159
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA VLADSON PATERNEZE CUNHA DO LIXÃO AO ATERRO: UMA HISTÓRIA SOCIOAMBIENTAL DE GUARAPUAVA/PR (1971-2011) LONDRINA 2014

Vlad Son Pc Un Had is Serta 2014

Embed Size (px)

DESCRIPTION

LIxo

Citation preview

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA

    VLADSON PATERNEZE CUNHA

    DO LIXO AO ATERRO: UMA HISTRIA SOCIOAMBIENTAL DE

    GUARAPUAVA/PR (1971-2011)

    LONDRINA

    2014

  • VLADSON PATERNEZE CUNHA

    DO LIXO AO ATERRO: UMA HISTRIA SOCIOAMBIENTAL DE

    GUARAPUAVA/PR (1971-2011)

    Dissertao apresentada como requisito

    parcial obteno do grau de mestre em

    Histria Social do curso de Ps-

    graduao em Histria da Universidade

    Estadual de Londrina.

    Orientador: Dr. Jozimar Paes de

    Almeida

    LONDRINA

    2014

  • Catalogao elaborada pela Diviso de Processos Tcnicos da Biblioteca Central

    da Universidade Estadual de Londrina

    Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)

    TERMO DE APROVAO

    VLADSON PATERNEZE CUNHA

    C972dCunha, VladsonPaterneze.

    Do lixo ao aterro : uma histria socioambiental de Guarapuava/PR (1971-2011)

    / VladsonPaterneze Cunha. Londrina, 2014. 158 f. : il.

    Orientador: Jozimar Paes de Almeida.

    Dissertao (Mestrado em Histria Social) Universidade Estadual deLondrina,

    Centro de Letras e Cincias Humanas. Programa de Ps-Graduao em Histria

    Social, 2014.

    Inclui bibliografia.

    1. Histria social Teses. 2. Polticas pblicas Guarapuava (PR) Teses. 3. Lixo Guarapuava (PR) Teses. 4. Questo ambiental Teses. I. Almeida,Jozimar Paesde. II. Universidade Estadual de Londrina. Centro de Letras e Cincias Humanas.

    Programa de Ps-Graduao em Histria Social. III.Ttulo.

    CDU 930.1:628.4

  • DO LIXO AO ATERRO: UMA HISTRIA SOCIOAMBIENTAL DE

    GUARAPUAVA/PR (1971-2011)

    Dissertao aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre

    no Curso de Ps-Graduao em Histria Mestrado em Histria Social, da

    Universidade Estadual de Londrina, pela seguinte banca examinadora:

    Orientador Prof. Dr. Jozimar Paes de Almeida

    Universidade Estadual de Londrina - UEL

    Prof. Dr. Maria Amlia Mascarenhas Dantes

    Universidade de So Paulo USP

    Prof. Dr. Zueleide Casagrande de Paula

    Universidade Estadual de Londrina - UEL

    Londrina, 28 de maio de 2014.

  • PARA MINHA ME E MEU PAI.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao meu orientador Dr. Jozimar Paes de Almeida por toda a amizade, pacincia e

    dedicao ao seu ofcio de educador.

    Ao meu amigo Everton Arajo Carneiro pela generosidade em me acolher por

    tanto tempo em seu lar.

    Ao Edson Holtz pela amizade sincera e por revisar o texto contribuindo com

    suas observaes.

    Aos funcionrios do Arquivo Histrico Municipal de Guarapuava, Cmara dos

    Vereadores de Guarapuava, Biblioteca Municipal de Guarapuava e da Secretaria de Ps-

    graduao da Universidade Estadual de Londrina pelo atendimento sempre prestativo e

    pela dedicao.

    CAPES por proporcionar as condies materiais para este trabalho poder ser

    desenvolvido.

    minha filha Maria Carolina Stader Cunha por suportar a ausncia sem

    reclamar e sorrir a cada chegada.

    Elisabeth Stader, por tudo.

    Aos meus amigos que sempre acreditaram na minha capacidade e no deixaram

    que eu me desanimasse.

    todos aqueles que direta ou indiretamente ajudaram a fazer com que esse

    trabalho pudesse ser realizado.

    todos aqueles que duvidaram...

  • A prata tem suas minas, e o ouro tem o lugar onde refinado. O

    ferro extrado da terra, e ao fundir-se a pedra, dela sai o

    bronze. O homem pe limite s trevas, e explora at o extremo

    limite as grutas mais sombrias. Perfura poos em lugares

    inacessveis, sem apoio para os ps, balanando suspenso longe

    dos homens. A terra que d o po, por baixo devorada pelo

    fogo; suas pedras so jazidas de safiras, e seus torres contm

    pepitas de ouro.

    O abutre no conhece esse caminho, e o olho do falco no

    consegue enxerg-lo; as feras no o trilham, nem o leo o

    atravessa. O homem estende a mo contra a rocha, e revira as

    montanhas pela raiz; abre galerias na pedra, atento a tudo o que

    precioso; explora as nascentes dos rios, e traz luz o que est

    escondido.

    A sabedoria, porm, de onde tirada? Onde est a jazida da

    inteligncia?

    J 28, 1-12.

  • RESUMO

    Partindo do pressuposto de que possvel historicizar o lixo e as relaes sociais das

    quais resulta, demonstrando assim suas inter-relaes com outros temas sociais,

    ambientais, polticos e econmicos nas sociedades capitalistas, procuramos

    compreender como foram formadas as polticas pblicas ambientais relativas aos

    resduos slidos urbanos na cidade de Guarapuava, interior do estado do Paran, entre

    os anos de 1971 e 2011. Utilizamos como fonte histrica os planos de gerenciamento de

    resduos, leis, debates legislativos em atas, relatrios da administrao municipal e

    jornais locais demonstrando de que forma o lixo se tornou um problema social, poltico

    e ambiental exigindo por parte dos representantes do Estado solues adequadas.

    Empregando um referencial terico-metodolgico baseado no materialismo histrico,

    demonstramos que o problema do lixo se agrava na sociedade capitalista devido ao

    aumento da produo e do consumo que desconsidera os efeitos negativos de tais

    prticas para a natureza e para a sociedade. Assim, as solues para os problemas

    relacionados ao lixo no meio urbano so vistashegemonicamente porum aspecto

    tcnico-econmico, segundo o qual todos os problemas so passveis de serem

    resolvidos, bastando no caso do lixo, melhorar os sistemas de reciclagem ou implantar

    um aterro sanitrio, opo esta adotada em Guarapuava.

    Palavras-chave: Histria, Polticas Pblicas, Lixo, Guarapuava.

  • ABSTRACT

    Assuming that it is possible to historicize the trash and the social relations of which

    results, thus demonstrating their interrelations with other social, environmental, political

    and economic issues in capitalist societies, we seek to understand how public

    environmental policies were formed waste municipal solid in Guarapuava, the state of

    Paran, between the years 1971 and 2011. Used as a historical source plans for waste

    management, laws, legislative debates in minutes, reports of municipal administration

    and local newspapers demonstrating how garbage has become a social, political and

    environmental problem requiring by representatives of the State appropriate solutions.

    Employing a theoretical and methodological framework based on historical materialism,

    we demonstrated that the garbage problem worsens in capitalist society due to increased

    production and consumption that disregards the negative effects of such practices for

    nature and society. Thus, the solutions to the problems related to garbage in urban areas

    are seen by a hegemonic techno-economic, whereby all problems are likely to be

    resolved aspect, just in case the waste, improve recycling systems or deploy a landfill

    health, this option adopted in Guarapuava.

    Keywords: History, Public Policy, Garbage, Guarapuava.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Mapa 01 Localizao do municpio de Guarapuava e do permetro urbano................24

    Mapa 02 Disposio de resduos slidos urbanos no estado do Paran......................86

    Mapa 03 Localizao do municpio de Guarapuava....................................................89

    Foto 1 Lagoa das Lgrimas.........................................................................................95

    Foto 2 Parque do Lago.................................................................................................99

    Foto 3 Aterro Sanitrio e lixo..................................................................................117

  • LISTA DE TABELA

    Tabela 1 Evoluo populacional do municpio de Guarapuava e do Paran................92

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    ABRASP - Associao Brasileira de Prefeitos

    ACG - Associao Conservacionista de Guarapuava

    ACPG - Associao dos Catadores de Papel de Guarapuava

    ADEA - Assessoria de Defesa e Educao Ambiental

    BMS - Bristol-Myers-Squibb

    BP - British Petrolium

    CAPES - Coordenao de Pessoal de Nvel Superior

    CEDOC - Centro de Documentao e Memria

    CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente

    COPEL - Companhia Paranaense de Energia

    EMATER - Instituto Paranaense de Assistncia Tcnica e Extenso Rural

    FAFIG - Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Guarapuava

    FUBEM - Fundao do Bem Estar do Menor

    FURG - Fundo de Urbanizao de Guarapuava

    GAECO - Grupo Especial de Represso ao Crime Organizado

    IAP - Instituto Ambiental do Paran

    IBAMA - Instituto Nacional do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis

    IBDF - Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal

    ICMBio - Instituto Chico Mendes de Conservao da Biodiversidade

    IDH - ndice de Desenvolvimento Humano

    ITC - Instituto de Terras e Cartografia

    MNCR - Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Reciclveis

    ONU - Organizao das Naes Unidas

    PEDU - Programa de Regionalizao do Desenvolvimento Urbano

    PROICS - Programa Integrado de Conservao de Solos

    PROMACO - Programa de Preservao dos Mananciais pelas Comunidades

  • RIO-92 - Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento

    RMC - Regio Metropolitana de Curitiba

    SANEPAR - Companhia de Saneamento do Paran

    SEDU - Secretaria de Desenvolvimento Urbano

    SEMA - Secretaria Especial do Meio Ambiente

    SEMA-PR - Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hdricos do Paran

    SEMAFLOTUR - Secretaria de Meio Ambiente, Desenvolvimento Florestal e Turismo

    SISNAMA - Sistema Nacional do Meio Ambiente

    SUDEPE - Superintendncia do Desenvolvimento da Pesca

    SUDHEVEA - Superintendncia de Desenvolvimento da Borracha

    SUREHMA - Superintendncia de Recursos Hdricos e Meio Ambiente

    SURG - Companhia de Servios de Urbanizao de Guarapuava

    UNESP - Universidade Estadual Paulista

    UNICENTRO - Universidade Estadual do Centro Oeste

    USP - Universidade de So Paulo

  • SUMRIO

    INTRODUO.............................................................................................................14

    CAPTULO I A QUESTO AMBIENTAL E AS POLTICAS PBLICAS

    COMO FORMA DE COMPREENSO HISTRICA DA SOCIEDADE..............32

    1 A questo ambiental e a (des)ordem planetria..................................................34

    2 O Estado como indutor de polticas pblicas e normas para a sociedade..........43

    2.1 Contribuies para uma definio do Estado na Sociedade..................................44

    2.2 O Estado capitalista e a elaborao de Polticas Pblicas....................................48

    3 Contribuio do Ambientalismo para a formao de polticas pblicas

    ambientais em mbito mundial...................................................................................53

    CAPTULO II ALGUNS CAMINHOS DAS QUESTES AMBIENTAIS E DO

    LIXO NAS POLTICAS PBLICAS.........................................................................60

    1 Polticas pblicas, meio ambiente e o lixo no Brasil............................................62

    2 Apontamentos da questo ambiental e do problema do lixo no Paran............71

    CAPTULO III OS CAMINHOS DO LIXO NA SOCIEDADE

    GUARAPUAVANA......................................................................................................88

    1 Guarapuava: natureza e histria..........................................................................88

    2 Consideraes a respeito de questes ambientais em Guarapuava....................93

    3 Aes do poder pblico relacionadas ao problema do lixo em Guarapuava...107

    CAPTULO IV DO LIXO AO ATERRO: UMA HISTRIA DO LIXO EM

    GUARAPUAVA..........................................................................................................116

    1 Uma reflexo a respeito da questo do lixo em Guarapuava...........................117

    2 Uma histria do lixo em Guarapuava (1971-2011)..........................................123

    2.1 O lixo ao lado da minha casa: 1971-1976........................................................124

    2.2 O problema do lixo se torna o problema do Lixo (1977-1993).........................132

    2.3 O fim do lixo: a epopeia do aterro sanitrio (1993-2011)...............................138

    CONSIDERAES FINAIS....................................................................................148

    FONTES......................................................................................................................153

    BIBLIOGRAFIA........................................................................................................154

  • 14

    INTRODUO

    [...]

    - Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.

    - . Sim. Bem. Eu fico muito em casa. No saio muito. Sabe como .

    - Namorada?

    - No.

    - Mas h uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. At

    bonitinha.

    - Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.

    - Voc no rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, voc quer

    que ela volte.

    - Voc j est analisando o meu lixo!

    - No posso negar que o seu lixo me interessou.

    - Engraado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de

    conhec-la. Acho que foi a poesia.

    - No! Voc viu meus poemas?

    - Vi e gostei muito.

    - Mas so muito ruins!

    - Se voc achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles s estavam

    dobrados.

    - Se eu soubesse que voc ia ler...

    - S no fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que,

    no sei: o lixo da pessoa ainda propriedade dela?

    - Acho que no. Lixo domnio pblico.

    - Voc tem razo. Atravs do lixo, o particular se torna pblico. O que

    sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo

    comunitrio. a nossa parte mais social. Ser isso?

    - Bom, a voc j est indo fundo demais no lixo. [...]

    O lixo Luis Fernando Verssimo

    Estaremos vendo lixo em todos os lugares? Ou ser que nas lixeiras, os restos

    tm algo a nos dizer? O que fazemos com os dejetos, produzidos diariamente em nossas

    casas? Em nossas cidades? Qual a responsabilidade do sistema produtivo pela gerao

    de resduos? Ser o consumo globalizado responsvel pela cultura do desperdcio e da

    obsolescncia, que tanto desperdcio gera? Estaremos dispostos a mudar nossa forma de

    viver e produzir para minimizar este dilema social do lixo? Afinal, todos somos parte

    desse problema e tambm da soluo.

    H pessoas, no entanto, que agem como se no se importassem com o fato de

    suas aes contriburem para agravar os infortnios relacionados ao lixo. Nossos

    concidados, talvez no tenham a percepo de que existe o problema. Quando andamos

    pelas ruas da cidade vemos nas lixeiras e caladas defronte as casas sacolas e sacos

    plsticos pretos que sero recolhidos pelo caminho compactador e tero como destino

    mais provvel algum lixo a cu aberto ou talvez um Aterro Sanitrio.

  • 15

    No necessrio abrir os sacos, ou vasculhar o lixo alheio, como as

    personagens de Verssimo fizeram, para saber da vida dos vizinhos e perceber que

    existem ali materiais reciclveis e outros resduos que poderiam no estar no lixo

    comum que recolhido pelo caminho da limpeza pblica.

    Ao andar pelas ruas tambm vemos que muita coisa que deveria estar nas

    lixeiras, onde elas existem, est nas caladas, nas ruas e nos gramados. Nas lixeiras

    coloridas (verde, amarela, vermelha, azul e marrom), da Coleta Seletiva, ser que os

    materiais ali depositados, esto depositados na cor correta? Ser que na verde

    encontraremos vidro, na azul papel, na vermelha plstico, na amarela metais e na

    marrom resduos orgnicos? Em todas as que olhamos, motivados por uma curiosidade

    cientfica, tinha um pouco de tudo em todas as cores.

    Os abundantes terrenos sem construo e prdios desabitados, mas que

    possuem proprietrio, so fruto da expanso urbana improvisada conjugada com a

    lenincia regulatria e fiscalizadora estatal, intensificada pela especulao imobiliria.

    Acabam se transformando em baldios pela ao natural e inao possessria, ou

    depsitos de lixo clandestino pela ao humana circunvizinha. Enquanto isso, seus

    proprietrios esperam o melhor momento para vend-los, ou us-los em benefcio

    prprio, sem se importar com o mato e o lixo que neles abundam.

    O mesmo problema dos baldios visto em reas pblicas, principalmente na

    periferia urbana onde, sob o manto da escurido e do anonimato, so despejados

    entulho, mveis velhos, restos de construo e uma infinidade de resduos que ajudam a

    deixar essas reas muito parecidas com pequenos lixes a cu aberto. Acreditamos que

    essa realidade no seja exclusiva de uma nica cidade brasileira.

    Ao realizarmos uma pesquisa histrica, iniciamos com perguntas, hipteses e

    algumas certezas que podem sugerir certa simplicidade, mas que, no entanto, buscam

    uma compreenso complexa da sociedade. Dessa maneira, a busca por um

    conhecimento social mais abrangente nos obrigou a aprofundar nossa relao com o

    campo da histria e nos colocou em contato com certas dificuldades, inerentes ao

    trabalho dos profissionais que nele se aventuram.

    No caminho percorrido para encontrar, acessar, ler, selecionar, analisar e

    interpretar as fontes, algumas questes so respondidas, novas questes so propostas e

    muitas dvidas nos assolam. Confrontamos documentos, investigamos hipteses,

    elencamos prioridades e definimos caminhos para produzir um texto que possa

    contribuir com a transmisso de informaes relevantes sobre o tema escolhido. Ao

  • 16

    final temos um trabalho que, longe de ser perfeito e definitivo, se apresenta aberto a

    novos caminhos e possibilidades de avano do conhecimento.

    A operao historiogrfica1 apresenta-se a ns como uma relao entre um

    lugar social, os procedimentos de anlise utilizados no trato das fontes e o texto

    historiogrfico que informa os leitores a respeito daquilo que se pesquisou e que agora o

    historiador relata/informa. Priorizamos o entendimento do lugar social e o entendemos

    como lugar socioeconmico, poltico e cultural que o ponto articulador de toda

    pesquisa historiogrfica. O lugar social o que instaura os mtodos, delineia os

    interesses, prope e organiza as perguntas s fontes e encaminha a escrita.

    De fato, a escrita histrica ou historiadora permanece controlada pelas prticas das quais resulta; bem mais do que isto, ela prpria

    uma prtica social que confere ao seu leitor um lugar bem

    determinado, redistribuindo o espao das referncias simblicas e

    impondo, assim, uma "lio"; ela didtica e magisterial. Mas ao

    mesmo tempo funciona como imagem invertida; d lugar falta e a

    esconde; cria estes relatos do passado que so o equivalente dos

    cemitrios nas cidades; exorcisa e reconhece uma presena da morte

    no meio dos vivos.2

    A escrita resulta das prticas sociais que impe seus valores, deixando contudo

    suas faltas e defeitos mostra. O lugar social define aquilo que possvel ou impossvel

    numa pesquisa, o que permitido e o que proibido e o que poder ser publicado ou

    no. Entendemos que articular o lugar social com a histria uma condio

    fundamental para uma interpretao profcua da sociedade.

    Na busca que empreendemos em nosso trabalho, concentramos nossa ateno

    na possibilidade de historicizar um objeto significativo para entender a sociedade.

    Nosso objeto de estudo o lixo e as possibilidades de interpretao de questes sociais,

    ambientais e polticas atravs das relaes humanas das quais resulta esse produto

    social.

    Mesmo nas mais simples atividades humanas produzimos lixo. Isto se

    d tanto na preparao como ao fim da vida til daquilo que

    processado. Ao prepararmos nossos alimentos, por exemplo, sobram

    cascas, folhas, peles, etc e, ao final, ossos, sementes e etc. O

    metabolismo de nosso corpo, por sua vez, produz dejetos (fezes, urina,

    secrees diversas). Tanto o lixo como os dejetos devem ser

    segregados e destinados a locais onde no criem problemas para as

    1CERTEAU, M. de. A escrita da Histria, Traduo de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro:

    Forense Universitria, 1982. 2Idem, p.91.

  • 17

    atividades comunitrias. Ao fim de nossa existncia, deixamos nossos

    restos mortais, nosso corpo.3

    Eigenheer nos chama a ateno para a questo do lixo mostrando sua inevitvel

    presena junto sociedade e aos seres humanos. Em qualquer atividade que realizemos,

    produzimos lixo ou dejetos. O autor destaca que dentro das dinmicas sociais as prticas

    de recolhimento e destinao do lixo ocupam lugar de destaque. Apesar da importncia

    que adquire no ordenamento urbano, e de estar presente em todas as sociedades, o lixo e

    os dejetos no so temas bem vistos.

    Ao longo dos sculos, no encontramos com frequncia autores que

    dediquem a ele mesmo parte do seu tempo. Ainda hoje no corrente

    se tratar com profundidade a questo fora do mbito tcnico. As

    dificuldades para se tratar do tema decorrem provavelmente do fato de

    ele apontar para a finitude de nossas produes e de nossa prpria

    vida, o ciclo natural de vida e morte. Afinal, o medo e a incerteza

    quanto ao desconhecido podem ter levado o ser humano, j em tempos

    imemoriais, a olhar os dejetos e o lixo com insegurana, como sinais

    de precariedade. Fezes, restos de comida, cadveres podem ser

    ameaas no s visuais e olfativas.4

    De fato, como aponta Eigenheer, a finitude da vida, as incertezas do

    desconhecido, o medo e o asco causado pelos dejetos e pelos restos podem ser as causas

    do pequeno interesse que assuntos como esses despertam nos pesquisadores e nas

    pessoas. Compartilhamos assim desta limitao de obras que tivessem o lixo como

    objeto de uma pesquisa, principalmente de histria. A historiografia estuda o tema de

    maneira indireta, quando se estuda o processo de urbanizao as populaes

    marginalizadas, por exemplo.

    Algumas obras ainda que no sejam de historiadores, como o caso de

    Eigenheer que filsofo, so dedicadas ao tema. O autor traa um roteiro histrico,

    desde as civilizaes da Antiguidade at o sculo XX, demonstrando numa perspectiva

    histrica a continuidade do enfrentamento do problema de dar destino a essa

    inexorvel produo humana.

    A continuidade histrica de problemas e a existncia de prticas especficas de

    limpeza nas cidades em vrios perodos, alm de regras e legislaes que, apesar de

    endurecer as penalidades aos infratores no conseguiam obrigar a populao a cumpri-

    las so demonstradas pelo autor, inclusive quando trata do contexto brasileiro, em

    captulo especfico. Eigenheer estabelece um relato histrico amplo e diversificado, 3EIGENHEER, E. M.. Lixo: a limpeza urbana atravs dos tempos. Porto Alegre: Grfica Pallotti,

    2009, p.15. 4Idem, p.17.

  • 18

    segundo ele, mais informativo e com diversos recursos iconogrficos para instigar

    leitores e subsidiar debates a respeito da histria da limpeza urbana.

    Um levantamento feito em bancos de dados de universidades e da Coordenao

    de Aperfeioamento do Pessoal de Nvel Superior (CAPES) nos mostrou uma intensa

    produo cientfica relacionada ao tema, onde encontramos as mais variadas leituras,

    interpretaes e preocupaes de diversas reas do conhecimento. Podemos citar, por

    exemplo, pesquisas de administrao5, arqueologia

    6, arquitetura

    7, agronomia

    8,

    engenharia ambiental9, sociologia

    10, direito

    11, engenharia mecnica

    12 e oceanografia

    13

    como algumas delas.

    Dentre os poucos trabalhos de histria encontrados e disponveis, os que

    contriburam com nossa pesquisa e nos elencaram possveis perspectivas de

    interpretao, foram os de Miziara14

    e Couto15

    . Esses trabalhos foram fundamentais para

    que pudssemos vislumbrar nosso objeto e as relaes sociais, polticas, econmicas e

    ambientais envolvidas com a sua dinmica dentro da cidade.

    Miziara traa as trajetrias do lixo em So Paulo, principalmente durante a

    dcada de 1970, demonstrando que a preocupao com os restos tambm estava

    presente em pocas anteriores na cidade. Atravs dos ordenamentos legislativos

    procurou-se assegurar a limpeza e a salubridade da cidade evitando-se epidemias.

    Campanhas e propagandas governamentais tentaram embutir valores de higiene e

    civilidade na populao e mudanas tcnicas objetivaram dar cabo dos restos, a

    5ARRUDA, J.A..Administrao do lixo: eis a questo!. Especializao (Administrao gerencial).

    Guarapuava:UNICENTRO, 1998. 6ANDRADE, A.W.O.. Arqueologia do lixo: um estudo de caso nos depsitos de resduos slidos da

    cidade de Mogi das Cruzes em So Paulo. 2006. 145f.. Tese (Doutorado Arqueologia). Museu de

    Arqueologia, USP, So Paulo, 2006. 7CORDEIRO, M.P.. O lixo urbano: fonte de matria-prima reciclada e o caso do vidro. 1993. 53f.

    Dissertao (Mestrado Arquitetura e Urbanismo). USP, So Paulo, 1993. 8KROM, V.. Estudo da viabilidade econmica de uma usina de compostagem de lixo. 1987. 74f.

    Dissertao (Mestrado Agronomia). Unesp, Botucatu, 1987. 9VILLELA, S.H.. Validao social de polticas de resduos slidos domiciliares. 1998. 188f. Tese

    (Doutorado Engenharia Ambiental). USP, So Paulo, 1998. 10

    KUHNEN, A.. Reciclando o cotidiano: o lixo como poltica pblica e como representao social.

    1994. 144f. Dissertao (Mestrado Sociologia Poltica). UFSC, Florianpolis, 1994. 11

    MAIA FILHO, R.. O lixo visto sob uma outra tica jurdica. 2005. 279f. Tese (Doutorado Direito).

    PUC, So Paulo, 2005. 12

    FERRAZ, J.L.. Modelo para avaliao da gesto municipal integrada de resduos slidos urbanos.

    2008. 241f. Tese (Doutorado Engenharia Mecnica). Unicamp, Campinas, 2008. 13

    ARAJO, M.C.B. de. Resduos slidos em praias do litoral sul de Pernambuco: origens e

    consequncias. 2003. 104f. Dissertao (Mestrado Oceanografia). UFPE, Recife, 2003. 14

    MIZIARA, R. Nos rastros dos restos: as trajetrias do lixo na cidade de So Paulo. So Paulo:

    EDUC, 2001. 15

    COUTO, A. M. S.. Das sobras indstria da reciclagem: a inveno do lixo na cidade (Uberlndia-

    MG, 1980-2002). 2006. 336f. Tese (Doutorado Histria Social). PUC, So Paulo: 2006.

  • 19

    exemplo dos incineradores de lixo. A autora tambm destaca as relaes entre os

    poderes pblico e privado e a transformao da coleta de lixo em um grande negcio,

    vinculado a um maior controle e planejamento da urbe.

    Couto trabalha o lixo em outro espao, a cidade de Uberlndia, em Minas

    Gerais. Suas reflexes enfatizam problemas e situaes que demonstram uma disputa

    entre os administradores e a populao em que, estes querem continuar com seus

    hbitos e padres de vida tradicionais e aqueles querem impor uma nova lgica de

    ordenao e uso dos espaos urbanos. A autora procura destacar em seu trabalho o

    problema do lixo hospitalar na cidade e a vivncia dos catadores de materiais reciclveis

    envolvidos com o trabalho.

    Couto demonstrou um agravamento da situao da coleta e da disposio final

    dos resduos durante a dcada de 1980 que culminou com a construo de um aterro

    sanitrio na cidade para solucionar a questo. Atravs de uma srie de entrevistas com

    os catadores, traz a pblico as opinies deles destacando as agruras do trabalho nesta

    atividade e o componente de anonimato que tanto o lixo quanto os trabalhadores que

    o manipulam adquirem perante a populao.

    Outros autores entre os quais destacamos Thomas16

    , Morin17

    , Tembil18

    ,

    Ribeiro19

    e Gonalves20

    nos auxiliaram no entendimento de questes relacionadas

    histria social do objeto, s mudanas na relao homem/natureza, na busca de

    entendimento da complexidade planetria dos temas ambientais e no conhecimento da

    cidade e dos problemas que a atingem.

    Podemos assim afirmar que ao entendermos o lixo como expresso da

    sociedade, tivemos a oportunidade de compreender as relaes sociais e desenvolver um

    perfil da cidade. Investigar como as autoridades pblicas equacionaram os problemas do

    lixo propiciou uma oportunidade de perceber os conflitos polticos, levados a cabo

    dentro da cidade e da prpria administrao pblica.

    Tal qual outros assuntos, tidos como bizarros, ou melhor dizendo, como outros

    assuntos considerados tabu, o lixo e as relaes humanas que o produzem, nos fazem

    16

    THOMAS, K.. O homem e o mundo natural: mudanas de atitude em relao s plantas e aos

    animais, 1500-1800. Traduo Joo Roberto Martins Filho. So Paulo: Companhia das Letras, 1988. 17

    MORIN, E.; KERN, A.B..Terra-Ptria. Traduo de Paulo Neves. Porto Alegre: Sulina, 1995. 18

    TEMBIL, M.. Em busca da cidade moderna: Guarapuava... recompondo histrias, tecendo

    memrias. Guarapuava/PR: UNICENTRO, 2007. 19

    RIBEIRO, W. C.. A ordem ambiental internacional. So Paulo: Contexto, 2001. 20

    GONALVES, C.W.P.. O desafio ambiental. Rio de Janeiro: Record, 2004. (Os porqus da desordem

    mundial. Mestres explicam a globalizao)

  • 20

    pensar que realmente muito difcil fixar uma escala de importncia para o interesse do

    historiador, que no seja de alguma maneira subjetiva. A subjetividade da histria

    advm do fato de ser apenas resposta a nossas indagaes. materialmente impossvel

    fazer todas as perguntas e descrever todos os fatos do passado.

    Ao escolhermos um tema de pesquisa, tomamos a deciso em funo de

    situaes objetivas e subjetivas como o gosto pessoal, o domnio do contedo, as

    leituras anteriores que temos, as convices religiosas ou polticas e a facilidade ou

    disponibilidade de acesso s fontes. A histria subjetiva [...] pois no se pode negar

    que a escolha de um assunto para um livro de histria seja livre [...]21.

    Historiadores pesquisam o passado, interpretam o passado e escrevem a

    respeito do passado, mas sempre buscando respostas para perguntas feitas no presente.

    Procuram nas pginas do passado conexes com preocupaes recentes envolvidas com

    o tema pesquisado. Estamos, pois, no campo inteiramente indeterminado da Histria

    onde a nica exceo que [...] tudo o que nele se inclua tenha realmente acontecido

    [...]22.

    Procuramos aquilo que aconteceu na sociedade, no cotidiano dos seres

    humanos. Aquilo que, acontecido, pode tornar-se histria. E tornando-se histria,

    tornou-se caa para o historiador. Assim como outros historiadores23

    , pretendemos que

    nosso trabalho auxilie na compreenso de alguma lacuna da pesquisa sobre um tema ou

    um perodo da histria e anunciamos assim sua caracterstica de estudo provisrio.

    Um tanto quanto enigmtico escrever uma histria daquilo que muitos no

    querem mais saber que existiu, mas continua de certa forma existindo. Aps a

    transformao de um objeto que fazia parte de nossa vida em lixo, ele colocado para

    fora de nossas casas e, acreditamos, de nossas vidas. Esperamos que o pessoal da

    limpeza pblica o leve para longe do nosso campo de olfato e viso, e no pensamos

    mais nisso.

    No estamos acostumados a visitar o lixo ou o Aterro Sanitrio em busca de

    nossas recordaes da vida, entendendo-os como sambaquis24 modernos. Entendemos

    21

    Veyne, P. M.. Como se escreve a histria: Foucault revoluciona a histria. Trad. Alda Baltar e Maria

    A. Kneipp. Braslia: Ed. UnB, 1998. p.37 22

    Idem, p. 25. 23

    BURKE, Peter. Uma histria social do conhecimento: de Gutemberg a Diderot. Rio de Janeiro:

    Jorge Zahar, 2003. 24GASPAR, M. (2000) apudEIGENHEER, E.M.. op.cit. p.94. Sambaquis: Os stios so caracterizados basicamente por serem uma elevao de forma arredondada que, em algumas regies do Brasil, chega a

    ter mais de 30m de altura. So construdos basicamente com restos faunsticos como conchas, ossos de

    peixe e mamferos. Ocorrem tambm frutos e sementes, sendo que determinadas reas dos stios foram

  • 21

    que a aluso aos sambaquis serve para acentuar, que em diferentes locais e pocas, as

    reas de destino de lixo foram fontes de estudo e reflexo sobre as estreitas relaes

    que se do entre lixo, morte e memria25.

    Tiramos os cadveres, os restos, os resduos, o lixo de nossas casas e, na

    maioria dos casos, tiramos tambm de nosso ncleo urbano. Esquecemos que os

    mesmos, alm de poluir, podem informar a respeito de nossas vidas e explicar

    caractersticas importantes de nossa sociedade.

    O lixo tudo aquilo que um dia foi natural, artificial, matria-prima,

    mercadoria, produto, fetiche e que, de acordo com o julgamento de um determinado ser

    humano, deve ir para a lixeira. Pode ento, contaminar o ambiente, atrair doenas e

    cheirar mal nos lixes e aterros sanitrios.

    Podemos observar sua existncia e sua resistncia ao continuar presente nas

    ruas, entupindo bueiros, provocando alagamentos e contribuindo para o repasse de

    verbas federais aos estados e municpios. possvel mesmo afirmar que as pessoas

    podem ser conhecidas, em parte, pela qualidade e quantidade do lixo que produzem em

    suas residncias, escritrios, fbricas, oficinas e supermercados.

    A disposio inadequada dos restos chama nossa ateno para os graves

    problemas que resultam dessa atitude, comum na maioria das cidades brasileiras. A

    contaminao das guas pelo chorume, a proliferao de vetores de doenas nos lixes,

    a situao das pessoas que vivem e se alimentam do lixo, o aumento da quantidade de

    lixo e a mudana na qualidade do lixo, so causa e consequncia desses e de outros

    problemas, e nos levam a pensar e repensar nossa relao com os restos.

    Tambm chamou-nos a ateno o fato de, recentemente, o lixo ter sido

    transmutado de uma coisa sem valor, para algo que tem valor social, e principalmente,

    econmico para a sociedade. O lixo das cidades, quando bem gerido, pode contribuir

    com a gerao de empregos, o aumento da renda de diversas famlias e com a

    lucratividade das empresas. A importncia do assunto tem levado diversas instituies

    do Estado a incluir em suas pautas de discusso e prioridades a questo da destinao

    ambientalmente adequada dos resduos.

    espaos dedicados ao ritual funerrio e l foram sepultados homens, mulheres e crianas de diferentes

    idades. Contam igualmente com inmeros artefatos de pedra e de osso,marcas de estacas e manchas de

    fogueira, que compem uma intrincada estratigrafia.. GASPAR, M. Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2000. p.9. 25

    Idem, p. 94.

  • 22

    O lixo um indicador do consumo e da produo urbanas e foi, aos poucos,

    sendo inserido na lgica da sociedade capitalista onde comeou a ser visto como fonte

    de renda para populaes carentes, e como um material que no deveria ser

    desperdiado, mas sim reaproveitado pela prpria indstria na produo, diminuindo

    custos com matrias-primas.

    Para a histria do lixo no Brasil, o ano de 1970 apontado por Miziara como

    um marco, tendo em vista as transformaes urbanas e sociais em curso no perodo que

    concorreram para que o lixo se tornasse um problema pblico, deixando a esfera da vida

    privada. O poder pblico amplia a contratao de empresas privadas ou cria empresas

    pblicas que tem como objetivo implantar servios relacionados coleta e destinao

    adequada do lixo.

    Ao longo da dcada de 1970 so tambm registradas as primeiras pesquisas

    sobre o uso de sacolas plsticas (1971) e a campanha nacional do Sujismundo,

    personagem sujo, desorganizado e confuso de um desenho animado veiculado na

    televiso e no cinema como uma tentativa do governo de conscientizar a populao

    contra o mau hbito de espalhar lixo em lugares pblicos. Como dizia o slogan da

    campanha, Povo desenvolvido povo limpo26.

    Assim, partimos do pressuposto de que existe uma profunda

    interdependncia entre a problemtica do lixo e as transformaes sociais urbanas.

    Dessa forma, o problema do lixo pode ser apreendido como problema da vida urbana e

    dos governos municipais, tornando-se um problema poltico e de administrao pblica.

    A sociedade, atravs de seus representantes pblicos passou a legislar,

    regulamentar e controlar diversos setores garantindo sobre eles o domnio da histria

    poltica. Entendemos que esse domnio no significa a superioridade da poltica sobre

    outros aspectos da sociedade. Significa que entendemos o poltico como um campo de

    possibilidades historiogrficas, que nos demonstra oportunidades de dilogo com outras

    instituies sociais, culturais e econmicas que so encontradas no campo da poltica.

    Acreditamos que o poltico tambm nos ajuda a historicizar as relaes entre

    seres humanos e natureza. Alegamos ser possvel problematizar o lixo e estabelecer

    conexes com outros temas sociais, econmicos, culturais e ambientais, como a questo

    da produo e do consumo na sociedade. O lixo ganhou importncia no debate poltico

    e se tornou objeto de disputas, inclusive econmicas, dentro da administrao pblica.

    26

    MIZIARA, R.. op.cit..

  • 23

    O aumento das atribuies do Estado na segunda metade do sculo XX levou a

    um crescimento da ao governamental, favorecendo a reintegrao dos fatos polticos

    como parte constituinte da histria social27

    . O Estado passou a abarcar uma srie de

    problemas que estavam fora de sua alada a exemplo da cultura, sade, habitao e

    tambm da conservao e proteo da natureza e do meio ambiente, estendendo sua

    ao reguladora e fiscalizadora para essas esferas e ampliando seu poder na sociedade.

    Ao tecermos essas consideraes gostaramos de frisar que situamos nossa

    pesquisa no conjunto de estudos historiogrficos que buscam, atravs de uma

    abordagem materialista histrica, contribuir para o entendimento da sociedade

    priorizando questes polticas e ambientais relacionadas sociedade capitalista,

    enfatizando as relaes sociais e a produo de lixo.

    Adotamos como objeto de pesquisa o lixo por expressar uma problemtica

    sociopoltica das relaes humanas e ambientais relativas a um determinado espao, a

    cidade de Guarapuava/PR, e uma temporalidade especfica de 1971 a 2011.

    Vislumbramos nessa pesquisa a produo de conhecimento cientfico e historiogrfico

    que permita uma interpretao de nossa sociedade.

    Nosso objetivo interpretar as aes da sociedade e do poder pblico para

    enfrentar os problemas e relacionados ao lixo na cidade de Guarapuava, entre os anos de

    1971 e 2011. Entendemos que o problema do lixo relaciona-se com a produo, coleta e

    destinao final do lixo na cidade. Procuramos entender as mudanas na relao

    humanos/natureza buscando uma nova viso do ser humano, da sociedade e de nossa

    relao com a natureza da qual somos parte.

    Nossa busca pela reconstituio das prticas sociais e polticas que legaram

    cidade suas caractersticas socioambientais e suas polticas pblicas para o setor, inter-

    relacionando-as com as polticas estadual e federal ligadas regulamentao das

    atividades que envolvem a temtica ambiental de maneira geral, e do lixo

    especificamente.

    Objetivamos, ainda, demonstrar as possibilidades de interpretar problemas

    sociais, econmicos, polticos e ambientais a partir do objeto e produzir uma

    interpretao que revele esses diversos interesses presentes num tema da histria

    escondido debaixo do tapete.

    27

    RMOND, R..Por uma histria poltica. Traduo Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

    p.23.

  • 24

    Demarcamos como nosso espao de estudo a cidade de Guarapuava, na regio

    Centro-Oeste do estado do Paran, na regio sul do Brasil, como podemos visualizar no

    mapa abaixo:

    Mapa 01 Localizao do municpio de Guarapuava e do permetro urbano da cidade

    Fonte: elaborado pelo autor

    O municpio de Guarapuava, cuja cidade sede tem o mesmo nome, est

    localizado no centro oeste do estado do Paran, no Terceiro Planalto ou Planalto de

    Guarapuava, com latitude sul de 2523'36" e longitude oeste de 5127'19". Segundo

    Ferreira, o municpio possua em 2010 uma populao de 167.328 habitantes, sendo a 9

    maior cidade do estado do Paran e plo da Microrregio-Guarapuava, composta por

    outros 18 municpios. Apresentava um ndice de Desenvolvimento Humano (IDH) de

    0,773 sendo este o melhor ndice da regio, mas comparando-o a outros municpios do

    estado Guarapuava ocupava a 83 posio28

    .

    Neste espao, segundo relata Antonio, desde o final dos anos 1960 houve um

    intenso processo de periferizao urbana, relacionado ao xodo rural na regio,

    acarretando o aumento da populao na cidade sede, e durante a dcada de 1970 ocorreu

    a superao da populao urbana em relao rural. A rea do municpio passou por

    desmembramentos administrativos com a emancipao de diversos distritos, resultando

    em diminuio territorial. O crescimento urbano no perodo estudado foi acompanhado

    pela ocorrncia de problemas de infraestrutura relacionados urbanizao acelerada,

    notadamente as demandas sociais por gua encanada, esgoto e moradia.29

    28

    FERREIRA, A.. Uma anlise da eficincia econmica e da efetividade ambiental dos instrumentos

    econmicos de gesto ambiental: um estudo de caso da Taxa de Lixo em Guarapuava-PR. 2009. 95f.

    Dissertao (Mestrado Desenvolvimento Econmico). UFPR, Curitiba, 2009. 29

    ANTONIO, J.N.. Mapeamento de reas potenciais a implantao de aterro sanitrio em

    Guarapuava-PR, com uso de redes neurais artificiais. 2009. 131f. Dissertao (Mestrado Gesto do

    Territrio). UEPG, Ponta Grossa, 2009.

  • 25

    O desenvolvimento da agricultura comercial e tecnificada garantiu o aporte

    produtivo e financeiro para a instalao de agroindstrias. A dinmica da cidade no

    perodo foi tambm marcada pelas ideias de progresso e de desenvolvimento

    econmico. Essas ideias, para Kobelinski, nortearam e transformaram as pessoas e a

    paisagem natural, e reestruturaram o meio urbano.30

    No aspecto ambiental, segundo relata Ferreira, o municpio apresentava em

    2009 uma mdia de 18,77% da rea geogrfica com cobertura florestal (57.948,60

    hectares), superior a mdia estadual (12,7%). O autor salienta ainda que, no mesmo

    perodo, a infraestrutura urbana contava com 92,5% das residncias atendidas com

    ligaes de gua potvel, 50,56% do municpio era atendido por sistema de coleta de

    esgoto, 97% das residncias tinham energia eltrica e 96,74% tinham coleta de lixo

    regular.31

    Quanto historiografia regional, destacamos a existncia de duas correntes de

    autores que trabalham com a histria de Guarapuava. Um conjunto de escritores locais,

    moradores da cidade e historiadores no acadmicos e acadmicos, atualmente reunidos

    em torno da Academia de Letras, Artes e Cincias de Guarapuava. O segundo grupo

    historiogrfico composto por professores e acadmicos oriundos da Universidade

    Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO) que, atravs de programas de ps-graduao

    em diversas universidades produziu uma renovada historiografia regional.

    Lacheski32

    ao trabalhar com os discursos constituintes da histria de

    Guarapuava, analisando as representaes construdas e emitidas pelos indivduos a

    respeito do processo de ocupao regional, destaca o primeiro grupo como sendo de

    nascidos ou radicados na cidade que emitem um discurso regionalista e pico

    diametralmente proporcional autoridade de quem o manifestava e que, nos anos 1990,

    pregou o resgate e a preservao da memria permeada pela ideia de progresso.

    Alguns dos autores e obras citadas e analisadas pela autora so: Luiz Cleve

    Teixeira, poltico e esportista autor de Reminiscncias do passado (1993) e Terceiro

    Planalto (2000); Heitor Francisco Izidoro poltico autor de Histria de Guarapuava

    (1971) e Guarapuava: das sesmarias Itaipu (1976); Sebastio Meira Martins,

    fazendeiro e autor de Guarapuava, nossa gente e suas origens (1997); Gracita

    30

    KOBELINSKI,M..Guarapuava isto aqui: da seduo dos discursos ao marcketing da cidade. 1999. 123f. Dissertao (Mestrado Histria). UNESP, Assis, 1999. 31

    FERREIRA, A.. op cit. p.44. 32

    LACHESKI,E.. Guarapuava no Paran: discurso, memria e identidade (1950-2000). 2009. 170f.

    Dissertao (Mestrado Histria). UFPR, Curitiba, 2009.

  • 26

    GruberMarcondes, historiadora e autora de Guarapuava: histria de luta e trabalho

    (1998), Murilo Walter Teixeira, dentista e autor de Continente guarapuavano: transio

    poltico-social (1999) e Nivaldo Kruger, poltico e fazendeiro autor de Guarapuava:

    seu territrio, sua gente, seus caminhos, sua histria (1999).

    O segundo grupo historiogrfico, formado pelos profissionais de histria e seus

    trabalhos em programas de mestrado e doutorado possui uma produo mais

    diversificada e atualizada da histria de Guarapuava. Entre os diversos trabalhos

    disponveis utilizamos os de Tembil, Kobelinski e Lacheski para fundamentar e

    esclarecer os processos de constituio dos discursos sociopolticos e o processo de

    urbanizao caracterstico local.

    Tembil33

    analisou as formas discursivas constitutivas das prticas e

    representaes da elite guarapuavana a partir da dcada de 1950, durante o processo de

    modernizao da cidade e que acabaram modificando a configurao do ncleo urbano

    surgido no sculo XIX, rompendo seus vnculos com o passado. A autora prioriza a

    anlise dos imaginrios em diferentes pocas e demonstra que num primeiro momento

    (a partir de 1960) motivaram intervenes no espao urbano vinculadas aos ideais de

    progresso e modernidade; e numa segunda etapa (a partir de 1990) inverteram o

    discurso procurando privilegiar a preservao da memria e histria da cidade.

    Contribuindo com o que foi dito, Kobelinski34

    demonstrou em seu trabalho o

    predomnio de uma propaganda oficial da cidade baseada nas transformaes urbanas

    que aconteceram. Tais intervenes formaram uma imagem glamorosa da cidade devido

    ao progresso que materializava-se em obras e na legislao atravs do primeiro Plano de

    Urbanizao de 1967. As prticas administrativas e suas realizaes, divulgadas com a

    colaborao da imprensa local procuraram mostrar uma cidade moderna e progressista

    que, no entanto, no se apresentava dessa maneira para toda a populao.

    Assim, definimos nosso recorte temporal a partir das especificidades do lugar

    de estudo entre os anos de 1971 e 2011. Entendemos o ano de 1971 como recorte

    inicial, devido a criao, atravs da Lei n 52/1971, do Fundo de Urbanizao de

    Guarapuava (FURG) e da Companhia de Servios de Urbanizao de Guarapuava

    (SURG), responsveis por receber e gerir os recursos para executar os servios urbanos

    de que a cidade necessitava, como pavimentao de ruas, abertura de loteamentos,

    canalizao de crregos e limpeza urbana.

    33

    TEMBIL, M.. op.cit. 34

    KOBELINSKI, M.. op.cit.

  • 27

    Demarcamos o final de nossa pesquisa em 2011 por ser o ano da inaugurao,

    pela Prefeitura Municipal de Guarapuava, do Aterro Sanitrio Municipal. A obra,

    idealizada e projetada no incio da dcada de 1990 foi construda a partir de 2008 e

    iniciou suas atividades em maio de 2011. A administrao municipal buscava dar fim ao

    problema do Lixo e do destino do lixo urbano a partir da operao dessa obra de

    engenharia.

    Nossas fontes so compostas por documentos do Poder Legislativo e

    Executivo, alm de peridicos locais. Foram pesquisados no Arquivo Histrico da

    Cmara de Vereadores de Guarapuava, no Arquivo Histrico Municipal e Centro de

    Documentao e Memria (CEDOC) na UNICENTRO e na Biblioteca Municipal da

    Casa da Cultura Arlindo Trinco Ribeiro. Algumas leis consultadas durante a pesquisa

    foram encontradas no sitio eletrnico da Prefeitura Municipal de Guarapuava35

    e as

    mais antigas foram consultadas nos respectivos livros anuais de registro de leis,

    disponveis na Secretaria de Administrao da Prefeitura.

    Elencamos uma srie de leis, s quais chamamos de legislao ambiental que

    compe-se de leis que tratam de assuntos como o Plano Diretor, Cdigo de Posturas,

    Zoneamento e uso do solo urbano, criao de reas de proteo ambiental e parques

    municipais, alm do transporte de resduos e outros temas relacionados direta ou

    indiretamente com nosso objeto de pesquisa, o lixo.

    Tambm consultamos requerimentos dos vereadores e as Atas das Sesses da

    Cmara de Vereadores em que foram discutidos e votados os projetos dessas leis para

    que pudssemos entender seus trmites burocrticos e as discusses, quando havia, que

    levaram a sua aprovao ou recusa. Alm dos debates relacionados aos projetos de lei,

    consultamos as atas para tentar localizar as falas ou debates de vereadores que foram

    citados pelos jornais por terem se pronunciado a respeito de determinados assuntos

    relativos a temas ambientais.

    Ao trabalharmos com os arquivos legislativos nos preocupamos em procurar

    conhecer o funcionamento da administrao pblica do municpio durante a

    temporalidade estabelecida para poder entender como leis, projetos de leis, sesses

    legislativas, sanes e outros expedientes burocrticos funcionavam. Como foram

    criados, discutidos e destinados dentro da mquina burocrtico-administrativa analisada.

    Ao adentrarmos os arquivos para o trabalho de pesquisa das fontes, atentamos

    para um olhar crtico em relao s fontes como requisito para uma interpretao 35

    Disponvel em: .

  • 28

    correta, como nos casos de algumas atas das sesses da Cmara Municipal. Quando o

    presidente era da situao e um vereador da oposio usava a tribuna para fazer crticas

    ao executivo municipal, a ata citava que houve a crtica mas no trazia por escrito o teor

    da mesma, nem citavam-se os partidos dos vereadores para no explicitar as diferenas,

    ou deixar registro das desavenas. Desconfiamos das fontes, pois elas no so neutras e

    os documentos devem ser julgados com a criticidade do olhar historiogrfico. Todo

    documento est carregado de intenes daqueles que o produziram, quer sejam pessoas

    ou instituies36

    .

    Um problema que enfrentamos em relao aos documentos do Arquivo

    Histrico da Cmara de Vereadores foi que no incio de nossa consulta estavam

    alocados em um espao da Casa que depois foi mudado em virtude de reformas nos

    gabinetes dos vereadores, impedindo sua consulta. Logo aps houve a priso do

    presidente da Cmara de Vereadores pelo Grupo Especial de Represso ao Crime

    Organizado (GAECO) e denncias de corrupo envolvendo diversos outros

    vereadores, o que provocou um atraso nos trabalhos, pois muitos documentos ficaram

    sob a tutela do Ministrio Pblico.

    Ainda com relao a isso, as reformas se estenderam mais que o esperado e o

    Arquivo foi mudado de lugar por mais trs vezes at se encontrar um espao para aloc-

    lo devidamente. Todas essas circunstncias acabaram acarretando prejuzos ao

    trabalho de pesquisa e tambm a desorganizao de boa parte do acervo, alm da perda

    de alguns documentos.

    Alm da legislao e das Atas de sesses, o livro do Programa Planalto Verde

    da Prefeitura de Guarapuava nos possibilitou conhecer as metas e aes propostos pelo

    mesmo. Conseguimos um exemplar do Estatuto social da Companhia de Servios de

    Urbanizao de Guarapuava (SURG) e os Relatrios Anuais da Secretaria de Meio

    Ambiente e Desenvolvimento Florestal dos anos de 2004 e 2010 referentes ao balano

    final e parcial, respectivamente, das duas ltimas administraes municipais.

    Alm desses documentos a Secretaria nos forneceu os dois ltimos Planos

    Municipais de Gerenciamento de Resduos Slidos dos anos de 2010 e 2012 onde

    constam as aes, projetos e obras para o setor. Tambm foi disponibilizado pela

    Prefeitura Municipal o Plano Municipal de Saneamento Bsico do ano de 2012 com

    diversas informaes a respeito das condies sanitrias e de infraestrutura do

    36

    BACELLAR, C.. Fontes documentais: uso e mau uso dos arquivos. In:PINSKY, C.B.Fontes

    Histricas. So Paulo: Contexto, 2006.

  • 29

    municpio, alm do plano de investimentos para o setor e informaes relativas

    limpeza urbana.

    Com relao aos peridicos, utilizamos dois jornais de perodos diferentes para

    problematizar questes na pesquisa. Sabemos que a imprensa comeou a ser usada

    como fonte historiogrfica no incio dos anos 1970 e, na atualidade, o uso de tal fonte

    tido como fundamental para analisar ideias e projetos polticos ou questes sociais. O

    uso da imprensa peridica local como fonte de pesquisa visou produzir um trabalho

    historiogrfico de maior valor interpretativo37

    O uso de peridicos objetivou encontrar e trazer cena da histria outras

    perspectivas que pudessem expressar a experincia de diversos grupos e camadas

    sociais. Entendemos o uso dos jornais como uma possibilidade de encontrar neles

    registros e representaes dos embates cotidianos na arena do poder no mbito da urbe.

    Um dos jornais utilizados foi o Esquema Oeste, semanrio que trazia notcias

    locais, estaduais e nacionais populao e circulou no perodo de 1970 a 1998. Nesse

    perodo, existiam outros jornais na cidade como, por exemplo: a Folha do Oeste (1930-

    1982), a Tribuna de Guarapuava (1994-1999) e a Folha de Guarapuava (1979-1980).

    O Esquema Oeste, no entanto, foi o de maior durao no perodo pesquisado e

    o que tem a coleo mais completa. Era composto de oito pginas, ampliadas no

    decorrer dos anos 1980 para 11 pginas e em edies comemorativas no final do ano

    tinha cerca de 20 pginas. Publicava reportagens de poltica, esporte, sociedade e sees

    de colunistas locais, como a Coisas de Luis Antonio Pereira de Arajo, e a Tribuna,

    escrita por Waldemar Garcia.

    O editor e diretor era Leonel Jlio Farah, jornalista e poltico local, fato que

    pode ter contribudo para que o jornal logo se tornasse o veculo de comunicao oficial

    da Prefeitura de Guarapuava, publicando as leis, balanos e editais oficiais do

    municpio.

    O outro jornal utilizado foi o Dirio de Guarapuava que comeou a circular

    na cidade e regio em 1998 e continua sendo publicado at este momento. Diferente do

    Esquema que era impresso sem cores, o Dirio era colorido e tinha um formato

    diferente do anterior. Sua tiragem era de cerca 23 mil exemplares e possua mais

    pginas e algumas sees especficas como Poltica e Cidade. O jornal possui

    vrios scios, entre eles o Grupo Tribuna de Comunicao, o maior grupo de mdia do

    37

    LUCA, T.R. de. Histria dos, nos e por meio dos peridicos. In: PINSKY, C.B.. Fontes histricas. So

    Paulo: Contexto, 2006.

  • 30

    interior do Paran e tem como diretora presidente Delise Guarienti Almeida e como

    diretor geral Andr Guarienti Almeida, que em entrevista reportagem comemorativa

    aos 15 anos do Dirio salientaram sua orientao editorial [...] sempre na defesa dos

    interesses da comunidade [...] sem cunho poltico e sempre trabalhando de forma

    independente com iseno e responsabilidade.38

    Os peridicos podem ser considerados fontes histricas e analisados como

    documentos, mas sempre levando-se em conta que a notcia uma reconstruo dos

    acontecimentos e no o espelho da sociedade ou dos fatos. Ela um relato do que

    ocorreu e como tal possui limitaes, o que no quer dizer que o que foi relatado no

    verdadeiro, mas uma aproximao do fato acontecido. Sendo um veculo de

    comunicao de massa os jornais podem ser entendidos como espaos de representao

    do social e problematizados nas pesquisas historiogrficas.

    Dessa forma, pretendemos desenvolver nossa proposta de trabalho dentro dos

    limites espao-temporais propostos e delimitados por nossos objetivos, procurando

    estruturar nosso texto para, nos captulos a seguir, realizar uma interpretao da maneira

    como nos propusemos.

    Assim, no primeiro captulo denominado A questo ambiental e as polticas

    pblicas como forma de compreenso histrica da sociedade definimos nossa

    compreenso da questo ambiental como resultante dos impactos na natureza das

    relaes estabelecidas com ela pela sociedade capitalista, demonstrando a necessidade

    de uma mudana nos atuais padres insustentveis de produo e consumo da mesma.

    A seguir estabelecemos um debate a respeito do conceito de Estado e sua funo no

    estabelecimento de ordenamentos para a sociedade apontando como nosso referencial

    terico o materialismo histrico. A partir disso procuramos empreender uma definio

    do conceito de Polticas Pblicas como resultantes da mediao do Estado na busca de

    solues para problemas da sociedade atravs da participao democrtica e, ao final,

    elencamos as contribuies do ambientalismo para a formao de polticas pblicas

    ambientais no mbito das conferncias da Organizao das Naes Unidas (ONU).

    No segundo captulo intitulado Alguns caminhos das questes ambientais e do

    lixo nas polticas pblicas, primeiramente procedemos um levantamento histrico da

    formao de polticas pblicas para o meio ambiente no Brasil e ao final analisamos

    algumas delas relacionadas aos resduos slidos e ao lixo especificamente. Na sequncia

    38

    15 anos de histria acompanhando o crescimento de Guarapuava e regio. Dirio de Guarapuava.

    Guarapuava, 13 nov. 2013. Disponvel em:. Acesso em: 12/01/2014.

  • 31

    analisamos a temtica no mbito do estado do Paran utilizando as notcias dos jornais

    Esquema Oeste e Dirio de Guarapuava para demonstrar a incorporao da temtica

    ambiental e do lixo na agenda governamental, alm de seus efeitos para a sociedade

    atravs da interpretao das mesmas.

    No terceiro captulo Os caminhos do lixo na sociedade Guarapuavana

    apresentamos nosso espao de estudo e procedemos uma retrospectiva de sua histria

    recordando suas caractersticas socioeconmicas presentes na produo historiogrfica

    para nos situarmos em relao s especificidades locais. A seguir apresentamos

    algumas consideraes relacionadas s questes ambientais que localizamos em nossas

    fontes e que direta ou indiretamente vinculam-se com a questo do lixo com o intuitode

    demonstrar que a cidade apresentou outros problemas socioambientais dentro da

    temporalidade pesquisada. Ao final elencamos as aes tomadas pelo poder pblico

    municipal para solucionar os problemas relativos no s ao lixo mas outras demandas

    socioambientais, com destaque para a criao da empresa de limpeza pblica, da

    secretaria de meio ambiente e para os diversos projetos e programas implementados

    pela Prefeitura com a colaborao da sociedade, destacando a caracterstica

    incrementalista dessas polticas pblicas.

    No quarto captulo, cujo ttulo Do lixo ao aterro: uma histria do lixo em

    Guarapuava apresentamos a situao mais recente do problema utilizando informaes

    coletadas nas fontes e na bibliografia especficas para identificar um panorama da

    situao do lixo na cidade. Prosseguimos atravs de um histrico das aes tomadas

    pela sociedade e pelo poder pblico relativas aos problemas socioambientais do lixo

    urbano e, principalmente do lixo municipal, dividindo esta etapa em trs partes, sendo

    a primeira de 1971 a 1976, e a segunda de 1977 a 1993. Estabelecemos a terceira parte,

    que vai de 1993 a 2011, onde apresentamos as demandas sociais e administrativas para

    concretizar a obra do aterro sanitrio.

    Nas consideraes finais realizamos um balano de nossa pesquisa tecendo

    observaes a respeito das polticas pblicas como elementos de ordenao e mediao

    dos conflitos na sociedade e das responsabilidades inerentes s escolhas envolvidas nas

    mesmas. Salientamos tambm questes atinentes questo dos resduos em Guarapuava

    e seus desdobramentos na busca de uma sociedade sustentvel local e globalmente.

  • 32

    CAPTULO I

    A QUESTO AMBIENTAL E AS POLTICAS PBLICAS COMO FORMA DE

    COMPREENSO HISTRICA DA SOCIEDADE.

    Se um homem gasta a metade de cada dia a passear pelas florestas

    simplesmente por gostar delas, arrisca-se a ser considerado um

    preguioso; mas se ele gasta o dia inteiro como especulador,

    devastando a floresta e provocando a calvcie precoce da terra, a

    ento ele ganhar a admirao de seus concidados como pessoa

    ativa e empreendedora. Pode uma cidade se interessar por suas

    florestas apenas para acabar com elas?!

    Henry Thoreau

    A citao de Thoreau nos permite questionar, assim como ele fez, qual o

    interesse que nos move na relao com a natureza que nos cerca. Quais so os princpios

    que norteiam essa relao? Seria a busca do lucro a todo custo com o trabalho, ou seria

    o preguioso desinteresse financeiro da contemplao da natureza? O autor, em A vida

    sem princpio, texto do qual faz parte o trecho acima, fazia pesadas crticas

    pragmtica e utilitarista sociedade da Nova Inglaterra, onde residia e onde [...] no

    era popular defender o prazer de trabalhar, a contemplao da natureza, o lazer, a

    mltipla aptido pessoal; afinal de contas, ali o tempo era e ainda dinheiro1, segundo

    Drummond.

    Apesar das diferenas, levando-se em conta que o autor escreve no sculo XIX,

    a comparao nos parece pertinente tendo em vista os problemas advindos das relaes

    dos humanos com a natureza. Ao pensar em como nossa sociedade trata o meio

    ambiente, ser que podemos dizer que o interesse mais econmico ou utilitarista do

    que de respeito e admirao? Ser que podemos afirmar que nos interessamos mais em

    acabar com nossas florestas do que em preserv-las? Valorizamos os seres

    empreendedores e ativos, ainda que suas atividades causem problemas natureza e a

    outros seres humanos?

    Thoreau chamou nossa ateno para uma caracterstica de nossa sociedade

    capitalista que no pode passar despercebida: o fato de nela considerar-se admirvel

    ganhar dinheiro devastando a natureza, transformando-a em mercadoria e explorando

    o trabalho. O autor escreveu no sculo XIX, expressando crticas aos valores

    socioculturais estabelecidos, como trabalho, riqueza e ostentao, que ainda se

    encontram presentes no mundo contemporneo.

    1DRUMOND, J.A..Introduo. In: THOREAU, H..Desobedecendo A desobedincia civil & outros

    escritos. Trad. Jos Augusto Drummond. So Paulo: Crculo do Livro, 1987. p.27.

  • 33

    Como escritor e admirador da natureza, Thoreau [...] abre uma linhagem de

    preservacionistas que desemboca diretamente nos modernos militantes e cientistas do

    movimento ecolgico [...]2. Dessa maneira, ao utilizarmos a citao desse autor,

    queremos chamar a ateno para os valores sociais envolvidos na questo ambiental,

    que nos levam a questionar o modelo de sociedade em que vivemos.

    Os cientistas naturais sabem que os componentes do mundo natural

    tm uma realidade material, objetiva, independente da cultura humana, mas os cientistas sociais sabemos que a cultura um filtro subjetivo e nada neutro que se aplica inevitavelmente a eles. Um estudo sobre a natureza sem a considerao dos valores culturais

    humanos legtimo, mas no um estudo socioambiental, e sim um

    estudo de cincia natural, como a ecologia, ou a histria natural. O

    plano simblico, valorativo ou cognitivo , portanto, parte necessria

    de uma investigao socioambiental. bem verdade que os humanos

    so animais que consomem recursos naturais, como quaisquer outros

    seres vivos, mas, pelo que sabemos, eles so os nicos que emprestam

    valores simblicos aos recursos que consomem.3

    Reconhecemos que, ao levarmos em considerao os valores culturais,

    subjetivos e sem neutralidade, envolvidos com a questo, chamamos a ateno para os

    problemas que envolvem principalmente as sociedades urbano-capitalista-industriais e

    sua relao com a natureza. Ressaltamos que essa relao pode ser analisada por

    diferentes cincias, utilizando diversas teorias e sob a tica das mais variadas vises

    cientficas, polticas, filosficas e religiosas.

    A questo ecolgica reduz-se antes e acima de tudo a uma questo de

    valores, ainda que a questo muito mais difcil da compreenso da

    evoluo das inter-relaes materiais (o que Marx chamava relaes metablicas) entre os seres humanos e a natureza no seja, pois, minimamente alcanada.

    4

    Tendo em conta que a questo ecolgica nos coloca diante de uma disputa

    entre valores conflitantes envolvidos na relao humanos-natureza, analisamos neste

    primeiro captulo a questo ambiental e seus problemas para a sociedade e o Estado,

    que, como produtores de novas prticas sociais e novos ordenamentos polticos e

    jurdicos, objetivam resolver ou diminuir os impactos negativos de suas aes

    relacionadas ao meio ambiente natural e humano. O Estado, atravs das chamadas

    polticas pblicas, tenta estender seu controle sobre a sociedade, reduzindo os impactos

    negativos, assim como suas causas e consequncias, a partir do seu ordenamento

    jurdico.

    2Idem, p.21.

    3DRUMMOND, J.A..Cincia socioambiental: notas sobre uma abordagem necessariamente ecltica. In:

    ROLIM,R.C.; et al.(Orgs.). Histria, espao e meio ambiente, Maring,p. 26,2000. (grifo do autor). 4FOSTER, J.B..A ecologia de Marx: materialismo e natureza.Trad. Maria Teresa Machado. Rio de

    Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005. p.25.

  • 34

    Abordamos a questo do interesse econmico empresarial e sua influncia nas

    aes do Estado e da sociedade para enfrentar a questo ambiental. Nosso objetivo

    demonstrar a incorporao da questo ambiental legislao do Estado como

    preocupao social e econmica, discutindo as influncias socioeconmicas que

    colaboram para a incorporao do tema agenda poltica e legislao. Devemos

    observar que a lei

    [...] um meio pelo qual se executam processos sociais, polticos e

    econmicos; um privilegiado instrumento de realizao do poder.[...]

    A legislao traz em si um carter duplo: ao mesmo tempo em que

    reflete costumes e valores sociais, fator determinante destes, na

    medida em que normatiza comportamentos, introduz e reprime

    valores. Nesse sentido, parece-nos bastante instigante a investigao

    do que est ocultado pelo texto legal, do que se busca realizar por

    meio dele.5

    A lei cria e modifica valores, assim como sofre influncia de determinados

    valores, individuais ou coletivos, presentes na sociedade durante o processo de

    elaborao legislativo.

    Iniciamos nossa explanao considerando como compreendemos a questo

    ambiental e sua problemtica que afeta o planeta. Em seguida apresentamos algumas

    perspectivas de entendimento do Estado como indutor de discusses e propostas de

    polticas pblicas para o meio ambiente na sociedade. A seguir abordamos a formao

    de polticas pblicas, demonstrando suas possibilidades de interpretao da sociedade a

    partir da organizao e elaborao das mesmas, e apresentamos algumas possibilidades

    de entendimento da questo em mbito mundial, relembrando a trajetria do movimento

    ambientalista e dos debates e conferncias sobre o meio ambiente.

    1 - A questo ambiental e a (des)ordem planetria.

    Procuramos refletir sobre algo que acontece todos os dias onde existem seres

    humanos. Nesses locais, ns nos relacionamos com nosso ambiente. Ao longo de nossa

    histria, tornou-se hegemnica uma viso judaico-crist que justificou a separao e a

    dominao da natureza, mas que no a nica. Dessa maneira, os seres humanos

    instituram sobre a Terra o seu domnio e passaram a utiliz-la ao seu bel prazer.

    [...] toda cultura elabora os seus conceitos, inclusive o de natureza, ao

    mesmo tempo em que institui as suas relaes sociais. Em nossa

    sociedade, por exemplo, a natureza vista como algo passvel de ser

    dominado e submetido ao Homem todo-poderoso... E s no v quem

    5MOREIRA, T.C..A crise ambiental como um desafio ao direito contemporneo. : ROLIM,R.C.; et

    al.(Orgs.). Histria, espao e meio ambiente, Maring, p. 68, 2000.

  • 35

    no quer a ntima relao dessa idia com os propsitos de dominao

    e submisso de um homem por outro homem.6

    No longo caminho do caudal histrico social do qual somos parte, os cientistas

    e pesquisadores procuraram formas de interpretar a sociedade e represent-la, de

    diversas maneiras. O ser humano conhece o mundo por meio de seus sentidos e com seu

    entendimento busca maneiras de represent-lo aos outros. As maneiras como fazemos

    essa interpretao variaram de acordo com as pocas e os momentos cientficos que a

    humanidade percorreu.

    Vivemos em uma era planetria, [...] que comea com a descoberta de que a

    Terra no seno um planeta e com a entrada em comunicao das diversas partes

    desse planeta[...]7, e indagamos a respeito das escolhas de desenvolvimento que so

    tomadas na sociedade. Quem as toma? Quais so os critrios ou interesses que norteiam

    a deciso de investir bilhes de dlares numa sonda espacial e no em ajuda

    humanitria? Quem so os seres humanos que escolhem acabar com uma floresta para

    escavar uma reserva de cobre? Questionamos para procurar entender como so

    formadas as opinies, divulgadas as informaes e tomadas as decises a respeito do

    que a sociedade deve fazer para continuar no caminho do desenvolvimento e do

    progresso. Progresso para quem? Desenvolvimento do que?

    A viso de progresso e de desenvolvimento como constituidores da

    potncia histrica no neutra. Ela tem um sentido etnocntrico

    ocidental, estando enraizada nos primrdios por um entendimento de

    unidade da histria universal, periodizada linearmente com uma

    imagem de caminhada progressiva do homem, resultante da

    concepo judaico-crist da histria.

    Essa idia recebeu um impulso decisivo, tornando-se hegemnica a

    partir do Iluminismo, quando, por uma determinada razo subsidiada

    pelo prprio esprito do capitalismo, funda a civilizao industrial. No

    primeiro momento, essa idia postulava a satisfao das necessidades

    materiais e espirituais, fincando uma clara ciso entre o homem e o

    meio ambiente.

    O progresso est embasado em uma noo cumulativa linear,

    pressupondo um crescimento quantitativo e um melhoramento

    qualitativo, como se no pudesse existir dissociao entre esses dois

    fatores.8

    As ideias de progresso e desenvolvimento, fruto do etnocentrismo ocidental

    burgus, so produzidas e exercidas na sociedade capitalista para beneficiar apenas uma

    parte dessa sociedade e separar os humanos da natureza. A busca do progresso e do

    desenvolvimento tambm responsvel por uma srie de degradaes

    6GONALVES, C.W.P.. Os (des)caminhos do meio ambiente. So Paulo: Contexto, 2001. p.97.

    7MORIN, E.;KERN, A.B.. Terra-Ptria. Trad. Paulo A.N.da Silva. Porto Alegre: Sulina, 1995. p.22.

    8ALMEIDA, J.P. de. A instrumentalizao da natureza pela cincia. Revista Projeto Histria. So

    Paulo, n. 23, p.184 e 185, nov. 2001.

  • 36

    socioambientais que por sua vez afetam toda a sociedade. Uma conscincia ecolgica

    planetria necessria aos seres humanos em vista da multiplicao de degradaes

    ambientais e da poluio que ocorre na biosfera terrestre.

    Vinculada condio de ser no mundo, a questo ambiental

    fundamental existncia humana, pois do ambiente que provm a

    base material de reproduo da vida, alis, das diversas formas de

    vida. Em outras palavras, do ambiente que so extrados os recursos

    para produo de abrigo, alimento, artefatos tcnicos, vesturio, entre

    tantas outras coisas necessrias manuteno da vida, qualquer que

    seja a forma de organizao social que os humanos estabeleceram ao

    longo de milhares de anos de presena no planeta.9

    Dependemos do ambiente para vivermos no planeta, pois o ambiente prov os

    recursos materiais de que precisamos para a manuteno da vida. A partir da segunda

    metade do sculo XX, vivemos uma crise mundial de desenvolvimento ligada ao

    problema cultural/civilizacional e ao problema ecolgico10. A superao desse

    dilema, buscada tanto pelo capitalismo quanto pelo socialismo, nos colocou no final do

    sculo passado sob a hegemonia da sociedade capitalista industrial e de um pensamento

    fragmentrio e crematstico11

    que resolve os problemas de maneira parcial, de acordo

    com seus interesses.

    A importncia e o interesse a respeito das questes ambientais por parte da

    populao de maneira geral e dos cientistas especificamente nos leva a pensar que esta

    uma das tendncias dos estudos historiogrficos, notadamente a partir dos anos 1990.

    Assim,

    A natureza passou a ser foco de ateno das prticas sociais e passou a

    ser projetada como espao de relaes a ser repensado neste fim de

    sculo. Isto ocorreu, tanto no meio acadmico como no poltico, no

    econmico e no social, conduzindo a uma nova forma de pensar a

    relao homem-natureza12

    .

    Salientamos que, imbudos dessa nova forma de pensar, que nos leva busca

    de uma outra relao social com a natureza, entendemos a ideia de natureza como

    9 RIBEIRO, W. C..Teorias socioambientais: em busca de uma nova sociedade. Estudos Avanados. So

    Paulo, USP, 24(68), 2010, p. 9. 10

    MORIN, E.;KERN, A.B.. opcit, p. 75. 11

    Segundo Carlos Walter Porto Gonalves, para Aristteles a crematstica era entendida como a busca

    incessante de riqueza e o estudo da relao entre os preos das mercadorias. Gonalves utilizou o termo

    ao explicar o significado de riqueza, que est relacionado ao valor de troca, sendo este determinado pela

    escassez; mas riqueza no escassez e sim abundncia. Ou seja, os bens naturais (gua, ar) por serem abundantes no so considerados bens econmicos, at que se tornam escassos devido por exemplo,

    poluio. Portanto, de acordo com o pressuposto de que a privao/escassez resulta riqueza; torna-se

    necessrio que a maioria dos humanos no seja proprietrio, comeando pela prpria natureza (terras,

    florestas, reservas minerais, nascentes) como condio para instaurar o reino da economia mercantil (a crematstica de Aristteles). GONALVES, C.W.P.. op.cit., passim. 12

    PAULA, Z.C. Uma face da relao homem/natureza. Ps-Histria,Assis/SP: UNESP, v.5, 1997, p.185.

  • 37

    sendo uma criao cultural dos seres humanos, instituda por meio de prticas e relaes

    sociais, sendo por essa razo engajada em valores no mundo contemporneo.

    Toda sociedade, toda cultura cria, inventa, institui uma determinada

    idia do que seja a natureza. Nesse sentido, o conceito de natureza no

    natural, sendo na verdade criado e institudo pelos homens. Constitui

    um dos pilares atravs do qual os homens erguem as suas relaes

    sociais, sua produo material e espiritual, enfim, a sua cultura.

    Dessa forma, fundamental que reflitamos e analisemos como foi e

    como concebida a natureza na nossa sociedade, o que tem servido

    como um dos suportes para o modo como produzimos e vivemos, que

    tantos problemas nos tem causado e contra o qual constitumos o

    movimento ecolgico.13

    Tal ideia do que seja natureza vincula-se umbilicalmente aos interesses de

    determinados grupos da classe social dominante, responsveis pela manuteno de um

    modo de vida baseado no consumo, sem limites, de recursos naturais e na alienao

    poltico-social da fora laboral e intelectual. A chamada questo ambiental decorre dos

    problemas gerados pelas formas de produzir e consumir no interior do sistema

    capitalista que, ao privilegiar uma viso econmico-crematstica da vida, altera com

    suas atividades o conjunto dos elementos responsveis pela manuteno da dinmica de

    funcionamento ambiental planetrio. No entanto, com relao s formas de produzir na

    sociedade, Gonalves nos adverte que:

    [...] na nossa sociedade, a maior parte da populao no dispe da

    terra e dos demais recursos naturais e, portanto, no diretamente

    responsvel pelo uso que dado a esses recursos. Os proprietrios das

    terras e de outros meios de produo que, em funo da prpria

    concorrncia, vem-se compelidos a aumentar a produtividade de suas

    empresas sob pena de deixarem de ser capitalistas. E, para isso,

    lanam mo das tcnicas mais eficazes, sejam elas ecolgicas ou no.

    Deste modo, no respeitam os tempos dos ecossistemas ou os humores

    dos trabalhadores, como bem o demonstrou Charles Chaplin em

    Tempos Modernos.14

    Dessa maneira, as alteraes causadas pela ao de seres humanos no

    ecossistema, a exemplo da poluio, causam a destruio do ambiente ao impedir [...]

    que os ciclos naturais continuem funcionando eficientemente, devido aos detritos

    acumulados e ou esgotamento dos recursos naturais pela velocidade e intensidade da

    explorao[...]15. O tempo de resposta do meio natural para recuperar-se dos efeitos da

    degradao e da poluio superior ao tempo da indstria, do consumo e do descarte

    que vigoram na sociedade e se aceleram cada vez mais.

    13

    GONALVES, C.W.P..op.cit., p.23 e 24. (grifo do autor) 14

    Idem, p.115. (grifo do autor) 15

    ALMEIDA, Jozimar P. de. A questo ambiental: contribuio a um caosmo da Histria. Ps-

    Histria,Assis/SP, v.4, p. 181, 1996.

  • 38

    Dentro da lgica do sistema capitalista ocorre, segundo Almeida, a

    matematizao da natureza numa tentativa de torn-la infinita como os nmeros, para

    convencer o restante da sociedade [...] que a cornucpia do meio ambiente nunca se

    esgotar de fornecer matria-prima e energia e de receber o lixo da produo [...]16 e do

    consumo vigentes na sociedade.

    Vivemos uma poca de transformao planetria em que se discute qual

    caminho tomaremos rumo ao futuro da espcie humana. Com o desenvolvimento das

    cincias chegamos ao consenso a respeito da finitude dos recursos naturais, sem os

    quais nossa sociedade no sobreviveria, e tambm de nossas parcas possibilidades de

    resoluo dos problemas ambientais globais de maneira isolada.

    Questes complexas, como a poluio das guas, efeito estufa, mudana

    climtica, buraco da camada de oznio na Antrtica, aumento do nvel dos oceanos, que

    atingem a humanidade se misturam a problemas locais, mas com repercusso global

    pelo efeito cumulativo e de disperso.

    Consumismo, poluio do ar nos grandes centros, engarrafamentos, falta de

    esgoto, problemas de sade e o destino do lixo domstico, comercial e industrial, apesar

    de terem sido minimizados em pases desenvolvidos, ainda so um srio problema

    socioambiental nos pases menos desenvolvidos.

    A questo ambiental nos coloca[...] diante de questes de claro sentido tico,

    filosfico e poltico[...]17, apontando para as dificuldades que se mostram na resoluo

    de tais dilemas ambientais e da dificuldade em nos desprendermos de um pensamento

    do sculo XVII que sobreviveu at hoje.

    Nos ltimos duzentos anos construiu-se uma noo que se tornou hegemnica

    de que a tcnica e a tecnologia poderiam resolver todos os problemas que surgissem na

    sociedade e no planeta. No entanto, houve e h crticas a essa forma de pensar, viver e

    produzir, que nos levam a reavaliarmos nossa relao com o planeta e com as outras

    formas de vida nele existentes.

    Ns somos seres biolgicos, culturais e histricos e estamos ligados natureza,

    ao ambiente no qual estamos inseridos, sendo necessrio pensarmos nessa relao

    natureza/sociedade e nas suas consequncias. O envolvimento da sociedade com a

    natureza, de maneira complexa e dinmica resulta em processos acentuadamente

    16

    Idem, p. 184. 17

    GONALVES, C. W. P..op. cit., p.18.

  • 39

    desestabilizadores para o mundo natural, pois os seres humanos retiram da natureza

    muito mais do que necessrio manuteno da vida.

    Tal fato decorrente de que o sistema capitalista criou necessidades

    socialmente constitudas que provocam o aumento da demanda por recursos naturais,

    que por sua vez no podem ser renovados de acordo com o tempo social, dependendo de

    processos naturais que demandam um perodo maior que o da lgica capitalista, cujo

    objetivo prioritrio a multiplicao do capital no menor tempo possvel.

    Quando se sabe que 20% dos habitantes mais ricos do planeta

    consomem cerca de 80% da matria-prima e energia produzidas

    anualmente, vemo-nos diante de um modelo-limite. Afinal, seriam

    necessrios cinco planetas para oferecermos a todos os habitantes da

    Terra o atual estilo de vida que, vivido pelos ricos dos pases ricos e

    pelos ricos dos pases pobres, em boa parte pretendido por aqueles

    que no partilham esse estilo de vida. Vemos, assim, que no a

    populao pobre que est colocando o planeta e a humanidade em

    risco, como insinua o discurso malthusiano.

    A promessa moderna de que os homens e mulheres, sendo iguais por

    princpio, so iguais na prtica no pode concretamente ser realizada

    se a referncia de estilo de vida para essa igualdade for o american

    way of life.18

    O estilo de vida que levamos tem impacto direto no ambiente terrestre. Quanto

    mais generalizada a sociedade de consumo maiores sero os desafios, visto que o ideal

    consumista deve ser pretendido pelo maior nmero de pessoas possvel e isso tem

    impacto direto no uso dos recursos naturais.

    Ao pensarmos nessa relao entre a sociedade e a natureza no podemos

    entender o mundo separando em nossa reflexo os seres humanos da natureza.

    Compreendemos que, como seres humanos, fazemos parte de um nico e frgil sistema

    de vida planetrio que, por meio de interaes complexas entre suas partes produz o

    mundo como o vemos; entendemos isso segundo nossa insero histrico-cultural na

    sociedade.

    Este mundo analisado e produzido pelas relaes estabelecidas entre seres

    humanos e natureza , a nosso ver, um local onde foi rompido a homeostase, o

    equilbrio da vida, que aos poucos deixa de existir. Nesse planeta onde estamos vivendo

    e produzindo esta reflexo histrica, onde tentamos construir sentidos e onde tentamos

    interpret-los, existe uma tendncia de que:

    [...] o processo de ampliao da velocidade produtiva por intermdio

    da cincia e tcnica, conjugado com o aumento da quantidade de

    produtos a serem transformados, intervm diretamente, e em larga

    18

    Idem, p.31. (grifo do autor).

  • 40

    escala ampliando o grau de desestabilizao entrpica, no

    funcionamento da natureza[...].19

    Dessa maneira, na sociedade capitalista e globalizada, a ampliao da produo

    pelo uso intensivo da tecnologia e da criao de necessidades de consumo rompe o

    equilbrio do sistema de vida planetrio. Ao acelerarmos o ritmo da produo e do

    consumo no damos tempo para que os processos naturais aconteam de maneira

    adequada. Sobrecarregamos o planeta com uma quantidade de resduos acumulados e

    concentrados em pores do territrio que muitas vezes no so adequados e, assim,

    destrumos o equilbrio do ecossistema, prejudicando a teia da vida.

    Entendemos que a questo ambiental fruto de um modelo de civilizao

    baseado nas ideias de progresso e desenvolvimento, que propagam a dominao da

    natureza pela humanidade. Em nosso entender, questionamos as noes e prticas

    estabelecidas de progresso e de desenvolvimento por expressarem o poder de dominar e

    explorar destrutivamente os recursos naturais e os seres vivos.

    A sociedade capitalista demanda que utilizemos os recursos naturais pela

    imposio de ritmos e mtodos industriais em todos os sistemas sociais. Assim,

    modificaram-se geneticamente plantas e inseminaram-se embries em animais,

    modificando ou melhorando caractersticas genticas. Com isso pretendeu-se acelerar a

    engorda com raes e hormnios para reduzir o tempo de abate dos animais ou

    aumentar a resistncia a doenas nas plantas. Intensificou-se e industrializou-se um

    tempo que era natural, para que pudesse acompanhar o ritmo exigido pela produo

    industrial.

    A conservao de alimentos com produtos qumicos e adies de sdio para

    evitar que se deteriorem e aumentar seu prazo para consumo e a produo de tecidos e

    roupas em que se projetam novas fibras e fios sintticos derivados do petrleo, mais

    maleveis que os naturais, tambm podem ser citados como exemplos dessas

    modificaes colocadas em prtica pelos interesses industriais.

    Outro aspecto relevante do sistema produtivo, no entanto, permanece nas

    sombras do sistema e diz respeito aos resduos e dejetos resultantes das atividades

    desenvolvidas pelos seres humanos em seu ambiente, notadamente pelo setor ind