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·,>;.~~'\·t ALBA ZALllAR A MAQUINA E A REVOLTA AS ORGANIZAC;OES POPULARES E0 SIGNIFICADO DA POBREZA .:,,- BIBLIOTECAS FESPSP ~t 05"339 10. r~JOMEPROF.~~ :::()D. ~t ~Pt\STA ~lt <,;'\l edltora 6rasiltense - ~ ~B.Q.. ... _ J\ 5G 2~ fJ rJD .,...•.. ) ~ ... .\.;".'~.~. ~;"-"" ;:--:;~~}.;~?~'~~/!i~<!#''!~ {f'.~ ..""... ~>. ·:~:~\·;~~~~~~~¥.~!~t~~~6;f.t~~~~· .... ·" i; I i= /:,"(,,:', /'/£:;7V(/5 4( IL//////(/5 .0 antrop61ogo e os pobres: Introducao metodol6gica ·e afetiva Imagine-se estacionando seu carro particular na rua de urn bairro de pobres cujo nome permanecia nas manchetes dos jomais como urn dos focos da violencia urbana, urn antro de marginais e de bandidos. Voc@nao conhece ninguem que Ihe possa indicar os caminhos e prestar-lhe as informacoes de que necessita para mover-se sem riscos desnecessarios. Voce nem sabe muito bem on de procurar 0 que tern ernmen- te.Conbece apenas urn jovern que the foi apresentado por urn amigo comum, o- qual lhe recomendou cautela. E nada mais. Era por esse jovem que, em janeiro de 1980, procurava de porta em porta para iniciar meu aprendizado sobre 0 modo de vida das classes populares urbanas no conjunto habitacio- nal chamado Cidade de Deus. As prirneiras informacoes nao foram nada animadoras. Ninguem parecia conhece-lo muito bem. Comecei a invejar intensamente Malinowski, que apor- tou a urna praia longinquanos mares da Oceania para estu- dar urn povo tribal sern saber-lhe a lingua. mas com a convic- ~ao de que iria deparar com uma cultura diferente e autono- ma, harmoniosarnente coerente e aceita por todos. Ali estava eu bem no meio do dissenso e dos conflitos que, segundo os jornais, rasgavarn a vida pacifica do povo carioca e mancha- vam de sangue a vida brasileira. . A sensacao mais forte que tive naquele momento foi a

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ALBA ZALllAR

A MAQUINAE A REVOLTA

AS ORGANIZAC;OES POPULARES E 0SIGNIFICADO DA POBREZA

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.0 antrop61ogo e os pobres:Introducao metodol6gica

·e afetivaImagine-se estacionando seu carro particular na rua de

urn bairro de pobres cujo nome permanecia nas manchetesdos jomais como urn dos focos da violencia urbana, urn antrode marginais e de bandidos. Voc@nao conhece ninguem queIhe possa indicar os caminhos e prestar-lhe as informacoesde que necessita para mover-se sem riscos desnecessarios.Voce nem sabe muito bem on de procurar 0 que tern ernmen-te.Conbece apenas urn jovern que the foi apresentado por urnamigo comum, o- qual lhe recomendou cautela. E nada mais.

Era por esse jovem que, em janeiro de 1980, procuravade porta em porta para iniciar meu aprendizado sobre 0 modode vida das classes populares urbanas no conjunto habitacio-nal chamado Cidade de Deus. As prirneiras informacoes naoforam nada animadoras. Ninguem parecia conhece-lo muitobem. Comecei a invejar intensamente Malinowski, que apor-tou a urna praia longinquanos mares da Oceania para estu-dar urn povo tribal sern saber-lhe a lingua. mas com a convic-~ao de que iria deparar com uma cultura diferente e autono-ma, harmoniosarnente coerente e aceita por todos. Ali estavaeu bem no meio do dissenso e dos conflitos que, segundo osjornais, rasgavarn a vida pacifica do povo carioca e mancha-vam de sangue a vida brasileira. .

A sensacao mais forte que tive naquele momento foi a

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de medo. NAo0 medo que qualquer ser humane sente diantedo desconhecido, mas urn medo construido pela leitura diariados jomais que apresentavam os habitantes daquele localcomo definitivarnente perdidos para 0 convivio social, comoperigosos criminosos, assassinos em potencial, traficantes det6xicos, etc. Apesar de saber que essa campanha nao era se-nao a continuidade de urn processo de Ionga data de estigrna-tiza!rAodos pobres, eu tinha medo. Urn medo realista de meenredar em malhas cujo controle me escapasse ou de enfren-tar a morte nas maos de urn bandido raivoso. Duvidei que pu-dessepermanecer por hi e me relacionar com as pessoas. Masisso pouco tinha a ver com a possibilidade real de depararcom urn assaltante, possibilidade esta cada vez mais comuma qualquer habitante do Rio de Janeiro, mesmo sem sair decasa. Nao, nilo era apenas 0 medo de morrer com urn tiro nabarriga ou alga ainda mais prosaico.

o cenario com 0 qual deparei nao era total mente des-provido de tranquilidade. De certos angulos, parecia mesmourn calmo bairro de suburbio, de intensa vida social entrevizinhos. Meninos correndo ou soltando pipa no telhado,donas-de-casa conversando no portae, hornens jogando car-teado na birosca, trabalhadores passando a caminho do tra-balho e brincando com os conhecidos, os grupinhos na esqui-.na, e tudo rnais que jli foi eternizado para n6s nos sambascompostos pelos artist as populates. Mas a tensao era visiveI.Nos bebados apedrejados, na mulher louea andando pela ruaem meio a indiferenca geral e, nas esquinas estrategicas, nosolhares atentos e avaliadores dos adoleseentes que se encami-nham para a vida que denominamos eriminosa. Esses sinaisde miseria social e moral eram sublinhados pela propria eom-posi~!o material do conjunto: ruas esburaeadas, cheias delama e de dejetos fetidos dos esgotos ja arrebentados encami.•nharn os passos de quem por elas anda, especialrnente as ruas'mais interiores, menos frequentadas, No inlcio fui poupadapela sorte de presenciar algum dos tiroteios que agitam estequadro taDfrequentemente, Mas ouvi regularmente os comen-tarios a seu respeito, Sendo estranha, mulher e de c1assesupe-rior, era natural que despertasse euriosidade neste cenario. E,sendo novata, ainda nlo havia aprendido que estar ali den-tro, e nAonas ruas ou nos 6nibus da Zona SuIdo Rio de Janei-ro, era ate certo ponto uma garantia de minha integridade fi-

sica. Pols se eu estava ali era porque conhecia gente do local.Tinha imunidades socials e morals.

Olhando para tras, percebo que junto com 0 medo expli-cavel, havia certa ambigUidade na minha postura cujas raizesnlo consegui deslindar na epoca. 0 que me atrala e repelia aomesmo tempo era a possibilidade de romper urna barreira,cuja visibilidade nao e posta ao alcance do olho nu, mas cujaforca se faz sempre presente nos menoresgestos, nos olhares,nos rituais da dominacao, nos habitos dimos de comer, falar,andar e vestir, a barreira que separa a classe trabalhadora po-bre das outras classes sociais que gozam de lnumeros privile-gios, entre eles 0 de receber "educacao", Chegar perto, tAoperto a ponto de me confundir com eles em sua casa, em seubairro, deles que a nossa sociedade construiu inurneros mo-dos de manter distantesatraves de diferentes gostos, palada-res, cheiros e habitos, atraves da permanente carencia, me pa-recia imposslvel, No entanto, nlo era urn tabu com proibi-~Ocsespecificadas nem a polui!r1o decorrente do contato coma impuro que dificultavam esse contato. Nada ordena clara-mente, na nossa sociedade, 0 contato entre os pobres e osricos, Ao contrario, somos instados a conviver alegrernentenos estadlos de futebol, nos desfiles de escolas de samba e nanossa cozinha. Mas.vivemos em mundos separados, cada vezmais longe urn do outro. Comecei a me dar conta, porestaforma violenta, da invisivel e poderosa hierarquia (ou separa-~Io de classes) da nossa sociedade. Que nao somos iguais nemperante a lei, nem perante a riqueza produzida ja sabemos hamuito tempo. 0 que eu nllo sabia era que havia tantos obsta-culos microse6picos a entravar 0 contato social mais intimaentre n6s. Eu as visitava no seu dominie, por assim dizer.Longe da minha cozinha e dos seus lugares de trabalho subal-terno. Que regras de convivencia mudariam e 0 que haveriade confluencia e de perman8ncia?

Da viagem nlio sal a mesma, nem aos olhos alheios nemaos meus. Aprendi, a duras penas, a cultivar 0 envolvimentocompreensivo, isto e, a participacao afetuosa e emocionadanos seus dramas diilrios, sem me deixar levar pela piedadeque desemboca no paternalismo e na recusa a dignidade deles.Para amigos e colegas sem a pratica de contato politico comesta populacao, adquiri 0 carisma de quem realizou urn "fei-to". Se para outros polui-rne, nAosei. Nosso esplrito cristAo

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tende a cercar estas Incursoes junto a popu)a~ao pobre deuma certa aura divina ou santificada, mesmo que a esqueca-mos a maior parte do tempo.. Nilo era necessario fazer uma op~Ao racional pelo elitis-mo, nem defender Ideias que pregam a conveniente separa~losocial entre pobres e ricos. Quer queiramos, quer nlo, estaseparacao jil est a embutida nos rituais de dorninacao de classeque incluem urn rig oro so afastamento do local de moradiados pobres. As favelas subindo pelos morros em ruelas tor-tuosas incomodavam nossas vistas e atrapalhavam os neg6-clos da construcao civil. Nem a policia, dizia-se, conseguiachegar por la. Removerarn-nas para bem Ionge da nossa deli-

. cada visao. Mesmo as que ficararn mais perto, como Cidadede Deus, que somos obrigados a cruzar a caminho de bairrosricos da zona de Jacarepagua, sAo apenas atravessadas poruma estrada principal. 0 seu interior nao e alcancado pelosnossos oIhos sensiveis, Desconhecemos 0 que 130 se passa,embora nossa ferti! imaginaeao 0 faca, desde logo, urn antrode banditismo, violencia, sujeira, imoralidade, promiscui-dade, etc.:puplamente excluidos por serem "outros" e porserem "lncultos" e "perigosos", os pobres urbanos vivem,neste olhar etnocentrico e hornogeneizador, 0 avesso da civili-zaCllo.

Nas minhas idas e vindas, percebi que passei a exercerurn novo papel - 0 de mediador intelectual entre os pobrestemidos e meus temerosos iguais. Nas conversas com estes,em que essas impressoes do afamado conjunto habitacionalficavam patentes, eu esclarecia os circunstantes sobre 0 que sepassava nas suas ruas interiores. Eu os tranqOilizava com 0futebol na praca, a pipa no ceu, as brincadeiras na rua, asconversas na porta de casa e no botequim. E falava tambemde suas preocupacoes morais e do seu desejo de democracia,sobre a importancia que para eles tern "veneer na moral" e"trocar idelas". Ate hoje exerco esse papel.

'\ Ultrapassada a barreira inicial, vi-me diante de outrosrituals que reconduziam ao afastamento social, a dominacao

. de classe, a hierarquia, Isso me foi gradativamente reveladono desenrolar da pesquisa pela propria rela~Ao que ia sendoconstruida entre mim e 05 rnoradores do local. '.. Quando IAcheguei, no inicio do ano de 1980, as notlclasnos jornais diaries eram desabonadoras da vida no conjunto,

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limitadas que estavam a guerra de quadrilhas que havia se ini-ciado no ano anterior e que ja deixara varies mortos. Era 0auge do que alguns de seus lideres comunitarios considera-yam como uma campanha negativa que visava desaloja-losdo local. 0 notlclarlo policial, entao, ja nlo comportavatodas as noticias sobre a crescente eriminalidade na cidade doRio de Janeiro e se espalhava par outras folhas, anunciando-se as vezes em manchetes de primeira pagina. 0 teor dessasnoticias era claramente sensacionalista: a criminalidade incon-tida, a violencia cada vez maior cometida durante os assaltos,o clima .de guerra em que estavam envoltos os bairros pobresonde atuavam quadrilhas de traficantes de t6xicos. Cidade deDeus era apontada como urn dos prineipais focos do triflcode maconha e, portanto, do clima de guerra e vioJencia quetomava conta da cidade. Havia realmente urna guerra entreas tres principals quadrilhas de Cidade de Deus. Mas essaguerra tinha regras que tornavam a sua violencia ate certoponto compreendida peJos moradores locais. A guerra eraassunto dos "bandidos" apenas. 0 resto da popula~lo viviao seu cotidiano de trabalho e de luta para manter urn padrlode vida digno. Os jornais confundiani 0 que para eles deveriaestar claramente separado, alem de difama-los por nlo mos-trar 0 lade "born", positivo, do conjunto. Isso s6 acrescenta-va difieuldades ao seu viver, ja tllo prejudicado pela pobreza,e os "revoltava". Nesse contexto ouvi pela primeira vez falarem revolta e percebi que repercussoes teria nas duas fases dotrabalho de campo desenvolvido por mim ao longo de 1980,1981 e, esporadicamente, em 1982.

Na primeira fase, nos tres primeiros meses de 1980, 0intuito principal da pesquisa era recolher as representacoesdos moradores acerca da pobreza vinculadas ao con sumo nasunidades domesticas. Nesta fase, nio tive contato continuocom as pessoas entrevistadas, com exceclo de tres rapazesque, alem de serem informantes privllegiados, me abriam oscaminhos e garantiam que nlo seria molestada neste contur-bado ambiente. Eram eles que possibilitavam a minha pas-sagem de uma area para outra controlada por difercntes qua-drilhas, bem como a aceitacac daquela prosen~a estranha porparte dos olhelros e sontinelas du quadrllhas. Fol apcnas nes-te perlodo que senti neccssidade de ser 8uiada. Loso adquirlccnflanca para andar sozinha, tomando 0 cuidado de me

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concentrar emapenas uma das areas em que a conjunto esta-va dividido,

Estivesse ou nao acompanhada, fui ora recebida comdesconfianca, como jornalista interessada em difamar 0 local,ora com esperanca, como uma enviada do governo que ante- .cederia os sacos de feijao e arroz que 0 governo iria mandarpara as familias mais pobres. A desconfianca se explicavapelo fato de que 0 conjunto sofria um processo de estigrnati-zacao pela imprensa. Eles temiam que eu tambern estivesse acata de est6rias sensacionalistas para contar e me pergunta-vam, cheios de dignidade e indignacao, se eu tambem ia explo-rar a miseria do povo. Essa irnpressao se diluia a medida quefalava da pesquisa, as vezes apenas para dar lugar, junto aalgumas familias muito pobres, a urn outro Rapel que estes

. me imputavam: a de funcionaria do governo federal. Enquan-to me viam assim, algumas rnuIheres tendiam a pintar emcores fortes suas difieuJdades, a enumerar as produtos de quenecessitavam para que possivclmente eu as incluisse em algu-ma lista ou fizesse uma ficha que as tornasse candidatas a re-eeber a ajuda paternalista do Estado nos rnoldes que a Igrejalocal lhes oferecc.

Set por-um lade, isso era uma indicacao segura da ima-gem paternalist a forte do Estado que ainda impera entre osrnuito pobres, por outro lado, a bem da pesquisa, era urnaimpressao que deveria ser superada. E essa impressao eu s6conseguia desmaritelar quando os desenganava nesta expecta-tiva: eu nao Ihes traria nenhuma comida, nern 0 governo iriaenvia-la posteriormente. Com isso apareceu novo tom nasenttevistas, que nao se limitavam mais a monotonia das quei-xas e que comecaram a falar da valorizacao positiva de seumodo de vida. Poucas vezes, no entanto, fui dispensada porcandidatos Ii entrevista que se negararn a dar inforrnacoes.Para qualquer pesquisador, esta e uma experiencia desagra-davel, as vezes desanirnadora, pois que nos leva a refletirsobre os efeitos da pesquisa na populacao. Mas nao apenasnos, pesquisadores, pensamos sobre isso. Cornentarios espar-sos dos que colaboraram com a pesquisa, a recusa de urnhornem ern prestar inforrnacoes com 0 argumento de que issonao the serviria para nada e de uma mulher que me perguntoudespachada quantos sacos de feijao ganharia por isso, revela-ram que tambem as pesquisadores se perguntam sobre 0 sen-

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tido desta troca que ~a pesquisa. Se nada nos garante 0 direi-to de perturbar-lhes a vida no espaco que eles concebem comoo de sua liberdade (a casa, 0 bairro), s6 nos resta concluir quecant amos tambem com a paciencia e a generosidade do nosso"obieto" .

Nos que aceitaram a entrevista, a expectativa paterna-lista tinha outros desdobramentos. Eu poderia funcionarcomo uma agencia ambulante de empregos, ja que nada maisparecia fazer all alem de perguntas. Foram muitos os pedi-dos, partidos quase na sua totalidade de mulheres que procu-ravam encaminhar seus jovens filhos ao mercado de traba-lho. Vivi momentos diflceis tentando Ihes explicar que nile ti-nha capaeidade para tanto. Algumas dessas muIheres nao meesconderam que eu me apequenara aos seus olhos. Outras, amaioria, eontinuaram generosamente a manter interesse nasminhas interminaveis perguntas e na minha curiosa pessoa.

Muito me ajudaram nisso os arnigos do local par quemme fazia acornpanhar, que me apresentavam as pessoas eo-nhecidas e que perrnaneciam durante as entrevistas. Em virtu-de de sua presenca, a polarizacao entre a minha imagem demembro da classe privilegiada e 0 pobre entrevistado se diluiae mais facilmente aparecia a identidade coletiva de moradordo conjunto e de trabalhador pobre, categoria sempre pre-sente para definir a comida que eomiam. Tanto foi assimque, nas poueas entrevistas isoJadas que flz, surgiu a atitude,entre os que tinham pretensao a ascensao social, de procurarelevar sua posicao social junto a mim falando de uma cornidavariada e elaborada que nao faz parte da dieta alimentarusual entre os pobtes.

Na segunda fase, iniciei 0 contato com as associacoes demoradores e as organizar;Oesvoltadas para 0 lazer. Ap6s fiearalgum tempo junto a duas das associa~Oesde moradores exis-tentes no conjunto, eonversando, participando de reuniOes eentrevistando alguns membros da diretoria sabre a vida e apolltica local, resolvi dedicar-rne as agremiacoes carnavales-cas e aos times de futebol. Isto por duas razoes principals.Primeiro, porque os membros da maior associalr1o negararn-se a me abrir dados sobre a hist6ria da asscclacao que eu con-siderava indispens8veis, recusa que se expllcava pelos conta-tos anteriores com jornalistas e fot6grafos nos quais se senti-ram usados e traldos. Essa desconflanca em relalrlo aos pro-

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fissionais da imprensa s6 era equiparada pela desconflancadevotada aos intelectuais de urn modo geral., Queriam serseus pr6prios intelectuais e nao precisavam de nenhuma tesede doutorado a seu respeito. Segundo, porque pude perceberque essa associacao abrigava 0 pessoal de nivel educacionalmais alto e que nao tinha muita penetracao nos meios maispobres do conjunto, Resolvi entao procurar as organizacoesque atuavam ao nivel das quadras, das pracas, das ruas doconjunto e que se espalhavam por todo ele.

Quando cheguei ao pedaco mais interior, e urn dos maisvisados pela difarnacao pois abrigava uma das mais impor-tantes quadrilhas de traficantes de toxicos, deparei com urnbloco em formacao que salra pela primeira vez em 1980, emresposta a visao negativa que se fazia deles e na tentativa dealegrar 0 ambiente da quadra. E a hist6ria desse bloeo e dosesforcos da diretoria em implantar uma organlzacao reconhe-cida no local e campo de atividade politlca que eonto nos tresultimos capltulos desta tese.

Ali, 0 meu saber foi logo objeto de especial admiracaoassim que decIinei a minha condicao de professora universita-ria, e nilo ereio que, apesar dos esforcos em mitiga-la, tenhaconseguido me livrar dela, Enquanto Ill. estive, era procuradapara opinar sobre inumeras coisas e muitas vezes essa solicita-Ciiovinha acornpanhada de algo mais do que respeito - eradeferencia diante da rninha "cultural), inalcancavel para elesc tilo pouco valorizada pelos seus lideres cornunitarios. Assim,vi-me diante de amostras de pano tendo que dizer qual delasfiearia melhor para que fantasias, diante de versos para emitirjulgamentos sobre sua beleza estetica e correcao gramatical,diante de casos para decidir quem tinha mais razao. Essa foi a(mica instancia em que vi desenhar-se com c1areza0 que pudediagnosticar como deferencia pelo superior. Eles sentem umenorme respeito pelos que estudaram e conhecem os livros,No entanto, nao eram cegos inteiramente para os limites domeu conhecimento. Com alegria, percebi que tendenciasopostas os faziarn duvidar, criticar, zombar dos meus ensaioscontrafeitos em exercer esse poder que me colocavam nasmaos. Descobri mesmo, mais tarde, pelas suas afirmacoesmais intimas, que me consultavam porque achavam que eupoderia ajuda-los a descobrir de que 0 juri do desfile gostava.

Na verdade, por inclinacao pessoal e por opcao metodo-

16gica, fui pouco a pouco abdicando desse poder nas suasmanifestacoes rnais claras. Recusei-me sempre a impor ou adifundir meus padroes morais e estetlcos, nao aceitei 0 papelde juiz e desviei-me conscientemente de qualquer identifica-~ilominha com esses personagens do seu mundo, em especialcom os que "julgam" a producao cultural deles nos desfiles emeios de comunicacao de massa, mesmo sabendo que a rela-eAo com estes l! apenas instrumental: trata-se de ganhar 0

concurso. Asreacces a essa minha postura foram divergen-tes. Houve os que, mais independentes, mal disfarcavam umapont a de desprezo na sua percepcao sobre os limites do meusaber. Se eu nao entendia de samba, do que entendia que va-lesse a pena realmente? Houve outros que, decepcionadoscom a minha recusa, reclamaram de mim por nao estar cum-prindo 0 que consideravam como minha obrigacao, Ora, 0que vinha eu fazer ali se nao queria ajuda-los a ganhar 0 des-file de carnaval, arrumar empregos e, finalmente, gl6ria ..dasglorias, conseguir notlcia sobre eles no jornal? Mas 0 que pre-dominou foi a atitude generosa de me aturar como urn perso-

, nagem sem grande utilidademas com quem gostavam de con-versar. E conversamos bastante. Oostavarn tambem da ideiade que iria escrever urn livro a respeito deles, por sentirem-sepersonagens da historia do Brasil, conforme eu Ihes dissera.

Mas as armadilhas clientelisticas continuararn a ser arma-das para mim, embora encontre alguma dificuldade de~dife~rencia-l as das que silo armadas no meu proprio rneio social.As vezes vinham tao disfarcadas que s6 me dava conta depoisdo acontecido. 0 antropologo tambem tern seu dia de otario,concluia. NAome lembro de ter conseguido arrumar empregopara ninguem e cedo aprendi a importAncia de nadaprometera essa populacao ja cansada de promessas nao cumpridas.Mas tentei varias vezes, contando sempre os resultados nega-tivos dos meus esforcos. Afinal, nlo tinha 0 menor interesseem que me considerassem uma pessoa import ante e me man-tivessem nesse papel de mediadora entre eles e 0 resto da socie-dade. E eu tinha deixado claro que nlo vinha em busca de vo-tos, que nao era candidata a nada, 0 que me ajudou bastantea conqusitar sua simpatia. Tarnbem ja tinha tido inumerasdemonstracoes da capacidade delesde se "virarem" que del-xava meus timidos esforcos parecerem coisa de crianca.Achei melhor assim.

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Fui tambem muitas vezes pressionada a fazer 0 papel derico generoso pelas mulheres das familias mais pobres e pelopresidente do bloco, bem como por sua secretaria, Como, napercepcao deles, eu tinha dinheiro, nada mais natural queexercesse a generosidade esperada dos rices, nesta concepcaopauperista de redistribuicao de riqueza. Recebi pedidos vela-dos de dinheiro emprestado para a passagem, de roupas ve-lhas, de presentes para as criancas da parte das mulheres, emais claros, quase imperatives, de aiudar 0 bloeo nas suasobrigacoes rituais e exibicees de prestigio junto a outros blo-eos. Entre estas mulheres muito pobres, as representacoes dopauperismo que ligam a assistencia social a agentes privadosera ainda forte. Mas havia algo em outros pedidos, vindos dadiretoria do bloeo, que nao consegui c1assificar. Nestes naoesperavam por nenhum movimento gracioso de minha parte,encostavam-me na parede simplesmente. Como negar urnpedido que vinha acompanhado da certeza na sua justeza?Assim, fui eu quem financiou a bebida quando 0 bloeo apa-drinhou uma agremlacao amiga. E quando se aproximava 0carnaval, a pressao exercida pelo presidente do bloco era tan-ta que meu diario de campo desereve por paginas e paginas aaflicaoque senti a por achar que nao podia nem devia finan-ciar 0 carnaval deles, Ajudei 0 bloeo, junto com os seus dire-tores, a pagar sua divida de registro na Federacao dos Blocos,mas me recusei a pagar 0 conserto das pecas da bateria. E. de-pois de urn perfodo de certo desconforto e decepcao da partedo presidente, acho que entenderam que eu nao era assim taorica aflnal, a ponto de me tornar seu patrono. E continuarama me receber com toda simpatia.

Esse dialogo registrado pelo meu gravador dramatizabem a situacilo que tive de enfrentar, independentemente derninha vontade e incllnacoes, durante reuniOes da diretoria dobloco:

Lucia: "Alba, no dia da festa das crlancas tu vai colaborarcom doces, n10 vai?".Alba: "Minha Nessa Senhoral".Lucia: "Se voce nllo quiser colaborar com a gente flnancelra-mente,voc@ pode fazer 0 seu papel. Ir numa casa de doce ecomprar umas SO caixas de cocadas" (risos).

A MAQUINA E A REVOLT A 19

Lucia: "Sabe 0 que ~, Alba? Isso eu nllo falel com 0 Jaironlo. Isso e urna ideia mlnha que tl saindo agora. Falei SO cai-

'xu de coeada, isso e urna suposi~llo. Porque a nossa finali-dade e dar dois mil sacos de doce".Alba: "Para as crlancas?".Lucia: "Pras criancas. A gente vai fazer distribui~lo na qua-dra. Ai quem e da diretoria, por exemplo, se voce vier com 50caixas de cocadas ... essa aqui e a ajuda da diretoria. Esse aquieo fundamento que a gente vai fazer pra Cosme e Damito,isso vai ser da diretoria mesmo, com guarana, vela, fita. SeuGeraldo, eu nllo estou falando Oll trocos direito? Se voce qui-ser dar, da. Se nilo quiser, voce vai se estrepar" (risos).

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Virei tarnbem parte de um espetaculo montado para asvisitas importantes ao local. Eu era hem vestida, hem falantee amiga deles. Como iriarn deixar de me exibir as "autorida-des" que apareceram em numero cada vez maior l\ proporcaoque nos aproximavamos das eleicoes de 19821 Os politicos vi-nham buscar seus votes, eles queriam reeeber a ajuda mate-rial dos politicos e na barganha pelo custo do voto eu entravacomo demonstracao do prestigio e da lmportancia deles nolocal. Deixei-me, sem opor nenhuma resistencia, usar dessemodo. Nlo me custava nada, a nao ser a obrigar;fio de com-parecer a todas as festas a que eu era convidada e comer inter-minaveis pratos de angu a baiana. E nas fest as eu podia obser-var de cadeira, literal e metaforicamente, os contatos entre aspoliticos e a populacao local. Eu tarnbem os estava usandopara avancar a minha pesquisa. Era urna troca em que eu ofe-recia alguma vantagern palpavel: aiuda-los a elevar a valor desuas apostas no jogo politico que travavam para conseguirmelhorar as condicoes de vida no local.

No todo, estava numa posiclo privilegiada para discu-tir, a partir da propria relar;lo que mantinham comigo, suaposiClo diante do poder que eu representava, Afinal, eu erauma intelectual que tinha 0 privilegio de dedicar boras de tra-balho a atividade de pensar sem que nada fosse "felto" nofinal dessas horas. Deparei com uma atItude ambfgua da partedeles, Embora demonstrando respeito e ate deferencla pelosaber que nao possulam de escreverlivros, inumeI:as vezes merevelaram sua desconfianca quanto a importancia ou utili-dade disso. Que especie de trabalho era esse? Para que serve a

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pesquisa? Quando ficamos mais intimos, comecaram a mepressionar para "fazer alguma coisa", prestando pequenosservices na atividade incessante de preparar 0 carnaval doproximo ano. Desajeitada com as maos, especialmente diantedas eficientes que possuiam, limitei-me a lhes dar carona dequando em quando e a tirar fotografias deles. Nas proximi-dades do carnaval, no entanto, ajudei a desenhar a bandeira ereeortci rnuita alegoria em papel laminado. Se percebiam 0poder que meu status social me eonferia, procuravam valer-sedele colocando-me no Ingar do intelectual tradicionaI, media-dor com 0 mundo, ou melhor,um dos muitos mediadorescom 0 mundo de que se valiam. Mais tarde, porern, outrarepresentacao passou a prevalecer. Como para mim a ativida-de de pesquisa nao era mera tecnica de obtencao de dados, vi-vemos uma relacao social em que ambas as partes aprende-ram a se conhecer. /

Foi a propria atividade de pesquisa que me livrou de sermero objeto decorative, porern, inutil, na paisagem movi-mentada dos seus guetos, ou um "comissario" (broker) juntoIi sociedade nacional. E foi s6 passada a fase inicial das abor-dagens experimentais e dos jogos de conhecimento mutuo,que pude usufruir do doce e livre convivio que so existe entrepessoas amigas, Em parte porque nao era "orgulhosa" ou"rnetida" e nao os olhava com superioridade; em parte por-que consegui convence-los da seriedade dos meus propositos,em parte porque tambem me divertia com eles, virei "umapessoa muito bacana". No dizer deles, e silo palavras tex-tuais, eu "dera forca para 0 bloco des de 0 inicio" e nao era"interesseira" como os politicos que os procuravam. Confes-so que isso me gratificou enorrnemente. Como outros antro-pologos, I eu preferia ser amada a ser respeitada, e havia atin-gido 0 men intento. Com isso, nossas tracas perderam 0 cara-ter que rege as prestacoes entre desiguais, Sem nunca ser con-siderada uma igual, fui "aceita" finalmente. Nossas trocasnao eram apenas medidas de poder, nem tentativas de extrairo maximo do parceiro. A generosidade e a confianca fizeramsua entrada e n6s passamos a trocar ideias, objetos, pequenasdelicadezas sem preocupacoes imediatas com 0 retorno, comoconvem a relacoes de longa duracao. Comi muita comidagostosa na casa dos amigos que ficavam eontentes de mernostrar a sua "fartura" de domingos, paguei muita eerveja

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nas refeicoes assim melhoradas. As reuniOes da diretoria dobloco, na epoca em que deJas fiz parte, foram regadas a cer-veja e continuaram muito animadas. Gravei as entrevistasque me coneediam como urn gesto gracioso, mas deixei-osgravar seus sambas e suas cancoes com meu gravador e mi-nhas fitas, algumas das quais ficaram por III mesmo.

Sobretudo tirei muita fotografia, varias das quais deipara eles. Aprendi muita coisa a seurespeito fotografando-osnas suas casas, nas suas famllias, na praca, na rua, arruma-dos, fantasiados, desprevenidos. Havia finalmente descober-to alguma coisa que eonsideravam produtiva para fazer. Ape-sar disso, jamais consegui entrar na categoria dos trabalhado-res. Mas aprendi sobre 0 gosto imenso que tern de aparecernas fotos - unicas representacoes iconograficas de suas pes-soas, suas imagens nas casas sem espelho em que moram - e,portanto, 0 dese]o de aparecerem sempre arrumados e Iim-pos. NAo gostam de ser flagrados. Preocupam-se em naoparecerem ridicules ou de alguma maneira que os faca senti-rem-se envergonhados. E aprendi a jamais ferir a etiqueta dassuas relacoes, Uma das li~oes mais marcantes durante a pes-quisa foi que nllo se pode fotografar juntos uma muIher como marido de outra, mesmo que seja 110 meio da rua. Mas dei-xavam-se fotografar alegremente. Uma das impressOes maisvividas da minha memoria foi a corrida desearada das erian-cas e a press a mais disfarcada dos aduJtos em se postarem sobo Angulo das minhas lentes. Acabei deixando-osposar comoqueriam e pude observar, nos seus arranjos fotograficos,quem fazia questAo de relembrar a hierarquia entre eles e emque situacoes a estrutura predominava sobre a alegre misturade todos sem distineoes de status e prestigio. Junto As insig-nias do bloco, 0 presidente e a diretoria sempre deveriam ocu-par 0 Iugar central; no meio da praca ou no bar do bloco rela-xavam a vigil4ncia sobre a formalidade. .

Suas representacoes sobre a condicao de pobre - 116menino, sai dai que voce ta todo sujo. Vlo pensar que pobrenao toma banho" - e seus preconceitos raeiais - "pretoqueima a fotografia" - eram estimulados pelas fotos. E naepoca em que tornou-se sinistramente famoso 0 IIMito Bran-ca" , outro nome do esquadrao da morte entao em franca ati .•vidade no Estado do Rio de Janeiro, tomei conhecimento deuma forma dramatlca da outra (unelo Importante da foto-

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grafla no seu meio: a de forneeer as autoridades do pais a suaIdentiflcacao. "0 moca, nlo e pra dar pro Milo Branca, e7",ouvi de urn jovem que parou urn import ante jogo de futebolnum domingo quando percebeu que eu 0 fotografara. E con-tinuou esbravejando ameacadoramente contra mim enquantoeu me afastava para pracas onde era melhor conhecida. Quero tom fosse de brineadeira, quer fosse serio, isso n40 aconte-ceu uma au duas vezes, mas sempre que eu me aventuravapor areas do conjunto onde nao era bem conhecida. Em rela-~ao a fotografia, a mesma multiplicidade de concepcoes, amesma polissemia que encontrei em todos os campos' de suavida social. Fotografia para mostrar quem eles sac para elesmesmos, seu espelho pessoal, fotografia para os outros, suaimagem ou mascara social, fotografia que os identifica comovigiados, documento nas malhas muito pouco jurldicasdoaparato policial repressivo do Brasil de hoje.

Muitas vezes me trataramcomo aluna, 0 que me delicia-va. Aceitava 0 papel com prazer, Gosto de fazer perguntas,alias estava ali para isso, e quando se dispunham a ser meusinstrutores podia exereer sem empecilhos ou vacilacoes 0 meuofleio de antropologo, Bles me explicavam a sua "Ungua"com uma enorme paciencia, Como nao tinham urn sistema deparenteseo complicado e desconhecido, nile pude satisfazerminha curiosidade com as perguntas interminaveis sobre pa-rentes e mitos que deixam os indigenas enfastiados com meuscolegas etnologos. Contentava-me com seu linguajar rico,divertido e diferente, no mais observando-os em a~ao. Perce-beram logo que eu gostava disso e ouvi inumeras vezes dosmais generosos - 410 rapaz, ensina pra rnoca. Ela e madame,nao sabe giria" . E foi assim que fui aprendendo sobre as suasrepresentacoes acerea da violencia, do banditismo, do poder,da pollcia, da politica e dos politicos.

Chegou rapido 0 dia em que tambem fui inquirida poreles. Nas minhas primeiras visitas fui submetida a extensosinterrogat6rios sobre a minha pessoa, minhas atividades,meus objetivos pelos lideres do local - diretores das associa-c3es de moradores e 0 presidente do bloeo de earnaval queacabei estudando mais minuciosamente. Seus maiores temo-res com relacao Iiminha identidade devlam-se ao fato de car-regar cornigo os mesmos objetos que identificavam um [orna-lista: a camera e 0 gravador. Eeu havia chegado num mo-

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mento em que 0 conjunto estava em evidencia na imprensaque produzia dele uma imagem negativa perante 0 seu publi-co leitor. Acabavam de ser traldos, segundo me contaram,por urna jornalista de importante diario carioca, a qual haviase aproximado deles com promessas de ajuda-los a desman-char essa rna impressao e que aeabara de publicar mais umareportagem sensacionalista sobre a violencia em Cidade deDeus, falando apenas da guerra. Como resultado disso, sofrimementos iniciais de severas duvidas a meu respeito por par-te dos diretores do Conselho de Moradores. Seu membromais velho, que possula importante arquivo sobre a hist6riado conjunto, aeabou negando-me 0 que n40 havia negado ajornalista: 0 acesso a essa fonte documental. Essas dificul-dades pessoais faziam parte da sua hist6ria de contatos comestranhos, e eu tive que engolir a frustracao com 0 entendi-mento de que nao podia apagar as mareas desses contatosanteriores. Acabei por conseguir impor a imagem de escritorae professora universitaria, isso depois de exibir a torto e a di-reito a minha carteira profissional e 0 meu unico livro entAopublieado. ,

Depois que aceitaram a ideia de que eu ia escrever urn,livro a respeito deles, comecaram as especulacees entre a pes-soal do bloeo. Urn dia descobri que corria 0 seguinte boato ameu respeito: eu nao era nem da policia nem do jornal; masqueria escrever um livre sobre 0 Mane Galinha, 0 bandido-her6i da area que mais pesquisei, morto no ana anterior emcircunstancias nunca esclarecidas. Era por isso que eu queriaconhecer toda a vida dele e do lugar para poder contar nolivro. Na verdade, ja estaria trabalhando num fllme que sefaria sobre a vida dele. Essa era urna representacao positivado intelectual, pois esperavam que eu desflzesse uma injusticasobre a fama do rapaz e ajudasse a melhorar a imagem dolocal. Eu os representaria para 0 resto da sociedade. Com pe-na, desmanchei mais essa impressao e expliquei como pude 0que era uma tese sobre "a vida do povo".

Passado 0 periodo inicial de duvida, quando lhes mos-trei a carteirinha da unlversidade em que trabalho e lhes faleido meu projeto de escrever uma tese a seu respeito, meu gra-vador, de objeto de temor e desconfianca, passou a objetoquerido e procurado. Eu, minha m'aquina fotoirafica e meugravador rodavamos por suas casas, sedes de associacOese

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pracas, passados os primeiros momentos de indecisao sobrenossos objetivos, com grande desenvoltura. Se respeitaramsempre a maquina fotografica como objeto de meu exclusivomanuseio, ate porque isso era necessario para que pudessemsair sempre nas fotos, familiarizaram-se com meu gravador atal ponto que eles mesmos ligavam e des1igavarn 0 aparelhodurante as reunioes e durante as gravacoes musicais. E sern-pre queriam ouvir 0 que havia sido gravado, ate mesmo algu-mas de suas entrevistas, 0 que me obrigou a emprestar-lhes.ogravador e acabar por abrir mao de alguma das fitas. Numadessas vezes, gravaram para mim 0 discurso de politicos numafesta a qual nao compareci e entrevistaram varias pessoas arespeito do' even to. Nessas entrevistas feitas por eles pode-seperceber que fui sempre muito mais inquisitiva, insistente eeuriosa do que eles tinham vontade de ser uns com os outros.Perdcu a ciencia, ganhou a simpatia.

Nesse percurso da familiaridade com meu gravador,percebi que durante as reunioes da diretoria do bloeo come-caram a usa-lo como velculo dos recados enviados uns aosoutros nas suas disputas pelo poder. A secretaria do bIoeo,rnulher rnuito ativa e esperta, via em mim e no meu gravadoraliados potenciais contra 0 mandonismo do presidente e deoutros diretores. Os dernais diretores justifieavam suas posi-c~es de man do e suas prerrogativas masculinas, Eu e meu

. gravador ouvlarnos. Dil minha mem6ria des nao tinham ne-nhuma certeza, mas a do meu gravador era infallvel. E elesapertavam 0 botao de retorno em caso de duvida para ouvir 0que eada urn havia dito, alem de fruir do prazer de ouvir suapropria voz, eomentando-a sorridentemente. A certa altura,percebi que eu e meu gravador tinhamos nos tornado 0 cen-tro das reunioes quando 0 conflito entre eles estava mais aee-so. Quase todas as intervencoes eram dirigidas a mim e as fra-ses vinham entreeortadas de "Alba, mas e como estou lheexplicando" ou "Alba, nlo e nada disso que ela disse" ou"Alba, voce 010 acba que ...••. Eu tinha me tornado uma [ui-za sem ter nem a vocacao nem 0 poder para gerar uma senten-ca. Talvez quisessem apenas urn mediador para seus eonfli-tos, masnem isso ousei fazer. Eseolhi 0 silenclo e eles volta-ram seus diseursos para seus mais importantes interlocutores:seus parceiros, seus aliados, seus inimigos no bloeo. E eu aIifiquei, atenta, registrando 0 que podia com a minha humana

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e nem sempre confiavel mem6ria e a infalivel do meu gra-vador.

Nem sempre, porem, optei pela neutralidade. Quandofui convidada para participar na comissao [ulgadora juntocom outros visitantes llustres e dois compositores locais,recusei-me a aceitar a ingerencia do diretor de car naval que

. nos aconselhava a aeeitar um dos sambss concorrentes. Espe-rei para ver como 0 publico local reagia diante dos varies sam-bas. E escolhi 0 que mais empolgou a bateria, os passistas e 0publico assistente. Fui depois parabenizada.

No auge da minha fama, pude escrever no meu diario decampo:

"Sou cumprimentada pelas ruas em quepasso. Seosa~o deque ji perteneo ao lugar, que estou ligada a eles e daqui pordiante marcada por isso. Espamo de saber que posso me ideo-tificar com pessoas 110 dlferentes de mim socialmente. Meucarro para, todos vlo abrindo caminho, sorrindo. Os rapazes .comecam a querer saber das fotos, as criancas me tocam, mepedem, sentam no carro e eu vou para dentro da sede do blo-co. Lucia e sania costuram. Jairo, Dum canto, olhando pelajanela, diz que 010 est! bem ... 'Ho]e nllo estou eu.' Vou paraperto das mulheres. Lucia vai logo dizendo que Jairo pensouem 'me dar uma ideia' (estranho, 010 empregam a palavraJavor) de ir a Pilares (I I) buscar nlo sei 0 que do bloco, queele teria reclamado que eu nlo ponho 0 carro • d1sposi~1odobJoco. OSSOi do oflcio. Por mais que eu diga que precise tra-balhar na pesquisa, eles acham que a minha presen~a ali deveser justificada pelo que posso fuer de concreto. As expectati-vas de solidariedade por parte de quem tem mais do que eles ~muito grande. Solicita~Oes constantes de urn lado, nlo t~mneohum pejc em pedlr, isto ~, 'em dar uma idcla'. Se colar,colou ... Sou firme quanto a Pi1ares: nlo irei. Mas nlo consi-go escapar da Taquara, onde Jairo quer que eu leve Jorgepara apanbar urn surdo. E nlo hi comoreclamar do preco dagasollna, isso seria impcrdolvel mesqulnharle. Hi que ser ae-neroso. Pobre, para eles, .nlo e JIliserivel, em nenhum dosdois sentidos, Dinheiro no seu bolso nlo pua. nem OiS troeasde ccrveja nas rodadas do bar das quais As vezes participo,muito mais como coovidada pelos homens gentis do que comopatrocinadora" .

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Ouvi, entao, muitas conversas das quais nao participavacomo interlocutora - no meio da rua, na praca, na sede dobloco, nas biroscas - e que pude registrar porque tornei-meurn personagem local familiar. Ficaram acostumados com aminha presenca, tal como me ensinavam os guias praticos depesquisa na disciplina de minha preferencia. Noutras conver-sas, eu era a principal ou uma das interlocutoras. Entenditodas elas, tanto as entrevistas formais e as conversas dirigi-das a rnirn quanto as outras apenas entreouvidas por mim,como situacoes sociais. Mas as falas dirigidasaos outros ato-res dos mesmos dramas sociais eram diferentes das dirigidas arnirn especificamente, especialmente durante as entrevistasem que havia certa distancia com relacao ao palco da acao,Ainda no calor da hora, mas permitindo 0 comentario rnaisdescomprometido, refletido, ou entao racionalizador. .

Nao-pude escolher urn drama como fio condutor da tra-ma de suas aliancas e conflitos, como me ensinara a antropo-logia politica inglesa (Gluckman, 1965; Turner, '1957; VanVelsen, 1969; Frankenberger, 1966), e que dariam a chavepara cornpreender a dinamica da politica local. A razao esimples. Os dramas de aproximacao-afastamento das pessoascom relacao a organizacao local sucediam-se com rapidez, oseonflitos dentro da diretoria e entre a diretoria e 0 resto dapopulacao local eram diaries, as mortes provocadas pelaguerra entre ban didos e entre estes e a policia, que formavarn

.opano de fundo da vida social local, iam tornando-se eadavez mais freqUentes. Na verdade, era como se 0 oposto vales-se para 0 caso ern questao: 0 acontecimento era 0 dia tran-quilo, sem dramas, nessa sociedade cheia de conflitcs..Longeestava de poder identificar, como Victor Turner, urn dramaunico revelador:

"The social drama is a limited area of transparency on theotherwise opaque surface of regular, unventful social life.Through 'it we are enabled to observe the crucial principles ofthe social structure in their operation, and their relative domi-nance at different points of time" (1957: 93).

o revelador era a presenca continuada dos conflitos entre aspessoas, da coexistencia de ideias contradit6rias e de diferen-tes tendencias apresentadas na arena das suas disputas, as

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vezes pela mesma pessoa. A "estrutura" era a falta de mode-10s claros e a tensao entre os varies oferecidos pelas praticasinstitucionalizadas vitoriosas e as que permaneciam comoalternativas nos bastidores dos canais de comunicacao dafofoca e nas discussoes acaloradas, diretas e publicus, querdurante as reunioes fechadas da diretoria, quer no meio dapraca, da birosca ou da rua. Os conceitos mais adequadospara estudar esses processos erarn, portanto, os de campo earena,. condizentes com a flexibilidade da entrada de atoresna intcracao e a fluidez dos recursos e significados dos mem-bras participantes (Swartz, 1968), bem como a intercambiabi-lidade entre palco e plateia.

Ao lidar com 0 vasto material que acumulei ao longo dapesquisa, percebi que estava, senao diante de dados de tipodiferente, pelo menos diante de arranjos diversos da tensaosempre existente, em qualquer c1asse social, entre 0 individualeo eoletivo, entre 0 privado e 0 publico, entre 0 proximo e 0distante, entre 0 lntimo e 0 formal. De urn lado estavarn osregistros da sua fala durante a acao e que deveriam ser infor-mados por uma teoria do ator num campo de disputas. Deoutro, estavam as entrevistas formais realizadas ao final doprimeiro ano em que hl estive, quando ja era bem conhecidadas pessoas entrevistadas. A atmosfera das entrevistas, queversavam sobre a politica local e 0 banditismo, acabou reve-lando-se mais intima, mais pessoal. Sem a presenca de maisninguern a nao ser eu e meu interlocutor, as entrevistas come-cavam q uase sempre pelo registro de dados pessoais e sinopsesde suas hist6rias de vida. Essa pesscalizacao pareee que mar-cava 0 restante, quando eu procurava extrair deles suas refle-xoes sobre os temas momentosos de sua vida social. Comoresultado, recolhi urn material muito mais rico e mais diferen-ciado do que 0 meu treinamento ern farejar padroes, regulari-dades e estruturas me deixava suspeitar. Is50 nao se devia auma suposta oposicao entre 0 individuo manipulador e de-fensor de seus interesses e a cultura coercitiva, como no esque-ma malinowskiano (Malinowski, 1960; Sahlins, 1979: 97-99).Muito mais adequada para explicar esse fato e a teoria deBoas sobre a natureza dos fenOmenos culturais, comentadapor Sahlins (op. cit.i 85):

"Boas argumentou rnais tarde - em lima observacso hoje

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E claro que aqui Sahlins tenta provar mais uma vez quea razao instrumental ou a "pratica utilitaria" que critica emvaries autores sac na verdade a razao cultural (inconsciente)das sociedades capitalistas disfarcada em racionalidade eco-n8mica e racionalizaeao do ganho individual'. o que eu querosublinhar e ~ diferenca entre a lingua e os costumes ou a cul-tura que me leva, ao contrario do proprio SahIins, a criticar aideia de c6digo ou estrutura inconsciente quando aplicada aspraticas sociais. Os pobres urbanos, descobri, como quais-quer seres humanos, pensam a respeito de suas condicoes devida e dos inumeros valores, normas, regras, signifieadoscom que costumam ser "edueados" ou "formados" pelasinumeras agencias estatais e religiosas, bem como pelos meiosde comunicacao de massa.

Nem essas agencias de socializacao eram homogeneiza-doras, ja que guardam contradicoes entre si sem que nenhu-ma delas adquira clara hegemonia sobre as demais, nem 0processo de socializacao era totalmente fechado e eficaz aponto de eliminar a reproducao independente de sua culturade c1asse ou 0 seu born senso, ou a sua capacidade crIticadiante das estrategias de que eram alvo. Isso nao quer dizerque seu pensar possa ser reduzido ao c6digo de sua tradicao

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cultural autenoma, se e que podemos falar num sistema cultu-ral autOnomo. 0 desembaraco com que misturavam diferen-tes tradicoes religiosas sem 0 menor cuidado com a ortodoxiatAo cara aos puristas, seja do candomble, seja do catolicis-mo, a fim de comporem sua visao de mundo, s6 pode sercornparado com a facilidade com que lancavam mAo das inu-meras instdncias de mediacao entre eles e 0 resto da sociedadena defesa da sua capacidade de sobreviver. Diflcil, portanto,reduzir esse pensar a urn sistema preestabelecido e fixo deconteudos eulturais explicados em ultima instAncia pela suaposiC!o subalterna ou dorninada no proeesso de producao oucomo prisionciros de uma pratica vista na tradicao estrutura-lista como mera execucao de urn c6digo subjacente, Fosseporque tivessem urn modele ineonsciente, fosse porque ape-nas correspondessem a uma matriz geradora de praticas masque permite a criacao de novos arranjos (ef. Bourdieu, 1972).sua pratica nao dispensava a reflexao. 0 que presenciei n.Aopode ser entendido sem 0 auxllio do conceito de experiencia,tal como usado por Oramsci (1974) e Thompson (1968), ou deproducao de ideias (Durham. 1977. 1983; Williams, 1977: 13-43), embora nao eliminasse totalmente as matrizes e padroes.!

De mais a mais, todos os sinais de uma crise social e mo-ral profunda estavam presentes, A descrenca nos politicos, adesconfianca do governo, a falta de controle sobre os jovensrevoltados, a profunda insatisfa~Ao 'com as perdas salarialssofridas nos ultimos quinze anos nao revelavam umsegui-mento automatico as regras da tradlcao. As coisas hfl muitodeixaram de caminhar por si e seria eertamente urn contra-senso afirmar que a ordem social confunde-se com a ordemnatural das coisas, como aeonteee nas sociedades estaveis ouem que tradicoes aceitas conduzem a hegemonia de urn grupoou de uma classe social. Nem a tradicao e falada como justifi-eativa au forma de legitimar usos e praticas atuais, A violen-cia cotidiana que toma formas novas e extremadas sob seusolhos, a quebra dos padroes sexuais, as novas feicOes da poli-tica na Ultima decada, as' perdas reais de poder aquisitivo colo-carn .indagacoes sobre 0 seu sentido que eles sentem neces-sidade de responder. Portanto, nAo c possivel entender suaideologia como sendo exclilsivamente ou preponderantementeregulada por rituais e praticas que se impOem silenclosameme(cf. Althusser, 1971). 0 concelto de opacidade da estrutura,

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Do mesmo modo, a idela de que os sujeitos da pesquisa,ou melhor, suas normas e concepcoes de sense comum, cons-tituem obstaculos. episternologicos a serem superados teveque see relativizada. Minhas entrevistas e algumas conversasparticulares revelaram-se como urn momenta de reflexao paraeles, em que a estrutura de dominacao a que estao submetidostornava-se de algum modo transparente. E claro que 0 mes-mo se passava nas conversas entre eles, algumas das quais tiveoportunidade de presenciar. Mas e como se as entrevistas,por terem. side realizadas quando ja havia side construldauma relacao de familiaridade e confianca mutua, pudessemser 0 memento de liberacao desse pensamento critico reprimi-do que me chegava como eonfidencia. E claro tambern que,como todos os etn6grafos, encontrei informantes sabios,tolos, ceticos, ingenues, clnicos, poueo ou muito experientese mais ou menos influentes. E se isso se me afigura como urnreforco para a perspectiva que toma a mente como urn siste-ma de process os eognitivos e nao como urn sistema de conteu-dos previamente fixados e transmitido por mecanismos pas-siveis de aprendizagem (ef. Needham, 1963: XXV-XXIX;Hallpike, 1979: 45-51), 0 seu carater individual nao pode ne-gar os processos sociais que observei de constituicao de for-mas coletivas de pensamento e acao.

HE tudo ilusao" Ioi uma frase que ouvi algumas vezesdurante minhas entrevistas e podia referir-se tanto ao carna-val e as promessas dos politicos, quanto aos services ofereci-dos pelas religioes populares. Essa capacidade de distanciar-se de suas pr6prias praticas me deixou surpresa muitas vezes,como me surpreendeu a consciencia dolorosa que tlnham desua condlcao de explorados, oprimidos e esquecidos. Foramlarnpejos, momentos de nudez que ficaram registrados nasminhas fitas e no meu caderno de campo. Esta possibilidadede que os proprios sujeitos da pesquisa tomassem distancia desuas praticas me revelaram tambem a falsa antinomia entre 0

metoda objetivista da ciencia e a cegueira engolfada na prati-ca cotidiana. NAo precisava, portanto, fazer de suas aCOes epensamentos urn texto flxo diante do qual eu tomarla distin-

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cia para superar essa antinomia, 0 processo vivo de suas hesi-tacoes, duvidas, conflitos, idas e vindas as tradicoes popula-res, avances e reeuos dianteszia domlnacao nao pode ser cap-tado numa estrutura objetiva da qual fossem inteiramenteinconscientes. Ele supt5e a capacidade de distanciamento, em-bora limitada, dos proprios agentes, Nelli as variacoes queencontrei a respeito de suas concepcoes sobre 0 trabalho, apobreza, a politica etc. podiam ser isoladas e dissecadas foradesse extenso dialogo que travarn entre si nas ruas, nas pra-cas, nas biroscas, nas casas e que gostam de chamar anirnada-mente de "troca de ideias". E em grande medida nessa troeade idl:ias nao institucionalizada, fora do controJe dos apare-Ihos ideol6gicos da domlnacao ou da disciplina, que ideiastornam-se eficazes, acoes incorporadas, reputacoes legitima-das e politicas aceitas. Ou, alternativamente, negadas, Estecontlnuocomentario sobre 0 que se passava no local, na cida-de, no governo e na campanha eleitoral foi que me permitiupensar Dum proeesso de constituicao deurna cultura de classeautonoma ate certo ponto, e nunca una, homogeneae com-pletarnente sistematizada.

"Hoje ninguern respeita nada, nem 0 papa", "Acabouo respeito" foram frases ainda mais comuns. Neste mundoque perde seu encanto a passos largos, na descrenca bastantegeneralizada de seus governantes, os pobresde Cidade deDeus III ficaram 'a lutar por manter a esperanca. Continuam afrequentar hospitals, escolas, igrejas, torreiros, quadras desamba, campos de futebol e 0 que mais houver, bem comocontinuam a criticar os services oferecidos nessas organiza-~Oes. Mas est a sua fala ininterrupta que meus ouvidos e rneugravador registraram continua ainda em grande medida silen-ciada para 0 resto do pals. Talvez por isso alguns me disseramvarias vezes que os pobres 56 podem falar e protestar quandovotam. E,por isso, a esperanca de mudar ainda continua emgrande medida a ser depositada no voto, especialmente naelelcao do ,poder Executivo.

Quanto a rnim, aqui estou diante dos problemas eticos epollticos deurn pesquisador. Ap6s passar tanto tempo juntoa eles, blsbllhotando suss vidas, arrancando informacoessobre seus eonchavos, bargenhas.vconffitos, lutas e revoltas,deixei-os ainda mais livre para dediear meu tempo a reflexao,Torno suas entrevlstaa como um texto que me f.~Uita 0 dis·

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tanciamento. Debrueo-rne sobre a "troca de ideias" fixadano meu diano de campo para arrancar seus sentidos, sua poli-fonia, que, por algum motivo, terno reduzir ou ernpobrecer.Penso sobre eles em seu lugar. Urn privilegio, sern duvida,que faz parte desse produto. A prerrogativa de estar afastadada producao material de bens, que eles executam por mim, eafinal 0 que me possibilita a conquista de titulos e honrarias.Espero que, ao menos, esta tese influa nas politicas a elesdes-tinadas.

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I Eduardo Viveiros de castro (1977).1Refiro-me, ~ clare, is cencepcees que Oramscl desenvolveu sobre 0

Dueleo de born senso que faria parte da vislo de mundo ou sense comumdas classes lubaltemas. Este nucleo, de urn lade, estaria fund ado sobreuma ccrta dose de experllncia e observa~ao dlreta da realidadc e. deoutre, nas concc~Ocs religios&s.na ideologia dominante e nas tradi~Ocsreinlerpretadas (Oramsci, 1974; Piotte, 1970).~ isso que permite aoutrosautcres falar de consci!ncla pratica equacionada i atividade cnlo •.pas-sividade da rcprodu~ao cultural automatica. Na tcorla aDtropol6aica ••mesm. problcmltica surle na discussilo do concelto de consciencia cole-tlv. de Durkheim.SciUodo alguns autores, Durkhcim ccnfuadiu a mentehuman. como urn sistema de processos cognitivos com urn conjunto dcrcprCKDt~Oes. tomando as catcgorias de pensamento como sendo de ori-acm s6clo-lnltituclonal, sem dar conta do processo de sua consiitui~lo(Needham. 1963; Hallpike, 1979).

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