta de um pequeno grupo se expandiu para classes maisnumerosas em ascensão, duas fase podiam ser claramentedistinguidas: uma fase de colonização, ou assimilação, na qual aclasse mais baixa e numerosa ainda claramente inferior e estavapautada no exemplo do grupo superior tradicional que,intencionalmente ou não, saturou-a com seu próprio padrão deconduta, e uma segunda fase de repulsão, diferenciação ouemancipação, na qual os grupos em ascensão aumentamperceptivelmente seu poder social e autoconfiança, enquanto ogrupo superior é forçado a uma maior moderação isolamento etornam-se maiores os contrastes e tensões na sociedade.” (p.268)

Talvez por falta de zelo dos narradores da época e apropriados por

alguns historiadores atuais, tenha ficado a falsa impressão da dificuldade de

149 - Lucena, Ricardo (2002). El ias individual ização e mimesis no esporte . In :Marcelo Proni & Ricardo Lucena. (Orgs) . Esporte : histór ia e a sociedade.Campinas – SP. Autores Associados.

150 - El ias , Norber t . (1990). O processo civ i l izador . Rio de Janeiro. Jorge Zahar .

118

inserção das classes economicamente menos favorecidas no futebol.151

Possivelmente, a barreira que sustenta a narrativa dos historiadores seja

observada pelos principais clubes elitistas, todavia em um período bastante

curto. Percebe-se, por meio de vários documentos (jornais e livros), que, já

no início do século XX, o futebol se tornara popular no Rio de Janeiro, capital

federal da época, sugestionando-nos algumas reflexões:

1ª - O fato de não pertencer à elite não significava o não direito à

prática do futebol. Acontece que, segundo as narrativas dos historiadores e

151 - Inclusive grande par te das narrat ivas e pesquisas apontava este processo deexclusão, refer indo-se à questão da raça, colocando-a como denúncia do racismona sociedade brasi le ira. Soares (1998) aponta , em sua tese História e invenção detradições no campo do futebol , uma cr í t ica àqueles pesquisadores em ciênciassociais e especif icamente no campo da his tor iograf ia do futebol, que debruçamsobre fontes sem anal isar ou invest igar a fundo os fa tos apresentados pelosautores. Soares constatou ta l real idade real izando uma rele i tura da his tór ia of ic ia ldo futebol no Brasi l e as questões raciais for temente colocadas pelos autores quepesquisam o racismo via fu tebol dentro da sociedade brasi le ira . Segundo Soares ,os autores , denominados por ele de “novos narradores” que se envolveram com otema, u t i l izaram como fonte pr incipal o l ivro de Mario Fi lho, denominado Onegro no fu tebol brasi leiro , edi tada pela pr imeira vez em 1947, contendo 5capí tu los, reedi tada em 1964 com dois novos capí tu los. Soares quest iona o fato deque “novos narradores” desenvolveram seus estudos, tendo a edição de 1964 comoprincipal fonte . Diante desta s i tuação, real izou suas invest igações e percebeu quea edição de 1947 apresentava dados que foram suprimidos na nova versão em1964, embora com dois capí tu los a mais . Coloca Soares que, ao se tomar a obra deMário Fi lho da forma que fazem os “novos narradores”, e les passam a confirmaras idéias do autor , b loqueando por d iferentes razões as pesquisas empír icas que sepoder ia real izar (p.6) . Coloca ainda que “a obra de Mario Fi lho é tomada comoprova para as in terpretações es tabelecidas a pr iori , sobre as re lações raciais nofutebol e na sociedade brasi le i ra” (p.7) . Aponta que as anál ises concordam acer ta medida, como uma espécie de denúncia do racismo: “o racismo no Brasi l é ,e sempre fo i , tão perverso e violento como em qualquer outro lugar . Assim,“racismo é racismo” (p.7) . Soares se repor ta a Hobsbawn (1997), para d izer que“as novas narrat ivas acabam por fazer par te da mitologia ou da invenção datradição do futebol brasi le iro” (p.120). A tese denominada ‘Futebol, Raça eNacional ismo no Brasi l: rele i tura da his tória o f ic ia l’ fo i defendida em março de1998, na Universidade Gama Fi lho no Rio de Janeiro . O debate or ig inado ocorreusobre o texto apresentado por Soares à Fundação Getul io Vargas, publ icado narevis ta Estudos histór icos em 1999, vol 13, p .119-146. Helal , Ronaldo & GordonJr . Cesar (1999). Sociologia, h is tór ia e romance na construção da ident idadenacional a través do futebol. In : Estudos his tór icos. Espor te e Lazer . Rio deJaneiro, Fundação Getúl io Vargas. vol 13, n .23. p .147-165p. Soares, Antonio J .(1999) . A modo de resposta . In : Estudos his tór icos. Espor te e Lazer . Rio deJaneiro, Fundação Getúl io Vargas. vol 13, n .23. p .147-165p.

119

cronistas, nas ligas fundadas pelos clubes de elite havia mecanismos de

proibição152 para que alguns seguimentos sociais pudessem fazer parte dos

seus eventos; fato comprovado pelos regulamentos das competições e dos

estatutos dos clubes, conforme argumentos desenvolvidos por Pereira

(2000);

2ª - Surgimento de outras ligas cujo objetivo era organizar o futebol

das classes periféricas, aquelas equipes que não encontravam espaço na

divisão principal do futebol brasileiro, que era formado pelos clubes de ‘elite’

(Pereira, 2000);

3ª - Quando sentiram a necessidade de se ter um futebol com

competência, os próprios clubes de elite criaram seus meios para reforçarem

suas equipes, ignorando parcialmente ou fazendo “vistas grossas” a alguns

critérios por eles mesmos adotados (Correa, 1933);153

4ª - Parece que, apoiados na tentativa dos primeiros praticantes

(filhos da elite aristocrata e economicamente favorecida), permaneceu por

muito tempo um discurso de discriminação e de exclusão, pelo fato de

quererem manter a prática somente entre eles, buscando referenciar a

modalidade como um critério a mais no processo de distinção social; e

152 - Pereira (2000) apresenta evidências da proibição que se fazia à par t ic ipaçãode alguns indivíduos nos clubes, d ivulgada no Jornal Gazeta dos Spor ts , Gazetade Notícias , (8 de março de 1907). O que era uma norma comum em associaçõescomo o Club Sport ivo dos Liberais – que, segundo os estatu tos aprovados em1906 acei tava um “i l imitado número de sócio de qualquer nacionalidade, excetopessoas de cor – tornava-se então uma norma geral a ser seguida por todos osmembros da l iga” (p.66) .

153 - Corrêa argumenta que, em 1915, já não causava espanto a grat if icação fei ta àsclaras aos jogadores em qualquer clube do Rio de Janeiro, São Paulo , Pernambucoe Rio Grande do Sul. Corrêa, Flor iano Peixoto. (1933). Grandezas e misér ias donosso futebol . Rio de Janeiro. Flores & Mano Editores .

120

5ª - O apelo social despertado pelo futebol154 o colocou em

destaque em praticamente todos os eventos sociais (religiosos, políticos,

entre outros) na época, demandando uma necessidade de melhorar a

organização e de se criar um compromisso formal dos jogadores.

Todos estes argumentos aparecem como indicativos da

transformação que ocorreria no perfil dos praticantes de futebol na

sociedade brasileira. Segundo Sevcenko (1992), os hábitos esportivos que

estavam presentes na sociedade desde o começo do século viriam

preencher o vazio da rotina cotidiana das comunidades; o esporte se torna a

‘moda’ pulsante das grandes metrópoles. “Assumir ostensivamente os sinais

associados ao novo ativismo atlético constitui um meio de patentear de

forma inequívoca à distância entre as gerações e a diferença entre as

mentalidades.”(p.49) Observa-se que a onda começava a ser formada. O

futebol assumia, de forma indireta, o papel de aproximação social através

desse tipo de socialização, isto é, indireta sem uma programação racional,

como mais tarde veio ser utilizado como mecanismo de aproximação política

por alguns governantes (Lever, 1983).

Os clubes desportivos que surgiram como modelo de

comportamento elitista, já na década de 1920, se expandem pelas periferias

e bairros e “se tornam em desdobramento natural das próprias uniões

operárias.” (Sevcenko, 1992, p.34-35) Por trás desta nova filosofia, estava o

154 - Alguns clubes pequenos (River . F.C. e 24 de Maio F.C.) já apresentavam asimpatia públ ica, sendo convidados para eventos fest ivos, colocando o fu tebolcomo atração em espaços mais amplos do que somente os estádios onde ocorr iamos jogos da l iga. (Pereira, 2000. p . 122)

121

perfil de jovialidade latente: “ser jovem, desportista, vestir-se e saber danças

os ritmos é ser moderno, a consagração máxima.”(p.34)

Esta nova conformação social, ampliada pela expansão urbana nas

grandes cidades (Rio de Janeiro, São Paulo etc), impulsionada pelo

crescente hábito esportivo (e principalmente pela massificação esportiva),

gerou uma nova dinâmica social. Antes, porém, o turfe e o remo eram as

modalidades que ocupavam o local de destaque no gosto esportivo do

carioca (Melo, 1999).155

A expansão urbana, devido ao deslocamento do espaço de trabalho

para regiões ou bairros afastados do local de moradia, provocou uma

modificação nos hábitos e, conseqüentemente, no perfil do lazer da

população. O tempo disponível fora do horário formal de trabalho possibilitou

o surgimento de uma vocação esportiva, seja na prática ou na apreciação de

eventos, como expectador. Especificamente no Rio de Janeiro, o turfe e o

remo, esportes preferidos até então, não permitiam o fácil acesso a todos os

interessados por diversos fatores, tais como: distância dos eventos

(geralmente localizados na zona sul), estrutura social que cercavam tais

modalidades (gramour), locais dos eventos (clubes sociais destinados à

elite) e necessidade de equipamentos e animais, que faziam destes esportes

um evento caro para as classes média e baixa. Desta forma, o futebol

encontrou um espaço na rotina diária da cidade; adequou-se a nova

estrutura urbana, criando possibilidades de prática nos mais distintos bairros

155 - Melo , Victor Andrade de. (1999) . Cidade ‘sport iva’ : o turfe e o remo no Riode Janeiro (1949-1903). (Tese de doutorado) . Programa de Pós-graduação em Ed.Fís ica –UGF. Rio de Janeiro.

122

e regiões. Pela simplicidade de sua organização e, principalmente, por não

demandar um investimento elevado para o indivíduo, acabava por atingir

diversos segmentos sociais.

Evidentemente que a organização estrutural primária, destinada a

gerenciar o esporte entre poucos clubes, passou a não corresponder às

exigências dos demais clubes, devido principalmente ao aumento do

público. A pressão dos praticantes dos clubes de menores expressões, os

de subúrbios, sobre os dirigentes provocavam desconforto e apontavam

para a necessidade de novas diretrizes. Todavia, diante das distintas

expectativas, a pressão dos indivíduos dos extratos sociais mais baixo sobre

as barreiras impostas pelos indivíduos das camadas sociais superiores fez

com que o espaço do futebol fosse tomado por diferentes embates. Veblen

(1974) argumentava que as classes superiores tendiam a impor às classes

inferiores parte de sua estrutura de vida, porém mantinham uma estrutura de

fechamento. Entretanto, a pressão das classes inferiores provocava a

abertura para sua inclusão nos status superior. Elias (1995)156 também

argumenta acerca da tensão das classes de baixo sobre as superiores, uma

vez que, nas sociedades modernas, “a força das camadas desfavorecidas

cresceu bastante em relação à das camadas afortunadas.”(p.68)

Consecutivamente, os indivíduos das camadas superiores tentam criar

outros mecanismos de fechamento, como pretendiam os dirigentes das ligas

de futebol destinadas à elite. Logicamente que esse processo é diferenciado

em cada evento e espaço social. Para o esporte, e especialmente no caso

156 - El ias , Norber t . (1995) . A sociedade de cor te . Lisboa. Edi tor ial Estampa.

123

do futebol, a busca da competência inerente ao esporte parece ter

viabilizado esta abertura, dificultando a implantação de outras estratégias de

bloqueio a jogadores de classes populares.

As ligas não apresentavam um regimento que conseguisse atender

a todas as exigências da dinâmica do esporte. Ainda hoje, nota-se que a

CBF e as federações estaduais continuam tendo problemas similares aos

anos de 1920 e 1930. A pressão dos grandes clubes para manter seus

privilégios e dos clubes menores para igualarem os direitos fazem parte do

freqüente debate jornalístico e popular. O discurso dos dirigentes dos

grandes clubes é de que a igualdade de direito seria uma ameaça aos

direito que outrora haviam conquistado. Nota-se aqui a retórica da ameaça

(1992).

Nesta perspectiva, os debates iniciais sobre o profissionalismo

surgiram de forma ambígua, onde os dirigentes se dividiram entre

interessados e contrários ao surgimento do regime profissional. Os discursos

geravam argumentos moralizadores que alimentavam ambos os lados.

Observemos esta tensão em consonância com as teses de Hirschman

(1992). Os dirigentes e jornalistas conservadores, aqueles contrários ao

regime profissional utilizavam a retórica da intransigência nas suas

argumentações. A) Alguns se sentiam ameaçados com a mudança, pois

acreditavam que seu espaço de distinção seria invadido por indivíduos que

não apresentavam o mesmo padrão social, e principalmente a eminência da

perda de poder (Tese da ameaça); b) outros argumentavam que a mudança

de regime poderia provocar um efeito contrário ao que alguns reformadores

124

acreditavam, pois a moralização através do contrato, mesmo que garantisse

o espetáculo poderia provocar uma despesa que o clube não teria condições

de arcar (tese do efeito perverso); e, c) outros apenas colocavam que tal

mudança não passaria de ilusão, pois não resultaria em nada e que tudo

retornaria ao que era anteriormente (tese da futilidade).

Apesar do discurso de ordem amadora, a remuneração aos

jogadores já era uma prática comum desde a primeira década do século XX,

conforme argumenta Corrêa (1933): “E o amadorismo” foi-se

desmascarando. Em 1915 já não era escândalo a gratificação aos jogadores

feita às claras...”(p.24).

O discurso do ‘espírito amador’, que fundamentava o argumento dos

conservadores, fragilizava-se quando o direito e o prestígio da

representação estavam ameaçados. Pretendiam manter o amadorismo,

todavia, os mecanismos utilizados para este propósito eram condicionados à

imposição e ao fechamento157, que só faziam sentido no regime profissional,

conforme abordaremos a frente. Os dirigentes que pleiteavam uma

modificação no quadro, isto é, a admissão do profissionalismo, no entanto,

buscavam conservar traços do regime amador.

Nos capítulos seguintes, veremos como se intensificou a campanha

pró-profissionalismo e o papel do Fluminense, clube que outrora lutava pelos

157 - Relembremos as imposições das l igas e dos clubes. Impunham sindicânciasvisando controlar o perf i l dos jogadores, le is de inscr ição que determinavam otempo em que o jogador dever ia permanecer o clube e a le i de estágio que proibiao jogador de par t ic ipar da equipe pr incipal por um ano, depois de conf irmada asua transferência. Observemos que ta is s i tuações eram contraditór ias para umespaço onde se valor izavam a l iberdade e o amadorismo. Ser ia natural que oprof iss ional ismo apresentasse alguns mecanismos de fechamento e controle, masno amadorismo isso era quest ionado.

125

ideais amadores teria começado esta discussão ainda nos anos finais de

década de 20 e anos iniciais da década de 30 do século XX. Veremos que o

clube utilizou seus espaços publicitários (Tricolor – Revista Sportiva do

Fluminense Foot-ball Club e Jornal Fluminense Football Club) para fomentar

o embate.158

158 - Apesar do empenho dos d ir igentes t r icolores e da representação que t iveramno processo de prof iss ional ização do futebol brasi le iro , o clube ainda é apontadopor torcedores e a lguns cronis tas como a agremiação que mais ter ia demorado aabandonar o perf i l amador. Por que o Fluminense ainda permanece até nossos d iascom o est igma de clube onde o amadorismo era cul t ivado efet ivamente até poucasdécadas a trás? Nossas argumentações tentaram apontar pis tas de que es tamit i f icação acerca do perf i l amador apresentado pelo Fluminense pareceequivocada.

126

Capítulo VIResgate e reestruturação do futebol brasileiro: o amadorismoem crise

“O pior era que Fausto não podia dizer nada. Para todosos efeitos era um amador, um empregado do comércio,vivendo de seu emprego, não jogando futebol por dinheiroe sim por amor ao clube. Tudo ao contrário: ele jogavafutebol por dinheiro e não por amor ao clube”.

(Rodrigues Filho, 1964, p.191)159

A década de 20 do século passado foi marcada pelos embates

acerca da modificação estrutural do futebol na cidade do Rio de Janeiro.

Estava em jogo a manutenção do esporte como princípio da distinção social

para uma classe de privilegiados, ou a abertura do espaço para a integração

de distintas camadas sociais. Neste período, dirigentes, jogadores,

torcedores e imprensa posicionavam-se com argumentos individuais,

defendendo-os com veemência acerca da moralidade esportiva que se

pretendiam para a capital federal. Entre os vários fatos que marcaram a

década no futebol, destacamos três: 1) a vitória do Clube de Regatas Vasco

da Gama no Campeonato estadual de 1923 promovido pela METRO160, que

desencadeou uma reviravolta entre os principais clubes; 2) a ruptura dos

159 - Rodr igues Fi lho, Mário. (1964) . O negro no futebol brasi le iro . Rio deJaneiro. Civi l ização brasi le ira edi tora.

160 - Liga Metropoli tana dos Despor tos Terres tres .

127

grandes clubes 161 com a METRO criando uma nossa entidade, a AMEA162;

e 3) a adoção das leis de inscrição e de estágio fomentadas pela AMEA,

apoiadas por alguns dirigentes e parte da imprensa carioca, que ansiavam

pela retomada da moralidade esportiva, considerada comprometida e

corrompida pela falta de controle dos clubes sobre a feição amadora dos

jogadores.

Neste capítulo, apresentaremos estas três narrativas, onde se

enfatiza enfatizamos o discurso que coloca em xeque a intenção entre

fomentar um esporte vinculado ao ethos amador e a crescente tensão que o

conduzia ao ethos profissional.

Os dois primeiros episódios (A vitória do Clube de Regatas Vasco

da Gama em 1923 e a cisão na METRO e A fundação da AMEA – A busca

do controle planejada pelos grandes clubes) se inter-relacionam, sendo o

segundo conseqüência do primeiro. A vitória do Vasco pareceu-nos ter sido

um dos pivôs das transformações que aconteceriam na administração do

futebol carioca, quando a METRO perdeu em parte o seu prestígio e surgiu a

AMEA, fundada pelos principais clubes que queriam retomar o poder no

esporte carioca.

Em “As leis de inscrição e de estágios implantadas pela AMEA”,

destacaremos a intensificação do combate ao amadorismo marrom e a

161 - Segundo Soares , “a designação de ‘grandes clubes’ , que perdura até osnossos dias, refere-se aos c lubes que possuem tradições de vi tór ias no campoespor t ivo – pr incipalmente no futebol - , instalações apropr iadas para a prát ica deesportes e um grande número de af i l iados e torcedores”. Soares , A. J . Racismo nofutebol do Rio de Janeiro nos anos 20: uma his tór ia de ident idade. In : Helal , R;Soares , A. J . & Lovisolo , H. (2001). A invenção do país do futebol – mídia, raçae idolatr ia . Rio de Janeiro. Mauad. Nota nº 4 , p .121.

162 - Associação Metropol i tana de Esportes Athlet icos.

128

abertura de diálogo sobre o profissionalismo no futebol, ocorridos nos

últimos anos da década de 20. O ponto que nos interessa são os discursos

desencadeados pela implantação das leis de inscrição e de estágio

adotadas pela AMEA.

Observamos que o discurso do ideal amador se encontrava

fragilizado naquele momento, devido principalmente aos mecanismos

adotados pelos clubes na composição de suas equipes. Os clubes

buscavam reforçar seus times com os jogadores de destaques, quer estes

despontassem em divisões de base dos clubes de elite, quer fosses

oriundos dos clubes do subúrbio. Essa busca de reforço provocava uma

inquietude nas discussões jornalísticas, quando acreditavam que esta

estratégia colocava em jogo o espaço destinado ao lazer e a distinção social

da elite carioca. Para os conservadores a composição das equipes com

jogadores de diferentes camadas sociais era uma ameaça aos clubes, aos

cidadãos de boa índole e também ao esporte, bem como poderia produzir

um efeito perverso ao que se esperava – que era a melhoria do esporte.

Observa-se que para condenar esta composição das equipes com indivíduos

de classes populares, utilizavam os mesmo argumentos apontados por

Hirschman (1992) sobre a retórica utilizada no embate das transformações

sociais.

Os dirigentes conservadores acreditavam que os jogadores

pertencentes às camadas populares, apesar de suas habilidades

futebolísticas, não tinham o refinamento necessário para serem

considerados sportmen.

129

Neste momento, não estaremos preocupados com o desfecho dos

episódios relatados; apenas os trataremos como suporte para alicerçar os

argumentos acerca da tensão entre as concepções amadoras e o

‘profissionalismo mascarado’. As discussões ora apresentadas têm como

propósito marcar as narrativas que emergiam por força de uma eminente e

explosiva necessidade de mudança do rumo esportivo carioca e ditaria

futuramente todas as mudanças no cenário esportivo brasileiro, em função

de o Rio ser um centro irradiador de idéias, modos e modas na época.

6.1 - A vitória do Clube de Regatas Vasco da Gama em 1923 e a cisãona METRO

No ano de 1922, o Clube de Regatas Vasco da Gama venceu o

campeonato estadual da segunda divisão, adquirindo pelo feito inédito o

direito de participação no campeonato oficial da primeira divisão do Rio de

Janeiro no ano de 1923. Composta por jogadores populares, a equipe do

Vasco, conforme relatara Mário Rodrigues Filho, “seguia a boa tradição

portuguesa da mistura” (Rodrigues Filho, 1964, p.119), formando um grupo

sem barreiras étnicas e sociais, onde se faziam presentes pretos, mulatos e

brancos.163

163 - Observe que esta imagem do por tuguês como assimilador de cul turas estavafor temente marcada no pensamento de Gilber to Freyre .

130

Esta equipe vascaína veio provocar um assombro na elite do futebol

carioca, ao conquistar também o campeonato carioca da primeira divisão,

suplantando os clubes de tradição na época. Este período da história do

futebol carioca tornou-se bastante fecundo na época e na historiografia do

futebol brasileiro nos últimos anos.164 Como poderia um clube de origem

popular, fora dos padrões estabelecidos pela instituição que organizava o

futebol do estado, a METRO, se tornar vencedor do campeonato, cujos

propósitos eram servir de divertimento e lazer para uma elite formada por

homens de ‘bom berço’? Alguma coisa estava errada, algo deveria ser feito,

não se podia conceber esta invasão das classes populares, pois como

conceber que indivíduos semi-analfabetos, sem status social, começassem a

participar do estilo de vida da elite esportiva carioca? Desta forma, o que

pesava para os ‘nobres cavalheiros’ da elite carioca era ver que seu esporte,

um dos espaços de distinção social, estava sendo apropriado por indivíduos

de comportamentos sociais questionáveis.

164 - Murad, Maurício . (1994) Corpo, Magia e Alienação – o negro no futebolbrasi le iro: por uma in terpretação sociológica do corpo como representação social .In : Pesquisa de Campo. n.0 Rio de Janeiro . UERJ/Depar tamento Cultural /SR, 3(71-78) ; Murad, Maurício. (1998) Futebol e v iolência no Brasi l . In : Pesquisa decampo. N.3/4. Rio de Janeiro . UERJ/Depar tamento Cultura l /SR-3, (89-103) ;Caldas Waldenyr . (1990) O pontapé inicial do fu tebol brasi le iro . São Paulo .Ibrasa; Leite Lopes, José. (1994) ; Gordon Jr . César . (1995) . Histór ia social dosnegros no futebol brasi le iro. In : Pesquisa de Campo. n .2 Rio de Janeiro .UERJ/Depar tamento Cultural /SR-3, (71-90); Gordon Jr . César . (1996) “Eu já fuipreto e sei o que é isso”, Histór ia social dos negros no futebol brasi le iro : segundotempo. In : Pesquisa de Campo. n.3 /4 Rio de Janeiro. UERJ/Depar tamentoCultural /SR-3, (65-78); Santos, Joel Ruf ino dos. (1981) Histór ia pol í t ica dofutebol brasi le iro . São Paulo. Brasi l iense; Aquino, Rubim Santos Leão de. (2002)em Futebol - uma paixão nacional . Rio de Janeiro. Zahar Ed. , entre outros.

131

Figura 01 – Vasco da Gama – Equipe campeã em 1923

Soares (1998), ao estudar aquele período da história do futebol

carioca e do clube Vasco da Gama, aponta-nos algumas pistas inquietantes

sobre a tensão que dominava no seio do futebol. Soares alerta que, embora

os eixos das análises exploradas sobre o futebol carioca naquele período

estejam centrados principalmente sobre as tensões raciais – em que é

questionada a forma como os pesquisadores trataram as fontes -, outros

conflitos em torno da ética do amadorismo pareciam mais marcantes.

Parecia estar em jogo o conflito entre a elites e populares, brancos e negros,

times de subúrbio e time da cidade, amadorismo e profissionalismo (p.3),

embora o tema que englobaria essas tensões seria o último.

A vitória do Vasco no campeonato de 1923, além de outras lutas

internas na instituição, teria levado os ‘grandes clubes’ a romperem com a

132

METRO. O argumento presente na historiografia, questionado por Soares,165

é que a saída dos grandes clubes da METRO foi motivada pelo racismo da

elite carioca. Segundo Soares, a tensão entre o amadorismo e

profissionalismo talvez pudesse ser mais abrangente para se explicarem os

motivos da crise ocorrida na METRO. Quanto à composição da equipe

Vascaína naquela época, Soares nos deixa uma pergunta: “o Vasco teria

aberto as portas para pretos e mulatos seguindo a boa tradição da mistura”,

conforme ressaltou Rodrigues Filho “ou pela lógica do mercado?” (p.55)

Poderíamos imaginar que a competência esportiva era cobiçada por todos

os clubes, torcedores e dirigentes, e que a inclusão de indivíduos de classes

populares foi a alternativa encontrada pelo Vasco para se ter uma equipe

vitoriosa; uma equipe que aproveitasse o que havia disponível e

apresentasse competência sem discriminar ou impor barreira ou exclusão.

Para as outras equipes, este critério adotado pelo Vasco comprometia a

instituição que ‘tentava’ manter um esporte compromissado com os valores

de distinção social. O problema teria sido que esta estratégia adotada pelo

Vasco se tornou explícita, todavia, a história registra que, naquele período,

os clubes de elite também utilizavam essa estratégia de forma mais

dissimulada.

165 - Segundo Soares, a referência básica, na maior ia dos estudos, tem o l ivro ‘ONegro no Futebol Brasi le iro’ , de Mário Rodrigues Fi lho, cuja pr imeira edição foipublicada em 1947 e a segunda, acrescida de dois capí tu los, em 1964. Esta ú l t imaedição foi a mais consul tada, pelo fáci l acesso, e tornou-se um ‘manancialinesgotável’ de dados para os pesquisadores que estudam a his tór ia do futebolbrasi le iro, pr incipalmente a par t ir da década de 80. Ele coloca que o l ivro deMario Fi lho se tornou um bloqueio para as pesquisas empír icas (p.6) . Soarescoloca que a h ipótese do seu estudo é demonstrar que a maior par te das atuaisnarrat ivas acadêmicas sobre futebol , ao nutr irem-se acr it icamente dos dados dol ivro de Mario Fi lho, acaba tragada pela força mít ica , da narrat iva do autor .(p.10)

133

Para esta seção utilizaremos uma estrutura um pouco diferenciada

da que utilizamos para a construção das outras seções deste estudo.

Seguiremos as pistas argumentativas de Soares, por julgarmos fecundos as

hipóteses e os temas que dão vazão às nossas pretensões. Foram suas

análises que nos fizeram para vasculhar as fontes. Não estaremos

discutindo a questão racial, como foi o foco principal de Soares, mas sim a

tensão entre o ethos amador e o ethos profissional.

A tensão provocada pela vitória do Vasco foi apontada pelos

cronistas da época, e mesmo das décadas seguintes, que utilizaram os

argumentos da vitória vascaína para fundamentarem suas crônicas. O maior

expoente dentre eles teria sido Mário Filho.166 Sobre a vitória do Vasco ele

colocou que foi uma verdadeira revolução no futebol brasileiro. Vejamos

como Rodrigues Filho descreve a situação:

“Desaparecera a vantagem de ser de boa família, de serestudante, de ser branco. O rapaz de boa família, o estudante, obranco, tinha de competir, em igualdade de condições, com o pé-rapado, quase analfabeto, o mulato e o preto para ver quemjogava melhor.

Era uma verdadeira revolução que se operava no futebolbrasileiro. Restava saber qual seria a reação dos grandes clubes.”(Rodrigues Filho, 1964, p.73)

166 - Mario Fi lho foi um jornal is ta que esteve presente nos pr incipais embatesacerca da es tru turação do futebol bras i le iro na época, inclusive com umideal izador de uma sociedade brasi le ira h igienis ta , acredi tando no poder doespor te para esta função, cr iando argumentos e d ifundindo-os , fazendo f lorescer oorgulho da raça nacional . Para d isseminar suas idéias , u t i l izou dos seus prest íg iose do seu jornal .

134

Rodrigues Filho aponta, em seu comentário, que uma tensão

provocada pela vitória vascaína estava por vir e a invasão de jogadores

populares seria um desconforto para os jogadores de boa família,

representados pelos ‘grandes clubes’. Rodrigues Filho insinuava que tal

situação provocaria uma reação.

Os principais clubes (América, Botafogo, Flamengo e Fluminense)

exigiram mudanças no estatuto da METRO. Reivindicavam alguns critérios

para a participação dos clubes e seus respectivos jogadores na liga. Os

grandes clubes, igualados aos pequenos na engenharia de poder da

instituição, protestavam contra a administração populista que a instituição

vinha adotando (Soares167, 2001b, p.106). A proposta tinha como objetivo

reforçar o poder decisório dos ‘grandes clubes’ em relação aos demais.

Pesava também sobre a instituição a efetiva falta de controle sobre a

condição amadora dos jogadores, devido à política adotada pelo presidente

Sr. Agrícola Bethem.

O jornal Correio da Manhã divulgou as exigências propostas pelos

clubes: 1) formar um conselho deliberativo; 2) adotar o sistema de

eliminatória olímpica na definição dos clubes, visando à participação do

campeonato da primeira divisão; e 3) fixar em cinco anos o prazo para

reforma e construções das instalações apropriadas ao futebol e demais

esportes (Correio da Manhã, 13 de fev/1924, p.4). O mesmo jornal dias

depois esclareceu que a proposta não foi bem vista pelos demais clubes –

167 - Soares , Antonio Jorge G. (2001b). O racismo no futebol do Rio de Janeiro nosanos 20: uma his tór ia de ident idade. In : Ronaldo Helal , Antonio Jorge Soares &Hugo Lovisolo . A invenção do país do futebol : mídia , raça e idolatr ia . Rio deJaneiro. Mauad. 101-122p

135

os pequenos clubes -, que rapidamente se mostraram contrários às

exigências, pois desta forma ficariam sujeitos às decisões dos ‘grandes

clubes’ (Correio da Manhã, 15 de fev/1924, p.5).

Os ‘pequenos clubes’ não admitiram as cotas de poder

diferenciadas, sugeridas pelos ‘grandes clubes’, bem como não admitiam a

eliminatória olímpica, uma vez que estava fora dos planos de muitos destes

clubes o envolvimento com outras modalidades que não o futebol. Naquele

momento, os times pequenos, unindo suas forças, conseguiram neutralizar

qualquer tentativa de mudança desfavorável, em razão de terem mais votos

disponíveis do que os clubes refinados. Este fato foi um dos agravantes na

composição de força dentro da METRO, visto que os principais clubes

queriam ter privilégios diferenciados, tomando para eles o controle da

instituição e estabelecendo os rumos do futebol. A vitória do Vasco abriu um

precedente que, segundo os ‘grandes clubes’, poderia comprometer o local

de prestígio que ocupavam. Vejamos mais um indício da ameaça sobre o

rumo do futebol carioca (Hirschman, 1992). Ao reivindicarem mais poder, os

clubes baseavam-se nas estruturas que já apresentavam em relação aos

demais. Julgavam merecedores de regalias, pois apresentavam as melhores

instalações esportivas e ainda se envolviam com outras modalidades que

atendiam ao apelo da formação de uma cultura esportiva brasileira mais

ampla. Portanto, suas reivindicações ajustavam-se à tentativa de manter o

poder decisório e não admitiam ter votos igualitários com os demais clubes.

Soares (1998) aponta que as reivindicações dos principais clubes seguiam

136

“a lógica da sociedade brasileira que vivia sob um regime republicano, mas o

espírito oligárquico era ainda a forte marca.” (p.258)

O jornal O Paiz, do dia 14 de fevereiro de 1924, criticou o teor das

reformas propostas pelos ‘grandes clubes’, julgando que estes passariam a

ter o poder quase que supremo, e os demais clubes ficariam sujeitos ao

sabor das decisões ´dos grandes`. A formação de um novo conselho

deliberativo tinha como proposta assegurar a maioria de votos a favor dos

clubes reformadores: América, Botafogo, Flamengo e Fluminense168 (Correio

da Manhã, 13 de fev/1924). Entre as propostas de reforma, propunham

também a implantação de um diretor que seria responsável pelo controle do

perfil dos jogadores. Este diretor teria amplos poderes para realizar

sindicâncias sobre os jogadores inscritos pelas equipes, objetivando

estabelecer um controle rígido sobre as condições de amadorismo dos

mesmos. A presença de jogadores remunerados no Vasco teria sido uma

das argumentações dos clubes reformadores quanto à necessidade de

controle sobre o perfil dos jogadores. Inclusive a sindicância teria sido um

dos motivos de descontentamento do clube português que não via o

amadorismo como algo essencial.

O articulista do jornal O Paiz, apesar de criticar as reformas, julgava

que seria salutar o controle sobre a condição amadora dos jogadores e a

sindicância seria uma boa medida (O Paiz, 16 de fev/1924, p.7). Todavia, o

168 - O novo conselho deliberat ivo ser ia composto por nove membros, onde cincoser iam representantes dos pequenos c lubes, a lém de um representante de cada umdos clubes reformadores. Todavia, os representantes dos pequenos estar iam acargo dos quatro clubes reformadores, onde eles escolher iam os membros que lheinteressassem. (Correio da Manhã, 15 de fev/1924, p .5)

137

mesmo colunista, dias depois, alfinetava os clubes reformadores, acusando-

os de ignorar o fato de que em seus clubes também havia jogadores que

apresentavam uma condição amadora sob suspeita (O Paiz, 20 de fev/1924,

p.7).

O jornal Correio da Manhã, do dia 22 de fevereiro de 1924, trouxe

uma matéria que apoiava a causa dos reformadores, entretanto mostrava-se

preocupado que tais medidas poderiam afetar a condição financeira da

METRO. Nota-se que novamente a idéia da ameaça e/ou do efeito perverso

(Hirschman, 1992) aparecem nas argumentações do Correio da Manhã.

Apesar de retomarem o controle do futebol carioca, corria-se o risco de ter

as finanças comprometidas. Mário Rodrigues, apoiando a causa dos

‘grandes clubes’, sinalizava que esta proposta viria restaurar a moral

esportiva carioca:

“Os grandes ora afastados da Liga estão senhores demuitíssimos outros elementos de sucesso. Eles também podemvencer, não porque sejam apenas grandes e ricos, mas porque,principalmente, abraçaram uma causa veladamente simpática,como seja essa restauração moral do nosso nível sportivo. Ofootball, ultimamente, no Rio, desceu muito no apreço de todagente, e uma prova eloqüente dessa afirmação está no fato deque, via de regra, os clubes cuidavam mais da bilheteria do quepropriamente da cultura sportiva.

Este detalhe vinha sendo observado e não podia mesmo deixarde sê-lo, porque cada ano que passava, se notava ao lado dodesprezo pela sorte sportiva o interesse pela sorte financeira.

Do choque desses dois interesses tão distintos, nasceu um malestar oculto que pouco e pouco se foi avolumando no espírito dequem observava as coisas de um ponto de vista elevado.”(Correio da Manhã, 22 de fev/1924, p.5)

138

Mário Rodrigues aponta o interesse financeiro como fator de

deterioração da estrutura esportiva carioca. Destaca que a ´causa

simpática` dos grandes era a restauração da moral do esporte carioca,

referindo-se à recuperação da ética do amadorismo. Observemos que neste

momento Mário Rodrigues se colocava como um dos defensores do espírito

amador. Tempos depois, seu filho Mário Rodrigues Filho utilizaria a

empresa da família para conclamar a adoção do regime profissional.

Os ‘grandes clubes’ reivindicavam para si os privilégios de jogos em

dias especiais, garantindo a bilheteria mais gorda, o que também parece

estar de olho mais no interesse financeiro do que na cultura esportiva. O

que significa esse resgate da moral?

Diante da impossibilidade de acordo entre os interesses dos

‘pequenos clubes’ e dos ‘grandes clubes’, a solução foi a saída destes da

METRO. Estavam insatisfeitos com a condição de igualdade imposta pelo

regimento. A saída foi criar uma associação que respeitasse os seus direitos

e privilégios e obedecesse aos princípios do amadorismo, da moralidade

esportiva. Nota-se que o abandono da METRO estava mais relacionado ao

poder e controle que reivindicavam do que propriamente a moralização do

amadorismo, que já encontrava-se fragilizado. Fundaram para esse fim a

Associação Metropolitana de Esportes Athleticos – AMEA, no dia 01 de

março de 1924.169 O debate acerca da moralidade do esporte na capital

federal não parou por aí, conforme apresentaremos a seguir.

169 - A fundação da nova ent idade ter ia ocorr ido no dia 29 de fevereiro, mas comose t ratava de um ano bissexto, optaram por estabelecer o d ia 1º de março de 1923como o dia of ic ia l de implantação.

139

6.2 - A fundação da AMEA – A busca do controle planejada pelosgrandes clubes

O Correio da Manhã do dia 1º de março de 1923 trouxe a

manchete que anunciava o surgimento de uma nova entidade: “Os

dissidentes do football carioca fundaram hontem a Associação

Metropolitana de Esportes Athleticos” (p.5). Diante deste fato, a METRO

perdeu o prestígio e se viu sem o apoio dos principais clubes da época.

Desta forma, América, Botafogo, Flamengo e Fluminense saíram

fortalecidos, ditando o rumo que o futebol carioca apresentaria nos próximos

anos.

O Correio da Manhã, no mesmo dia, questionava como ficaria o

Vasco, caso este entrasse para o quadro da nova entidade. Portanto,

pareceu-nos que não havia indisposição quanto ao clube português, mas

sim sobre o controle dos seus jogadores, conforme colocara o jornal: “É voz

corrente – e nós podemos afirma que isso é verdade – que se o Vasco da

Gama entrar para a nova entidade, o que ainda é uma incógnita, o seu time

terá que sofrer tais reformas que dificilmente constituirá o mesmo forte

adversário do ano passado.” (p.5)

Soares (1998) também acredita que esta matéria jornalística

deixava dúvidas sobre a possível barreira contra o Vasco. Por que motivo a

equipe vascaína deixaria de ser forte como no ano anterior? “Por possuir

negros ou por possuir uma estrutura semiprofissional?” (p. 246)

A presença do Vasco com seus jogadores semi-profissionais, após

a criação da AMEA, pareceu ser o estopim inicial da cisão dentro da

140

METRO. A nova instituição não colocava objeção à presença do Vasco,

embora exigisse o cumprimento de algumas especificidades quanto ao

controle dos jogadores. Diante dos argumentos jornalísticos, pareceu-nos

que a condição dos jogadores semiprofissionais do Vasco apresentava

menor importância, tornando-se secundário, diante da busca de poder dos

clubes reformadores. Eles queriam o controle do futebol carioca, e a nova

instituição, a AMEA, favorecera isto. A condição do jogador passou a ser

apenas mais um dos fatores articulados para dar vazão à busca de

privilégios e poder. A partir do momento em que o poder é recuperado,

novos diálogos seriam admitidos para ter os principais clubes filiados à nova

instituição, e o Vasco já representava uma força que não poderia ser

desprezada.

Devido à retirada dos ‘grandes clubes’ da METRO, o Vasco também

solicitou o seu desligamento da entidade. Quais motivos levaram ao clube

português a ter esta atitude? Seria um indício de que sozinho não teria

condição de sustentar uma competição fadada ao fracasso, sem as

bilheterias dos jogos contra as principais equipes? A atitude do Vasco já

demonstrava a tentativa de aproximação com a AMEA, quando formou uma

comissão de três membros destinada a acompanhar os propósitos da nova

associação em relação ao clube, inclusive a comissão teria plenos poderes

para optar por uma filiação, caso os membros integrantes julgassem

proveitoso (O Paiz, 01 de mar/1924, p.10).

Divulgados os estatutos da AMEA, observou-se que o documento

buscava manter o poder dos reformadores, ao se instituírem quatro

141

categorias de membros: os fundadores, cujos membros seriam os

reformadores (América, Botafogo, Flamengo e Fluminense), os efetivos, os

especialistas e os honorários.

Naquele momento, o artigo 5, parágrafo 10, que se referia à forma

de vinculação do jogador, era o que apresentava maior controvérsias para a

inserção de outras agremiações, uma vez que buscava o controle rígido dos

integrantes de cada clube. Tratava-se de uma verdadeira inquisição sobre a

vida dos atletas. Os clubes deveriam apresentar o nome do jogador por

extenso, o local de moradia atual e anterior, a ocupação profissional atual e

anterior, bem como o endereço de ambas e, ainda, o nome dos

responsáveis pelos vínculos empregatícios. Pretendia-se com tal medida ter

um geral controle sobre a vida do jogador e também dos dirigentes

esportivos, conforme estabelecia o artigo 4, ao exigir que a diretoria do clube

também deveria apresentar sua ficha contendo as mesmas informações

exigidas dos jogadores (Correio da Manhã, 29 de mar/1923, p.5). Segundo

Soares (1998), os fundadores da AMEA temiam que houvesse abertura para

a profissionalização. Para o autor, o que se estava em jogo nesses artigos

era a vigilância ostensiva da ética amadora, “ética que sempre esteve

associada à distinção social e ao pertencimento desinteressado” (p. 248).

Nota-se que esse controle era um mecanismo para se evitar a ameaça de

ser ver o esporte invadido pelos indivíduos que não apresentassem um

comportamento social compatível. A historiografia do futebol brasileiro nos

demonstrou que esse filtro não teve a eficiência esperada.

142

Este controle foi aprovado e elogiado pelos jornais que passaram a

ver na nova associação o retorno aos princípios morais do esporte carioca.

O jornal O Paiz acreditava que a nova entidade teria uma importância

extraordinária para aqueles que se interessavam por um esporte sadio e

bem cultivado. Relembremos que este mesmo jornal se posicionara contra

as proposta de modificações elaboradas pelos clubes dissidentes, quando

estes ainda pertenciam à METRO. Todavia, naquele momento, o jornal se

aliara à AMEA, acreditando na retomada da estrutura esportiva carioca

sobre o princípio do compromisso e engrandecimento moral, vinculado à

ética do amadorismo:

“... para aqueles que se interessam vivamente por um sportsadio e bem cultivado, a nova entidade é de importânciaextraordinária. Exercer uma vigilância desta ordem é pugnar peloengrandecimento moral dos exercícios atléticos. O progresso deum ramo de atividade esportiva não reside somente na forçamaterial e no dinamismo físico de quem pratica. Não é o ser fortee pujante que demonstra a superioridade. Longe disto. Emprimeiro plano, constituindo o alicerce seguro está a moral.” (OPaiz, 12 de mar/1924, p.7)

No dia 7 de abril, o jornal O Paiz noticiou que o primeiro

campeonato estadual organizado pela nova instituição teria a presença de

dez clubes, em uma única série, contrário ao que havia sido cogitado

inicialmente quando teria duas divisões. A medida foi devida à pressão de

alguns clubes associados querendo participar da primeira divisão. O jornal já

trazia o Vasco como um dos clubes relacionados para esta competição.

Como entender este interesse pela participação do clube vascaíno, já que

boa parte da historiografia aponta ser este clube o responsável pela principal

143

tensão na METRO, ao vencer o campeonato do ano anterior com sua equipe

formada por jogadores populares, semi-profissionais? O Vasco não podia

ser ignorado, pois havia despertado o interesse popular e,

consecutivamente, capaz de gerar bilheterias para a nova associação.

Dentre as várias proposições da AMEA, tornaram-se alvo de críticas

as reservas de datas especiais para os ‘grandes clubes’, ao ser estabelecido

que somente jogariam entre si aos domingos170, o que pesou sobre o acordo

com os demais clubes. Entendiam estes que esta reserva era prejudicial e

só beneficiava os clubes fundadores. A partir daquele momento, os clubes

insatisfeitos começaram a deixar a AMEA. Os jornais da época apontavam

que vários clubes recusavam a aceitar as imposições da direção da

Associação diante dos privilégios estabelecidos aos clubes fundadores. A

diretoria do Vasco enviou um comunicado à AMEA, onde dizia que “pela

dignidade e pelo passado do clube, ele não podia sujeitar-se a tais

imposições, e por isso, deixava de fazer parte da nova agremiação.” (O Paiz,

09 de abr/1924, p.7)

O clube Andarahy também alegara que não poderia se integrar ao

campeonato, pois seus jogadores trabalhavam aos sábados, inviabilizando a

participação (O Paiz, 17 de mar/1924, p.8). Observemos que as

argumentações tanto do Vasco como do Andarahy se posicionavam

contrárias aos privilégios dos fundadores. Estava em discussão o fato de

170 - O Paiz anunciou que os clubes fundadores em uma del iberação conjuntaresolveram que não ter iam jogos entre eles aos sábados, reservando os domingospara seus encontros. Tal s i tuação não ser ia observada pelos demais clubes nãofundadores que t iveram sua f i l iação após a fundação da AMEA (O Paiz , 07 deabr /1923, p .2) .

144

que os jogos realizados aos sábados possivelmente teriam públicos

reduzidos em relação aos jogos de domingo. Observemos que, em sua

insatisfação quanto à reserva de datas, o Andarahy questionava o princípio

do amadorismo, ao alegar a impossibilidade de jogos aos sábados, em

razão de seus jogadores serem trabalhadores e nestes dias não terem

folgas. A interpretação de Soares (1998) foi neste mesmo sentido, quando

apontou que ficava evidente na alegação do Andarahy “a utilização de

argumento afinado com a ética do amadorismo”, todavia, o que causava

revolta era o fato de os clubes fundadores reservarem para si os dias de

melhores rendas. (p.253)

O Correio da Manhã, entendendo que os clubes menores estavam

sendo prejudicados, também criticou a atitude da AMEA, dizendo que as

promessas de transformações estavam condicionadas ao interesse

financeiro, tal qual os clubes fundadores criticavam antes. Em uma matéria

denominada “Pau que nasce torto”, analisava que as mudanças esperadas

não passavam de doces ilusões:

“As doces ilusões que o esporte alimentava desfizeram-se nosopro das primeiras realizações. Tudo que era uma promessatransformou-se na expressão do mesmíssimo interesse financeiroe egoístico que os movia, anos atrás, no meio daqueles que aseveridade exterior procura agora hostilizar por todos os modos.”(Correio da Manhã,17 de abr/1924, p.8)

No dia 16 de abril, O Paiz anunciou ao seu público os motivos que

fizeram o Vasco recusar o campeonato da AMEA, onde três pontos

constituíram as causas do descontentamento: 1) o clube não aceitava a

145

condição de inferioridade perante os demais fundadores, em função da falta

de infra-estrutura, das deficiências do seu campo de futebol e da condição

modesta dos seus associados; 2) rejeitava os privilégios dos fundadores

quanto à forma de distribuição dos votos; e 3) não admitia a sindicância

sobre as posições sociais ocupadas pelos seus jogadores, uma vez que não

havia participado da reunião que determinava esta investigação (O Paiz, 16

de abr/1924, p.8). Observemos que as exigências do clube português

centravam-se no fato de ter os mesmos direitos que os clubes fundadores,

quanto ao direito de votos e privilégios especiais; não se questionavam os

privilégios, mas os queria também. Todavia, o único ponto de real discórdia

do Vasco com os fundadores era a sindicância sobre a vida dos jogadores,

fato que o clube português não admitia.

O presidente da AMEA, Sr. Arnaldo Guinle, respondeu às

inquietudes do Vasco, dizendo que o clube conhecia, antes de se filiar, os

seus direitos e deveres, em função da sua qualidade de sócio, e faz questão

de ressaltar o compromisso com as condições legais do amadorismo, as

quais o Vasco parecia não querer observar:

“Declaramos então que uma vez filiado, o Clube de RegatasVasco da Gama entraria com um novo ofício, demonstrandosatisfazerem, os seus jogadores, todas as condições legais doamadorismo e que, uma vez provada a improcedência dasindicância feita pela AMEA, as respectivas inscrições seriamconcebidas.

Diremos mais, que se havia, naquele momento, discrepânciaentre informações fornecidas por esse clube e a sindicância pornós realizada, a responsabilidade daí decorrente caiaexclusivamente sobre o C. R. Vasco da Gama, e que, como omesmo acontecia com os demais clubes, tornava-se impossíveldiscutirmos todos esses particulares naquele momento, dado aexigüidade de tempo que nos separava do início do campeonato

146

oficiais da atual temporada.” (O Paiz, 19 de abr/1924, p.11) (grifonosso)

O presidente da AMEA, por intermédio deste comunicado, tentou

deixar pública a condição de descomprometimento dos dirigentes vascaínos

com os ideais amadores, dizendo que, em certa ocasião, havia comentado

com o presidente vascaíno que ficaria feliz de um dia poder ver os

portugueses jogando futebol, já que se tratava de um clube fundado pelos

imigrantes. Ironicamente, reproduz a reposta do dirigente vascaíno, quando

colocou que o trabalho no comércio era árduo e pesado, o que não permitia

que seus compatriotas pudessem jogar deixando seus afazeres (p.11).

Ironias à parte, a tensão em torno dos ideais amadores aparece

caracterizada no debate da época.

Segundo Soares (1998), esta argumentação do Sr. Arnaldo Guinle

tinha como intenção demonstrar publicamente que, no Clube Vasco da

Gama, era freqüente e corriqueira a prática do semiprofissionalismo ou

amadorismo marrom.

As argumentações, as evidências e os pontos apresentados pelos

jornais facilitam a compreensão da trama que envolveu a cisão dentro da

METRO, o que conduziu à criação da AMEA, proveniente das tensões entre

os clubes de elite e os clubes populares. A METRO perdeu força e prestígio

ao ter o abandono dos principais clubes da época, que a acusavam de

manter uma política populista. Para os ‘grandes clubes’, a AMEA surgiu

como uma possibilidade de resgate dos valores norteadores que almejavam

para o futebol carioca. Todavia, ao contrário do que esperavam alguns

147

dirigentes e jornalistas, a moralização e a implantação de uma política

esportiva igualitária na capital federal não foram fomentadas. Os clubes

fundadores da nova instituição procuravam, explicitamente, com tais

medidas a retomada do poder, buscando para si o controle e a hegemonia

do esporte. Entretanto, além de manterem o poder, ditando os rumos dos

acontecimentos, precisavam ter a afeição popular. Interessavam-lhes as

rendas proporcionadas pelas bilheterias e, para isso, os cidadãos comuns,

os torcedores deveriam prestigiar os eventos, pois somente os associados

não gerariam as receitas necessárias para os compromissos financeiros e o

engrandecimento dos clubes.

Vejamos o paradoxo: pretendiam os fundadores retomar a moral do

esporte comprometida com os ideais amadores, portanto, um esporte para a

elite, livre dos populares, que utilizavam a prática do esporte como forma de

sobrevivência; em contrapartida, também necessitavam da popularização do

esporte para gerar público e receitas para desenvolver o esporte.

No ano de 1924, foram realizados dois campeonatos estaduais,

sendo um organizado pela antiga associação, a METRO, com a presença do

Vasco, e outro organizado pela nova entidade, a AMEA, onde participaram

os ‘grandes clubes’ da época. As narrativas dão a entender que ambos os

campeonatos foram monótonos e com baixo interesse dos torcedores, se

comparados aos anos anteriores.

Por hora, acreditamos que as argumentações que nos interessam

se encontram caracterizadas nesta narrativa. Por trás de todo estes

argumentos estava a tentativa de prestígio e poder, onde vários argumentos

148

foram utilizados como ‘pano de fundo’ para as discussões. O discurso

amador pareceu-nos ser um dos principais argumentos que fizeram encorpar

a trama entre os clubes elitistas e os clubes populares, em que os primeiros

buscaram estabelecer suas forças, tomando para si o domínio do futebol

carioca. Aos pequenos restava lutar contra a hegemonia dos grandes,

entretanto, atendendo em parte aos seus caprichos para sobreviverem. Se

por um lado os principais clubes queriam estabelecer o domínio do esporte

dentro de uma ordem amadora, a presença dos clubes populares poderia

comprometer explicitamente tal ordem, por julgarem que estes

apresentavam equipes incompatíveis com tais princípios, por outro,

precisavam manter alguns destes clubes pequenos (ou populares) em seu

domínio, como forma de legitimar os eventos, criando um espaço de

aproximação com os torcedores periféricos.

No ano de 1925, o Vasco da Gama já integrava a AMEA com os

seus jogadores populares. As narrativas apontam que a popularidade

adquirida pelo clube português o colocava em igualdade de prestígio perante

os demais clubes de elite. Portanto, eram legítimas as pressões exercidas

pelo Vasco, em busca da igualdade de direito com os demais clubes

fundadores da AMEA. A história seguiria, contando os feitos esportivos que

consagraram o clube português como um dos mais prestigiados e

respeitados clubes esportivos carioca e brasileiro. Entretanto, ao contrário da

saga do clube que queria lutar pela moralidade esportiva, presenciamos nos

jornais a luta do clube português para se integrar à elite. Não nos pareceu

que o clube de São Januário estava muito preocupado com os direitos dos

149

demais clubes, mas sim em se estabelecer no grupo de privilegiados e ser

uma potência no esporte. 171

A seguir, buscaremos relatar os discursos da imprensa que deram

os contornos das transformações que ocorreriam no futebol carioca na

próxima década, a década de 30, acerca do perfil e comprometimento dos

jogadores com seus clubes. A imprensa intensificava o debate acerca do

pertencimento amador no futebol. Os discursos ora se convergiam, ora se

distanciavam, mas, indiferentemente às posições estabelecidas, já começam

a preparar o terreno para uma nova era no esporte carioca e nacional.

6.3 - As Leis de Inscrição e de Estágios implantadas pela AMEA

Nos anos finais da década de 20, o discurso do ideal amador

encontrava-se fragilizado, devido à competição dos clubes pelos melhores

jogadores. Já existia um ‘mercado de jogadores` mesmo sobre a égide do

regime amadorístico do esporte.

171 - Soares (1999b) argumenta acerca da h is tór ia da identidade do Clube deRegatas Vasco da Gama como clube de res is tência e lu ta de c lasses (negros,brancos pobres e mest iços) ser ia mais uma tradição inventada na perspect iva deHobsbawm Em 1997, o vereador Antonio Pi tanga, af irmou que pretendia elaborarum projeto de le i que tornar ia obr igatór io o ensino da his tór ia do Vasco nasescolas municipais do Rio de Janeiro . Acredi tava o vereador , que o clube é umdos marcos da lu ta dos negros por igualdade na sociedade brasi le ira . Todavia, aonos in te iramos das tramas do futebol car ioca nas décadas de 20 e 30, percebemosque o c lube português não demonstrava toda essa preocupação com as c lassesexcluídas , mas, se es tabelecer como um dos grandes do futebol car ioca. Quer iasimplesmente assegurar os mesmos direi tos dos clubes de el i te . (Soares , AntonioJorge (1999b). O racismo no futebol do Rio de Janeiro nos anos 20: uma his tór iade ident idade. In : Revis ta Paul is ta de Educação Fís ica. São Paulo 13(1) . Jan/ jun.119-129p USP

150

Para contornar este mal-estar, a AMEA resolveu implantar novas

regulamentações para o enquadramento dos jogadores aos clubes, criando

as leis de ‘inscrição’ e de ‘estágio’. Tal postura gerou um discurso corrente

acerca do perfil dos esportistas cariocas.

A discussão acerca do amadorismo invadia os jornais. Alguns meios

de comunicação intensificaram a guerra contra o estilo de desenvolvimento

esportivo cultivado na sociedade carioca. A idéia crescente de se oficializar o

profissional esportivo causava espanto e incômodo às principais instituições

esportivas (clubes e associações). Não era possível conceber um esporte

desvirtuado dos valores éticos que acreditavam ser cruciais para o

desenvolvimento pessoal e moral de uma sociedade civilizada. O esporte

deveria representar uma projeção de valores civilizatórios. Os

acontecimentos no meio esportivo carioca e as modificações que estavam

por vir geravam grande incerteza.

Acompanhando alguns periódicos que destacavam este debate,

presenciamos que os ideais ‘ditos’ amadores, na maioria das vezes, se

relacionavam prioritariamente em conflito com interesse financeiro que o

meio esportivo parecia querer manter camuflado. Estavam em jogo os

interesses individuais do jogador versus os interesses coletivos na

perspectiva de Hirschman (1995).

A ‘lei de inscrição’ de quatro anos e ‘de estágio’, proposta pela

AMEA, delineou diferentes opiniões nos meios jornalísticos. Enquanto

alguns as entendiam como salutar à imagem do esporte carioca, outros

151

percebiam uma norma ilegítima diante dos homens de boa fé, aqueles

indivíduos de ilibada reputação na sociedade que buscavam no espaço

esportivo o seu refinamento social e físico. Mesmo alguns jornais que

combatiam ferrenhamente o profissionalismo mascarado não compactuavam

com as novas leis, julgando-as ineficazes a tal combate, como acreditavam

os diretores da AMEA.

O novo estatuto da instituição estabelecia as seguintes

determinações para a Lei de Inscrição (Art.76): após assinar sua inscrição

por um clube, o jogador deveria permanecer por quatro anos vinculado a

este, sem poder se transferir ou exibir seus predicativos esportivos em nome

de outra agremiação. Quanto à Lei do Estágio (Art. 77), o estatuto

estabelecia que, depois de deferida a transferência pela comissão executiva,

o amador só poderia tomar parte em competições, partidas ou provas pelo

clube que o inscreveu depois de um ano de estágio a contar do último dia da

inscrição anterior.

O jornal A Noite anunciou que teria ocorrido uma reunião de alguns

jogadores, a fim de discutirem as novas determinações da AMEA, as quais o

jornal denomina ironicamente de “Lei da canga”, afirmando que esta

exigência não “condiz absolutamente com os princípios do amadorismo” (A

Noite, 26 de nov/1928 p.7, 2ª ed.).

Na matéria denominada ‘O justo protesto dos amadores’, o

articulista apontava sua crítica à nova lei e questionava a subordinação dos

jogadores a este imperativo código comprometedor do esporte, dizendo que

tal exigência só faria sentido, se os jogadores fossem profissionais:

152

“A entidade brasileira exige um prazo de quatro annos comotempo de inscripção dos amadores de moda que o athleta, quejoga por prazer - não por obrigação – (pois somente umcompromisso de ordem moral o obriga a qualquer espécie desacrifício), passa a ser considerado um subordinado, não somentea esse mesmo compromisso moral, mas a prisão por um prazotão absurdo quão prejudicial ao próprio sport. Vejamos: o jogador“A” tem suas sympathias por um determinado club e por ele o faz,como exige a Amea sua inscripção pelo prazo de quatro annos.No fim, de algum tempo muda-se a diretoria e é eleito para o logarde director sportivo um desaffecto seu ou, na melhor dashypotheses, um cidadão que, querendo proteger outro player desuas sympathias profundas, risque o nome de “A” trocando-o peloseu preferido “B”. Surge do fato um aborrecimento (se nãodeterminar complicações maiores...) e o jogador “A”, optimo enecessários às competições, precisando mesmo estar sempre emboa forma, fica à margem na “cerca”, como se diz não somentecom prejuízo do grêmio a que pertence, mas de todo o sport. Issosenhores da Amea, pelo espaço de quatro annos.” (A Noite, 26 denov/1928 p.7, 2ª ed.).

Observemos que, embora as tentativas fossem eliminar as

permutas dos jogadores após o final de cada temporada, quando os clubes

reforçam seus elencos com os jogadores que haviam se destacado na

temporada anterior em outras agremiações, os acarretamentos provocados

pela lei não surtiam o efeito esperado e poderiam aniquilar, por desavenças

internas, o direito esportivo do amador.

O articulista aponta ainda a perversidade encontrada em tal

determinação:

“Ahi fica um argumento poderoso em desfavor da lei prejudicialque acaba de ser decretada pela entidade carioca, dando umaimpressão de que ella lida apenas com profissionaes e nãocom amadores. Porque na verdade é mais natural que sequeiram prender elementos subordinados a um compromisso de

153

ordem material, do que a amadores legítimos, que só se prendemcom os compromissos pessoaes, de ordem moral.”( A Noite, 26de nov/1928 p.7, 2ª ed.) (Grifos nossos).

No dia 27, o jornal A Noite retornava ao caso, falando sobre a

postura do jogador. Afirma o articulista que nenhum jogador deixou de fazer

ou assinar a inscrição, comprometendo-se com o seu clube, apesar de

questionarem a necessidade deste compromisso forçado. Os jogadores,

“Apenas acharam desmedida tolice a exigência do tempo e reclamam contra

o mesmo prazo que os prejudica de qualquer modo, moral ou

sportivamente.” (p.7)

Observemos como o articulista colocava os prejuízos morais e

esportivos aos quais os jogadores estariam sujeitos:

“Moralmente porque o “arrocho” indica desconfiança de que oelemento, uma vez livre, mude de club com mais facilidade. Masisto é, lá coisa que se possa impedir a quem joga sem aobrigação do profissionaes?

Sportivamente, ora pode club algum – e a elle próprio,intimamente, deve repugnar, a pressão de um elemento que nãoo queira ou não o possa defender mais – deter os passos de umamador, que não deve obrigações de “pontos assignados” nempode estar sujeito a compromisso maiores que os compromissosmoraes – e estes dependem dos próprios amadores e nunca dasleis do arrocho.” (A Noite, 27 de nov/1928, p.7)

O jogador Hélcio do Flamengo também colocou como incômoda a

desconfiança do clube em relação aos jogadores, embora admita a

assinatura da inscrição pelo envolvimento que apresentava com o clube: “De

vinte annos que fosse o prazo e eu assignaria a inscrição pelo meu club,

154

mas discordo dessa desconfiança ‘que meu clube tenha a meu respeito.”

(p.7)

Enquanto condenavam as novas leis, os jornais mantinham acesas

as denúncias ao profissionalismo. O jornal Correio da Manhã, que não se

envolveu, pelo menos no período pesquisado com os desdobramentos das

leis, continuava, no entanto, combatendo o falso-amadorismo apresentando

argumentos e fatos que denunciavam a situação. Em uma coluna

denominada ‘A campanha contra o profissionalismo’, apresentou uma

insinuação desenvolvida em forma de conto:

“Da Inglaterra chegou ao Brasil, importado directamente por umpoderoso club, um optimo jogador inglês. Qual o contrato feitoentre o club e o excellente center-forward ignoro até hoje.

O certo porém, é que o rótulo que mascarava o profissionalismodo jogador era de professor de inglêz de um grande e importantecollegio. Enquanto o inglez, era o grande center, sabia sua línguae como professor della, ganha um ordenado esplendido.

Um dia, porém, em uma partida, o Back contrário, numa entradaviolenta inutilizou o joelho do terror dos keepers, e elle, não maispode tomar parte em jogos de football.

Não sei que transformação houve no cérebro do homem, o fatoé que o collegio não o quis mais para professor de inglez, pois elletinha machucado o joelho e não podia continuar a jogar football.

E o nosso heroe, passou de professor de língua, a empregadode um grande club, e segundo parece foi esta sempre suaprofissão. Apenas mudou de club, e de jogador, passou aentreinaur.” (Correio da Manhã, 27 de nov/1929, p.9) (grifosnossos)

O jornal deixa explícito que a profissão de professor era apenas

fachada para esconder sua relação profissional com o clube. O ótimo

ordenado parece ser o mote da inquietude do narrador. Parece interessante

o fato de o jornal estar se referindo a Welfare, jogador do Fluminense, e

155

temporadas depois passar a ser técnico do Vasco (Hamilton, 2001). Este

episódio de Welfare será abordado no capítulo VIII referente à

profissionalização do futebol no Brasil. Observemos que o futebol já neste

ano passa a ter um modesto intercâmbio de jogadores estrangeiros, ainda

sob a ética amadora. Que outros ideais estariam sucumbidos quando o fator

financeiro desponta como o maior incômodo?

O jornal O Paiz também se apresentava como um severo

combatente ao profissionalismo encoberto, dedicando quase que

diariamente um espaço a este fim. A coluna ‘Duas Palavras’, assinada pelo

jornalista Carlos Nery Stellino, portava-se como uma frente de denúncia e

combate aos princípios da imoralidade que assolavam o esporte da capital

federal.

“Tão mal é comprehendido actualmente no Brasil, oamadorismo, que vimos um campo aberto para dentro em brevenão haver um verdadeiro amador”.

(...)Quase todos os nossos ‘amadores’ recebem, após um treino ou

um jogo, a titulo de pagamento de viagem, uma determinadaquantia. E recebem-na como se estivessem fazendo a coisa maisnatural deste mundo. Muitos deles, temos a certeza se seconvencessem de que se tornando com isso, profissionaesmascarados, recusariam promptamente, mas elles vêem osdemais jogadores receberem, com a maior naturalidade!...”(OPaiz, 3 de nov/1928, p.8)

O articulista considera que alguns jogadores, ao receberem esta

ajuda, estão ferindo os preceitos morais do amadorismo. Para o cronista, se

alguns jogadores soubessem disto, recusariam prontamente os proveitos

156

financeiros. Ora, quem era ingênuo: o cronista ou o jogador? Ou

simplesmente o cronista é irônico. O articulista de O Paiz divulgou, no dia 7

de novembro, as medidas que seriam adotadas pelo Flamengo,

consideradas fundamentais para a moralização do futebol carioca. Colocou,

ainda, que a mesma atitude já havia sido tomada pelo Fluminense alguns

dias antes:

“O C. R. Flamengo acaba de dar o primeiro passo official em proldessa campanha, declarando que no próximo dia 15 do corrente,anniversário do club, communicará aos seus amadores adeliberação de não fazer despesa alguma com o quadro defootballers.” (O Paiz, 07 de nov/1928, p.10)

O mesmo articulista, em forma de desafio, conclama o público a não

se iludir com a fundação de uma liga profissional, visto que não acreditava

que esta pudesse despertar o interesse público, diante do prestígio que os

principais clubes já apresentavam. Na sua percepção, uma liga de

profissionais seria fundada por novos clubes:

“Não temam as sociedades sportivas que se funde uma liga deprofissionaes, porque para que ella se fundasse era mister terpúblico para suas reuniões. Esse público não abandonariam assuas cores predilectas para assistir um jogo de clubs que ainda seiriam formar.” (p.10)

O articulista acredita que o pertencimento do torcedor ao clube não

se deslocaria para novos clubes que viessem a se tornar profissionais. O

157

esporte, assim, alimentava-se dos vínculos do torcedor com as cores de seu

clube; como parece ser até nossos dias.

Dias depois, a coluna ‘Duas Palavras’ de O Paiz reclama dos

demais clubes que não aderiram as atitudes de combate ao amadorismo

marrom, como fizeram Fluminense, Flamengo e S. C. Brasil, quando haviam

anunciado que não mais teriam despesas com seus jogadores. Diante dos

elogios a estas agremiações, acusa os demais clubes de permanecerem em

silêncio e sentencia: “quem cala consente!” (O Paiz, 15 de nov/1928, p.11).

A altivez com que se debatia o problema da remuneração indireta

com relação aos jogadores dava indícios de que alguma medida estava por

vir. Desta forma, as resoluções da AMEA estavam sendo aguardadas e os

jornais já demonstravam a inconformidade com a atitude consentida e

camuflada pelos clubes. Embora as acusações fossem indiretas, sabiam

que a ferida estava aberta em praticamente todos os clubes. Acusar seria

colocar o dedo na própria ferida. A remuneração, que acontecia para alguns

jogadores, soava como uma insinuação, conforme aponta o articulista de O

Paiz: “Certo jogador de importante clube, apontado como um desses

profissionaes acaba de adquirir uma casa. O seu pseudo emprego não lhe

daria a casa que conseguiu por intermédio do football.” (O Paiz, 07 de

nov/1928, p.10)

Nota-se que o interesse pessoal sobre questões básicas, como

moradia era questionado. Embora se recebesse para jogar tudo deveria ser

as escondidas.

158

Criticando a contratação de jogadores de outras agremiações, o

articulista sugere que os dirigentes deveriam se preocupar com os

elementos jovens que pretendiam ingressar em suas equipes, mas não

conseguiam espaço, os quais eram os verdadeiros apaixonados pelas cores

dos clubes. O amor e vínculo do jogador ao clube estão fortemente

presentes nas narrativas. Afirmou ainda que a inclusão de jogadores jovens

seria o meio mais eficaz e a solução para se combater o profissionalismo, e

algumas agremiações já haviam percebido a força dos jovens jogadores (O

Paiz, 10 de nov/1928, p.10).

No dia 17 de novembro, a coluna ‘Duas Palavras’ de ‘O Paiz’ se

propôs a discutir a alegação da necessidade de remuneração feita por

alguns jogadores. Inconformado com a situação, o articulista dizia que as

despesas de transporte e de alimentação após os treinos e jogos deveriam

ser pagas pelos próprios jogadores, afinal, estavam jogando futebol pelo seu

próprio interesse, como um amador, e, portanto, o clube não deveria arcar

com o ônus. Vejamos suas argumentações:

“De fato não duvidamos ou até mesmo estamos proptos aaffirmar que os jogos de football acarretam despesas ao amador.

Mas quem o pratica não é elle?Porque elle o pratica, não é para o bem de sua saúde, pelo

gosto das competições, por uma distração?Não é elle que quer praticar, seja por divertimento, remédio ou

vaidade?O amador de football não há de ser differente dos amadores de

outros sports, nem quererá negar a própria significação da palavra‘amador’. Assim sendo, elle tem a obrigação de arcar com todasas despesas, todos os gastos que o sport lhe acarreta.

O amador não tem obrigação de jogar football ou treinar,porque se a tiver, deixa de ser um amador, para ser umprofissional.

159

Assim, as despesas que os amadores fazem na pratica dofootball competem-lhe, com é a elle que compete pagar o cinemaou o theatro, se se quer divertir; o anel com brilhantes se évaidoso; os xaropes da phamarcia, se está enfermo.

O clube não tem obrigação nenhuma disso.” (O Paiz, 17 denov/1928, p.10) (Grifos nossos)

Após a determinação das leis de quatro anos e do estágio, as

narrativas de O Paiz, passaram a ser destinadas ao combate das medidas

implantadas pela AMEA. Pediam mudanças, clamavam por uma moralização

do futebol carioca, mas consideravam que as soluções adotadas foram

perversas aos amadores, indivíduos que não poderiam ser policiados por

incompetência da ineficiência de fiscalização da associação responsável. O

colunista denominou as novas medidas de ‘lei da algema’, considerando que

estas exigências aniquilavam o jogador e colocavam em dúvida suas

virtudes morais.

Questionando a legalidade e moralidade da lei dos quatro anos,

apresentou os seguintes argumentos:

“Somos nos do que, além de não acreditarem que a lei dasalgemas, como é chamada, seja capaz de impedir oprofissionalismo, julgam-na ostensiva e vexatória aos amadores.Sim porque, se existem profissionaes entre os nossos footballersnão se deduz que todos o sejam, e a lei em questão é das queferem direitos dos verdadeiros amadores.

Se esta medida, tomada, aliás, com fim nobre, é um freio aoprofissionalismo que se ameaça alastrar e previne as deserçõessúbitas de jogadores de um clube, por outro lado é um atentadoaos princípios do amadorismo.

O amador é um indivíduo que prática sport por sport, e que,por isso mesmo, tem o direito de fazel-o pelo club que lhe aprovir.

O amador é assim completamente independente, e não estáobrigado a defender as cores de um club determinado.

160

Com a lei ‘das algemas’, o amador fica impedido de continuarsua carreira sportiva, se acontecer qualquer incidente entre elle ea diretoria do seu grêmio, ou com o diretor de sport, ou mesmocom outra pessoa influente do clube! Queremos impedir oprofissionalismo? Haja optima fiscalização.

Se essa fiscalização é em parte burlada por haver indivíduoscujos nomes figuram como empregados de casas comerciaesonde realmente não prestam o seu auxílio, e se há motivos outrosque possam comprovar esse facto, não aceitem suas inscripções.

Mesmo porque, há sempre muita calumnia a respeito de grandeparte dos players apontados como profissionaes.

Geralmente, quando um jogador é bom, os freqüentadores doscampos de football chamam-no profissional e a caluminia vaecorrendo até o ponto de pessoas que o conhecem ficarem nadívida se é ou não amador.” (O Paiz, 24 de nov/1928, p.11) (grifosnossos)

Dando seqüência às suas argumentações contra a lei adotada pela

AMEA, o colunista desliza em suas inferências e passa a valorizar o que

anteriormente teria denominado de pseudo-emprego. Para ele existiam

jogadores que, apesar de trabalharem em firmas de diretores dos clubes,

não poderiam ser considerados como jogadores profissionais, embora as

suas insinuações acabam por denunciar a sua dúvida sobre os valores

amadores. Ou seja, em algumas situações, permite-se que o jogador seja

empregado pelo patrão-diretor, que lhe facilitará cumprir os horários de

treinamentos, conforme transcrevemos abaixo:

“Outro fato natural e que é muito commum: um jogador trabalhaem uma casa cujo patrão não lhe deixa sair para os ensaios. Umcomerciante, sócio do club por onde joga propõe-lhe a ida para oseu negócio; vai realmente para trabalhar, e lhe é concedidalicença para deixar o trabalho e ir aos ensaios: perguntamos: essejogador é um profissional. Evidentemente não.” (O Paiz, 24 denov/1928, p.11)

161

Nesta mesma edição, o colunista que se manifestou contrário à lei

dos quatro anos estranhamente elogiou a atitude dos jogadores vascaínos,

por terem assinado a inscrição dentro dos novos termos da lei propostos

pela AMEA, dizendo que “eles deram uma prova de lealdade para com o

clube que defendem e que este gesto era digno e merecedor dos elogios”

(O Paiz, 24 de nov/1928, p.11). Ficamos por entender quais os motivos que

conduziram o colunista a dedicar esta homenagem aos jogadores

vascaínos. Pareceu-nos contraditório, uma vez que acreditava o articulista

que a suposta lei seria uma ‘algema’ para os jogadores. Se realmente

acreditava nisto, não seria propício discordar dos jogadores que se

submetessem a elas, mesmo que pudessem estar demonstrando sua

afeição e compromisso com o clube?

O jornal O Paiz voltou a criticar as determinações do novo estatuto

da AMEA no dia 30 de novembro, dizendo que as medidas implantadas

estavam fracassadas, porque eram vexatórias e humilhantes para os

amadores, e que o profissionalismo continuaria vitorioso. Para confirmar a

sua hipótese de humilhação e vexame, criou uma história para dar suporte

as suas percepções:

“Supponha o leitor que, havendo uma festa em uma casa defamília, a qual compareceu, e onde houve um furto qualquer, eexaminem na saída, na presença do dono da casa que oconvidou. Naturalmente, o leitor se revoltará diante de vexação,por que passa, embora acreditando que tenha havido o furto doobjeto e, portanto, crê que necessariamente dentre os presentesestá o ladrão.

A humilhação é a mesma que a lei dos quatro annos para overdadeiro amador, com a única diferença da gravidade dos

162

casos, nos quaes no da ‘lei da algemas’ é suspeitado de ser umprevaricante moral, e no do furto um criminoso punível por lei.” (OPaiz, 30 de nov/1928, p.9).

As pressões sobre as novas leis propostas pela AMEA resultaram

na renúncia do Sr. Rollim Pinheiro, que ocupava a presidência da

instituição. Pairavam sobre ele a acusação de proteção sobre os clubes

pequenos, conforme divulgou O Paiz: “Sempre procurou fazer justiça, como

sempre procurou proteger os clubs mais fracos e pobres.” (O Paiz, 09 de

dez/1928, p.21). Embora não tenhamos conseguido maiores informações

acerca do seu afastamento, acreditamos que, pela afirmação de O Paiz, sua

renúncia pudesse ter sido fruto dos descontentamentos dos principais

clubes, por verem sua administração prestigiando os clubes fracos e pobres.

Findado o ano de 1928, os clubes começavam a estruturar suas

composições para a nova temporada. Os jornais mostravam-se atentos aos

indicativos de mudanças de equipes por alguns jogadores. Salientamos que

o novo estatuto da AMEA só começaria a ser adotado a partir desta nova

temporada, quando, após assinar a inscrição, os jogadores ficariam

comprometidos por quatro anos e, para serem transferidos de outros

Estados, deveriam permanecer por um ano cumprindo o chamado estágio.

Neste período, o jogador ficaria jogando no segundo quadro da equipe.

O colunista de O Paiz alertava para que a AMEA observasse as

transferências e negasse a inscrição dos jogadores que fossem confirmados

como infratores dos princípios amadores:

163

“Eis que termina a temporada última, e com o aproximar da quese annuncia, começam a surgir boatos das passagens de algunsplayers para outros clubs: e isto acompanhado de informações ao‘quantum’ estabelecido para a assignatura de inscripção.

A maioria dos casos não passa de boatos, mas a verdade é queinfelizmente nem todos os casos o são.

A Amea que tem na mão esses pedidos de inscripção, cabeinquerir sobre a veracidade dos boatos que correm e no caso deser apurada a sua veracidade negar inscripções a esses players.

Isso poderia e deveria fazer a entidade máxima do sport cariocase é que está disposta a trabalhar em prol do verdadeiroamadorismo.”(O Paiz, 5 de jan/1929, p.9)

O jornal Imparcial também se posicionava como um dos

combatentes à legalização profissional no esporte e, para marca sua

posição, conclamava seus leitores a aderirem à causa, convocando-os a

lutar por um esporte livre dos indivíduos que maculavam a imagem dos

sportsman. Em janeiro de 1929, o articulista do jornal vibrava com a medida

adotada pela AMEA.

O jornal em sua frente de combate ao profissionalismo abre a

matéria registrando a boa expectativa que se tinha desta nova lei: “Nos que

sempre propagamos pela guerra ao profissionalismo, sentimos prazer em

registrar tão auspiciosa expectativa” (Imparcial, 16 de jan/1929, p.9).

Na perspectiva de se analisar a nova determinação da AMEA, o

Imparcial divulgou uma entrevista do Sr. Antonio Gomes de Avellar, dirigente

do América, que compactuava com as mesmas ânsias daquele meio de

comunicação e acreditava que a nova lei iria moralizar o futebol, embora

reconhecesse a dificuldade de se combaterem os maus elementos:

164

“O problema do amadorismo será resolvido fácil. Brilhantementedesde que as ligas confederadas appareçam enérgicas punindoos criminosos sem dó nem piedade”.- Mas será fácil descobrir esses criminosos?Ahi reside o ponto transcendental do problema. Que existe oprofissionalismo mascarado é público e notório. Que se aponteeste e aquelle como profissional camuflado, nas rodas de esporteé fóra de dúvida.Que se suspeite, com muito fundamento, nas espheras directoras,que A e B exigiram e exigem dinheiro para jogar, não é segredopara ninguém. Agora, que se consiga prova comprovada,bastante e capaz de justificar uma punição é o que me parece,impossível, salvo raríssimas excepções. Foi thilhando por estaordem de idéias que produz, ao ser elaborado o projecto dosactuaes estatutos da Amea o que, depois de pequena alteração,se consubstanciou nos arts. 76 e seguintes:“O art. 77 é, no meu fraco entender, o mais efficiente golpe dadocontra o profissionalismo, em suas modalidades maiscaracterísticas: os borboletas que nos finais das temporadas seofferecem a todos os clubes e a cantado passado nos elementosdos clubes secundários.” (Imparcial, 16 de jan/1929, p.9)

Relembramos que, de acordo com os regulamentos dos clubes,

naquele período, o jogador que assinasse sua inscrição em um clube

deveria permanecer nele por quatro anos. Ao final deste período, se

quisessem mudar de clube, deveriam permanecer durante um ano inteiro em

completa inatividade, cumprindo o estágio estabelecido em lei. “Como se vê,

é diffícil arranjar offertas para um anno de inactividade. Não lhe parece?”,

comenta o dirigente americano (p.9). O Sr. Avellar lamentava que o

regimento anterior da AMEA permitia que os jogadores dos pequenos clubes

passassem com muita facilidade para os ‘grandes clubes’, o que provocava

uma constante troca de jogadores que não recusavam os convites dos

principais clubes. Para ele esta nova lei frearia esta situação e agora “os

165

clubes modestos têm a certeza de contar com os seus athletas por quatro

annos.” (p.9)

Apesar de o jornal Imparcial deixar marcada a sua posição contrária

ao profissionalismo esportivo, no dia 17 de janeiro, coloca-se favorável a

uma discussão, dizendo estar interessado em esclarecer os fatos, conforme

declaração:

“Acontece, porém que há uma série de circunstâncias moraes emateriaes, prós e contras que tornam a questão positivamentedelicada, exigindo que se trate della com o máximo cuidado etrato.

É o que procuraremos fazer proximamente, examinando todosos aspectos e conseqüências da inscripção por quatro annos quetanta agitação provocou nos círculos esportivos dacidade.”(Imparcial, 17 de jan/1929, p.9)

Para os articuladores do jornal Imparcial, a Lei de inscrição dos

quatro anos implantada pela AMEA acabaria com o ‘condenável hábito’

adotado pelos clubes ao final de cada temporada, reforçando suas equipes

com jogadores de outros clubes:

“Não há como negar que, de um modo geral, a Lei de Inscripçãopor quatro annos, agora em vigor na Amea, acabará com ocondennável habito em que estavam os nossos centros defootball de procurar melhorar os seus teams, finda a temporada,com elementos de outros clubs

Esse pernicioso viso está virtualmente extincto.” (Imparcial, 18de jan/1929 p.9) (Grifos nossos)

166

Observemos que o próprio jornal deixava mais uma vez a dúvida da

eficiência de controle sobre a condição amadora do jogador, ao dizer

virtualmente extinto. Reconhecia, desta forma, que o controle ainda não

seria suficiente para frear as contratações de jogadores de outros clubes

para reforçarem suas equipes.

Outro fator apontado pelo jornal Imparcial que julgava comprometer

a Lei da Inscrição era a exigência de apenas um ano de estágio, para os

jogadores de outros Estados, desde que o jogador não participasse de

nenhum esporte em competição oficial. Acreditava que, desta forma, este

seria o mecanismo de reforço a ser adotado pelos clubes.

Todavia, em 19 de janeiro, o Imparcial reconhece a dificuldade em

se estabelecer a ‘moralidade’ no futebol, quando alertava para as manobras

que poderiam ser realizadas contornando as exigências das leis, embora o

jornal não deixasse claras as manobras às quais estava se referindo.

Observemos que a Lei, apesar de coibir a troca de equipe dos

jogadores após o término de uma temporada, não conseguiria evitar as

remunerações que ocorriam nas equipes e pareciam ser as mazelas que

gostariam de ver combatidas, conforme aponta o jornal:

“Os que sinceramente se empenham em ver o footballreintegrado nos sãos princípios do amadorismo esportivo, devemestar attentos as manobras de alguns maos elementos que secontam no meio do sportsmen carioca

A nova lei dos quatro annos não conseguiu extirpar do quadrode amadores os que ahi figuram indevidamente pois não passamde mal disfarçados profissionaes. Com esta gente, ainda emactividade não será difficil outra forma de suborno, qual seja oque visa remunerar o jogador que se não esforce para avictoria de seu team.

167

Esse um dos aspectos mais repugnantes do profissionalismo econtra o qual, infelizmente nada pôde a lei dos quatro annos.

Vê-se, assim, que o problema só foi resolvido em parte e nadadesculpar-a que se não complete a iniciativa de saneamentoposta em prática com tanto enthusiasmo e esperanças.

Appellamos, pois, para que se exerça um rigorosa vigilância emtorno dos suspeitos, afim de conseguirmos a suprema ventura devermos extirpados por completo esse cancro do esporte.”(Imparcial, 19 de jan/1929, p.9) (Grifos nossos)

Observemos, pela veemência narrativa do articulador do jornal, que

ele reconhece e lamenta que, mesmo com as leis (da inscrição e do

estágio), ainda não se conseguiria coibir a presença de falsos amadores,

pois a lei não tinha dispositivos para controlar este perfil de jogadores.

Entretanto, apesar das lamentações, mesmo percebendo a

fragilidade da Lei, o jornal reconheceu pelo menos duas vantagens:

“1 – a obrigação em que estarão os clubes, de fomentar apratica esportiva entre os infantis e juvenis, que naimpossibilidade de caçar jogadores nos finaes de cadatemporada, é desses reservas que terá que tirar reforços parasuas equipes; 2 – a possibilidade de formarem teams poderososnos clubes pequenos.” (Imparcial, 31 de jan/1929, p.9)

A impossibilidade de troca de equipes por parte dos jogadores aos

finais de temporada, na percepção do articulista, forçaria os clubes a

investirem em categorias de base, visando reforçar futuramente as equipes

principais. Desta forma, novos valores estariam sendo preparados para

engrandecer o futebol carioca, não simplesmente aproveitando os jogadores

que se encontravam formados em outras equipes, o que era o hábito

168

naquele momento, ao assinarem a inscrição pela equipe que poderia lhe

conduzir ao deslocamento social. De fato, não parecia fazer sentido para os

principais clubes o investimento em formação de atletas, já que, pela

dinâmica esportiva daquele período, ficava facilitada a contratação de

jogadores de clubes periféricos sem expressão. O prestígio e o privilégio de

se jogar nos ‘grandes clubes’ já eram almejados por praticamente todos os

jogadores das classes populares.

Outro fator apontado pelo articulista como benéfico ao esporte nesta

nova lei era a possibilidade de formação de equipes poderosas nos

‘pequenos clubes’, já que deveriam permanecer vinculados por quatro anos.

Não podendo trocar de clubes, os próprios jogadores interessariam em

formar equipes competitivas. Será?

Capítulo XVIIRussinho – Uma entrevista provocadora

“Se o público me perguntasse se eu sou profissional ouamador eu não saberia responder com segurança. PorDeus, eu não saberia responder.”172

(Russinho em 1931)

Nos meses finais de 1931, o jornal O Globo intensificava uma

campanha a favor da profissionalização no futebol brasileiro173, desenvolvida

172 - Jornal o Globo, 30 de set /1931, p .8

169

desde o momento em que os principais jogadores do futebol brasileiro

passaram a firmar contratos em clubes europeus e latinos, principalmente na

Espanha, Itália, Uruguai e Argentina.

Adotando a estratégia de divulgação do ponto de vista de jogadores,

dirigentes, torcedores e profissionais da imprensa, o jornal realizava

entrevistas publicadas diariamente. Dentre as várias entrevistas, destacou-

se a que foi concedida pelo jogador Moacyr Siqueira Queiroz - o Russinho,

como popularmente ficou conhecido. A repercussão provocada na época da

sua primeira entrevista desencadeou o interesse público pelas informações

apresentadas, o que lhe gerou convites de outros jornais. Todos queriam

saber as contundentes opiniões do jogador acerca do amadorismo e

profissionalismo no futebol carioca.

Russinho era considerado pelos jornais (A Noite, Diária da Noite, O

Globo, Jornal dos Sports, entre outros), na época, um dos principais

jogadores do Clube de Regatas Vasco da Gama, embora os anais da

história não tenham registrado as glórias dos seus feitos esportivos. O

jogador, em sua entrevista, revelara, de forma objetiva, a condição de

vínculo dos jogadores cariocas com seus clubes, afirmando que o ‘bicho’,

uma remuneração a título de ajuda de custo e/ou gratificações, era um

costume normal e corriqueiro em todos os clubes, inclusive admitido pelos

dirigentes e, também, por todos os jogadores. Suas informações provocaram

intenso alvoroço no ciclo esportivo carioca. Russinho argumentou que se

encontrava qualificado e com direito para falar abertamente sobre os

173 - O jornal is ta Mário Rodrigues Fi lho era o responsável pelas not íciasespor t ivas .

170

assuntos, porque teria recusado um interessante contrato fora do Brasil. “Eu

posso falar porque recebi uma proposta de meia centena de contos para

tornar-me profissional e recusei.” (O Globo, 03 de out/1931, p.8)

As contundentes declarações de Russinho provocaram uma

inquietude da mídia, alimentando os jornalistas de argumentos que faziam

intensificar o debate acerca do falso amadorismo presente nos clubes

cariocas. Enquanto para alguns jornais suas declarações vieram reforçar as

suas empreitadas em busca da consolidação do profissionalismo, para

outros vieram como insulto à desordem, atitude de um jogador desprezível

sem compromisso com os ideais esportivos civilizatórios. A divulgação de

suas declarações efervesceu o debate acerca do amadorismo. Para os

editores do jornal O Globo, a entrevista foi um marco, em que todos os

jornais da época teriam aberto espaço para comentar as revelações

realizadas pelo jogador, conforme argumenta o jornal:

“Nunca uma entrevista provocou tanta ceulema. Todos os jornaesabriram colunnas para commental-a, e em todas as esquinas, emtodos os cafés onde se reúne a mocidade sportiva, o assunto ésempre o mesmo. Um matutino de sports pergunta, hoje: quemnão leu a entrevista de Russinho? Todos a leram, todos acommentaram. Elogios, ataques, provocaram as declarações dogrande condutor da ofensiva carioca. E nenhuma vos officialrebateu qualquer affirmações de Russo. A C.B.D. nada disse. DaAmea não partiu uma voz. E os clubs estão silenciosos.” (OGlobo, 03 de out/1931, p.8).

O jornal O Globo, ao se vangloriar com a sua reportagem sobre a

entrevista de Russinho, condenava a atitude de silêncio das instituições que

171

dominavam o esporte carioca e também dos clubes. Pareceu-nos que este

seria também um dos objetivos do jornal, intrigar as instituições e os clubes

para o debate, pois se fazia nítida a luta dos interlocutores do jornal pela

implantação do regime profissional no futebol.

Figura 02 – Equipe do Vasco da Gama -1929Russinho a direita

Todavia, a entrevista de Russinho recebeu críticas de diversos

cronistas de alguns jornais cariocas, que interpretaram suas informações

como prejudiciais ao esporte, colocando em cheque suas informações,

inclusive alguns sugeriam que se tratava de um artifício utilizado pelo

jogador em busca de autopromoção.

Russinho declarou que todos os jogadores recebiam o ‘bicho’,

considerando uma hipocrisia este ‘jogo de fazer de conta’ de que nada

acontecia. Acusava as instituições organizadoras do esporte e os clubes

172

como responsáveis por este fingimento, conclamando-os a responderem por

suas acusações:

“Eu recebo conducções de cem mil reis, de cincoenta e de trinta...Eu recebo e todos recebem. Quem dá a conducção é a C.B.D. Éa Amea, são os clubs. Contra os Uruguaios os brasileirosreceberam cem mil reis de conducção, contra os Paulistas, nadecisão do campeonato Brasileiro, os cariocas receberamcincoenta, contra o Botafogo eu recebi trinta mil reis. Veja bem asdifferenças. Depende da importância do jogo, da renda que o jogoproduz, e eu me pergunto: Se eu não gasto nem cem mil reis,nem cincoenta, nem trinta de conducção em dias de jogo, a quetítulo nos dão o resto? Sim a que título? Só poderia ser comogratificação e convenhamos que se for assim é pouco e irrisório...Por isso não sei o que sou, não sei o que somos os jogadores doRio de Janeiro. Não será profissionalismo, mas tenhamosfranqueza: isso não é amadorismo! Eu queria que os diretores daC.B.D., da AMEA, dos clubs, respondessem a essa minhapergunta: a que título o jogador recebe mais vinte, mais quarenta,mais oitenta mil reis de conducção?” (O Globo, 30 de set/1931,p.8)

Em outro momento da sua entrevista, ele se dizia em dúvida ao não

saber informar se era um amador ou um profissional: “Eu mesmo estou em

dúvida, serei amador? Serei profissional? Já não digo profissional, mas serei

amador, na mais justa accepção do vocábulo?” (p.8). Nota-se o tom

questionador que Russinho utiliza para denunciar a falta de coerência dos

valores recebidos pelos jogadores com pagamento de transporte nos dias de

jogo, pois, se fossem realmente para o transporte, esses valores seriam

exagerados, parecendo ser gratificações, o que não fazia sentido perante os

princípios do amadorismo. Caso fossem realmente gratificações, tais valores

então seriam irrisórios. Observa-se que Russinho argumenta e contra-

argumenta, deixando aberta a possibilidade da remuneração indireta que os

173

clubes pagavam aos seus jogadores, mas que deveriam ser camufladas

sobre outras receitas, no caso, o pagamento dos transportes.

Russinho disse ainda que o público que prestigiava o futebol

gostaria de saber onde ia parar o dinheiro que pagavam para ver os jogos e,

ainda, por que os principais jogadores brasileiros estavam abandonando o

país para jogar na Europa.

“O público quer saber porque os grandes “cracks” estão indo paraa Hespanhã. Se elle paga, se ele assiste a um match por preçosabsurdos, porque Fausto174 se foi? O público paga e nãocompreende que por causa de dinheiro um jogador brasileiro fiquena Hespanha. Nós não pagamos bastante?” (p.8)

Afirmou Russinho que o público ‘ingenuamente’ acreditava que o

dinheiro deixado nas bilheterias dos estádios seria para pagar os salários

dos jogadores: “O público só sabe de uma cousa: que paga e que o seu

dinheiro vai parar em algumas mãos. E a sua ingenuidade é lógica: eu pago

para ver os “cracks”, logo os “cracks” recebem...” (p.8)

Seus apontamentos balizaram as crônicas esportivas naqueles dias,

dando o tom do debate que vários cronistas esportivos buscavam respaldo.

As afirmativas de um jogador seriam o argumento oportuno para confirmar a

presença do amadorismo marrom tão criticado, mas que as vozes se

silenciavam, deixando os articuladores sem força para combater

174 - Fausto – O ‘Maravi lha Negra’ . Castro e Máximo (1965), argumentam quepara Fauto ter ia ido para a Espanha pelo fa to de o Brasi l não ter a indaof icia l izado o prof iss ional ismo. Pela sua condição social não podia ignorar aspesetas oferecidas pelos espanhóis . Castro , Marcos de. & Máximo. (1965) .Gigantes do futebol bras i le i ro. Rio de Janeiro . Lidador.

174

efetivamente o fato. A partir desta entrevista, as portas estariam abertas,

para outras denúncias e declarações. Russinho funcionou para a imprensa

como o ‘pavio’ necessário para estourar a bomba do debate em torno do

profissionalismo.

Em outro momento da entrevista, Russinho sugeriu que o esporte

fosse categorizado como divertimento, como são as casas de diversões, os

cinemas, o teatro e o circo. Para ele está seria uma boa saída para legalizar

o futebol brasileiro. Suas argumentações centravam-se no interesse do

público pelo futebol, como por outras diversões. Russinho já anunciava que

o futebol fazia parte da indústria do entretenimento, para usar o jargão de

hoje: Observemos suas palavras:

“Isso seria o certo. Proporcionamos um divertimento. A prefeiturataxa o campo de football, como uma casa de diversões, como umcinema, um theatro, um circo de cavallinhos, só com umadifferença: a estrella da tela, ganham ordenados principescos.Procópio175 recebe uma fortuna e os “cracks” constroem estádios,sustentam banquetes e os sports parasitas, e não recebem nadaa não ser um excesso de conducção e um ponta-pé quando a suaestrella se apaga.” (p.8)

Russinho argumentava que o dinheiro proveniente do futebol era

empregado em esportes secundários e no investimento de infra-estrutura

dos clubes. Seu ponto é que os recursos deveriam ser revestidos para o

próprio futebol e, desta forma, não precisariam ficar recebendo apenas as

‘gratificações excessivas’ supostamente destinadas ao transporte.

175 - Procópio Ferreira era naquele momento o pr incipal nome do teatro brasi le iro.

175

Ao ser questionado pelo repórter sobre a proposta que havia

recebido do Barcelona F. C., para juntar-se a Fausto e Jaguaré, Russinho

afirmou que não havia interesse em deixar o Brasil. “Disse que não me

interessava o negócio. Interessa-me o profissionalismo, mas no Brasil” (O

Globo, 05 de out/1931, p.8). Colocara, ainda, que sua situação era diferente

dos outros dois jogadores:

“O caso de Fausto e Jaguaré é differente. São solteiros, livres equizeram melhorar de sorte. Aqui em qualquer ramo de atividadea que se dedicassem, as suas possibilidades eram escassas.Nunca pensaram em chegar a situação de conforto a quechegaram. Fizeram bem, e eu nas mesmas situações faria omesmo. Mas o meu caso é diferente, sou casado e trabalho comsuccesso. Não sei somente football... Se eu fosse apenas umjogador de football a história seria outra.” (p.8)

Russinho lamentava e queixava-se da falta de clareza na definição

da condição do jogador no Rio de Janeiro. Afirmou, ainda, que não saberia

dizer se tornaria um profissional, caso a regulamentação profissional fosse

implantada, mas que seria sensato que fosse definida a situação:

“Se viesse o profissionalismo honestamente, civilisadoramente,eu saberia dizer: sou um amador, ou sou um profissional, e mesentiria tão orgulhoso de uma cousa como de outra. Como ascousas estão é que não pode continuar. Não há amadorismopuro, não há profissionalismo limpo, descoberto. Há um meiotermo. Para o público todos recebem.” (p.8)

Devido às impetuosas críticas que lhe foram proferidas, embora

nem todas tenham sido publicadas, conforme colocara em outras

176

entrevistas, o jornal O Globo abriu novo espaço para que pudesse contra

argumentar as depreciações que lhe estavam sendo aplicadas. Nesta nova

reportagem, desenvolveu sua defesa diante de alguns pontos selecionados

das críticas que recebera, no entanto, sem apontar diretamente seus

detratores. Entretanto, ao pesquisarmos nos jornais da época, encontramos

a quem Russinho dirigia seus argumentos e críticas.

O jornal A Noite, um dos combatentes ao profissionalismo, diz que a

atitude do jogador não somente o colocou mal perante a comunidade

esportiva, como também comprometeu as instituições (AMEA, FIFA e o

Vasco). Russinho esperava ver uma retratação dos envolvidos na sua fala:

“De qualquer modo, não fica mal somente o player que deu com a língua nos

dentes. Mas ficam a C.B.D., a Amea, e o C. R. Vasco da Gama, que devem,

por seu turno declarar, também, em que lado da dúvida se encontram.” (A

Noite, 01 de out/1931, p.8)

Rebatendo estas acusações, Russinho argumentou que o fato de

ter declarado que receberia gratificações apenas deu voz àquilo que todos

sabiam, mas era camuflado. Contesta ainda que não era apenas o Vasco da

Gama que teria ficado mal com suas declarações, mas todos os clubes que

estavam na mesma situação:

“Eu confessei que recebia 30$, 50$, 100$ de accordo com aimportância do jogo, mas frizei que todos encobriam. Se euestivesse sujeito as leis da Fifa, todos os nossos jogadoresestariam, e também a Amea e a C.B.D. E pergunta se eu possoreceber a medalha de campeão da cidade. Por que recebi obicho? Então não se cunhariam mais medalhas para oscampeões do nosso foot-ball. O chronista individualista demaisdizia que eu fiquei mal e que deixei mal a C.B.D., a Amea e o

177

Vasco! E não deixei mal os outros clubs? Se todos dão o ‘bicho’,sé todos os jogadores recebem o ‘bicho’.” (p.8)

O jornal A Noite ainda colocou em dúvidas os reais interesses do

jogador com sua denúncia, já que o próprio confessou ter recebido

vantagens nos jogos:

“Moacyr é francamente pelo profissionalismo e mais, paradesfazer a impressão má da attitude desassombradas, declara-seem dúvida quanto sua verdadeira situação sobre o proteccionismoda “Fifa”. Mas confessa as vantagens obtidas de acordo com osjogos em que intervem, tanto mais valendo a gorjeta, quanto maisimportante é o jogo.” (A Noite, 01 de out/1931, p.8)

Em sua resposta, o jogador salientou que, quanto à sugestão do

crítico, este deveria ser punido pelas instituições competentes, no caso a

FIFA, a qual esclareceu que, para puni-lo, teria que reprimir os demais

jogadores, bem como a AMEA e a Confederação Brasileira de Desportos.

“Se me fossem punir, seriam punidas a C. B. D., a Amea, os clubes, os

jogadores e não ficaria ninguém para contar como foi...” (O Globo, 03 de

out/1931, p.8)

Russinho ainda rebateu a acusação que lhe fora feita acerca do

recebimento de valores elevados para o transporte nos dias dos jogos.

Lembremos que, em sua primeira entrevista, o jogador afirmara que todos

recebiam gratificações, um expediente considerado corriqueiro:

“Não sou eu somente: todos re-cebem conducções exaggeradas.O Chonista ao atacar-me, devia atacar também todos os nossos

178

clubs, a própria Amea, a própria Confederação. Se o ataque meatinge, vae direto a todo do nosso football. E o chonista diz: ‘nãosão os proffissionaes, mas amadores que recebem certasindennizações”. Agora sou eu que dizia: “Oh! A ingenuidade dochonista! Amadores que recebem certas indennisações... Entãoum amador pode receber certas indenizações? São esses quedefendem o amadorismo. Ficam satisfeitos só com o rotulo.Podem receber, conquanto se chamam amadores. E diz: “Oplayer não é obrigado a receber”. Eu não disse que era obrigado areceber. Nem que esse dinheiro me queimava a mão. Esclareciuma situação. Disse somente uma verdade. E o chonistapergunta: “Se não dessem aos amadores (sempre esta palavra!)essa indennizações, poder-se-ia contar com o seu concurso? Euresponderei por todos os jogadores do Rio: em nenhuma parte domundo se pratica football com maior espírito de sacrifício. Porisso, os jogadores, aqui, duram somente quatro annos,geralmente. Os casos não são poucos e illustram perfeitamente aminha affirmativa. Pernas quebradas, rótulas fora do lugar,carreira cortadas no apogeu. Não será por causa de trinta nem decem mil réis que um jogador arrisque a vida, a sua carreira, ofuturo de sua família, mesmo porque elle sabe o que o espera.” (OGlobo, 03 de out/1931, p.8)

Observemos que Russinho se aproveitou dos argumentos utilizados

pelo cronista, ao acusá-lo, para questionar o conceito de amadorismo,

colocando em dúvidas o que o cronista entendia como amador, e ainda

ironizara, chamando-o de ingênuo, devido à contradição nas suas

argumentações: Como podem amadores que recebem ‘certa indenizações’?

Questionava o jogador sobre o amadorismo defendido pelos jornalistas que

o atacavam, indagando se eles ficavam satisfeitos somente com o rótulo de

amador.

Em outro momento, o jornal A Noite o chama de ‘mau elemento’ e

afirmou que somente a ele interessava o profissionalismo no Brasil. Para o

jornal, Russinho se colocava em uma espécie de leilão, aguardando a

179

melhor oferta, já que havia recusado a proposta do Clube Barcelona da

Espanha:

“Uma cousa ampara o “mau elemento” que se descobriu dehontem para cá: Moacyr interessa-se pelo profissionalismo, masno Brasil. Isto é como quem diz que elle se apresentará ao toquede reunir dos profissionaes e estará sujeito ao martello... de quemder mais.”(A Noite, 01 de out/1931, p.8)

Aqui parece ficar evidente a idéia de que a possibilidade de vender

a mão-de-obra neste espaço de representação de identidades, que é o

esporte, era visto como risco pelos amadoristas. Essa imagem parece ainda

permanecer nas narrativas atuais.

Russinho respondeu às acusações utilizando as argumentações de

recusa da proposta do clube espanhol, dizendo ainda não ter certeza se

tornar-se-ia um profissional, caso o regime fosse implantado no Brasil:

Outro chonista diz que eu estou sujeito: “ao martello... de quem dámais...”. No dia em que eu dei a entrevista ao Globo tinharecusado uma proposta de meia centena de contos de reis. Eestou sujeito ao martello... Eu nem disse que vindo oprofissionalismo, seria profissional. Disse que queria poderresponder de cabeça erguida: “Sou um profissional!” Disse quequando viesse o profissionalismo escolheria a minha sorte. Nuncavivi de football. Não preciso delle para viver. Se for fazer umbalanço só verei prejuízo...” (O Globo, 3 de out/1931, p.8)

As acusações do jornal A Noite sugeriam que, diante de seus

apontamentos, Russinho queria se ajeitar ante as Leis da AMEA e da

C.B.D., conforme argumenta o articulista:

180

“Deante, porém, de sua attitude, franca de mais, para amascarada do amadorismo eis que Moacyr acaba de crear umaposição nova para se ageitar ante as Leis ameanas, cebedensese fifenses: - Moacyr deverá ficar de fora, a espera desse toque dereunir, do lado dos profissionaes. Moacyr nesse ponto é que deixauma dúvida... se elle poderá receber mais para merecer ... amedalha de campeão da cidade...” (A Noite, 01 de out/1931, p.8).

Respondendo a esta crítica, Russinho ironizava o apontamento do

cronista e a situação do futebol brasileiro, dizendo que, caso fossem punir

como se estava sugerindo, não haveria mais futebol no Brasil, pois todos

seriam punidos:

“E o chonista diz que eu devo ficar de fora porque criei uma‘posição nova para ageitar-me ante as leis ameanas ecebedeneses’. Só achando graça! Então não se jogaria mais foot-ball no Brasil. Ficariam de fora, ‘a espera do toque de reunir dosprofissionais’, todos os jogadores, todas as ligas, todos asentidades!” (O Globo, 03 de out/1931, p.8)

O Jornal dos Sports de 01 de outubro de 1931, em tom de

lamentação disse que o ‘amadorismo’ teria levado um rude golpe, devido às

declarações de Russinho, o qual afirmava que se encontrava em dúvidas e

não saberia informar se era um amador ou profissional do futebol, pois

achava estranho que recebia dinheiro excessivo para o transporte. Para o

jornal, não havia o que acrescentar diante de tão claras denúncias

apontadas pelo jogador do Vasco e conclamava para que trocassem logo a

camisa do amadorismo pela do profissionalismo:

181

“Deante dessas declarações francas, cathegoricas, formaes, nadahá a accrescentar. Dispamos de vez as falsas roupagens doamadorismo e enverguemos logo, a camisa do profissional, tãodigna, tão honrada, como a de qualquer outra profissão lícita.”(Jornal dos Sports, 01 de out/1931, p.2).

Para o Jornal dos Sports o futebol deveria ser enquadrado como as

outras profissões, e tal atitude deveria ser uma honra. Entretanto, para os

defensores do regime amador, os ideais de honra não deveriam ser

comercializados.

No dia seguinte, o Jornal dos Sports prossegue, em sua cobertura,

com as repercussões das declarações do jogador, colocando, em letras

destacadas como primeira manchete da capa, parte de suas afirmações e

as penalidades que poderiam ser proferidas pela Fifa, caso as acusações

fossem levadas à instância superior. Todavia, o jornal não se aprofundou

nas análises dos fatos nesta edição:

“Russinho declarou que tem recebido ou da Amea, ou daConfederação, 100$, 50$ e 30$ para a conducção. O artigo 4º dosestatutos da Fifa é taxativo ao comminar penalidades para osamadores que assim procedem.” (Jornal dos Sports, 02 deout/1931, p.1)

Nota-se que o Jornal dos Sports se pautava no estatuto da FIFA

para questionar o perfil amador diante da remuneração que os jogadores

recebiam.

182

Os debates foram intensificados e outros jogadores foram

entrevistados, objetivando-se comentar as declarações de Russinho. Muitos

deles compactuaram com as opiniões emitidas pelo companheiro, dizendo

que ele foi sincero e honesto em suas afirmativas, conforme reconheceu

Martin, jogador do Fluminense:

“A entrevista de Russo agradou-me plenamente. O que elle dissefoi uma verdade que muita gente tinha vontade de dizer e nãodizia, por falta de coragem. Quantos jogadores não terão dirigidoa si mesmos, nos exames de consciência a pergunta que ocommandante da offensiva vascaina fez com bravura,publicamente. “Sou amador?” “Sou profissional?” Russo está naverdade com toda razão. As bases em que se apóia são sólidas,as suas affirmações são indestructiveis. ” (O globo, 03 deout/1931, p8)

Domingos Antonio, jogador do Bangu, colocou-se com a mesma

perspectiva diante da implantação do profissionalismo considerada seria

fundamental para o progresso do futebol brasileiro:

“O profissionalismo é uma necessidade inadiável para oprogresso do nosso football e a honestidade dos nossos rapazes.Nesse regimem de gorgetas é que não devemos continuar. Os“cracks” se amofinam. Perdem o incentivo. Descuidam-se até dasua própria forma.” (Jornal dos Sports, 03 de out/1931, p.1)

O repórter indagou sobre a possibilidade dele se tornar profissional,

caso o regime fosse inserido no futebol brasileiro. Domingos respondeu que

certamente se engajaria e, inclusive, não ficaria esperando pela implantação,

183

pois pretendia até mesmo sair do Brasil para buscar remunerações

vantajosas, conforme declarou:

“Certamente. Estou disposto agora a sair da própria terra natalpara jogar football com remuneração, caso encontre boasvantagens. Irei para a Hespanha, para a Itália, para a China! A“plata” é quem manda a gente seguir a trajetória da vida. Ojogador de football deve aproveitar o momento de sua grandezatechnica, do contrário, ficará esquecido. Como um pobre cãovadio, quando a decadência bater a sua porta.” (p.4) (grifosnossos)

Vejamos que o jogador Domingos estabeleceu o interesse

financeiro como o determinante da sua trajetória de vida. Para ele, a “plata”,

como denominou o dinheiro, era que determinaria suas ações. Portanto, as

marcas do discurso de pertencimento, de vínculo afetivo-emocional, são

colocadas pelo jogador em segundo plano. O jogador admite, mesmo que

indiretamente, que a ‘lei do mercado financeiro’ ditava a sua permanência,

seja no Brasil, na Espanha, na Itália e até mesmo na China. Essa ironia ao

citar a China caracterizou bem a intenção do jogador. Sabe-se que, naquele

período, a China não apresentava uma cultura esportiva que se interessava

pelo futebol, mas mesmo assim, se fosse para “encontrar boas vantagens”,

para o jogador não fazia diferença.

O jogador Preguinho do Fluminense, considerado pelos

companheiros e pela mídia, na época, como um verdadeiro sportmen, foi

outro convidado a comentar a entrevista de Russinho. Ele também teceu

elogios às argumentações de Russinho e compactuou com algumas de suas

análises, mas considerou que Russinho não foi feliz em parte das suas

184

declarações. Segundo Preguinho, ele não deveria generalizar sua

experiência para todos os jogadores, pois Preguinho diz não vestir a

carapuça. Preguinho, no jornal Diário da Noite de 06 de outubro de 1931,

diz:

“Sou de opinião que Russo disse a verdade. Elle não se afastounem um millimetro do que todos nós sabemos. Falou com a vozdo coração. Porque, realmente a situação é esta: o amador quegasta três ou cinco mil reis de conducção e recebe trinta, oucincoenta, ou cem para indemnizal-o destas despesas, não é tãosomente um amador. Vae alem, pois se excede, ferindo o que deconvencionou chamar a Lei do amadorismo. Russo teve razão. Sónuma parte das suas declarações elle não foi feliz. Naquella “nósrecebemos” generalizou demasiadamente a questão, pois nãosão todos os que “recebem”. Pode ser, acredito, que todos“tenham direito” a receber e em face do que os clubes, a Amea, ea própria confederação tomaram por naipe nesta questão deconducção. Entretanto, não vai nisso nenhuma velleidadedescabida, mas seja permitido que eu diga: jamais recebi umtostão se quer como verba de conducção.” (Diário da Noite, 03 deout/1931, p.2)

Em entrevista concedida ao Jornal Diário da Noite, Russinho se

colocou como representante da classe de jogadores que se sentia explorada

pelos dirigentes, denominados pelo jogador de ‘Senhores de Engenho’.

“Minha attitude de hoje, tem maior significação do que parece àprimeira vista. Falei como delegado de grande núcleo dejogadores que sentem a exploração de senhores de engenho. Osdiretores dos clubs, em sua maioria, são os exploradores dosportmem. Há sempre interesses indiretos explicando essa forçade sacrifico feitos pelos clubs.” (Diário da Noite, 06 de out/1931,p.6/7)

185

Russinho desafiou os dirigentes a provarem que as quantias pagas

a título de transporte estavam de acordo com o que era estabelecido pelo

regulamento da Fifa, como haviam dito no clima do debate pelos jornais.

Russinho clama por relações trabalhistas modernas no futebol, opondo-se

ao modelo patriarcal das relações trabalhistas.

“Falam por ai que as quantias pagas pelos clubs e pelasentidades o são de acordo com o regulamento da Fifa. Desejariaver onde se acham tais dispositivos regulamentares. A Fifa,segundo estou informado, admite indenizações pelo tempoperdido por quem ausenta do país na defesa das cores sportivasde uma instituição. Isto é coisa substancialmente diferente dessapouca vergonha de ser formada uma fileira de jogadores dentrodos vestiários dos clubs, após treinos e jogos, para receber dasmãos dos tesoureiros um pagamento que avilta.” (Diário da Noite,06 de out/1931, p.7)

Russinho voltou a comentar sobre o valor exagerado que os

jogadores recebiam como cota de condução nos dias de jogo e de treino,

dizendo ainda que não poderiam ser considerados amadores aqueles que

recebiam duplamente pelas horas de trabalho.

“O amador quando deixa a casa em que trabalha para treinar oujogar, só o faz com licença do patrão. Não perde dinheiro comisso. Nada há, portanto, que justifique ser indenizado em dinheiro,por tempo que já está pago. Ou seremos amadores prestigiadospelos nossos dirigentes, ou profissionaes com deveres contratuaisa cumprir.” (p.7)

O embate se estendeu por vários dias. Poderíamos estender estas

ricas narrativas até os anos seguintes quando se oficializou o

186

profissionalismo, mas o faremos em outro momento. Por hora, interessava-

nos este fato, como pontapé das transformações, e as narrativas que se

deram em torno dele.

Observemos que as argumentações de Russinho eram irrefutáveis e

marcantes para aqueles que pretendiam combater a manutenção do regime

amador naquela época, diante da estrutura presente nos principais clubes do

futebol do Rio de Janeiro. O desfecho das suas acusações não lhe resultara

nenhuma punição, como também não resultou para o Vasco, a AMEA e a

CBD. Todavia, diante destes argumentos, os defensores da implantação do

profissionalismo se reforçaram, acarretando tensão no quadro de dirigentes

das principais entidades nacionais e também nos clubes. Muitos dirigentes já

se mostravam favoráveis às mudanças e começavam a encampar as

campanhas pró-profissionalismo, pressionando os demais dirigentes que

preferiam manter a estrutura vigente camuflada nas concepções do esporte

amador.

Esta tensão quanto ao profissionalismo teria provocado uma

inquietude em outros setores sociais brasileiro, chegado ao espaço da

música. O já consagrado cantor e compositor Noel Rosa lançou, em 1932, a

música “Quem dá mais?”, onde ironizava o que Russinho vinha exigindo, de

forma sigilosa, para permanecer no atuando pelo Vasco nas temporadas

seguintes (Assaf, 2003). 176 Esta situação parece nos dar mais uma

evidência de que o amadorismo, da forma que se encontrava estava

desacreditado:

176 - Assaf , Roberto. (2003) . Sete décadas de futebol prof iss ional . In: JornalLance. 18 de fevereiro, p .14.

187

“Cinco mil réis, 200 mil réis, um conto de réis? Ninguém da mais de um conto de réis?O Vasco paga o lote na batatae em vez de batata oferece ao Russinho uma mulata”.

(Quem da mais? – Noel Rosa 1932)

Capítulo VIIIA tensão dos anos finais da década de 20 e anos iniciais dadécada de 30 – O Jornal do Fluminense Foot-ball Clubpreparando o terreno para o profissionalismo

“Os jogos entre teams do Rio, S. Paulo e Minas, são comdificuldade combinados, por causa do tempo que perdem oscomponentes dos diversos Clubs, deixado seus affazeresabandonados, prejudicando-os por 3 e 6 dias seguidos.

Não é commum que um quadro carioca se locomova daqui parao Espírito Santo, Bahia ou Pernambuco, para a disputa de um sójogo.

Fazem-se, em “tournée”, 5 e 6 jogos, geralmente disputados aosdomingos, que demanda 5 a 6 semanas, tempo precioso de queum amador não pode dispor.”(p.13) 177 (Grifos nossos)

Desta forma, a Revista Tricolor relatava e lamentava a dificuldade

de manter um campeonato interestadual, queixando-se do tempo que os

jogadores deveriam dispor para cumprir a agenda de jogos. Em primeiro

177 - Os jogos nocturnos e sua conveniência – Os jogos in ternacionaes e ocampeonato brasi leiro . In : Tricolor - Revista Sport iva do Fluminense Foot-BallClub . (1929). nº14, jan. p .13

188

plano, as lamentações referem-se ao tempo perdido, mas a própria narrativa

da revista deixou clara a dificuldade de se terem equipes representativas

para eventos interestaduais apenas com jogadores amadores. Em outras

palavras, apenas os jogadores que não precisam trabalhar podem compor

as equipes para estas ‘tournées’.

Esta lamentação dos responsáveis pela matéria, não assinada,

mesmo sem julgar suas intenções, nos remete a analisar o processo da

relação do atleta com o clube. O tempo disponível para a viagem retirava o

jogador dos seus compromissos profissionais.178 Parece que, devido ao

apelo do amadorismo pela narrativa acima e aqui reproduzida “tempo

precioso de que um amador não pode dispor”, poderíamos imaginar que

nem sempre as equipes viajavam com seus melhores jogadores, uma vez

que, dependendo do seu trabalho, poderiam não dispor de tempo para as

viagens.

Talvez, pudéssemos começar a perceber uma pista da necessidade

dos principais clubes de ter em suas equipes jogadores disponíveis, sem os

vínculos de trabalho rígidos. Jogadores que fossem contratados por

empresas que possibilitassem a sua ausência do trabalho por alguns dias,

para honrar seu compromisso de “amador”, representando o clube. Parece-

nos um ponto fundamental refletir se o empresário, naquela época, estaria

disposto a flexibilizar o tempo de trabalho para que o seu empregado,

jogador amador, pudesse cumprir o cronograma de viagem de jogos do seu

clube.

178 - A nova ‘el i te’ geralmente trabalhava em seus próprios negócios ou namáquina es ta ta l .

189

Esta mudança no perfil do jogador já se fazia necessária para que

pudesse levar a frente o processo de esportivização que pretendiam os

dirigentes. Parece que não fazia sentido ter uma representação esportiva, se

ela não fosse capaz de marcar de forma heróica as façanhas dos clubes e

de seus associados. O processo de popularização do esporte, mesmo para

os torcedores, provocou as mudanças singulares na relação do jogador com

o clube. As cobranças externas e a necessidade de performance para

suplantar os clubes adversários conduziram alguns dos dirigentes a

repensarem o papel e a importância do jogador diante das aspirações dos

clubes. Não mais poderia valorizar o esporte apenas como um espaço de

confraternização social dos associados endinheirados. Alguns dirigentes

rapidamente perceberam as necessidades de mudanças. Outros, no

entanto, lutavam contra ela, acreditando ou invocando para o esporte uma

moralidade romântica que já não era mais propagada e cultivada por parte

de alguns clubes, dirigentes e jogadores, principalmente para aqueles

jogadores que buscam no futebol a possibilidade de ascensão social e/ou

sobrevivência.

Outro benefício apresentado pela reportagem da Revista Tricolor

quanto à iluminação dos estádios estava relacionado aos lucros obtidos pela

Confederação Brasileira de Desportos (CBD) ao realizar os jogos em

horários noturnos.

190

“A C.B.D. gastou, na disputa do último campeonato, cerca de 220contos de reis, com uma receita de 300 contos que lhe permittiuquase 100 contos de lucro; sem calcular o prejuízo, evitado aosjogadores, afastados de seus affazeres, por menos dias, ella teriaconseguido um bem maior lucro, se houvesse feito realizar jogosnocturnos.” (p.13) (grifos nossos)

Vejamos que a intenção da matéria era sugerir a iluminação dos

campos de futebol para a realização dos jogos à noite, diminuindo o tempo

em que os clubes deveriam ficar viajando em turnês, conforme a citação da

página anterior. Desta forma, reduziriam também as despesas de

permanência da equipe visitante em hotéis com valores elevados, bem como

as despesas com diárias dos jogadores. Todavia, a matéria vem reforçar o

tema da indisponibilidade dos jogadores amadores frente aos compromissos

dos clubes, conforme esclarece o recorte a seguir: “Se houvesse feito

realizar alguns desses jogos á noite, no meio da semana, a despesa se teria

reduzido, sem diminuir a receita e sem prejudicar os interesses de cada

amador afastado tantos dias de seu trabalho.”179 (grifos nossos)

Percebe-se, por trás das lamentações da matéria “os jogos

nocturnos e sua conveniência”, que já havia se estabelecido uma

comparação (direta ou indireta, proposital ou ingênua) da necessidade de se

repensar o mecanismo de sustentação esportiva, não somente dos clubes,

mas também da CBD. Demonstrava o esporte, já naquele instante, ser

necessária a readaptação à nova realidade, isto é, como combinar o

179 - Os jogos nocturnos e sua conveniência – Os jogos in ternacionaes e ocampeonato brasi leiro . In : Tricolor - Revista Sport iva do Fluminense Foot-BallClub . (1929). nº14, jan. p .13

191

desenvolvimento do esporte com a profissionalização do jogador. Nesta

perspectiva, estava a dúvida: como gerenciar um campeonato interestadual

mantendo o jogador como um simples amante esportivo? A justificativa da

distância entre os estados e o tempo disponível para a realização dos

encontros alertava para uma rotina que não poderia durar por muito tempo, e

o jornal questionava o modelo e a estrutura do momento. Ou se mudava a

estrutura ou não seriam viáveis alguns eventos esportivos.

O articulista justificava ainda como vantagem a iluminação dos

campos como meio de facilitar “os treinos de seus amadores, geralmente

rapazes que labutam de 8 e 9 às 17 e 18 horas,...” (p.14) (grifos nossos)

Nota-se que, se por um lado, os argumentos alertavam para a

necessidade de mudança, devido aos novos perfis dos eventos e a

fragilidade da condição esportiva da época (ano de 1929), por outro,

observa-se que os dirigentes tentavam manter o futebol como espaço de

distinção social, o futebol dominado e gerenciado por um grupo de

privilegiados.

“É caso resolvido a implantação do Football profissional”. Esta é a

manchete da primeira página do Jornal do Fluminense Football Club (F.F.C.)

do dia 4 de setembro de 1932.180 A matéria ressaltava a importância da

profissionalização, argumentando a queda da eficiência dos jogadores

brasileiros. Naquele momento, o Fluminense se colocava vangloriante de

seus feitos como iniciador do movimento pró-profissionalismo. Nesta mesma

edição, trouxe parte da notícia, que foi vinculada no Jornal do Commércio,

180 - Jornal do Fluminense Footbal l Club , 04 de set /1932. n .47. Todavia, o regimeprof iss ional só v ir ia a ser implantado no ano seguinte ,como veremos a frente .

192

por ocasião da reunião dos dirigentes esportivos cariocas, a favor da

implantação do novo regime:

“Nós mesmos, em differentes tópicos temos chamado a attençãodos nossos grandes clubs para a responsabilidade que lhes cabenessa queda da efficiencia de nossos footballers.

Essa advertencia, de que nós nos faziamos simplesintermerdiarios, porque todos sentiam, como sentem, ophenomeno, foi meditada e, afinal, concretizada pelo Fluminensee pelo Vasco da Gama na iniciativa de se criar uma entidadecapaz de estabelecer entre os clubs e athletas a necessariareciprocidade de direitos e deveres.” (p.1)

O jornal relatara que, após expor em síntese o seu pensamento, o

presidente do Fluminense, Dr. Arnaldo Guinle solicitou que os demais

representantes se explanassem sobre a consonância da criação da entidade

de jogadores profissionais. Entretanto, parece que a proposta não conseguiu

assegurar a coesão de todos, conforme coloca o Jornal do Commercio:

“A maioria dos presentes deu-nos a impressão de que vacillavaquanto a opportunidade da implantação do profissionalismo, quetodos os convencionaes, aliás, acceitavam em princípio, tendo-semanifestado o presidente do América, do Flamengo, do Bangu, doBotafogo e, por fim, o Dr. Arnaldo Guinle.”181 (p.12)

Embora a manchete inicial do jornal do F.F.C. tenha colocado como

certa a implantação do novo regime, a impressão que o Jornal do

Commércio deixa é de que não havia um consenso entre todos os membros.

181 - Jornal do Commercio , 29 de ago/1932.

193

Figura 03 – Jornal do Fluminense Football Club, 4 de set/1932, anunciando osurgimento de uma liga para os profissionais

O jornal do F.F.C. trás uma coluna denominada “O profissionalismo

– Contradição e ingratidão”, onde “J.K.”182 destacou a dificuldade dos

grandes clubes de implantarem algumas modificações no gerenciamento do

182 - JK é o responsável pela matér ia . Jornal do Fluminense Football Club , 04 desetembro de 1932. Em nossos levantamentos, não conseguimos identi f icar quem éo cronista JK.

194

futebol, devido à barreira apresentada por alguns clubes considerados

pequenos. O articulista acusa estes pequenos clubes de comprometerem as

mudanças proposta pelos grandes clubes. Nota-se como a idéia da ameaça

(Hirschman, 1992) surge nesta narrativa do Sr. J. K:

“É tempo de, uma vez por todas, pôr-se um paradeiro áverdadeira tutela que os pequenos clubs exercem, de facto, sobreos grandes.

Estes não podem tomar nenhuma medida de ordem particular,que acautele os seus interesses, sem, preliminarmente, indagarse ella collide com os interesses dos que desejam e ainda nãopuderam se tornar grandes.

Estamos num regime de facto, em que, para dar um passo nasua vida íntima, os clubes grandes, os clubs organizados, de vidaindependente, têm de pedir licença áquelles que só conseguemviver á sombra ou á custa do seu tutelado. É a inversão da ordemnatural das coisas. É o emancipado sujeitando-se ao pátrio poderde pessoa incapaz, situação absurda e aberrante, tolerada comose fosse o resultado de um pacto gerado de qualquer princípiolegal.

Ainda agora, os pequeno clubs se agitam e “reclamam” contra adecisão dos grandes clubs.” (p.6)

Meio a todas estas situações, o Sr. Rivadávia Correa Meyer,

Presidente da AMEA, em entrevista a um jornal da época, tece uma série de

argumentos contraditórios combatendo o profissionalismo. O Jornal do

F.F.C, do dia 11 de setembro de 1932183, reproduz partes desta entrevista

com os seus argumentos, criticando-os e demonstrando pesar pela atitude

do Sr. Presidente.

“Em que pese a autoridade official do presidente da Amea, aentrevista concedida a um matutino pelo illustre Dr. Rivadária

183 - Jornal do Fluminense Footbal l Club , 11 de set /1932.

195

Corrêa Meyer sobre o profissionalismo causou a maior decepção,tanto pela falta de serenidade na exposição dos conceitos, comono desconhecimento, que SS. revela de assumptos inherentes ávida intima dos clubs superintendidos pela entidade que o temcomo presidente. E poderíamos acrescentar: pela maneira rude einjusta por que trata a maioria dos presidentes dos nossosgrandes clubs.

SS não estudou a evolução do football em nenhum paiz domundo, para fundamentar a sua formal condenação.” (p.7)

Este tom de crítica apresentado pelo jornal do F.F.C. sobre a

entrevista do Sr. Rivadavia demonstra a tensão da implantação no novo

regime. O que se questionava era o fato de Rivadavia ser o representante

dos principais clubes e adotar um discurso contrário aos princípios

fomentados por alguns dos clubes que o havia elegido para representá-los.

Nitidamente existia uma tensão dentro da AMEA. O Presidente demonstrava

ser contrário à mudança do regime, o que causava a indignação dos

dirigentes tricolores. Incomodava a estes dirigentes o fato de que as críticas

realizadas pelo Presidente poderiam comprometer o processo de transição,

como veremos posteriormente. Em uma de suas falas, Rivadavia se mostra

taxativo, quando apresentou o seguinte argumento:

“Sou radicalmente contra a implantação do profissionalismo emnossa terra, por julgal-a um erro e erro grande”. (...) “Se assim é,teremos que convir que o profissionalismo a ser implantado,relegará para plano secundário a educação physica dosbrasileiros.” (p.7)

Observa-se que o Rivadávia elaborou suas argumentações

sustentadas na corrosão dos valores que o esporte deveria representar. Isto

196

é, a mudança poderia provocar um efeito perverso ao contrário do que se

esperava os pro-profissionalistas (Hirschman, 1992). Era um discurso que

interessava aos dirigentes que lutavam pela manutenção do amadorismo.

Por que o Sr. Rivadávia se posicionara contra o interesse de seus

partidários? O contra-argumento do jornal do F.F.C. tentava demonstrar

quais eram as reais preocupações do Sr. Presidente, sugerindo que outros

propósitos estariam camufladas nas suas intenções:

“O exemplo das grandes nações do mundo, em que háprofissionalismo, não no football apenas, mas em diversos ramosesportivos, prova a falsidade dessa these, apresentando osmelhores resultados em matéria de cultura physica, exhibidos,ainda recentemente, nos Jogos Olympicos, nos quaes o Brasilfigurou em último lugar.(...)

A cultura physica assenta essencialmente nos esportesathleticos propriamente ditos. Estes, entre nós, ainda precisampara se desenvolverem, da “renda” do football. Essa é que é averdade que o presidente não quiz por em evidência, antesprocurou esconder...” (p.7)

O futebol era a alternativa financeira para o desenvolvimento de

outros segmentos esportivos e, portanto, caso admitisse a

profissionalização, como seriam gerenciadas as outras modalidades. Nota-

se que a argumentação colocava que o profissionalismo do futebol

ameaçava o desenvolvimento dos outros esportes.

Em outro momento, o Sr. Rivadávia demonstra a preocupação com

as dívidas de alguns clubes, acreditando que o regime profissional iria

complicar ainda mais a condição financeira destes, seria uma ameaça, pois

não havia dinheiro para sustentar as despesas provenientes do

profissionalismo, conforme argumentara:

197

“Realmente, se com o amadorismo, os clubs do Rio vivemendividados, o que será com o profissionalismo que acarretadespesas immensas?

O Fluminense, o Vasco e o Botafogo, possuidores de dívidasnão pequenas, se não as resgatarem sob o regime doamadorismo, como vão solve-las sob o do profissionalismo, fonteperenne de gastos e despesas?” (p.7)

Entre os vários combatentes ao profissionalismo, posicionava o Sr.

Marcos de Mendonça, ex-jogador jogador do Fluminense e um dos mais

prestigiados sportsmen carioca. O jornal do F.F.C184 veicula uma matéria

onde Marco Mendonça apresenta seus argumentos favoráveis à

manutenção do regime amador no esporte. De acordo com Marcos, a

mudança de regime seria uma catástrofe de ordem moral, onde

“pateticamente” compara o profissionalismo esportivo ao vício do cigarro:

“Mas há para a mocidade de agora um perigo maior, ameaçandode um mal mais grave aquelles que não tem em si a energia e aserenidade necessária para enfrental-o Refiro-me à desgraçadaavalanche que ameaça os alicerces moraes de todas asorganizações esportivas do mundo: o profissionalismo, resultanteda substituição gradativa dos princípios idealistas pelos utilitaristasentre as classes moças das sociedades universaes.” (p.1)

Marcos Mendonça finaliza seu texto destilando toda sua inquietude

frente à nova possibilidade de surgimento do jogador profissional. Na

tentativa de frear a mudança, conclama a todos a resistirem a esta

alteração.

184 - Jornal do Fluminense Footbal l Club , 31 de ju l /1932.

198

“É indiscutivelmente tentador para qualquer athleta moço figurarnas equipes representativas de nossos clubs de nossas cidades,ou de nosso paiz, mas eu os concito a cerrarem fileiras epropaganda intensa em prol do puro amadorismo, certo de que,dentro de pouco tempo, terão voltado à época em que o esporteera praticado a bem do corpo e do espírito, trazendo assim aosseus adeptos todos os benefícios que decorrem de uma vidaphysica e moralmente sadia.” (p.1)

Observemos que para Marcos Mendonça o profissionalismo era

uma futilidade e que não teria conseqüências maiores, pois tudo retornaria

ao normal em pouco tempo.

A matéria é a expressão da resistência interna que os dirigentes

pró-profissinalistas tricolores encontravam em seu próprio clube na tentativa

de se promover às mudanças na estrutura administrativa do futebol carioca

e nacional. A princípio, poderíamos considerar as opiniões do Sr. Marcos de

Mendonça como um fato isolado dentro do quadro de associados, mas

certamente uma idéia representativa, visto que sua matéria ocupara a

primeira página do jornal do clube.

Às vésperas da reunião destinada a implantar o novo regime, o Sr.

J. K publica185 um texto onde insinua que os fundadores da AMEA teriam

articulado contra o profissionalismo:

“Com effeito, a constituição do Conselho de Fundadores daentidade carioca deve ter tido em mira congregar os grandesclubs, numa assembléia à parte, para melhor se acautelaremcontra os males que acarretaram a decadência da antiga LigaMetrolopitana; para pugnarem pelos interesses communs e,

185 - Jornal do Fluminense Footbal l Club , 22 de jan/1933.

199

assim, unidos e fortalecidos, desempenharem a alta missão demanter, intacta e prestigiada, a Associação que fundaram.” (p.2)

A luta pelo poder de gerenciamento do futebol carioca permanecia

presente na AMEA. Alguns dirigentes entendiam que a mudança do regime

poderia representar perda de prestígios perante os demais clubes. E perder

o prestígio seria uma ameaça que não poderiam admitir. Nesta perspectiva,

logicamente, dentro da instituição haveria vozes descontentes.

O Sr. J. K. continuava a apresentar argumentos favoráveis ao novo

regime:

“Com a iniciativa tomada pelo Fluminense, de moralizar o footballpela implantação do profissionalismo real e declarado, emsubstituição a um amadorismo mascarado, que nos envergonhae avilta, os fundadores da Amea se dividiram e a maioria, se nãoautorizou a campanha que se passou a desenvolver contra nós eos nossos mais acatados consocios, pelo menos recolheram-se aum significativo mutismo, quebrando apenas depois de decorridosquasi cinco mezes da data da reunião, em que todos acceitaramem princípio a nova idea.” (p.2) (grifos nossos)

Segundo o articulista, o objetivo dos contrários à profissionalização

era criar uma atmosfera de conflito, provocando um descrédito das forças

que se articulavam para a moralização do futebol e do Fluminense, clube

que assumira a frente de luta:

“Allega-se, à última hora, que a implantação do profissionalismono Distrito Federal é inconveniente aos interesses e as tradiçõesdos clubs de football e do esporte carioca.

Esta confissão vale por toda a campanha.De facto, não convém a certos clubs quebrar a tradição do

amadorismo “marrom” ou do profissionalismo “cor de rosa” (como

200

queiram), porque seria attentar contra os seus inconfessáveisinteresses.” (p.2)

Waldo Barvél, em matéria denominada O Profissionalismo,

publicada na mesma edição do jornal do F.F.C.186, posicionou-se a favor da

moralização do futebol, argumentando sobre as mazelas atenuantes

naquele período:

“Já as grandes assistências não mais se viam por melhores quefossem os jogos e suas equipes; o padrão de jogo viu-sesacrificado pela paixão e deslealdade dos que o praticavam: osseus orientadores afastavam-se de suas obrigações; a “qualidade”de torcedores diminuía assustadoramente, tirando o brilho e acordialidade que havia dantes; appareceram o ódio, o despeito, aindisciplina, a desorganização, o distúrbio, o vício, a corrupção,enfim, a desmoralisação!... Esse, o estado actual do nossofootball, e dahi para peior, se não vencer a idéia salvadora doprofissionalismo, agora o melhor meio de se expurgar as ‘pragas”e de salvar-se o pouco que resta do amadorismo.” (p.2)

Observemos a idéia de conciliação proposta pelo dirigente.

Pretendia-se a profissionalização com mecanismo de salvação do futebol

carioca e o próprio amadorismo, expulsando as pragas que estavam

disseminadas no seu meio. O que significa salvar um pouco do

amadorismo? Talvez aqui o significado seja o do amor ao esporte. Sabe-se

que o amor não parece conviver bem com a mentira, pelo menos em termos

do ideal.

A idéia do profissionalismo já vinha se arrastando fortemente entre

os associados do Fluminense. Entre defensores e contrários às idéias,

186 - Jornal do Fluminense Footbal l Club , 22 de jan/1933.

201

muitos foram os embates produzidos. Entretanto, a possibilidade de

discussão do tema estava eminente desde o final dos anos 20. O

Fluminense, que, na maioria das vezes, se posicionava defendendo a

mudança parecia que encontrava resistências internas, ou ingenuamente

deixava que seus veículos informativos apresentassem argumentos que

fragilizavam sua empreitada em defesa à oficialização do

profissionalismo.187

Esse tipo de embate estava nas páginas do jornal do Fluminense.

Por exemplo, em 1928, uma matéria no jornal enfatizava que seu ex-jogador

Harry Welfare188 jogou pelo Fluminense sob a condição de amador, já que

pairavam denúncias ou comentários dos clubes rivais de que esse jogador

era profissional.189 Na mesma matéria em que Welfare era considerado

187 - A Revista Sport iva Tricolor nº 5 de 1928 trouxe uma matér ia que colocava emcheque o amadorismo e prof iss ional ismo no tênis . Através do l ivro “Confissões deuma jogadora de tennis” , escr i to pela espanhola Alvarez, e de um episódio com atenis ta Lenglen, in t i tu lado “O caso de Suzanne Lenglen”, a revis ta trouxe à tona adiscussão. Enquanto Alvarez apontava em suas confissões que o “tennis não ésempre tão amador como parece” (p.18) Lenglen veio requerer junto à AssociaçãoFrancesa de Tennis a permissão para vol tar a a tuar como amadora, pois , segundoela , as somas que ter ia recebido pela famosa tornée, na condição de prof iss ional ,não a recompensara dos prejuízos de ordem moral que ter ia sofr ido, em relação aoprest íg io , g lór ias e sat isfações que teve como amadora. Observemos que a matér iacolocava em confronto os prejuízos morais e as somas recebidas pela tenista .Através da própr ia argumentação de Lenglen, percebe-se que, para assimilar osprejuízos morais , os benef íc ios f inanceiros dever iam ter s ido sat is fa tór ios , is to é,se t ivesse conseguido bons prêmios na condição profiss ional , ta lvez suaslamentações não fossem as mesmas. Interessante observar que, embora oFluminense t ivesse lu tando pelo prof iss ional ismo no futebol , mesmo assim abr iuespaço em seu veículo jornal ís t ico par t icular para quest ioná- lo em outramodal idade. Como entender es ta dubial idade dos edi tores dos dir igentest r icolores? Quais ser iam suas in tenções em denunciar o prof iss ional ismo no tênis ,já que levantavam fervorosamente a bandeira do profiss ional ismo no futebol?

188 - Revis ta Spor t iva Tr icolor . Fluminense Footbal l Club . n º 7. (p .6) . 1928

189 - O clube apresentou um ofício que ter ia recebido da Liga Metropol i tana,quest ionando sobre a dúvida que pairava sobre a condição de Welfare, bem comooutro of íc io resposta enviado pelo Liverpool Footbal l Club , a pedido do próprioclube, onde o clube inglês destaca a idoneidade do jogador.

202

amador no Fluminense, surge a denúncia acerca do seu vínculo com o clube

Cruzmaltino:

“Agora que Welfare é de facto um profissional, agora que oamador de outr’ora se fez ‘entraineur’ do Vasco, apresentaremosaos nossos leitores algumas provas, segundo as quaes podemose temos o direito de affirmar de voz bem alta e de cabeça erguida:“Sob a bandeira do Fluminense Harry Welfare foi sempre umamador.” (p.6)

Parece que a tentativa do Fluminense, refletida nas páginas de sua

revista e jornal, antes de prestar a homenagem ao ex-jogador, era denunciar

em ‘tom enciumado’ que o Vasco estava contrariando os princípios

amadores.

Essas cartas, que acima reproduzimos, seriam o bastante parademonstrar que o Fluminense só acceitou Harry Welfare depoisde decididamente provada a sua qualidade de amador. E ahi temos leitores a prova de como age o Fluminense. O nosso club éantes de tudo, respeitador da sociedade que o freqüenta e clubde bons amadores, e esta homenagem que hoje prestamos aWelfare, elle a merece como benemérito do Fluminense ondeconta um admirador em cada consocio.” (p.6) (grifos nossos)

Portanto, entre denúncias e lamentos, nota-se que o embate já se

fazia freqüente no final da década de 20 e início dos anos 30. Parece que as

narrativas acerca do envolvimento de Welfere com os clubes por onde

passou ajudaram a acentuar o debate. A condição de Welfere bem servia

para alimentar o debate entre amadorismo e profissionalismo no futebol

carioca.

203

As argumentações utilizadas pareciam a preparação do terreno para

a mudança. Todavia, tais mudanças gerariam o descontentamento de alguns

que lutariam para manter firmes suas convicções esportivas. Apesar dos

percalços, o profissionalismo chegou e novas fronteiras foram abertas para o

futebol e demais esportes no Brasil, a partir deste marco.

No capítulo seguinte, serão analisados o profissionalismo brasileiro

e os discursos originados a partir desta nova perspectiva.

Capítulo IXO profissionalismo do futebol brasileiro

O profissionalismo foi oficializado em alguns países europeus ainda

no final do século XIX. Esse processo somente migrou para os países sul-

americanos a partir da 3ª décadas do século XX, quase 50 anos depois,

conforme Quadro 01. Com isso, criou-se um mercado de jogadores. Os

principais clubes que aderiram ao regime profissional buscaram reforçar

suas equipes com jogadores estrangeiros. Os sul-americanos passaram a

ser requisitados para os principais clubes europeus. Leite Lopes (1999)190

190 - Lei te Lopes, José Sérgio . (1999) . Considerações em torno das transformaçõesdo prof iss ional ismo no futebol a par t i r da observação da Copa de 1998. In: LúciaL. Oliveira , Marieta de M. Ferreira & Celso Castro. Estudos his tór icos: Espor te elazer . Rio de Janeiro. Fundação Getúl io Vargas. vol 13, n .23. p .175-191p.Segundo Lei te Lopes, os clubes i ta l ianos, durante o regime de Mussol in i , queestava se preparando para sediar a Copa de 1934, foram incent ivados afor ta lecerem suas equipes de futebol e por isso passaram a contratar jogadoressul-americanos de or igem i ta l iana, no Brasi l , Argent ina e Uruguai.

204

atribui que a profissionalização do futebol brasileiro teria sido impulsionada

pela circulação internacional de jogadores no início dos anos 30, devido às

primeiras copas do mundo.

Quadro 01 – Ano de implantação do regime profissional em algunspaíses

PaísesEuropeus

DataOficial

PaísesSul-americanos

DataOficial

Inglaterra 1885 Argentina 1931Escócia 1893 Uruguai 1932Áustria 1924 Brasil 1933Hungria 1924Tchescoslovaquia 1925França 1932Itália 191 1898

Fonte: Formado a partir da obra de Murray, Bill. (2000) Uma história de futebol. São Paulo. Hedra.

No Brasil, bem como em outros países vizinhos, ainda não existia

uma lei ou algum mecanismo que determinasse o compromisso de vínculo

do jogador com os clubes. De fato, sob o regime amador, o controle do

vínculo não fazia sentido. Desta forma, alguns jogadores sentiram-se

tentados pelas propostas dos europeus em se tornarem profissionais, pois

receberiam um salário mais vantajoso e poderiam livrar-se dos

moralizadores do esporte nacional. Tal situação teria ocasionado o

desfalque dos principais clubes brasileiros na época, pois parte dos seus

jogadores de destaque percebeu que a transferência para o futebol europeu

ou sul-americano era a solução para suas realizações pessoais.192 É bem

191 - S i te of ic ial da FIGC – Federazione I tal iana Giuoco Cálcio. www.f igc. i t

192 - Fausto e Jaguaré do Vasco da Gama foram para o Barcelona da Espanha;Ministr inho, Demóstenes e Fernando do Fluminense foram para a I tá l ia ; Para a

205

verdade que o regime amador se encontrava fragilizado, pois, como já dito,

muitos jogadores viviam do futebol e escondiam-se na fachada do

amadorismo, conforme afirmou Corrêa (1933):

“O meio futebolístico estava, positivamente corrompido. Fazeresporte disinteressadamente, era um mito. O futebol foi invadidopelo profissionalismo, mas por um profissionalismo canalha,usurpador, trapaceiro, ladrão, que só dava dinheiro aos dirigentese explorava os jogadores com gorgetas.” (p.26-27) 193

Aquino (2002) aponta que, somente em 1931, cerca de 30

jogadores foram para clubes italianos. Comparado ao êxodo da atualidade,

este número parece insignificante, se pensarmos em termos absolutos, mas

gerou tensões e incômodos entre os dirigentes nacionais e a imprensa. O

incômodo talvez se desse ao fato de tais jogadores pertencerem aos clubes

de elite ou interessarem a esses mesmos clubes, já que este número

naquele período era irrisório, se pensarmos que na década de 10 já havia

um número superior a duzentos clubes (Pereira, 2000).

Observa-se que, na atualidade, temos um discurso da mídia e dos

Argent ina foram: Tuf i , Vanim, Ramon, Teixeira e Petroni lho e para o Uruguai,Congo, Magno Mart ins (Caldas, 1990) .

193 - Corrêa apresenta dois episódios ocorr idos no Rio de Janeiro nas pr imeirasdécadas do século XX, denunciando a fal ta de compromisso dos amadores:(1) “No Rio, um domingo, o centro médio de um clube da zona nor te , só porquenão recebeu 200$000 que havia pedido à tesourar ia , abandonou o campo na horaprecisa de enfrentar o adversár io, o Andaraí , pulando o muro do clube, e vest idocom a camisa do seu quadro foi cavar um jogo suburbano.”(2) “Os casos de Esquerdinha e Surica chegaram as raias do semvergonhismo noCarioca F. C. , da es trada D. Castor ina, principalmente quando esses e lementosforam com outros companheiros mandados a Niterói , para passear ,proposi tadamente, no dia do jogo, que o clube encarnado e branco devia ter com oVasco da Gama para disputa da vaga na 1º d ivisão da Metro . O dire i tor PauloCannogeas, que hoje se diz um dos ‘puros amadoris tas’ esteve envolvido nasujeira , onde o quadro car ioca fo i subornado pelo dinheiro do Vasco da Gama.”(p.25)

206

dirigentes esportivos que se assemelha à tensão gerada pela migração dos

jogadores naquela época. O Brasil é considerado, “e cantado com orgulho e

prosa”, como um grande celeiro de jogadores, onde a matéria-prima parece

perene, jorrando de cada canto. A imprensa freqüentemente exalta essa

capacidade brasileira. Entretanto, os clubes nacionais não conseguem firmar

contratos que sejam capazes de manter os grandes jogadores, que acabam

sendo contratados pelos principais centros de futebol do mundo, muitas

vezes até mesmo países sem tradições, considerados periféricos no cenário

do futebol mundial. Todavia, o discurso parece ignorar que o fator

econômico força essa rápida transferência dos jovens jogadores que

despontam periodicamente.194

Apesar de os dirigentes e parte dos jornalistas defenderem a

manutenção do amadorismo naquela época, por que lamentarem as saídas

destes supostos profissionais? Não seria esta uma boa saída para manter a

“pureza” do espírito amador? A ida desses jogadores para outros países

deveria ser um alívio, uma vez que não precisariam mais promover por aqui

194 - A Revis ta Lance A+ apresentou uma repor tagem acerca de um jovem jogadorAlexandre Si lva de Souza (Dudu Cearense) , de 20 anos, que se desponta comouma promessa do futebol brasi le iro. Após uma exibição elogiável pela crônicaespor t iva brasi le ira e in ternacional , devido ao seu desempenho no mundial Sub-20e Pré-Olímpico 2004, fo i contratado pela equipe japonesa Kashiwa Reysol . Atransferência para o Japão dif icul tar ia a sua observação pela comissão técnicabrasi le ira , podendo deixar de se lembrado nas convocações. Esta possibi l idade deesquecimento pela Comissão técnica brasi le ira levou o jornal is ta BernardoFerreira, responsável pela matér ia , a quest ioná- lo sobre este fato, onde coloca queo jogador ter ia af irmado que dinheiro está acima da Seleção . Vejamos como foiconstruída a questão:Bernardo Ferreira perguntou- lhe:A sua vida f inanceira es tá acima da Seleção?Respondeu Dudu:- Posso dizer que s im. Minha vida f inanceira vai melhorar .(Revis ta Lance+, 14 a 20 de fevereiro de 2004, Ano 4, nº 181. (12-15p) (gr i fosnossos)

207

a ‘caça às bruxas’, já que os próprios jogadores que se interessavam pelo

profissionalismo abandonavam os clubes. Todavia, os dirigentes e jornalistas

ficaram inquietos.

Observa-se que, apesar de seguirem o modelo inglês no campo

esportivo, naquele momento, os dirigentes brasileiros não queriam seguir os

mesmos passos já implantados por lá, desde 1885, quando o futebol inglês

passou a conviver com ligas amadoras e profissionais. Os dirigentes

brasileiros defendiam a unidade em torno do amadorismo.

A saída de jogadores em busca de salários e/ou prestígio

internacional poderia representar uma morte simbólica da constituição do

esporte brasileiro. O jogador se vendia para os clubes europeus e latinos,

todavia, ainda não havia os controles internacionais que hoje legalizam as

transações, assegurando direitos e deveres das partes. A idéia da defesa

dos interesses nacionais mesmo no campo esportivo parecia estar presente

entre os argumentos de defesa do amadorismo.

Naquele período, os nossos vizinhos, argentinos e uruguaios,

também perderam vários de seus jogadores, devido a esta mesma

conjuntura, todavia, antes do Brasil, implantaram o regime profissional na

modalidade, amenizando o êxodo dos principais jogadores, inclusive abrindo

espaço para vários brasileiros que assinaram vantajosos contratos com

clubes uruguaios e argentinos (Aquino, 2002). Os jornais de época

anunciavam várias propostas de contratos dos jogadores brasileiros pelos

clubes argentinos e uruguaios, como, por exemplo, noticiou o Jornal dos

Sports “Dentro de dez dias Domingos partirá para ingressar no

208

profissionalismo uruguaio” (Jornal dos Sports, 10 de jan/1933, p.1). As

vitórias conquistadas sobre os países vizinhos ampliaram o interesse deles

pelos jogadores brasileiros. Observemos que o ponto central parece ser o

orgulho do Estado nacional. A rivalidade entre o Brasil e os países vizinhos

já está sedimentada no futebol desde os anos de 1910 e 1920 com os

campeonatos sul-americanos. Portanto, perder os ídolos poderia não ser o

fato mais agravante, mas tê-los nos campos rivais provavelmente gerava um

conflito interno de comprometimento aos ideais patrióticos, o qual o esporte

estava ajudando a solidificar.

Nos anos iniciais da década de 30, o Brasil passava por intensas

transformações políticas. Neste período, o presidente Washington Luís foi

destituído e o país passou a ser comandado pelos militares, sendo instituído

o governo provisório de Getúlio Vargas, iniciando um período denominado

de segunda República (Freire, 1971).195

Foi neste período de turbulência nacional que se travaram as

principais tensões entre os pro-profissionalistas e os que queriam manter o

perfil amador no esporte.

No programa apresentado pelo presidente Getúlio Vargas

(Programa de Reconstrução Nacional), foram implantadas as novas

diretrizes para o desenvolvimento do país, onde, segundo Caldas (1990)196,

195 - Freire, Gilber to (1971). Novo mundo nos trópicos . São Paulo: Cia EditoraNacional .

196 - Calda (1990), na par te VI o seu l ivro, faz um passeio pela his tór ia pol í t icadeste período, onde relaciona o envolvimento do poder pol í t ico ao fu tebol.

209

o futebol passaria a se beneficiar, devido à instauração do Ministério do

Trabalho, que viria a impulsionar o profissionalismo no futebol brasileiro.

É oportuno destacar que, as forças que se opunham, no tocante ao

amadorismo e profissionalismo, naquele período estavam representadas nos

principais jornais da época, 197 como veremos a seguir nas próximas seções,

as tensões e as batalhas travadas na imprensa entre os defensores do

profissionalismo e aqueles que o julgavam uma perdição para rumo

esportivo brasileiro.

9.1 - Argumentos favoráveis e contrários ao profissionalismo até suainstauração

O Jornal do Brasil foi um dos mais aguerridos combatentes ao

regime profissional, principalmente durante os anos em que a tensão pela

mudança de regime adquiria força. Como arma, diariamente apresentava

uma coluna denominada ‘A praga do profissionalismo no football carioca’, a

qual, diante da eminente possibilidade de implantação do regime

profissional, durante o mês de janeiro, intensificou sua ação em combate ao

que chamou de praga.

197 - Um dos mais concei tuados defensores fo i o jornal is ta Mario Fi lho, queut i l izou o prest íg io do seu jornal e passou a mil i tar a favor da causa doprof iss ional ismo. Ver : Soares , Antonio Jorge. & Mourão, Ludmila . (1999). MárioFilho: Romancis ta , Jornal is ta e Inventor de Tradições no Esporte . In : Tavares ,Otávio & DaCosta , Lamart ine P. (Orgs.) . Estudos Olímpicos. Rio de Janeiro.Edi tora Gama Fi lho.

210

O Jornal do Brasil 198 havia acusado de arbitrária a determinação

dos dirigentes que pretendiam romper com os demais clubes e propunham

uma nova entidade, colocando ainda várias dúvidas sobre o rumo desta

nova liga. Vejamos o tom de agressividade no discurso do articulista acerca

do regulamento da ligas de profissionais que foi divulgado:

“Deve ter sido enorme a decepção dos poucos adeptos dessaterrível praga com que se ameaça o football carioca.

Quando se mostrara de modo claro e insophismavel aimpossibilidade prática da implantação do profissionalismo, ospoucos arautos dessa calamidade vinham a público affirmar queo caso era líquido e certo, porque a comissão dos três199 estavaultimando a regulamentação e por ella se veria com a suaadopção que nenhuma dúvida poderia suscitar, como se fossepossível arranjar-se dinheiro como simples regulamentos.

Pois bem, surgiu o tal estatuto e todos ficaram na mesma. Nãose sabe quanto vae ganhar o profissional mensalmente, quaesas gorgetas por jogo ou semanas, se há seguro contraaccidentes de jogo, se há contrato e por quanto tempo e quaes oscaus que sobre elles vão pesar, etc, etc.

O “malandro”, o “sabido” e os “casquinhas”, quando chegaremao fim de tal regulamento perguntarão logo onde está o dinheiro?

É de facto que estatuto não quer dizer dinheiro, mas tratar delle,e foi proclamado aos quatro ventos que tudo ficaria esclarecidoquando elle fosse conhecido.

Ora, nada mais escuro do que o regulamento que acaba de serpublicado. Nota-se apenas o mesmo espírito odioso de immoralmonopólio, ainda mais accentuado que o existente da AMEA,mas quanto a possibilidade materiais ficasse na mais completaignorância.

Felizmente para o Sport carioca essa calamidade não passaráda tentativa.” (p.17) (grifos nossos)

Observa-se que neste recorte acima aparecem evidências que

caracterizam a similaridade narrativa em relação as três teses desenvolvidas

198 - Jornal do Brasi l , 13 de jan/1933.

199 - Ary Franco, Antonio Avellar e Arnaldo Guinle

211

por Hirschman (1992): ameaça, futilidade e perversidade. Vejamos que o

articulista combatente ao regime profissionalista colocava que era explícita a

ameaça que a novo regime traria ao futebol carioca. Também o classificou

de terrível praga, e que todos ficaram na mesma (perversidade e futilidade).

Os grifos que fizemos no texto do articulista demonstram, em alguma

medida, como esta retórica tentava desarticular e colocar desconfiança

sobre a mudança. Segundo Hirschman esta estratégia retórica tornou-se

comum como manobra política dos conservadores em combate as idéias e

movimentos progressistas que surgiam em algumas sociedades.

Vejamos que, no final da matéria, o articulista afirmou que,

felizmente, o projeto não passaria de uma tentativa, acusando-o de imoral.

Esta argumentação se assemelha à tese da futilidade desenvolvida por

Hirschman.

No dia 14 de janeiro de 1993, o Jornal do Brasil trouxe em letras

destacadas a seguinte manchete: “A ridícula impressão que o regulamento

da liga de profissionaes causou em São Paulo”. Nesta matéria, apresentou

os argumentos do Sr. Paulo Várzea publicados na Revista Olympia do dia

anterior, quando acusava os três dirigentes (Ary Franco, Antonio Avellar e

Arnaldo Guinle) de terem cometido um grande equívoco.

“Li o tal projecto! Um bisonho ensaio, cheio de alejões, sobre oespírito do verdadeiro profissionalismo. Foi o parto não de umamontanha, mas de três montanhas, para no fim os três colossosexpelirem um monstrengo dessa natureza que mal se apresenta,logo revela asneira grossa e abundante ignorância de parte deseus elaboradores.

(...)

212

Enfim, esses erros podem ser sanados e devem ser sanados edevem ser perdoados, uma vez que reconheço ser das melhoresa intenção dos três autores do aleijadinho...” (p.16) 200

Observemos que a opinião do dirigente paulista auxiliava a cruzada

do jornal contra este regime que deveria ser combatido, utilizando também o

argumento da futilidade, similiares ao que argumentou Hirschman (1992) em

suas teses.

Os defensores do profissionalismo contra-argumentavam as críticas

afirmando que o objetivo da implantação do regime profissional era a

moralização, a legitimidade da atitude que todos admitiam às escondidas – a

remuneração dos jogadores, a qual parecia uma contravenção vergonhosa

(O Globo, 15 de janeiro/1933).

Entretanto, os argumentos dos combatentes inflamavam-se cada

vez mais, creditando a falta de dinheiro como fator responsável pelo

fracasso da tentativa de implantação do profissionalismo, conforme

argumentava o Jornal do Brasil:

“Os poucos arautos do profissionalismo, essa triste idea quetodo o bom sportman deve combater, como uma falta deargumentação lamentável levam a propalar que a implantaçãodessa praga e seu successo não soffrem a menor dúvida, com apublicação do projeto de tal Liga Carioca com se a solução desseabastardamento do sport dependesse apenas de leis e deregulamentos.

Foi propalado aos quatro ventos que a commissão estavaestudando os estatutos das ligas ingleza, italiana, hungara,argentina, hespanhola, uruguaia etc., para fazer um trabalhomonumental que não pudesse deixar dúvidas no espírito deninguém. De uma feita foi noticiado que o sistema preferido seriahúngaro. Agora dizem que é um mixto [sic] anglo-italiano, etc.

200 - Jornal do Brasi l , 14 de jan/1933.

213

Nada disso vem ao caso, por que o regulamento podia ser dafirma existente na Conchiachina, na Senegambia ou naGroelândia, se é que o football existe nessas regiões, o resultadoaqui no Rio seria o mesmo: fracasso.

Profissionalismo quer dizer dinheiro e é exatamente isso quefalta em nosso meio sportivo.

Só um visionário, um teimoso, um papalvo ou alguém ávido degorgetas, será capaz de dizer com convicção que uma liga deprofissionaes, mesmo com o immoral e indecoroso propósito domonopólio por parte dos clubs “fundadores” da Amea, será capazde dar algum lucro monetário.

Dizer-se como alguns dizem que a adoção do profissionalismoficou definitivamente resolvida só porque foram publicados oscelebres estatutos e pretender zombar da credulidade alheia.

(...)Os partidários dessa praga, para causar algum effeito entre os

que ainda não conhecem bem o assumpto, levam a espalhar quetodos os clubs ou a quasi totalidade estão a favor doprofissionalismo, quando a verdade é muito outra, uma vez que aquase totalidade é fracamente contrária a esse malefício. Dizer ocontrário é querer illudir-se e illudir o próximo.

Repetimos hoje o que escrevemos há dias: sobre prova, emcontrário, continuamos a affirmar que apenas o Fluminense e oAmérica poderão apoiar essa calamidade.” (p.17) 201

Observemos como o jornal tentava desarticular as mudanças,

acusando de ingênuos e tolos os que acreditassem no sucesso financeiro

que pretendiam os pró-profissinalistas. O jornal acusava ainda os clubes e

seus seguidores de tentarem fundamentar verdades não existentes. Para o

articulista não era verídico que quase todos os clubes estivessem a favor do

profissionalismo. Observemos, ainda, como o principal argumento recaia

sobre a condição financeira. Vejamos nessa narrativa acima do articulista do

Jornal do Brasil, como as teses descritas por Hirschman (1992) sustentam

os argumentos dos anti-profissionalistas. A idéia da calamidade colocava em

dúvidas os benefícios da mudança.

214

Aqueles que defendiam a oficialização do profissionalismo

apontavam e articulavam suas argumentações sobre o “falso amadorismo”

como atitude mais grave e mais perversa que a legalização, uma vez que

ninguém oficialmente ganhava nada, porém os mais famosos e requisitados

jogadores conseguiam uma série de regalias por intermédio do clube. Vimos

no Capítulo VII os argumentos do jogador Russinho acerca do pagamento

dos jogadores, que era camuflado em forma de auxílio-transporte, que

ocorria desde há muito tempo, conforme noticiou o jornal O Globo na época.

Observa-se que estavam em confronto também os principais jornais

naquele momento. O Globo e o Jornal dos Sports defendiam a adoção do

regime profissional, acreditando que somente com este novo regime seria

capaz de moralizar o esporte carioca, enquanto o Jornal do Brasil, Jornal do

Commércio e o Correio da Manhã se opunham, combatendo-o diariamente,

acreditando que o profissionalismo disvirtualizaria o espírito amador que

deveria ser respeitado. Este embate entre os jornais foi bastante intenso

neste período. Parece-nos estar em jogo o poder e a tentativa destes jornais

em se estabelecerem frente ao perfil esportivo da capital federal, bem como

o prestígio frente aos leitores.

Já se sabia de antemão que o Botafogo, o Flamengo e o São

Cristóvão se rebelariam contra o novo regime. Todavia, a posição do Vasco

ainda era cercada de mistério, da mesma forma que ocorrera no período da

implantação da AMEA, em 1924, quando o clube se posicionava de ambos

os lados. Pelas narrativas, parece que neste novo embate teria ocorrido o

201 - Jornal do Brasi l , 17 de jan/1933.

215

mesmo. A posição dos dirigentes vascaínos não estava clara, o que permitia

aos jornais utilizarem diferentes especulações sobre o posicionamento clube

português no conflito. Por exemplo, no dia 19 de janeiro, o Jornal o Brasil

relatou, em uma matéria denominada ‘O combate a praga do

profissionalismo’, que uma reunião teria ocorrido na sede do Botafogo, cujo

objetivo era o acerto das bases de uma ação conjunta contra a implantação

do profissionalismo. O jornal noticiara que o Vasco era um destes

participantes:

“Essa reunião transcorreu na maior cordialidade e harmonia devista, chegando todos os presentes a convicção de serimpraticável o profissionalismo no Rio de Janeiro.Nessa conformidade o Vasco, o Flamengo, o Botafogo e o SãoChristovão não apoiaram a creação de qualquer liga deprofissionais.” (p.16) 202

Os articulistas do Jornal do Brasil divulgaram, ainda, que as diretorias

do Botafogo e do Flamengo repudiavam e condenavam a implantação do

profissionalismo. Vejamos os argumentos acerca da determinação do

Flamengo:

“Confirmado o que temos noticiado sobre a attitude do Club deRegatas do Flamengo contrário a implantação do profissionalismono football carioca, podemos adeantar que a directoria do gloriosorubro-negro, em reunião extraordinária convocada especialmentepara tratar desse caso, resolveu, por unanimidade repellir oprofissionalismo, contrário as suas tradições e aos seus fins e sedesinteressar por completo da fundação de qualquer entidadepara a mercantilisação do popular sport.

Ficam, assim, terminadas de uma vez as expirações que vinhamsendo feitas em torno da possibilidade do campeão da terra e mar

202 - Jornal do Brasi l , 19 de jan/1933.

216

collaborar na triste idea do profissionalismo.” (p.16) 203 (grifosnossos)

Quanto ao Botafogo, o jornal divulgou uma notificação oficial

assinada pelo secretário geral Roberto Lyra, quando afirmou que o

compromisso do clube era fundamentado nas tradições esportivas:

“A directoria do Botafogo F. C., em reunião realizada no dia 17 docorrente, depois de examinar o projecto de implantação doprofissionalismo, no Distrito Federal, deliberou, por unanimidadede votos, manifetar-se irreductivelmente contrária áquellainiciativa, por julgal-a inconveniente aos interesses e as tradiçõesdo club e do sport carioca.” (p.16) 204

Todavia, as narrativas daquele período evidenciavam que não

somente no Vasco, mas em outros clubes, havia debates acerca da adesão

ao novo regime que estava para ser implantado. Mesmo no Flamengo, onde

os conselheiros reprovaram a mudança de regime, alguns dirigentes se

posicionavam favoravelmente ao profissionalismo, conforme podemos

perceber na carta de renúncia do Presidente do clube rubro-negro, que ficou

inconformado e ressentido pelo fato de o Flamengo não aderir ao novo

modelo, conforme noticiou o Jornal do Brasil, na reportagem intitulada “A

renúncia dos irmãos Segreto”:

“Cordeaes saudações.Em virtudes da situação embaraçosa creada pela vossa últimadecisão contra o profissionalismo honesto e a favor do

203 - Jornal do Brasi l , 19 de jan/1933.

204 - Jornal do Brasi l , 19 de jan/1933.

217

amadorismo duvidoso, a actuação aos rumos que desde há muitovem norteando os meus esforços em prol da grandeza eprosperidade do Club de Regatas do Flamengo, para cujapresidência fui elevado há muito pouco tempo, sinto-me nadolorosa contingência de, em vossas mãos, depor o honrosoencargo, renunciando irrevogavelmente á elle. Acreditae que sintoprofundamente o imperativo dessa minha attitude, principalmentequando me vejo, enhibido de chegar a conclusão da obra em prolde que, há três annos, vimos envidando os melhores esforçoscom estima e apreço de VV.” - Pachoal Segreto Sobrinho. ( p.16)205

O Sr. Luiz Segreto também entregou seu cargo de Diretor Social,

apoiando a atitude do irmão, pois também acreditava na necessidade do

regime profissional rejeitado oficialmente por seu clube. (Diário de Notícias,

21 de jan/1933, p.7)

O debate prossegue, tendo o descontentamento dos clubes que

pretendiam se manter firmes nos seus princípios amadores. Todavia, sob

quais princípios estariam lamentando estes dirigentes? As evidências

caracterizavam que os clubes, apesar de não admitirem o profissionalismo,

não se opunham determinantemente em remunerar os jogadores, desde que

indiretamente, sem compromisso formal, isto é, ‘às escondidas’. Parece que

os incomodava apenas o fato de conceber o título de trabalhador ao

‘funcionários da bola’. O esporte deveria manter o status de virtudes para os

praticantes. Admití-los como profissionais estaria possibilitando a

fragmentação dos valores morais que acreditavam ser a base de

sustentação do esportista e dos associados do clube.

205 - Jornal do Brasi l , 24 de jan/1933.

218

9.2 - A instauração do profissionalismo

Apesar da oposição de alguns clubes cariocas que pretendiam

manter o status amador, a transformação foi sedimentada. Me smo com uma

forte resistência da principal associação esportiva do Distrito Federal na

época, a AMEA, conforme noticiaram os jornais da época, foi criada a Liga

Carioca de Football (LCF), objetivando a consolidação do profissionalismo

no futebol carioca, que resultaria na concretização deste fato em todo o

Brasil.

O Jornal dos Sports trouxe de forma comemorativa em destaque, na

sua primeira página, a notícia: “Implantado, finalmente, o profissionalismo

honesto” (Jornal dos Sports, 24 de jan/1933, p.1).

O Jornal do Brasil destaca em sua primeira página, do dia 23 de

janeiro, a oficialização da nova profissão, com a manchete “Uma nova

profissão: jogador de futebol”. Na reportagem, reforçava a idéia do ‘amor à

camisa’, que parecia já se encontrar corrompida pelo dinheiro:

“Jogar futebol é oficialmente uma profissão. Não que antes osjogadores se esforçassem apenas por amor à camisa. Os clubesdo Rio decidiram somente oficializar uma prática usual: pagar aosatletas para jogar e recompensá-los de acordo com os resultados.A medida criou um novo racha no futebol carioca, que terá doistorneios: uma para os profissionais, com América, Bangu,Fluminense e Vasco, e outro para os amadores, no qual jogarãoBotafogo, Flamengo e São Cristóvão.” (p.16)206 (Grifos nossos)

206 - Jornal do Brasi l , 23 de jan/1933.

219

Vejamos que esta narrativa do amor à camisa ainda permanece nos

discursos e narrativas jornalísticas atuais. Em 1933, queixava-se da falta de

compromisso dos jogadores, retórica que já se sustentava na falta de amor.

Na reportagem, o jornal apontou sua lamentação quanto aos acontecimentos

no futebol carioca, ao declarar que os clubes apenas estavam oficializando o

que já era um fato corriqueiro.

Figura 04 – Jornal do Fluminense Football Club, 29 de jan/1933 – Anúncio dafundação do profissionalismo no futebol metropolitano

220

Nos clubes, a liderança do grupo interessado na legalização

profissional foi encampada pelos dirigentes do Fluminense, tendo como

principal opositor o Botafogo, que tentou até o último instante vetar a

oficialização. Como a AMEA se posicionou favorável aos clubes contrários à

implantação do regime profissional, os três clubes interessados na

profissionalização (Fluminense, América e Bangu) 207 tiveram que criar uma

nova entidade, denominada de Liga Carioca de Football (LCF)208 (Aquino,

2002). A co-irmã paulista da AMEA, a Associação Paulista de Esportes

Atléticos (APEA), aderiu ao grupo da LCF, o que consolidou o movimento

pró-profissionalismo nos dois Estados. Caldas (1990) coloca que o

profissionalismo poderia ter ocorrido antes de 1933, mas isso só não

aconteceu porque, em São Paulo, o Clube Paulistano e a Liga de Amadores

de Futebol (LAF) mostraram-se resistentes. Sem o apoio dos paulistas, o

movimento não teve a força necessária para impulsionar a mudança.

Entretanto, apesar da instauração do regime profissional, havia

ainda um problema a ser resolvido, o reconhecimento da CBD, órgão do

207 - Segundo Aquino (2002), es tes três clubes foram os fundadores e ,poster iormente, contaram com a adesão do Bonsucesso Futebol Clube. Entretanto,repor tando aos jornais da época, encontramos informações contrar iando asaf irmativas de Aquino. Aquino, Rubim Santos Leão de (2002) em Futebol - umapaixão nacional . Rio de Janeiro. Zahar Ed.O jornal do Fluminense Footbal l Club do dia 29 de jan/1933, nº 68, Ano I Iesclarece que A Liga Carioca de Footbal l foi fundada pelos clubes Fluminense,América Bangu e Vasco, enquanto o São Cris tóvão ser ia contrár io aoprof iss ional ismo, juntamente com Botafogo e Flamengo.

208 - Fundada em 23 de janeiro de 1923, na sede do Fluminense Football Club ,tendo a presença dos seguintes clubes: Fluminense, América, Vasco, Bangu, SãoCris tóvão, Flamengo e Botafogo. (Jornal do Commercio , 24 de jan/1932) .

221

governo que gerenciava o esporte nacional. Devido à pressão exercida pela

AMEA para o não reconhecimento da nova entidade, os dirigentes da LCF e

da APEA fundaram a Federação Brasileira de Futebol (FBF).

Antes, porém, de o Fluminense se tornar defensor do

profissionalismo, mantinha uma estreita relação com os princípios do

amadorismo fundamentados nos valores que correspondiam ao interesse

dos seus associados. Lembremos que, devido à vitória do Vasco no

Campeonato Estadual de 1923, o Fluminense resolveu, juntamente com

outros clubes, fundar a AMEA, em discordância ao perfil dos jogadores

vascaínos e à atitude do clube em remunerá-los. Observemos que tal

situação teria ocorrido em 1923. Portanto, 10 anos após, os mesmos

dirigentes estavam dispostos a modificar a feição do esporte carioca, em que

a remuneração deveria ser transparente.

Também é oportuno relembrar que, em 1913, havia indícios de que

o Fluminense, o baluarte do esporte amador carioca no início do século, teria

admitido em seu quadro um jogador de origem inglesa, Henry Welfare. Tal

jogador veio para o Rio de Janeiro contratado como professor do Gymnásio

Anglo-Brasileiro. A historiografia põe em dúvida o amadorismo deste jogador

do Fluminense, pois o clube era acusado de remunerá-lo clandestinamente

pelos seus feitos esportivos (Hamilton, 2001). Oficialmente nada ficara

comprovado, mas pairavam suspeitas sobre a condição de vínculo de

Welfere com o clube, pois o mesmo era cercado de regalias, inclusive com

moradia e refeições diárias oferecidas pelo clube (p.168)209. Naquele

209 - Em sua revis ta, o Fluminense pres tava uma homenagem ao ex- jogador HarryWelfare, que ter ia s ido quest ionado quanto à sua condição esport iva no per íodo

222

momento, o Fluminense contestou a acusação que lhe era imposta sobre a

condição do seu ex-atleta.

Hamilton (2001) relata, ainda, que também o Flamengo, um dos

últimos a admitir o profissionalismo, teria contratado um treinador

profissional em março de 1911, o inglês Charlie Willians, “numa descarada

contravenção às regras do futebol amador da liga carioca, Willians passou a

receber um salário de 18 libras por mês e todas as despesas pagas” (p.119).

As interrogativas parecem pertinentes: quais as bases de

sustentação dos princípios amadores destes dois clubes que anos depois

teriam reagido às condições de recrutamento de jogadores adotado pelo

Vasco? Seria a origem inglesa de Henry Welfare e Charlie Willians mais

compatível com a feição dos demais associados? Entretanto, quais

conseqüências teriam levado a busca do profissionalismo no futebol

brasileiro por alguns dirigentes? Em quais modelos se pensava este

profissionalismo? Alguns jornais da época surgem como suporte para se

entender o processo de justificativa e discórdia na implantação do

profissionalismo brasileiro.

em que chegou ao Rio e se in tegrou à equipe de futebol do c lube. Em 1915, a LigaMetropoli tana ter ia fe i to vár ias s indicâncias , com o objet ivo de saber se orefer ido at le ta era de fato um amador. Entre of íc ios e dúvidas, o Fluminensealegara na época que só acei tou o jogador depois de decididamente provada a suaqual idade de amador: “Como era natura, o grande club das 3 côres jámais deu ouvidos a esses boatosporque não devia se envolver em questões de ta l jaez e mesmo porque o accusadorinfame não tem convicção do que aff irma, nunca aparece. Agora que Welfare é defacto um profiss ional , agora que o amador de outr ’ora se fez ‘entraineur’ doVasco, apresentaremos aos nossos le i tores algumas provas, segundo as quaespodemos e temos o d ire i to de af irmar de voz bem al ta e de cabeça erguida: “Sob abandeira do Fluminense Harry Welfare foi sempre um amador .” (Tr icolor -Revis ta Sport iva do Fluminense Foot-Ball Club . 1928. nº 07, fev . p .06) .

223

O Jornal do Commércio, do dia 24 de janeiro de 1933, relata a

tensão na reunião que instituiu o regime profissional para os jogadores.

Arnaldo Guinle, o articulador das idéias, ao perceber a inquietude de alguns

fundadores da AMEA no início da reunião, resolveu submeter à assembléia

uma ‘questão de ordem’, que objetivava esclarecer o ponto de vista dos

representantes dos clubes sobre as propostas recebidas anteriormente,

evitando uma reunião prolongada, sem que houvesse o interesse de todos.

Os representantes do Botafogo (Dr. Paulo Azevedo) e do Flamengo (Dr.

Oliveira Santos) colocaram-se contrários à proposta, alegando que os

respectivos conselhos deliberativos dos clubes não concordavam com a

adoção do novo regime.

Diante das argumentações dos representantes do Botafogo e do

Flamengo, o representante do América, Dr. António Gomes de Avelar,

solicitou um esclarecimento dos opositores. Gostaria que colocassem aos

demais membros quais aspectos da proposta não interessavam aos seus

clubes, se o projeto era da forma que fora redigido ou se era

especificamente a implantação do profissionalismo. O representante do

Flamengo afirmou ser o profissionalismo em si. A mesma opinião foi também

confirmada pelo representante do Botafogo.

Apesar deste desconforto, o Sr. Guinle colocou a proposta em

votação, que foi aprovada por 4 votos (América, Bangu, Fluminense e

Vasco), contra 3 votos da oposição (Botafogo, Flamengo e São Cristóvão).

Entretanto, apesar da vitória nos números, a situação inibia o avanço do

processo dentro da AMEA, uma vez que a votação teria sido insuficiente em

224

relação ao estabelecido em sua regimentação, exigindo um “quorum”, 210

que não foi atingido.

Nesta mesma reunião, após a retirada voluntária dos dissidentes

contrários às mudanças na estrutura esportiva da associação, os

idealizadores do novo regime permaneceram reunidos quando optaram por

fundar uma nova entidade, que pudesse conduzir o processo de transição

entre o regime atual e o que era pretendido. Acreditavam os reformulares

que não seria mais possível manter o amadorismo com os desgastes que

vinham ocorrendo. Portanto, mediante tal argumento, em 23 de janeiro, foi

criada a Liga Carioca de Football. Naquele momento, o presidente propôs

que a Assembléia continuasse em sessão permanente até que fossem

cumpridas as formalidades e todas as leis para a implantação da nova liga.

A idéia de se constituir uma nova entidade, pelas narrativas, parece

que já havia sido articulada mesmo antes desta reunião, em que se

apontaram as dissidências. Os dirigentes interessados na profissionalização

pretendiam o apoio da AMEA, mas já estavam cientes de que, devido aos

fatos ocorridos naqueles dias anteriores, seria difícil conseguir os apoios

necessários. Já havia um desgaste do presidente da AMEA, que afirmava

publicamente ser contrário ao novo regime; portanto, seu apoio não seria

possível. O objetivo era criar a liga de profissionais dentro da AMEA, o que

acabou não obtendo sucesso.

210 - O “quorum” estabelecido pela AMEA para as resoluções era de cinco votosdos sete possíveis . (Jornal Imparcial , 25 de jan/1923, p .11)

225

9.3 - Argumentos após a instauração do regime profissional

Uma vez implantado o novo regime, coube aos inconformados

tentar desestruturar o profissionalismo, bem como promover acusações aos

responsáveis pela mudança. Vejamos que, novamente as teses apontadas

por Hirschman (1992) aparecem como eloqüências dos dirigentes e

articulistas que se posicionavam contrários ao regime que acabara ser

implantado, o profissionalismo.

No dia 24 de janeiro de 1933, o articulista do Jornal do Brasil

acusou o Vasco de ter sido o responsável pela vitória dos dirigentes que

queriam o regime profissional. Colocou que, se não fosse a mudança de

lado do Vasco, dificilmente o regime seria aprovado e implantado (p.16). É

interessante observar o prestígio do Vasco. O clube que teria

hipoteticamente provocado o encerramento da METRO,211 acusado de

descaracterizar o modelo esportivo carioca dentro da AMEA, mais uma vez

apareceu como responsável pela nova mudança – a implantação da nova

liga. Relembremos os discursos travados entre os dirigentes da AMEA e do

clube Vasco da Gama nos meados dos anos 20, quando acusavam o clube

português de financiar a entrada de jogadores populares e sem status

naquela associação.

Segundo o Jornal do Brasil, o novo regime não se sustentaria.

Tratava-se de uma tentativa mal planejada e sem ratificação necessária para

211 - A METRO – Liga Metropol i tana de Esportes Athéticos, fundada em 1917, fo iencerrada no ano de 1924 (Caldas, 1990).

226

conseguir se estabelecer. Era um blefe de alguns dirigentes insatisfeitos.

Nota-se neste argumento a estratégia de desqualificação da mudança, mais

um indício da futilidade na narrativa.

No dia 25 de janeiro de 1933, o Jornal do Brasil acusa os

dirigentes da LCF de estarem promovendo a discórdia entre os clubes que

se posicionavam na defesa do regime amador:

“O assumpto de todas as palestras nos meios sportivos é aimplantação da praga do profissionalismo no football cariocapor intermédio dos 4 clubs que, trahindo as suas finalidadessportivas, querem á viva força, abastardar o popularíssimofootball, transformando-o em balcão de negócios.

(...)Os agentes dos mercatilisadores do popular sport procuram

agora lançar a discórdia no seio dos clubs contrários a sua açãomaléfica, espalhando notícias mentirosas, adulterando factos eattribuindo declarações inverídicas a pessoas de destaque e ajogadores do clubs visados.” (p.17) (grifos nossos)

Observa-se claramente a retórica agressiva que o articulista

desenvolvia.

O Jornal do Brasil212 divulgou no dia 28 que os clubes: Flamengo,

Botafogo, São Cristóvão e Vasco teriam enviado uma carta ao Presidente do

Fluminense, demonstrando estarem contrários ao profissionalismo. Esta

carta, no entanto, não foi publicada pelo jornal. Todavia, pareceu-nos

contraditório que esta carta pudesse ser assinada pelo Vasco, pelo fato de

ter sido este clube um dos responsáveis pela nova Liga. Se realmente

assinou tal documento, não conseguimos encontrar evidências. A dúvida,

neste caso, era entender quais seriam os propósitos do Vasco?

212 - p .18

227

O Jornal do Brasil colocou que os moralizadores já tentavam fazer

economia frente ao trabalho dos “artistas”. Para o articulista, os dirigentes da

LCF estavam criando este mecanismo, com o objetivo de diminuir os

salários dos jogadores, e começavam por suprimir os reservas. A

denominação de artistas assumia um tom pejorativo, colocando-os como

boêmios (Jornal do Brasil, 28 de jan/1933, p.17).

Na reportagem “o amadorismo há de triunphar sobre os mercadores

do sport”, do dia 31 de janeiro do Jornal do Brasil, o articulista coloca que os

clubes encontrariam dificuldades para cumprirem seus encargos, pois os

clubes em comum acordo resolveram determinar que 600$000 seria o valor

pago a cada jogador (p.17). Observemos que os clubes tentavam limitar um

teto para os salários dos jogadores. A partir deste momento, a oposição ao

profissionalismo passou a se sustentar pelas dificuldades financeiras

decorrente do novo regime. Nesta direção, o articulista analisou o clube

Bangu. Vejamos a maneira apelativa e agressiva nas referências usadas

pelo jornal para se referir ao jogador:

“Como o Bamgu, um clube pobre conseguirá saldar as dividasdemandadas pela inclusão na liga?

1º - Seguro dos malandros; 2º - Assistência médica; 3ºAssistência hospitalar; 4º - Despesas de pharmacia; 5º - Despesasde conducção; 6º - Salários dos juízes; 7º - Salários dostreinadores; 8º - Propaganda dos espetáculos; 9º- Cota da liga;10º - Matérias sportivos; 11º – Despesas de bar; e 12º - Impostoda prefeitura.

Não sabemos o quanto montarão esses gastos, mas como sãoimportantes, devem attingir a uma quantia elevada, não seráexagerada orçar-se a despesa total em 150:000$000. Quem nãopaga o que deve, como poderá sustentar essa despesa?

228

16 x 600$000 = 9:600$000 mensaes, equivalente a 115:200$000annuaes sem luvas nem gratificações extras. (11 titulares e 5reservas). Como poderá o Bamgu pagar?” (grifos nossos) (p.17)213

No dia 01 de fevereiro de 1933, os clubes pertencentes à AMEA

reforçaram o apoio ao presidente Sr. Rivadavia Correa Meyer, que se

posicionava como um dos mais determinantes combatentes da

‘mercantilização do esporte’, como denominavam o profissionalismo. Foi

votada em assembléia geral da entidade uma moção de solidariedade ao

dirigente. O Jornal do Brasil noticiou que este documento teria sido assinado

pelos clubes fundadores (Botafogo, Flamengo e São Cristóvão), além dos

clubes Brasil, Carioca, Andarahy, Bomsuccesso e Olaria, “e pela totalidade

ou quase totalidade dos clubs que constituem a 2ª divisão. Foi uma bela

lição e que alto fala do verdadeiro sentir da entidade carioca, contra a

mercantilização do sport.” (Jornal do Brasil, 01 de fev/1933, p.17).

Observemos como o jornal buscava construir o apoio dos clubes

aos dirigentes da AMEA. Interessante como o jornal se deixa deslizar pela

narrativa ambígua, ao dizer totalidade ou quase totalidade. Parecia estar em

jogo o prestígio da AMEA e, como defensor desta instituição, o jornal se

encarregou de interferir a favor da entidade.

O jornal tentava desmentir o que fora noticiado em São Paulo

quanto ao sucesso do profissionalismo no Rio de Janeiro. Argumentou que

eram palavras destinadas a criar uma boa aceitação e minimizar as crises

que ocorreriam. Para o articulista carioca, em São Paulo, a única

213 - Jornal do Brasi l , 31 de jan/1933.

229

preocupação era o receio de perder jogadores para os clubes profissionais

cariocas:

“Apesar de todas as notícias espalhadas aqui no Rio de que SãoPaulo recebeu com enthusiasmo a implantação doprofissionalismo no Fluminense, no Vasco, no América e oBamgu. Todos os clubs de São Paulo são contra oprofissionalismo e só o adoptarão como medida capaz de impediro êxodo de seus jogadores para aqui.

Como no Rio, os clubs de São Paulo estão em situaçãofinanceira bem crítica e não podem supportar os pesado ônusdo profissionalismo.

Fora disso, só palavras bombásticas e nada mais. Não há oprincipal que é o dinheiro...” (p.17) (grifos nossos)214

Para o articulista, o profissionalismo em São Paulo teria sido uma

estratégia contra o êxodo dos seus principais jogadores. Nota-se que o

articulista acreditava que se a profissionalização fosse implantada corria-se

o risco de perder alguns jogadores. Isto é, a profissionalização já estava

provocando um efeito perverso, que seria a saída de alguns jogadores em

busca de melhores salários. Finalizando sua argumentação continuou

sustentando que a profissionalização era uma futilidade que não teria

condição de avançar sem dinheiro.

No dia 2 de fevereiro, o Jornal do Brasil continua acusando os

dirigentes da LCF de plantarem notícias falsas em outros jornais, para

ludibriar a opinião pública e promover discórdia entre os associados dos

clubes que ainda não haviam aderido ou simpatizado ao profissionalismo.

Acusam ainda os dirigentes de divulgarem propagandas telegráficas e

214 - Jornal do Brasi l , 1 de fev/1933.

230

jornalísticas falsas sobre a boa aceitação do profissionalismo em São Paulo.

Afirmou também que isso tudo foi um recurso utilizado para tentar mascarar

o fracasso que os esperava:

“(...)Já antevendo o fracasso que os espera, os mercadores do

football mandam os seus agentes espalhar as mais optimistasnotícias a respeito da “estrondosa victoria”, procurando fomentar adiscórdia entre os associados dos clubs mais visados pela suacobiça.

São Paulo é outro ponto importante e agora o principal alvo dosnegociantes.

Para o Rio são mandadas notícias formidáveis que sãorepartidas todos os dias mas que não se confirmam e para lá sãotambém transmittidas notícias visivelmente tendenciosas.

Apesar de tudo quanto se diz a verdade é que os clubs de SãoPaulo só entrarão no “brinquedo” se a cousa pegar aqui no Riode modo perfeito e acabado, o que não acontecerá”.

Há mezes que os interessados vivem a dizer que o Palestra, oSão Paulo, o Corinthians, o Santos, etc., são pelo profissionalismoe vão abraçal-o e nada disso se confirmou. Propagandatelefráphica e jornalística e... nada mais.

Deante do ruidoso fracasso que os aguarda, os paulista sãomais cautelosos.” (p.17)215 (grifos nossos)

Observe que o articulista utilizava um argumento da futilidade,

dizendo que já poderia antever o fracasso que os esperava.

Apoiando o empenho dos clubes que optaram por manter o regime

amador, o Jornal do Brasil divulgou uma nota oficial emitida pelo Botafogo,

que negava o profissionalismo e se colocava compromissado com os ideais

amadores, conforme reproduziu:

“O Botafogo F. C., em nome de todos os seus amadores defootball, tennis, basketball, Volleyball e athetismo, dispeza as

215 - Jornal do Brasi l , 02 de fev/1933.

231

insinuações do “sem trabalhos” do sport, já de certo desapontadoscom o desinteresse público com ou mesquinhez dos salários, comas exigências inherentes á precária condição do profissional.

Ahi está o primeiro resultado da innovação. Por interessepecuniário, offende-se a honra pessoal de grandes nomes dofootball nacional.

(...)O Botafogo F. C. se mantém na enabalavel disposição de

praticar e diffundir o amadorismo, de accordo com o compromissode sua fundação e a vontade expressa no seu corpo social.” (p.17)216

Observemos que o jornal se aliava aos dirigentes botafoguenses na

empreitadas contra o regime profissional. Travavam juntos o combate,

invocando a honra de algumas personalidades do futebol nacional.

No dia 04 de fevereiro, o Jornal do Brasil trouxe uma manchete

lamentando: “Pobre Bamgu!”. Nesta reportagem, colocou os pontos

negativos da inclusão da equipe suburbana na nova liga, quando utilizou as

declarações de um dos diretores do clube para argumentar contra sua

aceitação do novo regime:

“Quando affirmamos, mais de uma vez, nesta columnas, queserá impossível ao sympathico club suburbano, supportar asdespezas com o profissionalismo, não exageramos, masdissemos uma verdade incontestável.

O Bamgu não tem capacidade financeira, como muitíssimosoutros não têm, para fazer parte da Empreza Esploradora deMalandros Remunerados.

Quem affirma é um próprio director do club. O Sr. AmandioMartins como se vê do incluso tópico da entrevista dada aonossos prezados collegas de “A Noite”.

Agradecemos ao conhecido sportman, as suas declarações eprocuramos ouvir algo sobre a situação financeira do clubsuburbano. O Sr. Amandio Martins, mostrou-nos, então, o relatórioda thesouraria, que traz todas as despezas do club no anno findo.

216 - Jornal do Brasi l , 02 de fev/1993.

232

As mensalidades sociaes que attingiram em 1931 a 19:055$000desabaram para 14:470$000. Em resumo, o Bamgu não foi felizfinanceiramente no anno passado. As contas a pagar importamem 24:045$528.

Será preciso melhor argumento contra o profissionalismo noBamgu do que esse relatório?Quem dispõe de menos de 60:000$ annuaes e deve 24:000$ decontas, como poderá contratar “artistas” a 600$ mensaes, ou seja,o total de 115:200$000 annues?

E as outras despezas?Respondam os sábios da escrupturas...” (p.18) 217 (grifos

nossos)

Vejamos que o Jornal do Brasil combatia os opositores,

apropriando-se de expressões agressivas. Poderíamos pensar se tais

expressões utilizadas seriam apropriadas a quem lutava pelos princípios

éticos do amadorismo, aquele que defendia o esporte como meio de

valorização dos princípios morais e da formação do caráter do homem. Para

o articulista, a capacidade financeira do Bangu não o permitiria integrar a

“Empresa Exploradora de Malandros Remunerados”. Essas suas revoltas

parecem nos mostrar o nível dos embates e da tensão estabelecida na

sociedade esportiva carioca. A diplomacia parece ter perdido o espaço, uma

vez que os argumentos eram as armas nesta guerra de interesse entre as

duas correntes, onde os princípios do cavalheirismo perderam força. É

importante observar que o esporte não era representado como trabalho.

Essa imagem dificultava vê-lo como um negócio ou meio de

sobrevivência.218

217 - Jornal do Brasi l , 4 de fev/1933.

218 - Essa imagem não era só do esporte , como também de outras a t iv idadescul turais .

233

Na sua empreitada em desmoralização aos dirigentes que fundaram

a LCF, o Jornal do Brasil passou a atacar os regulamentos propostos pela

nova entidade. Colocou-se surpreso com a exclusão do artigo que permitia a

substituição dos jogadores no decorrer das partidas. Para o articulista, isto

refletia em uma medida de ordem financeira, pois, evitando a substituição o

elenco da equipe, poderia ser reduzido o custo de manutenção da equipe.

“Já se tornou público que a Liga dos Profissonaes não permittirásubstituições de jogadores como a Amea faz e como outrasinstituições estão adoptando.

Poderá parecer a primeira vista que essa medida seja de ordemtechnica, baseada na opinião dos que entendem que os jogadoresnão devem ser substituídos porque a regra foi feita assim e dessamaneira deve permanecer inalterada. Mas a verdade é muitooutra. Não se trata de razão technica e sim de ordem econômica.

Não havendo substituições o elenco não precisará seraugmentado. Os artistas substitutos podem ser em número maisreduzido e conseqüentemente menor o prejuízo que já estãolobrigando apesar de todas as declarações em contrário.” (p.18)219

O Jornal do Brasil alertou aos jogadores interessados em se

profissionalizarem para não caírem na armadilha do contrato de trabalho.

Acreditava o articulista que a forma de recrutamento dos clubes deixava

dúvidas quanto ao compromisso do clube com o jogador:

“Os amadores devem estar alertas contra a acção dos agentesdos “moralizadores”, afim de não cahirem em logro e perderem asua qualidade de amador.

Fomos sabedores de que um agente que figura como 1º tenordo “elenco” com que o Fluminense F. C. pretende-se habilitar aosespetáculos de foot-ball anda a cata de “artistas” com promessasfalazes. Para esse fim as “figuras” preferidas devem assegurar

219 - Jornal do Brasi l , 7 de fev/1933.

234

um papelacho qualquer, a guisa de antecontrato, no qual secompromettem tornar-se “profissionaes” do F. F. C. e sem saberquanto vae ganhar de accordo com leis e regulamentos que serãoopportunamente adoptados pela Liga Carioca de Football.

Como se vê isso é uma espécie de armadilha em que o menosesperto pode cahir e depois amargar bastante.” (p18) 220 (grifosnossos)

Nota-se, novamente que o argumenta da ameaça é utilizado para

alertar aos jogadores que poderiam perder a condição de amador se

aderissem ao regime profissional. Também utiliza a retórica da futilidade ao

dizer que os contratos seriam promessas falazes.

O Jornal do Brasil acusou ainda os presidentes dos clubes

(América, Fluminense e Vasco) de não terem idoneidade financeira pra

servirem de garantia ao empréstimo que o Sr. Arnaldo Guinle disponibilizou

para a LCF. Afirmava o jornal que as enormes dúvidas destes clubes eram

públicas e notórias e não eram devidamente quitadas. Desta forma,

acreditava o articulista que, por este motivo, esses ficariam impossibilitados

de garantir a legalidade da nova empresa:

“É publico e notório que esses clubs têm enormes dívidas enão pagam o que devem. Como falar em garantias aos outros?Não estamos affirmando uma inverdade, pois a imprensa temtratado do assumpto.

Quem deve e não paga não pode servir de fiador. Agora mesmo,o Sr Arnaldo Guinle, uma das grandes fortunas do Rio, com odireito que ninguém lhe pode contestar, deu ou emprestou aquantia de 200:000$000 para sustentar o capricho da fundação daLiga e isso porque os clubs fundadores dessa emprezaexploradora do foot-ball não dispunham de dinheiro para ainstallação.” (p.19)221 (grifos nossos)

220 - Jornal do Brasi l , 8 de fev/1993.

221 - Jornal do Brasi l , 9 de fev/1933.

235

Na matéria denominada “A causa sã do amadorismo há de

triumphar sobre a praga do profissionalismo” do dia 15 de fevereiro, o Jornal

do Brasil retornou a discutir acerca do valor que o Sr. Arnaldo Guinle teria

disponibilizado para o gerenciamento da nova liga. Segundo a articulista,

ventilava-se nas rodas sociais que o Sr. Arnaldo Guinle havia doado os

200:000$000 à LCF e os clubes se beneficiariam dos mesmos direitos nesta

nova instituição. Todavia, o articulista voltou a questionar sobre a condição

de igualdade entre os fundadores:

“Chegou hontem ao nosso conhecimento a história dos200:000$000 dado a Liga Carioca de Profissionaes. O caso é bemdifferente do que se faz propalar pelos interessados. Não houvedádiva alguma, mas sim empréstimo.

Os endossantes para os saques sobre essa quantia são osClubs Fluminense, Vasco da Gama, e América, sendo que oBamgu foi julgado como não tendo capacidade financeira, tantoassim que a sua quota para a installação da Empreza tem agarantia de seus companheiros de aventura.

Em tudo isso há uma coisa deveras interessante. É facto que oBamgu de grande só tem o nome, pois é pobre e bem pequenoquanto ao seu quadro social, o que, aliás, não o desdoura, mastambém a dar-se credito á entrevista do seu thesoureiro,concedida aos nossos collegas de “A Noite” apenas tem dívidasno total de 24:000$000 com a sua recita anula de 58:000$000.Financeiramente falando o Bamgu está muito superior aos seusfiadores. Estes estão em peores condições, uma vez que épúblico e notório o alto valor de suas dívidas em títulos jávendidos e não pagos.

Mas a isso responderão logo os agentes do profissionalismo: avictoria é certa: o triumpho é formidável; vem ahi o scratchpaulista, logo a seguir os teams de Congo e da Groelândia e vaechover dinheiro. Aguardemos a chuva.” (p.19) 222 (grifos nossos)

222 - Jornal do Brasi l , 15 de fev/1933.

236

Observemos como o articulista desenvolve seus argumentos com o

intuito de ironizar o regime profissional. Uma argumentação que se

assemelha ao que Hirschman (1992) denominou de tese da futilidade. Trata-

se de um contraponto daqueles que se posicionam contrários a

implementação de uma nova medida social. Uma argumentação que

demonstra que tudo não passará de uma frivolidade.

Figura 05 – O profissionalismo no início de sua fase de realização - Jornal doFluminense Football Club, 12 de fev/1933

237

Dando prosseguimento à sua ofensiva contra o profissionalismo, o

Jornal do Brasil entrevistou o Sr. Amador Bianco, dirigente do Sport Club

Brasil, considerado pelo jornal um dos baluartes do verdadeiro amadorismo.

Logicamente que, diante das perspectivas apontadas pelo jornal, o

entrevistado também colocou sua revolta contra o novo regime, lamentando

a sua implantação:

“Sou radicalmente contrário ao systema que se pretendeimplantar, disse-nos o conhecido player. Não comprehendomesmo como cavalheiros de responsabilidade e alguns comserviços prestados ao sport, possam abastardal-o a ponto detranformarem em transacção.

Lamento que se pretenda implantar aqui o profissionalismo. Nãoacredito que elle vingue em nosso meio, ainda muito pobrepara supportar os pesados ônus que elle acarreta. Amercatilisação do sport não pode ser um bem como propalam osinteressados na adopção de tal medida.

O profissional de football será um homem honesto e não ficarádeshonrado em receber as suas propinas e salários, mas narealidade nunca passará de um indivíduo socialmente inferior.O profissional, queiram ou não queiram, há de ser sempre umsubalterno dos associados do seu club, um indivíduo a quemmuitas vezes será atirada a cara, com razão ou sem ella, a pagade sua habilidade.

(...)Com o advento do profissionalismo cahirá bastante o nível

moral e social do nosso football.” (p.18) 223 (grifos nossos)

Vejamos como o discurso do ethos amador aflorou em seus

argumentos. Um discurso de ordem moral, em que o trabalhador na sua

percepção teria uma colocação inferior nas rodas sociais, tendo o seu nível

moral abalado. O articulista do jornal continuava a apregoar em tom

223 - Jornal do Brasi l , 18 de fev/1933.

238

agressivo e de insulto, atiçado pela entrevista do dirigente Amador Bianco.

Afirmava o articulista que não havia motivos para os profissionalistas

comemorarem: ‘não há motivos para foguetório que soltaram os arautos da

malandragem remunerada” (p.18) (Grifos nossos). Parecia estar em

questão a desconfiança sobre o jogador que admitisse o profissionalismo. O

profissional seria sempre subalterno, logo, poderia ser pressionado pela

necessidade. Entretanto, pareceu que ao Sr. Bianco causava incômodo a

possibilidade de queda do nível social do clube, ao admitir estes novos

integrantes. Observemos como em sua fala surge o argumento da futilidade:

“Não acredito que elle vingue em nosso meio, ainda muito pobre para

supportar os pesados ônus que elle acarreta.”

A briga entre os jornais passa a ser travada de forma pública. O

Jornal do Sport afirmou que os quatro clubes profissionalistas

representavam a força máxima do futebol carioca e, sem a presença destes

clubes, a AMEA desapareceria, pois a renda sem estes seria um fracasso

(Jornal dos Sports, 18 de fev/1933, p.7).

O Jornal do Brasil apresentou argumentos contradizendo as

afirmativas realizadas pelo Jornal dos Sports, colocando que:

“Os nossos prezados collegas do ‘J dos S’, querendo noscontraditar ainda contribuíram com os algarismos que publicarampara demonstrar que a razão está do nosso lado. Dizem elles queos clubs que ficaram na A.M.E.A., produziram entre si apenas193:000$000, o que é verdade, mas como não é menos verdadeque os outros quatro somente renderam cento e quinze contos,segue-se que aquelles que elles dizem nada valer, produzirammais do que os outros cerca de 80:000$000. Dahi não há comofugir.

O nosso intuito é claro e insophismavel. Os quatro clubs isoladosnão representam a força máxima do football carioca como

239

assoalham, e a sua ausência da A.M.E.A., por si só não ébastante para destruil-a, como foi totalmente affirmado por um dospróceres do profissionalismo.” (p.17) 224

A pressão dos clubes dentro da AMEA tornou-se insuportável.

Apesar de terem fundado a LCF, os clubes profissionalistas continuavam

vinculados à antiga instituição. Participavam das reuniões e tentavam vencer

os bloqueios impostos pelos clubes da AMEA. Esta situação tornou-se

complicada, em conseqüência das discórdias entre as principais diretrizes da

associação. Os clubes fundadores da LCF votavam em bloco, gerando um

racha entre os dois segmentos, os contrários e os favoráveis à

profissionalização. Tal situação impossibilitava a aprovação dos assuntos

votados, pois eram necessários os votos da maioria absoluta dos clubes

fundadores, conforme estabelecia o regimento. Diante de tais situações, os

clubes leais à AMEA, em reunião extra, propuseram modificações no

estatuto que viabilizassem suas determinações (Jornal do Sport, 22 de

fev/1933, p.13)

No dia 24 de fevereiro, o Jornal do Brasil argumentou que a LCF

tinha como finalidade destruir a AMEA e, por isso, os clubes que

pertencessem a esta Liga deveriam abandonar a AMEA, desfiliando-se. Sob

o título ‘Os profissionalista em desespero de causa, estão lançando mão de

todos os recursos’, o jornal acusa os quatro clubes de não abrirem mão dos

seus direitos na AMEA.

224 - Jornal do Brasi l , 20 de fev/1933.

240

“Os clubs que se transformaram em negociantes do footballatiram-se furiosamente contra aquelles que honrando as tradiçõesgloriosas do sport carioca, as nobres finalidades para que sefundaram, reuniram-se para defender o pavilhão da Amea, queneste momento encarna a causa sã do amadorismo, amparadapor todos quanto repellem, altivamente fazer do football um balcãode negócios.

Fundando uma Liga de Profissionaes para combater e matar aAmea, os quatro clubs que se transformaram em commerciantesdo sport, depois de arrotarem grande força, de fazer ameaças detoda a sorte, em vez de se retirarem da instituição a que sepropõem destruir, estão pleiteando essa cousa indecorosa que épermanecer na própria Amea para matal-a mais depressa,gritando por um direito que não mais lhes assiste pela sua acçãocontrária as leis fundamentaes e os sagrados interesses dessaAssociação.

(...)Se a Amea não lhe serve mais, porque não se vão embora?

Porque querem ficar agarrados como ostras a casco de navios?Haverá alguém de boa fé que seja capaz de dizer que é digno,que é decente, que é esportivo o que os profissionalistas queremfazer da Amea?” (p.17) 225 (Grifos nossos)

Em reunião no dia 24 de fevereiro de 1933, em Assembléia Geral,

os clubes que permaneciam leais às causas defendidas pela AMEA

resolveram expulsar os clubes América, Bangu, Fluminense e Vasco da

Gama. Tal medida foi aprovada por unanimidade, todavia, o impasse do

desligamento se deu pelo fato de os quatro clubes pertencerem ao conselho

de fundadores. Da mesma forma que não puderam implantar o

profissionalismo, tendo que criar uma nova liga, não poderiam ser expulsos,

já que pertenciam ao conselho e o quorum deveria ser observado.

Entretanto, esta situação não foi observada e o desligamento dos referidos

clubes foi aprovado. Nesta mesma sessão, foi votada uma moção de

225 - Jornal do Brasi l , 24 de fev/1933.

241

aplausos aos jornais Correio da Manhã e Jornal do Brasil, pelo apoio à

causa amadora (Jornal de Sports, 25 de fev/1933, p.7).

Em 18 de março, o Jornal do Brasil divulgou a transcrição de uma

conferência pronunciada pelo Sr. Luiz Vianna, redator esportivo do Jornal

Correio da Manhã, quando este colunista se colocou descrente do sucesso

da liga de profissionais. O título da matéria dizia “Os clubes profissionalistas

já estão baixando os salários dos jogadores.” Segundo Luiz Vianna,

“Ninguém de boa fé pode confiar no êxito dessa iniciativa,porque os homens que a tomaram são precisamente os mesmosque já tendo passado pelos altos postos da administraçãoesportiva, nelles fracassaram, porque com a visão estreita que oscaracterisa, só cuidaram de fazer obra inferior de clubismo epoliticagem nefasta.Como acreditar nessa gente? Como acreditar que a projectadamercantilisação venha resolver o grande problema sportivonacional, sabendo-se – como todos sabem – que essa reformacontraria visceralmente as leis naturaes da evolução e, sabendo-se finalmente, que essa maldicta reforma forca demasiado omecanismo e a entrosagem da organização sportiva brasileira,que tem o ideal como base e como finalidade essencial a culturaphysica na verdadeira accepção do termo?Assim tem sido atravez de muitos annos. O sport no Rio,especialmente, tem sido uma escola sadia de educação, eenvergadura moral, de tenacidade e sim um celleiro dehomens limpos.” (p.16) 226 (grifos nossos)

Observemos que o Sr. Vianna invocava os ideais educativos que

deveriam guiar o esporte. Conclamava as virtudes morais da formação do

homem. Parece ser esta mais uma das imagens produzidas na luta entre os

moralizadores esportivos. É oportuno relembrar que ambos, profissionalistas

e defensores do amadorismo, batalhavam por virtudes morais, onde o que

226 - Jornal do Brasi l , 18 de mar/1933.

242

um apontava como desgraça o outro entendia como solução. O Sr Vianna

parecia não querer admitir que o amadorismo praticando, era o amadorismo

marrom. Observemos ainda o tom romântico com o qual conclui sua fala.

No dia 21 de fevereiro, o Jornal do Brasil ironizou quanto ao valor

dos salários pagos pelos clubes profissionalistas: “Profissionais a 120$000

com direito a café pela manhã!!!”. O jornal questionava ainda: “isso é

profissionalismo?”

“Quando dissemos e repetimos que os clubs que abraçaram oprofissionalismo não tem capacidade financeira para semelhanteempreitada, não nos falta razão.Os chamados grandes estão oneradíssimos e os dous pequenosBangu e Bomsuccesso não tem recursos e o resultado é a cousasofrida que terão de fazer para fingir de profissionalismo.Acabam de assignar contrato com o Bomsuccesso os jogadoresHeitor, Cozinheiro, Carlinhos e Miro pela miséria de 300$000 eVareta pela cousa profundamente ridícula de 120$000 com direitoa café da manhã, sem almoço, nem jantar.Isso chama-se moralizar?!!!Esses profissionalistas são uns pândegos... Ainda há quem osleve a sério.” (p.16) 227

Através dos nossos levantamentos nos jornais, conseguimos

entender o que representava essa ironia do Jornal do Brasil, ao

constatarmos que este valor não permitia uma vida tranqüila a um

trabalhador. Nos jornais, era possível encontrar empregadas domésticas228

que se anunciavam por 130$000 reis mensais. Encontrava-se também nos

227 - Jornal do Brasi l , 22 de fev/1933

228 - Jornal do Brasi l , 23 de mar/1933, p 25.

243

classificados a oferta de quarto mobiliado para aluguel na Rua Marechal

Floriano229 no valor de 150$000 reis por mês. Um apartamento em

Copacabana, na Rua Barata Ribeiro, estava anunciado a 245$000 por mês.

Observemos que a ironia do Jornal do Brasil se dava sobre a dificuldade de

se viver como profissional do futebol, com os miseráveis salários que lhe

eram impostos. Parece óbvio que os salários dos jogadores naquele

momento não eram superiores ao dos demais trabalhadores em funções

subalternas. Todavia, o que interessava aos combatentes do

profissionalismo era descaracterizar a expectativa que havia sido aberta para

melhor condição de vida dos jogadores, diferentemente das possibilidades

oferecidas indiretamente pelo regime amador.

Em uma matéria do dia 06 de abril, o articulista do Jornal do Brasil

destina sua lamentação à CBD, denominando de inqualificável a postura da

confederação diante dos fatos que ocorriam sem intervenção. Acreditava o

articulista que o fato de a CBD permitir os encontros esportivos entre os

profissionais do Rio de Janeiro e de São Paulo estava ferindo seus próprios

regimentos. O jornal cobrava que os dirigentes da confederação tomassem

alguma atitude punitiva:

“A imprensa há dias consecutivos, vem anunciando a realização,domingo próximo, de um jogo entre profissionaes do Rio e de S.Paulo.Isso nada teria de extraordinário se os profissionaes de São Paulonão fossem dos clubs que dominaram illegalmente a AssociaçãoPaulista e adoptaram a mercantilisação do football, contra as leis

229 - Rua local izada no centro da cidade do Rio de Janeiro. Jornal do Brasi l , 02 deabr /1933, p .35.

244

da própria Associação e o que é mais grave, contra os daConfederação Brasileira de Desportos, que é a máxima entidadeesportiva e essencialmente amadora.É tão publico e notório esse caso que se torna altamentelamentável que a Confederação não tenha tomado uma attitudeenérgica, prohibindo a sua filiada de S. Paulo de praticar desemelhante jogo com uma entidade não confederada.(...)É inqualificável a tristissima attitude dessa autoridade, rasgandoas leis da confederação que são claras e positivas nessa matéria,lançando mão de um recurso hypocrita de consultar o Conselhode Julgamento como se fosse possível haver dúvidas sobredisposições de Leis tão cristalinas.(...)A indignação contra o proceder francamente faccioso dopresidente da Confederação é enorme e na realidade mereceessa repulsa dos verdadeiros sportmen.” (p.16) 230

A pressão dos dirigentes da AMEA e dos jornais combatentes fez

com que a CBD oficializasse uma consulta ao seu Conselho de Julgamento.

Esta atitude de consulta foi criticada pelo articulista, que a julgava

desnecessária, visto que as leis eram claras quanto a tais encontros. Para

ele a CBD estava se esquivando dos confrontos.

Em São Paulo, parece que a chegada do regime profissional

encontrou menor resistência, pelo menos no início, quando foi aceito dentro

da própria instituição que já cuidava do esporte amador, a Associação

Paulista de Esportes Amadores – APEA (Caldas, 1990).231 Todavia, Caldas

230 - Jornal do Brasi l , 6 de abr /1933.

231 - Caldas , Waldenyr . (1990) af irma que, desde 1928, já se fa lava aber tamentesobre o prof iss ional ismo em São Paulo, quando neste mesmo ano surgiu a LigaPaul is ta de Prof iss ionais do Futebol - LPPF, mas que a CBD não reconhecia ecombatia (p .129) .

245

coloca em outro momento da sua obra que, por falta de apoio dos paulistas,

somente em 1933 o futebol assumiu a profissionalização.232

O articulista do Jornal do Brasil mantém firmes suas argumentações

contra o profissionalismo. Vejamos que, no dia 07 de abril, ele ainda

lamentava a mudança no modelo esportivo, acreditando que o novo sistema

administrativo representaria a decadência do nosso esporte:

“O profissionalismo representa a decadência do nosso football, aderrocada criminosa de um idealismo são, destuante de vida,posto em prática, entre nós, com êxito e orgulho, para odesenvolvimento physico da nossa moçada.A sua implantação reflecte, a triste expressão de um declíniosensível no nosso meio desportivo.Trata-se do desvirtuamento inconcebível de uma escola deeducação e civismo, que se quer transformar no maisgrosseiro agrupamento de vadios.Entre o Amadorismo e o profissionalismo vae a distância de umabysmo. Amadorismo tem como base o princípio da cultura raciale cívica, enquanto profissionalismo é arrigimentação de ociosos,inúteis a sociedade, que vivem dos pés, negando-se a si mesmo,capacidade para ganhar a vida com a superioridade natural ecommum dos homens.” (p.18) 233 (Grifos nossos)

Vejamos que o ataque se dá de forma determinante sobre o estilo

de vida que o profissionalismo poderia favorecer. Homens que deixariam o

trabalho formal (ou o trabalho produtor de bens visíveis) para se

232 - Em seus apontamentos f inais , Caldas coloca que “o advento doprof iss ional ismo no futebol brasi le iro poder ia ter ocorr ido um pouco antes de1933. Só não aconteceu porque o Club Athlét ico Paulis tano e a LAF retardaram-noao resis t irem até 1929. Essa cisão em São Paulo impediu o apoio maciço aomovimento prof iss ional is ta que acontecia no Rio de Janeiro”. (p .228)

233 - Jornal do Brasi l , 07 de abr /1933.

246

enquadrarem em uma atividade que, segundo o articulista, deveria ter outros

princípios, embasados na moral e na cultura cívica.

Figura 06 – Porque a AMEA terá que ser desfiliada da CBD - Jornal doFluminense Football Club, 19 de mar/1933

247

No dia 13 de abril, o Jornal do Brasil noticiou com alegria a recusa

da CBD em aceitar a filiação da LCF. Para o jornal, a CBD, ao não aceitar a

filiação da liga de profissionais, deu uma prova de honestidade e respeito

para os verdadeiros esportistas. Para o articulista, a confederação não

poderia compactuar com esses mercenários.

No dia seguinte (14 de abril), o jornal volta a elogiar a CBD, dizendo

que não se esperava outra coisa da instituição que não cumprir os seus

estatutos:

“A Confederação Brasileira de Desportos, negando filiação a LigaCarioca de Profissionaes, cumpriu rigorosamente com o seu deverporque acatou o princípio legal de seus Estatutos que são a sualei, mantendo com altivez, as inflexíveis e honrosas tradições dodesporto nacional.” (p.15) 234

As dúvidas quanto à consolidação do novo regime continuavam, os

combatentes apropriavam-se de todos os detalhes para fundamentarem

suas argumentações de descrédito aos profissionalistas e suas medidas.

Observemos que as palavras ficavam cada vez mais ríspidas, demonstrando

a intolerância diante do regime implantado.

Noticiando o encontro entre as equipes profissionais, o jornal

demonstrou de forma explícita sua ironia na forma como anunciava os jogos.

É obvio que os anúncios do jogo foram pretextos utilizados para o

rechaçamento.

234 - Jornal do Brasi l , 14 de abr /1933.

248

“O Bangu e o Bomsuccesso os dous pequenos clubs que semetteram na aventura do profissionalismo vão ver se conseguemarranjar algum dinheiro, amanhã, no campo do América, fazendoa primeira exhibição dos seus quadros de profissionaes.” (p.18) 235

“O Fluminense está muito esperançado em ganhar dinheiro nessejogo, que tem como – novidade – ser um jogo Rio x São Paulo,muito do agrado dos torcedores quando se trata de rivalidadesportiva entre os dous maiores centros de foot-ball, do paiz.Agora, porém, o resultado nenhuma outra significação tem doque as cifras do lucro, pouco importando qual o vencedor ouo vencido. Num desses jogos de profissionaes, aquella ânsiacuriosa do “quem ganhou?”, é substituída pela pergunta maisprática “Quanto rendeu?” (p.29) 236 (Grifos nossos)

Os embates prosseguiram por mais alguns meses dentro das

instâncias gerenciadoras do esporte nacional. A mídia imprensa era o

termômetro destes embates. Os jornais contrários ao regime profissional

mantinham o tom de denúncia e de desconfiança. Apropriavam-se dos fatos

que gerassem impasses frente à nova entidade para questionar e professar

o retorno ao regime amador. Por outro lado, os favoráveis ao

profissionalismo exaltavam o novo sistema, acreditando na transparência

entre os clubes e seus jogadores, o que favoreceria o resgate da moralidade

no esporte, conduzindo seu crescimento e ampliando o seu prestígio perante

aos torcedores.

235 - Jornal do Brasi l , 12 de abr /1933.

236 - Jornal do Brasi l , 16 de abr /1933.

249

Figura 07 – 1ª Partida entre profissionais do Rio de Janeiro e de São Paulo(Fluminense x Corinthians). Jornal do F.F.C., 23 de abr/1933

Vejamos que os argumentos dos combatentes ao regime

profissional tentavam colocar em desconfiança o êxito da mudança. Esses

combatentes utilizavam argumentos praticamente semelhantes aos que

Hirschman (1992) desenvolveu para explicar a retórica utilizada pelas forças

250

opositoras (conservadores e liberais, reacionários e progressistas) em

relação às transformações sociais: ameaça, efeito perverso e futilidade.

Também pode-se notar uma predisposição a argumentação romântica como

contra-ordem ao abandono do amadorismo.

Segundo Hirschman (1992) é fundamental para o desenvolvimento

social (a estabilidade e o funcionamento adequado) que os indivíduos se

alinhem em alguns poucos grupos importantes, que detenham opiniões

distintas. Isso fortalece a base democrática da sociedade.

Figura 08 – Bangu - 1ª Equipe campeã da Liga de Profissionais no Rio de Janeiro

Durante os primeiros anos, após a implantação do profissionalismo,

os principais clubes tiveram que conviver com equipes profissionais e

amadoras em suas dependências. Os encontros esportivos entre jogadores

amadores já não conseguiam manter o interesse do público como outrora.

251

Mais tarde, os jogos das equipes de amadores passaram acontecer antes

dos jogos das equipes profissionais. Entretanto, poucos torcedores estavam

dispostos a ir aos campos ver apenas as exibições dos amadores; queriam

mesmo é ver a exibição dos principais jogadores dos clubes e, desta forma,

os profissionais despertavam o maior interesse, conforme argumentou o

cronista e historiador Mário Rodrigues Filho:

“O amador, com todo o chiquê, fora relegado para um segundoplano, virara jogador de preliminar, enchendo o tempo que faltavapara começar o jogo principal.

Aos poucos o estádio ia se enchendo.Quanto mais enchia, pior para o amador. O amador correndo em

campo, molhando a camisa, se matando, o torcedor nem prestandoatenção. Queria que aquilo acabasse depressa, logo de uma vez,não respeitando ninguém. Nem mesmo os ídolos de ontem. Outrosjogadores tinham tomado o lugar deles.” (p. 226) 237

As lamentações dos descontentes com o novo regime foram

enfraquecendo com o passar do tempo, principalmente por perceberem que

não havia mais como ignorar o que já estava consolidado desde 23 de

janeiro de 1933. Embora muitos saudosistas mantivessem suas críticas e

desconfiança sobre os jogadores que assumiram sua condição de

profissional (Mazzoni, 1939)238, logo tiveram que se render ao novo regime,

ou então deveriam abandonar o esporte.

237 - Rodr igues Fi lho, Mário. (1964). O Negro no futebol brasi le iro . Rio deJaneiro. Edi tora Civi l ização Brasi le ira .

238 - Mazzoni, Thomas. (1939) . Problemas e aspectos do nosso futebol . São Paulo .A Gazeta.

252

PARTE 3

A LEGISLAÇÃO ESPORTIVA BRASILEIRA:AMADORISMO, PROFISSIONALISMO E O FUTEBOL

“O Sport Club Corinthians Paulista é uma sociedade civil,de fins não econômicos e duração por tempoindeterminado.”“O C. R. do Flamengo é uma sociedade civil sem finslucrativos e de utilidade pública.”“O C. R. Vasco da Gama é uma entidade desportivarecreativa, educacional, assistencial e filantrópica deutilidade pública sem fins lucrativos.”

(Unzelte, 2002, p.864) 239

A massificação do futebol brasileiro seguiu o rastro do processo de

industrialização dos grandes centros urbanos. Da condição de esporte

utilizado e cultivado como passatempo para uma classe em seu momento de

tempo livre, ou momento do não-trabalho, rapidamente passou a despertar

um imenso interesse popular, assumindo a condição de principal elemento

no processo de ludicidade da população, o principal veículo de permanência

de valores sociais no Brasil (Neves, 1979 240; Daolio, 1992 241, Da Matta,

239 - Unzel te , Celso . (2002). O l ivro de ouro do futebol . São Paulo . Ediouro.

240 - Neves, Luiz Fel ipe Baêta . (1979). O paradoxo do coringa e o jogo do poder esaber . Rio de Janeiro. Ed. Achiame Ltda.

241 - Daol io , Jocimar . (1992). A violência no futebol brasi le iro. In : RevistaBrasi le ira de Ciências e Movimento. 6 (1) p .59-62/

253

1995 242), inclusive aliado às festas populares (Meihy, 1982).243 Hoje, além

de permanecer como uma das principais preferências de lazer dos

brasileiros, nas mais distintas classes, assume a condição de produto da

indústria do entretenimento e, conseqüentemente, gera empregos em vários

setores.244

O futebol não tem hoje apenas as mesmas funções que

apresentava no seu surgimento na Inglaterra e na sociedade brasileira.

Desde cedo (as primeiras décadas do século XX), foi se transformando,

devido ao apelo popular, em uma indústria de entretenimento. 245 A elite

desenvolvia a modalidade no Brasil e logo se deu conta de que somente

com os próprios recursos ficaria inviável administrar e manter a infra-

estrutura dos clubes (equipamentos, instalações etc). As contribuições dos

sócios não eram suficientes. Diante desta constatação surge o primeiro

dilema: ao admitir a entrada de recursos via bilheterias, estariam afrouxando

a ética do amadorismo, na medida em que os eventos se tornavam negócio?

242 - Da Matta , Roberto. (1995) . Brasi l : Futebol te tracampeão do mundo In :Pesquisa de campo. Revista do Núcleo de sociologia do Futebol / UERJ. Nº1.Deptº Cultura l /SR 3

243 - Meihy, José Car los Sebe Bom (1992). Para que serve o fu tebol? In : MeihyJosé. C. S. B. & Wit ter , José S. (Orgs) . Futebol e cul tura – Coletânea de estudos.São Paulo . Imesp/Daesp

244 - DaCosta , Lamart ine P. (Org.) Atlas do esporte, educação f ís ica e a t iv idadesf ís icas de saúde e lazer no Brasi l . Rio de Janeiro . Consórcio CONFEF / SESI /SESC / FENABB /ACM / CBC / COB / MESP (No prelo) .

245 - Hoje, as TV’s bancam grande par te dos custos dos pr incipais eventosespor t ivos. Os dire i tos de imagens da Copa do mundo de fu tebol de 2002 (Japão eCoréia do Sul) foram vendidos por US$ 1,04 bi lhão. Os direi tos te levis ivos daCopa do mundo de 2006 na Alemanha foram comercial izados em US$ 1,2 bi lhão.(Folha de São Paulo – Especial Ano 2000, 23 de maio de 1999, p .7)

254

246 Os clubes bem cedo teriam suas arquibancadas, mesmo que somente

nas arenas esportivas, abertas aos interessados que estivessem dispostos a

pagar pelos espetáculos. O dinheiro como critério de acesso já retirava a

imagem da permanência de um ideal de distinção social aristocrático, de

natureza quase estamental, como a historiografia do futebol brasileiro não se

cansa em marcar.

Atualmente, o futebol brasileiro não somente se popularizou, como

também se articulou como abrangente indústria do lazer, da mídia, dos

equipamentos esportivos entre outras, destinadas a diferentes modalidades

de consumo (produtos variados), alavancando negociações milionárias.247

Porém, a impressão que temos é que as leis e as regulamentações ainda

permanecem incipientes diante da complexidade da inserção deste esporte

em nossa sociedade. Ainda hoje, no início do 3º milênio, permanece a

246 - Caldas (1990) argumenta que o surgimento da Associação Paulis ta deEsportes Athlét icos em 1913 teve como propósi to a organização do futebolpaul is ta e também a cobrança de ingresso nos estádios. Tal propósi to também foiobjet ivado pela cr iação em 1908 da Liga Metropoli tana de Spor ts Athlét icos noRio de Janeiro. “As arrecadações, na verdade, v isavam manter autônomo oDepartamento de Futebol de cada clube. Se no in íc io as grat i f icações eram dadaspelos sócios r icos, agora elas ser iam ret iradas das vendas do jogo. Esseprocedimento, como veremos, cr iar ia sér ios problemas ao fu tebol brasi le iro e seusdir igentes” . (p .38) O torcedor que pagava ingressos exigia um futebol de melhorqual idade (p.67) .

247 - A FIFA considera que o número de prat icantes de fu tebol no Brasi l es teja naordem de 7 ,5 milhões . A CBF, no entanto, contabil iza os seguintes números: onzemil jogadores federados, 800 clubes federados e mais de dois mil a t le tas a tuandoem todo o mundo, a lém de cerca de t reze mil t imes amadores par t ic ipando dejogos organizados; tr in ta milhões de prat icantes; e 300 estádios, com mais decinco milhões de lugares . Para a CBF, dos US$ 250 bi lhões anuais que o futebolmovimenta no mundo, est ima-se, que o Brasi l contr ibui com US$ 32 bi lhões.Anualmente são fabr icadas no país 3 ,3 milhões de chute iras para fu tebol decampo; se is milhões de bolas de couro, 32 milhões de camisetas , sem contar asdest inadas aos jogadores profiss ionais . Helal , Ronaldo, Soares , Antonio J . &Salles , José Geraldo do C. (2004) In : Lamart ine P. DaCosta . (Org) . At las doesporte, educação f ís ica e a t iv idades f ís icas de saúde e lazer no Brasi l . Rio deJaneiro. Consórcio CONFEF / SESI / SESC / FENABB /ACM / CBC / COB /MESP (No prelo)

255

tensão entre um modelo de administração amadora do esporte e o modelo

de gestão empresarial, este último está presente nas formulações das

propostas de lei geradas nos últimos dez anos. Talvez a análise de Bourdieu

(1983)248 nos auxilie na reflexão acerca desta tensão. Segundo esse autor, o

esporte tem sua história relativamente autônoma, que mesmo articulada com

os grandes acontecimentos político-econômico “tem seu próprio tempo, suas

leis de evolução, suas próprias crises, em suma, sua cronologia específica.”

(p.113).

Como sabemos, ainda permanece fortemente agregada a alguns

dos principais clubes uma estrutura em forma de “castas”, onde o poder

parece um dote de família, em que os dirigentes permanecem como donos

dos clubes em um modelo patrimonialista de administração. Professor

Manoel Tubino (1991)249, em seu relato no Fórum – Futebol, o desafio dos

anos 90, apontou este fato, quando colocou que “o sistema do futebol

brasileiro é feudal, pré-capitalista, visto que quatro ou cinco pessoas

comandam-no em cada região do país.” (p.7)

Apesar das tentativas, desde o início dos anos 90, ainda não foi

possível implantar mecanismos legais que dêem transparência

administrativa ao futebol. É necessário apontar que essa situação não ocorre

somente no futebol. Outras modalidades enfrentam tensões no processo de

gerenciamento que parecem entravar o seu desenvolvimento. Este processo

248 - Bourdieu, Pierre (1983). Como é possível ser espor t ivo? In : Questões desociologia. Rio de Janeiro. Ed. Marco Zero.

256

tem sido tenso e, conseqüentemente, pouco consensual. Fervorosas

discussões são apresentadas na mídia e em fóruns específicos sobre as

propostas de legislação esportiva.

Os anos 90 também foram marcados pela tensão gerada pelo

questionamento da legitimidade da ‘Lei do Passe’. A quem interessava o fim

da desta lei na estrutura do futebol profissional brasileiro? Quando o embate

se intensificava, as frentes se posicionavam - cada qual buscando seus

argumentos justificativos. A Lei Pelé propunha modificar essa estrutura

administrativa, extinguindo o que alguns chamavam de semi-escravidão,

conforme afirmou o próprio Pelé, na época ministro dos Esportes ao Jornal

Folha de São Paulo em 22 de setembro/1995: “O que ocorre hoje é

escravidão” 250 Antônio Carlos Caruso Ronca, reitor da PUC - SP, também

apresentou seus argumentos contra essa lei:

“Passados 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares,continuamos a acha natural a existência de uma categoriaprofissional que ainda vive sob o regime de semi-escravidão. (...)A Lei do Passe é perversa e ardilosa. Quando atende aosinteresse dos que dela se beneficiam, permite que o jogador sejatratado como um profissional. Quando não, o atleta é o objeto cujodono detém o passe, versão moderno do “dono de almas”. Termoque antigamente designava o senhor de escravos.” (Folha de SãoPaulo, 22 de set/1995, p.2)

249 - Tubino, Manoel J . Gomes. (1991). (Resumo de relatos) In : Fórum Futebol , odesaf io dos anos 90. Por to Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul ,Pró-Reitor ia de Extensão. 28 e 29 de nov/1990. 5-8p.

250 - Jornal Folha de São Paulo. 22 de setembro de 1995. Caderno 4, p . 4 . Essatambém é a opinião do ex-jogador Afonsinho, conforme sua entrevis ta para aRevista Liberdade em 1989. Revista Liberdade, agosto de 1989. O craque escravodo car to la . p .6

257

Retornaremos a Lei Pelé em uma seção à frente, respeitando a

cronologia dos fatos.

Nos capítulos seguintes, parte da estruturação esportiva brasileira e,

especialmente, a que determina a existência do termo amador nos textos-

leis, bem como as discussões originadas a respeito do futebol, será

analisada. Portanto, realizaremos alguns recortes nos textos-leis da

constituição brasileira que sirvam para dar suporte às nossas análises.

Capítulo XDo Estado Novo a Constituição de 1988

Segundo Tubino (2002)251, foi no Estado Novo, sob o pretexto da

necessidade de organização nacional, que surgiu a primeira lei do esporte

brasileiro – o decreto-lei nº 3.191/1941. O governo de Getúlio Vargas, por

intermédio da criação do Conselho Nacional de Desportos (CND), assumiria

a tutela do esporte, o que prevaleceu até 1985.

“(...). E foi justamente no futebol que começaram os grandesconflitos esportivos no Brasil. Esses conflitos levaram mais tardedurante o Estado Novo, à intervenção do Estado no esporte. Aintenção do Estado, embora tenha sido romper com os indícios de‘desordem’ existentes, não deixou de ser o início da

251 - Tubino, Manoel J . (2002). 500 anos de legis lação espor t iva brasi le ira – DoBrasi l-Colônia ao in ício do século XXI . Rio de Janeiro . Shape.Neste momento, temos que ressal tar a importância da obra do Prof . Dr. ManoelJosé Gomes Tubino em nosso encontro com as le is . Esta obra apontou oscaminhos que nos d irecionaram ao foco de nosso in teresse.

258

regulamentação ou normatização do esporte brasileiro.” (Tubino,2002. p.21)

Torna-se importante entendermos como a Lei nº. 3.191/41 se

posicionava frente ao esporte nacional.

O governo de Getúlio Vargas parece ter entendido desde cedo o

grande alcance social do esporte e, provavelmente, por isso percebeu ser

fundamental para o seu programa governamental o controle deste espaço,

pela própria ideologia de controle e organização dessa época. Até então não

se viu uma interferência do Estado no esporte, já que os clubes e as

federações se auto-gerenciavam. As federações estaduais adotavam leis

diferenciadas, atendendo os interesses próprios de seus filiados.

Com a implantação desta lei, o Estado buscou estabelecer três

pontos básicos de controle: 1) a indicação de como deveria ser gerenciada a

prática esportiva; 2) a regulamentação das atividades esportivas; e 3) a

definição do papel do Estado diante das manifestações esportivas.

Observa-se que o Estado centralizador de Getúlio Vargas entendia

que o esporte era uma das faces da identidade nacional, ao mesmo tempo

que representava o espírito de modernidade a ser implantado no Brasil.

Caberia ao esporte, nesta perspectiva, a função de elemento de

fortalecimento das relações entre o povo e o Estado.

Entretanto, a fundamentação desta lei de 1941 trazia possivelmente

marcas dos conflitos ocorridos no futebol no processo de profissionalização.

Tubino (2002) afirma que: “os conflitos ocorriam, geralmente, na área do

futebol, por causa do inicio do profissionalismo.” (p.25)

259

A desorganização do esporte nacional era explícita no início dos

anos 30 do século XX e, neste contexto, segundo Tubino (2002), a

participação do Brasil em eventos internacionais foi acentuada. A lei de

1941, ao criar o CND, instituiu que este órgão deveria dar prosseguimento

ao processo de regulamentação do esporte brasileiro, modernizando-o e

fazendo-o progredir. Portanto, a Lei 3.199/41 passou a determinar todas as

diretrizes de gerenciamento do esporte nacional.

A adoção do futebol como cultura de massa pela população

brasileira passou a ser o parâmetro para a intervenção estatal. Observa-se

no estudo destas leis, embora não apareçam de forma explícita, distinguindo

ou diferenciando nenhuma prática, que os legisladores parecem ter

desenvolvido os textos-leis, tendo o futebol como plano de referência.

Entretanto, somente nas leis mais recentes é que o futebol passa a ser

contemplado com artigos específicos.

A seguir, realizaremos uma análise dos capítulos e artigos destas

leis e das subseqüentes que se relacionam ao amadorismo, profissionalismo

e à especificidade do futebol.

10.1 - Decreto-Lei 3.199 de 1941

260

Este decreto-lei recebeu, durante os 44 anos de sua vigência várias

ementas através de outros decretos-leis. Tubino (2002) analisou estes anos

como um período de tutela do estado sobre o esporte brasileiro.

Realizaremos uma análise dos pontos em que os termos amador e

profissional são colocados no texto-lei.

No capítulo I – Do conselho Nacional de Desporto e dos Conselhos

Regionais de Desportos, no Art. 3º - Compete precipuamente ao CND:

“b) incentivar por todos os meios, o desenvolvimento doamadorismo, como prática de desportos educativa porexcelência, e ao mesmo tempo exercer rigorosa vigilânciasobre o profissionalismo, com o objetivo de mantê-lo dentro deprincípios de estrita moralidade.” (grifos nossos).

Observar-se no artigo 3º, que já se fazia distinção oficial entre

esporte amador e esporte profissional. Observemos que o amadorismo era

visto como educativo. Parece que estamos diante da idéia latente de que o

dinheiro corrói o espírito do esporte, embora o trabalhismo do Governo

Vargas reforçasse positivamente a organização das profissões. O fato de o

futebol e os esportes em geral não serem vistos como qualquer outra

profissão no seio da valorização do trabalho pareceu-nos uma questão

interessante. O texto-lei traz a idéia do valor educativo do esporte em

contraposição à profissionalização esportiva.

Vejamos a idéia de controle no texto-lei ao estabelecer uma rigorosa

vigilância sobre o profissionalismo. Entretanto, sob quais aspectos estariam

voltadas as lentes do controle? Seria sob a possibilidade de ganhos

elevados pelos jogadores e dirigentes?

261

Observemos que o futebol naquele momento já era um esporte de

massa e possuía sua própria organização, embora com freqüentes tensões

entre os organizadores paulistas e cariocas, na tentativa de se estabelecer

como principal responsável pelo gerenciamento da modalidade.252 Todavia,

a formalização do profissionalismo colocava a modalidade em patamar

distinto de outras organizações esportivas naquele período.

No Capítulo III – Das confederações desportivas, no Art. 15º, no

parágrafo único, estabelecia-se que o futebol estaria vinculado à

Confederação Brasileira de Desportos – CBD, juntamente com outras

modalidades que não tinham confederação especializada (tênis, atletismo,

remo, natação, saltos, water-polo, volley-ball, o hand-ball, entre outros).

Portanto, cabia ao CBD o gerenciamento de todas estas práticas no território

nacional, pelo fato de que estas ainda não haviam se organizado

individualmente. Naquele período, outras modalidades já apresentavam suas

próprias confederações e, por isso, a lei lhes facultava o direito e a

competência de suas próprias determinações.253

252 - Um exemplo dessa tensão pode ser constatado na composição da seleçãobrasi leira que fo i ao Uruguai para a 1ª Copa do Mundo. A Confederação Brasi le irade Despor tos – CBD, entidade car ioca, havia se desentendido com a AssociaçãoPaul is ta de Esportes Atlé t icos – APEA. A APEA quer ia incluir um dir igente nacomissão técnica da seleção, mas, a CBD não concordou. Tal s i tuação culminouno fato de alguns dos pr incipais jogadores paul is ta não terem par t ic ipado doevento no Uruguai, enfraquecendo a equipe brasi le ira . Os paulis tas reiv indicavamuma vaga na comissão, pelo fa to de entre os 26 at le tas convocados, 15 serem declubes paul is tas . Saldanha, João (1963) . Os subterrâneos do futebol . Rio deJaneiro. Edições tempo brasi le iro .A ausência mais lamentada foi de Artur Fr iedenreich, considerado o melhorjogador brasi le iro daquele tempo.

253 - Naquele momento, outras cinco confederações foram rela tadas no texto- lei :Confederação Brasi le i ra de Basket-ball ; Confederação Brasi le ira de Pugil ismo;Confederação Brasi le i ra de Vela e Motor; Confederação Brasi le ira de Esgrima; eConfederação Brasi le ira de Xadrez. (Capítu lo II I , Art . 15, da Lei 3 .199, de14/04/1941) .

262

Observemos que o futebol, naquele momento, já tinha sua

importância solidificada no cenário nacional. Entretanto, a APEA e a CBD

continuavam seus embates. Os paulistas reivindicavam equilíbrio de poder

entre as duas entidades. Para a APEA, a força de representação do futebol

brasileiro deveria ser equivalente entre as duas entidades, pois a CBD

sempre privilegiava os cariocas na montagem das comissões que se

relacionavam ao futebol, seja no campo ou no plano administrativo (Caldas,

1990). Estavam em jogo o privilégio e prestígio da representação oficial do

futebol brasileiro junto à FIFA, e os paulistas queriam também este espaço.

Devido à pressão dos dirigentes deste Estados, não coube

alternativa aos legisladores; criaram o CND, que deteve o controle do

futebol, bem como de outras modalidades.254

O controle que a lei estabelecia sobre o esporte nacional fica

evidente na descrição do Art.16º do capítulo III:

“Periodicamente, de três em três anos, contando da data de suainstalação, o Conselho Nacional de Desporto, por iniciativa própriaou mediante proposta da confederação ou da maioria dasfederações interessadas, examinará o quadro das confederaçõesexistentes e julgará da conveniência de propor ao Ministro daEducação e Saúde, quer a criação de uma ou mais confederaçõesnovas, quer a suspensão de qualquer das confederaçõesexistentes.”

Fica explícito o poder de intervenção que a lei confere ao Estado.

254 - Essa tensão foi apresentada na Par te 2 , que trata da prof iss ional ização.

263

Ainda no Art. 16º, no parágrafo 2, estabelecia-se a diferença do

futebol para as outras modalidades, ao relatar que “o futebol constitui o

desporto básico e essencial da CBD”. Nota-se que esta determinação

estabelece uma prioridade oficial para a modalidade, colocando-a em um

patamar de destaque nas políticas esportivas governamentais. Isto indica o

reconhecimento do futebol pelo Estado Novo como um elemento cultural

altamente disseminado e, portanto, de interesse estratégico.

Outro fato de destaque aparece no Art. 32º do capítulo VI, ao admitir

a condição profissional do atleta: “Nas exibições desportivas públicas de

profissionais, nenhum quadro nacional poderá figurar com mais de um

jogador estrangeiro.” Embora não deixasse claro a que modalidade

estivesse se referindo, compreendemos que tal ressalva estivesse

direcionada ao futebol, uma vez que o debate sobre a importação de

jogadores naquele período já se fazia bastante intenso, inclusive com vários

defensores da valorização dos jogadores brasileiros. Um Estado

nacionalista, com as características da época, era, em geral, xenófobo.

Cunha (s/d)255 argumenta que, no início da década de 40, os jogadores

argentinos estavam em alta e alguns clubes brasileiros passaram a requisitar

os argentinos em suas equipes de futebol, como teria ocorrido com o

Fluminense, que contratou, de uma única vez, quatro jogadores.256

255 - Esta obra é uma produção independente , real izada sem vínculos com aprodução acadêmica. Uma obra r ica de p is ta e argumentos para estudos his tór icosno futebol. Cunha, Loris Baena (s /d) . A verdadeira h is tór ia do futebol brasi le iro .Rio de Janeiro. Edi tora Public i tár ia , Comunicação e Market ing Ltda.

256 - O Fluminense contratou Spinell i , Mallazo, Reganeschi e Rongo. O jornal AGazeta de São Paulo, publ icou uma repor tagem denominada "Sinal aberto . . .Jogadores estrangeiros. . .”, assinada pelo seu correspondente car ioca, JoséSi lver ia . A matér ia quest ionava a importação dos jogadores argent inos pelos

264

No capítulo IX – Disposições gerais e transitórias, no Art. 53º,

estabelece-se o dever das entidades desportivas, quando esta apresenta em

seu quadro a prática profissional: “É dever das entidades desportivas, que

abranjam desportos de prática profissional, organizar a superintendência

técnica das atividades amadoras correspondentes e realizar torneios e

campeonatos exclusivamente de amadores.” Observemos que a distinção

entre práticas profissionais e amadoras sinaliza para a diferença

estabelecida pelo Estado; por esta razão, os jogadores não podiam disputar

uma mesma competição. Todavia, o que distinguia este dois princípios não

nos pareceu explícito no texto-lei. Quais os motivos de se proibir a

competição em que amadores e profissionais pudessem estar presentes?

Seria a diferença técnica? Ou pelos objetivos educadores atribuídos ao

amadorismo? Quais as finalidades apresentadas pelo Estado para que fosse

dever das entidades desportivas a realização de torneios e campeonatos

exclusivamente para amadores? Seria um mecanismo de incentivo à

massificação esportiva e à modificação do perfil de homem que o governo

pretendia para a nação? Vejamos que as intervenções seguintes

sinalizavam para a necessidade de abrir espaço ou incentivar outras formas

de vínculo esportivo da população.

c lubes brasi le iros. “Uma vis ta de o lhos pela l is ta das importações nestes úl t imosdez anos, chegaremos faci lmente à conclusão de que recebemos mais “mercadoriases tragadas” do que craques de fu tebol. . . ( . . . ) const i tu i uma dolorosa amostra deque não possuímos mater ial humano, valendo-nos da importação demediocr idades. . .”(A gazeta , 12 de ago/1944. p .2) Mazzoni (1939), tambémassinala es ta indisposição frente a contratação de jogadores estrangeiros para osclubes brasi le iro. Argumenta Mazzoni que o nosso prof iss ional ismo não estava emmesmo patamar econômico que em outros lugares , e , portanto , d if icul tando nossascontratações.

265

10.2 - Lei 6.251 de 08 de outubro de 1975, regulamentada pelo decretonº 80.228 de 25 de agosto de 1977

A revogação do Decreto-lei nº 3.199/1941 ocorreu em 1975, durante

o período do governo militar de Ernesto Geisel, por intermédio da Lei nº

6.251/1975.

Segundo Tubino (2002), no ano de 1971, um minucioso

levantamento da realidade esportiva nacional, coordenado por Lamartine

Pereira da Costa, apontou três conclusões primordiais:

“(1ª) foi possível comprovar um crescimento de importância nosetor Educação Física/Desportos; (2ª) o crescimento ocorreu comdistorções regionais e setoriais; (3ª) os maiores efeitos dadeficiência qualitativa incidiram nos meios educacionais, nacirculação e transmissão de conhecimento técnicos, nosrelacionamentos entre as organizações e na ação governamentalrepresentada pela legislação em vigor.” (p.40)

Tubino argumenta que, devido a essas conclusões, ficou claro que o

esporte brasileiro deveria se modernizar, fato que poderia ser concretizado

com a Lei 6.251 embora ainda com forte ingerência do Estado.

Essa lei, no entanto, não fazia referência ou classificação quanto ao

status dos atletas. Os termos profissional e amador, que outrora eram

tratados como tipos de vínculos, no escopo dessa lei não apresentavam

distinção. Pareceu-nos que esses conceitos não causaram celeuma para os

legisladores.

Esta nova lei, no entanto, passou a estabelecer, no Art. 10º, quatro

conceituações quanto à forma de organização do sistema esportivo nacional,

266

a saber: I - Comunitário; II - Estudantil; III - Militar; e IV - Classista. Esta lei

veio ainda fixar o período de vigência dos mandatos para os cargos de

presidente e vice-presidente das confederações, federações e ligas

desportivas, que não poderão exceder três anos, todavia, permitida a

recondução por mais uma única vez (Art. 19º).

Especificamente sobre o futebol, somente havia alusão no Art. 48º,

quando se referia a um concurso da loteria esportiva, consoante ao

atendimento do preparo e participação das delegações brasileiras nos anos

de Campeonato Mundial de futebol. Observemos que o financiamento por

parte do Estado sobre os eventos esportivos se encontrava respaldado em

leis. Apesar de todas as receitas proporcionadas pelos eventos esportivos

(bilheterias dos campeonatos estaduais, nacionais e internacionais),

patrocínio, porcentagens sobre as transações dos passes dos jogadores etc,

ainda existia um mecanismo de incentivo estatal.

Ainda no mandato do presidente Ernesto Geisel, em 1977, foi

instituído o Decreto nº 80.228, que regulamentou a lei nº 6.251/1975. Este

novo decreto especificava detalhadamente outras questões que se faziam

ausentes na versão de 1975.

No Livro II – Dos Recursos para a Educação Física e os Desportos,

estabeleceu-se a obrigação das associações que mantêm desporto

profissional: “As associações desportivas que mantenham desporto

profissional, ficarão impedidas de receber recursos financeiros federais, se

não praticarem, no mínimo, três desportos olímpicos”. Observemos a

tentativa governamental de impulsionar o desenvolvimento esportivo

267

brasileiro com a possibilidade de os clubes somente terem recursos da

união, se incentivassem a prática de modalidades olímpicas. Provavelmente,

pretendia-se com tal medida a construção de um modelo esportivo do

Estado brasileiro nos moldes de auto-afirmação já presentes em outros

países desenvolvidos. O esporte representa no imaginário social a

capacidade de desenvolvimento da nação.

No Capítulo X – Do Desporto Profissional, constituem-se pela

primeira vez os esportes profissionais no Art. 69º – “É admitida a prática do

profissionalismo no futebol, no pugilismo, no golfe, no automobilismo e no

motociclismo.” Em contrapartida, o Art. 70º veta a prática do profissionalismo

em quatro tópicos:

“I – nas associações desportivas com sede em municípios demenos de cem mil habitantes, ressalvadas as que na data desteregulamento já o pratiquem;II – nas associações desportivas que não integrarem o SistemaDesportivo Nacional;III – no desporto estudantil, militar e classista e;IV – nas categorias infantil e juvenil de qualquer ramo desportivo.”

No tópico I, parece provável que desde aquela época já se percebia

que o esporte ou uma associação esportiva poderia ser um bom caminho

para aumentar a participação política. Entretanto, devido ao excessivo

número de pequenas cidades, sem este veto perder-se-ia o controle. No

tópico II insere-se também sobre o controle necessário, pois o sistema era

centralizado. No tópico III, parece que a proibição ao profissionalismo

justificava-se pelo fato desta possibilidade corromper as atividades de lazer

268

ou educativas, necessárias para manutenção do status social de imagem do

governo.

No Art. 71º, encontramos ainda a condição de vinculação do atleta

profissional: “Observada a legislação trabalhista, a prática do

profissionalismo pelas entidades desportivas será realizada de acordo com

as normas expedidas pelo Conselho Nacional de Desportos.”

Especificamente sobre o futebol, encontramos o Art. 77º, onde se

determinam as relações de trabalho entre os atletas profissionais e as

entidades desportivas, que deveriam ser pautadas em uma lei implantada

um ano antes, a Lei nº 6.354 de 2 de setembro de 1976.257

Em 1978, um novo decreto-lei determinou que a renda de um

concurso da loteria esportiva deveria ser para o custeio do Campeonato

Brasileiro de futebol (Decreto-Lei nº 1.617 de 03 de março de 1978).

Até esse período, conforme estas leis e decretos, havia intervenção

direta do Estado na organização esportiva nacional, todavia, já começava a

florescer uma nova perspectiva, onde o processo de democratização por que

passavam grande parte da estrutura administrativa social brasileira chegaria

também ao esporte, visto que esse já se encontrava em plena expansão e

desenvolvimento, principalmente do futebol. “O País caminhava para uma

reestruturação democrática e, como não poderia deixar de ser, um novo

257 - A lei nº 6 .354 de 2 de setembro de 1976 dispunha sobre as relações detrabalho do at le ta prof iss ional de fu tebol. Em seus 33 ar t igos, essa le i reza osdire i tos e deveres dos a t letas prof iss ionais e seus contratantes. Na real idade essalei buscava adaptar a Lei de Consol idação do trabalho às especif ic idadesnecessár ias ao jogador de fu tebol. O texto revela alguns pontos bastantequest ionáveis .

269

período de reflexões e discussões do esporte brasileiro viria junto com a

desintoxicação autoritária do Brasil.” (Tubino, 2002, p.87)

10.3 – Constituição de 1988

No final da década de 80 do século XX, foi implantada a constituição

de 1988. O novo texto-lei, no tocante ao andamento do esporte nacional,

tentara corrigir distorções interpretativas impostas pelas leis anteriores.

Tubino (2002) denominou esta nova fase da legislação esportiva brasileira

de O período da ruptura e da constitucionalização do esporte brasileiro, que,

segundo o autor, a partir de 1985, devido à chegada da “Nova República”,

teria ocorrido uma ruptura do status quo na ordem jurídica esportiva

nacional.

“Neste período, o Brasil conseguiu eliminar a defasagem com orenovado conceito de esporte, já aceito nos países de graucivilizatório mais adiantado. Os passos que iniciaram amodernização do esporte brasileiro e o desmanche dos nósautoritários foram, sem dúvida, a ação renovadora do ConselhoNacional de Desporto (CND), até então o centro irradiador datutela estatal no esporte, e a Comissão de Reformulação doEsporte Brasileiro, instituída pelo Ministério da Educação (MEC),em 1985.” (p.91)

Todavia, antes da Constituição de 1988, o Decreto nº 91.452, de 19

de julho de 1985, por iniciativa do MEC, instituía uma comissão que seria

270

responsável pela reformulação do esporte nacional. Esta comissão,

presidida pelo Dr. Manoel Tubino, teria impulsionado as renovações do

esporte brasileiro, sendo a base de sustentação para os argumentos

relacionados ao esporte na Constituição de 1988.

O texto constitucional de 1988 apresentava apenas três artigos

destinados ao esporte (Art. 24º)258, (Art. 50º)259 e o (Art. 217º)260. As

informações contidas nestes artigos tratavam-no de forma geral, não

determinando nenhuma especificidade. Todavia, distinguiam práticas

desportivas formais e não-formais261, além de estabelecer um diferenciado

tratamento para o desporto profissional e o não profissional. Melo Filho

(1990)262 argumentou que era louvável a percepção dos constituintes ao

substituir a expressão amador pela expressão não profissional. Para esse

258 - Art . 24º – Compete à União, aos Estados e ao Dis tr i to Federal legis larconcorrente sobre:IX – educação, cul tura, ensino e desporto .

259 - Art . 50 – Inciso XXVIII , le tra “a”“A proteção às par t ic ipações individuais em obras colet ivas e à reprodução daimagem e voz humana, inclusive nas at iv idades despor t ivas”.

260 - Ar t . 217 – É dever do Estado fomentar prát icas despor t ivas formais e não-formais , como direi to de cada um, observados: I I I – O tratamento diferenciado para o desporto prof iss ional e o não-prof iss ional .

261 - Esses termos (formais , não-formais) são de cunho universal na educação,ut i l izados pela UNESCO. A opção por ta is terminologias nos textos- leis se deucomo palavra do jargão técnico tradicional em educação, que pode encampardist in tas explicações. O espor te no mundo in te iro tem grande dif iculdade de seestabelecer uma pol í t ica bem defin ida, o que parece começar pelas concei tuações.Si lva (2004) argumenta que Formal “tem que se calcar ou se modular na formaindicada ou preconizada por le i ( . . . ) Indica tudo que se refere à forma prescr i ta ouindicada.” (p.632) Não Formal , é u t i l izado para assinalar “o que não tem forma ounão esta sujei to a forma.” (p.941) Si lva, De Plácido e . (2004) . Vocabulár ioJur ídico . Rio de Janeiro. Edi tora Forense . Veremos, na Lei Zico, uma def iniçãodos termos para o espor te nacional .

262 - Melo Fi lho, Álvaro . (1990). Desporto na nova const i tu ição. Porto Alegre.Sergio A. Fabris Edi tor .

271

autor, o termo amador era hipócrita e irreal, e que já estava morto e

fossilizado, pois era parte da filosofia idealista do Barão de Coubertin, parte

da história dos Jogos Olímpicos. Melo Filho argumenta ainda, que um dos

grandes equívocos do esporte nacional e que prejudicava, sobretudo, o

futebol era a existência inexplicável e descabida de uma legislação unificada

para o esporte profissional e não profissional. Era necessário tratamento

distinto em função das especificidades de cada esporte.

No ano de 1989, uma lei complementar veio estabelecer as

condições de benefícios ficais, visando favorecer o esporte amador. A Lei nº

7.752 de 14 de abril de 1989 (Lei Mendes Thame) buscava incentivar

pessoa física ou jurídica a destinar parte da sua contribuição do Imposto de

Renda ao esporte amador. Observemos que aqui o amador significa o

esporte que não gera recursos para seu próprio desenvolvimento.

O referido texto-lei não especificava com clareza a quais

modalidades esportivas pretendiam beneficiar, apenas determinava ser um

beneficio concedido para incentivo do esporte amador. O Art. 2º em seus 11

tópicos relatava o que considerava como atividade esportiva. Interessante

observar que apenas uma modalidade recebe tratamento diferenciado, como

foi o caso do xadrez.

“Art.2º - Para os objetivos da presente Lei, consideram-seatividades desportivas:I – a formação desportiva escolar e universitáriaII – o desenvolvimento de programas desportivos para o menorcarente, o idoso e o deficiente físico;III – o desenvolvimento de programas desportivos nas própriasempresas em benefícios de seus empregados e respectivosfamiliares;

272

IV – conceder prêmios a atletas nacionais em torneios ecompetições realizadas no Brasil;V – doar bens moveis ou imóveis a pessoa jurídica de naturezadesportiva, cadastrada no Ministério da Educação.VI – o patrocínio de torneios, campeonatos e competiçõesdesportivas amadoras;VII – erigir ginásio, estádio e locais para prática de desporto;VIII – doação de material desportivo para a entidade de naturezadesportiva;IX – prática do jogo de xadrez;X – doações de passagens aéreas para que atletas brasileirospossam competir no exterior;XI – outras atividades assim consideradas pelo Ministério daEducação.”

Nota-se que a manutenção do termo amador propiciou aos clubes a

possibilidade de adquirirem recursos financeiros empresariais para a

manutenção das equipes ditas “não profissionais”, embora que alguns

destes atletas, considerados como amadores, eram atletas remunerados,

semelhantemente ao que ocorria com atletas amadores do futebol antes de

1933, jogadores remunerados, todavia rotulados de amadores. Retomamos

a idéia de que amador neste contexto significava os esportes que não

geravam recursos.

Observemos que sobre o rótulo de esporte amador, desde os anos

80, diversos clubes e empresas implantaram equipes competitivas nas

modalidades consideradas olímpicas. Esta denominação amador, no

entanto, se relacionava à modalidade, e não à vinculação contratual dos

atletas, pois, por intermédio das aberturas da lei, inúmeros ídolos esportivos

eram contratados por essas equipes, que os mantinham com elevados

salários.

273

Empresas privadas nacionais e internacionais nos mais distintos

ramos econômicos perceberam ser este espaço uma forma benéfica de

publicidade de seus produtos, aliando a imagem de sucesso e prestígio dos

ídolos nas mais diversas modalidades. Observemos que muitos eventos

passaram a permitir o nome (denominação fantasia dos produtos da

empresa) como denominação das equipes, em detrimento do nome da

agremiação a qual se vinculara. Os clubes ofereciam sua estrutura e as

empresas entravam como gestoras dos recursos. Vários clubes de

expressão e tradição esportiva emprestavam seus nomes a este tipo de

vínculo.263

O governo de José Sarney regulamentou a Lei nº 7.752 de 14 de

abril de 1989, através do Decreto-Lei nº 98.595 de 18 de dezembro de 1989,

que dispunha sobre os benefícios fiscais, na área do imposto de renda,

concedidos ao desporto não profissional e dá outras providências.

Entretanto, nesta nova descrição, o termo amador aparece substituído pelo

termo não profissional. Observemos que o conceito ainda é problemático.

263 - Supergásbras , Pirel l i , Lei tes Nestlé , Sadia , Banespa, BCN, Unimep, Rexona,Laqua de Fior i , Olimpikus, Unibam, Report Suzano, Atlânt ica Boa Vista , entreoutros. Observemos que, d iante destas marcas, o nome do clube era ignorado ousecundar izado. O voleibol fo i a pr incipal modal idade a usufruir destapossibi l idade, o que permanece a té nossos dias, como as equipes de voleibolfeminino BCN – Osasco, Rexona – Paraná, MRV – Minas, embora, nestas úl t imastemporadas, o nome do clube Minas venha à frente da empresa patrocinadora, aconstrutora MRV. As empresas BCN e Rexona cont inuam sendo prest ig iadas emdetr imento aos clubes ou cidades de or igem. Observemos que os clubes doFlamengo e do Vasco não t iveram como manter as equipes de voleibol feminino,que f izeram a f inal da l iga 2000/2001, pois não conseguiram empresasinteressadas em manter o patrocínio. Nestes c lubes, os nomes da empresa nãoapareceriam nos not iciár ios , como acontece quando se patrocinam outros clubesem que o nome não tem expressão pública.

274

No Capítulo I – Das disposições preliminares, o Art. 2º, estabelece-

se que “ao CND caberá, no âmbito administrativo, dirimir dúvidas conceituais

suscitadas pela legislação de desportos, para fins de benefícios fiscais.”

Conforme já argumentamos anteriormente, parece que, imbuídos

pelos artigos das referidas leis, havia predisposição por parte dos dirigentes

em manter o termo amador e, desta forma, justificar a presença de equipes

competitivas em diversas modalidades. Embora tenha ocorrido a

substituição do termo “amador” pela expressão “não profissional” no

enunciado do Decreto-Lei 98.955, ainda continuava possível usufruir os

benefícios da lei. Poderíamos refletir se não seria por este motivo que até

hoje alguns clubes (e mesma parte da crônica esportiva) ainda se referem a

algumas modalidades, em que a competição já se estabelece em alto grau

de organização financeira, com atletas remunerados, como esporte amador.

Parece que amador ou não-profissional significa, no contexto

discursivo das leis e dos clubes, a dificuldade da modalidade esportiva gerar

receitas para seu próprio sustento, desenvolvimento e, especificamente, o

peso da folha de pagamento dos atletas “amadores” em relação às receitas

geradas por estas modalidades. O investimento em tais modalidades

funciona como filantropia dos clubes e das empresas, apesar de, no

contexto do Estado Novo, o conceito ter outros contornos, como já vimos.

A Lei 7.752/1989 e o Decreto-Lei 98.595/1989 não se referiam

especificamente sobre o futebol. As descrições relacionavam-se ao esporte

de uma forma geral, não gerando favorecimento nem limitações a qualquer

modalidade.

275

Apesar da substituição do termo amador pelo “não profissional”,

percebe-se que ainda não foi possível entender claramente esta distinção

conceitual no esporte brasileiro. Até mesmo no futebol, esporte que se

consolidou como profissional nos anos de 30, ainda podia perceber uma

freqüente dificuldade de conceituação, principalmente relacionada ao perfil

do atleta. Ser amador ainda deixava diferentes possibilidades de

significados, pelo menos no discurso da imprensa e do cidadão, como

podemos constatar nos primeiros capítulos deste estudo. Ser amador

poderia representar não somente uma pureza em relação ao vínculo e

comprometimento com o esporte e o clube (amor, dedicação, vestir a camisa

etc), como também a falta de competência, aquele que prática o esporte de

forma pouco eficiente (a prática do jogo em descompasso com o padrão do

esporte de rendimento, uma prática pouco racional).

Observemos que apenas o texto constitucional e seus respectivos

ajustes (Lei nº 7.752 de 14 de abril de 1989 e Decreto-Lei nº 98.595 de 18

de dezembro de 1989) não conseguiram abarcar os anseios dos esportistas

e dirigentes. Tornava-se necessária a modernização. Com a abertura

proporcionada pela Constituição de 1988, novas fundamentações foram

tramitadas e novas perspectivas foram colocadas à prova, conforme se

seguiu.

A seguir, analisaremos os textos-leis Zico e Pelé, por percebermos

o interesse e a polêmica provocados por estes documentos.

276

Capítulo XIOs alicerces recentes das leis atuais

11.1 – O curto período do governo Collor

O início do governo de Fernando Collor de Mello em 1990 seria

marcado por mudanças significativas na economia nacional. Medidas

drásticas para o controle inflacionário foram implantadas, gerando graves

crises internas.

Quanto ao esporte, uma de suas primeiras medidas foi a suspensão

da Lei nº 7.752 (Lei Mendes Thame), que tratava dos benefícios fiscais

destinados ao esporte amador, o que pareceu um retrocesso para

esportistas e amantes do esporte.

A primeira lei destinada ao esporte neste novo governo foi a da

regulamentação da profissão de treinador de futebol. A Lei nº 8.650 de 22 de

abril de 1993 dispunha sobre as relações trabalhistas do treinador e seus

contratantes. Esta passaria a ser a primeira lei que especificaria uma

profissão relacionada ao esporte no Brasil.

De acordo com Tubino (2002) o governo Collor promoveu uma

destruição da boa perspectiva traçada para o esporte nacional, embora

ressalte as importantes contribuições do ministro do esporte daquele

governo (Ministro Arthur Coimbra – Zico), que deixou um projeto de

reformulação do esporte nacional, que viria se concretizar nos governos

posteriores.

277

11.2 - Lei nº 8.672 de 06 de julho de 1993 (A Lei Zico)

Arthur Antunes Coimbra, o famoso jogador ‘Zico’, foi nomeado

Secretário Nacional de Esporte no governo Fernando Collor, no ano de

1990. O ex-atleta de futebol formou uma equipe destinada a traçar os novos

rumos do esporte brasileiro, visando à modernização de toda a estrutura

administrativa e, inclusive, à ingerência estatal. Esta equipe propunha-se

também gerar o arcabouço que determinasse todas as diretrizes esportivas,

atribuindo a função de cada seguimento (Estados, municípios, instituições de

ensino, federações, confederações, clubes, associações etc).

O governo Collor foi destituído por impeachment e, em seu lugar,

assumiu o vice-presidente Itamar Franco. Devido a esta situação, não foi

possível a permanência do secretário Zico e sua comissão à frente das

reformas esportivas que vinham sendo gestadas. O novo presidente indicou

novos nomes para dar seqüência às modificações em curso. Aproveitando a

mudança de governo a pressão da ‘bancada da bola’264 foi intensa, alterando

as diretrizes que a equipe de Zico estava traçando. Entretanto, parte das

idéias do projeto de Zico foi acatada pelos novos encarregados em conduzir

as reformas esportivas, que teve como redator o deputado federal carioca,

Arthur da Távola. Alguns críticos, no entanto, julgam que as propostas

deixadas por Zico tenham sido desfiguradas pela nova comissão, inclusive o

264 - Bancada da bola é a denominação que a imprensa espor t iva deu aospar lamentares que, de uma forma direta ou indireta, têm envolvimento comfederações ou clubes de futebol .

278

próprio Zico teria declarado: “Não chama essa lei de Zico porque ela não

tem nada a ver comigo.” (Kfouri, 2000) 265

Em 1990, Zico apresentou as propostas ao governo para a

reformulação do esporte nacional no Fórum – Futebol, o desafio dos anos

90, em Porto Alegre. Dentre estas propostas, ele apresentou a polêmica

tentativa de transformar os clubes em empresas privadas, justificando que

tal situação apresentava resultados satisfatórios em alguns países das

Europa. Apontou naquele momento três possibilidades para os clubes

brasileiros:

“1)Transformar-se em sociedade comercial de naturezadesportiva; 2) Constituir sociedade comercial de naturezadesportiva independente, controlando a maioria do capital comdireito a voto; 3) Contratar sociedade comercial para gerir suasatividades profissionais. (Fórum – Porto Alegre – RS, 1990, p.17)”266

Ao finalizar seu discurso no Fórum, Zico conclamou que o futebol

deveria “ser tratado e administrado de forma profissional, deixando de lado o

amadorismo e o paternalismo que existem hoje em dia.” (p.18) O

amadorismo aqui significa atividade rudimentar e pouco racional praticada

pelos amantes do esporte. Assim, nota-se que o conceito é um

desqualificativo.

265 - Gomes, Marcos & Carrano, Paulo César R. (2000). O futebol entre palco ebast idores – Entrevista com o jornal is ta esport ivo Juca Kfour i . In : Paulo Cesar . R.Carrano. Futebol : paixão e pol í t ica . Rio de Janeiro. DP&A Editora.

266 - Coimbra, Artur A. (1991). Palestra. Fórum – Futebol, o desaf io dos anos 90.Resumos dos re la tos. Porto Alegre, RS. Universidade Federal do Rio Grande doSul .

279

Figura 09 – Charge Políticos Futebol Clube – Bancada da bola - Folha de SãoPaulo. 23 de fev/1997. Caderno Especial: País do futebol

O Projeto Zico foi estudado por Ronaldo Helal (1997)267 em Passes

e impasses: futebol e cultura de massa no Brasil, e por Marcelo Proni

(2000268), em A metamorfose do futebol. Apresentaremos parte dos

argumentos destes autores nos nossos apontamentos.

No capítulo 5 de sua obra, Helal realiza uma análise de como a

imprensa carioca, representada pelos jornais O Globo e o Jornal do Brasil,

267 - Helal , Ronaldo (1997) . Passes e impasses . Petrópol is , RJ. Vozes.

268 - Proni , Marcelo Wishaupt (2000). A metamorfose do futebol . Campinas, SP.Unicamp.

280

realizou a cobertura sobre a repercussão da lei proposta por Zico. Em seus

apontamentos, Helal colocou que a ‘resistência da tradição’ fez com que o

projeto fosse descaracterizado principalmente pela pressão exercida pelos

dirigentes que julgavam as diretrizes sugeridas pelo projeto prejudiciais aos

seus interesses. Segundo Helal, concluiu-se “que a sua aprovação na

íntegra mudaria a estrutura básica da administração do futebol, alterando

profundamente, o sistema de poder que governava as relações entre clubes,

federações e CBF.”(p.108) Helal indicou alguns pontos que comprometeriam

a sua aprovação: a modificação do sistema eleitoral da CBF; a redução do

poder das federações passaria aos grandes clubes a autonomia de

gerenciamento dos eventos e negócios; a extinção do Conselho Nacional de

Desporto e, com isso, o fim da interferência do Estado; a adoção do modelo

‘clube-empresa’; e o fim da ‘lei do passe’.

Helal analisou que “o projeto representava o fim dos métodos

tradicionais de administração baseados na política de troca de favores,

interferência política e na contraditória relação entre dirigentes amadores e

jogadores profissionais.” (p.108)

Helal, em suas análises também apontou os motivos pelos quais as

federações e a CBF opor-se-iam ao Projeto Zico’. Argumentou que estava

em jogo o fato de a nova estrutura programada pelo projeto mudar

determinantemente o poder que estava nas mãos dos dirigentes e a

resistência destes pautava na perda do poder.

Conforme Proni (2000), o contexto brasileiro da época não estava

preparado para as mudanças propostas no projeto inicial de Zico, pois

281

apresentava muitas propostas revolucionárias. “Na verdade, a maioria das

equipes ditas profissionais não estavam preparadas para transitar para um

novo status jurídico que implicaria um maior transparência nos suas

negociações comerciais.”(p.166) Interessante observar que a análise de

Proni segue no mesmo sentido do discurso elaborado pelos dirigentes dos

principais clubes que, mais tarde, devido à pressão, conseguiram frear parte

das reformas. Realmente não poderiam estar preparados para a mudança,

pois de acordo com Proni, seria exigida maior transparência nas

negociações. Pensamos que não se tratava de estarem ou não preparados,

mas a perda do poder e a necessidade da transparência constituíram os

principais motivos de revolta dos dirigentes.

Vejamos que Proni sinalizou no mesmo sentido de Helal, ao colocar

que os poderes da CBF e das federações constituíram entrave para as

propostas de Zico, pois o sistema eleitoral pretendido “transferia para as

grandes equipes o controle sobre o futebol brasileiro.” (p.167) É interessante

notar que os clubes podiam não estar preparados para a mudança

administrativa, passando a empresas comerciais, mas a CBF e as

federações entendiam que esta reforma passaria aos grandes clubes o

controle sobre o futebol brasileiro. Todavia, os grandes clubes também não

estavam a favor das reformas.

Para os pequenos clubes, principalmente, o que parecia inviável era

a “perda de regalias legais e isenções fiscais”, o que poderia provocar o

fechamento de muitos clubes, ou teriam que se “transformar em equipes

amadoras.” (Proni, 2000, p.166) O que significa amador neste contexto?

282

Quanto à ‘Lei do Passe’, o projeto Zico propunha sua total extinção,

deixando o jogador livre para firmar seus futuros contratos. O artigo 32º

estabelecia que: “ao término do contrato de trabalho, o atleta de futebol

estará livre para celebrar um novo contrato com qualquer entidade.” Não

seria nenhuma novidade que os interessados em manter este vínculo

protestariam criando uma barreira a sua aprovação. Diante desta

possibilidade, os membros da ‘bancada da bola’ argumentavam que isso

representaria a morte da iniciação esportiva que era tradicionalmente

desenvolvida pelos clubes. Alegavam que se não houvesse a Lei do Passe,

dificilmente as grandes equipes iriam investir na formação, pois não lhes

seria garantido o retorno do investimento.269 Para os principais clubes, os

clubes já consagrados do futebol brasileiro, seria mais prudente contratar os

atletas já formados em outros centros de desenvolvimento esportivo. Neste

contexto, nota-se que a suspensão da Lei do Passe provocava um

desconforto no seio do futebol brasileiro, onde os dirigentes dos clubes que

sentiam prejudicados utilizavam os mesmos argumentos que Hirschman

(1992) mapeou nas retóricas das transformações sociais. Para os dirigentes,

tal suspensão seria uma ameaça e provocaria um efeito perverso, ao

contrário do que acreditavam os fomentadores da lei. Ou seja, a extinção

seria um mecanismo inibitório da formação de jogadores para o futuro (tese

269 - Edmundo Si lva (Presidente do Clube de Regatas do Flamengo) e DeputadoEurico Miranda (Presidente do Clube de Regatas Vasco da Gama), debateramsobre o f im da “lei do passe”. Para eles o f im da le i do passe representar ia amorte da in iciação espor t iva nos clubes. Ambos demonstravam suas apreensões,ao projetarem as d if iculdades pelas quais passar iam os clubes sem o retorno doinvest imento real izado na formação de base. A le i do passe segundo eles , era asegurança que o c lube t inha para manter a estru tura de in ic iação. ProgramaDebate Esport ivo da Tv Educat iva (TVE), no 26 de março de 2001.

283

do efeito perverso), bem como provocaria a redução do número de clubes

empenhados em desenvolver o futebol em categorias de base, portanto,

uma ameaça (tese da ameaça) não só aos clubes, mas também à

renovação do capital esportivo brasileiro. Outros dirigentes, aqueles mais

céticos, no entanto, acreditavam que esta mudança não ocorreria, pois, logo

perceberiam que nada seria diferente, seria uma tolice (tese da futilidade).

Este embate pôde ser acompanhado cotidianamente nos principais jornais

durante o tramite da lei.

Helal (1997) argumenta que obviamente os clubes, as federações e

a CBF se posicionaram contra esta modificação. Observemos como Helal

analisava a ‘Lei do Passe’, que estava em vigência:

“O passe nada mais é do que um contrato de vinculação exclusivade um atleta profissional a um clube. Porém, esta vinculação, nocaso do futebol, atrelava o jogador ao clube mesmo após otérmino de seu contrato, impedindo-o de trabalhar em outraentidade esportiva. Apenas quando completasse 32 anos e casoestivesse atuando por mais de dez anos ininterruptos em ummesmo clube podia um atleta ter o direito ao ‘passe livre’.” (p.112)

Observemos como este texto comprometia os direitos do jogador.

Ele era um funcionário de vínculo permanente forçado, conforme colocou

Ricardo Benzaquen Araújo (1980) 270 :

“uma carta que assegura ao clube direitos absolutos sobre atransferência do jogador (...) Conseqüentemente, para mudar declube, de emprego, o jogador terá que ser vendido ou trocado, em

270 - Araújo, Ricardo Bezenquen de. (1980). Os gênios da pelota: um estudo dofutebol como prof issão. (disser tação de mestrado). Rio de Janeiro , UFRJ.(Programa de pós-graduação em antropologia social)

284

negociações nas quais, embora consultado, nunca possui apalavra final.” (p.75)

Segundo Proni, ao suprimir a ‘lei do passe’, provocava temor

principalmente nos pequenos clubes, que os levariam à falência, acreditando

que tal medida causaria desempregos entre técnicos e jogadores e também

provocaria a elevação dos salários e as reivindicações dos jogadores já

contratados. Para os grandes clubes, estava em jogo a perda da

possibilidade de lucro com as transferências de jogadores para o exterior

(Proni, 2000, p.167). Podemos ver na lei do passe uma das confusões de

igualação da vida profissional de um jogador a qualquer profissional liberal

na época. A lei proporcionava um forte desequilíbrio de poder entre os

jogadores e o clube. Este último tinha poderes de excluir o atleta do cenário

do futebol, caso tivesse algum tipo de conflito.271

Os lobbys políticos exercidos pela CBF e pelas federações sobre os

legisladores intensificaram-se, tentando frear o andamento das reformas. A

CBF não abriria mão do gerenciamento arbitrário que vinha exercendo,

apesar da força eminente do ‘clube dos 13’.272 Para manter seus direitos, a

271 - Veremos es te exemplo no capí tu lo XV, sobre o jogador Afonsinho.

272 - O ‘Clube dos 13’ é uma associação autônoma que surgiu, no ano de 1987, dajunção dos t reze pr incipais c lubes brasi leiros em cinco Estados (Rio de Janeiro:Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco; São Paulo: Cor inthians, Palmeiras ,Santos e São Paulo; Minas Gerais : Atlét ico e Cruzeiro; Rio Grande do Sul :Grêmio e In ternacional ; Bahia: Bahia) . Naquele momento, es te grupo f icouresponsável pela organização do campeonato brasi le iro, que foi denominado CopaUnião, com o objet ivo de controlar o futebol nacional , quando os clubesquest ionavam a atuação da CBF. In icialmente , negociava de forma colet iva oscontratos , como ocorreu com a parceria com a Rede Globo de televisão e com opatrocínio da Coca-Cola e da Var ig . Com o passar dos anos, a ent idade foicrescendo até que, em meados dos anos 90, chegasse aos 20 clubes a tuais . Hoje, oclube dos 13 é apenas uma agência de intermediação de contratos , pois seupr incipal produto, o campeonato brasi le iro, é organizado pela CBF.

285

CBF utilizava seu prestígio e também a força das federações, que, diante as

mudanças propostas, se encontravam receosas da perda de poder.

Segundo Proni, tal tensão resultou em uma alteração do estatuto da

CBF, em 1991, quando assegurou a continuidade Ricardo Teixeira por mais

quatro anos. Pretendiam evitar com tal medida a interferência do Estado

(p.167).

Com a saída do Ministro Zico e sua equipe, não foi possível ao

governo sustentar todas as reformas pretendidas e, possivelmente, alguns

legisladores também não o queriam. Durante o trâmite do texto, várias

ementas foram apresentadas pela ‘bancada da bola’, bem como vetos e

alterações em parte do texto original. Apesar disso, para muitos analistas,

apesar de tudo, a Lei Zico foi um avanço, alavancando as discussões que

presenciaríamos durante toda a década de 90. Para outros analistas, no

entanto, as interferências e pressões ocorridas deixaram escapar a

possibilidade de uma ampla reformulação da estrutura esportiva nacional.

Conforme Pozzi (1998)273, “o progresso do esporte brasileiro não será tão

rápido como poderia ser, porque a Lei Zico não conseguiu acabar com a

estrutura paternalista e corporativista das confederações que regem o

esporte.” (p.208)

Os clubes, a CBF e as federações conseguiram barrar a extinção da

Lei do Passe, proposta por Zico. Tratava-se de um ponto crucial do embate

entre os legisladores, devido às intensas pressões.

273 - Pozzi , Luís Fernando. (1998). A grande jogada: Teor ia e prát ica do market ingespor t ivo. São Paulo . Editora Globo.

286

Apesar das várias críticas das equipes de assessores de Zico, o

novo texto substituto foi aprovado em 06 de julho de 1993 e sancionado pelo

presidente Itamar Franco e pelo ministro da Educação Murílio de Avellar

Hingel; em homenagem ao idealizador, recebeu o seu nome: Lei Zico.

Passaremos agora a analisar os termos estabelecidos na Lei nº

8.672/1993 (Lei Zico), principalmente no que diz respeito ao perfil do jogador

e da conceituação proposta para definir o esporte.

As disposições iniciais do Capítulo I estabeleciam os preceitos

iniciais, em que seriam pautadas as novas determinações, estipulando que

se obedeceria às normas gerais inspiradas nos fundamentos constitucionais

do Estado Democrático de Direito, todavia, mantinham o argumento já

implantado em leis anteriores, referindo-se a desporto formal e desporto

não-formal.274

O Capítulo II – Dos princípios fundamentais estabelecia no Art.2º

item VI que haveria diferenciação no tipo de tratamento dado ao desporto

profissional e não-profissional.

274 - Prát ica formal é aquela “regulada por normas e regras nacionais e pelasregras in ternacionais acei tas em cada modal idade.”(§ 1º) Prát ica “não-formal écaracter izada pela l iberdade lúdica de seus prat icantes .”(§ 2º) Lei 8.672 de 06 dejulho de 1993 - Diár io Oficial da União.

Segundo Da Costa (1988) as expressões formal , não-formal foram uti l izadastendo como base o modelo de def inições da UNESCO relat ivas à educaçãopermanente. Todavia, adquir iram configurações e conteúdos próprios devido anecess idade e coerência da prát ica do espor te denominado não-convencional . DaCosta , Lamart ine Pereira (1988). Educação Fís ica e Espor te Não Formais . Rio deJaneiro. Ao Livro Técnico S.A. Os concei tos que foram ut i l izados na car ta magnat iveram essas perspect ivas.

Segundo Bramante , e t a l (2002), a expressão esporte não formal ter ia surgidocom um sent ido mais técnico, enraizada na t radição da recreação e do lazer ,devido à d if iculdade de fechamento do concei to. Bramante , Antonio C. et a l(2002) . Brazi l : Developing Spor t for All From Public Recreat ion (1920s) toLeisure (1970s) and Heal th Promotion (1990s) In : Lamart ine, P DaCosta & AnaMiragaya. (Eds.) Worldwide Exper iences and Trends in Sport for All . Rio deJaneiro . Taf isa/Unesco/ UGF

287

No Capítulo III – Da conceituação e das finalidades do desporto, Art.

4º, parágrafo único, ao especificar sobre a forma como o desporto de

rendimento poderia ser organizado e praticado, conceitua os dois graus de

pertencimento (profissional e não-profissional), embora tenha acrescentado

outra categoria na categoria não-profissional, conforme reproduzimos:

“O desporto de rendimento pode ser organizado e praticado:I – de modo profissional, caracterizado por remuneraçãopactuada por contrato de trabalho ou demais formas contratuaispertinentes;II – de modo não-profissional, compreendendo o desporto:

a) semi-profissional, expresso pela existência de incentivosmateriais que não caracterizem remuneração derivada de contratode trabalho;

b) amador, identificado pela inexistência de qualquer forma deremuneração ou de incentivos materiais.”

Observemos que estas conceituações tentavam abarcar e distinguir

as inúmeras possibilidades de vínculos esportivos existentes no Brasil. A

definição propunha definir os critérios de participação e organização,

entretanto, pareceu-nos ainda que não tiveram alcance suficiente para

delimitar os vínculos esportivos. Observemos que ainda se referia, naquele

momento, a algumas modalidades como esporte amador, mesmo para

alguns clubes e equipes que já apresentavam o esporte com contratos de

trabalho. As modalidades de voleibol e basquetebol, por exemplo, firmavam

seus contratos com os alguns jogadores cujo perfil poderia ser denominados

de profissionais.

288

No Capítulo IV – Do sistema Brasileiro do Desporto, estabelecia-se

a criação de um Conselho Superior de Desporto, que seria o órgão instituído

para ser o instrumento representativo da comunidade desportiva brasileira

junto ao governo e responsável, entre outros fatores, por fazer cumprir e

preservar os princípios e preceitos desta lei. A formação deste conselho275

se deu pela nomeação do Presidente da República de 15 membros

pertencentes a diversos setores relacionados ao meio esportivo.

No Capítulo VI – Da Prática Desportiva Profissional, apresentam-se

os Art.18º a Art.29º relacionados aos mecanismos gerenciadores do

desporto profissional e do tipo de vínculos dos atletas, bem como os

dispositivos de transferência de clubes. Todavia, os artigos 22º e 23º são

específicos quanto ao vínculo à categoria profissional e ao tempo de

determinação do contrato, conforme reproduzimos a seguir:

275 - Art . 6º - O Conselho Superior de Desporto será composto de 15 membrosnomeados pelo Presidente da República, d iscr iminadamente:I – o Secretár io de Desporto do Ministér io da Educação e do Despor to, membronato que o preside; I I - dois , de reconhecido saber despor t ivo, indicados peloMinistér io da Educação e do Despor to; I II - um representante do Comitê OlímpicoBrasi le iro; IV - um representante das ent idades de adminis tração federal dodespor to profiss ional; V - um representante das ent idades de administraçãofederal do despor to não-prof iss ional ; VI - um representante das entidades deprát ica do despor to prof iss ional ; VII - um representante das ent idades de prát icado despor to não-profiss ional ; VIII - um representante dos at le tas prof iss ionais ; IX- um representante dos a t le tas não-profiss ionais ; X - um representante dosárbi tros; XI - um representante dos t reinadores despor t ivos; XII - umrepresentante das inst i tu ições que formam recursos humanos para o desporto; XIII- um representante das empresas que apóiam o despor to; XIV - um representanteda imprensa despor t iva. § 1º A escolha dos membros do Conselho dar-se-á poreleição ou indicação dos segmentos e se tores in teressados, na forma daregulamentação desta Lei . § 2º Quando segmentos e setores despor t ivos tornarem-se re levantes e inf luentes, o Conselho, por deliberação de dois terços de seusmembros, poderá ampliar a composição do colegiado a té o máximo de vinte enove conselheiros. § 3º O mandato dos conselheiros será de t rês anos, permit idauma recondução. § 4º Os conselheiros terão dire i tos a passagens e d iár ias paracomparecimento às reuniões do Conselho. (Seção II do Conselho Superior deDesportos , Lei Zico 8.672, de 06 de julho de 1993).

289

“Art. 22º. A atividade do atleta profissional é caracterizada porremuneração pactuada em contrato com pessoa jurídica,devidamente registrado na entidade federal de administração dodesporto, e deverá conter cláusula penal para as hipóteses dedescumprimento ou rompimento unilateral.

§1º A entidade de prática desportiva empregadora que estivercom pagamento de salários dos atletas profissionais em atraso,por período superior a três meses, não poderá participar dequalquer competição, oficial ou amistosa.

§2º Aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais dalegislação trabalhista e da seguridade social, ressalvadas aspeculiaridades expressas nesta Lei ou integrantes do contrato detrabalho respectivo.

Art. 23º. O contrato de trabalho do atleta profissional terá prazodeterminado, com vigência não inferior a três meses e nãosuperior a trinta e seis meses.

Parágrafo único. De modo excepcional, o prazo do primeirocontrato poderá ser de até quarenta e oito meses, no caso deatleta em formação, não-profissional, vinculado à entidade deprática, na qual venha exercendo a mesma atividade, pelo menosdurante vinte e quatro meses.” (grifos nossos)

Observemos que aqui a lei expressa o desejo de equilíbrio de forças

entre o clube e o atleta. O atleta já não é visto como uma propriedade do

clube, e sim como um profissional que firma um contrato de trabalho da

mesma forma que qualquer profissional liberal, de acordo com a legislação

trabalhista.

Tubino (2002), em suas análises finais acerca da Lei Zico,

apresenta 11 pontos que considerou como avanço em relação às leis

anteriores. Dentre estes pontos fundamentais, destacamos dois, por

julgamos pertinentes à discussão sobre o vínculo e a definição do

profissional.

O 3º ponto colocado por Tubino diz respeito “às possibilidades de

modernização do esporte de rendimento através de gerencias empresarias”.

290

Esta nova perspectiva, segundo esse autor, abria a possibilidade de, em

curto prazo, conduzir o Brasil a um novo modelo de gerenciamento esportivo

em todos os níveis, por intermédio do Art. 11, Seção III, do Capítulo IV

(p.143).

Outro aspecto destacado por Tubino (7º ponto) é que a Nova Lei

passou a distinguir a prática desportiva profissional pelo atleta. Na Lei

6251/75, o esporte é que era profissional, por intermédio do reconhecimento

do CND, e a partir do novo texto o atleta passou a ser a referência para a

definição. Segundo Tubino, o Art. 22º do Capítulo VI desta nova lei encerrou

a hipocrisia até então reinante; o novo texto determinava ainda “novas e

saudáveis perspectivas de relações entre entidades e atletas.” (p.144)

Observemos que Tubino aponta uma mudança estrutural na

conceituação esportiva, em que devemos passar a considerar o atleta como

profissional, e não mais a modalidade como freqüentemente ainda

presenciamos nas narrativas jornalísticas.

Veremos ainda no Capítulo III desta parte do estudo, na seção 3.2

(Lei 10.672 de 15 de maio de 2003), que estas observações realizadas por

Tubino recebem novas especificações, onde a denominação profissional

passou a ser utilizada também para a competição e os clubes esportivos.

Observamos ainda que, embora a cultura esportiva brasileira esteja

preponderantemente vinculada ao futebol, a Lei Zico não fez nenhuma

alusão específica a modalidade, mas acreditamos que todos os pontos re-

elaborados e implantados tenham sido refletidos sobre esta modalidade,

como primeiro plano da nossa cultura esportiva.

O Instituto Nacional de Desenvolvimento do Desporto – INDESP,

vinculado ao Ministério da Educação e do Desporto, no uso de suas

291

atribuições, editou uma regulamentação para o Art. 26º da Lei Zico, em que

se tratava do passe do jogador.276 A pressão dos dirigentes esportivos e dos

parlamentares vinculados ao futebol provocou a implantação da resolução nº

1 de 17 de outubro de 1996, que criava novos mecanismos regimentais para

especificar a conceituação de atleta profissional e determinar as condições

dos contratos de trabalho.

O Capítulo I – Da conceituação de Atleta Profissional e do Contrato

de Trabalho, na realidade, não conceitua o atleta, conforme parece ter sido a

intenção dos relatores da lei. Entretanto, neste tópico, passa a utilizar outras

nomenclaturas para conceituar os atletas, referindo-se ao atleta

semiprofissional (Art.2º § 6º) e retorna a expressão amador ao se referir ao

atleta (Atleta amador - Art. 3º alinea II).

Duas observações se fazem necessárias neste momento: 1ª – A

preocupação aparente desta nova resolução se acentuava em assegurar

aos clubes o direito sobre a Lei do Passe, criando mecanismo de inibição de

troca de clubes; 2ª – A referida resolução INDESP legislava apenas sobre a

modalidade de futebol.

11.3 – Lei nº 9.615 de 24 de março de 1998 (A Lei Pelé)

A Lei nº 9.615 foi sancionada em 24 de março de 1998, no primeiro

mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso, recebendo o nome de

Lei Pelé, em homenagem ao mais conceituado atleta brasileiro de todos os

276 - No capí tu lo VI – Da prát ica desport iva prof iss ional .

Art . 26º – Caberá ao Conselho Super ior de Desporto f ixar o valor , oscr i tér ios e condições para o pagamento da importância denominada passe.

292

tempos, Edson Arantes do Nascimento. Sua regulamentação se deu por

intermédio do Decreto nº 2.574 de 29 de abril de 1998.277

Segundo Proni (2000), a Lei Pelé originou-se das dificuldades

encontradas para restaurar o futebol brasileiro, inclusive por falha ou

brechas no texto da Lei Zico, onde o Estado pretendia recuperar parte do

controle perdido sobre as entidades esportivas.

O Senador Artur da Távola, um dos pareceristas da Lei, argumentou

que “a nova medida propunha a reestruturação do sistema desportivo

brasileiro sob bases que pregam sua descentralização, um maior

desintervencionismo estatal no setor e o respeito à autonomia das estruturas

associativas.” (Tavola, 1998, p.5) Observemos que, enquanto Proni

argumentou que a proposta da Lei Pelé era restaurar parte do controle pelo

poder governamental, já Artur Távola sinaliza o contrário, ao colocar que o

objetivo era coibir a intervenção estatal. Segundo Pozzi (1998), a Lei Pelé

buscava recuperar os principais temas suprimidos da Lei Zico, por falta de

interesse de fazê-lo sair do papel. Enquanto a Lei Zico estabelecia a

obrigatoriedade a entidade de praticas desportivas e as entidades federais

de administração de modalidades profissional tornarem-se empresas, a Lei

Pelé flexibilizava esta intervenção. Pelo texto da Lei Pelé tornava-se

facultativa que o clube optasse pelo registro de sociedade civil com fins

comerciais (clube-empresa).278

277 - Este Decreto-Lei a l terou alguns capí tu los e seções da Lei Pelé.

278 - Ver Celidonio Neto , Lauro, et a l . (2002). Parecer jur íd ico sobre as a l teraçõesda Lei Pelé. In : Antonio C. Kfouri Aidar , Marvio Pereira Leoncini & João JoséOliveira . (Orgs) . A nova gestão do futebol . Rio de Janeiro. FGV Editora.

293

As entidades esportivas, ao tomarem conhecimento do projeto

apresentado no Congresso Nacional, rapidamente apresentam seus

argumentos de repúdio ao novo texto. As críticas foram similares às sofridas

pela Lei Zico no momento de sua discussão, todavia, a Lei Pelé foi

considerada ‘autoritária’, ao não ouvir as partes interessadas (CBF,

federações, associações de atletas etc). Segundo Aidar (2002)279, apesar da

grande inovação, com a extinção do passe esta lei teria causado um enorme

prejuízo às entidades de práticas esportivas formadora de atletas, uma vez

que, não mais seriam detentoras do direito sobre o passe dos atletas

formados nas equipes de base. Observemos que esta era a preocupação de

alguns dirigentes quando a lei encontrava-se em tramite.

Dias após o conhecimento do texto do projeto, o ‘clube dos 13’,

juntamente com outros clubes da primeira divisão, apresentaram um

manifesto contendo 9 pontos de crítica ao texto proposto. Nestes pontos,

criticavam a forma de condução do projeto, ressaltando o seu caráter

autoritário. Observemos como alguns dos pontos assemelham aos

argumentos apontados por Hirschman em suas teses.

Ogawa (1999), em reportagem para a revis ta Exame, apresenta um balançoacerca do dinheiro que circula no mundo do futebol , enfat izando a importância daLei Pelé quanto às novas exigências aos clubes. Ogawa, Alfredo. (1999, 14 dejulho) . Bola S.A. – Porque o fu tebol está atra indo tanto d inheiro. In : Revis taExame. 97-106p.

279 - Aidar , Car los Miguel . (2002) . Desmist i f icando a Lei Pelé . In : Antonio C.Kfour i Aidar , Marvio Pereira Leoncini & João José Oliveira (Orgs) . A novagestão do futebol . Rio de Janeiro. FGV Editora.

294

Quadro 02 – Manifesto dos Clubes da primeira divisão e do Clube dos 13 280

Os clubes integrantes da 1ª Divisão (Série A) do futebol brasileiro, reunidos no Rio deJaneiro, tornam público o seu posicionamento diante da divulgação do projeto da LeiPelé:

a) Preliminarmente, acolhem e apóiam todos os dispositivos da Lei Zico (8.672/93)reproduzidos, na íntegra, no projeto de lei Pelé, e que, percentualmente, correspondema 51% da proposta de lei remetida ao Congresso Nacional, surpreendentemente, emregime de urgência.

b) Aprovam, igualmente, os outros 30% de dispositivos “clonados” da Lei Zico, objetode mínimas alterações formais e redacionais.

c) Estranham a ideologia autoritária de “estatização do desporto”, que se coloca nacontramão do processo de privatização, quando, contrariamente, se exige “maissociedade, menos Estado”, num evidente retrocesso e deslegitimação da regulaçãojurídico-desportiva projetada nos restritos 19% de inovação.

d) Rejeitam a obrigatoriedade dos clubes transformarem-se em sociedades comerciais,seja por afrontar os direitos de associação, seja por malferir a autonomia desportiva,asseguradas constitucionalmente.

e) Reiteram que a faculdade de transformação dos clubes em empresas, sabiamenteprevista no art. 11 da Lei Zico, configura-se como modelo ideal, porque é harmônico como espírito democrático da Constituição e porque ajustado à realidade sócio-economico-desportivo do país.

f) Sublinham que a pura e simples extinção do passe implicará no êxodo crescente deatletas para o exterior, sem qualquer indenização para o clube formador, o queprovocará, certamente, a desertificação das torcidas nos estádio, a fuga depatrocinadores e a falência irreversível dos clubes.

g) Realçam, outrossim, a necessidade de humanização da “lei do passe”, de modo atornar os atletas sócios, parceiros, e beneficiários direito de qualquer transformação queos envolva, sobretudo, agora, quando a MP n. 1523, de 11 out.96, extinguiu, semmanifestação contrária, a vintenária aposentadoria especial dos atletas profissionais.

h) Os clubes signatários destacam que representam quase um milhão de associadosestatutários e, pelo menos, 90% (noventa por cento) da torcida brasileira, sendoresponsáveis diretos pela cessão de atletas para as constantes conquistas mundiaispela Confederação Brasileira de Futebol, inclusive nas categorias de base.

i) Finalmente, com lastro nesta legitimidade de representação, expressam irrestritaconfiança no Congresso Nacional, convictos de que, após democráticos debates,resultará uma lei que reflita as peculiaridades nacionais, engrandeça o desportobrasileiro e fortaleça sua maior paixão – futebol.

Rio de Janeiro, 14 de setembro de 1997Clube dos Treze, Abracef e Clubes da 1ª Divisão

Segundo Proni, os clubes demonstravam que os principais

dirigentes esportivos do país estavam contrários à interferência do Estado,

bem como à modificação do modelo de gerenciamento (p.199).

280 - Folha de São Paulo , 15 de set /97

295

Antes da aprovação, vários vetos foram feitos ao texto original,

suprimindo especificações que não resultaram em consenso pelos

legisladores. Alguns capítulos sofreram pequenas modificações, que

descaracterizaram a força do texto-lei, o que Tubino (2002) chamou de

desfiguração da Lei Pelé. Abordaremos as considerações de Tubino, depois

de examinarmos os tópicos que julgamos necessários para nosso estudo, ao

final desta seção.

A desorganização das principais entidades gerenciadoras do futebol

brasileiro parece ter sido um dos pivôs que desencadearam a necessidade

de reformulação de toda a estrutura administrativa, todavia, os perfis dos

dirigentes e os mecanismos de manutenção adotados pelos clubes são

favoráveis à permanência dos perfis administrativos destes indivíduos.

A pressão exercida pela ‘bancada da bola’ foi que provocou as

principais mudanças, bem como os vetos institucionais. Praticamente todos

os principais Estados que apresentam um futebol competitivo têm seu (ou

seus) representante (s) nas Câmaras e no Congresso Nacional, defendendo

os interesses dos seus correligionários. Esta atuação efetiva não permitiu

que a Lei Pelé fosse aprovada na íntegra, pois julgavam que seria prejudicial

aos seus clubes e às federações. O deputado federal Eurico Miranda, vice-

presidente do Clube Vasco da Gama na época, durante o trâmite do projeto,

apresentou 16 emendas ao projeto na Câmara Federal. Proni argumenta

que o propósito do deputado era “abrir brechas que desvirtuassem o texto

original.” (p.198)

296

Todavia, apesar de vetada em partes, a Lei Pelé tratou de assuntos

que outras leis não propunham legalizar. Observamos que várias partes dos

seus artigos foram reproduções de parte da Lei Zico, embora a maioria

destes artigos tenha sido colocada em outros capítulos ou seções diferentes

do texto desenvolvido pela equipe de Pelé.

Focalizando nosso objetivo, observaremos nas leis apenas os

tópicos que se relacionam ao perfil de distinção da forma de vinculação do

atleta e, especificamente, algumas seções que tratam do futebol.

O capítulo II – Dos princípios fundamentais no Artigo 2º, alínea V,

relata acerca “do direito social, caracterizado pelo dever do Estado em

fomentar as práticas desportivas formais e não formais”. Na alínea VI, trata-

se “da diferenciação, consubstanciado no tratamento específico dado ao

desporto profissional e não profissional.”

Observemos como os conceitos são colocados no texto-lei, no

entanto, não ficam claros os limites de sua abrangência.

No Capítulo III - Da Natureza e das Finalidades do Desporto, no

Art.3º, discorre-se a respeito do desporto de rendimento, legislando quanto a

sua organização e ao nível de vínculo do praticante. Esta lei estabelece as

mesmas especificações que a Lei Zico, no seu Capítulo III, Art.4º, parágrafo

único, quanto à classificação profissional e não-profissional. Todavia,

modificou o texto relacionado ao esporte semiprofissional, conforme

especifica o item A: “Expresso em contrato próprio e específico de estágio,

com atletas entre quatorze e dezoito anos de idade e pela existência de

297

incentivos materiais que não caracterizam remuneração derivada de contrato

de trabalho.”

Quanto ao item B, relacionado à característica do atleta amador, fica

estabelecido que seria: “identificado pela liberdade de prática e pela

inexistência de qualquer forma de remuneração ou de incentivos materiais

para atletas de qualquer idade”. O mesmo dispositivo da lei anterior não se

referia à idade do atleta, o que foi acrescentado nesta nova descrição.

Observemos que as especificações destinadas à conceituação do

atleta amador estabelece que os atletas não poderão receber nenhuma

espécie de remuneração ou incentivo. Parece que esse texto novamente

não conseguia estabelecer os limites, uma vez que mesmo esportes

considerados amadores tinham seus principais atletas firmando vantajosos

contratos. Atletas de distintas modalidades (voleibol, basquetebol, futsal,

entre outros) já vinham sendo requisitados pelos principais clubes do país.

Sob quais princípios estes atletas estavam enquadrados que os permitiam

manter a conceituação de atleta amador? Sob que égide se dava essa

distinção?

Aqui, como na lei Zico, há um equilíbrio das relações entre clube e

atleta, mas também é expressa uma ressalva para que não fosse

desestimulado o investimento de formação de atletas pelos clubes, seja nas

divisões de base na Lei Pelé, seja no primeiro contrato do atleta na lei Zico.

Pareceu-nos ter sido este texto lei o único que se ocupou especificamente

em legislar sobre o futebol e, provavelmente, tenha sido este o motivo que

levou a ‘bancada da bola’ a se mobilizar, bloqueando as implantações que

298

julgavam comprometedoras dos seus privilégios administrativos, bem como

a eminente possibilidade da perda de poder.

O Art. 92º, do capítulo XI, Disposições transitórias, estabelecia que:

“os atletas profissionais de futebol, de qualquer idade, que, nadata da vigência da Lei nº 9.615, de 1998, tiveram assegurado odireito de passe livre, permanecerão nesta situação, assim comotodos os atletas das demais modalidades de prática desportiva,cuja rescisão unilateral de seus contratos de trabalho dar-se-á nostermos dos arts. 479281 e 480282 da Consolidação das Leis doTrabalho – CLT.”

Até que esta lei entrasse em vigor, as determinações eram

generalizadas a todas as modalidades esportivas, não ressaltando ou

legislando especificamente sobre nenhuma delas. Observemos que, apesar

das variadas modalidades praticadas no Brasil, apenas o futebol recebe este

tratamento diferenciado.

281 - Art . 479. Nos contratos que tenham termo est ipulado, o empregador que, semjusta causa, despedir o empregado, será obr igado a pagar- lhe, a t í tu lo deindenização, e por metade, a remuneração a que ter ia d ire i to até o termo docontrato .Parágrafo único. Para a execução do que dispõe o presente ar t igo, o cálculo dapar te var iável ou incer ta dos salár ios será fei to de acordo com o prescr i to para ocálculo da indenização referente à rescisão dos contratos por prazoindeterminado.

282 - Art . 480. Havendo termo est ipulado, o empregado não poderá se desl igar docontrato , sem justa causa, sob pena de ser obr igado a indenizar o empregador dosprejuízos que desse fa to lhe resultarem.§ 1º A indenização, porém, não poderá exceder àquela a que ter ia d irei to oempregado em idênt icas condições. (Renumerado pelo Decreto- lei nº 6 .353/44)§ 2° Em se t ra tando de contrato de ar t is tas de teatros e congêneres , o empregadoque rescindi- lo sem justa causa não poderá trabalhar em outra empresa de teatroou congênere, salvo quando receber atestado l iberatór io , durante o prazo de umano, sob pena de f icar o novo empresár io obr igado a pagar ao anter ior umaindenização correspondente a dois anos do salár io est ipulado no contratorescindido. (Acrescentado pelo Decreto- lei nº 6 .353/44 e revogado pela Lei nº6.533/78)(CLT, Capítulo I - Do contrato Individual do Trabalho - Disposições Gerais .1998)

299

Outras modalidades como o voleibol, basquetebol e futsal, apesar

de já demonstrarem naquele momento forte estrutura administrativa, de

certa forma observada como exemplo pelos legisladores,283 não conseguiam

manter uma competição com vínculos clubísticos, o que seria fundamental

para obter o interesse popular. Os principais clubes sociais de prestígio

nacional não se envolvem com estas modalidades da mesma forma que se

dedicam ao futebol.284

Observemos que, nas outras modalidades, é de certa forma comum

que algumas equipes sejam temporárias e os atletas ao final das

temporadas sejam requisitados por outras, inclusive equipes internacionais.

Vejamos o exemplo do voleibol, que, na Liga Feminina Nacional de 2001 o

Estado do Rio de Janeiro teve duas equipes que participaram do

campeonato (Clube de Regatas do Flamengo e Clube de Regatas Vasco da

Gama), disputando entre si as finais. Todavia, o bom resultado não foi

suficiente para manter as equipes na temporada seguinte, quando ambas as

equipes foram desfeitas.

No basquetebol também ocorreu o mesmo. Nas temporadas de

2000, os quatro ‘grandes clubes’ cariocas (Botafogo, Flamengo, Fluminense

283 - Car los Arthur Nuhzman, em entrevis ta ao Programa do Jô, da rede Globo deTelevisão do dia 25 de abr i l de 2003, colocou que após a Olimpíada de Moscouem 1980, quando era presidente da Confederação Brasi leira de Voleibol ,estabeleceu que nenhum contrato in ternacional poder ia ser f i rmado com at letascom idade infer ior a 18 anos. Tal medida evi tava a in terferência de empresár iosque quer iam levar os jogadores brasi le iros para c lubes europeus e as iá t icos.Vejamos que o d ir igente do voleibol adotou uma postura de controle in terno,quando percebeu que estava perdendo seus at le tas a inda em formação para clubesinternacionais .

284 - Observemos, no entanto, que muitos destes clubes que hoje sãotradicionalmente conhecidos como clube de fu tebol, sua or igem ocorreu em outrasprát icas esport iva.

300

e Vasco) estiveram presentes no Campeonato Brasileiro Masculino, todavia

na temporada seguinte, o Botafogo e o Fluminense desfizeram-se de suas

equipes, alegando falta de recursos financeiros que sustentassem a

modalidade. No ano de 2004, apenas o Flamengo manteve sua equipe na

competição nacional.

O Art. 45º – Da Prática Desportiva Profissional, Capítulo V, também

especifica referências ao tratamento diferenciado dado aos atletas

semiprofissionais de futebol, conforme reproduzimos na íntegra:

“A atividade do atleta semiprofissional de futebol é caracterizadapela existência de incentivos materiais que não caracterizemremuneração derivada de contrato de trabalho, pactuado emcontrato formal de estágio firmado com entidade de práticadesportiva, pessoa jurídica de direito privado, que deverá conter,obrigatoriamente, clausula penal para as hipóteses dedescumprimento, rompimento ou rescisão unilateral.

§1º Estão compreendidos na categoria dos semiprofissionaisos atletas com idade entre quatorze e dezoito anos incompletos.

§2º Só poderão participar de competições profissionais osatletas semiprofissionais com idade superior a dezesseis anos.

§3º Ao completar dezoito anos de idade, o atletasemiprofissional de futebol deverá ser obrigatoriamenteprofissionalizado, sob pena de, não o fazendo, voltar à condiçãode amador285, ficando impedido de participar em competiçõesentre profissionais.

§4º Do disposto neste artigo estão excluídos os desportosindividuais e coletivos olímpicos, exceto o futebol de campo.”(grifos nossos)

Observemos que, apesar de o Art. 45 se destinar a legislar sobre o

futebol, o § 4º ainda reforça o objetivo da lei.

285 - Essa vol ta à condição de amador é denominada de reversão. Discut i remos areversão no capí tu lo XIII desta par te do estudo. Aqui amador s ignif ica oprat icante sem contrato of ic ia l .

301

Pareceu-nos evidente que praticamente todos os tópicos da Lei

Pelé pautavam prioritariamente o futebol como referência e as outras

modalidades viriam a reboque neste conjunto de especificações.

Retornemos às interpretações de Tubino (2002), quando apontou

que a Lei Pelé (Nº 9.615) foi desfigurada com a nova Lei 9.981 (Lei Maguito

Vilela), implantada em 14 de julho de 2000. Segundo Tubino, quando se

esperava a aprovação tranqüila da Lei Pelé, já que haviam ocorrido as

modificações polêmicas do documento, ainda no primeiro mandato do

Presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), o texto foi novamente

modificado. Acreditava Tubino que tudo seria facilmente encaminhado, pois

o governo FHC entrava em seu segundo mandato. Todavia, com a entrada

do novo ministério, presidido por Rafael Greca, o texto foi modificado:

“alterando substancialmente as tendências do futebol brasileiro, uma vez

que o novo texto incidiu primordialmente sobre os negócios deste esporte,

sem dúvida o primeiro no interesse nacional.” (p.239)

Entretanto, Tubino reconhece que muitos pontos da Lei Pelé eram

extremamente polêmicos e de difícil execução. Por esse motivo, juntamente

com o quadro conjuntural naquele momento, a Lei foi re-encaminhada para o

debate no Congresso Nacional, originando novas discussões e fortalecendo

vários interesses que nem sempre levavam em conta as necessidades da

modernização do esporte.

Apesar da desfiguração dos textos-leis propostos por Zico e Pelé,

tais tentativas de organização provocaram uma inquietude no processo de

302

gerenciamento do esporte nacional, levando a inúmeros debates e críticas

do modelo esportivo vigente. Segundo Tubino (2002), ambas as leis abriram

novas perspectivas para o esporte nacional, embora os interesses plurais

pudessem provocar modificações que comprometessem a concretização de

um esporte transparente.

Capítulo XIIAs Leis atuais

12.1 - Lei nº 9.981 de 14 de julho de 2000(Lei Maguito Vilela) 286

A Lei 9.981 de 14 de julho de 2000 provocou profunda alteração nos

preceitos da Lei Pelé, principalmente nos tópicos relacionados ao futebol

profissional brasileiro, conforme relatou Tubino (2002).

A denominação Maguito Vilela se decorre da homenagem ao

senador relator desta lei por sugestão de membros da ‘bancada da bola’.

Maguito Vilela que foi, em períodos anteriores (1992-1995), vice-presidente

da Confederação Brasileira de Futebol – CBF, em que Ricardo Texeira já era

o presidente da entidade. Esta informação por si só, já demonstra o grande

envolvimento (ou comprometimento) do relator com os dirigentes esportivos

brasileiros.

286 - Luiz Alber to Maguito Vilela , natural de Jata í (GO), é advogado e pecuaris ta .Entrou para a v ida pol í t ica desde 1975, quando se elegeu como vereador em suacidade. Ocupa o cargo de Senador da República desde 1995.

303

Tubino (2002) acredita que a Lei 9.981 de 14 de julho de 2000 tenha

sido aprovada recebendo forças dos descontentes com a Lei Pelé, que

aproveitaram o fato de as lentes sociais (Imprensa e Ministério Público)

focarem, naquele momento, as questões das casas de bingo. Aproveitando

o deslocamento desta atenção, alguns membros da “bancada da bola”

conseguiram rapidamente retomar as discussões acerca do esporte,

especificamente o futebol no Congresso Nacional.

O Projeto Maguito Vilela pode ser entendido como um documento

proposto pelos principais dirigentes do ‘clube dos 13’ e da CBF que visava

manter ou resgatar alguns privilégios que julgavam ter perdido com a

aprovação da Lei Pelé. Portanto, esta lei surgiu em um momento de grande

tensão nas esferas que governavam o país.

Inúmeros foram os debates que provocavam a inquietude da

imprensa e alguns políticos que pretendiam conduzir o esporte nacional a

uma nova vertente.

Relembramos que nosso foco de análise está centrado na

denominação do perfil dos atletas e como a Magna Carta os reconhece.

A princípio, percebe-se que a Lei Maguito Vilela foi um reajuste da

Lei Pelé nos tópicos que pareciam comprometer os interesses dos dirigentes

esportivos e seus correligionários.

Em relação ao nosso foco principal, que é à conceituação e status

dos atletas, constatamos que a Lei Maguito Vilela não apresentou alteração

diferenciada das que constam no texto da lei anterior.

304

12.2 – Lei 10.672 de 15 de maio de 2003

Em 2003, na gestão do Presidente Luis Inácio Lula da Silva foi

aprovada a Lei nº 10.672, que altera dispositivos da Lei Pelé (Lei nº 9.615,

de 24 de março de 1998).

Estas novas disposições estabeleceram no Art. 2º as normatizações

acerca da exploração e gestão do desporto profissional, que passaram ainda

a ser consideradas como exercício de atividades econômicas.

Tubino (2002) argumentava que as novas diretrizes do esporte

passavam a conceituar o atleta como profissional, e não mais as

modalidades. Neste novo texto-lei, ocorre o retorno das especificações

destes conceitos, conforme o Art. 2º, inclusive criando outras especificações,

como competição profissional, conforme rege o Art. 26º, parágrafo único:

"Considera-se competição profissional para os efeitos desta Lei aquela

promovida para obter renda e disputada por atletas profissionais cuja

remuneração decorra de contrato de trabalho desportivo." (grifos nossos).

Relembremos que a Lei Pelé, em seu Art. 3º 287, marcava este

conceito apenas sobre o desporto. Agora a conceituação retorna sobre a

287 Lei Pelé , Art . 3º .Capí tu lo I II - Da natureza e das f inal idades do desporto ,es tabelecia três formas de reconhecimento do esporte : I - Desporto Educacional ;II - Despor to de Par t icipação de modo voluntár io ; e , I II - Desporto deRendimento . Na especif icação do Desporto de Rendimento apareciam: I - Demodo prof iss ional; e I I - De modo não prof iss ional : a) Semi-prof iss ional ; e , b)amador) .

305

condição do atleta, onde se refere ao atleta profissional e atleta não-

profissional, evitando o termo amador.

No Art. 27º, determina ainda a existência das entidades desportivas

profissionais, conceituando-as no parágrafo 10:

“§ 10 - Considera-se entidade desportiva profissional, para finsdesta Lei, as entidades de prática desportiva envolvidas emcompetições de atletas profissionais, as ligas em que seorganizarem e as entidades de administração de desportoprofissional.”

Vejamos que a nova determinação no que se refere à entidade

desportiva profissional parece não deixar claros (ou explícitos) os limites a

serem estabelecidos. Algumas federações esportivas estaduais que

implantaram as ligas ainda não conseguiram constituir uma política de

profissionalização capaz de assegurar o direito de todos os atletas

envolvidos, bem como alguns clubes que permanecem fora desta

especificação no tocante ao parágrafo 10, sobre entidade desportiva

profissional. Em algumas destas ligas, mesmo nas principais equipes, é

possível encontrar atletas com status diferenciado (amadores,

semiprofissionais e profissionais). Como exemplo desta situação, observa-se

a modalidade de handebol, que nestes últimos anos também implantou as

ligas (estaduais e nacional)288 como mecanismo de promoção e divulgação

288 - Essas l igas in iciaram-se anos f inais de 1990, gerando uma expectat iva demelhor ia do desenvolvimento da modal idade. No handebol, a pr imeira l igaocorreu em 1997.

306

do esporte. Entretanto, a condição de desenvolvimento destas ligas ainda

não poder se fundamentar no que determina as leis.

Na modalidade handebol, embora algumas equipes apresentem

elevado grau de profissionalismo de seus atletas, inclusive com

patrocinadores de credibilidade e tradição no campo esportivo, 289 outras

ainda são deficitárias, 290 necessitando de subsídios públicos para

manutenção das equipes.

Em algumas ligas estaduais, estes exemplos tornam-se mais

evidentes. Algumas equipes participam dos eventos recebendo de seus

clubes e/ou patrocinadores apenas os valores para o custeio das despesas

relativas a esta participação (transporte, alojamento e alimentação), não

conseguindo receitas para remunerar seus atletas e comissão técnica. Em

outras equipes, as despesas gerais são rateadas entre os próprios atletas.

Observemos que a modalidade ainda não conseguiu atingir um grau de

prestígio suficiente para que as equipes, mesmo nos seus principais

eventos, tenham as condições ideais para se manterem em igualdade

perante as exigências da lei.

Pareceu-nos que os legisladores operam em níveis macro, onde

suas fundamentações são observadas no esporte de alto rendimento, tendo

sempre o futebol como balizamento. Obviamente que seria difícil

289 - A equipe Metodista São Bernardo Handebol é patrocinada pela Petrobrás epela Univers idade Metodis ta.

290 - A equipe do Ipat inga - 7 de outubro, par t ic ipante da Liga Nacional de 2003,necessi tava de subsídios da prefei tura municipal da c idade de Ipat inga, em MinasGerais .

307

fundamentar as leis observando todas as querelas das distintas federações

e confederações, bem como os percalços das equipes nas distintas regiões.

No próximo capítulo, analisaremos a possibilidade de retorno à

condição de atleta amador permitida por determinação da CBF, o que é

denominado de reversão.

Observemos que, nas leis federais, essa possibilidade de reversão

é garantida apenas aos atletas de futebol considerados como

semiprofissional, conforme determinado pela Lei Pelé em seu artigo 45º,

parágrafo 3º.291

Todavia, essa reversão tem sido permitida ao atleta de futebol já

profissionalizado, independentemente de sua idade, desde o início dos anos

90, mas a lei federal apenas legislou parcialmente sobre esta possibilidade

em 1998 por intermédio da Lei Pelé.

Capítulo XIIIA reversão do profissionalismo – Que história é essa?

291 -“Ao completar dezoi to anos de idade, o at le ta semiprofiss ional de fu teboldeverá ser obrigator iamente prof iss ional izado, sob pena de, não o fazendo, vol tarà condição de amador, f icando impedido de par t ic ipar em competições entreprof iss ionais .” (Lei Pelé , nº 9 .615, 24 de março de 1998)

308

No ano de 1997 o Jornal Folha de São Paulo divulgou em Cadernos

Especiais uma série de reportagens denominada de País do Futebol.292

Nessas reportagens, veiculadas diariamente, apresentaram-se inúmeros

dados do alcance do futebol na sociedade brasileira, tais como:

envolvimento econômico em torno do jogo; número de clubes que surgem

pelo Brasil anualmente; salário dos jogadores; comportamentos de

torcedores, entre outros.

Em uma destas reportagens, Marcelo Damato demonstrava que o

abismo econômico criava um mundo de poucos milionários e milhares de

miseráveis.293 Vejamos que, na memória do cidadão comum, os dados

apresentados parecem diferentes diante da expectativa e da falácia popular

de que os jogadores de futebol são cidadãos muito bem sucedidos

economicamente.

Entre inúmeras discussões, gráficos, números comparativos,

chamou-nos a atenção a manchete da página 3: “Atleta voltam a ser

amadores em busca de melhores salários.” A princípio, pareceu-nos mais

uma frase de efeito para receber a atenção dos leitores, uma estratégia do

292 - Folha de São Paulo , 23 de fev. de 1997. Caderno Especial : País do futebol .(p.3)

293 - Referências salar iais dos jogadores brasi le iros através dos contratosregis trados na CBF.

Valores de referências(Em salár ios mínimos) 1996 (*) 2000 (**) 2002 (**)1 SM 50,8 44,91 47,291 a 2 SM 30,2 41,63 35,122 a 5 SM 8,2 5,82 8,45 a 10 SM 4,1 2,79 3,5410 a 20 SM 2,4 1,5 2,05+ de 20 SM 4,3 3,35 3,57

Fontes: (*) Folha de São Paulo: País do Futebol. Encar te Especial 23 de fev/1997. p .2 (**) O Globo: O retrato de uma i lusão chamada futebol. 25 de mai /2003. p .21

309

editor. Afinal, como conseguir melhores salários no espaço amador?

Vejamos o paradoxo: o jogador retorna ao status amador para conseguir

melhores salários. Nota-se que a batalha encampada pelos percussores do

profissionalismo nas décadas de 20 e 30 surge diante desta reportagem na

contra-mão da história, conforme pretendemos argumentar nas linhas

seguintes.

A reportagem demonstra em número reais que, a cada ano no

Brasil, milhares de jogadores abandonam a profissão. “Cerca de mil deles

fazem isso de forma oficial” (p.3), solicitando a CBF um novo registro de

amador, o que é chamado de “reversão”. Essa possibilidade é

fundamentada pela própria CBF, em suas Normas Orgânicas do Futebol

Brasileiro (NOFB), resolução nº 01/91, do livro IX, Capítulo I – Da

Transferência de Atletas Profissionais.294 O site oficial da instituição traz a

informação de que essa reversão está sobre a responsabilidade do

Departamento de Registros e Transferência. Quais seriam as justificativas

para um jogador optar por essa situação, uma vez que sabemos das

dificuldades de entrar para o seleto grupo de profissionais do futebol?

Faz-se necessário relatar que, sobre essa possibilidade de retorno à

condição de amador, não encontramos nenhuma procedência no estatuto da

FIFA.

294 - A seção IV (Da Reversão) per tence ao Tí tu lo IV (Das Transferências,remoções, reversões, contra tos , regis tros e inscr ições) das Normas Orgânicas doFutebol Brasi le iro , resolução aprovada pela d iretoria , em 21 de fevereiro de1991, e sancionada pelo Presidente Ricardo Terra Teixeira.

310

A reportagem colocava que essa reversão “significa quase sempre

o abandono de um sonho – conquistar fama e fortuna no futebol.” (p.3) Mas

por qual motivo abandonar os sonhos?

O editor da reportagem diz acreditar que esse abandono se dê na

perspectiva de buscar “uma renda estável em outra profissão ou até um

salário informal num clube de amador.” (p.3)

Por que então solicitar o desligamento oficial, uma vez que

juridicamente o jogador de futebol não é proibido de exercer outra profissão

de forma regulamentar pelas leis do trabalho? Uma das justificativas desta

reversão estaria nas ligas de futebol amador, que em algumas regiões do

país apresentam maior interesse dos que os campeonatos oficiais. Estar

liberado, através da reversão, pela CBF significa o direito de jogar nestas

ligas, representando uma empresa que poderá lhe oferecer um emprego

estável. O artigo 255º da NOFB estabelece as condições necessárias para

que se possa processar esta reversão:

“Art. 255º - A reversão com transferência, para integrar quadro deassociação de futebol classista, far-se-á com imediata condição dejogo, desde que:

a) Haja concordância da associação com a qual o atletamanteve o ultimo contrato;

b) O contrato tenha terminado, por decurso de prazo ou porresilição, há mais de trinta ou há mais de noventa dias,respectivamente;

c) Prove o atleta, com carteira de trabalho regularmente anotadae assinada, ser empregado da empresa há mais de 180 dias.”

Outros atletas, no entanto, recorrem à reversão acreditando que

com este retorno a classe amadora poderá estar liberada para firmar novo

311

contrato. Neste caso, reversão permitiria abandonar o vínculo com o clube

que o mantém preso ao seu quadro de atletas, que muitas vezes não o

utilizará como membro da equipe de competição295, inviabilizando, desta

forma, a realização de uma transferência ou um contrato mais vantajoso. A

reversão para alguns poderá tornar-se uma nova perspectiva profissional

dentro do esporte, não ficando no ostracismo, sem boa remuneração (ou

nenhuma), apenas numa equipe de treino. Significaria a possibilidade de

continuar sonhando e estar em alguma vitrine no mundo do futebol.

O artigo 258º estabelece o prazo de 720 dias contados da data de

reversão para que o atleta profissional revertido a amador possa novamente

integrar uma equipe de profissionais. Vejamos que permanece o sonho de

conseguir uma nova equipe e se estabelecer no futebol profissional.

Entretanto, o atleta deverá esperar quase dois anos sem poder fazer parte

de competições oficiais. Para os atletas mais novos, talvez esta solução seja

a possibilidade de retorno ao esporte. Aos jogadores considerados

veteranos,296 talvez o tempo que deverá permanecer fora dos gramados

seja crucial.

295 - Exemplo deste v ínculo pode ser v is to no quadro de at le tas regis trados na CBFpelo Palmeiras e Vitór ia - BA. No dia 6 de abr i l de 2004 a CBF divulgou que oclube mantém o regis tro de 140 at le tas , sendo que outros o i to (3 novos contratose 5 a t le tas emprestados) não apareciam nesta l is ta . O Clube Vitór ia – BA mantém104 at le tas sob contrato . (Jornal Lance, 23 de abri l de 2004. p . 6)Uma equipe de “ponta” no futebol brasi le iro geralmente u t i l iza , em média, 30at le tas por competição. (Jornal dos Sports , 19 de fevereiro de 2002, p . 13)

296 - No futebol , o a t le ta que se aproxima dos 30 anos passa a ser consideradoveterano.

312

Alguns atletas que solicitam a reversão sonham poder firmar um

contrato internacional em países que ainda não apresentam grandes

tradições no futebol, conforme relata o agente Viana297:

“Inúmero jogadores decepcionados com as possibilidades deconseguirem um bom contrato no Brasil, buscam a solução empaíses sem expressão no mundo da bola. Após a reversão muda-se para alguns países onde o sonho possa continuar.”

O diretor do Departamento de Registro e Transferência da CBF, Sr.

Luiz Gustavo Vieira, disse que, geralmente, a idade elevada é o fator que

mais influenciava na reversão, porém, muitos jovens também solicitavam a

volta à condição de amador. Sr. Luiz Vieira justificava que essa contra-mão

do profissionalismo se devia ao baixo salário e também às brigas dos

jogadores com seus clubes.

Segundo Sr. Luis Vieira, embora os clubes possam questionar essa

reversão, argumentando acerca do direito adquirido sobre a compra do

jogador e/ou sobre sua formação, os jogadores sempre têm os pedidos

atendidos.

Antonio Galante, agente da FIFA, argumenta que

“infelizmente os clubes, em sua grande maioria, não preparam osjogadores que não são aproveitados. Muitos foram tirados desuas famílias, muitas pobres e vêem-se da noite para o dia semcasa, comida e convívio social.” (p.50)298

297 - Viana, Marco Aurél io (2000). Ainda há esperança. . . O sonho não acabou!Si te: www.gabineteesport ivoglobal .com.br /not iciar iobrasi l

298 - Awi, Fel l ipe & Castro Lúcio de. (2003) . O retrato de uma i lusão chamadafutebol . In : Nos porões do futebol . Jornal o Globo, Pr imeiro Caderno. Rio deJaneiro. (p .50)

313

O desligamento da condição de profissional do futebol abre as

portas para que alguns jogadores sejam contratados por empresas em

diversos segmentos econômicos que estão “mais interessadas em seu

futebol do que na sua competência na nova profissão” (p.3). A reportagem

afirmava que as indústrias os contratavam preocupadas com a disputa dos

Jogos Operários, “no qual o título rende prestígio para o dirigente da

empresa que o conquista.”(p.3) Vejamos que essa situação também era

comum nos anos 20. Os sócios endinheirados dos principais clubes

empregavam em seus estabelecimentos comerciais os jogadores que faziam

parte da equipe de futebol do seu clube. (Cunha s/d: 83) Todavia, naquele

momento, o emprego destes jogadores era uma forma de encobrir a farsa e

burlar as leis que proibiam que pessoas desempregadas pudessem

participar das competições oficiais (Pereira, 2000). Agora o processo é

inverso. Se por um lado o jogador revertido vê neste retorno a condição de

amador a possibilidade um emprego estável em uma empresa, por outro, a

empresa que o contrata quer mesmo é a sua competência esportiva.

Esse processo de reversão tornou-se um comportamento muito

comum, embora pareça despertar pouca importância. Vejamos os números

nos quadros abaixo:

Quadro 03 - Número de atletas que solicitaram oficialmente a reversão deprofissional para amador entre 1992 e1996 299

299 - Folha de São Paulo , 23 de fev/1997. Caderno Especial : País do futebol . (p .3)

314

1992 1993 1994 1995 1996 2002300

1091 1225 1318 993 1010 1034

Fontes: Folha de São Paulo - Especial País do Futebol, 23 de fevereiro/1997, p.3

Os dados de 1997 foram apresentados detalhadamente por região e

por Estado (Quadro 04):

Quadro 04 – Números absolutos de jogadores que foram profissionalizadose de jogadores que solicitaram a reversão na CBF

Sul

Profissionalização ReversãoParaná 122 75Rio G. do Sul 199 81Santa Catarina 91 89

Região Norte

Profissionalização ReversãoAcre 30 0Amazonas 62 0Amapá 1 7Pará 72 4Rondônia 18 0Roraima 57 0Tocantins 50 9

Nordeste

Profissionalização ReversãoAlagoas 82 0Bahia 140 29Ceará 204 20Maranhão 55 0Paraíba 28 0

300 - Relatór io Anual da CBF - Ano 2002.

315

Pernambuco 242 11Piauí 36 0R.G. do Norte 94 85Sergipe 76 1

Centro-Oeste

Profissionalização ReversãoDistrito Federal 98 40Goiás 99 16Mato Grosso 24 11Mato.G.do Sul 45 11

Sudeste

Profissionalização ReversãoEspírito Santo 45 31Minas Gerais 140 96R. de Janeiro 418 68São Paulo 683 333

Fonte: Folha de São Paulo - Especial País do Futebol, 23 de fevereiro/1997, p.3

Observemos que nas regiões economicamente mais desenvolvidas

do Brasil (Sudeste e Sul), onde estão os principais clubes profissionais de

futebol, também estão os principais parques industriais. De acordo com os

quadros apresentados, constata-se que nestas regiões também ocorriam os

maiores números de solicitações de reversão. Vejamos que, no Estado de

São Paulo, ocorreu 48,75% de reversão em relação ao número de jogadores

que se profissionalizaram. Em Santa Catarina, o número foi ainda mais

expressivo, onde a proporção profissionalização e reversão foi de 97,80%.

316

No ano de 2002,301 4.778 jogadores foram registrados como

profissionais e 6.529 rescindiram o contrato com seus clubes. Neste mesmo

ano, também 1.034 jogadores solicitaram a reversão para o amadorismo.

A reportagem da Folha de São Paulo traz ainda como ilustração a

trajetória de Reinaldo Xavier, que foi jogador do Palmeiras nos anos de 1982

e 1983. Reinaldo foi um destes atletas que, após percorrer alguns clubes do

interior Paulista e ser vendido para uma equipe do Oriente Médio, solicitou a

CBF a reversão do seu status de profissional e retornou oficialmente à

condição de amador, colocando fim em uma carreira iniciada nos juniores do

Coritiba do Paraná, em 1980. Revelou o ex-profissional que inclusive foi

cogitada a sua convocação para a seleção brasileira no período em que

estivera jogando na equipe do Palmeiras.

Antes de conseguir a reversão, porém, havia solicitado o passe livre

acreditando que pudesse se transferir para outras equipes. O passe livre

seria a sua possibilidade de continuar sonhando com o mundo da bola,

buscando um novo contrato profissional que pudesse atingir suas

expectativas de atleta. Entretanto, como não obteve êxito e estava

desempregado, teve que se mudar para Taubaté, cidade de origem da

família de sua esposa, localizada no interior paulista. Desfeito o sonho de

continuar como profissional esportivo através do passe-livre, Reinaldo via a

oportunidade de trabalho em uma montadora da Volkswagen e sabia que

essa possibilidade seria viável pela sua habilidade com os pés. Todavia,

ainda registrado como profissional na CBF, não poderia jogar pela equipe da

301 - Relatór io Anual da CBF. Depar tamento de Regis tros e t ransferências.

317

Volks na Liga Amadora de Taubaté, fato que motivou o pedido de reversão.

O próprio Reinaldo declarou não saber como se processava essa situação

e, por isso, um diretor da Liga de Taubaté cuidou de tudo. Reinaldo passou

a ser um operário da empresa multinacional, que passou a representar a liga

amadora.

Essa é mais uma demonstração dos problemas em torno do

conceito. A partir do momento em que, na condição profissional, o jogador

não está conseguindo rendas suficientes para sua manutenção, recorre à

condição de amador para conseguir via futebol um melhor salário.

Obviamente ele não estará enquadrado como um profissional da bola na

folha de pagamento da empresa que o contratar. Sua força de trabalho

inicialmente deverá ser estabelecida pela sua competência esportiva, ou

pela competência específica para a indústria?

Capítulo XIVConsiderações acerca dos termos amador e profissional nasleis brasileiras

O objetivo deste capítulo não foi o questionamento da validade ou

aplicabilidade das leis implantadas ao longo da história do esporte nacional.

Sua aplicabilidade e validade foram funcionais a alguma medida que se fazia

necessária em determinado momento da história política nacional, buscando

atender os anseio e o interesse de variadas espécies, tais como: a melhoria

do esporte; a criação de uma cultura esportiva internacional; a educação via

318

esporte; as expectativas dos dirigentes; controle político sobre as

manifestações esportivas etc.

Nossa intenção estava voltada para entender como os conceitos

que determinam o status de engajamento ao esporte são apropriados pelos

textos leis.

Portanto, compreender este processo de consolidação das leis que

gerenciam o esporte nacional, bem como os embates originados durante a

consolidação de algumas destas, torna-se útil uma vez que nossa

perspectiva é a compreensão dos conceitos e das articulações estabelecidas

no seio do esporte brasileiro.

Vejamos que, apesar de as leis determinarem o status de vínculo do

atleta e das atividades, elas não conseguem uma definição que se possa

apontar com clareza os limites de abrangência promulgados nas definições

de algumas delas.

Podemos perceber, ainda, que o debate, as mudanças, as querelas;

praticamente todas estavam relacionadas ao futebol. Portanto, os textos-leis

que regem o esporte nacional sustentam-se nessa modalidade como

referência para quase todos os embates. Ser profissional ou amador no

esporte estabelece-se sobre os parâmetros utilizados para avaliar o

pertencimento ao futebol.

Vejamos no quadro comparativo (Quadros 05, 06, 07 e 08 nas

páginas seguintes), como as denominações e conceituações aparecem na

redação dos textos-leis, criando aberturas e fechamentos que dificultam uma

apuração de julgamento de algumas situações e de status de alguns atletas,

319

até mesmo aos jogadores de futebol, para os quais a maioria das leis foi

fundamentada.

Pareceu-nos que o conceito acerca de amador perde força nos

textos-leis, visto que a legislação, na maioria das vezes, direciona seu foco

de análise para o vínculo profissional. As querelas do esporte nacional dizem

respeito principalmente ao compromisso profissional no futebol. O conceito

amador neste contexto aparece marginal, como um enclave que deve ser

referendado, mas que não sabem muito bem o que fazer dele. Afinal o que é

ser amador diante das novas diretrizes do esporte mundial? Em que medida

os legisladores conseguem entender as abrangências desta especificação?

Na Parte 1 deste estudo, apresentamos as dificuldades encontradas

pelos principais órgãos esportivos internacionais e seus dirigentes em

determinar os limites para essa conceituação, mesmo em períodos onde o

interesse econômico parecia não ser tão acentuado. Vimos, ainda, que a

tensão entre os comportamentos dito amadores e o vínculo profissional vem

se arrastando nos movimentos esportivos internacional. O próprio COI

realizou varias tentativas de controle sobre o perfil amador, mas percebeu

que os novos rumos do esporte não permitiam a determinação, inclusive

optou por retirar o termo amador dos seus textos mais recentes.

Portanto, a legislação esportiva brasileira, embora tenha sido em

algum momento traçada e orientada por competentes profissionais do

esporte, no momento da sua tramitação e aprovação ficavam à mercê dos

parlamentares que não conseguiam sustentar uma discussão muito

profunda. As leis, em geral, são oficializadas na tentativa de agregar os

320

interesses dos grupos envolvidos com o futebol, ‘a bancada da bola’, que

muitas vezes não estão preocupados com o desenvolvimento do esporte em

geral, mas simplesmente manter a estrutura do futebol que os beneficia.

As novas tentativas sugeridas por algumas leis (Lei Michel Theme,

Lei Zico e Lei Pelé) desnortearam grande parte dos interesses dos principais

dirigentes esportivos, seus clubes e também do órgão de maior prestígio do

esporte brasileiro, a CBF. Desta forma, as pressões políticas evitaram (e

ainda evitam) uma reforma estrutural ampla no esporte nacional, embora

muito já tenha sido feito, como apontou Tubino (2002).

Podemos perceber ainda na atualidade, que, na eminência de

modificação das leis, alguns legisladores e personalidades do mundo

esportivo deslizam nas argumentações, quando da utilização do termo

amador, que originalmente teria sido adotado como valor e status social para

uma classe de privilegiados. Como exemplo, podemos perceber a

declaração de Zico302, no “Fórum: Futebol, o desafio dos anos 90”, em Porto

Alegre, quando conclamou que o futebol deveria “ser tratado e administrado

de forma profissional, deixando de lado o amadorismo e o paternalismo que

existem hoje em dia.” (p.18) Observemos que o termo amadorismo na sua

declaração assumia uma função desqualificativa, significando uma atividade

rudimentar e pouco racional.

Vejamos que Bebeto de Freitas, presidente do Botafogo, ao

anunciar a criação da empresa Futebol S.A. para gerenciar a modalidade,

302 - Coimbra, Artur Antunes. (1991) . (Resumos dos rela tos) . In : Palestra . Fórum –

Futebol, o desaf io dos anos 90. Por to Alegre, RS. Universidade Federal do RioGrande do Sul .

321

também trabalha com a idéia do conceito de amadorismo como

desqualificativo. Para ele, o funcionamento do Botafogo Futebol S.A.

“significa profissionalismo, transparência, credibilidade e dedicação. Todos

vão ser remunerados e trabalhar 24 horas em função do clube. O Botafogo

dá adeus ao amadorismo.” (p.27) 303

Estes exemplos visam apenas exemplificar a dificuldade que os

conceitos provocam em diferentes contextos e análises.

Na seqüência apresentaremos 4 quadros comparativos das leis

abordadas, onde o propósito é observar a flutuação dos conceitos nos

textos-leis.

Quadro 05Conceituações entre status do atleta, organização, práticas, competições eentidades esportivas nas leis esportivas nacionais da Era Vargas até os anos 80

LEISLei nº 3.19114 /04/1941

Lei nº 6.25108/10/1975

Lei nº 80.22825/08/77 304

Status dosatletas:

Art. 3º:AmadorismoProfissionalismo

Art. 42º:Amadores e Profissionais

Art. 69º:Refere-se aprofissionalismo nasseguintes modalidades:Futebol, automobilismo,motociclismo, pugilismo egolfe.

Art. 75º:Atletas profissionais

Tipos depráticasesportivas:

Art.64ºPrática profissionalPrática amadorista

Art. 23º: Art. 30º:

303 - Penido, Marcos. (2004). Aper tem os cin tos, vamos decolar . Entrevis ta deBebeto de Frei tas - Presidente do Botafogo. In : Jornal o Globo. Pr imeiro Caderno.01 de janeiro de 2004. p . 27

304 - Regulamentação da Lei nº 6 .251 de 08/10/1975

322

Quanto à formade organização:

Art. 3º:Desporto educativo

Desporto amador, sobreresponsabilidade doCOB

Art. 10ºResponsabilidade doSistema DesportoNacional:I – ComunitárioII – EstudantilIII – MilitarIV – Classista

I – ComunitáriaII – EstudantilIII – MilitarIV – Classista

Art. 21º:Desporto de MassaDesporto de Alto Nível

Tratamentoespecial àmodalidade:

Nenhuma Futebol Futebol (CBD)

323

Quadro 06Conceituações entre status do atleta, organização, práticas, competições eentidades esportivas nas leis esportivas nacionais da Constituição de 1988 esuas regulamentações

LEIS Constituição de1988

Lei 7.752Lei Mendes Thame14/04/1989

Decreto-Lei nº 98.59518/12/1989 305

Status dos atletas: Não há referência Não há referência Não há referência

Tipos de práticasesportivas:

Art.217º:FormaisNão-formais

Título da Lei:Desporto Amador

Art.2ºFormação desportivaescolar e Universitária.Programa desportivopara: menor carente,Idosos, e deficiente físico

Título da Lei:Desporto não-profissional

Quanto à forma deorganização:

Art. 217º:Desporto profissional enão-profissional

Desporto educacional

Desporto de altorendimento;

Manifestação desportivade criação nacional

Não há referênciaArt. 27º:Esporte amador

305 - Esse decreto regulamenta a Lei nº 7 .752 de 14 de abr i l de 1989.

324

Quadro 07Conceituações entre status do atleta, organização, práticas, competições eentidades esportivas nas leis esportivas nacionais da Lei Zico a Lei Pelé

LEISLei nº 8.672Lei Zico06/07/1993

Decreto 981Regulamenta a LeiZico 11/11/1993

Lei nº 9.615Lei Pelé24/03/1998 306

Status dos atletas:Art.5º:ProfissionalNão-profissional

Art.20º:Profissional

Art.7º:Profissional

Art. 36:Semi-profissional

Art. 43:Amador

Tipos de práticasesportivas:

Art. 2º:Desporto profissionalDesporto não-profissional

Art.28º:Desporto EducacionalDesporto militar

Art.1º:Práticas formaisPráticas não-formais

Art. 2º:Desporto profissionalDesporto não-profissional

Art. 6º:Desporto educacional

Art.2º:Práticas formais;Práticas não-formais.

Desporto profissional;Desporto não-profissional.

Quanto à forma deorganização:

Art.3º:Desporto de rendimento

I – ProfissionalII – Não profissional: a) Semi-profissional b) amador

Art. 22º:Entidade de práticadesportiva empregadora

Art. 42:Esporte amador

Art. 3º:Desporto de rendimento:I - Modo profissional;II – Modo não-profissional: a) semi-profissional; b) amador.

Art.7º:Desporto educacional;Desporto de criaçãonacional;Desporto para portadoresde deficiência.

Art. 44º:Desporto militar

Tratamentoespecial àmodalidade:

Nenhuma Nenhuma Art. 36º:Futebol

306 - Regulamentada pelo Decreto nº 2 .574 de 29 de abr i l de 1998. Este Decretodemonstra um tra tamento diferenciado ao Futebol.

325

Quadro 08Conceituações entre status do atleta, organização, práticas, competições eentidades esportivas nas leis esportivas nacionais da Maguito Vilela as leis atuais

LEISLei nº 9.981Lei Maguito Vilela14/07/2000

Medida ProvisóriaNº 2.141-3 307

21/06/2001Lei nº 10.67215/05/2003 308

Status dos atletas:

Art. 30º:Profissional

Art. 38º:Não-profissional

Art. 84º:Atleta servidor públicocivil ou militar

Art. 46º:Profissional

Art.29º:ProfissionalNão-profissional

Tipos de práticasesportivas:

Art. 27º:Competiçõesprofissionais

Art. 3º:Não-profissional

Art.2º:Desporto profissional

Desporto não-profissional

Quanto à forma deorganização:

Art. 26º:Entidade de práticadesportiva participante decompetições profissionais

Art. 29º:Entidade de práticadesportiva formadora

Art. 26º:Competição profissional

Art. 27º:Entidade de práticadesportivas participantesde competiçõesprofissionais

Art 29º:Competição oficiais nãoprofissionais

Tratamentoespecial àmodalidade:

Futebol Futebol Futebol

Vejamos que a primeira lei esportiva brasileira, Lei nº 3.199/41,

provavelmente fortemente influenciada pelo futebol, como esporte de

primeiro plano na cultura nacional, estabelece uma distinção entre amadores

307 - Essa medida provisór ia al terou novamente a Lei nº 9 .615 (Lei Pelé) de 24 demarço de 1998

308 - Essa le i a l terou disposi t ivos da Lei nº 9 .615 (Lei Pelé) de 24 de março de1998.

326

e profissionais. O amadorismo deveria estar vinculado aos valores

educativos, ao mesmo tempo em que se buscava uma vigília sobre o

profissionalismo, sobre a égide do princípio da moralidade.

Tais conceitos nos textos-leis mantiveram-se até 1975, apesar da

dinâmica do desenvolvimento esportivo em geral. Com a edição da Lei

6.251/75, novos conceitos foram agregados quanto à forma de organização

do esporte nacional (Comunitário, Estudantil, Militar e de Classe). Surgiu

também uma subvenção destinada ao futebol, quando se estabeleceu que

um dos concursos da loteria esportiva seria destinado à preparação a

delegação brasileira nos anos de campeonatos mundiais (Art. 48º).

Observemos que a vigilância e desconfiança sobre o esporte profissional

desaparecem desta nova lei. É como se as tensões oriundas da instauração

do profissionalismo nos anos de 1930, que permaneceram recorrentes até a

implantação da Lei 3.199/41, já tivessem sido dissipadas (ou encerradas) no

processo de instauração da Lei 6.275/75.

A Constituição de 1988 e a Lei 7.752/89 não fazem mais referência

ao status dos atletas. Passa a existir uma nova conceituação sobre o tipo de

prática esportiva denominadas de formais e não-formais. Essas novas

denominações parecem expressar a dificuldade de se encontrar uma

terminologia que consiga balizar todas as manifestações. Desta forma, a

utilização destas expressões facilitaria as divagações necessárias para não

colocar um gesso no cumprimento da lei.

327

A Constituição de 1988 implantou novas diretrizes quanto à forma

de organização esportiva, que poderia ser: profissional, não profissional,

educacional, de alto rendimento e manifestações desportivas de criação

nacional. Observemos que o termo amador foi suprimido do texto-lei. A

instauração da Constituição de 1988 consolidou a abertura de espaço para a

discussão do esporte nacional. Embora o tema esporte não despertasse

grande interesse naquele momento, observou-se que os debates foram

intensos nos anos seguintes.

Na Lei 7.752/89 e sua regulamentação por intermédio do Decreto-

Lei 98.595/89, a palavra amador retorna na definição do tipo de prática e

também quanto à forma de organização esportiva. Neste momento, pareceu-

nos que o interesse governamental era subsidiar apenas o esporte de

caráter educativo e de lazer. Observemos que a definição de amador se deu

com o estrito interesse de se definir o que deveria ter o incentivo fiscal.

Nesta perspectiva, não havia a preocupação com o status do atleta.

Na Lei Zico (8.672/93) e no decreto que a regulamentou (Decreto nº

981/93) a expressão amador para determinar o status do atleta também não

apareceu nos textos-leis. Todavia, o Art. 42º volta a conceituar o esporte

amador quanto à forma de organização. A Lei Zico e sua referida

regulamentação classificavam o esporte como: profissional, não-profissional,

educacional, militar e de rendimento. Vejamos que a expressão não-

profissional surge como oposição ao profissionalismo, pois parece que os

legisladores já percebiam que o termo amador não era suficiente para

328

determinar todas as manifestações que poderiam ocorrer fora do limite do

esporte profissional.

A lei Pelé (9.615/98) fez retornar o termo amador referindo-se ao

status do atleta. Surgiram três possibilidades de prática esportiva:

profissional, semi-profissional e amador. Esta lei passou a apresentar o Art.

36º específico acerca do futebol, o que havia sido descartado desde a

Constituição de 1988.

As leis subseqüentes (Maguito Vilela, Medida Provisória nº 2.141-

3/2001 e a Lei nº 10.672/2003) foram reflexos das tensões provocadas pelas

Leis Zico e Pelé. A “bancada da bola”, atendendo a exigências e solicitações

dos principais clubes de futebol brasileiros que julgavam impertinentes as

referidas leis, buscou novas medidas para manter o controle do futebol

brasileiro, em detrimento à tentativa de moralização que os textos das leis

Zico e Pelé objetivavam alcançar. Nota-se que os novos textos-leis se

estabeleciam praticamente sobre a modalidade de futebol.

Nesta parte do estudo, tentamos demonstrar as dificuldades de se

estabelecer em conceituações apropriadas para o termo amador nas leis

brasileiras. Constatou-se que, pela falta de clareza em alguns momentos, a

opção foi a retirada do termo no que se referisse ao status do atleta,

transferindo-o ora para o tipo de prática, ora para a forma de organização.

Os legisladores em alguns momentos optaram por realizar uma

conceituação de amadorismo de forma invertida, inserindo as expressões:

não profissional, semiprofissional e modo não-profissional, utilizadas nas leis

329

mais recentes - Lei Zico e sua regulamentação e também na Lei Maguito

Vilela.

As modificações implementadas nos textos-leis parecem ter sido

embasadas nas querelas particulares do futebol, que, em alguma medida,

mesmo de forma tácita, passaram a de determinar o que deveria prevalecer

em outras modalidades. Desta forma, o futebol no curso de seu

desenvolvimento na sociedade brasileira apesar de não ser citado

explicitamente em todas as leis, encontrava-se presente nas entrelinhas,

como caráter central.

330

PARTE 4

A PERMANÊNCIA DAS NARRATIVAS AMADORAS NOCONTEXTO DO FUTEBOL PROFISSIONAL

“Dodô, seu pipoqueiro, eu to sabendo que seu negócio esó dinheiro.”309

Nessa parte do estudo será apresentada marca da permanência de

alguns valores do amadorismo que são freqüentemente empregados no seio

do esporte profissional. Em contrapartida, se pode constatar que em

algumas situações o discurso profissionalista é enfatizado no sentido de

contrapor-se ao comportamento dos atletas que tomam o esporte, o jogo,

sem a seriedade requerida. Nota-se que, o discurso que aborda o

amadorismo e o profissionalismo tem uma estrutura pendular, tendendo-se

para o lado que no momento da discussão em questão for capaz de

309 - Programa Globo Esporte – TV Globo. Repor tagem veiculada no dia 19 desetembro de 2002 acerca do jogo entre Palmeira x Ponte Preta , real izado no dia 18de setembro de 2002.

331

corresponder ao apelo emocional e às expectativas dos atores envolvidos

(torcedores, dirigentes, imprensa e jogadores). Ambos, amadorismo e

profissionalismo sustentam-se numa demanda de cunho emotivo.

O jogador de futebol é, por excelência, uma figura pública e célebre

na sociedade brasileira. Freqüentemente, encontra-se diante da

necessidade de explicar suas ações e comportamentos na esfera pública ou

privada - efeitos das mudanças sociais apontadas por Richard Sennett

(1988).310 Seus momentos de intimidade são constantemente monitorados

pelos dirigentes, pela mídia e pelos torcedores. Seu lazer deve adequar-se

aos ideais ascéticos do esporte, representando a disciplina e a retidão de

caráter para bem representar o clube, a pátria e os valores morais para

juventude.

Durante a eliminatória para a Copa de 2002, após um empate entre

o Brasil e o Peru (Jornal Extra - Caderno Jogo Extra, 27, abr/2001), os

jogadores Vampeta, Romário e Edílson foram repreendidos pela imprensa,

por terem ido a uma boate naquela noite após o jogo. O Brasil vinha

acumulando resultados negativos nas eliminatórias e também em jogos

amistosos. Pelas eliminatórias, perdeu para o Chile e o Paraguai, gerando a

incerteza de que o Brasil ficaria com uma das quatro vagas destinadas aos

países sul-americanos. Aquele empate com o Peru teria deixado os

torcedores e a imprensa desacreditados. Inclusive Zico (ídolo do futebol

brasileiro nos anos 80) dizia estar em dúvida quanto à classificação (Jornal

310 - Sennet t , Richard. (1989). O decl ínio do homem público – As tiranias daint imidade. São Paulo . Companhia das le tras .

332

Extra - Caderno Jogo Extra, 30, mar/2001, p.6).311 O Jornal O Dia trouxe em

sua capa em letras destacadas a frase FALTA VERGONHA, tendo quatro

fotos ocupando 2/3 da página (Vampeta, Edílson, Romário e o Senador

Antonio Carlos Magalhães - ACM), onde criticava a atuação da seleção

brasileira e do Senador da república:

“Depois do vexame, a festa. Em meio ao escândalo, agargalhada. Os torcedores ainda estavam em choque com o 1 a 1entre Brasil e Peru, quando Romário, Edílson e Vampeta acharamque já era hora de se divertir. Mesmo com a classificação para aCopa ameaçada, foram badalar na madrugada paulistana.Deixaram o campo sob vaias e entraram aos risos na nova boatede Vampeta. ‘O negócio é aproveitar a noite. A Seleção jápassou’, minimizou Edílson.” (p.1)

O Senador ACM naquele dia havia admitido que mentiu por três

vezes sobre a violação do painel eletrônico na cassação do colega Luiz

Estevão.312 Finalizando a matéria, o jornal acrescenta:

311 - A revis ta Época também veiculou uma matér ia denominada O Racionamentoda Bola , af i rmando o desapontamento do torcedor brasi leiro com a seleção quecorr ia o r isco de pela pr imeira vez, não disputar uma Copa. Paulo Rober to Falcão,ex-jogador da seleção argumentou que “qualquer t ime com um pouco detreinamento tem chance de jogar de igual para igual com o Brasi l” . (p .78) .Vejamos que a argumentação do pess imismo era moeda corrente no per íodo dasel iminatór ias . Cardoso, Maurício , Padil la , Ivan Saint-Clair e Mendonça Martha.In : Revista Época, 11 de jun/2001, Ano IV nº 160. 76-83p

312 - Luis Estevão foi senador da república pelo Distr i to Federal . Envolto aescândalos f inanceiros com dinheiro públ ico, fo i dest i tu ído do cargo, a través deuma CPI.

333

Figura 10 – Jornal o Dia, 27 de abr/2001 – Capa

334

“O plenário mais elevado da Nação, o Senado, e a maior paixão doPaís, o futebol, padecem da mesma carência: vergonha. Ahumilhação nos campos e a quebra das regras na política parecemnão provocar nem mesmo constrangimento. Viram cenascorriqueiras, risíveis. Só que eles não estão rindo a toa. Estãorindo da nossa dignidade. Estão rindo desavergonhadamente dosbrasileiros. Mas, do lado de cá, ninguém acha graça.” (Jornal ODia, 27 de mar/2001, p.1)

Observemos como o policiamento acerca do cotidiano do jogador é

acirrado tal como na vida política. Vejamos a comparação que se tentou

estabelecer entre a atitude da violação ao painel da câmara federal, tendo o

Senador ACM como cúmplice, e o empate da nossa seleção de futebol com

o Peru. A seleção de futebol peruana é colocada como força menor dentro

das narrativas esportivas dos brasileiros. Portanto, um empate com esta

seleção desagrada a todos e coloca em cheque o estilo e a glória do futebol

brasileiro. Observemos que sair com os amigos, ter uma noite de

confraternizações, ir a uma boate, por exemplo, para profissionais das mais

distintas áreas, são ações recomendadas como atenuantes dos estresses

diários. Todavia, para os jogadores que perdem ou empatam um jogo

decisivo, a atitude deve ser de luto, pois estão em jogo a morte coletiva

(Vogel, 1982)313 e os valores ascéticos do esporte que se confundem com os

ideais profissionais do esporte. No contexto do esporte amador, as

confraternizações entre as equipes adversárias eram regradas por uísque e

313 - Vogel , Arno. (1982) . O momento fe l iz , ref lexões sobre o futebol sobre oethos nacional . In : DaMatta , Rober to . (Org) . Universo do futebol : espor te esociedade brasi le ira . Rio de Janeiro. Pinakotheke.

335

outras bebidas (Mário Filho, 1964). O que está em jogo quando os jogadores

de futebol estão fora do jogo?

Figura 11 – Jornal Extra – 30 de mar/2001 – Capa

Um discurso amador tende a emergir para ressaltar os vínculos

afetivos do jogador com o clube e a seleção nacional, entretanto, em outros

momentos, este compromisso é cobrado a partir de uma ética profissional.

Portanto, como o jogador opera nestas duas lógicas? Deve demonstrar em

suas narrativas marcas do vínculo, amor e pertencimento ou apresentar a

336

responsabilidade e a disciplina profissional em relação aos seus

empregadores? Talvez, a resposta seja ambígua em relação a essas éticas.

No entanto, quando assume a ética do profissionalismo e opta racionalmente

pela melhor oferta, a imprensa aciona o tenso debate entre o amor e o

interesse. De fato, o jogador deve se portar como um profissional, mas deve

demonstrar amor e vínculos sentimentais acima de seus interesses.314 O

amor e o pertencimento devem prevalecer sobre o interesse financeiro. O

pertencimento, o vínculo dever ocorrer de forma desinteressada, como um

elemento de distinção social do indivíduo. (Elias, 1993315; Bourdieu, 1983316)

Nosso propósito nesta parte do estudo é apresentar argumentos de

como estes discursos interagem e se distanciam dependendo do interesse e

do ponto de vista dos atores envolvidos (jogadores, torcedores, dirigentes e

a imprensa).

Partimos do pressuposto de que a tensão na narrativa midiática

entre os valores e comportamentos identificados como amadores ou

profissionais confunde-se com a popularização do esporte moderno.317 As

314 - Kastrup, Paulo. (2003) . O úl t imo vôo: Cast i lho o herói ant i -macunaíma dofutebol . (Disser tação de Mestrado) . Programa de Pós-Graduação em EducaçãoFísica. Rio de Janeiro. UGF. Em seu estudo, assume uma perspect iva em que ojogador, ou melhor , o verdadeiro herói do espor te , é o paradigma, deve ser umprof iss ional que coloque seus v ínculos afet ivos com o clube acima de seusinteresses econômicos ou prof iss ionais .

315 - El ias , Norbert . (1993). O processo civ i l izador: formação de Estado ecivi l ização. Rio de Janeiro. Jorge Zahar .

316 - Bourdieu, Pierre . (1983) Questões de sociologia . Rio de Janeiro . Marco Zero.

317 - Lovisolo comenta que não se pode pensar a popular ização do espor te modernosem a imprensa. Lovisolo , Hugo. (2001). Saudoso futebol , fu tebol quer ido: aideologia da denúncia. In : Ronaldo Helal , Antonio. J . Soares & Hugo Lovisolo. Ainvenção do país do futebol – Mídia, raça e idolatr ia . Rio de Janeiro . MauadEditora .

337

rápidas transformações ocorridas no campo esportivo (desempenho técnico

e tático, tecnologias, industrias de entretenimento e de matérias) e sua

autonomização como indústria do entretenimento, o conflituoso processo de

formação de ligas profissionais e amadoras, logo ainda em seu início,

culminaram com a afirmação do profissionalismo como tendência

hegemônica e democratização do acesso a esse esporte. Todavia, esse

processo não se deu sem lutas e vozes dos valores identificados como

amadores no seio de uma ética profissional. Pareceu-nos que, diante das

tensões entre os ideais amadores e profissionais, que o discurso de ordem

amador é utilizado como um contrapeso para se discutir e frear alguns dos

efeitos perversos que afloram devido ao comportamento profissional, sobre o

ponto de vista dos conservadores e românticos. O amadorismo, neste

aspecto, torna-se um contraponto para se discutir e questionar valores

sociais, tais como dedicação, empenho, competência, ganhar dinheiro e,

sobretudo, o pertencimento.

O debate acerca do vínculo do jogador já se fazia bastante intenso

no meio jornalístico desde as primeiras décadas do século XX, conforme

apontou Pereira (2000)318. O período de pré-consolidação319 do

profissionalismo foi rico em argumentos que caracterizavam a dicotomia

318 - Pereira , Leonardo A. de M. (2000) . Footbal lmania – Uma his tór ia social dofutebol no Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro . Nova Fronteira .

319 - Chamamos de per íodo de pré-consolidação do futebol os anos f inais dadécada de 10 e todos os anos 20 do século XX. Neste per íodo, o debate acerca doenvolvimento do jogador de fu tebol com seus clubes tornava-se marcante nosjornais que cobriam os eventos espor t ivos.

338

existente entre os termos amadorismo e profissionalismo,320 como estrutura

de vínculo do jogador, conforme se pretendeu apontar no decorrer deste

estudo.

Mesmo depois de o futebol profissionalizar-se e ficar explícita a

importância do interesse financeiro no desenvolvimento do esporte e na

manutenção da vida econômica dos jogadores, o valor do ‘amor’ e da

‘paixão’ não poderia, pela própria estrutura de vínculo do esporte, neste

curto século e meio de existência, ser transformado em simples atividade

racional, em que apenas admiramos a competência atlética, assim como

admiramos a precisão de máquinas e computadores. O discurso do

amadorismo é de certa forma, a semântica encontrada nas narrativas para

falar de amor, paixão e agressividade que o esporte solicita de seus

protagonistas. Mesmo no profissionalismo, devem-se manter ‘vivas’ estas

marcas que enfatizem o comprometimento amador. Parece que os jornais

entendem que essa manutenção é necessária para a sobrevivência do

esporte.

Em nosso país a grande maioria das lentes da mídia esportiva,

principalmente a escrita, focaliza o futebol. E pelo interesse popular pelos

320 - Helal (2001) propõe que observemos que, à medida que o espor te fo i seprof iss ional izando e t ransformando em indústr ia , tornou-se “maior a necessidadede se entender o amadorismo e a paixão dos torcedores” como di lemas damodernidade:b “Do ponto de vis ta sociológico, estes confrontos entre oprof iss ional e o amador , entre o lucro e a paixão, entre o sagrado e o profano,t ransformam o universo espor t ivo em um emblema da convivência de sent imentosantagônicos re levantes para se compreender os di lemas da modernidade.” (p .153)Helal , Ronaldo (2001). Mídia , Construção da derrota e o mito do herói . In : Helal ,Ronaldo; Soares , Antonio J . & Lovisolo , Hugo. A invenção do país do futebol –Mídia , raça e idola tr ia . Rio de Janeiro . Mauad. 149-162p.

339

clubes e seleção nacional de futebol que se faz circular os periódicos

cotidianamente.321

Freqüentemente, a mídia322, diante de situações de desempenho

fraco ou apático de algumas equipes de expressão, correlacionadas com

problemas extrajogos (salários, competição interna de jogadores da mesma

equipe etc), invoca em suas análises valores traduzidos como amadores

(amor à camisa, raça, sangue) ou valores da relação profissional

(responsabilidade com os consumidores do espetáculo). Os fatos a serem

narrados são, de certa forma, condicionados pelos interesses dos

torcedores323 e/ou consumidores do esporte. Freqüentemente, os ideais de

amor, dedicação, cumplicidade em confronto como os compromisso

profissional são reeditados ao longo da história do futebol brasileiro.

Vejamos por exemplo à argumentação do ex-jogador Gaúcho,324 acerca da

‘honra’ e do ‘espírito de luta’, no jornal Lance, acerca do período de

turbulência por que passava o Botafogo ao ser rebaixado para a 2ª Divisão

321 - Observemos como exemplo os dois pr incipais jornais espor t ivos. No jornalLance, das 28 páginas d iár ias , 22 delas são dest inas ao fu tebol. O Jornal dosSports , d iar iamente são 12 páginas, sendo que 9 delas dest inada ao fu tebol . Essaproporção é mantida freqüentemente , exceto quando algum evento em outramodal idade receberá uma atenção especial , como Jogos Olímpicos, Jogos Pan-americanos etc . Mesmo nestas ocasiões, o espaço dest inado ao futebol é sempremaior .

322 - Jornalis tas aqui entendidos também como: cronis tas, comentar is tas ,ar t icul is tas , redatores etc .

323 - Ver : Damo, Arlei Sander (1998). Bons para torcer , bons para se pensar – osclubes de fu tebol no Brasi l e seus torcedores. In : Motus Corporis . Revista deDivulgação Cient íf ica do Mestrado e do Doutorado em Ed. Fís ica. Rio de Janeiro .Edi tora da UGF. Vol 5. n .2 11-48p

324 - Gaúcho – Ex-zagueiro do Botafogo nos anos de 1981 e 1983, per íodo em quea equipe não chegou a conquistar nenhum t í tu lo de expressão, Jornal Lance, 25 dejan/2002. Repor tagem: Botafogo – Era melhor ou pior? - Saudade do je jum (p.18) .

340

do Campeonato Brasileiro em 2002. “Na minha época qualquer jogador tinha

honra de defender o Alvinegro. O nosso time era fraco tecnicamente, porém

tinha alma, coração, espírito de luta (...) O Bota atual é um cabide de

empregos para incompetentes, sem identificação.” Oportuno lembrar que no

período em que Gaúcho jogava no Botafogo (1981-1983) o clube não

conquistou nenhum título de expressão. Vejamos que essa imagem

apontada pelo ex-jogador torna-se emblemática, oportuna para o período de

crise. Essa identificação a que o jogador refere margea a análise entre a

competência e o sentimento, o compromisso profissional e a dedicação

incondicional, os envolvimentos financeiros e os ideais de amor etc., que

freqüentemente são imagens adotadas no campo esportivo. A mídia em

suas inclusões diárias na vida dos principais clubes brasileiros e da seleção

invoca esses dilemas como uma retórica de seus argumentos.

Lovisolo (2001), questiona a atitude dos jornalistas ao argumentar

acerca da roupagem que eles utilizam em suas matérias esportivas, dizendo

que para causar o interesse do leitor, as notícias são “tendenciosas, estão

preocupadas demais por refletir o extraordinário, o ‘acredite se quiser’ e

esquecem do comum, do ordinário, daquilo que para eles não é notícia.”

(p.91).

Segundo Toledo (2002)325, a mídia constrói e formata o discurso

acerca do futebol embasado nas falas dos profissionais e torcedores e o

fazem utilizando estratégias técnicas e ideológicas do discurso. Toledo

coloca que é por meio da mídia que o futebol alcança efetivamente a massa

325 - Toledo, Luiz Henr ique de. (2002) . Lógica no futebol . São Paulo. Huci tec,Fapesp.

341

de torcedores, se compararmos com o público que comparece ao estádio e

afirma que:

“ainda que a mídia filtre este futebol e estabeleça com ostorcedores uma relação mediatizada por discursos e aparatostecnológicos persuasivos, a construção de tais relações entreestes atores só pode ser compreendida porque este futeboltambém é de domínio de uma semântica popular, de sensocomum.” (p.18)

Souto (2002)326, argumenta que os jornais são responsáveis por

construir a memória sob uma ótica singular, atuando como um dos senhores

da memória da sociedade. Ao selecionar uma matéria, eleva-se “o

acontecimento a categoria de fato memorável, imutável, retransmitindo pela

fixação de seus aspectos destacados na narrativa.” (p.35). Este processo de

seleção dos fatos relega outros acontecimentos ao esquecimento, ou

mesmo determina sua circularidade, ao optar pelo local que o texto ocupará

nas páginas. Este processo de escolha do local e do enfoque estabelece a

dialética de lembrar e esquecer. “Os periódicos possuem em sua gênese o

caráter de transportar para a lembrança aquilo que figuraria no lugar do

esquecimento.” (p. 35)

326 - Souto, Sérgio Montero . (2002) . Imprensa e memória da Copa de 50: A glór iae a tragédia de Barbosa. (Disser tação de mestrado) . UFF. Niterói – Rio deJaneiro. O autor real iza um estudo acerca do papel da imprensa na construção damemória a par t ir do jogador Barbosa, ex-goleiro da seleção bras i le i ra quepar t ic ipou da campanha brasi le ira da Copa do Mundo de fu tebol de 1950, em queo Brasi l perdeu a f inal para a equipe uruguaia .

342

Le Goff (1984)327, denomina de ‘monumento de memória’, o fato de

o jornalista assumir uma forma de redação, transforma o documento numa

espécie de memória coletiva válida. Conforme Le Goff, ao se determinar o

fato que será publicado o jornalista estará domesticando e selecionando a

memória que será armazenado nos registros da eternização do fato.

Portanto, o jornalista e seu editor, ao viabilizarem uma notícia, estarão

colaborando para seu redimensionamento em outros momentos de análises.

Partes dos fatos são desprezadas ou condenadas ao esquecimento, o que

poderia provocar dificuldade de construção da história pelos novos

narradores.

Portanto, no futebol como em qualquer outro fato social, alguns

acontecimentos são sucumbidos pela falta de interesse despertado no

momento da sua ocorrência. Muitos fatos esquecidos nos “cantos” da

memória escrita, todavia, são capazes de auxiliar-nos na elaboração de uma

narrativa contemporânea, que por alguns motivos nem sempre tiveram

registros demarcados atentamente.

Partimos desta perspectiva para re-visitar alguns acontecimentos,

sabedores das limitações imperadas pela falta de interesse que alguns deles

possam ter ocasionado a imprensa naquele período, todavia esclarecemos

que nossa pretensão não é questionar a fidelidade das notícias com os

fatos, mas sim, analisar os discursos e seus fragmentos utilizados para

registrar a memória do presente e do passado.

327 - Le Goff , Jacques . (1984). Memória . In : Enciclopédia Einaudi . Memória -Histór ia . Vol. I . Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da moeda.

343

Na seqüência, apresentaremos quatro episódios que, durante

alguns períodos, forneceram argumentos às narrativas da mídia esportiva

brasileira sobre a tensão entre o amadorismo e profissionalismo no futebol, e

servem de suporte para nossas perspectivas analíticas.

Optamos por um “olhar” etnográfico dos conteúdos jornalísticos

veiculados, principalmente, na cidade do Rio de Janeiro, acerca de alguns

fatos que julgamos estarem relacionados ao nosso contexto. Estes foram

divididos em dois momentos, sendo os dois primeiros ocorridos no final da

década de 60 até o ano de 1980. Os outros dois episódios são fatos que

passamos a acompanhar na imprensa carioca nos primeiros anos deste

novo século.

Como chegamos a tais episódios? Os capítulos XV e XVI decorrem

da leitura da historiografia do futebol brasileiro, quando percebemos que tais

acontecimentos parecem ter sido marcantes e provocaram efervescência na

imprensa esportiva nacional, gerando inclusive interesses da sociedade

acadêmica, como veremos no decorrer dos capítulos. Os capítulos XVII e

XVIII surgiram através do acompanhamento diário da mídia escrita nos

primeiros anos deste novo século.

No capítulo XV (Afonsinho – Uma voz inquietante ou um mito da

resistência?), analisaremos o episódio do jogador “Afonsinho”, ocorrido no

final dos anos 60 e início dos anos 70, quando, insatisfeito com sua condição

no elenco do Botafogo, se rebelou aos mandos dos cartolas e conseguiu na

justiça o seu passe livre, abrindo um precedente que marcaria

344

determinantemente as relações trabalhistas, a partir daquele instante, entre

os jogadores e seus clubes. Ao re-visitarmos este acontecimento, deparamo-

nos com outros episódios marcantes daquele período glorioso do futebol

brasileiro, a conquista do tricampeonato mundial no México.

No Capítulo XVI (Releitura do caso Bebeto – A transferência do

Flamengo para o Vasco da Gama), analisaremos o episódio da

transferência do jogador Bebeto, que, no final dos anos 80, deixou o

Flamengo e se transferiu para a equipe arqui-rival Vasco da Gama, gerando

um embate de elevada simbologia dentro do campo esportivo. Esta

transferência impulsionou várias narrativas acerca do comprometimento e do

vínculo entre o jogador e o clube. Tal acontecimento foi estudado por Helal e

Coelho em 1995, no texto denominado Modernidade e tradição no futebol

brasileiro: O “caso Bebeto”.328

Em um segundo momento analisaremos outros dois episódios:

No capítulo XVII (David Fischel – Um dirigente modelo),

observaremos as declarações do Sr. David Ficher, presidente do Fluminense

Football Club, sobre as novas perspectivas que demandam para o esporte

em tempo de crise financeira e a contratação de Romário para a temporada

do ano comemorativo do centenário do Fluminense;

No capítulo XVIII (Ronaldo Nazário – O homem de 100 milhões),

narraremos a rápida trajetória da vida esportiva do Ronaldinho e

328 - Helal , Ronaldo. & Coelho, Maria Claudia. (1995). Modernidade e t radição nofutebol Brasi le iro : O “Caso Bebeto no futebol brasi le iro . In: Pesquisa de Campo –Revista do Núcleo de Sociologia do Futebol; UERJ nº 2 (1995). 91-99p

345

principalmente a sua transferência da Internazionale de Milão para o clube

espanhol Real Madrid, após a Copa do Mundo de 2002, que gerou a

discussão acerca do envolvimento profissional.

346

Capítulo XVAfonsinho – Uma voz inquietante ou um ‘mito’ daresistência?

“O problema da barba é apenas um pretexto para metirar do time. Se eu fosse um jogador indispensável,não teriam me emprestado ao Olaria, sem nadareceber em troca.” 329

(Afonsinho)

Afonsinho330 surgiu ao final da década de 60 como uma promessa

do futebol brasileiro. Paulista do interior que aos 18 anos, recebeu “uma

proposta para realizar um período de experiência no futebol carioca”

(Florenzano, 1998, p.24). Passara, então, a partir daquela proposta, a

pertencer à equipe do Botafogo, que naquele momento representava uma

das mais expressivas forças do futebol brasileiro.331 Uma equipe formada

por Garrincha, Nilton Santos, Didi, Zagallo, Gerson, entre outros; jogadores

já consagrados e que estiveram presentes nas principais conquistas do

futebol brasileiro (Copas de 58 e 62). Para um jovem atleta, pertencer àquele

seleto grupo de atletas e ídolos bem sucedidos do futebol brasileiro poderia

329 - Jornal dos Sports , 28 de ago/1970, p .4.

330 - Uti l izaremos na tess i tura de nossas anál ises algumas falas de Afonsinho(Afonso Celso Garcia Reis) , da entrevista concedida em 1997, que estãopublicadas no l ivro de Florenzano, José Paulo (1998). Afonsinho & Edmundo – Arebeldia no futebol brasi le iro . São Paulo. Musa Editora.

331 - Na década de 60, juntamente com o Santos de Pelé, as duas equipesmantinham a hegemonia do futebol brasi le iro. Nesta década, o Botafogoconquis tou os seguintes t í tu los: Campeonato Car ioca 1961, 1962, 1967 e 1968;Torneio Rio-São Paulo: 1962, 1964 e 1966; e Taça Brasi l em 1968. In :Enciclopédia do futebol brasi le iro I – Lance. (2001). Rio de Janeiro/São Paulo.Arete Edi tor ia l S/A p.136

347

significar prestígio e dinheiro. Entretanto, ofuscado pelas demais estrelas

alvinegras, Afonsinho não teve uma passagem tranqüila pelo clube. Durante

sua carreira, que durou cerca de 20 anos, transitou em diversas equipes de

expressão nacional. Além do Botafogo, atuou pelo Santos (1972), Flamengo

(1973 e 1974) e Fluminense (1981 e 1982). Na Enciclopédia do futebol

brasileiro I, em sua seção destinada ao histórico dos jogadores, relata-se

que Afonsinho conquistou apenas um único título como jogador pelos clubes

por que passou, o de Campeão Carioca de 1967 pelo Botafogo. Todavia, a

mesma obra relaciona que o jogador pertencia ao elenco do Botafogo em

1968, ano em que o clube se tornou vencedor do Campeonato Carioca e da

Taça Brasil. A mesma obra também menciona que o jogador esteve

presente na equipe do Flamengo no ano 1974, quando a equipe rubro-negra

se sagrou campeã estadual.

Figura 12 – Afonsinho no Botafogo em 1968 – Em pé - Penúltimo à direita

Afonsinho se tornou, em sua época, um nome emblemático do

futebol brasileiro, mesmo sem ter em seu currículo grandes conquistas.

348

Como este jogador tornou-se emblemático? Afonsinho tornou-se conhecido

mais pela resistência aos desmandos dos cartolas do que por seu

desempenho em campo. Tal notoriedade se deu ao ter conseguido o passe

livre na justiça depois do duelo jurídico que travou com o Botafogo.

Afonsinho mostrou desde cedo grande capacidade de organização, pois,

durante o litígio com o Botafogo, criou uma equipe que denominou de Trem

da Alegria, a qual excursionou pelo Brasil e pelo mundo no período de 1976

a 1979.332

A trajetória esportiva de Afonsinho no Botafogo teve início na

categoria amadora333, quando conquistou em 1966 o título de campeão

estadual. Devido a suas atuações, foi convocado para a seleção carioca de

amadores, quando participou intensamente da campanha carioca, que

resultou na conquista do tetracampeonato brasileiro de amadores.

Florenzano (1998) relata que, devido a estas conquistas, passou a ter boas

perspectivas na ascensão profissional, inclusive no ano de 1967 já

participava de alguns jogos da equipe profissional, principalmente, devido à

ausência dos jogadores da equipe principal que integravam a seleção

brasileira.

332 - Lance - Enciclopédia do Futebol Brasi le iro (2001). Rio de Janeiro . AreteEditor ia l S/A. Vol I . p .19

333 - Amadores naquele tempo s ignif icavam um estágio “pré-prof issional” para osjovens at le tas que buscavam espaço na equipe pr incipal . A categor ia amadora eras imilar ao que representa hoje a categoria de base. Hoje , as categor ias se dividem,em função da idade, em infant i l , infanto- juveni l , juveni l , juniores . Atualmente,acontecem os campeonatos es taduais em todas as categor ias , mas a CBF ainda nãoorganiza campeonatos brasi le iros of icia is para as categor ias de base. Ospr incipais eventos para as categor ias “pré-profiss ionais” são organizados pelaFPF (Copa São Paulo de Juniores) e pela FMF (Taça BH de futebol) .

349

Entretanto, a confirmação como titular da equipe não se efetivou de

acordo com o prestígio alcançado na categoria de amadores. Passou a

travar uma competição interna pela vaga no meio campo da equipe

Botafoguense com Gerson334, onde fora preterido, em função da opção

tática de incorporar volantes de marcação no meio campo, empregada por

Zagalo, que passou a ser a tendência a partir de 1966 em nosso futebol

(Florenzano, 1998, p.45). Afonsinho naquele momento tinha a preferência de

parte da imprensa esportiva e de dirigentes como substituto ideal, quando

Gerson abandonasse o clube. Entretanto, até a saída de Gerson, tal disputa

pela posição foi se arrastando por alguns anos.

O jogador, em entrevista concedida no ano de 1997, reafirmava a

angústia e a insatisfação que viveu naquele período:

“... na época da renovação de um contrato, ou da mudança dediretoria, foram acontecendo crises porque eu tinha propostas,queria sair, gostava demais do Botafogo, até hoje souBotafogo, mas eu precisava jogar, era hora de jogar, (adquirir)amadurecimento, vivência da situação... era óbvio que euprecisava jogar. Ao Botafogo interessava um jogador que estavase destacando como uma opção ali...” (Florezano, 1998, p.45).(grifos nossos)

Observemos que uma relação de afeto foi construída por Afonsinho,

ao dizer que apesar de tudo, gostava do clube, e que mesmo após o

desfecho do episódio, permanecia o sentimento.

334 - Gerson de Oliveira Nunes, conhecido como “Canhotinha de Ouro”. Um atletade prest íg io que vir ia a se consagrar como um dos pr incipais jogadores brasi le irosde todos os tempos após in tegrar a Seleção Brasi le ira que venceu a Copa doMundo de 1970. Gerson par t ic ipou também da Copa de 1966.

350

O discurso de pertencimento ou vínculo afetivo se contrabalança

com a insatisfação apresentada por Afonsinho provocando uma freqüente

tensão, como o ex-jogador revive em sua memória: “... foram acontecendo

atritos, crises... que eu fui sempre tentando resolver cara a cara. Ou com a

direção, quando mudava a direção eu dizia: “Olha a minha intenção é jogar...

Ou quando acabava meu contrato, eu dizia: Olha, eu quero me transferir...”

(p.45)

Figura 13 – Afonsinho

A memória de Afonsinho revela que, embora amasse o Botafogo,

seu desejo era ser titular. Não se sentia útil ao grupo estando na suplência.

Observa-se que amor ao clube não é o do soldado servindo subserviente a

pátria, seus desejos revelam seu interesse pelo desenvolvimento

profissional, nada mais justo. Estar na equipe titular simbolizava para

Afonsinho a valorização financeira e o prestígio.

351

Com a saída de Gerson em meados de 1969, o conflito parecia ter

chegado ao fim, mas isso não ocorreu. Histórias de perseguição e

resistência foram construídas em torno de Afonsinho.

Florenzano (1998) interpreta que “a trajetória de Afonsinho revela-

nos a luta da resistência dos jogadores brasileiros à disciplinarização militar

adotada nos clubes brasileiros.” (p.50) Tal interpretação torna-se o motivo e

a justificativa para Florenzano biografar Afonsinho.

Devemos situar a biografia de Afonsinho, escrita por Florenzano, já

que esta é uma de nossas fontes. Uma biografia recorta e re-elabora fatos e

interpretações do passado no presente. Segundo Souto (2002), “é

necessário perceber a memória como um conjunto de relações, de

acumulação de fatos e, sobretudo, como uma dialética entre lembrança e

esquecimento: só é possível lembrar porque é permitido esquecer” (p.39).

Portanto, as memórias de Afonsinho devem ser encaradas no jogo do

lembrar e esquecer, pois “[A] memória não preservaria o passado, mas o

adaptaria, para enriquecer e manipular o presente.” (Souto, 2002, p.39).

A partir desta ponderação, revisitamos as narrativas jornalísticas

construídas em sincronia aos eventos nos quais Afonsinho foi o

protagonista. Neste levantamento, obviamente achamos que os fatos

narrados pelos jornais da época diferem e não possuem o peso colocado

nas análises de Florenzano. O primeiro e segundo planos na mídia

obedecem ao que é estabelecido pela conjuntura. Os fatos são explorados

ao sabor das hierarquias que a dinâmica social apresenta e a mídia prioriza.

Boa parte dos conflitos vividos por Afonsinho foi contemporânea aos eventos

352

da Copa 70, assim, as notícias sobre os conflitos de Afonsinho podem ter

sido secundarizadas por este motivo ou pela censura imposta à imprensa da

época. Souto (2002) nos alerta que o jornalista, ao selecionar alguns fatos,

relega outros ao esquecimento (p.35).

Afonsinho declara que foi perseguido e relegado por Zagalo, em sua

biografia. Os levantamentos das edições do Jornal dos Sports, entre agosto

e dezembro de 1969, indicam que Afonsinho foi titular em quase todos os

jogos neste período em que o Botafogo disputava a Taça de Prata.335

Portanto, nos pareceu que Afonsinho era um jogador importante para a

equipe, principalmente, após a transferência de Gérson para o São Paulo. O

dado não pode aqui ser encarado como uma evidência que desmentiria os

sentimentos subjetivos de Afonsinho, seja em relação ao Botafogo, seja em

relação ao Zagalo. Contudo, a narrativa de Florenzano, por ser uma

biografia, dá uma ênfase aos sentimentos do biografado.

Zagalo admitiu a importância de Afonsinho dentro do seu esquema

tático, mas pedia cautela ao jornalista que o entrevistava no ano de 1969:

“- A passagem de Gerson para Afonsinho ainda não se deutotalmente porque a readaptação da equipe exige tempo nessescasos. – esclarece Zagalo.- Afonsinho é o novo Gerson?- Prefiro não colocar as coisas sob essa comparação. Os estilosdiferem, o que não importa quando se trata de trabalho coletivo.Ao Botafogo interessa a produtividade de Afonsinho, que,acredito, já está a altura do que realizava Gerson. Garanto que

335 - O atual Campeonato Brasi le iro veio subst i tu ir o torneio Rober to Gomes dePedrosa, o “Rober tão”, (Taça de Prata) que até 1970 era a pr incipal competiçãonacional entre clubes. Em 1971, o evento cedeu lugar ao modelo de CampeonatoBrasi leiro que temos hoje, embora o modelo tenha s ido modif icado comfreqüência . Em nenhum dos anos de sua real ização até a presente data (2003), oCampeonato Brasi le iro teve a mesma fórmula.

353

dentro em breve, os torcedores do Botafogo não se lembrarãomais de Gerson. Afonsinho é craque, tanto que, embora decaracterísticas diferentes tem podido atender em parte ao papelanterior que Gerson executava, e ao qual Jairzinho e Robertoestavam muito condicionados.” (Jornal dos Sports, 12 deset/1969, p.12)

Zagalo no texto acima faz declarações prudentes que protegem o

jogador. Em outras palavras, diz que não podemos comparar e nem colocar

uma carga excessiva de cobranças ao Afonsinho. A idéia de perseguição

construída pela biografia perde um pouco sua força, quando observamos as

narrativas da época. Por exemplo, após a Taça de Prata, Afonsinho foi

convocado por Zagalo para a Seleção Carioca de 1969.336

A cautela de Zagalo indica que a saída de Gerson gerou matérias

para os jornais. A substituição do ídolo dava novos contornos ao episódio da

mesma forma como aconteceria nos últimos anos da década de 80, no caso

Bebeto ao substituir Zico, por exemplo. Os jornais dramatizam as

substituições e trocas de grandes ídolos, na verdade maximizam os

sentimentos dos torcedores sobre o conturbado processo de amar um ídolo

e perdê-lo para a equipe adversária, por razões financeiras. Os jornalistas

esportivos, por vezes, apresentam-se como apaixonados por seus clubes.

Essa é uma posição que vai de encontro à ideologia da objetividade

jornalística (Souto, 2002).337

336 - Afonsinho só par t icipou do pr imeiro jogo, quando a seleção car ioca foiderrotada pela seleção mineira por 4 a 0 , pois sofreu dis tensão e não pôde jogarcontra os paul is tas . (Jornal dos Spor ts , 15 de dez/1969, p .4) .

337 - Entre tanto, a memória midiát ica, a lgumas vezes é dotada de facetas epreâmbulos que buscam sustentar a ‘verdade’ contextual do jornal is ta . Trata-se deum ponto de vis ta , uma visão pessoal que pode estar condicionada a pactosexternos, conforme apontou o jornal is ta Juca Kfouri acerca do comprometimento

354

Vejamos que Hugo Lovisolo (2001) também questiona a atitude dos

jornalistas ao argumentar acerca da roupagem que eles utilizam em suas

matérias esportivas, dizendo que as notícias para causar o interesse do

leitor assume uma feição “tendenciosas, estão preocupadas demais por

refletir o extraordinário, ‘o acredite se quiser’ e esquecem do comum, do

ordinário, daquilo que para eles não é notícia.” (p.91) 338

Na biografia, a história de perseguição é reforçada a partir de um

novo acontecimento: os valores financeiros que haviam sido prometidos. Em

1969, durante o Campeonato Brasileiro, os jogadores resolveram negociar o

‘bicho’ com a direção do clube. O contexto era de um importante jogo contra

o Santos. Antes do embarque para São Paulo, os jogadores procuraram os

dirigentes para negociar a premiação sobre a vitória. Entretanto, a

negociação não teve solução até minutos antes da partida (Florenzano,

1998, p.46). Afonsinho foi encarregado como porta-voz pelos demais

jogadores e procurou a direção para que prestasse esclarecimento sobre a

reivindicação dos jogadores. Sua posição de porta-voz foi rotulada de

da imprensa, onde lamenta a forma de ação dos alguns de seus companheiros naatual idade: “Na imprensa espor t iva brasi leira , hoje não sabemos se o cara é garotopropaganda, promotor de eventos , empresár io de a t le tas , assessor de imprensa, setrabalha para um clube ou para uma mídia . Você não sabe se o jornal is ta recebeda CBF ou do jornal . ( . . . ) Raramente você encontra , na TV, um programaespor t ivo que seja independente. Sob a desculpa esfarrapada de que otelespectador quer ver gol , quer ver o jogador , e não quer grandes d iscussões nemsaber de bas t idores, não se conta nada. ( . . . ) porque não se faz jornal ismoesport ivo, na te levisão bras i le i ra , faz-se entretenimento” (p .50)Gomes, Marcos. & Carrano, Paulo Cesar R. (2000). O futebol entre palcos ebast idores . – Entrevis ta com o jornal is ta espor t ivo Juca Kfouri . In : Paulo Cesar R.Carrano, Futebol : paixão e pol í t ica . Rio de Janeiro. DP & A. Editora. 45-64 p

338 - Lovisolo (2001) .

355

“mercenária”, segundo os dirigentes botafoguenses, como descreve sua

biografia.

Na final da competição, o Botafogo teria crescido de rendimento e

parece ter atendido a reivindicação na época. A diretoria sinalizara com

premiações elevadas para a época, conforme divulgou o Jornal dos Sports

em uma reportagem em que o editor ironiza o assunto “No tempo das vacas

gordas bicho é o assunto do dia”:

“- É... entramos novamente na época da vagas gordas. A frase foipronunciada por diversos jogadores do Botafogo após o treino deontem, quando obtiveram a confirmação do prêmio de NCz$700,00 pela vitória contra a Portuguesa e ainda souberam que, sevencerem o Fluminense no domingo, a gratificação deverá sersuperior a um milhão de cruzados antigos, fato apontado pormuitos sócios como prenúncio de uma nova vitória.” (Jornal dosSports, 18 de nov/1969, p.4)

O ‘bicho’ seria prenúncio de uma vitória; os jornais diziam que o

desempenho e a dedicação dos jogadores podem se modificar em função

do interesse pela partida. O discurso do incentivo da produtividade está

explícito no texto acima. O ‘bicho’ é a marca do profissionalismo, em uma

versão moderna da empresa capitalista, ainda quando o futebol era

formalmente considerado amador.

O técnico Zagalo, questionado sobre o assunto, tentou atenuar os

fatos, ao justificar que a atuação não poderia ser creditada somente ao

incentivo financeiro. Para ele, o dinheiro teria a função de “deixar o jogador

satisfeito”, poderíamos entender motivados:

356

“O técnico Zagalo, entretanto, não atribui a boa atuação da equipeno jogo contra a Portuguesa a possibilidade de uma vultosagratificação. Segundo ele, é lógico que o jogador sendoprofissional quanto mais ganhar mais satisfeito fica. Eacrescentou: - Eu já fui jogador e por isso digo tranqüilamente.Quando se entra em campo, pensa-se exclusivamente na vitória,seja qual for a gratificação.” (Jornal dos Sports, 18 de nov/1969,p.4) (grifos nossos)

Observemos que Zagalo atribui importância à gratificação, “quanto

mais ganhar mais satisfeito fica”, mas diz que ela não é fundamental para

atuação em campo. Observemos que a narrativa de Zagalo é sutil, fala de

motivação proporcionada pelo dinheiro, mas relativiza sua influência.

O ‘bicho’ tornou-se um tema central no final da competição. Os

jornais anunciavam que os clubes teriam iniciado uma competição de quem

pagaria mais pela motivação de seus próprios jogadores e dos jogadores de

outras equipes. O presidente do Atlético mineiro, clube com expectativa de

classificação, teria oferecido um prêmio de NCz$ 5 mil a cada jogador do

Santos339 por uma vitória sobre o Botafogo (Jornal dos Sports, 25 de

nov/1989, p.2). Somente com uma vitória do clube santista é que o Atlético

teria condições de estar na próxima fase. Naquele período, o Santos já se

encontrava sem chances de se classificar para a próxima fase e, portanto, o

Atlético tentava reativar, com o ‘bicho’ prometido, o ânimo dos jogadores

santistas. O presidente do Atlético, Carlos Alberto Naves, coloca a sua

atuação da seguinte forma: “Guerra é guerra e eu vou entrar nesta, com as

armas que tenho.” (p.6)

339 - Apesar do fracasso na Taça de Prata , o Santos vivia naquele momento aeufor ia do milésimo gol de Pelé , que ter ia ocorr ido contra o Vasco.

357

Em contrapartida, o vice-presidente do Botafogo, Xisto Toniato,

indignado com a promessa atleticana, reafirmou seu compromisso com o

prêmio para os jogadores:

“- Por empate ou por vitória no jogo contra o Santos, cada umreceberá NCr$ 3 mil, como eu havia prometido”.- E só não dou mais que isso porque é impossível. A nossa folhade pagamento é alta, e depois, é bom não esquecer que não sãosomente os titulares que recebem as gratificações. Há o técnico, omédico, o preparador físico, enfim muita gente”. (Jornal dosSports, 25 de nov/1989, p.6)

Interessa-nos até o momento observar as tensões que o contexto

vivido por Afonsinho coloca em relação ao ser profissional no futebol.

Sabemos que Afonsinho, posteriormente, foi um dos articuladores do

sindicato dos jogadores e tornou-se seu presidente. Mas continuemos

explorando sua trajetória e olhando para seus contemporâneos.

Florenzano narra sobre a excursão do Botafogo ao México e à

Venezuela nos meses iniciais de 1970, como o caso definitivo para o

afastamento de Afonsinho da equipe alvinegra. Após uma contusão que o

afastou dos treinos já na excursão, mesmo depois de recuperado, o jogador

perde a posição de titular e inconformado questionou ao técnico o motivo da

exclusão da equipe titular. Segundo Afonsinho, o técnico teria alegado a falta

de condicionamento físico. Descontente com a condição de reserva, ao

chegar no estádio Asteca na cidade do México, minutos antes de um jogo,

resolve não ficar e retorna ao hotel, abandonando a equipe. O jogador

alegou que nunca mais foi escalado pelo técnico.

358

Este fato não foi noticiado com detalhes no período de sua

ocorrência pelo Jornal dos Sports. Naquele momento, as principais atenções

do jornalismo esportivo estavam voltadas para outros quatro eventos

marcantes: 1) a preparação brasileira para a Copa do Mundo de 70, bem

como todas as expectativas e prognósticos de técnicos quanto à

participação brasileira; 2) o problema relacionado à cirurgia oftálmica de

Tostão; 3) a renegociação do contrato entre Jairzinho e o Botafogo; e 4) a

tentativa de uma política de limitação salarial modificando a Lei do Passe.

Relembremos Souto (2002) sobre como a imprensa seleciona as matérias.

O motivo da seleção de uma notícia relaciona-se ao impacto que esta pode

causar sobre os leitores. Os fatos acima relacionados absorveram o

interesse jornalístico daquele período, relegando a segundo plano outros

assuntos que aconteceram no mesmo período.

O Botafogo estava disputando torneios internacionais, mas as

dificuldades de renovação do contrato de Jairzinho340, durante todo o mês de

janeiro, superavam as notícias sobre as façanhas da equipe.

Nos primeiros dias de janeiro da década de 70, o Jornal dos Sports

divulga a tensão entre os dirigentes dos clubes frente aos valores das luvas

e dos ‘bichos’ exigidos pelos jogadores. O Sr. Aníbal Pelón do CND, na

tentativa de estabelecer limites para os salários, luvas e prêmios, propunha

um adendo a Lei do Passe. Tal proposição provocou imediata reação dos

jogadores e do sindicato da categoria. (Jornal dos Sports, 03 de jan/1970,

340 - O clube oferecia 188 mil ao jogador e e le es tabelecia 220 mil . Uma chargede Henf i l caracter izava o impasse da renovação de Jairzinho. (Jornal dos Spor ts ,08 de jan/1970, p .3) Figura 14

359

p.2). Alegara o Sr. Pelón que “A imaturidade do jogador brasileiro é

constatada nos desejos constantes de se transferir só por causa dos

15%”.341 Xisto Toniato teria proposto uma reunião com todos os dirigentes

cariocas para que juntos fixassem uma política salarial (Jornal dos Sports,

06 de jan/1970, p.2). Por outro lado, o sindicato dos jogadores prometeu

reagir, caso as novas diretrizes fossem prejudiciais aos atletas. Uma

entrevista do jogador Samarone do Fluminense foi publicada como contra-

argumento do que pretendiam os dirigentes:

“Eu tenho certeza de que, no momento em que entramos emcampo todos os problemas são esquecidos e o jogador só pensana vitória do seu time. Acredito que o interesse do jogador emgarantir o futuro não pode ser confundido com falta de amor acamisa ou com imaturidade. Eu pelo menos, tenho autocrítica, seiquando rendi durante o ano e peço, para renovar, aquilo queacredito valer. Então o que acontece é que alguns jogadores sedestacam mais do que outros. Ou sejam são mais úteis aos seusclubes que os demais. Passam, então, a ser cobiçados por outrosclubes e seu valor cresce. Na época da renovação do contrato ojogador pede aquilo que acha merecer. Se o clube, concordar,não há problema. Porém, se após várias tentativas de acordo oclube decide que aquele determinado jogador não vale o quepede – que é melhor cedê-lo, não vejo nada mais normal do que atransferência para outro clube que se dispõe a pagar o que ojogador pretende. Afinal, alguns clubes são mais ricos e maispoderosos que outros, assim como há pessoas mais ricas epoderosas que outras. Os mais ricos pagam melhor e,naturalmente, contratam os melhores jogadores. Isso é muitonatural. Talvez a nova lei do passe venha a ser boa. A atual é, etenho confiança que os legisladores tratarão com atenção osproblemas do jogador. Mas talvez a iniciativa de limitar ossalários dos jogadores traga, ao invés de vantagens, umdesestimulo aos melhores e isso seria prejudicial para opróprio futebol brasileiro. Afinal, em todas as profissões omelhor ganha mais. Porque não no futebol? – ConcluiSamarone.” (Jornal dos Sports, 03 de jan/1970, p.2) (Grifosnossos)

341 - 15% era o valor que o jogador ter ia d ire i to sobre o preço da sua venda.

360

A fala de Samarone estabelece as diferenças entre a venda da

mão-de-obra do trabalhador e o amor à camisa, que pode ser lido como

dedicação e compromisso. Argumenta que, em todas as profissões, os

valores são diferenciados em relação à importância e à competência,

dizendo que não havia motivos para o futebol não observar esta lógica de

mercado. Samarone assume uma postura tipicamente liberal e moderna, ao

defender os interesses da livre negociação. A intervenção dos dirigentes é

vista com suspeição. É interessante observar que estávamos em pleno

período de ditadura e no futebol tínhamos conflitos que, em outras esferas,

poderiam resultar em perseguição política. Vejamos que Samarone

acreditava que a limitação salarial poderia provocar um efeito perverso, o

desestimulo dos melhores, portanto, seria uma ameaça ao futebol. Mais um

ator utilizando os argumentos apontados por Hirschman, (1992).

Voltemos ao nosso personagem. Na primeira partida do Torneio

Pentagonal Internacional342, realizado no México contra a Seleção Mexicana,

Afonsinho não pode estar em campo, conforme noticiou o Jornal dos Sports

do dia 13 de janeiro de 1970, afirmando que o único problema da equipe

alvinegra no torneio internacional era a distensão muscular de Afonsinho,

todavia, o Dr. René Mendonça esperava recuperá-lo para o próximo jogo,

que só aconteceria no dia 22. Portanto, um período hábil para a recuperação

do jogador. No dia do jogo contra o Spartak, Afonsinho foi testado e liberado

342 - Equipes par t ic ipantes do evento: Seleção Mexicana, Botafogo, Part izan(Iugoslávia) , Spartak e Guadalajara .

361

pelo médico para participar da partida, inclusive a imprensa dava como certa

a escalação do jogador (Jornal dos Sports, 25 de jan/1970, p.2). Todavia, na

edição seguinte, não apareceu a informação da presença do jogador na

partida. Para o jogo final do torneio, contra o Partizan da Iugoslávia, o jornal

noticiou como certa a entrada de Afonsinho na equipe. “Para o próximo jogo

Zagalo está com algumas dúvidas conseqüência das substituições que

efetuou no jogo contra Guadalajara. O retorno de Afonsinho é praticamente

certo, embora Nei venha jogando bem.” (Jornal dos Sports, 27 de jan/1970,

p.2).

Somente no dia 29 é que pela primeira vez o jornal dos Sports

coloca a situação ocorrida no dia 22, mesmo assim, de forma resumida,

parecendo tratar-se de um problema sem grande importância. “A situação de

Afonsinho, multado em 60% do salário por não aceitar ficar no banco de

reservas está praticamente contornada e se retorno ao time pode ser no

domingo.” (Jornal dos Sports, 29 de jan/1970, p.2) A indisciplina é cobrada

na lógica profissional. O resultado da partida foi a derrota do Botafogo por 1

a 0 para a equipe iugoslava, ficando a equipe alvinegra em terceiro lugar no

torneio. Na coluna destinada a comentar sobre a atuação de cada jogador

na partida, não apareceu o nome de Afonsinho. Portanto, parece que ele

não foi escalado, conforme apontara o jornal.

Ainda nesta mesma excursão, no Torneio Triangular343 promovido

pela Federação Venezuelana, o Botafogo foi o vencedor e, mais uma vez, o

343 - Par t ic iparam do evento: Seleção da União Soviética, Spartak Trnava eBotafogo.

362

nome de Afonsinho não aparece na coluna que descreve atuação dos

jogadores na partida.

Figura 14 - Charge de Henfil - Jornal dos Sports, 08 de jan/1970, sobre arenovação de contrato de Jairzinho

Somente após o retorno da delegação botafoguense ao Brasil é que

o Jornal dos Sports publicou o ponto de vista do técnico Zagalo, que

inclusive, em várias passagens, coincide com os apontamentos de

363

Afonsinho na entrevista editada por Florenzano. Transcrevemos na íntegra o

texto divulgado pelo Jornal dos Sports acerca deste episódio na versão de

Zagalo:

“Nota-se no técnico muita preocupação com o caso de Afonsinho,considerado por ele um dos maiores casos de indisciplina que eujá vi na minha longa vida de jogador.- Olha, foi uma surpresa. Desde que Gerson saiu ele é o titular,não sei o que acontece. Afonso saiu daqui como titular. Chegouno México e se queixou de dores nas costas na véspera do jogo.Fui ao Dr. René Mendonça que me disse: - Olha ele está vetado.Melhor guardar para o próximo jogo.Zagalo prossegue:- Fui ao seu quarto e perguntei com jeito: Dá para jogar? ‘Não sei’,respondeu e fez uma careta de dor. Em vista disso avisei: vocêfaz tratamento, são onze dias até o segundo jogo, e quem vaijogar é o Nei. Não me disse nada. Passou uma semana semtreinar. Dois dias do jogo é que voltou ao treinamento sério.Pensei bem e resolvi botá-lo na regra 3. Ora, afinal de conta eu jájoguei em aspirantes, depois de bicampeão do Mundo. Nãodiminui ninguém com isso. Na entrega do material ele já sabia quenão ia jogar, pois o roupeiro lhe deu a camisa 13 ou 14, ou 15, seilá menos a 8 de titular. No ônibus, estava alegre e comandou abatucada que os jogadores sempre fazem fora do Brasil, aindamais na época de carnaval. Para surpresa minha, disse que nãosentaria no banco bem na hora do time entrar em campo, o quecriou um mal estar. – ‘O Afonso não joga’ diziam baixinho quandoentrei no vestiário.Zagalo continua:- Tem mais. Trocou de roupa e saiu do estádio. Eu nunca vi isso.Tremendo mau exemplo. Nem falou comigo. Imediatamente foipunido com 60% por Marinho e agora vou falar com Toniato.- E depois vocês não falaram mais?- Bem, ele veio discutir comigo com argumento que não cabe emquem está no segundo ano de medicina. Disse que eu sempre fuicontra ele, profissionalmente. Eu disse então que nesse caso euprejudicava todos que não escalava. “É isso mesmo” respondeuele. Nem havia mais o que dizer.” (Jornal dos Sports, 12 defev/1970, p.6)

Zagalo, ao retornar da excursão, declara que objetivava novos

rumos para o Botafogo: “Daqui pra frente tudo vai ser diferente. Estou

364

disposto, a transformar o Botafogo numa equipe moderna, jogando futebol

solidário que eu vi lá fora, com as nossas características é claro” (Jornal dos

Sports, 12 de fev/1970. p.6). Nestas transformações, já não pretendia incluir

Afonsinho, quando propôs sua troca por um jogador do Flamengo. Pelas

narrativas do Jornal dos Sports, Afonsinho já apresentava problemas para a

direção do clube há muito tempo. O desentendimento da viagem apenas

reforçou a dificuldade de relacionamento entre ambos, conforme noticiou o

jornal no dia 15 de fevereiro de 1970, na matéria intitulada Zagalo propõe

troca de Afonso por Dionísio:

“O Botafogo já pretendia negociar o passe de Afonsinho mesmoantes dos acontecimentos no estádio Asteca. Para os dirigentesalvinegros, Afonsinho não vinha se empenhando como deveria notreinamento. Varias vezes ele foi chamado a atenção, mas nãocorrigiu. Ao lado da indisciplina continua de Afonsinho, Neidemonstrou grande forma e vontade de ser titular.” (p.11)

Todavia, a tentativa de troca com o Flamengo não foi frutífera,

devido ao desinteresse do Flamengo em negociar o jogador Dionísio:

“Admiro o futebol de Afonsinho, mas no momento o Flamengo não pensa em

se desfazer de qualquer de seus jogadores, muito menos de um elemento

utilíssimo como o Dionísio” - Declarou George Helal. (Jornal dos Sports, 17

de fev/1970, p.2)

Após esta tentativa fracassada, Afonsinho continuava indo ao clube

para realizar seu treinamento, o que fazia isoladamente do restante dos

jogadores. Questionado sobre sua situação, ele colocou: “Vamos ver o que

365

eles resolvem. Eu não quero mais falar no assunto para evitar polêmicas, e

conseqüentemente novela.” (Jornal dos Sports, 14 de fev/1970, p.1)

Devido às tensões que envolviam a permanência do jogador no

clube, a direção do clube demonstrava a possibilidade de negociá-lo pelo

valor de NCr$ 500 mil, mas que não existia nenhuma proposta oficial até

aquele momento: “Eu quero deixar claro que o Botafogo vende Afonsinho,

mas que nem por isso seu passe está à venda. Ele, por enquanto, é jogador

do clube e só sai se aparecer uma boa proposta”, declarou o vice-presidente

Xisto Toniato (Jornal dos Sports, 14 de fev/1970, p.1).

No dia 28 de fevereiro, foi noticiado o empréstimo do jogador para

um clube de subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, o Olaria344, até o final da

temporada de 70, sem que nenhuma exigência financeira fosse feita por

parte do Botafogo (p.4).

Também neste clube, em uma excursão à Ásia no mês de junho de

1970, Afonsinho foi afastado do grupo por desentendimento com um diretor

e recebeu a passagem de volta para o Brasil. Na época, o Jornal dos Sports

deu pouca importância a este novo transtorno envolvendo o jogador,

possivelmente por ser o Olaria um clube considerado pequeno do futebol

carioca e pelos interesses que despertavam a Copa do México, em plena

realização, e, naquele momento, era o acontecimento que mais despertava

atenção.

Vencido o período de empréstimo ao Olaria, Afonsinho deveria se

reapresentar ao Botafogo, clube que continuava a ser proprietário do seu

344 - O Olar ia Atlét ico Clube foi fundado em 1915. Recebeu este nome devido àfábrica de t i jolos que se local iza no bairro Olar ia , no subúrbio car ioca.

366

passe e onde deveria cumprir o restante do contrato. Em função do impasse

ocorrido entre ele e Zagalo, caberia ao clube resolver tal situação, uma vez

que a comissão técnica dirigida pelo referido técnico reassumiria o comando

do Botafogo depois do encerramento da Copa do Mundo, de onde Zagalo

retornou mais fortalecido, colhendo os ‘louros’ da conquista mundial, após

substituir João Saldanha no comando técnico brasileiro.

Entretanto, quando Afonsinho se reapresentou ao clube, na

tentativa de reintegração, foi questionado sobre a adoção de um novo visual

– ‘barba e cabelos compridos’. Este novo fato passou a dominar o embate

entre o jogador e a direção do clube.

Percebe-se, por intermédio dos nossos levantamentos, que, durante

este período - junho 1970 -, o Botafogo passara por diversos transtornos

internos, fruto do retorno dos sete integrantes da seleção brasileira que

haviam conquistado o título mundial (O técnico Zagalo, o preparador físico

Admildo Chirol, o médico Lídio Toledo e os jogadores Jairzinho, Paulo

César, Roberto e Rogério), que, ao retornarem prestigiados, exigiam

melhores salários. Parece que, em função destes fatos, o caso de Afonsinho

não tenha causado na época os apelos midiáticos que poderia ter absorvido,

se ocorressem em outro período.

Afonsinho, para o Botafogo, era um assunto menor em relação aos

problemas que estavam enfrentando, como pareceu-nos menor também

para a imprensa.

367

Os espaços de mídia destinados ao Botafogo eram ocupados

principalmente com assuntos das renovações dos principais contratos, da

glória dos jogadores, da comissão técnica e também do campeonato

carioca, que já estava começando. Jairzinho345, aclamado pela imprensa

brasileira e internacional, apesar de já ter renovado o seu contrato poucos

meses antes da Copa, ao retornar, exigia mais dinheiro, uma vez que trazia

da Europa uma proposta de empréstimo do Sporting Lisboa de Portugal no

valor de NCr$ 700 mil por seis meses (Jornal dos Sports, 01 jul/1970, p.3).

Paulo César, que também já havia renovado, solicitava um reajuste.

Todavia, isso não ocorreu somente no Botafogo, pois praticamente todos os

jogadores que estiveram na Copa, ao regressarem aos seus clubes,

travaram intensos diálogos por reajustes salariais.346 Observemos que todos

estes personagens, hoje, relatam que jogavam com mais amor à camisa que

os atuais jogadores.

Os valores exigidos para renovação do contrato, bem com de outros

que também estavam vencidos geraram uma intensa preocupação dentro do

Botafogo. O vice-presidente do clube desabafa publicamente: “Eles pediram

uma quantia que nenhum time do Brasil poderá dar. O Botafogo é um clube

que deve 800 mil cruzeiros e está com suas rendas de jogos penhoradas

345 - Jair Ventura Fi lho ganhou o apel ido de “Furacão da Copa de 70”, devido aoímpeto com que enfrentava as defesas adversár ias . Apesar de não ter s ido oart i lheiro da competição, com sete gols fo i o ar t i lheiro da seleção brasi le ira . Atéhoje, é o único jogador a marcar gols em todas as par t idas de um CampeonatoMundial .

346 - Pelé no Santos, Tostão no Cruzeiro, Gerson no São Paulo etc , todosrenegociavam seus salár ios após a conquista mundial .

368

pelo BEG. Ninguém tem condições de dar o que eles estão pedindo.” (Jornal

dos Sports, 01 de jul/1970, p.3)

Pela pressão que estava recebendo dos dirigentes alvinegros e de

parte da torcida, Toniato resolveu tornar público os valores e as exigências

que Zagalo, Chirol e Roberto apresentavam para consolidar a renovação de

seus contratos:

“- O Zagalo quer um total de 340 mil por dois anos, assimdistribuídos: 30 mil no ato da assinatura mais uma quantiaidêntica dentro de três meses e duas prestações de 20 mil emigual período, salário de 10 mil, multa rescisória de 50 mil efinalmente, bicho, igual ao do jogador mais categorizado.- O Chirol pede 25 mil de luvas, sendo 10 mil na mão, e mais trêsprestações de 5 mil de dois em dois meses, salário de 5 mil, multarescisória de 10 mil e, também, bicho nunca inferior ao do jogadormais categorizado do Botafogo.- Roberto continua irredutível na sua proposta: 300 mil de luvas,sendo 100 mil no ato da assinatura e mais 200 mil junto com osordenados por dois anos.” (Jornal dos Sports, 02 de jul/1970, p.4)(grifos nossos)

Observemos que, apesar de proporem luvas e altos salários para

aquela época, o dirigente e o preparador físico estipulam que ainda

deveriam receber as gratificações (bichos) a que todos os demais jogadores

tivessem direito, todavia não inferior ao jogador que recebesse o mais

premiado. Mais uma vez, temos um passado onde muitos destes

personagens agiam como profissionais, legitimamente, mas hoje declaram

que na sua época a relação era mais pautada na dedicação e ‘no amor à

camisa’.

369

Como já apontamos anteriormente, devido ao interesse pela

conquista da copa, as notícias sobre Afonsinho ficaram relegadas a

pequenas notas inclusas nos noticiários do Botafogo e de seu prestigiado

elenco. Após vários dias sem que fosse dada importância ao assunto, surge

uma nota sobre a solicitação do Botafogo para que fosse prorrogado o

período do contrato do jogador até que este retornasse ao clube. Havia

rumores de que Afonsinho estivesse com problemas no serviço sanitário

francês e, por isso, ainda não havia retornado ao Brasil após a excursão que

estivera com o Olaria. Mediante o sumiço de Afonsinho, o Botafogo solicitara

a intervenção da Federação Carioca de Futebol (FCF), julgando-se lesado

pelo não cumprimento do contrato, devido ao abandono do jogador:

“Afonsinho que continua ausente do Rio desde que sai emexcursão com o Olaria, teve ontem o seu contrato com o Botafogosuspenso, até que se reapresente ao clube. A decisão foi tomadapela FCF, que julgou procedente a acusação do Botafogo, eassim o apoiador teve o seu vínculo com o clube prorrogado pelomesmo prazo de sua ausência.” (Jornal dos Sports, 03 dejul/1970, p.3)

O clube, com esta atitude, buscava acelerar o retorno do jogador e

demonstrava a postura que tomaria na negociação com Afonsinho. Segundo

o dirigente Toniato, “o destino dele só será selado, depois que se

reapresentar e justificar sua ausência.” (p.3)

No dia 04 de agosto de 1970, o Jornal dos Sports divulga nova

informação do caso. Observemos que, durante o mês de julho inteiro, o

jogador permaneceu ausente do clube.

370

“O Botafogo continua aguardando a apresentação a Afonsinho.Os dirigentes informam que o apoiador não está oficialmente emlitígio com o clube. Frisam apenas que o Botafogo suspendeu oseu contrato por precaução. Mas como o próprio jogador afirmouantes de ser emprestado ao Olaria que “jamais voltaria a trabalharsob as ordem de Zagalo”, o seu passe é negociável e estáestipulado em 300 mil.” (p.3)

Conforme já antecipamos acima, a reapresentação seria marcada

por um novo embate, o episódio da barba e dos cabelos compridos. O

jogador teria sido discriminado e reprimido pela adoção de um visual que

incomodava os dirigentes esportivos na época, pois essa nova aparência

lembrava a contracultura ou o estilo visual dos integrantes da esquerda; o

Brasil vivia um intenso período de repressão.

Segundo Florenzano (1998), o cabelo e a barba de Afonsinho

tornar-se-iam emblemáticos na luta entre o profissional e o desmando dos

dirigentes, mas apresentava ressalvas sobre o próprio impacto na época:

“A barba e os cabelos compridos de Afonsinho entraria nos anaisda história do futebol brasileiro como símbolos da luta pelaliberdade dos atletas profissionais, mas essa imagem veiculadana imprensa esportiva induz ao equívoco que a foto guardadapelo jogador desfaz. Pois o retrato que o jogador possui em suasala, feito no dia da proibição, mostra-nos Afonsinho com umabarba que mal pode ser notada e com o cabelo cujo comprimento,para os padrões atuais, dificilmente seria considerado longo.”(p.87)

O jogador teria sido intimado a modificar o visual para que se

reintegrasse à equipe em treinamento. Um dos títulos destinado ao fato

divulgava a exigência do clube: Afonsinho só volta com cabelo raspado:

371

“O Vice-Presidente de futebol do Botafogo informou ontem que ocontrato de Afonsinho continuará suspenso enquanto ele nãocorta o cabelo e fazer a barba. “Se ele fosse artista de novela,poderia andar assim. Mas ele é profissional do Botafogo e temque enquadrar-se nas normas do clube” – Frisou o Vice-Presidente.” (Jornal dos Sports, 14 de ago/1970, p.5)

Por trás do problema da barba e dos cabelos compridos apareciam

outros fatos que agravavam a situação do jogador e a sua permanência em

General Severiano347. Os dirigentes questionam sua disciplina, que, segundo

a direção do clube, já vinha sendo motivo de descontentamento. O clube

admite que a crise entre o jogador e o clube estava fundamentada na

indisciplina e no desacato a Zagalo, quando o jogador teria afirmado que não

jogaria mais com o referido técnico. (Jornal dos Sports, 28 de ago/1970, p.4)

O jornal relatou pontualmente as razões do clube para proibir que Afonsinho

participasse dos treinamentos:

“1 – No jogo com o Atlético Mineiro, em 1967, Afonsinho não tinhapegado na bola e, aos 13 minutos, Zagalo o substituiu, sendoofendido pelo jogador.2 – Em uma excursão ao México, em fase má, foi novamentesubstituído e, no jogo seguinte, recusou-se a entrar em campo.Na volta conversou com dirigentes antes de ser punido, e,recentemente, declarou que não jogaria com Zagalo.3 – Terminado o seu emprestamos ao Olaria, não se apresentouno dia marcado, só o fazendo muito tempo depois, de barba.”(p.4)

347 - Nome da sede of icial do clube, local izada no bairro de Botafogo, zona sul doRio de Janeiro.

372

A matéria coloca ainda que o clube não tem nada contra Afonsinho,

que “é só ele aparecer sem barba – símbolo da sua indisciplina – para voltar

aos treinamentos e lutar pela posição” e que considerava o jogador como

‘patrimônio do clube’ e “um jogador de excelente qualidade.” (grifos

nossos) (p.4)

Observemos que a idéia de propriedade sobre o jogador é a

justificativa do clube sobre o direito de exigir que ele seja disciplinado. Como

empregado do clube, deveria se sujeitar às determinações da diretoria e

comissão técnica, ainda que fossem ditatoriais e invadissem a esfera privada

do jogador. Contudo, este era um comportamento comum dos

empregadores até recentemente. Por exemplo, os bancos exigiam que seus

funcionários não usassem barba. Ao jogador caberia aceitar a ordem e

retornar ao clube sem a barba e com os cabelos cortados, afinal o esporte

sempre carregou consigo traços de uma moral ascética.

Neste mesmo dia, o jornal divulga também o ponto de vista do

jogador. Para ele, todas as acusações apresentadas pelo clube não

passavam de um motivo utilizado como fachada para excluí-lo da equipe.

“O problema da barba é apenas um pretexto para me tirar do time.Se eu fosse um jogador indispensável, não teriam me emprestadoao Olaria, sem nada receber em troca. Já cedi duas vezes emcaso criado pela diretoria. Se eu cortar a barba, vão procuraroutra razão para me prejudicar. Eles acham que eu exerço umaliderança negativa, prejudicial. Se eu voltar, vão arranjar novoproblema. Por que o caso da barba, só comigo? Eu sou umprofissional do clube, quero treinar e eles não deixam. Sobre oque afirmarem que eu disse – que não jogo com Zagalo – volto adizer que sou um profissional do clube e jogo com qualquer um.”(Jornal dos Sports, 28 de ago/1970 p.4)

373

O jogador coloca-se como profissional que deve obedecer às

determinações do clube contratante, indiferente ao comandante da equipe;

ele parece não concordar é com a invasão de sua privacidade.

A coluna ‘Jogo Perigoso’ do jornal, em forma de anedota, apresenta

uma crônica denominada ‘A barba’, que reforça a acusação de Afonsinho

sobre Zagalo.

“A nova fisionomia de Afonsinho – cabelos compridos e barba demuitos meses está assustando. Zagalo não permitiu que eletreinasse assim no Botafogo. Como ele se recusa a cortar ocabelo e fazer a barba, criou-se o impasse para sua volta aoclube. Um amigo lembrou então Zagalo que ele havia permitidoque Brito jogasse barbado na seleção.- O caso de Brito foi diferente – ponderou Zagalo, – foi caso depromessa.O amigo não conformou:- Quem sabe se o Afonsinho não faz promessa também?Como Zagalo não percebesse a história, o amigo completou:- Alguma promessa para você sair do Botafogo.” (Jornal dosSports, 13 de ago/1970, p.2) (grifo nosso)

Observemos que o próprio cronista reforça a idéia do visual

diferenciado, ao dizer que os cabelos e a barba de Afonsinho causavam

susto e não eram o principal motivo para o conflito.

374

Figura 15 – Afonsinho em 1972 jogando pelo Santos. F. C. Agachado – 2º dadireito para a esquerda. Este visual passou a ser adotado por Afonsinho a partir do

embate com o Botafogo

Este impasse entre o jogador e a direção do Botafogo arrastou-se

até que o jogador resolveu questionar a ‘Lei do Passe’ na Justiça Desportiva.

Quando finalizou o período de vigência do contrato, o jogador recorreu à

justiça requisitando o direito de se transferir para outra equipe, uma vez que

no Botafogo não havia mais como continuar vinculado. Todavia, o clube

negava a permissão.

A ‘Lei do Passe’ era um instrumento que os clubes utilizavam para

manter seus direitos sobre o jogador. Tal lei funcionava como uma

imposição que aprisionava o jogador ao clube ao qual estava vinculado. A lei

não apresentava um dispositivo que operasse no sentido de divisão de

direitos, entre jogador e clube, conforme salienta Florenzano (1998), ao

afirmar que ela “constitui-se num mecanismo jurídico que aprisiona o atleta

profissional em relação trabalhistas de caráter servil, submetendo-o a

condição de depender do consentimento do clube para poder prosseguir na

carreira.” (p.96)

375

Portanto, Afonsinho, um profissional que buscava romper com o

vínculo empregatício, estava preso pelo dispositivo da lei que não lhe

facultava a opção de buscar um novo empregado. Embora considerado um

profissional nos princípios modernos, em partes, a ‘Lei do Passe’ relembrava

o regime servil, em que a força de trabalho do jogador não poderia ser de

outro clube sem o consentimento daquele a que estava vinculado

anteriormente.

Ricardo Melani e Ronaldo Negrão (1995)348 apontam os alicerces do

contrato, ao analisarem a conexão entre jogador e clube: “No ato da

assinatura do contrato profissional, o jogador entra para um mundo no qual

ele não é mais dono de si.” (p.63)

A “desobediência” de Afonsinho – seu novo visual e a indisciplina –

foi apropriada para gerar um discurso acerca da quebra do acordo entre as

partes. Por trás do debate existe um perfil do jogador reivindicador. Por um

lado, Afonsinho mantinha-se irredutível ao seu direito de opção pelo visual

que queria adotar, sem se curvar às normas do clube sobre a aparência do

seu empregado. Os mandos e desmandos dos dirigentes botafoguenses não

poderiam ser ignorados pelo jogador. Parece que, neste embate, o que

menos se questionava era a competência esportiva, a condição de produção

do jogador, a sua função profissional. Os feitos esportivos cediam lugar a um

padrão estético, mas não da estética do jogo. Melini & Negrão (1995)

apontaram que “qualquer reivindicação interpretada como ousadia por parte

348 - Melani , Ricardo & Negrão, Ronaldo.(1995). Passe para a servidão. In :Revis ta do Departamento de Educação Fís ica e Esportes da PUC-SP, São Paulo.4(2) . 61-69.

376

do clube pode causar uma situação pior que o desemprego: sem salário,

sem trabalho e sem poder procurar trabalho.” (p.65) Florenzano analisou que

a ‘Lei do Passe’ “constitui num importante instrumento de dominação, à

medida que restringe consideravelmente o campo de ação do jogador no

quadro de relações de poder, fazendo pesar sobre ele (...) a ameaça do

interdito da profissão.” (p.97)

Mesmo com a transferência de Zagalo para o Fluminense em 1971,

quando Paulinho de Almeida assumiu a equipe, não houve um acordo para a

reintegração de Afonsinho. O novo técnico não se opunha à presença do

jogador na equipe. É oportuno lembrar que Paulinho já havia sido seu

técnico no curto período em que esteve no Olaria e na excursão a Ásia,

onde o jogador foi desligado, por problemas com um dos dirigentes.

Entretanto, para o jogador já não estava mais em questão a sua

permanência no Botafogo. Queria ter direito a exercer sua profissão em

outro clube, solicitando nos tribunais esportivos a sua liberdade de atuação.

O trâmite do processo foi se arrastando durante vários meses na

justiça esportiva. Porém, apesar de iniciado o processo na justiça esportiva,

Afonsinho não acreditava ter sucesso no julgamento desta instituição, devido

ao envolvimento dos juízes do tribunal com os clubes e a força política que

representava o Botafogo na época. Acreditava que seria necessário recorrer

à justiça comum, mas queria esgotar as possibilidades na instância

esportiva. Florenzano (1995) descreve o início do processo citando parte da

entrevista de Afonsinho: “Romper um vínculo dessa importância, discutir o

Passe com um clube como o Botafogo, um time de primeira linha do futebol

377

mundial, cujo presidente era o Secretário da Fazenda do Estado! Quer dizer,

era muito poder pra ser contestado.” (p.100)

Após vários percalços no decorrer do processo, finalmente,

Afonsinho recebe o ‘Passe Livre’ em março de 1971, por intermédio do

julgamento no Superior Tribunal de Justiça Desportivo da CBD, gerando

uma nova era de relacionamento entre os jogadores e os clubes. Até então,

o poder dos clubes e de seus dirigentes pareciam soberanos nos processos

de enquadramento do jogador. As relações profissionais eram centradas nas

exigências dos dirigentes. Parece que, por meio do esporte, seria

estabelecida (ou se pretendia) uma sociedade comercial diferenciada, onde

as trocas entre empregador e empregados fossem legisladas a partir de

princípios mais igualitários.

O direito de renúncia ou permanência em um clube não era

estabelecido pelo interesse de jogadores e dirigentes, o que difere do

mercado formal de trabalho. O trabalhador pode recusar o trabalho, desde

que cumpra as formalidades da lei, e então buscar novo trabalho. Para o

jogador, a lei apresentava-se perversa, onde o clube podia amarrar o seu

contrato, inibindo por preços exorbitantes a sua transferência.

Afonsinho tornou-se, no passado e no presente, o símbolo dos

direitos profissionais do jogador de futebol no Brasil. Observamos que hoje

os discursos de pertencimento, os ideais amadores, são freqüentemente

relacionados àquela época, onde a memória jornalística, dando voz ao

passado, insinua que o jogador se comprometia com o clube acima dos seus

próprios interesses. Aquela geração de jogadores ficou eternizada por parte

378

da imprensa e dos torcedores como uma geração que vestia a camisa do

clube e da seleção, demonstrando comprometimento e amor, como se os

interesses financeiros nas transações contratuais fossem secundários,

colocados em segundo plano, sem maior importância. O jogador jogava pelo

‘amor à camisa’. Em uma pesquisa com torcedor, podemos constatar esta

representação (Salles e Soares, 2003). 349

Todavia, os jornais daquele período demonstram um forte impulso

no sentido de tornar profissionais as relações no futebol. O ‘amor à camisa’,

cantado em versos e prosa em nossos dias, não era tão consensual entre os

jogadores, conforme atestam os jornais sobre as negociações dos novos

contratos. Os integrantes da seleção brasileira, ao retornarem vitoriosos do

México, passaram a exigir de seus clubes altos salários, conforme

constatamos nas negociações que envolveram Zagalo, Chirol, Jairzinho,

Roberto, Gerson, Tostão e mesmo Pelé como devem ser as relações

profissionais no mercado de trabalho.

349 - Sal les , José Geraldo do C. & Soares , Antonio Jorge. (2003). A memóriasocial do futebol brasi le iro – Entre a paixão e o interesse. In : (Anais) IIConferencia do Imaginário e das Representações sociais em Educação Fís ica ,Espor te e Lazer . Rio de Janeiro . Universidade Gama Fi lho. 27-29 de nov/2003.687-703p (CDRom).

379

Capítulo XVIReleitura do caso Bebeto – A transferência do Flamengo parao Vasco da Gama350

“Eu queria ficar, aprendi a amar esse clube e, sefosse só pelo coração, permaneceria.”

(Bebeto)351

José Roberto Gama de Oliveira – O Bebeto, natural de Salvador na

Bahia, nascido em 1964, protagonizou no final dos anos 80 um fato

marcante no capítulo das transações do futebol brasileiro. Uma transação

que poderia ser considerada normal, se não estivesse em jogo outros fatores

que não somente a comercialização da força de trabalho (mão-de-obra) de

um jogador, mas, sobretudo, de um ídolo do futebol brasileiro e,

especificamente, de uma torcida. Os fatos decorrentes desta transferência

de clube revelaram sentimentos que fizeram incendiar os ânimos dos

torcedores, dirigentes e da imprensa. O que poderia parecer ordinário, uma

simples transação comercial, faz emergir sentimentos coletivos,

principalmente por se tratar de um ídolo e a rivalidade histórica entre os

clubes envolvidos na transação.

350 - O pontapé para o desenvolvimento desta seção foi o t rabalho de Helal &Coelho (1995). Modernidade e tradição no futebol Brasi le iro: O “Caso Bebeto”.Helal , Ronaldo & Coelho, Maria Cláudia. (1995) . Modernidade e tradição nofutebol bras i le iro: O “caso Bebeto no futebol brasi le iro”. In : Pesquisa de Campo– Revis ta do Núcleo de Sociologia do Futebol ; UERJ nº 2 (1995). 91-99p

351 - Jornal do Brasi l , 18 de ju l /1989, p .24

380

O caso Bebeto tomou notoriedade, por envolver um ídolo da torcida

do Flamengo que se transfere para o Vasco da Gama, um clube considerado

arqui-rival e pertencente à mesma cidade. Flamengo e Vasco representam o

oposto, onde a emulação entre os dois clubes se faz presente em

praticamente todas as instâncias sociais. Esta rivalidade rubro-negra e

cruzmaltina foi estudada por Kowalski 352 em seu doutoramento: ‘Por que

Flamengo?’ Segundo Kowalski, a rivalidade existente hoje no futebol entre

os dois clubes teria surgido nos esportes náuticos, quando o esporte

começava a ser praticado no Brasil. Os eventos esportivos no mar e nos

clubes tornaram-se desde então referências sócio-culturais (p.52). Nos

primeiros anos do século XX, os dois clubes disputavam aguerridamente os

títulos dos esportes náuticos na cidade do Rio de Janeiro (p.53).

Figura 16 – Bebeto no Flamengo em 1986

352 - Kowalski , Marizabel (2001). Por que Flamengo? Tese de doutorado. Programade Pós-graduação em Educação Física. UGF. Rio de Janeiro .

381

Na representação social, outras imagens são produzidas, quando

há um encontro esportivo entre as duas agremiações: bacalhau x urubu,

brasileiros x português etc, intensificando a rivalidade.

Bebeto despontou no futebol brasileiro por intermédio da equipe do

Vitória - BA, onde atuou nos anos de 1983 e 1984. Aos 20 anos, devido à

sua admirável performance, rapidamente foi contratado pelo Flamengo353,

em um período em que Zico já havia se consolidado como o principal ídolo

da equipe rubro-negra e do futebol brasileiro. Naquele momento, o

Flamengo era considerado a primeira força do nosso futebol, principalmente

devido ao número de conquistas alcançadas354. Portanto, Bebeto aparecia

como uma expectativa de substituição do ídolo Zico, jogador vitorioso que já

se encontrava com 30 anos (nascido em 1953) e neste mesmo ano, se

transferiu para a equipe italiana da Udinese.

Durante o tempo em que Zico esteve fora da equipe, Bebeto

aparecia como a principal esperança da equipe, um jovem jogador

respeitado e admirado pela torcida flamenguista. Todavia, durante os dois

anos em que Zico estivera fora (1983-1985355), a equipe não conseguiu

353 - Jornal dos Spor ts not i f ica que Bebeto , a inda na categor ia júnior , fo i vendidoao Flamengo por CR$ 65 mil cruzeiros . (Jornal dos Sports , 03 de jul /1989, p .1) .

354 - Tí tu los do Flamengo no in íc io dos anos 80: Campeão Car ioca 1981 - CampeãoBrasi leiro 1980, 1982 e 1983 - Taça Liber tadores da América 1981 - CampeãoMundial In terclube 1981.

355 - O ano de t ransferência de Zico para a Udinese (1983) fo i um ano em que oFlamengo conquistou o Campeonato Brasi le iro. Por tanto, apesar de constar queele f icou três anos fora, e le ter ia par t ic ipado no ano de transferência da campanha

382

nenhuma conquista expressiva. Observemos que somente em 1986 o

Flamengo se tornou novamente Campeão Carioca e o título do Campeonato

Brasileiro só viria no ano seguinte (1987), momento em que Zico retornara

ao Clube. Foram dois anos sem títulos para uma equipe que conquistava

pelo menos um título por ano.356 Apesar da falta de títulos, o jovem

contratado revelou-se como um dos principais goleadores do futebol

brasileiro, sendo artilheiro do Campeonato Carioca nos anos de 1988 e

1989. Durante os seis anos em que esteve no Flamengo, Bebeto marcou

141gols em 284 jogos.

Zico retornou ao Flamengo em 1985 357, após dois anos no futebol

italiano, passando a compor a equipe juntamente com Bebeto. Portanto, os

dois, apesar do período em que Zico esteve se recuperando das suas

inúmeras lesões, formaram uma das duplas de atacantes mais valorizadas

do futebol brasileiro naquele tempo. Com a nova saída de Zico358, o qual

v i tor iosa da equipe rubro-negra. As competições européias ocorrem portemporada. Uma equipe, quando conquista um t í tu lo nacional , geralmente refere-se a campeão da temporada, por exemplo: Milan – Campeão I ta l iano da temporada2001-2002.

356 - O Flamengo foi campeão car ioca em 1978, 1979 e 1981. Foi campeãobrasi le iro em 1980, 1982 e 1983. Por tanto , seis anos seguidos como campeão dealgum evento de expressão. Enciclopédia do Futebol Brasi le iro. (2001) Rio deJaneiro. Arete Editor ial S/A. v 1. p . 166.

357 - A Enciclopédia do Futebol Brasi le iro vol I I t rás que Zico esteve na equipe daUdinese no per íodo de 1983 a 1985. Todavia, t rás também que o jogador esteve naequipe do Flamengo de 1985 a 1989. Portanto, as datas se cruzam, parecendo queo jogador esteve durante algum tempo in tegrando os dois c lubes. Rio de Janeiro.Arete Edi tor ial S/A. v II . p . 374.

358 - Helal e Coelho (1995) . Modernidade e t radição no futebol Brasi le iro : O “CasoBebeto” aponta que Zico ainda ter ia disputado algumas par t idas do CampeonatoBrasi leiro de 1989 e só ter ia parado def ini t ivamente em uma par t ida deconfraternização entre o Flamengo e uma equipe formada por jogadores de váriospaíses . Entretanto, deu prosseguimento na sua vida de jogador por mais algumastemporadas no futebol japonês.

383

anunciara que pararia de jogar profissionalmente em 1989, Bebeto

rapidamente se tornou o jogador mais prestigiado da equipe, um ídolo que já

havia adquirido status de uma elevada parcela da torcida rubro-negra.

Conforme Helal e Coelho (1995), mesmo antes de o Zico abandonar os

campos, Bebeto já havia adquirido autoridade de ídolo da torcida

flamenguista.

O contrato de Bebeto com o Flamengo venceu no dia 30 de junho,

período em que o jogador estava integrando a seleção brasileira que

disputaria a Copa América de 1989, realizada no Brasil, e as eliminatórias

para a Copa do Mundo de 1990. Segundo informações da direção do clube

da Gávea, ele estava jogando pela seleção brasileira, resguardado por um

seguro. Neste período, o seu procurador já articulava a renegociação do seu

novo contrato, estipulando inicialmente o valor de 100 mil dólares, conforme

aponta o Jornal dos Sports:

“O procurador de Bebeto acha que, para começar a conversarsobre renovação, os dirigentes deveriam oferecer pelo menos 100mil dólares – cerca de NCz$ 370 mil no câmbio paralelo – no atoda assinatura e mais 100 mil dólares após um ano, isso semcontar os salários do atacante.” (14 de jul/1989. p.3)

Estes valores foram contestados pelo Flamengo, intensificando os

rumores acerca de uma possível contratação do jogador por outro clube.

384

Figura 17 – Bebeto – Copa América 1989

O Flamengo não admitia a negociação e passa a acusar o

procurador do jogador pelo desconforto gerado. Um dia depois do

vencimento do contrato do jogador, o presidente de futebol do clube, George

Helal, afirmara que a negociação com o Bebeto já fazia parte do passado,

confiante de que estava perante uma solução entre as partes:

“Para o Flamengo nada mudou. O clube, garante George Helal,nunca teve interesse em negociar o jogador. Pelo contrário.Apenas cedeu a carta com o preço do passe fixado para nãoatrapalhar a carreira de Bebeto. Mas isso agora faz parte dopassado. Todos sabem que o Flamengo nunca teve interesse emvender Bebeto. Seu procurador foi que insistiu sempre numapossível negociação.” (Jornal dos Sports, 01 de jul/1989, p1)(grifos nossos)

385

Durante a disputa da Copa América de 1989, após um início

discreto, Bebeto se tornou o fundamental nome da competição, recebendo

até mesmo calorosos elogios de jogador argentino Diego Maradona, dizendo

inclusive que o indicava para ser seu substituto na equipe italiana do Napoli,

caso viesse a deixar o clube.359 Devido à sua performance e à artilharia da

competição, que resultaram no título conquistado para o Brasil depois de 40

anos (o último foi em 1949), Bebeto tornou-se também um ídolo nacional.

Nas negociações preliminares, o jornal O Globo (24 de jul/1989)

noticia que Bebeto havia exigido uma quantia de duzentos mil dólares por

um ano de contrato e o presidente do Clube Sr. Gilberto Cardoso Filho não

admitiu este valor e ainda ironizou a proposta, ao dizer que o jogador “não

estava com bola para pedir isso tudo”. Entretanto, para azar dos dirigentes

flamenguistas, à medida que as negociações caminhavam, Bebeto

apresentava melhores atuações na Copa América. Como desfecho dos

fatos, Bebeto teria aumentado para quinhentos mil dólares os valores

solicitados.

O Jornal dos Sports noticiou que a quantia estabelecida pelo

jogador para reafirmar seu compromisso com o Flamengo era de R$ 350 mil.

Portanto, R$ 150 mil a menos do que indicava O Globo.

O papel da imprensa se estabelece na tentativa de manter uma

imagem ou uma idéia em circulação, provocando interesse, criando elo entre

o produto produzido (a notícia) e o consumidor. O conteúdo jornalístico deve

359 - Jornal dos Spor ts (17 de ju l /1989, p .4) Maradona em negociação com a equipeFrancesa Olimpique de Marselha, d iz que o havia escolhido como seu herdeiroideal no Napoli .

386

ser dotado de teses que sejam capazes de se atualizarem

permanentemente, até que esgote o seu interesse (Souto, 2002). Desta

forma, o valor solicitado por Bebeto, se foi de R$ 350 mil ou R$ 500 mil,

torna-se um elemento especulativo. A imprensa interessa em criar a imagem

impactante capaz de gerar o interesse público pelo assunto.

Em razão deste embate sobre os valores e da demora do Flamengo

em se posicionar, o procurador do jogador, José Moraes, solicitou que o

clube apresentasse uma proposta de valor de venda360, conforme

estabelecia a “Lei do Passe”. Naquele momento, caso o jogador e o clube

não entrassem em acordo financeiro, o Flamengo poderia perder seu direito

sobre o jogador. O procedimento era o seguinte, segundo a legislação

esportiva da época: 1 - a partir do impasse entre as partes, a Federação

fixava o valor do passe do jogador; 2 - após um mês da expedição do

documento fixando o valor do passe, qualquer clube poderia contratá-lo,

independentemente do consentimento do clube; 3 - bastava realizar o

depósito do valor do passe pré-estabelecido com consentimento da

Federação para adquirir os direitos sobre o passe do jogador.

O Jornal dos Sports do dia 14 de jul/1989 noticiou que, devido à

dificuldade na negociação, Bebeto estaria inclusive disposto a comprar seu

próprio passe e, para concretizar esta intenção, deveria ficar fora dos

campos por seis meses, aguardando a desvalorização do passe, que a cada

mês reduziria o valor (p.3). O valor da redução sobre o preço estipulado era

360 - Cada um dos jornais apresentava um valor d iferente para es ta car ta deintenção de venda. O Jornal dos Sports noticiou que o valor era 2 milhões e 400mil dólares (01 de ju l /1989, p .1) .

387

de cinco por cento ao mês (Jornal dos Sports, 21 de jul/1989, p.12).

Portanto, em seis meses, devido às reduções, Bebeto poderia comprar seus

direitos federativos.

Diante da possibilidade de transferência para outro clube, o vice-

presidente flamenguista Josef Berensztejn demonstrou ironia quanto ao

interesse de outra agremiação: “O preço do Bebeto já está fixado em cerca

de 7 milhões e 100 mil cruzados novos. O interessado não precisa nem

mesmo vir a Gávea. Basta depositá-los na federação - disse irritado.” (Jornal

dos Sports, 18 de jul/1989, p.4)

A ausência do presidente do clube, que neste período se

encontrava em viagem à Europa, mobilizou todos os demais membros da

diretoria rubro-negra, na tentativa de recuperar o tempo perdido nas

negociações, percebendo o desgaste que tal impasse provocava. Os

esforços foram canalizados para não permitir a saída do jogador.

Márcio Braga, presidente do Conselho Deliberativo, demonstrou em

uma entrevista a insatisfação dos dirigentes perante o envolvimento do

procurador do jogador: “O Flamengo vem tratando o caso com muita

correção. Mas somente com o jogador, que é patrimônio do clube. Tudo

vem sendo muito mal conduzido é com o seu procurador (...)” (Jornal dos

Sports, 19 de jul/1989, p.2) (grifos nossos)

Diante da tensão estabelecida pela negociação, o procurador de

Bebeto teve proibida a sua entrada no Clube da Gavea, sendo acusado de

“picareta” e “estelionatário” (Jornal dos Sports, 19 de jul/1989, p.2). A

388

proibição foi contestada por Bebeto, que ameaçou não mais pisar no clube,

se a determinação não fosse revogada (Jornal do Brasil, 21 de jul/1989,

p.20).

Interessante salientar a fala de Márcio Braga, acima citada, quando

ele se refere ao jogador como um patrimônio do clube. Esta estrutura de

vínculo norteava praticamente todos os contratos na modalidade de futebol,

onde o clube (patrão) era dono do seu jogador (criado) e, portanto, cabia ao

criado respeitar ou admitir os desígnios do seu senhor.

O transtorno maior do caso ocorreu quando o Clube Vasco da

Gama manifestou interesse em contratá-lo, o que acabou por fazê-lo,

gerando uma série de narrativas sobre o episódio, conforme comentaremos

a seguir.

A intenção da contratação do jogador pelo Vasco caiu como uma

bomba no clube da Gávea. Inicialmente, suscitando desconfiança, pois

acreditavam que se tratava de uma artimanha do empresário do jogador,

que buscava com esse boato aumentar o valor da transação, articulando a

torcida a pressionar os dirigentes por uma rápida resolução do problema.

Diante da possibilidade incômoda de verem a transferência de seu

jogador para o clube de São Januário, os dirigentes rubro-negros

mostraram-se alvoroçados, desacreditando nas pretensões vascaínas, uma

vez que parecia existir um código tácito de respeito entre os dois clubes.

Rompido este código de respeito mútuo, o desfecho final do acontecimento

poderia ser desastroso, como foi para o Flamengo. Observemos que George

389

Helal se sustenta na hipótese de desinteresse colocada pelo dirigente

vascaíno:

“O Gilberto fez questão de deixar claro que não existe nenhumapossibilidade do Bebeto acabar no Vasco. Isso é uma grandebesteira. Bebeto pode até não continua no Flamengo, mas para oVasco ele não vai! O presidente Calçada361 procurou oGilbertinho para lhe garantir o desinteresse na negociação. ”(Jornal dos Sports, 18 de jul/1989, p.4) (grifos e notas nossos)

Naquele momento, pareciam estar em jogo não somente a

transferência e os valores financeiros, mas também os valores simbólicos

que caracterizavam o antagonismo entre os dois clubes: “Bebeto pode até

não continuar no Flamengo, mas para o Vasco ele não vai!”. No contexto, os

dirigentes tentam demonstrar publicamente que não tratariam a questão da

transferência do Bebeto sem considerar os sentimentos que animavam a

rivalidade entre Vasco e Flamengo. A construção da identidade e da

alteridade que se dá na emulação esportiva parece se confundir com a

própria estrutura do esporte moderno. Trata-se de um negócio, mas os

valores afetivos, às vezes, sobrepõem os motivos financeiros. Desta forma,

a rivalidade entre os clubes estabeleceu novos parâmetros para a transação.

Antes de o jogador assinar o contrato com o Vasco, os diretores do

Flamengo resolveram reconsiderar a sua proposta aceitando firmar o

contrato no valor de quinhentos mil dólares. Apesar de o Flamengo admitir

este valor, Bebeto ainda preferiu transferir-se de clube, alegando estar

361 - Presidente do Clube de Regatas Vasco da Gama na época.

390

magoado com as declarações dos dirigentes flamenguistas e também já ter

se comprometido com os dirigentes vascaínos.

O jogador que continuava em competição, pela seleção nacional,

passou a ser o alvo das atenções nos momentos das entrevistas, ainda que

fossem coletivas. Sua posição que inicialmente era moderada foi fragilizada

pelo assédio da imprensa e dos empresários que dominavam a transação.

O jogador demorou admitir a transferência para o clube de São

Januário e, quando o fez, colocou como era difícil estar do outro lado,

dizendo que tal atitude nunca poderia ser imaginada por ele, demonstrando

a dificuldade que encontraria em ter que enfrentar o Flamengo em alguma

competição: “Antes nunca tinha passado pela minha cabeça essa

possibilidade. Fica difícil me imaginar vestindo a camisa do Vasco em um

jogo contra o Flamengo” (Jornal dos Sports, 19 de jul/1989, p.2).

Observemos como o jogador assume uma narrativa que se vincula às

demandas de pertencimento e amor que os atletas devem apresentar em

relação aos seus clubes e à seleção nacional.

Entretanto, Bebeto, no transcorrer da negociação, demonstrava sua

apreensão e realizava alguns comentários que ilustram a forma como o

jogador vivenciava o desenrolar dos fatos. No dia 17 de julho, ele se

queixara da falta de interesse do Flamengo: “O Flamengo não me deu valor.

Não entendo os dirigentes. Vendem tantos jogadores e não podem me fazer

boa proposta para renovar.” (Jornal do Brasil, 17 de jul/1989, p.4) Apesar da

queixa, o jogador continuou afirmando o seu envolvimento afetivo com o

clube: “Eu queria ficar, aprendi a amar esse clube e, se fosse só pelo

391

coração, permaneceria.” (Jornal do Brasil, 18 de jul/1989, p.24) (grifos

nossos)

Ao admitir que não mais teria condições de permanecer no

Flamengo, Bebeto afirma ter rompido com o clube e, em tom de mágoa,

coloca que os dirigentes teriam uma surpresa quando chegasse a hora:

“Sinto-me triste, magoado mesmo. Vai ser pior ainda quando tiverque enfrentar o Flamengo. Mas sou profissional e tenho quecolocar na minha cabeça que a carreira do jogador é curta. Nãome trataram bem, como eu merecia e já que foi assim, eles vãoter uma surprezinha no dia 27, quando eu anunciar o nome domeu novo clube.” (Jornal dos Sports, 23 de jul/1989 p.5)

Bebeto posicionou-se como um profissional que não pode agir pelos

impulsos afetivos. Colocou ainda que, devido ao fato de a carreira do

jogador ser curta, não poderia desprezar as oportunidades. Observemos

que os discursos de ordem racional se interagem com os de ordem

emocional. Lamentava com tristeza ter que deixar o clube, mas demonstrava

sua mágoa ao ameaçar os dirigentes do Flamengo quanto à surpresa que

teriam ao saber para qual clube seria transferido. Observemos ainda que o

discurso da postura profissional se fragiliza, quando o jogador se coloca

como vítima diante da falta de interesse do Flamengo.

Apesar do discurso em que afirmava a vontade de ficar e do amor

adquirido pelo clube rubro-negro, depois de definido seu contrato com o

Vasco da Gama, ele admitiu que, secretamente, desde criança torcia pela

equipe de São Januário, por influência do avô (O Globo, 27 de jul/1989,

p.30). Parece ficar evidente, apesar de toda a estrutura racional que deve

392

envolver a transação profissional, o fato de que este esporte exige, antes de

tudo, que o jogador apresente sinais de amor e pertencimento ao clube que

o contrata. Neste sentido, Bebeto inventa ou vasculha sua memória para

descobrir vínculos com o novo clube.

Mesmo depois de verbalmente definido o contrato entre Bebeto e o

Vasco, quando o clube estava por apresentar o dinheiro para finalizar a

compra, o caso tomaria outro rumo, devido à pressão exercida pelos

dirigentes rubro-negros sobre Bebeto e sua família. Um diretor do Flamengo

chegou a insinuar os riscos que estariam correndo (Bebeto e sua família)

perante os torcedores fanáticos, quando estes poderiam não entender sua

atitude ao abandonar o clube. A segurança de Denise, esposa do jogador

que estava grávida do seu primeiro filho foi colocada em risco (Jornal do

Brasil, 28 de jul/1989, p.22). Tal fato foi denominado pelo jornal de

“Artimanhas Rubro-negras para coagir o atacante.” Para o Jornal do Brasil,

nada mais do que pressão dos desesperados diretores flamenguistas, na

tentativa de fragilizar o jogador e sua família. Apesar de o analista da

imprensa considerar artimanha o suposto perigo que Bebeto e sua família

enfrentariam, o que interessa em termos sociológicos é o fato de o esporte

revelar em sua estrutura sentimentos semelhantes à situação de traição de

um soldado a sua comunidade ou à pátria.

Diante da pressão, Bebeto admite ficar, mas transfere a

responsabilidade para a diretoria rubro-negra, quando estes deveriam tentar

convencer os diretores vascaínos responsáveis pela transação a desistirem

da contratação. Todavia, os diretores vascaínos que foram contactados

393

pelos desesperados dirigentes flamenguistas se esquivaram da situação,

afirmando não terem responsabilidade sobre o assunto.

Na edição do mesmo dia, do Jornal do Brasil, aparece mais um

desabafo de Bebeto frente ao descaso do Flamengo: “Eles me deixaram por

último. Agora de repente, vem me procurar até de madrugada. Não mudo

minha palavra. Acertei com o um clube e vou cumprir tudo. O Flamengo

acordou tarde.” (28 de jul/1989, p.22)

Esta confusão em torno da renegociação do contrato e da

transferência durou praticamente o mês de julho inteiro na imprensa, apenas

secundarizada, algumas vezes, pelo fato de a seleção brasileira estar,

durante este período, envolvida em duas competições (Copa América e

eliminatórias para o mundial de 1990). As opiniões acerca da situação eram

externadas por inúmeras personalidades e jornalistas que se posicionavam

mediante a proximidade que estavam do assunto.

Washington Rodrigues, jornalista esportivo e flamenguista, em sua

coluna, defendia a atitude tomada pelo jogador quanto à transferência e

baseava sua posição na questão econômica relacionada à capitalização

prudente, visando o futuro. Apesar de sua filiação clubística, o jornalista

introduz argumentos racionais sobre o processo de negociação.

“Quero dizer que defendo a posição do Bebeto ao lutar com todasas forças para fechar um bom contrato. A vida está muito difícilpara todo mundo, no nosso país as regras do jogo mudam comuma facilidade inacreditável e ninguém sabe exatamente o queserá o dia de amanhã.” (Jornal dos Sports, 27 de jul/1989, p. 3)

394

Por outro lado, Zico, ao ser solicitado a posicionar sobre o fato, foi

breve e preferiu deixar sob suspeita a possibilidade de a CBF estar

mancomunada com os dirigentes do Vasco, uma vez que, no momento

desta negociação, o diretor de seleção brasileira era o dirigente Vascaíno

Eurico Miranda. “Espero que a Seleção Brasileira não se transforme em um

balcão de compra e venda de jogadores. O envolvimento da CBF precisa se

apurado.” (29 de jul/1989, p.21) Esta mesma insinuação quanto à

participação da CBF, no caso, foi realizada pelo presidente do Flamengo,

Gilberto Cardoso, ao chegar da Europa. Ele desabafa dizendo que houve um

período em que a diretoria da CBF era acusada de convocar jogadores para

vendê-los para o exterior e “agora os diretores os aliciam para seus clubes.”

(29 de jul/1989, p.21) Esta última fala expressa sentimentos de

pertencimento nacional e local; a primeira imagem é que a CBF, por

interesses comerciais, nos privava de ver os nossos melhores jogadores,

incentivando-os a se transferirem para o exterior; a segunda refere-se ao

fato de os dirigentes da CBF, por possuírem vínculos políticos ou afetivos

com os seus respectivos clubes, utilizarem este espaço como local de

aliciamento dos bons atletas para seus clubes.

Aos torcedores, segundo a ótica da imprensa, coube a pressão. De

um lado, a torcida vascaína aguardando a contratação, do outro a revolta

dos flamenguistas que imploravam para que o ídolo não abandonasse o

clube. Inclusive, quatro deles, responsáveis por facções de torcidas

organizadas, foram até a Granja Comari, em Teresópolis, onde a seleção

estava em treinamento, para tentar convencer Bebeto a permanecer na

395

equipe. Apesar de terem sido recebidos, a resposta foi negativa (Jornal dos

Sports, 26 de jul/1989, p.5).

Depois de efetivada a transferência à torcida de São Januário,

exaltava a força do novo contratado, enquanto os rubro-negros o

consideravam traidor. Para os vascaínos, Bebeto passou a ser aclamado

“Bebeto, arte e valentia” e para os flamenguistas, o “chorão traidor” 362

(Jornal do Brasil, 30 de jul/1989, p.36).

Figura 18 – Bebeto no Vasco da Gama -1990

Entre ações, troca de acusações, pressões sobre o jogador, sua

família e seu empresário, o desfecho foi a transferência para a equipe rival.

Apesar de ter perdido a disputa, alguns dirigentes e torcedores

396

inconformados com a saída do ídolo buscavam uma alternativa para

recuperação do jogador. Inclusive surgiu um movimento “Volta Bebeto”, cujo

objetivo era trazer de volta o jogador, quando chegasse ao fim seu contrato

com a equipe portuguesa (Helal & Coelho, 1995).

Percebe-se que os discursos operam sob duas lógicas

consideradas como inconciliáveis: os interesses financeiros, por um lado, e o

amor e o sentimento de pertencimento, por outro. A primeira aparece ligada

à ética profissional ou à lógica da ação racional em uma sociedade de

mercado e a segunda, à expressão dos sentimentos amadores que ainda

devem permanecer no seio do esporte profissional. Observa-se, por um

lado, o vínculo de Bebeto com o clube e os torcedores, as trocas de elogios,

o amor declarado; por outro, a condição profissional e a possibilidade de

melhor remuneração.

Helal e Coelho estendem o episódio até o primeiro jogo entre os

dois clubes, quando Bebeto jogaria pela primeira vez contra o Flamengo, em

novembro de 1989. Narram a péssima atuação do jogador, seu descontrole

e a expulsão. O Flamengo sai vencedor, com dois gols de um jogador ainda

desconhecido do público na época, chamado Bujica, que utilizara o mesmo

número de camisa que fora do Bebeto. Segundo Helal e Coelho, “É

extremamente revelador notar como a visão mais profissional do jogador de

futebol esbarra na mentalidade essencialmente amadorística dos torcedores”

(p.97), quando estes sentiram de alma lavada após o jogo. Enquanto Bebeto

362 - Esta denominação de “chorão” foi cr iado pelos torcedores vascaínos, poracharem que o jogador reclamava de tudo durante os jogos.

397

recebia um salário milionário, Bujica recebia um salário minguado de Ncz$ 1

mil, equivalente na época a menos de 100 dólares.

Para os autores, a presença de dois jogadores emblemáticos – Zico

e Júnior - neste jogo foi importante para entender o fato, onde o talento, a

experiência, a humildade e o amor dos dois pelo Flamengo teriam sido

enfatizados. Helal e Coelho apontam que a imprensa da época contrapôs a

atitude de Bebeto à magia do “amor dos dois veteranos pelo clube.”

Observemos que tanto os torcedores quanto os jornalistas não colocam o

fato de ambos terem deixado o Flamengo em busca de melhores salários na

Europa, em pé de igualdade com a transferência de Bebeto. Provavelmente,

se tivessem se transferido para uma equipe rival, o discurso circulante

acerca da transferência desses dois ídolos teria outros contornos.

Possivelmente, fariam aflorar mágoas e desconfianças dos torcedores rubro-

negros, da mesma forma que ocorrera com Bebeto. Todavia, jogar na

Europa representava para o jogador um mérito esportivo, adquirido pelos

feitos e realizações em nome do clube; mesmo ao deixar a equipe, reforça o

prestígio do jogador com os torcedores, exceto para alguns radicais.

Helal e Coelho categorizam suas análises do episódio em moderno

e profissional, transferindo para suas argumentações um discurso

relacionado ao que eles chamaram de dilema brasileiro entre a hierarquia

(código tradicional) e a igualdade (código moderno) (p.92). Colocam os

autores que o processo da transferência constantemente entrelaçava os dois

códigos e confrontava um modelo empresarial x um modelo paternalista.

398

“De um lado, está a questão financeira: um profissional em buscado melhor contrato. Código moderno, capitalista, individualista. OFlamengo cobre a proposta do Vasco: um jogador ofendido,sentindo-se desprestigiado. Código pessoalizado. O adiantamentonegado pelo Flamengo e dado pelo Vasco: modelo empresarial Xmodelo paternalista. A paixão secreta pelo Vasco: verdade ounão, código das relações pessoais e da paixão.” (p.94)

Parece que, diante dos fatos coletados em jornais e dos estudos de

Helal e Coelho, poderíamos perceber que os discursos acerca do vínculo do

jogador com valores amadores e profissionais apresentaram uma

argumentação fragilizada, na qual a imprensa se sustentou no discurso

dúbio, que às vezes ponderava a favor do jogador, outras vezes para o lado

do clube. Mesmo diante das pretensões profissionais, seu discurso recaia

sobre valores afetivos. Da mesma forma, o discurso dos dirigentes e

empresários ponderava os dois valores.

Observemos que, em determinado momento do episódio, Bebeto

passa a ser acusado de se guiar apenas pela lógica profissional sem

considerar os vínculos afetivos que o clube e os torcedores esperavam dele.

Este mesmo argumento também foi utilizado por Bebeto ao dizer que o

clube não respeitava seus sentimentos, e que o clube não se empenhou em

lhe realizar uma proposta para justificar a sua permanência.

Vejamos que no plano narrativo, os valores afetivos surgem como

preponderância sobre os valores econômicos, mas que o desfecho do

episódio foi estabelecido sobre o interesse econômico.

399

Capítulo XVIIDavid Fischel – um dirigente modelo ?

”Voltará o tempo em que atleta pagava parajogar.”363

(David Fischel)

O futebol brasileiro, ao final dos anos 90 do século XX e início dos

primeiros anos do século XXI, se vê diante de uma generalizada crise

financeira, administrativa e moral. O apelo público dos torcedores e as

denúncias apontadas pela mídia ao longo dos tempos impulsionaram a

necessidade de interferência do Estado sobre a administração dos clubes,

em diversos âmbitos. A pressão culminou com a abertura de duas

Comissões Parlamentares de Inquérito, uma instaurada na Câmara dos

Deputados e outra no Senado, que ficaram conhecidas como a “CPIs da

Bola”.

A CPI do futebol apontou diversas irregularidades da CBF, das

federações, e dos dirigentes esportivos brasileiros e seus clubes. Os mais

aclamados clubes brasileiros, com raras exceções, encontravam-se

afundados em dívidas com credores, justiça trabalhista, fisco, INSS e fundo

363 - Jornal Lance, 28 de abr/2002, p .8 .

400

de garantia, além de salários atrasados e direitos de imagem dos seus

principais jogadores.364 Observa-se que em uma empresa privada, tais

problemas seriam motivos para se decretar falência, entretanto, os clubes

continuam desenvolvendo suas atividades normalmente. Ainda que os

clubes reconheçam suas falhas administrativas, não admitem as propostas

de remodelação da legislação que tornem suas contas públicas

transparentes como qualquer balancete de uma empresa privada. Os clubes

ainda reivindicam proteção e amparo do governo, por confiarem no capital

político que o futebol possui na conjuntura brasileira.365

Em 2001, o Fluminense e os demais grandes clubes cariocas

(Flamengo, Botagogo e Vasco) encontravam-se endividados.366 A crise

364 - Em 1997, o Jornal Folha de S. Paulo divulgou um suplemento denominado“País do Futebol” , onde coloca que o governo federal aper tar ia o cerco aosclubes, devido `ss suas dívidas. A dívida to ta l dos pr incipais c lubes brasi le irosestava est imada em R$ 97,5 milhões, ass im dis tr ibuídos: Imposto de renda, 21milhões; FGTS, R$ 27,2 milhões; e INSS, R$ 49,2 milhões. (Folha de São Paulo,27 de fev/1997, p .15) .Em 2004 novos valores desta d ívida foram publicados pelo jornal Lance. A uniãodivulgou que a d ívida dos clubes com o INSS estava na ordem de 352,4 milhões.(Jornal Lance, 24 de abr /2004, p .16) Vejamos que de 1997 a 2004 os valoresforam elevados (de 97,5 milhões para 352,4 milhões) e , pelo que parece, ogoverno não conseguiu impor uma diretr iz administrat iva que f izesse com que osclubes cumprissem suas obr igações f inanceiras com a união.

365 - Ao reassumir a presidência do Flamengo em 2003, o d ir igente Márcio Bragatenta pressionar o governo federal f rente às d ívidas do clube com a união, d izendoque o clube entrar ia em moratór ia . Devido à sua dívida e inadimplência , o clubefoi excluído do Ref is (Programa de Recuperação Fiscal) . Essa querela se deupr incipalmente pelo fa to de o pr incipal patrocinador do Flamengo ser a estata lPetrobrás , que, devido à dívida do clube com a união, f icou proibida de repassaras cotas de patrocínio, o que provocou um colapso nas f inanças do clube. (JornalLance, 21 de fev/2003, p .7)Em abr i l de 2004, a d ívida do Flamengo com o INSS já estava na ordem de 37,4milhões. (Jornal Lance, 24 de abr / 2004, p .16)

366 - Em abr i l de 2001, a d ívida do Fluminense estava est imada em 60 milhões,sendo que R$ 30 milhões eram com o f isco e tr ibutár ia (R$ 10 milhões somentecom o INSS). Os outros R$ 30 milhões es tavam relacionados à compra dejogadores, d iv idas com fornecedores e ações t rabalhis tas . Para renegociar asdívidas, o clube entrou no Ref is , entretanto, por exigência do programa, teve que

401

financeira divulgada coloca os dirigentes como os vilões da história. Neste

cenário, surge uma esperança: o Sr. David Fischel, 367 dirigente do

Fluminense, como exemplo do competente e honesto administrador,

segundo a perspectiva da imprensa carioca. Márcio Guedes368 dedica a sua

coluna ao presidente tricolor, publicando uma entrevista concedida pelo

dirigente, intitulada como Um cartola acima de suspeita.369 Fischel declarou

sua proposta de reestruturar o clube e admitiu que tentaria a reeleição em

dezembro de 2002.

se comprometer com a Caixa Econômica Federal de saldar a dívida que t inha como Fundo de Garant ia . (Jornal Lance, 2 de abr /2001, p .13) . O Jornal Lanceapresentou em 2004 novos números da d ívida dos clubes. O Fluminense foicolocado como o 3º maior devedor ao INSS (17,9 milhões) . Por não ter cumpridoas exigências do governo o clube foi excluído do Ref is . Observemos que omontante da d ívida fo i de aproximadamente 8 milhões em relação ao ano de 2001.(Jornal Lance, 24 de abr /2004, p .16)

367 - É engenheiro Civi l , pres idente de uma empresa de Engenhar ia, nascido em1935.

368 - O jornal is ta Márcio Guedes, em sua coluna Contra-ataque no cadernoespor t ivo Ataque, do jornal O Dia, em 04 de nov/2001, tece inúmeros elogios aoest i lo do dir igente. (Jornal Lance, 02 de abr /2002. p .13)

369 - Jornal O Dia – Caderno Ataque, 04 de nov/2001, p .16

402

Figura 19 – Um cartola acima de suspeitas – Jornal O Dia /Caderno Ataque, 04 denov/2001, p.16

Para Márcio Guedes, Fischel “é ave rara no futebol por ser

honesto”:

“O presidente do Fluminense, David Fischel, é uma unanimidadeno mundo do futebol quando o assunto é ética. Ele já sai na frenteda maioria em uma época de CPIs, denúncias, corrupção,paraísos fiscais e lavagem de dinheiro. O que seria umaobrigação moral de qualquer administrador passou a ser ummérito especial, e isso tem sido até motivo de crítica dos seusadversários. Mas, Fischel, com elegância e sobriedade, garanteque, para muito além do seu imaculado currículo, ele pretendemesmo fazer uma revolução administrativa do Flu e transformá-loem um clube vitorioso e economicamente viável.” (Jornal O Dia,Caderno Ataque, 04 de nov/2001. p.16).

403

Nesta entrevista, o dirigente admite a dificuldade de se administrar o

Fluminense. Todavia, declara que não honraria com as dívidas das gestões

anteriores. A imprensa constrói a competência de um administrador que

afirma: “Resolvemos honrar os compromissos somente a partir de

nossa entrada no clube, racionalizar custo e dar toda a estrutura

profissional ao futebol.” (Jornal O Dia, Caderno Ataque, 04 de nov/2001.

p.16) (grifos nossos). Fischel parece propor uma espécie de moratória do

futebol. Estaria aí a competência de Fischel em adotar o velho expediente de

outros dirigentes do futebol? Márcio Guedes apontou como moderno e “uma

unanimidade no mundo do futebol quando o assunto é ética.”(p.16) Parece-

nos bem mais simples gerenciar um clube começando do zero, sem olhar as

dívidas passadas. Por esse critério, poderíamos acabar com a figura jurídica

da falência. Não é nosso propósito aqui realizar um julgamento da

administração do Sr. David Fischel, embora nossas argumentações possam

sugerir uma espécie de denúncia. Nossa intenção centra-se na tensão que

coloca em conflito o amadorismo e o profissionalismo no campo das

narrativas.

Fischel, quando questionado sobre como administrar contratos e

salários, nos moldes atuais, o dirigente aponta as dificuldades encontradas:

“Sem um comando profissional e um patrocinador que banqueinvestimentos e aufira lucros, a coisa é inviável. Temos uma folhano futebol de R$ 1 milhão e 300 mil, vários jogadores queganham, mas de R$ 100 mil por mês, enquanto os recursos sãoescassos. Não fosse a TV, todos já estariam literalmente noburaco. Seria fundamental um acordo para limitar os salários.

404

A questão social do clube atrapalha também. Porque poucospagam e de contribuições sociais recebemos menos de R$ 100mil por mês. Os clubes no Rio ficaram asfixiados pela falta derecursos (...).” (Jornal O Dia, Caderno Ataque, 04 de nov/2001.p.16) (Grifos nossos)

Diante do seu lançamento para um novo pleito, o dirigente mostra-

se cauteloso prometendo “manter a política de honestidade e austeridade”,

que caracterizou o seu primeiro mandado. Não prometeu novas

contratações para a próxima temporada, justificando a necessidade de

parcerias para poder manter os compromissos em dia.

Diante das crises financeiras, em entrevista ao jornal Lance de 28

de abril de 2002, Fischel coloca que “temos que voltar à era do amadorismo”

e suspeita “que tem faltado amor à camisa”. Segundo Fischel, não há mais

como realizar os contratos milionários no futebol brasileiro. O limite deveria

ser de R$ 50 mil mensais para os jogadores do Fluminense. Refletindo sobre

o desempenho do clube no campeonato brasileiro de 2001, o dirigente

mostra-se decepcionado com o rendimento da equipe, que, ao ficar de fora

das fases finais do campeonato, perdeu receita de aproximadamente 5

milhões de reais. Esta cifra seria suficiente para pagar três meses de

salários dos jogadores. Coloca ainda a necessidade de uma nova

concepção de gerência do futebol e prometeu “combinar gestão empresarial

com espírito amadorístico em campo. (...). Vamos gerir o clube de forma

empresarial, mas, em campo, temos que voltar à era do amadorismo,

resgatar este espírito.”(Jornal Lance, 28 de abr/2002. p.8) (Grifos nossos).

Questionado sobre o que significava este amadorismo, Fischel respondeu:

405

“Os contratos altos vão acabar. O atleta não pode falar tanto emdinheiro. Nos esportes olímpicos, vamos abandonar asmodalidades que não tem patrocínio. Só natação e tênis sesustentam. Basquete era exceção, mas vamos parar. Voltará otempo em que atleta pagava para jogar.” (Jornal Lance, 28 deabr/2002. p.8) (grifos nossos)

O que significa amadorismo no discurso do dirigente?

Fischel, em suas falas, estabelece diferenças. Enquanto os

dirigentes devem administrar pautados na racionalidade econômica, os

atletas devem apresentar envolvimento e vínculo afetivo, isto é, dedicação

incondicional, ao vestir a camisa do clube. Os valores amadores parecem

ser funcionais ao argumento de redução da folha de pagamento. Fischel

pode estar insinuando que ser amador no futebol profissional significa que

os jogadores deveriam ficar atentos de que seus ganhos poderá estar

matando ‘a galinha dos ovos de ouro’. Assim, se gostam da profissão, não

podem acabar com ela, pois os contratos milionários podem ter um efeito

perverso. Vejamos que suas idéias acentuam-se em um típico exemplo de

argumento da perversidade, na perspectiva de Hirschman (1992).

406

Figura 20 – Entrevista jornal Lance, 28 de abr/2002, p.8

Fischel, falava em alavancar a receita do clube com o apóio de

empresas, porém necessitava de uma grande contratação. Fischel

estabelece, como meta para a temporada de 2002, a reformulação do elenco

para concretizar o projeto Fluminense 100 anos. Uma grande contratação

deveria ser realizada visando o campeonato brasileiro e a luta por um título

de expressão neste ano comemorativo. Romário foi anunciado como novo

jogador para a temporada, dando aos torcedores uma contratação de peso e

407

apostando que ele seria o jogador apropriado para a concretização do

projeto de centenário do clube.

Romário370 transfere-se para o Fluminense, após não renovar seu

contrato com o Vasco. Durante o processo de contratação, a imprensa

silenciou as bases do contrato e só divulgou a emoção dos torcedores e

dirigentes do clube. Somente mais tarde é que a imprensa noticiaria as

exigências do jogador para aceitar um contrato de apenas cinco meses de

vigência.

O modelo de gestão moderna e racional de Fischel cede às

pressões do compadrio. O jogador exigiu a contratação do apoiador Beto,371

por ser seu amigo. Como exigência contratual, Romário solicitou: 1) viajaria

mais tarde que os companheiros, quando o jogo fosse em outros Estados; 2)

em viagens mais longas, as passagens deveriam ser na classe executiva,

sendo os bilhetes pagos pelo clube; 3) sempre que solicitasse com

antecedência, poderia modificar seu horário de trabalho e treinar

separadamente dos demais integrantes da equipe; 4) nos dias seguintes aos

jogos, não se apresentaria ao clube; e 5) contratação de um fisioterapeuta e

preparador físico particular (Jornal Lance, 29 de ago/2002). Esta exigência

do Romário foi aprovada pela direção do clube, que via na contratação do

370 - Romário de Souza Far ias Fi lho nasceu em 1966. Um dos pr incipais jogadoresbrasi le iros de todos os tempos. Trata-se também de um dos mais vi tor iososjogadores do mundo. As especulações jornal ís t icas colocam que o jogadorreceberá R$ 140 mil mensais , sem atraso, pagos pela Unimed (aproximadamente47 mil dólares) .A coluna “Os bast idores da bola” do jornal Lance informou que para cada R$ 1(um real) invest ido em Romário, a Unimed ganha R$ 3 (Três reais) . Jornal Lance,01 de jun/2004, p .4

371 - O jogador receberá R$ 60 mil por mês (20 mil dólares) .

408

jogador uma possibilidade de resgate do prestígio com os torcedores que

solicitavam um reforço renomado para a temporada.

Observemos que, ao fazer estas exigências contratuais, Romário

rompe com a administração enxuta de Fischel, com o espírito amador que o

dirigente reivindicava e com a imagem de que as regras e os

comportamentos de uma equipe devem ser para todos, apesar das

diferenças salariais, que são comuns. Romário é uma celebridade, exige

como atores de Hollywood privilégios até então não reivindicados no futebol

brasileiro em base contratual.

Fischel defendeu as regalias do jogador, justificando que o currículo

de Romário respondia pelas inquietações provocadas:

“Sabíamos o que estávamos comprando quando o contratamos.Conversamos sobre isso e fizemos um acordo. Ele tem uma sériede compromissos particulares e nós respeitamos. O que nosinteressa é o desempenho em campo. Quem quiser esta condiçãoprecisa ter currículo, ser como ele. Estou impressionado com oprofissionalismo de Romário. O grupo sabe que se trata de umjogador diferenciado.” (Jornal Lance, 29 de ago/2002 p.14)

Observemos que o amadorismo sai do discurso de Fischel para

entrar o argumento de defesa do profissionalismo. A linguagem agora é do

desempenho, do rendimento; a competência justifica a diferença. Vejamos

que o discurso do amor à camisa foi esquecido.

Quando questionado acerca da exigência de bilhetes em classe

executiva em viagens longas, Fischel justificou em tom de brincadeira: “Isto

foi pedido em função da condição física. Não vejo prejuízo técnico para o

grupo. E hoje (ontem) ele foi para Caxias do Sul com seu preparador físico

particular. Ele já vai treinado no avião” (p.14). Todavia, os preparadores

409

físicos afirmavam naquele momento que Romário se encontrava nas

mesmas condições dos demais jogadores. Seria este o profissionalismo que

Fischel passou a valorizar?

A contratação de Romário gerou dissidências internas. Os

jogadores que estavam com seus salários atrasados questionaram as novas

contratações realizadas com o apoio da empresa patrocinadora do clube, a

Unimed. (Jornal Ataque, 03 de ago/2002, p.4)

O presidente do clube ironiza as lamentações dos jogadores,

justificando a contratação de Romário: “O Fluminense ficou no quase na

Copa João Havelange e no Brasileiro por falta de gols. E Romário está vindo

para que esses gols saiam.” (Jornal Ataque, 03 de ago/2002, p.4).

Mesmo para a torcida, a contratação de Romário não foi totalmente

harmoniosa. Para alguns torcedores, o fato de o jogador ser flamenguista

não era um bom sinal. “Sou tricolor de coração, mas não gostei da

contratação, porque ele é flamenguista e está em decadência. O presidente

deu um presente de grego à torcida” – desabafou um torcedor (Jornal

Ataque, 03 de ago/2002, p.4). Observemos que a imprensa ressalta a

imagem do vínculo afetivo de Romário com o Flamengo pela fala do

torcedor. Os vínculos emocionais e afetivos dos jogadores às equipes que

defendem estão em constante suspeição.

A desconfiança, logo, acabou em função do desempenho. No

primeiro jogo contra o Cruzeiro, Romário marcou dois gols na vitória de 5 a 1

sobre uma equipe considerada pelos cronistas esportivos uma das principais

410

forças do campeonato. O Maracanã recebeu cerca de 66 mil torcedores372, o

sexto maior público de toda competição na estréia de Romário. Este dado

confirmaria a hipótese de Fischel de que Romário alavancaria a receita do

clube. O amadorismo é silenciado no discurso de Fischel a partir da era

Romário.

No final da temporada, a dívida do Fluminense com os jogadores

era de R$ 5 milhões, sendo 3 meses de salários e aproximadamente 8

meses de direito de imagem, mas os salários de Romário, conforme

exigência contratual, foram sempre pagos em dia. (Jornal Lance, 19 de

nov/2002, p.5)

Depois de confirmada a classificação para as quartas-de-final,

Fischel havia garantido que todas as verbas que entrassem no clube até o

final do ano seriam prioritariamente destinadas aos pagamentos dos

jogadores. “Estamos tentando uma operação financeira para pagar salários.

Os jogadores deram demonstração de alto profissionalismo” (grifos

nossos, p.5). Ao se referir à demonstração de profissionalismo, o dirigente

pretendia dizer que, embora com os salários atrasados, os jogadores se

empenharam em busca da classificação. Esta imagem também não é

adjetivada no seio da imprensa como um valor amador? Mesmo com os

salários atrasados, os jogadores se empenharam, fazendo prevalecer que

tipo de compromisso?

Fischel, para a temporada de 2003, declarou mais uma vez a

necessidade de redução da folha salarial em 30%. “Cortes salariais deverão

372 - Revista Lance A+, 18 A 24 ago/2002, ano 3 , nº103. p .19

411

ser feitos. A folha é alta. Quem não aceitar, deve sair. Nenhum jogador é

imprescindível” (p.4) – declarou o presidente insatisfeito com as declarações

do jogador Beto, que admitiu querer sair do clube. “Ele fez uma declaração

muito infeliz. Se ele não estiver satisfeito, é melhor procurar outro clube.”

(p.4). Aqui, a lógica do profissionalismo se impõe, pois o funcionário

insatisfeito é livre para vender sua mão-de-obra a outro empregador. Não há

apelo para o amor à camisa neste caso.

O modelo empresarial de Fischel sofre com os dados e o balanço

financeiro do clube. Resigna-se admitindo que para 2003 o clube não poderá

fazer grandes contratações. A solução deveria vir da adesão dos torcedores

ao Projeto Sócio-Torcedor, mas lamenta que o efeito esperado não tenha se

realizado. “Esperava que a esta altura já tivéssemos 50 mil pagantes no

projeto. São apenas 8 mil. Falam que temos três milhões de torcedores. Se

10% contribuíssem com R$10 mensais, teríamos todos os problemas

resolvidos. A torcida é a única saída.” (Jornal Lance, 27 de dez/2002, p.7)

O dirigente declarou que os jogadores deveriam ser contratados

com salários mais baixos; a solução deveria vir da formação de jogadores no

próprio clube. Afirma ainda que as contratações de Romário e Beto, como

ocorreu em 2002, foram ousadas, mas não tiveram o efeito esperado.

“Vamos ser mais conservadores. Vamos agir de forma menos apaixonada e

seremos racionais. O ano do Centenário impunha algumas ousadias, mas

isso não é mais possível.” (p.7) O dirigente racional e competente construído

pela imprensa faz uma mea-culpa por sua falta de racionalidade, ao

contratar Romário e Beto.

412

Nesta mesma entrevista, o dirigente tricolor disse que lideraria uma

campanha para salvar o futebol do Rio de Janeiro, que, segundo ele,

merecia melhor tratamento das autoridades. “É importante que os clubes se

unam. É preciso fazer um mutirão, juntando clubes, torcida e imprensa. As

dívidas engessam as receitas. Aparecem bloqueios de forma surpreendente.

Os clubes merecem tratamentos melhores das autoridades.” (p.7)

Parece que o dirigente “modelo” almejara por um tratamento

diferenciado pelos credores e pelas autoridades da união. Ele acreditava que

o auxílio do governo poderia modificar o quadro em que os clubes se

encontram. Vejamos como ele opera unindo novamente a lógica econômica

à afetiva, ao solicitar a pressão popular da torcida e da imprensa, para que

os clubes tenham um tratamento diferenciado. Conforme já apontamos no

início deste capítulo, isso já vem ocorrendo freqüentemente, quando os

clubes têm regalias que outras empresas não conseguem.

No dia seguinte a tais declarações do presidente, os jornais noticiam

que o vice-presidente Marcelo Penha373 admitiu que haveria condições de

permanecer com o jogador Beto, sem redução do salário (R$ 60 mil), pago

após acordo com a Unimed, viabilizou sua contratação juntamente com

Romário na temporada anterior (Jornal Lance, 28 de dez/2002, p.6). Apesar

desta matéria, a recontratação de Beto não foi confirmada.

A imprensa esportiva vive dos boatos e das supostas notícias

bombásticas. O esporte deve vender emoção, ensinamento desde a época

de Mário Filho (Soares, 1998). Assim, o capítulo de Romário não teria

373 - Dire tor da UNIMED

413

acabado simplesmente com o prejuízo de 5 milhões pela ausência de

conquistas em 2002. Jogadores entraram na justiça trabalhista para

receberem seus salários, mas Romário volta à cena em uma disputa entre

os grandes clubes. O interessante é que o discurso do amor e do

profissionalismo alterna-se no cenário que descreveremos a seguir.

Os primeiros dias de janeiro de 2003 foram de intensas negociações

em torno do nome Romário. Flamengo, Vasco e Fluminense entraram na

disputa. Em alguns momentos, a imprensa noticiara que também o

Corinthians, o qual disputaria a Copa Libertadores da América, tinha

interesse. A imprensa divulga que o Flamengo teria grandes chances de

contratá-lo. Primeiro, pelo amor e pela simpatia que Romário declara ter com

o clube; segundo, por uma razão de renegociação da grande dívida que o

clube tem com o jogador.

No dia 06 de janeiro, em uma matéria denominada “Garfadas

Decisivas”, o jornal Lance discute as possibilidades de cada clube,

noticiando o almoço e jantar que Romário teria com os dirigentes de ambos

clubes. No início do ano, período em que não havia nenhuma competição a

imprensa esportiva quase não teve notícias que provocassem maior

interesse coletivo. A hipotética disputa dos clubes por Romário tornou-se a

principal notícia ajudando preencher algumas páginas dos jornais.

A imprensa insistia no desejo do jogador em encerrar sua carreira

jogando pelo Flamengo, além da amizade que possuía com alguns diretores.

Também apontavam que a pendência financeira do clube com o jogador

414

poderia ser renegociada.374 Aqui, amor e interesse se juntam em uma

mesma causa. O Fluminense teria como principal argumento o fato de ter

mantido o salário de Romário rigorosamente em dia, com a ajuda da

Unimed. O argumento aqui é puramente da responsabilidade profissional da

empresa. (Jornal Lance, 06 de jan/2002, p.8).

O presidente Fischel afirmou que acreditava na contratação, porque

agora há uma ‘amizade’ entre Romário e o Fluminense: “... éramos

estranhos. Não havia um grau de confiabilidade. Hoje, há uma amizade,

Romário realizou grandes jogos e conquistou a torcida. Conversamos na

sexta-feira e senti uma disposição muito grande dele em ficar.” (p.8) (Grifos

nossos)

Observemos como o dirigente desliza, mais uma vez, sua

argumentação para os afetos.

Romário, do alto de seu currículo e de seus 37 anos, assumia o

discurso profissional: “Tenho certeza de que, onde quer que eu jogue daqui

para a frente, o clube escolhido será a minha casa final” (p.8), declarou

Romário. Dizia ainda que sentia envaidecido por estar sendo disputado

pelos dois clubes: “Ser cobiçado por estes times é uma honra para mim.

Jogarei por um deles.” (Jornal Lance, 07 de jan/2002, p.8)

374 - Romário acionou a just iça contra o clube para receber US$ 4,5 milhões dedirei to de imagem e R$ 4 milhões de salár ios”. (Jornal Lance, 06 de jan/2002,p.8) .

415

Figura 21 – Romário nos três clubes: Flamengo, Vasco e Fluminense – RevistaLance A+, 22 a 28 de mai/2004, p.16

Para continuar no Fluminense, Romário teria seu salário reduzido

para R$ 160 mil dos R$ 200 mil que recebera no contrato anterior. A Unimed

entraria na transação, mas teria preferência em utilizar a imagem do jogador

em peças publicitárias, pelas quais o acerto financeiro seria diretamente com

o jogador (Jornal Lance, 08 de jan/2002, p.8). Fischel, em dezembro de

2002,375 quando dissera que em 2003 seriam ‘mais conservadores”, acaba

mais uma vez voltando atrás.

Vencida a batalha, Romário, que estava no Rio durante as

negociações, dirigiu-se para Vassouras, uma cidade do interior do Estado do

Rio de Janeiro, onde os demais integrantes da equipe estavam em pré-

temporada, visando o início do campeonato carioca, quando quatro mil

torcedores já sabendo do acordo, o aguardavam. Estava programada uma

chegada cinematográfica, quando o helicóptero que o conduzia a cidade

375 - Jornal Lance, 27 de dez/2002, p .7

416

teve que parar em outro município, devido ao ‘teto baixo’ para se prosseguir

a viagem aérea até Vassouras. A chegada de Romário provocou euforia dos

torcedores, situação que conduziu o prefeito municipal a decretar ponto

facultativo nas repartições públicas, em função da presença do ídolo (Jornal

Lance, 15 de jan/2002, p.3). Romário é uma celebridade nacional.

Romário, que sempre afirmara seu amor pelo Flamengo, clube no

qual gostaria de encerrar a sua carreira, admite que estava mudando de

idéia, e o Fluminense seria seu último clube, a princípio: “A princípio o

Fluminense será meu último clube. Fiz um contrato de um ano, com opção

para mais um. Já estou com 37 anos e para quem pensou um dia em parar

com 28, já tá ótimo” (Jornal Lance, 15 de jan/2002, p.4). Questionado sobre

o Flamengo, Romário se esquiva: “Só vou falar sobre o Flu. O Fla passou,

não aconteceu. Minha prioridade era estar no clube onde fosse feliz. E este

clube é o Fluminense.” (p.4) A proposta do Flamengo para atrair o interesse

de Romário centrava-se no fato de renegociar a dívida do clube com ele,

além de um salário mensal de R$ 100 mil. Romário, no entanto, pretendia

um salário de R$ 120 mil livre de impostos. Todavia, a proposta salarial do

Fluminense foi mais convincente. Um salário mensal de R$ 180 mil líquidos

por um ano, além de outras regalias contratuais, com opção de renovação

por mais um ano, caso fosse interesse do jogador prorrogar o final de sua

carreira até 2004 (Jornal Lance, 13 de jan/2003 p.4). Romário porta-se como

um profissional valorizado no mercado.

A união Romário e Fluminense não se encerrou por aqui, outros

capítulos poderão ser escritos, mas, para nossos propósitos, esta passagem

417

é suficiente para demonstrar como os discurso desliza entre aquilo que

chamam de profissionalismo e o espírito amador.

O Fluminense, cumprindo a exigência da medida provisória (MP 79)

do Congresso Nacional, apresentou publicamente, por intermédio do Jornal

Lance do dia 13 de fevereiro de 2003 (p.12) o seu balanço anual do

exercício 2002. As dívidas do clube são de, aproximadamente, 120 milhões

de reais.

No dia 14, a coluna ‘Os bastidores da bola’ do jornal Lance,

assinada por Eric Beting e Rodrigo Mattos, noticiam que o governo federal é

o credor de 1/3 do valor total da dívida do clube. Colocam, ainda, que, a

partir do momento em que o Sr. David Fischel assumiu a presidência do

clube, a dívida teria triplicado. Disseram os colunistas: ‘A explicação é

simples: em quatro anos, os gastos superam as receitas em R$ 20 milhões

por ano, em média.” (p.2)

Não foi nossa preocupação o balanço do Fluminense, o qual, no

entanto, mostrar como o discurso da mídia cria mitos e enaltece

personalidades que parecem ser eleitas pela simpatia e pelo interesse dos

jornalistas, cronistas etc. Souto (2002) alerta-nos sobre a possibilidade de os

jornais construírem uma memória da sociedade sobre uma ótica particular.

Ao selecionar alguns fatos, relegam outros ao esquecimento. “Esta memória

não preservaria o passado, mas o adaptaria para enriquecer e manipular o

presente.” (p.39)

418

Figura 22 – Charge – Romário cortejado pelos clubes Flamengo e Fluminense

419

Capítulo XVIIIRonaldo Nazário376 – “O homem de US$ 100 milhões”

“Ronaldo é um fenômeno, sim. Um fenômeno deingratidão! Na troca da Inter pelo Real Madrid, ele semostrou um grande mercenário. A Inter deu a eletodas as condições para se recuperar e brilhar naCopa. E na hora de retribuir o que ele faz: se manda.Ele está deixando uma bela imagem do jogadorbrasileiro...”

(Alexandre Schiavinatto) 377

Ronaldo, o “fenômeno”, apelido com o qual ficou conhecido,

protagonizou no futebol uma polêmica internacional, quando, ao final da

Copa do Mundo de 2002, competição da qual saiu como o principal artilheiro

e o mais coroado jogador da Copa378 pela imprensa nacional, rompeu seu

contrato com a Internazionale de Milão e se transferiu para o clube espanhol

376 - Ronaldo Luiz Nazár io de Lima, f i lho de pai camelô e mãe que t rabalhava nobalcão de uma sorveter ia , nasceu num subúrbio do Rio de Janeiro , em 1976.Devido aos fei tos pelo Cruzeiro de Belo Horizonte, fo i convocado para a Copa de1994 nos Estados Unidos. Apesar de não ter par t ic ipado efet ivamente daquelaCopa, despertou in teresse de alguns clubes europeus. Ao f inal da Copa, foicomprado pelo clube PSV Eindhoven da Holanda, de onde se transfer iu , em 1996,para o clube espanhol Barcelona. Deixou o Barcelona em 1997, indo para oIn ternazionale de Milão na I tá l ia , c lube onde f icou até o f inal da Copa de 2002,quando passou a jogar para o clube espanhol Real Madrid . Ronaldo tornou-se, aolado de Pelé , o recordis ta brasi le i ro de gols em Copa do Mundo – foram 12 nastrês copas em que esteve presente (1994, 1998 e 2002). Ronaldo também igualou orecord de número de par t idas em copa do mundo com Pelé. Ao par t ic ipar da f inalda copa Japão - Coréia do Sul , Ronaldo também chegou ao to tal de 14 par t idas .Na Copa de 2006, na Alemanha, a inda estará com 29 anos. Caldeira, Jorge.(2002) . Ronaldo – Glór ia e Drama no futebol g lobal izado. Rio de Janeiro.Edi tora34/Lance.

377 - Coluna Tabel inha do Jornal Lance, 03 de set /2002 p.22. Esta coluna é umespaço reservado aos comentár ios dos torcedores que escrevem para o jornaldando seu ponto de vis ta ( revol ta ou sat isfação) com algum episódio ocorr ido noespor te .

378 - Apesar de a FIFA ter considerado o goleiro Alemão Oliver Kahn o melhorjogador do evento.

420

Real Madrid. Uma transação que poderia ser considerada apenas como uma

das mais vultosas transferências de ‘mão-de-obra’ de um jogador tomou

notoriedade pelo sentimento de ingratidão que animou o processo de

negociação nas páginas dos jornais de todo mundo. A Internazionale teria

investido grande soma de recursos e esperado pacientemente a

recuperação do jogador, que ficara por quase dois anos fora dos

gramados379. Porém, quando se recuperou e tornou valorizado no mercado,

resolveu ir para o outro clube, o Real Madri.

Figura 23 – Coluna Tabelinha – Jornal Lance, 3 de set/2002, p.22

379 - Esteve no Barcelona da Espanha nos anos de 1996 e 1997, quando setransfer iu para a Internazionale da I tá l ia em 1997, onde permaneceu até 2002.

421

Vejamos que a trajetória esportiva de Ronaldo o conduziu a um

milionário mundo financeiro.380 Desde que começou no Cruzeiro,381 quando

ganhava R$ 500 por mês em 1993, em menos de 10 anos tornou-se um dos

jogadores mais bem pagos da história do futebol mundial.382 Ao se transferir

para o clube holandês PSV, quando foi vendido pelo Cruzeiro pelo valor de

US$ 6 milhões, recebeu 15% deste valor como exigência da lei de

transferência. Na transação entre o PSV e o Barcelona, no valor de US$ 20

milhões, levou novamente 15%, e na transferência do Barcelona para a Inter

de Milão (US$ 32 milhões), recebeu US$ 6 milhões de indenização (Revista

Lance A+, 28 de jul a 3 de ago/2002, p.17, Ano II, nº100):

“Em seis anos, ele já juntou uma quantia de US$ 72 milhões. E nofinal da temporada 2002/03, vai superar a barreira dos 80 milhões.Por essa projeção, sem que nada mude no cenário do futebolmundial, ele chegará aos US$ 100 milhões em 2005.” (RevistaLance A+, 28 de jul a 3 de ago/2002, p.17) (grifos nossos)

380 - Clarkson, Wensley. (1998). Ronaldo un genio de 21 años. Barcelona.Cooperación Editor ia .

381 - Em 1993, despontou no Cruzeiro e , neste mesmo ano, antes de completar 17anos, tornou-se ar t i lheiro da Supercopa da Liber tadores da América (8 gols) . Apouca idade cr iou um problema legal , pois somente poder ia jogar se est ivessetrabalhando ou estudando. O clube optou por empregá- lo de forma f ic t íc ia em umafirma (São José Ferramentas e Peças Ltda) de um dos car tolas do c lube, na funçãode torneiro mecânico. (Teich, Daniel Hessel . (2002). De onde eles v ieram. In :Revista Veja. 10 de ju l /2002, 36-42p.) Observemos que esta prát ica de seempregar o jogador em uma empresa de um dos dir igentes ou torcedor abonado doclube é um expediente que acompanha o fu tebol brasi le iro desde os anos 20,conforme narramos na par te 3 deste estudo.

382 - Ver: Oyama, Thaís . (2003). A in t imidade de um fenômeno. In : Revista Veja.10 de dez/2003. 122-131p.

422

Figura 24 – Carteira Profissional do RonaldoVeja, 10 de jun/2002, p.36

Observemos que o valor recebido por Ronaldo, estabelecido pela lei

de transferência, na transação entre o Barcelona e a Inter de Milão (US$ 6

milhões) é a quantia que o PSV Eindhoven pagou ao Cruzeiro para comprá-

lo em 1994.

Ronaldo é, na atualidade, um dos principais garotos-propaganda do

mundo esportivo. Entre os seus principais contratos, destacam-se

423

consagradas empresas internacionais, como Pirelli, a Ambev, a Tim e a Nike.

Com a Nike o seu contrato é vitalício, juntamente com Michael Jordan,383 o

principal astro do basquetebol norte-americano nos anos 80 e 90 do, mas

tais valores não são públicos. Esta transferência traria ainda uma tensão

relacionada à divulgação da imagem de Ronaldo nas publicidades deste

novo clube, pois a equipe contratante tem a empresa Adidas como

patrocinadora, o que naturalmente passaria a divulgar a marca do

concorrente do seu patrocinador vitalício. Estima-se que, juntando as cotas

de patrocínio com o salário pago pela Internazionale, o salário de Ronaldo

esteja por volta de US$ 11,4 milhões por ano (p.18/19).384

O que teria feito Ronaldo deixar a Inter de Milão e se transferir para

o Real Madrid, quando os jornais afirmavam que tal fato levaria à redução

salarial? Parece ser esta a principal questão que assola o imaginário dos

torcedores e jornalistas.

Em uma viagem ao Brasil, no mês de agosto de 2002, Ronaldo e

sua família são acompanhados por jornalistas em visitas que fizeram a duas

instituições filantrópicas: Instituto Nacional do Câncer (Inca) e a Fundação

Gol de Letra. Em ambas as visitas, Ronaldo realizou uma doação de R$ 100

mil. Para ele o valor que doara foi irrisório, justificando com outra finalidade o

seu ato: “O importante mesmo é o exemplo que dou a outras pessoas que

têm condições de ajudar o Inca e não o fazem por desconhecerem a obra.”

383 - Após a equipe nor te-americana de basquetebol tornar-se campeã ol ímpica emBarcelona em 1992, durante a cer imônia de premiação, por estar vest ido com ouniforme of ic ial do Comitê Olímpico nor te-americano (Empresa Reebok), MichaelJordan par t ic ipa do evento cobr indo a logomarca do patrocinador of ic ial com umabandeira dos Estados Unidos.

424

(Jornal O Dia - Caderno Ataque, 03 de ago/2002, p.6) Observemos que a

imagem de Ronaldo é vendida como a do bom rapaz e suas ações públicas

bem servem para construção dessa imagem.

Nesta mesma edição, o jornal O Dia, Caderno Ataque divulga que,

no dia anterior, 02 de agosto, o dirigente do clube Real Madrid teria afirmado

em Madrid que o “Fenômeno” já era jogador do Real. Questionado sobre a

transferência, Ronaldo não confirmou a contratação, mas também não a

desmentiu, disse apenas que o seu empresário estava acompanhando o

desenrolar dos fatos e o mantinha informado. Também aparece noticiada a

renovação do técnico argentino Hector Cuper com a Internazionale, ao qual

o jogador brasileiro noticiou ter desafeto. Ronaldo teria admitido a pessoas

próximas do seu convívio que aceitaria uma transferência para o Real

Madrid, pois não teria mais o mesmo prazer de antes em defender o clube

italiano. Nesta ocasião, admitiu à imprensa que “seria uma honra muito

grande jogar ao lado de Raúl, Roberto Carlos e Figo”, jogadores que

integravam o elenco do clube madrileno.

A partir desta reportagem, acompanhamos a trajetória das narrativas

que se sucederam diante das negociações da transferência. Para alguns

jornalistas e cronistas, a atitude de Ronaldo soou como uma ‘punhalada nas

costas’ do clube que lhe assegurou os salários durante o período de

restabelecimento das intensas lesões. Como já dito, as narrativas discorrem

sobre a tentativa de realçar a ingratidão do jogador com o clube. A princípio,

não se questionavam os motivos que conduziram o jogador a tal atitude,

384 - Revista Lance A+, 28 de ju l a 3 de ago/2002, p .17, Ano II , nº100.

425

apenas reforçavam o absurdo da traição, do abandono do empregado que

era supervalorizado e estimado pelo clube. A rejeição do jogador pelo clube

foi, aos olhos dos torcedores, dos dirigentes e de parte da mídia uma atitude

reprovável.

Observemos que os discursos aparecem enviesados e, para o valor

da reciprocidade, mesmo em modelo de relação profissional, apelam para os

vínculos de pertencimento que, supostamente, o jogador tinha com a

Internazionale. Por vezes, a narrativa do pertencimento é resignificada no

presente como espírito amador em contraposição à idéia do interesse, que,

em seu aspecto negativo, é simbolizada pela imagem do mercenário. O

mercenário é aquele que se entrega à causa apenas pelo interesse

financeiro e, geralmente, aparece vinculado aos soldados que vendem seus

serviços sem nenhum vínculo emocional com a pátria que defendem, na

mesma perspectiva apontada por Nicolau Maquiavel sobre a composição

dos exércitos.

O colunista Marcelo Damato colocou que “a crise entre Ronaldo e a

Internazionale está jogando sombras naquele que deveria ser o momento

mais brilhante da carreira do Fenômeno” (Jornal Lance, 7 de ago/2002, p.3).

O jornalista aponta os motivos que, em seu ponto de vista, justificam a

irritação dos torcedores da Inter: “Como um jogador que passou dois anos

contundido pode acusar o clube que bancou seu tratamento e seus salários

por todo esse período de tratá-lo mal a ponto de querer forçar sua saída?”

(p.3) Segundo Damato, parecia haver um motivo oculto na crise entre

Ronaldo e a Internazionale, pois todas as exigências do jogador no período

426

de tratamento foram atendidas, inclusive quando a Inter concordou que

Ronaldo viesse realizar seu tratamento aqui no Brasil, mesmo contra a

vontade dos médicos italianos. Os argumentos apresentados pela assessoria

do jogador de que o técnico Héctor Cúper o teria deixado muito tempo na

reserva não convenceu o jornalista, que especulava o fato de que Recoba,

jogador Uruguaio, teria um salário maior385 que o “Fenômeno”.

Todavia, mediante estas especulações sobre a insatisfação de

Ronaldo, um dos empresários do jogador, Alexandre Martins, anunciou que

Ronaldo cumpriria até o fim o seu contrato em 2006 com a Internazionale.

“Ronaldo escolheu a equipe italiana. Ele é um jogador da Inter e vai

continuar sendo por 365 dias por ano, durante mais quatro anos. Ele tem um

contrato que quer respeitar e, portanto, vai continuar trabalhando com a

Inter”, garantiu Alexandre (Jornal O Dia, Caderno Ataque, 08 de ago/2002,

p.4).

A imprensa esportiva encontrava em alvoroço, tentando entender os

motivos da mudança de planos do jogador, que meses antes (maio/2002)

chorava publicamente ao presenciar a derrota da equipe Milanesa para o

Juventus do Scudetto 386 da temporada 2001/2002 (Revista Lance A+, 29 de

dez/2002 a 04 de jan/2003, ano 3, nº122, p.25). No mesmo dia em que o

procurador do jogador confirmava seu compromisso com o clube, o dirigente

do Real Madrid, Jorge Valdano, afirmou que o seu clube nem se quer

385 - O salár io de Recoba era o mais al to na In ternazionale , 7 milhões de dólarespor ano, enquanto o do Ronaldo era de 5,4 milhões de dólares . (Revista Lance A+,28 de ju l . a 3 de ago/2002, p .18)

386 - Scudet to – É a denominação para a pr incipal competição i ta l iana, oCampeonato I ta l iano.

427

chegou a fazer proposta oficial a Internazionale, contradizendo a notícia que

havia sido veiculada dias anteriores, quando o dirigente confirmava a

contratação:

“O Real Madrid quer acabar com essa expectativa sobre achegada de Ronaldo, e pede que a discussão seja encerrada. (...)Foi o representante do jogador quem procurou o Real, e o que seviu depois disso foi o espetáculo jornalístico a que temos assistidonos últimos dias. A Inter não pediu nada e o Real não ofereceunada.” (p.4)

Valdano fez questão de deixar claro que foi o jogador quem

procurou seu clube, mas que não havia interesse em contratá-lo, embora

reconhecesse a sua condição: “Ele é um craque e nos interessa, é claro,

mas sua contratação não é estratégica com a de Zidane ou Figo.” (p.4)

Diante do fato, a coordenação da Associação de Consumidores da

Itália manifestou-se dizendo que os torcedores que adquiriram o carnê para

assistir aos jogos da Inter teriam o direito de ver Ronaldo em campo e, caso

isso não acontecesse, poderiam solicitar a restituição dos valores pagos.

Aqui entra a figura do consumidor reivindicando o cumprimento do contrato

profissional entre o jogador e o clube. Não apelam para o amor, e sim para a

norma contratual.

O articulista Oscar Valporto, em sua coluna ‘Linha de fundo’ no

Jornal O Dia, Caderno Ataque, questionou: Ingrato ou mimado? Para o

articulista, Ronaldo, como profissional, “tem o direito de procurar o melhor

para sua vida e sua carreira”, mas acusou o jogador de não ter agido

428

descentemente. Colocou o colunista que a Inter pagou regiamente o salário

de Ronaldo e, ao retornar a condição de jogo, o fato de ter procurado outro

clube foi realmente crítico, o que justificava a revolta dos torcedores da Inter.

“Ronaldo, sempre tão preocupado com a imagem, agiu da piormaneira possível para trocar de clube. Depois da Copa, fezquestão de mandar juras de amor ao Inter e a torcida italiana.Na sexta-feira, enquanto entregava generosas doações aoInstituto do Câncer e a Fundação Gol de Letra contava ao pé doouvido de jornalista que estava a caminho do Real Madrid. Seriasó mais um capítulo do seu conto de fadas particular – depois deser artilheiro da Copa, o Fenômeno ia jogar no melhor time domundo e diria que a proposta fora irrecusável – mas deu tudoerrado”, conclui Valporto. (Jornal O Dia - Caderno Ataque, 8 deago/2002, p.4) (Grifos nossos)

Valporto fala em juras de amor ao clube e à torcida. Observemos

como a imprensa vem trabalhando as imagens de amor e pertencimento.

Para o articulista, faltava uma razão lógica para entender porque Ronaldo

queria deixar Milão e, diante desta dúvida, resolve especular os motivos:

“Quer ganhar mais do que Recoba e Vieri? Tem medo de ficar nareserva? Não gosta do treinador? Detesta falar italiano? Quer ficarlonge da mulher, que vai jogar num time feminino da cidade?Todos esses seriam motivos razoáveis, mas talvez, poucodiplomáticos. Desmascarada a tentativa de sedução ao Real,Ronaldo manda dizer pelos assessores apenas que “não está felizem Milão”. Sem qualquer outra explicação, fica parecendo birra decriança. Mimada, muito minada.” (p.4)

A polêmica acerca desta tentativa de rompimento de contrato com a

Internazionale repercutiu intensamente no meio esportivo, suscitando

429

inúmeros debates. Karl Heinz Rumenigge, ex-jogador alemão, atualmente

ocupando o cargo de dirigente do Bayern de Munique, também criticou a

pretensão de transferência, colocando em dúvidas o caráter do jogador

brasileiro:

“Na minha opinião, isso tudo é um nojo. Quando um jogador ficadois anos machucado, recebendo os salários por inteiro, depoisdisputa uma Copa do Mundo que não dá nada ao clube e logo emseguida pede um novo contrato, é preciso se perguntar sobre ocaráter desse jogador e de seus conselheiros.” (Jornal O Dia,Caderno Ataque, 8 de ago/2002, p.4)

Rumenigge demonstrou também o seu desapontamento com o

episódio ao dirigente do Real Madrid, Sr. Florentino Perez, dizendo que o

futuro do futebol não pode ser este: “Não queremos esse sistema de

mercenários.” (p.4) Observemos aqui que a discussão é centrada na ótica

profissional.

Também na tentativa de compreender o fato, o jornalista José

Trajano questionou o que teria conduzido as ações dos dois empresários do

jogador que não tiveram habilidade nas negociações, deixando Ronaldo em

uma situação delicada perante os torcedores da Inter, a ponto de ter sido

vaiado e hostilizado. Trajano questionou “como o jogador iria se livrar da

pecha de ingrato que lhe foi imposta?” (Jornal Lance, 8 de ago/2002, p.3)

Questionou ainda que se não tratava apenas de um boato para conseguir

um aumento salarial, pelo fato de Ronaldo estar recebendo menos que o

uruguaio Recoba. Colocou Trajano que, se foi este o motivo, seria mais

prudente uma conversa com o presidente da Inter.

430

Trajano também argumentou sobre a idéia de traição, devido ao

apoio dado ao jogador nos anos difíceis das freqüentes contusões. Vejamos

como a idéia da traição parece ser a tônica do episódio. A traição de

Ronaldo ao clube que lhe deu assistência, a idéia do amor que foi

atraiçoado. Os outros pontos do episódio aparecem camuflados na idéia de

deslealdade do jogador com o clube.

Trajano apontou ainda outro fato que julgou atenuar a situação dos

empresários e do jogador, quando colocou que, mesmo antes da Copa,

Ronaldo já teria procurado os dirigentes italianos e “confessado que andava

infeliz por lá e que desejava partir para novos ares, de preferência para a

Espanha.” (Jornal Lance, 8 de ago/2002, p.3) A Internazionale teria admitido

a negociação, desde que a proposta fosse boa. Assim, os empresários

Alexandre Martins e Reinaldo Pitta foram procurar o clube espanhol, que

ofereceu 25 milhões de euros, mais Morientes e Solari, o que foi

considerado baixo pelos dirigentes da Inter, que ambicionavam 100 milhões

de euros. Trajano esclareceu ainda, que, embora o salário de Ronaldo seja

menor que o de Recoba, no montante ele acaba sendo bem melhor

remunerado que o uruguaio, devido ao direito de imagem. Trajano, em sua

coluna, deixou aberta a questão: “será que é só dinheiro ou há algo mais

escondido nessa história?” (p.3). Observemos que os boatos envolvidos

nessa transação entre grandes empresas do futebol não se limitam os

problemas do negócio em termos contratuais. A imprensa vende emoções,

mobiliza os afetos e sentimentos dos leitores, para discutir um tema popular

vinculado à tradição judaico-cristã no espaço do futebol: poderemos amar

431

por dinheiro? Em outras palavras, poderemos mobilizar nossos afetos para

torcer por aqueles que só possuem interesses individuais?

Observemos que a idéia de venda ou troca, quando é do interesse

do clube, não cai na mesma narrativa. Não se questiona se o jogador amava

o clube, interessa apenas que o clube, como empresa, não tem mais como

absorver o ‘amor’ do jogador. O fato de o clube estar oferecendo Morientes,

Solari para outro clube não tem o mesmo peso na balança emocional, afinal,

se estes são peças descartáveis, a quem importa o seu envolvimento com o

clube?

No dia 9 de agosto, o assessor de imprensa de Ronaldo, Sr.

Rodrigo Paiva, comunicou aos jornalistas que seu cliente decidiu por não

jogar nenhuma partida oficial pela Internazionale e, a partir daquele

momento, só conversaria com o presidente do clube. “Ronaldo só fala se

houver algum fato novo.” (Jornal O Dia – Caderno Ataque, 9 de ago/2002,

p.4) Os motivos pelos quais ele resolveu não reintegrar a equipe não foram

apontados pelo assessor. Antes desta decisão, Ronaldo havia admitido

publicamente a possibilidade de participar de alguns amistosos ou da Liga

dos Campeões387 pela equipe.

A insatisfação perante a atitude de Ronaldo não se limitou às vaias

que recebeu, além das faixas e insultos advindos dos torcedores. Parte da

imprensa italiana também demonstrou seu repúdio ao que eles

consideraram ingratidão do jogador com o clube e os torcedores. Um jornal

387 - É um torneio Europeu para os clubes que se sagraram campeões em seusrespect ivos países na temporada anter ior .

432

de Milão publicou na primeira página que o motivo principal desta decisão foi

financeiro e, portanto, o classificou como mercenário. Para ilustrar a

reportagem, apresentam uma figura contendo cédulas de euros

(denominadas de Euronaldo) tendo o rosto do jogador como símbolo da

moeda, conforme foram reproduzidas nas imagens nos jornais brasileiros

(Jornal O Dia - caderno Ataque, 9, Ago/2002, p. 4).

Figura 25 – Euronaldo – Jornal O Dia /Caderno Ataque, 9 de ago/2002, p.4

No Brasil, o jornal Lance também satirizou a situação, ao publicar

uma charge do cartunista Gustavo com a caricatura de Ronaldo utilizando

um brinco pendurado em forma de etiqueta de preço, contendo o cifrão ($)

(Jornal Dia – Caderno Ataque, 18 de ago/2002, p.3).

433

Parecem ser o mote econômico e a traição os principais focos de

análise do episódio. Outros temas são apontados de forma duvidosa, mas

não chegam a despertar o interesse dos narradores e cronistas.

O presidente da Internazionale, Massimo Moratti, tentando

contornar a situação, revelou que teve uma conversa com o jogador,

tentando persuadi-lo a desistir da transferência: “Ressaltei que uma relação

de amor não pode se transformar em ódio.” - disse o dirigente a imprensa.

(Jornal O Dia, Caderno Ataque, 9 de ago/2002, p.4) (grifos nossos)

O jogador divulgou em seu site oficial apenas algumas justificativas

pessoais, mas diz que preferia não tornar público naquele momento seus

reais motivos, por respeito aos torcedores e ao clube. Dizia estar triste, mas

que entendia a reação da torcida e preferia enfrentar aquele momento difícil

a ter de detalhar os motivos da sua decisão. “Deixo claro que não estou

agindo motivado por dinheiro, quero apenas ser feliz”, conforme divulgou o

Jornal O Dia, Caderno Ataque em 9 de ago/2002, (p.4).

Um frio reencontro entre Ronaldo e o treinador Hector Cuper

marcou o treinamento da Inter no dia 9 de agosto. O jogador continuou

realizando trabalhos físicos separadamente do grupo. Segundo as

informações dos jornais internacionais, reproduzidos pelo caderno Ataque –

Jornal O Dia, a maioria dos torcedores não queria mais saber de Ronaldo, a

quem consideravam ingrato. Como resposta a sua ingratidão passaram a

apoiar o treinador.

Este impasse nas negociações entre Inter e Real Madrid arrastou-se

por mais alguns dias. Ronaldo chega ao Brasil para participar da festa da

434

conquista do Campeonato mundial, que aconteceria em Fortaleza em um

amistoso contra o Paraguai. Questionado sobre a transferência, limitou-se a

dizer que não sabia o que poderia acontecer, mas esperava que a decisão

fosse o mais rápido possível. Na mesma matéria, o Jornal O Dia, Caderno

Ataque, noticiava que o Jornal espanhol Marca garantia que já teria acertado

tudo entre os dois clubes e, naquele final de semana, os dois presidentes

Moratti e Pérez se reuniram para os detalhes finais da transferência. (Jornal

O Dia, Caderno Ataque 16 de ago/2002, p.6)

No dia 17 de ago/2002, o Caderno Ataque, Jornal O Dia divulgou

que, enquanto os dirigentes europeus sentavam-se à mesa de negociações,

Ronaldo continuava seu treinamento no Rio, visando apurar a forma física

para o amistoso contra o Paraguai. Todavia, frente aos impasses na

resolução do seu novo empregador, surge a notícia de uma aquisição

imobiliária realizada pelo jogador. Ronaldo comprou uma ilha de 32 mil

metros quadros na Baia de Angra do Reis, no litoral do Rio de Janeiro.388 A

venda da ilha estava sendo noticiada na Internet pelo valor de US$ 1,3

milhões (aproximadamente R$ 4 milhões). Sua diária de manutenção não

ficaria por menos de R$ 2,5 mil (Jornal O Dia, Caderno Ataque, 17 de

ago/2002, p.6). O contexto de divulgação dessa notícia parece apresentar

mais um elemento para por em suspeição o processo de negociação. No

fundo, a imprensa narra o “espetáculo” fora do campo de futebol com

ambigüidade e suspeição semelhantes às dos aficcionados: será que os

jogadores merecem ganhar fortunas inimagináveis? Os interesses

388 - A i lha tem três casas independentes , quadras de esportes , dois hel iportos ,dois decks, cais para barcos, p iscina natural , bar e churrasqueira .

435

individuais se conciliam com a honra e glória que os torcedores solicitam de

seus atletas.

Figura 26 – Ronaldo à venda – Jornal Lance, 18 de ago/2002. p.3

Quando tudo parecia estar se resolvendo, o Real Madrid emite

comunicado afirmando que desistiu de contratar Ronaldo. Em seu site oficial,

aparecia a seguinte notícia:

“O Real Madrid C. F. comunica que existem diferençasirreconciliáveis com a Inter de Milão para a contratação deRonaldo. Nas francas conversas mantidas esta manhãmanifestamos a impossibilidade de se chegar a um acordo,portanto ambos os clubes dão a negociação por encerrada.”(Jornal Lance, 24 de ago/2002, p.16)

436

Apesar deste comunicado no site do clube espanhol, o procurador

do jogador, Alexandre Martins, mantinha um suspense ao comentar sobre

este pronunciamento do clube: “Não sei se as negociações terminaram. Só

quem pode dizer isso são os presidentes da Inter e do Real Madrid. Existem

várias alternativas, vamos ver qual será a melhor.” (p.16)

Ao desembarcar em Milão no dia 24 de agosto, Ronaldo era

aguardado por torcedores que exigiam que ele pedisse perdão, já que as

negociações não tinham se efetivado. Parecia que a única saída seria a

permanência no clube italiano, uma vez que nenhum clube estaria disposto a

desembolsar os 60 milhões de euros (R$ 180 milhões) pedidos pela Inter

(Jornal Lance, 25 de ago/2002, p. 16). Ronaldo, que deixou o aeroporto por

um portão de serviço, não se encontrou com os torcedores, que exibiam um

cartaz escrito: “E agora, peça perdão.” (Jornal Lance, 25 de ago/2002, p. 16)

A demonstração dos vínculos faz parte do espetáculo futebol, ainda que

possua um caráter altamente profissional.

Essa demora no desenrolar das negociações começou a incomodar

as imprensas espanhola e italiana, que resolveram se posicionar diante

desta pendência. Os jornalistas espanhóis, apoiando o jogador, acusaram o

presidente Massimo Moratti da Inter de agir com extremismo. Segundo o

jornal ‘Marca’, as negociações entre os clubes não avançaram, porque

existia vontade de um (Real Madrid) e intransigência do outro

(Internazionale). Inclusive, o jornal ‘As’ acusou o clube italiano de estar

trabalhando “para que as negociações não tivessem um final feliz.” Por outro

437

lado, O jornal italiano ‘Gazzeta dello Sport’ acusava o Real Madrid do

fracasso nas transações (Jornal Lance, 25 de ago/2002, p. 16).

Figura 27 – Ronaldo à venda 2, Jornal Lance, 7 de set/2002, p.2

Praticamente um mês após as primeiras negociações (29 dias),

finalmente, os dirigentes do Real Madrid anunciaram a contratação de

Ronaldo por valores milionários. O clube espanhol acertou por US$ 46,3

milhões a transferência do jogador. Inicialmente, o Real Madrid pagaria 35

milhões de euros pela primeira parcela e, em dezembro, os italianos

poderiam escolher um jogador dentre uma lista acordada. Caso a

Internazionale não se interessasse por nenhum dos jogadores, receberia

mais 10 milhões de euros (Jornal Lance, 01 de set/2002, p. 17).

O diretor do Real Madrid, Jorge Valdano, deixou claro que o clube

só conseguiu ter sucesso na negociação, porque o brasileiro aceitou ganhar

438

menos. “Priorizamos a nossa saúde financeira, e Ronaldo entendeu isso.”

(p.17).

O jornal Lance divulgou uma tabela com uma lista das mais caras

transferências no futebol, onde Ronaldo passou a ser a sexta transação

mais vultosa, conforme reproduzimos abaixo:

Quadro 09 – Principais transações financeiras do futebol mundial até 2002

JogadorValorEm milhões de dólares De Para Ano

Zidane 64,4 Juventude Real Madrid 2001Figo 56,1 Barcelona Real Madrid 2000Crespo 54,1 Parma Lazio 2000Vieri 50,0 Lazio Inter de Milão 1999Ferdinand 47,0 Leeds United Manchester United 1999Ronaldo 46,3 Inter de Milão Real Madrid 2002Bufón 45,9 Parma Juventus 2001Mendieta 41,0 Valência Lazio 2001Verón 39,5 Lazio Manchester United 2001Nedved 36,4 Lazio Juventus 1999

Fonte: Jornal Lance, 01 de set/2002, p.17

A partir deste instante, as histórias se repetem como em

praticamente todas as transferências polêmicas que envolvem grandes

jogadores: a chegada de um ídolo, a comemoração da torcida, as juras de

amor e as promessas. Já no desembarque na capital espanhola, Ronaldo

afirmou que não tinha perdido as esperanças de defender as cores do clube

merengue: “Estou encantado por estar numa equipe tão maravilhosa. Sabia

que tudo acabaria bem. (...) Quero ganhar tudo que seja possível, e a equipe

tem condições para isso.” (Jornal Lance, 2 de set/2002, p.19)

Todavia, a chegada de Ronaldo não foi somente festa em Madrid.

Sua negociação gerou um mal-estar junto aos demais jogadores do elenco,

por ter envolvido diretamente outros jogadores na transação. O nome de

439

Fernando Molientes na lista de possíveis aquisições do clube italiano fez

com que alguns jogadores, seus amigos, demonstrassem sua insatisfação:

“Jogador não é mercadoria. Somos seres humanos antes de tudo.” –

reclamou Hierro (Jornal Lance, 2 de set/2002, p.19).

Figura 28 – Charge: Breve aqui, mais um fora de série – Jornal Lance, 5 deout/2002, p.3

O Real Madrid, ao contratar Ronaldo, confirmou ser a equipe mais

cara do mundo. Entre os dez maiores salários do futebol mundial, cinco

deles estão no plantel do clube espanhol. Ronaldo, Figo e Zidane recebem

cerca de US$ 7,5 milhões por ano, Raul recebe cerca de US$ 7 milhões e

Roberto Carlos, aproximadamente US$ 4 milhões. Além destes salários,

deve-se incluir 30% do total da folha em impostos, mais o seguro de cada

440

jogador. A receita para o pagamento destes salários vem de empresas

patrocinadoras, venda de produtos licenciados e uma controlada estratégia

de marketing. Apenas para a apresentação de Ronaldo, uma empresa de

telefonia celular que patrocina o clube desembolsou US$ 300 mil pela

exclusividade no evento, que foi transmitido ao vivo para todo o país (Jornal

Lance, 2 de set/2002, p.19). Em apenas 20 dias de clube, Ronaldo

conseguiu um novo record de venda de camisetas. Foram mais de 70 mil

com seu nome e o número 11 às costas. O diretor de marketing do clube,

José Angel Sanchez, afirma que o segundo jogador a provocar mais vendas

de camisas não alcança a metade do que faz o Ronaldo. “O Real Madrid,

obviamente, não compra o passe de um atleta pelo número de camisas

vendidas com o seu nome, mas podemos dizer que Ronaldo nos traz um

retorno em propaganda incrível.” (Jornal O Dia, Caderno Ataque, 22 de

set/2002, p.2)

Este episódio da transferência do Ronaldo foi oportuno para

observarmos como as narrativas se vinculam às denúncias de pertencimento

e amor do jogador com o seu clube. Deve apresentar uma postura

profissional, a qual, todavia, deve ser permeada pelo comprometimento

afetivo. O discurso de ordem racional deve interagir com os de ordem

emocional. Portanto, Ronaldo feriu os sentimentos coletivos dos torcedores

da Internazionale e os jornalistas, na tentativa de traduzir os sentimentos, às

vezes, arbitravam julgando-o ora como um profissional sem sentimentos de

reciprocidade, ora como mercenário que não possui vínculos afetivos.

441

Vejamos que as narrativas se sustentam com forte argumentação

sobre a lógica do capitalismo. Como pode uma empresa investir em um

funcionário e este, após estar recuperado, apto a desempenhar sua função,

abandoná-la antes de compensar o investimento? Ou seja, Ronaldo foi um

custo para a empresa e não correspondeu com o trabalho que se esperava

dele. Observemos que, neste aspecto da falta de retorno do investimento

pelo clube, na percepção dos torcedores, cronistas e dirigentes, parece não

ser computado o tempo de exposição na mídia agregado aos produtos dos

parceiros do clube italiano. O retorno que se espera é aquele através do

trabalho visualizado nos jogos.

Na perspectiva capitalista, Ronaldo demonstrou falta de

compromisso e de ética profissional. Por outro lado, na percepção de alguns

torcedores, dirigentes e jornalistas, Ronaldo foi ingrato ao colocar seus

interesses individuais acima dos interesses coletivos.

442

CONCLUSÃO

“A palavra profissional costumava ser usada para umapessoa que era paga para fazer determinada atividade, aocontrário de amador. Hoje profissional tem cada vez maisuma conotação de alguém com alto grau de eficiência. Poroutro lado, o amador, uma linda palavra que significava,literalmente “aquele que ama”, foi rebaixado para um simplesiniciante, ou alguém com alguma prática. Quando dizemos“ele é um amador”, não há mais o mesmo sentido de antes,de um elogio”

(Rybazynski, 2000, p.24).389

No seio das narrativas acerca do futebol brasileiro desde as

primeiras décadas do século XX, existe uma gangorra discursiva, onde os

termos amadorismo e profissionalismo são comumente invocados com maior

ou menor peso nas inúmeras discussões. Os termos são freqüentemente

deslocados dos sentidos originais para atender as demandas de

racionalização no contexto. Desta forma, amadorismo e profissionalismo

passam a ser termos ambíguos, polissêmicos, assumindo diferentes

389 Rybazynski , Witold . (2000) . Esperando o f im e semana. Rio de Janeiro . Record

443

significados em função dos interesses e das circunstâncias em que são

adotados.

Percebe-se a existência no futebol brasileiro de uma tensão entre

marcas do espírito amador, mesmo no espaço de alto rendimento, ao

mesmo tempo em que são assíduas as vozes em favor da profissionalização

de toda a estrutura esportiva (atletas, árbitros, clubes e dirigentes).

Provocados por esta tensão, amadorismo e profissionalismo convivem ora

em oposição, ora como argumentos complementares que eliminam ou

apagam a oposição original.

O amadorismo nas atuais narrativas jornalísticas parece funcionar

como contrapeso: a) para discutir o tipo de vínculo e/ou pertencimento dos

atores envolvidos com os clubes de futebol; b) parece colocar limites ao

processo de negociação e acúmulo de capital no mercado do futebol

profissional.

Neste contexto, parece surgir um jogo de relações, onde o

amadorismo é invocado para frear elementos considerados perversos no

espaço profissional. O profissionalismo deve se pautar sobre certas “regras

amadoras”. Não pode perder alguns sentidos que façam permanecer a

tensão necessária para justificar o esporte como fins sociais e educativos,

justificados na ética e na moral.

As interpretações dos jornais oscilam criando uma ‘área cinzenta’

que dificulta saber do que se está tratando. Isso parece confundir a mídia,

os dirigentes e, principalmente, os jogadores. Todos devem mostrar-se

comprometidos com o profissionalismo, mantendo, porém, os vínculos

444

afetivos idealizados pelo amadorismo. O dilema se instala neste jogo

narrativo.

Uma estrutura em forma gradiente (Figura 01) parece fornecer mais

argumentos para que possamos analisar o modelo dicotômico amadorismo-

profissionalismo no futebol brasileiro. Como pontuamos ao longo do texto,

essa tensão entre o pertencimento amador e o compromisso profissional

proporciona uma narrativa fecunda para aqueles que analisam o fenômeno

esportivo, tornando-a freqüente nos debates sociais e acadêmicos.

Amadorismo e profissionalismo nas narrativas permitem uma

flutuação, uma espécie de pêndulo, de acordo com a conjectura histórica,

sendo difícil estabelecer um limite entre os dois, principalmente na

atualidade, pois, mesmo no mais alto grau de profissionalismo,

encontraremos narrativas relacionadas aos ideais amadores, embora com

menor peso que no passado.

Observemos na Figura 28 que, apesar da evidente ascensão do

profissionalismo sobre o amadorismo, que em alguns momentos os ideais

amadores retornam como mecanismo de contraposição ou inibição de algo

indesejável. Essa estrutura em forma gradiente funcionaria como uma

“membrana permeável” e flexível que filtraria alguns elementos necessários

em determinadas circunstâncias. Parece que, diante de uma vitória

expressiva ou uma derrota que representa a ‘morte coletiva’, esses

elementos são liberados para o lado oposto para auxiliar as argumentações

445

necessárias.390 Daí surgem as expressões: profissionalismo, amor, garra,

dedicação, compromisso, seriedade etc.

Parece existe uma dependência das marcas que caracterizam os

ideais amadores, apesar de, cada vez mais, o esporte caminhar para o mais

elevado grau de profissionalismo, da mesma forma que, durante o período

considerado amador, constatava-se um elevado grau de seriedade e

competitividade nos jogos.

Figura 29 – Gradiente - Amadorismo e profissionalismo no futebol brasileiro desde oinício do século 20

390 - Um exemplo desta s i tuação pode ser observado na desclass if icação da seleçãobrasi le ira que disputou o pré-olímpico, visando à classif icação para os jogos deAtenas 2004. O grupo convocado por Ricardo Gomes foi considerado pelaimprensa como um dos mais completos nos ú l t imos tempos. Uma esperança realpara a conquista da inédi ta medalha de ouro. In ic ialmente , as narrat ivasexal tavam o je i to moleque de Robinho, Diego e companhia, como umacaracter ís t ica genuína do futebol brasi le iro. Um futebol a legre, de f loreio , aqueleque a imprensa denomina de fu tebol ar te . Todavia, depois de consol idada adesclass if icação, os argumentos passam a desvalorizar esse je i to moleque,dizendo ter fal tado seriedade, compromisso, l iderança etc , caracter ís t icasfundamentais do prof iss ional ismo. Vejamos que as narrat ivas se deslocambuscando entender o que fa l tou. Os argumentos parecem f lu tuar , re tomandoelementos dos pr incípios amadores e prof iss ionais .

446

As marcas gráficas na figura têm como propósito balizar alguns

períodos históricos.

A – Até os anos 20Início do debate acerca do amadorismo/profissionalismoPrática do amadorismo marromProfissionalismo esportivo é considerado um desvirtuamento moral

B -Anos 30Tensão entre os pro-profissionalistas e os interessados na manutenção doamadorismo1933 – Oficialização do profissionalismo1933 – Início do Torneio Rio - São Paulo1934 a 1939 – Convivência entre os quadros amadores e profissionais nosclubes1939 – Ano de consolidação do profissionalismo

C - Anos 40Período de consolidação do Brasil com força internacional no futebol1ª Lei do Esporte nacional. Lei nº 3.1991/1941

- 1ª referência à prática esportiva profissional- O Capítulo III destaca o futebol como o desporto básico e essencialda CBD

D - Anos 50 e 60Realização da Copa do mundo BrasilBrasil vence os mundiais de 58 (Suécia) e 62 (Chile)O Santos F. Clube venceu 2 vezes a Copa Libertadores da América (1962 e1963)O Santos F. Clube venceu 2 vezes o Mundial Interclubes

E - Anos 70O Brasil vence o 3º Mundial (México 1970)Início das transmissões via satéliteInício do Campeonato Brasileiro de FutebolConsagração de Pelé como o melhor jogador de futebol do mundo

F - Anos 80 e 90Fundação do Clube dos 13Permissão para as equipes utilizarem publicidade nos uniformesOs jogadores brasileiros passam a firmar contratos milionáriosinternacionalmenteConstituinte de 1988 (Tratamento diferenciado Desporto profissional e nãoprofissional)Lei Zico e Lei Pelé (Lei do Passe e da responsabilidade fiscal)

447

O Brasil vence o 4º Mundial (EUA 1994)

G – Anos iniciais do século XXIBrasil vence o 5º Mundial (Ásia 2002)

No futebol brasileiro, freqüentemente, o termo amador391 surge

adjetivando situações distintas. Amador que literalmente significa aquele que

ama, que demonstra afetividade e compromisso, com a causa a que se

abraça, pode significar ainda aquele indivíduo que exerce suas funções sem

eficiência, ou quem é iniciante. Trata-se de um conceito que abriga

significados, por vezes, opostos.

Observemos que, ao mesmo tempo em que se busca o

aperfeiçoamento, a melhoria dos espetáculos esportivos, parece existir uma

insistência em manter um discurso forjado de ideologias e de conceitos

concebidos na ética romântica, que se aproxima do compromisso moral

estabelecido pelos valores amadores, onde não se pode admitir o homem

mercenário, nas percepções de Santo Agostinho e de Maquiavel.

Paradoxalmente, no entanto, admite-se que o homem na função de atleta

seja comercializado – adquira a condição de mercadoria392, disponível no

391 - Na par te 1 deste es tudo real izamos uma invest igação acerca dos termosamador e profiss ional , quando recorremos a enciclopédias e d icionár ios quetrazem tais concei tuações.

392 - Em entrevis ta ao Jornal Lance, o jogador Edílson, a tacante do Flamengo,aponta a idéia da comercial ização dos jogadores: “O futebol virou um comércio .O jogador é mercador ia . Quando o t ime tá mal , o c lube manda dez embora de umavez” (Jornal Lance, 20 de fevereiro /2001. p . 4-5) . Uma entrevis ta do jogador Fel ipe vem reforçar esta idéia de Edílson. Ao sercontrato pelo Flamengo para a temporada de 2003, fo i quest ionado por umjornal is ta sobre o seu envolvimento com o ex-clube. (Fel ipe foi cr iado nacategor ia de base do Vasco e tornou-se ídolo da torcida Vascaína.) A matér ia dojornal trouxe em letras destacadas, uma de suas fa las: “Eu sou o clube que pagarmeu salár io”. (Jornal Lance, 17 de janeiro/2003, p .4) .

448

mercado dos empresários esportivos e dos clubes –; desta forma, o clube

que for financeiramente bem estruturados terá melhores condições de

formar e manter sua equipe mais competitiva.393

O esporte a partir do momento em que instituiu o profissionalismo

passou a conviver com sentidos e significados, à primeira vista, antagônicos

e inconciliáveis: interesse financeiro e paixão. Uma lógica econômica passa

a ser empregada em consonância com ideais românticos.

A dedicação e o compromisso que se aliavam ao compromisso

afetivo teve que se adequar também ao comércio, uma vez que o jogador

representaria os interesses dos seus contratantes. Este processo de

comercialização admitido explicitamente pelo profissionalismo trouxe para o

campo esportivo outros princípios norteadores, como técnica, performance,

esforço, responsabilidade, racionalidade; atitudes que pareciam não foram

sido implementadas no amadorismo original. O jogador que exercia sua

prática pelo prazer prioritariamente tornou-se cotado pelo seu poder

produtivo; uma lógica que se assemelha aos princípios observados na

expansão do capitalismo.

Vejamos também como Liedson, descreveu sua re lação com o Flamengo,

clube que o projetou nacionalmente. Para ele , a grat idão não é tudo, pois comoprof iss ional dever ia pensar nas outras pessoas que dependiam do seu t rabalho.(Jornal Lance, 30 de dez/2002, p .8)

393 - Por exemplo, o Cruzeiro Espor te Clube, em 2003, projetou a conquis ta doinédi to t í tu lo do campeonato brasi le iro, formando uma equipe orçada em 1 milhãode reais . Não estou af irmando que a equipe que investe mais será a campeã,apenas reforçando a idéia do invest imento como mecanismo de formar uma equipecompet i t iva .

449

Figura 30 – Entrevista com Felipe – Jornal Lance, 17 de jan/2003, p.4

A partir da implantação do profissionalismo, o jogador percebeu que

o campo esportivo também poderia ser um espaço de luta pela

sobrevivência ou pelo acúmulo de capital como qualquer outro profissional.

Para se sustentar perante o interesse dos consumidores do espetáculo, os

450

jogadores deveriam apresentar competência técnica e alto rendimento, pois

seu vínculo tornou-se valorizado pela performance, isto é, pela capacidade

de responder eficientemente às exigências do jogo; portanto, sua

sobrevivência e/ou acúmulo dependiam da sua aptidão esportiva.394 Nesta

perspectiva, observemos que os valores de dedicação e afetividade parecem

perder, em parte, força para os torcedores, caso o jogador não seja capaz

de desempenhar satisfatoriamente suas obrigações em campo. Somente o

‘amor’, o ‘sangue’, o ‘vestir a camisa’ e o ‘coração na ponta da chuteira’ não

interessavam. Entretanto, a competência deveria estar aliada a estes ideais

de cunho românticos.

Na parte 1 procuramos compreender o conceito de amador ao longo

do tempo, por intermédio do movimento olímpico. Observa-se que tal

conceito na sua concepção original foi fundamentado inicialmente para

conceituar a condição do artista. Mais tarde, passou a ser também

observado no campo esportivo. Possivelmente a apropriação do conceito

original ainda no século XVIII tenha sido apenas uma forma de qualificar a

prática esportiva fora do campo das apostas que já eram freqüentes desde

aquele período.

Entretanto, essa conceituação foi perdendo o alcance, pois a

condição dos atletas também se afeiçoou ao tempo. Em um primeiro

momento, os atletas eram sujeitos que detinham autonomia, competiam

individualmente. Suas glórias eram fruto da sua individualidade, do seu

desempenho, mesmo que estivessem representando uma cidade, como

394 - Aptidão espor t iva aqui entendida como capacidade de responder de formasat isfatór ia aos est ímulos f ís icos demandados pelo jogo (competência f ís ica e

451

ocorria nos Jogos Gregos Antigos. Ainda que estivesse representando suas

cidades e/ou sua família, suas conquistas pareciam fruto do empenho

particular, diferente do que tornaria em momentos posteriores, quando os

ideais de identidade passaram a ser fundamentados nas realizações

esportivas coletivas.

Figura 31 – Entrevista com Liedson – Jornal Lance, 30 de dez/2002, p.8 técnica, a l iadas a sua habi l idade) .

452

O surgimento da competição entre clubes gerou uma nova

perspectiva no campo esportivo, pois o atleta, ao contrário de períodos

anteriores, não estava mais representado apenas seus ideais e da nação,

mas de todo seu grupo social, as tribos modernas.395 Naturalmente, as

conceituações acerca do vínculo do atleta provocariam novas perspectivas.

Desta forma, novos valores foram incorporados e os já existentes,

redesenhados. Os sentimentos individuais da vitória, mesmo que em nome

da nação, passam também a representar uma comunidade formada por

grupos sociais de identidades locais, como as torcidas de massa.396 Hoje,

os valores atribuídos a alguns grupos esportivos chegam inclusive a ser

superiores ou similares às identidades de nação.397

Na parte 3 do estudo, observamos que nas leis brasileiras, ao se

definir o status do atleta, o conceito parece se perder. A utilização do termo

amador nos textos-lei parece ter sido constantemente uma dificuldade,

395 - Com o advento dos clubes espor t ivos, as competições passar iam a representarcolet iv idades, desde um simples lazer de c lasses e a té a cr iação de um espaço des tatus socia l bem def inido. O surgimento destas t r ibos modernas no entendimentode Michel Maffesol i (1998) veio subst i tu ir as ações es tabelecidas pelo contratosocial proposto por Rousseau. Para Maffesol i , a comunhão de sent imento tornou-se o verdadeiro cimento da sociedade e as relações famil iares e tr ibais passaram acorresponder mais efet ivamente aos valores e in teresses dos indivíduos.Maffesol i , Michel . (1998). O tempo das tr ibos . Rio de Janeiro. FlorenseUniversi tár ia . Rousseau, Jean-Jacques (1963). Contrato social . São Paulo. Ediçõese publicações Brasi l Edi tora S.A.

396 -Toledo, Luis Henr ique (1996). Torcidas organizadas de fu tebol . Campinas.Editora Autores Associados.

397 - Em entrevis tas real izadas por nós em 2001 com torcedores de fu tebol , a lgunsadmit i ram que a v i tór ia ou derrota da sua equipe de preferência causou maisemoção e in teresse que os resul tados da seleção nacional . Dos 50 entrevis tados(35 homens e 15 mulheres) , 29 assumiram que as real izações e as conquis tas dosseus clubes eram super iores as da seleção nacional . Das informantes femininas,apenas uma torcedora colocou que sua paixão pelo c lube é super ior à seleçãobrasi le ira . (Sal les , entrevis tas real izadas em 2001).

453

devido à complexidade da estrutura esportiva nacional, bem como as

distintas finalidades e objetivos aos quais o esporte é promovido e

praticado.398 Observemos que o termo amador foi empregado para definir o

vínculo do atleta, o tipo de práticas, a estrutura da modalidade e a forma de

organização esportiva. As definições parecem não conseguir encampar com

clareza e exatidão todas as possibilidades de prática. Entretanto, pareceu-

nos evidente que todas as mudanças nos textos-lei quase sempre ocorrem

em função das querelas do futebol, uma vez que o futebol desde a terceira

décadas do século XX já representava um dos símbolos de construção da

nação brasileira.399

. . .

Diante da permanente competição, a competência esportiva tornou-

se um requisito almejado por todos os clubes, ainda nas primeiras décadas

do século XX. Desde então, esta competência esportiva já favorecia

principalmente aqueles clubes que pudessem remunerar seus jogadores.

398 - A par t ir do momento em que o esporte passou a ser compreendido como umdirei to de todos às prat icas espor t ivas (Art igo 1º do manifesto de educaçãof ís ica/espor te da UNESCO), houve uma tentat iva de se corresponder a ta isdeterminações. As le is implementadas tentam responder pelas mais dis t in taspossibi l idades de engajamento, como observamos na par te 3. Tubino (1995)relaciona as t rês forma de manifestações de prat ica espor t iva determinadas pelaUNESCO: esporte-educação, esporte par t ic ipação e de lazer e esporteperformance ou de rendimento. Tubino s inal iza ainda o aparecimento de novascorrentes esport ivas: t radicionais o l ímpicas, t radicionais , aventura ou de desaf io,da natureza, der ivados de ar tes marciais , de ident idade cul tura l , in te lectuais , deexpressão cul tural e der ivados de outros espor tes . Para Tubino, vár iasmodal idades poderão ser contempladas em mais de uma destas correntes. Tubino,Manoel José G. (1995) . As transformações do esporte na segunda metade doséculo XX. In : Votre , S. J . & Costa, V. L. de M. Atividades corporais & Esporte .Rio de Janeiro. Edi tor ia Central da UGF. 155-160p.

454

Relembremos que a vitória do Clube de Regatas Vasco da Gama no

campeonato estadual de 1923 foi questionada, pois os integrantes da equipe

não apresentavam o perfil amador que os organizadores queriam manter no

esporte carioca (Caldas, 1990), e o clube português era acusado de praticar

o amadorismo marrom, conforme apontamos no capítulo VI. Os ‘grandes

clubes’ passavam a cortejar os principais atletas, bem como eram

cortejados, principalmente, por aqueles jogadores que viam nestas

agremiações a capacidade de ascensão profissional e social. Nesta busca

recíproca, os ideais amadores pareciam não ser assinalados como

prioridade. Observemos que também já estavam em jogo a possibilidade de

sobrevivência e o acúmulo de capital nos principais clubes da época.

Esta situação, no entanto, despertava a desconfiança quanto ao

vínculo do jogador, que poderia estar sempre disposto a deixar um clube,

caso houve uma proposta mais vantajosa. Essa possibilidade de troca de

clube trazia consigo a suspeita sobre o compromisso e a dedicação.

Observemos que esta situação ocorria mesmo antes do profissionalismo,

quando alguns clubes propunham benefícios aos jogadores dos clubes de

menores expressões.400 Nas partes 2 e 4, pudemos perceber como esta

399 - Negreiros , Pl ín io J . Labr io la de C. (1998). Construindo a nação. Futebol nosanos 30 e 40. In : Motus Corporis . Vol.5 nº 2 . Rio de Janeiro . Editora da UGF. 76-107p.400 - Alguns jogadores recebiam lotes , casas , roupas, re lógios, a l imentos etc paraassumirem compromissos com os clubes. Mesmo aqueles clubes que se opunhamao profiss ional ismo ut i l izavam esta estratégia . (Cunha, s /d) . Jesus (1998)argumenta que aos 18 anos Osmar Fortes Barcelos (Tesourinha) ass inou seupr imeiro contrato prof iss ional com o Internacional de Por to Alegre, onde par te deseu pagamento fo i convert ido em al imentação (1 kg de carne e 2 l i t ros de le i te pordia) . Jesus, Gilmar Mascaranhas de (1988). Futebol e terr i tor ia l idade desegregação racial em Porto Alegre. In : Motus Corporis . Vol .5 nº 2 . Rio deJaneiro. Edi tora da UGF. 49-75p.

455

possibilidade de troca de equipe em busca de melhores salários provocava

(e ainda provocam) essa tensão entre o vínculo do jogador e os clubes.

Diante da remuneração, o jogador teria que se posicionar observando a

lógica profissional, o que parecia comprometer a relação dita amadora, já

que os torcedores passaram a ter dúvidas sobre os vínculos dos jogadores.

Essa dinâmica, no entanto, parece paradoxal. Admitimos que o futebol e o

esporte são um campo de negócios, que possui um mercado com os valores

de uma ética amadora, onde o vínculo e o interesse devem ocorrer como

extensão da identidade da comunidade real ou imaginada. Todavia, os

torcedores questionam o comportamento dos jogadores que admitem ser

contratados pelas equipes rivais, mas nem sempre têm o mesmo tipo de

julgamento, quando sua equipe contrata jogadores de outros clubes, ainda

que sejam rivais. Ao jogador cabe, apesar de a relação ser comercial,

posicionar-se provando estar determinantemente comprometido

afetivamente com o novo clube, como vimos no capítulo XVI sobre a

transferência de Bebeto do Flamengo para o Vasco, como também no

capítulo XVII no caso da contratação de Romário pelo Fluminense. Essa

tensão é ainda maior quando a transferência se dá no plano das rivalidades

locais.401 Para alguns torcedores ficará difícil acreditar na dedicação do

atleta que admite ser vendido para defender as cores de uma equipe arqui-

rival. Quando isso acontece, caso retorne ao clube, em decorrência de outra

401 - Rival idades h is tór ias são aqueles confrontos estabelecidos ao longo do tempo,na emulação entre as pr incipais equipes do Brasi l , em diferentes regiões. Trata-seda tensão entre os c lubes que apresentam his tór ias d is t in tas , seja por fundação oupor preferência popular , como, por exemplo: Flamengo x Vasco; Cruzeiro xAtlét ico; Corinthians x Palmeiras; Grêmio x In ternacional ; Bahia x Vitór ia; Spor tx Náutico, Guarani x Ponte Preta , entre outros.

456

transação, o jogador será alvo da desconfiança e, provavelmente, não mais

conseguirá estabelecer credibilidade junto à torcida.402

Relembremos que Maquiavel alertara o Rei quanto à necessidade

de se repensar sobre a composição dos exércitos, que não deveria ser um

exército profissional (mercenário), pois, se o indivíduo lutava por dinheiro,

então ele poderia também ser comprado pelo oponente. E se pode ser

comprado, provavelmente, não seria impossível se vender aos exércitos

inimigos. Estava em jogo a perspectiva do interesse versus o amor do

soldado. Segundo Maquiavel, a adesão à causa do príncipe deveria ser

consolidada pelo amor. Os moralizadores esportivos contrários ao

profissionalismo do futebol parecem seguir a mesma lógica dos argumentos

de Maquiavel, conforme vimos na parte 2 deste estudo, principalmente nos

capítulos VI, VII, VIII e IX, isto é, a possibilidade de o jogador se corromper

pelas ofertas adversárias. Essa tensão também teria ocorrido na Inglaterra,

conforme vimos no capítulo III, no entanto, os ingleses rapidamente

implantaram ligas profissionais, mesmo mantendo as ligas amadoras.

Pela paixão e pelos sentimentos coletivos de cumplicidade

despertados pelo futebol aos torcedores, parece não ser possível admitir que

o jogador quebre este pacto. Ao ignorar os valores afetivos e admitir os

vínculos financeiros como regentes dos seus compromissos, o jogador gera

a desconfiança quanto a sua representação, a exemplo do incômodo gerado

402 - Vejamos que, apesar de quer ido por par te da torcida Tr icolor , recai sobre oRomário a desconf iança, pelo fato de ter af irmado publ icamente sua l igaçãoemotiva com o Flamengo. Quando foi jogador do Vasco, par te da torcida vascaínatambém colocava sua a tuação em campo sob suspei ta , devido ao vínculo que oprópr io jogador d izia ter com o clube rubro negro.

457

por uma declaração de Felipe, ao se transferir do Vasco para o Flamengo:

“Eu sou o clube que pagar meu salário”.403 Como acreditar nestes jogadores

que colocam os interesses financeiros sobre os valores afetivos? A ânsia por

dinheiro em nossa longa tradição cristã é ainda vista com suspeição em

função do contexto.

Observemos que as análises do comprometimento são quase

sempre ponderadas com lógicas e perspectivas distintas; por um lado, o

jogador na busca de melhores salários e reconhecimento como

personalidade do mundo do futebol e por outro, o torcedor que apenas

busca se deleitar com as façanhas dos seus clubes. A cada início de

temporada, os diversos clubes do país, nas mais distintas divisões,

gerenciam uma espécie de “bolsas de valores”, onde o principal produto é o

jogador, sobretudo os já consagrados, provocando uma efervescência no

debate acerca do interesse e da paixão do jogador com o clube. O período

de contratação faz acirrar as disputas entre os principais clubes opositores

no espaço da mídia. A emulação parecem começar na capacidade de

contratação. 404

Nas descrições dos fatos que apresentamos na parte 2 e,

principalmente, na parte 4, podemos perceber como os termos amador e

403 - Jornal Lance, 17 de janeiro/2003, p .4

404 - O Jornal Lance – diár io dos espor tes – t raz, durante os meses que antecedemas pr incipais competições, uma coluna de duas páginas, denominada Mercado dofutebol – Vaivém do mercado , onde apresenta as vendas, contratações eespeculações dos pr incipais clubes do país . O Jornal do Sport também apresenta acoluna O Mercado da Bola . Os jornais mantêm os seus le i tores informadosdiar iamente sobre as t ransações e especulações que acontecem nos pr incipaisclubes.

458

profissional são apropriados nos discursos jornalísticos acerca do futebol

brasileiro desde os anos iniciais do século XX para qualificar o vínculo do

jogador com o clube.

Pareceu-nos que, antes do profissionalismo, nos anos 30, havia um

debate que se dava no confrontamento entre duas percepções: 1) alguns

dirigentes, os favoráveis à manutenção do regime amador, alegavam que o

dinheiro corromperia e provocaria o descompromisso com o jogo,

acreditando que, pelo imperativo da sobrevivência e satisfação das

necessidades básicas, os jogadores oriundos das camadas populares

poderiam corromper-se. A crítica destes idealizadores românticos à inclusão

de indivíduos das classes populares no futebol sustentava-se no ponto de

vista do desvirtuamento moral que a remuneração dos jogadores poderia

provocar; 2) em outra vertente, estavam aqueles que defendiam o

profissionalismo e acreditavam que a modalidade somente teria progresso

se aceitassem jogadores remunerados, pois, desta forma, poderiam

demonstrar melhores competências, além de facilitar o controle sobre o

rendimento, já que seria exigido empenho dos jogadores, visto que estes

tornariam profissionais a serviço do clube.

Entre as décadas de 20 e de 40, presenciamos nos jornais um

intenso debate entre os dirigentes esportivos, jogadores e os próprios

jornais. Inicialmente, a idéia da profissionalização era colocada pelos atores

conservadores como uma ameaça aos valores sociais (aqueles que o

amadorismo esportivo ajudara a cultivar) e também à própria manutenção do

esporte. Acreditavam que o profissionalismo poderia provocar uma

459

desestruturação dos clubes, ao contrário do que imaginavam os pro-

profissionalistas. Argumentavam que não havia dinheiro para manter os

salários dos jogadores, pois os principais clubes já se encontravam

endividados, o que poderia representar uma derrocada do clube. Nota-se

que a preocupação era que algum efeito perverso pudesse se

desencadeado com o compromisso oficial assumido com a remuneração dos

jogadores. Outros diziam, no entanto, não acreditar que o profissionalismo

fosse se concretizar, tratava-se de uma ilusão, uma vaidade de alguns

pretensiosos dirigentes, que em nada a profissionalização ajudaria no

desenvolvimento do esporte. Portanto, para estes, a mudança de regime

seria uma futilidade. Observemos que os argumentos dos atores contrários à

implantação do regime profissional eram similares aos apontados por

Hirschman (1992), em sua tese da retórica da intransigência. Essa

discussão foi se arrastando até os anos finais da década de 30, quando

perceberam que a profissionalização já era um fato consumado, mesmo que

ainda deixassem margem para os questionamentos dos românticos

descontentes, que fazia dos ideais amadores o princípio de uma ética

esportiva.

Com afirmação do profissionalismo, mudaram os dilemas e os

debates. O esporte não podia prescindir da competência e o profissionalismo

não garantiria a total dedicação. Todavia, a questão era a seguinte: Como

garantir a emoção se os jogadores são trabalhadores que estão buscando

autopromoção e sua sobrevivência? Como aliar a emoção ao dinheiro?

Como combinar e manter a agressividade, a paixão e a emoção do jogador,

460

ingredientes necessários à competição esportiva, com os interesses

racionais de ganho e acumulação presente nas novas relações entre

jogadores, indústrias e clubes? Quando o engajamento era voluntário, não

pairava dúvida sob o comprometimento do jogador perante a dedicação ao

clube, segundo os argumento dos defensores amadoristas. Entretanto, com

a admissão do jogador remunerado, outros pontos passam a margear as

narrativas. O que parece ser o foco da tensão é a possibilidade (ou

impossibilidade) da ‘profissionalização da paixão´.405 Como trabalhar com

emoções racionalizadas pelo interesse?

Parece natural que o esporte, pela sua dinâmica, requeira

agressividade, paixão e amor à causa. Ao se profissionalizar, estes

sentimentos tem que ser mantidos, mas a eles são agregados o comércio,

uma racionalidade econômica e um compromisso profissional. Portanto, o

jogador de futebol tem que agir nesta racionalidade, mas não pode perder a

imagem que possui do vínculo afetivo.

A crítica deferida à comercialização do esporte sustentava-se na

corrosão do comportamento lúdico. Johan Huizinga (1980)406 acreditava que

a atividade lúdica do jogo nos tempos modernos passou a ser submetida à

racionalidade da vida industrial e que o jogo perdeu o espírito lúdico. Neste

ponto de vista apontado por Huizinga, poderíamos pensar que o futebol, ao

se tornar um comércio, deixou desvirtuar os valores sagrados (cultivados

405 - Nesta mesma l inha de raciocínio, poderíamos pensar nas torcidas organizadasque são f inanciadas por alguns dir igentes . A tensão exis tente parece estarrelacionada à legi t imidade deste envolvimento.

406 - Huizinga, Johan. (1980). Homo Ludens : o jogo como elemento da cul tura . SãoPaulo. Perspect iva. A desvir tuação do espír i to do jogo foi motivo de preocupação

461

pelos torcedores) e passou a assumir valores profanos (comércio sustentado

pelos dirigentes dos clubes e pelos próprios jogadores). Talvez, estejamos

diante de um dos suportes que as narrativas jornalistas adotam em suas

análises. Os argumentos de Huizinga a respeito da perda do espírito lúdico

parecem equivocados. Uma narrativa romântica que despreza que o prazer

possa ser aliado ao fator financeiro. Nesta perspectiva, o ganhar dinheiro no

espaço do prazer parece ser imoral.

Observemos que as narrativas jornalísticas sobre o futebol são

desenvolvidas, na maioria das vezes, pelo viés romântico. O espaço do jogo

surge mitificado e, como tal, parece criar um bloqueio para as ações

determinantemente econômicas. Possivelmente a estratégia jornalística

opera respondendo (e correspondendo) aos anseios românticos dos

torcedores.

No período do amadorismo, estavam presentes imagens como:

amor, paixão, educação, dedicação incondicional; enquanto no

profissionalismo, passou a destacar outras imagens: técnica, esforço,

responsabilidade, competência, racionalidade etc. Entretanto, até que se

adquirisse a legitimidade profissional, o jogador de futebol recebia alguns

rótulos que o comprometiam socialmente, como: mercenário, malandro,

vadio etc. Até o período da tensão da mudança de regime, o fato de o

jogador receber para jogar maculava-o moralmente ou o tornava suspeito. O

esporte deveria representar, como já observamos em outro momento, uma

complementação dos espaços de distinção, e, portanto, aqueles que

e cr í t ica de Johan Huizinga (1980), quando af irmou que o espír i to do prof iss ionalnão é mais o espír i to lúdico, pois lhe fal ta espontaneidade e despreocupação.

462

recebiam para o jogo estavam comprometendo-o, pois demonstravam a

incapacidade de refinamento social e de posse que os permitiam transitar

entre os membros da elite. O campo de futebol já não conseguia mais

representar um espaço de refinamento, passando a permitir o

entrelaçamento de indivíduos de culturas e origens sociais diferentes.407

Nos quadros abaixo (10, 11, 12 e 13), relacionamos as imagens

sobre o amadorismo e o profissionalismo que apareceram nos jornais nos

períodos pesquisados.

Observemos que, com o advento do regime profissional, não se

descartaram as imagens iniciais, principalmente relacionadas aos

sentimentos afetivos, mas estas se amoldaram à nova dinâmica social pela

qual o esporte foi conduzido.

Quadro 10 - Imagens relacionadas ao amadorismo e ao profissionalismo antes daoficialização do regime profissional (até 1933) na percepção dos interessados namanutenção do regime amadorAmadorismo Profissionalismo- Amor ao clube- Divertimento- Espírito de sacrifício- Gastos pessoais (prejuízos)- Carreiras curtas por lesões- Restauração moral- Compromisso moral- Esporte sadio- Esporte como saúde – Remédio- Jogo sem obrigação formal(independente)- Esporte pelo esporte

- Regime de gorjetas- Liberação do empregador para os treinos- Suborno- Doença social- Malandros

407 - Assaf (2003) argumenta que o profiss ional ismo ter ia resolvido, em par te , umadas af l ições dos sócios el i t is tas , pois , na condição de prof iss ionais dos clubes, osjogadores passar iam a entrar no clube pelo por tão dos funcionár ios. Desta forma,não precisar iam mais ter que dividir a role ta de entrada com os jogadores , “umato de indisfarçável constrangimento .” (p.14) Assaf , Rober to. (2003). Setedécadas de futebol prof iss ional . In : Jornal Lance. 18 de fev/2003.

463

- Gosto pela competição- Distração

Quadro 11 – Imagens relacionadas ao amadorismo e ao profissionalismo depoisda oficialização do profissionalismo, durante o período de implantação doprofissionalismo, na percepção dos interessados pela manutenção do regimeamador

Amadorismo Profissionalismo- Compromisso- Falta de profissionalismo- Iniciante- Categorias de base- Esportes olímpicos

- Uma praga- Ameaça ao futuro do jogo- Imoralidade- Maculação do espírito amador- Mercantilização do esporte- Jogadores malandros- Jogadores vadios- Resultados dos jogos sobre suspeita- Futebol tornou-se uma empresa comercial- Mercenários

Quadro 12 – Imagens relacionadas ao amadorismo e ao profissionalismoantes da oficialização do regime profissional (até 1933), na percepção dosinteressados pela implantação do profissionalismo

Amadorismo Profissionalismo- Falta de compromisso- Falta de qualidade técnica- Amadorismo marrom- Falsidade- Remuneração em forma de ‘bicho’

- Melhoria do espetáculo- Compromisso dos jogadores- Compromisso do clube com os jogadores- Transparência nas ações- Desenvolvimento do esporte- Garantia de manutenção dos principaisjogadores (evitando o êxodo)

Quadro 13 – Imagens relacionadas ao amadorismo e ao profissionalismodepois da oficialização do regime profissional, na percepção dosinteressados pela implantação do profissionalismo

Amadorismo Profissionalismo- Falta de compromisso- Falta de qualidade técnica- Dedicação descompromissada

- Competência esportiva- Competência técnica- Organização

464

- Esforço- Responsabilidade- Racionalidade- Transparência

Nota-se que as tensões e os debates originados nas décadas de 20

e 30, muitas vezes, se apoiavam no discurso do amadorismo apenas como

pretexto, uma estratégia retórica para a manutenção ou retomada do poder

que estava com os adversários. Percebemos isso dentro da METRO e

também na AMEA.

Observemos que o amadorismo e o profissionalismo formam uma

narrativa polissêmica que insere o esporte na esfera do consumo, da

indústria do entretenimento, ao mesmo tempo que possibilita a

sedimentação de sentimentos identitários, vinculada a grupos, clubes ou

Estado-Nação.

Na atualidade, apesar de consolidado o profissionalismo, o

interesse financeiro ainda é visto como comprometedor do vínculo do

jogador com o clube e está fadado à crítica e desconfianças daqueles atores

que se sustentam nos discursos românticos. O que parece confuso e coloca

por terra as análises de Huizinga é o fato de que ambos, amadorismo e

profissionalismo, continuarem suscitando os sentimentos coletivos e de

cumplicidade, mesmo que o fator econômico entre em contradição, em

alguns momentos, com os valores afetivos.

Parecebemos que a imprensa reflete em sua narrativa um

sentimento expresso no discurso do homem comum. Entretanto, esses

465

sentimentos refletidos parecem ter surgido do embate originado no seio da

imprensa, no período em que o futebol passou a representar para a

imprensa um mecanismo de circulação dos seus periódicos, ainda nas

primeiras décadas do século XX. Naquele momento, os formadores de

opinião apresentavam seus pontos de vista, que serviam como forma de

medir força com os responsáveis pelos periódicos concorrentes. Estava em

jogo não apenas o rumo do esporte, mas também o respaldo público dos

principais jornais.

O profissionalismo parece ter surgido como uma nova regra que se

impunha na organização esportiva mundial, principalmente pela valorização

do espetáculo. O profissionalismo seria a viabilidade de comercialização

deste espetáculo. A imagem espetacular passou a produzir interesses e

valores diferenciados. Hoje, o esporte não pode ser pensado sem vinculá-lo

ao mundo do negócio, a indústria e a mídia.

Na lógica de uma sociedade capitalista, em que o esporte foi

transformado em fonte de lucro, os ideais heróicos e de honra relacionados

ao amadorismo tiveram que combinar com o interesse. Obviamente que

para o torcedor isso pode ser contraditório quando pensa essa relação a

partir da moral católica de Santo Agostinho. Para a imprensa, no entanto,

essa tensão parece ser útil, na medida em que precisa dela para manter

acessa essa polêmica orientada pela demanda de seus leitores. O discurso

amador nessa perspectiva racional proveniente do interesse passou a ser

funcional, uma espécie de regulação do comportamento dos profissionais.

466

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