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Romilda Oliveira Santos – Especialista em Educação das Relações Étnicos Raciais pela UFPR; Especialista em Literatura Brasileira pela PUC-MG; Membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPM) e Professora da Rede Estadual de Educação do Paraná. ZELADOR CANDIERO, A POESIA COMO FORMA DE RESISTENCIA Autora: Romilda Oliveira Santos Zelador Candiero, a voz da tradição negra A voz negra do poeta e militante, Zelador Candiero vem espalhando luz, na penumbra da história paranaense sobre o existir do negro. O calor do canto africano e dos tambores espalha-se pelas ruas curitibanas nas festas do Rosário, nos saraus de poesia e nas feiras dos poetas contanto a sua história, contando a nossa história, desvelando algo que há muito tempo tentava-se encobrir: A presença Negra. O pensamento dos brasileiros, sejam eles de perto, vizinhos do território paranaense ou de longe, do norte brasileiro, sobre a formação da sociedade paranaense ser de origem europeia ainda predomina nos dias atuais. Até 1999 ao se falar do Paraná e mais especificamente de Curitiba, o que se tem no imaginário popular é de que, esta é a cidade mais europeia do Brasil, devido à sua arquitetura, cultura, manutenção de tradições como festivais de dança, comida, e música dos imigrantes europeus. Estes são os povos que formataram o povo paranaense com seu riquíssimo caldo cultural. Cultura que para aqui trouxeram quando da sua vinda para as terras tropicais do Brasil, segundo Wilson Martins (1989). Portanto não é de admirar que tais crenças perdurem até nossos dias. A força das afirmações na escritura de Gilberto Freire com Casa Grande e Senzala(1933) com a teoria da democracia racial, - a ideia de que no Brasil brancos e negros mantêm relações pacíficas e harmoniosas - e segundo Oliveira (2005), os estudos de Wilson Martins com Brasil diferente(1989) que se posicionando sobre a formação da sociedade paranaense afirma ser esta, obra dos imigrantes, contribui para que a elite dominante camufle os direitos de cidadania da etnia negra. Para Oliveira (2005), em nenhum momento Martins reconhece os 35% de população negra existente nestas terras. E que Martins ao se posicionar

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Romilda Oliveira Santos – Especialista em Educação das Relações Étnicos Raciais pela UFPR;

Especialista em Literatura Brasileira pela PUC-MG; Membro da Associação Brasileira de

Pesquisadores Negros (ABPM) e Professora da Rede Estadual de Educação do Paraná.

ZELADOR CANDIERO, A POESIA COMO FORMA DE RESISTENCIA

Autora: Romilda Oliveira Santos

Zelador Candiero, a voz da tradição negra

A voz negra do poeta e militante, Zelador Candiero vem espalhando luz, na penumbra

da história paranaense sobre o existir do negro. O calor do canto africano e dos tambores

espalha-se pelas ruas curitibanas nas festas do Rosário, nos saraus de poesia e nas feiras dos

poetas contanto a sua história, contando a nossa história, desvelando algo que há muito tempo

tentava-se encobrir: A presença Negra.

O pensamento dos brasileiros, sejam eles de perto, vizinhos do território paranaense ou

de longe, do norte brasileiro, sobre a formação da sociedade paranaense ser de origem

europeia ainda predomina nos dias atuais. Até 1999 ao se falar do Paraná e mais

especificamente de Curitiba, o que se tem no imaginário popular é de que, esta é a cidade

mais europeia do Brasil, devido à sua arquitetura, cultura, manutenção de tradições como

festivais de dança, comida, e música dos imigrantes europeus. Estes são os povos que

formataram o povo paranaense com seu riquíssimo caldo cultural. Cultura que para aqui

trouxeram quando da sua vinda para as terras tropicais do Brasil, segundo Wilson Martins

(1989). Portanto não é de admirar que tais crenças perdurem até nossos dias. A força das

afirmações na escritura de Gilberto Freire com “Casa Grande e Senzala” (1933) com a teoria

da democracia racial, - a ideia de que no Brasil brancos e negros mantêm relações pacíficas e

harmoniosas - e segundo Oliveira (2005), os estudos de Wilson Martins com “Brasil

diferente” (1989) que se posicionando sobre a formação da sociedade paranaense afirma ser

esta, obra dos imigrantes, contribui para que a elite dominante camufle os direitos de

cidadania da etnia negra. Para Oliveira (2005), em nenhum momento Martins reconhece os

35% de população negra existente nestas terras. E que Martins ao se posicionar

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diferentemente da questão da miscigenação de Freire, afirmando que na formação social do

Paraná, “o português se fazia ausente”; e “a inexistência da escravatura” nestas terras, ou

melhor, nas terras paranaenses confirmava as ideias de uma elite de um Paraná branco e

europeu. Sendo, pois, o imigrante o único elemento responsável pela formação social, cultural

e política do povo do Paraná (Oliveira, 2005).

Na década de 30, do século passado, um projeto de Estado diferente começou a ser

pensado e planejado para estas terras pela elite paranaense. E com a criação da Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras do Paraná, em 1938, esse projeto foi gerado e alicerçado no

imaginário dos que aqui viviam, por interesse de uma classe dominante em ser reconhecida

pela Europa, como branca. E assim foi criado um conceito de sociedade com uma identidade

singular e de acordo com o processo de branqueamento pensado para a população aqui

existente.

Como bem demonstrou Eduardo David de Oliveira, filósofo e antropólogo ao prefaciar

o livro Africanidades Paranaenses (2010), que o imaginário de um Estado originado da

colonização europeia, e o mito de um estado branco, sem elementos negros nasceu nessas

terras. E os arautos das ciências, na Faculdade do Paraná, reafirmaram e reificaram este

imaginário racista em suas produções acadêmicas tantas e tantas vezes que se acreditou ser

verdade.

Oliveira, deixa em seus estudos uma observação sobre “o prefeito Rafael Greca no

período de 1993 a 97, que ao ser questionado porque não havia parques ou bosques

homenageando a etnia negra e cuja resposta do prefeito era pelo fato de não existir negros na

capital do Paraná” (Oliveira, 2005).

O Paraná, assim como os demais estados brasileiros, não fugiu à regra de ter a mão de

obra escrava fazendo os trabalhos pesados. E Curitiba, sua capital, assim como as demais

cidades paranaenses foram construídas com a mão de obra escrava dos negros africanos que

ergueram ruas, igrejas, prédios, ferrovias, e também contribuíram com música, arte, seu

cotidiano. Assim, um grande contingente de africanos e de afro descendentes fizeram os

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alicerces físicos e sociais do Estado do Paraná. Entretanto, esta parte da história é

invisibilizada por conveniências sociais e políticas.

Após muitas lutas dos movimentos negros, de pesquisadores negros e intelectuais

junto às academias e da lei 10.639/2003, homens e mulheres negros vem lutando para o

reconhecimento das suas tradições, da sua cultura e do seu importante papel na formação da

sociedade paranaense e brasileira. Esta luta consiste em mostrar que a identidade paranaense

tem cores e nuances diversos.

Precursores e tradição poética negro-brasileira

O interesse deste artigo são autores que assumiram sua negritude e cujos eu-

enunciadores falam das questões referentes a problemas, dificuldades, discriminações, lutas e

conscientização dos irmãos negros e mulatos. Observa-se que desde o século XVIII, registros

de poetas e escritores que utilizaram da sua escritura para assumir “a condição negra como

sujeito” e ser o protagonista do seu discurso. Assim, veremos a seguir os principais

precursores e como a tradição poética afro-brasileira vem desenvolvendo o discurso literário.

Gayatri Chakravorty Spivak em sua obra “Pode o subalterno falar?” (2010, p 133) faz

uma reflexão sobre a condição do subalterno, utilizar a sua voz para fazer seus

questionamentos sobre a sua condição histórico social. No caso da poesia negra a necessidade

de voltar no tempo se faz presente para falar da tradição poética afro-brasileira e identificar os

momentos nos quais a poesia negra/os poetas negros brasileiros libertam sua “voz“ e

começam a contar a história segundo seu ponto de vista, passando a posição de protagonistas

da sua história. Assim a voz negra desperta e inicia um diálogo com os outros diferentes

sujeitos na sua subalternidade, de modo que juntos e fortalecidos pelos grupos diversos

possam expor seus desejos e seus interesses.

Para Cuti, o “sujeito étnico do discurso é portador de traços de uma subjetividade coletiva” ao falar

traz à luz através da memória subterrânea social “os elementos de origem africana” intrinsecamente ligados a

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si” (CUTI, 2010, p.11). O eu-protagonista ao relembrar os elementos simbólicos da sua tradição

constrói o sentimento de pertença que o enraizará ao lugar que entende como sua terra.

O lugar de pertencimento, no caso, o Brasil deveria viabilizar condições e

oportunidades para que seus direitos como brasileiros afrodescendentes fossem respeitados,

tanto na legalidade dos papéis de lei quanto na convivência física do cotidiano. Este

sentimento de pertença tem sido elaborado pelos poetas, escritores e intelectuais negros

brasileiros e seus descendentes a partir da mobilização de elementos simbólicos que se

inscrevem em uma memória literária afro-brasileira de longa duração.

O poeta negro tem utilizado a palavra como importante meio de expressão do seu

fazer e do seu existir. A prática literária é o espaço para o eu-enunciador, trazer para o debate

as questões negras. Assim as vozes negras e as tradições escritas de Luiz Gonzaga Pinto da

Gama, poeta baiano, Salvador, 1830-1882, Maria Firmina dos Reis, maranhense de São Luís

1825-1917-(século XIX), Cruz e Souza, 1861-1898, a Carolina Maria de Jesus, mineira de

Sacramento, 1917-1977, Solano Trindade, 1908-1974, Cuti, 1951- e Oswaldo de

Camargo,1936 - entre outros, no século XX, tem por meta a conscientização e o

empoderamento do povo negro como sujeito do seu destino.

A historiografia do discurso literário em que o negro se auto representa de maneira

autônoma nasce no final do século XIX, ainda sob a égide do Romantismo, quando, em meio

às discussões sobre o fim do regime monárquico e do trabalho escravo, a questão étnico-racial

se tornou tema central. Nesse contexto, Maria Firmina dos Reis, Luiz Gama e o simbolista

Cruz e Souza, poetas negros apresentam nas suas obras, as primeiras rupturas no campo

literário, um discurso em que “o eu enunciador” se coloca do ponto de vista do negro.

O eu-poético se assumindo negro na poesia satírica Bodarrada “Quem sou eu?” de

Luiz Gama (1859). “ Eu bem sei que sou qual Grilo [...] / Se negro sou, se sou bode, / pouco importa. O que

isto pode? [...]”

O eu-enunciador em Úrsula (1859) de Maria Firmina dos Reis, expressa sua origem

através da memória e da voz de mãe Suzana que conta a história de sua vida na África e as

condições da sua vinda para o Brasil. “ E logo dois homens apareceram, e amarraram-me com cordas.

Era uma prisioneira – era uma escrava! [...](REIS, 2004, p.112 a 113 )

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Maria Firmina dos Reis aparece entre as mulheres negras que marcaram ou ainda

marcam a história literária negra. Para Assis Duarte, a poeta/escritora Maria Firmina age de

maneira inovadora e ousada ao constituir sua personagem com mulher que tem voz própria e,

como eu-enunciador, resolve contar a sua história: “Mãe Suzana vai contar como era sua vida na

África, entre sua gente, de como se deu a prisão pelos caçadores de escravos e de como sobreviveu à terrível

viagem nos porões do navio”. (DUARTE, 2000:266).

Contemporâneo de Maria Firmina dos Reis, Luiz Gonzaga Pinto da Gama, como poeta

engajado, põe em questão a ordem escravocrata. Seguido pelo simbolista Cruz e Souza que

através do seu poema “Emparedado” revela um elemento estruturante das nossas relações

sociais, o racismo.

– Tu és de Cam, maldito, réprobo, anatematizado! Falas em Abstrações, em

Formas, em espiritualidades, em Requintes, em Sonhos! Como se tu fosses das

raças de ouro e da aurora, se viesses de arianos, depurados por todas as

civilizações, célula por célula, tecido por tecido, cristalizado o teu ser num

verdadeiro cadinho de ideias, de sentimentos – direito, perfeito, das perfeições

oficiais dos meios convencionalmente ilustres! [...] Cruz e Souza, “Emparedado”

do livro “Evocações”(1898).

Luiz Gama e Cruz e Souza são considerados os primeiros alicerces para o surgimento

de produções literárias ao pós-abolição. Suas obras mostraram um modo diferente de pensar o

negro, como eu-enunciador que ao assumir sua negritude, o seu “fazer literário por meio da

escrita” (BERND, 1988) se torna marco para a literatura negro-brasileira.

O fazer poético de Luiz Gonzaga Pinto da Gama registra o “modo negro de ver e sentir

o mundo”. A poética de Luiz Gama reúne um conjunto de elementos simbólicos relacionados

à sua trajetória de vida. Ao reafirmar a identidade afro-brasileira através da articulação dos

elementos da ancestralidade africana na sua escritura, o poeta reivindica a pertença ao

universo cultural afro-brasileiro.

Silva acerca da elaboração da cultura afro-brasileira sobre as raízes africanas afirma:

Concebemos a cultura afro-brasileira como um sistema simbólico orientador das

práticas sociais referenciadas em princípios ancestrais africanos. [...] As práticas

culturais afro-americanas, embora orientadas pelos referenciais africanos, não

são, portanto, reproduções ou cópias de África nas Américas, mas reelaborações,

de caráter dinâmico, flexível, plástico e em constante mutação (SILVA, 2013, p.

1).

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Pesquisadores Negros (ABPM) e Professora da Rede Estadual de Educação do Paraná.

Segundo Ferreira, a primeira vez que se observou a filiação poética à cultura afro-

brasileira foi na obra “Primeiras Trovas Burlescas de Getulino” de Luiz Gama. “O próprio

pseudônimo Getulino, refere-se a uma área geográfica outrora nomeada “Getúlia”, localizada

ao norte da África” (FERREIRA, 2011, p.39-38).

O eu-enunciativo do poema “Quem sou eu” se afirma “negro sou” além de afirmar sua

ancestralidade africana, também, se diz rebelde e insubmisso, por ser filho de Luiza Manhin,

Luiz Gama assim, descreve a mãe.

Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de Nação)

de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã.

Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e

sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa,

insofrida, vingativa. (CÂMARA, 2010, p. 35).

E avisa, “filho de insurgente, insurgente é” (AZEVEDO, 1999, p.69).

Os poetas e escritores dão voz aos eu-enunciativos em seus poemas e prosas

denunciando o contexto discriminativo que vivem e presenciam.

Lima Barreto, no início do século XX, em sua obra “Recordações do Escrivão Isaias

Caminha”, publicada em 1909, denuncia o preconceito observando a “arrogância dos oficiais

em relação aos demais componentes da tropa composta por negros e mulatos, em um desfile

militar” (DUARTE, 2002, p.54).

Lima Barreto, (1881-1922) Filho mulatos, chegou a ingressar na faculdade de Direito

do Rio de Janeiro, mas as dificuldades financeiras de sua família o obrigaram a abandonar os

estudos e buscar trabalho. As situações de discriminação e dificuldades econômicas pelas

quais o escritor passou é denunciada pelo eu enunciador, o protagonista Isaías Caminha em

“Recordações do escrivão Isaías Caminha”, publicada em Portugal em 1909. Tanto na vida

real como escritor quanto na ficção através do protagonista, situações cotidianas de ofensas

veladas e discriminações subjetivas levam ambos, Lima Barreto e Isaías ao desencanto com a

nova república.

Hoje, comigo, deu-se um caso que, por repetido, mereceu-me reparo. Ia eu pelo

corredor afora, daqui do Ministério, e um soldado dirigiu-se a mim, inquirindo-

me se era contínuo. Ora, sendo a terceira vez, a coisa feriu-me um tanto a

vaidade, e foi preciso tornar-me de muito sangue frio para que não desmentisse

com azedume. (DIÁRIO ÍNTIMO, 2012, p.15).

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Romilda Oliveira Santos – Especialista em Educação das Relações Étnicos Raciais pela UFPR;

Especialista em Literatura Brasileira pela PUC-MG; Membro da Associação Brasileira de

Pesquisadores Negros (ABPM) e Professora da Rede Estadual de Educação do Paraná.

A sua obstinada crítica à hipocrisia da sociedade brasileira que negava a discriminação

racial ao mesmo tempo em que pregava o branqueamento, se aliava às suas críticas a atores

políticos e a denúncia de injustiças sociais. Sendo Lima Barreto um escritor negro na cor e no

discurso num período em que “`apagar a cor’ era medida cautelosa e necessária” para ser

aceito na intelectualidade literária, se negar a esse comportamento era “viver em permanente

dilema, conflito e contradição entre a projetada inclusão e a realidade da exclusão social”

(SCHWARCZ, 2011, p.23-24-29).

O precursor Lino Guedes, autor, entre outros títulos, do poema “Negro preto cor da

noite” (1936): o autor usa da ironia, quando nos primeiros versos do poema “Novo Rumo”, o

eu enunciador relembra ao irmão de cor, a sua cor e o sofrimento passado e que deve se

endireitar.

Abdias Nascimento, um dos grandes ícones da literatura e da luta negra, poeta, ator,

escritor, dramaturgo, artista plástico, professor universitário, político e ativista dos direitos

civis e humanos das populações negras, funda o Teatro Experimental do Negro (TEN), em

1944, dedicado à produção de uma arte feita por negros.

Em 1954 surge o escritor e poeta Oswaldo de Camargo com o livro de poemas “O

Homem tenta ser anjo” e a partir daí, uma produção de literatura negra surge tanto na prosa

como na poesia, onde o escritor apresenta um eu-lírico enunciador que ao procurar construir

sua identidade, se vê preso entre duas culturas. Porém, mesmo diante desse hibridismo

cultural, as marcas da negritude se fazem presentes como ferramenta de um discurso em favor

da construção de identidade.

Acerca da poesia de Oswald de Camargo, afirma, Zilá

A poesia de Oswaldo de Camargo reflete a crise do poeta que toma consciência

de seu hibridismo cultural: de um lado, suas raízes africanas e os elementos

culturais ligados a esta ancestralidade pulsam dentro dele, lembrando-lhe de sua

origem e do outro, o apelo cultural do mundo branco e dos valores morais do

ocidente não deixam de exerce rum enorme fascínio. (BERND, 1992, p.64)

Solano Trindade é outro ícone da poesia negra brasileira, reconhecido pelo

posicionamento político-social e pela tradição literária brasileira. No poema, “navio negreiro”

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Especialista em Literatura Brasileira pela PUC-MG; Membro da Associação Brasileira de

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(1962) enaltece as qualidades da etnia negra. O poeta diz que o tumbeiro traz uma carga de

poesia, resistência e inteligência apesar da melancolia.

Cuti é pseudônimo de Luiz Silva, a escritura de Cuti é forte e registra a consciência da

necessidade de afirmação como se pode observar no poema “Ferro” (CUTI, 1986, p.90), no

qual o poeta re-significa a palavra ferro, transformando-a em um objeto que lembra a

“violência histórica” impingida ao escravo através do acoite, das algemas, das mordaças e

marcador (“para marcar na cara os filhos de escravos até a terceira ou quarta geração para

serem vendidos, segundo Prado (1962, p.97)”. Num segundo momento, o ferro serve para

modificar as características fenotípicas, como alisar o cabelo carapinha se adequando ao

modelo de sociedade que valoriza o cabelo liso, afastando o negro das características raciais

de sua gente. A voz forte deste propaga a necessidade de mudanças através do orgulho

valorizador das características negras. Assim, Cuti em seus poemas mostra a realidade

brasileira através da revelação das discriminações físicas e psicológicas imposta ao negro. Ao

valorizá-lo, sua escritura torna-se produto cultural afirmativo forte.

Dos anos 90 até nossos dias, a jornada continua com contornos mais definidos, agora o

objetivo é a conscientização da população negra. O comprometimento da poesia negra se faz

presente nas escrituras de Éle Semog, Adão Ventura, Arnaldo Xavier, Carolina Maria de

Jesus, Mestre Didi (Dioscóredes M. dos Santos), Geni Mariano Guimarães, Paulo Colina, W.

J. de Paula, José Alberto de Oliveira de Souza ,Maria da Paixão, Eduardo de Oliveira, Mirian

Alves, Oliveira Silveira Antônio Vieira, Jônatas Conceição da Silva , Ronald Tutuca, Carlos

Assumpção Romeu Crusoé, o historiador e professor Joel Rufino dos Santos, Aline França,

Paulo Colina , Carlos Assumpção e Zelador Candiero entre outros. O objetivo é denunciar as

injustiças, gritar por direitos já adquiridos pelo povo negro na “coparticipação da construção

da nacionalidade”, na necessidade urgente de que a história da cultura negra seja revelada a

toda população negra e afrodescendente. A luta de escritores antigos e novos que juntos

fortalece o conceito de identidade negra, de resistência e reconhecimento social entre outros.

A poesia do Zelador Candiero –

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Especialista em Literatura Brasileira pela PUC-MG; Membro da Associação Brasileira de

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O vocábulo “Zelador” vem do grego e significa zelos “cuidados” e Adegmar José da

Silva é aquele que cuida para que as tradições de seu povo não sejam esquecidas, assim, é um

dos pilares da luta contra a discriminação, a negação dos direitos, a invisibilização, o

esquecimento das artes, da cultura, da religiosidade do povo negro.

E como negro empoderado utiliza a arte da palavra, a poesia, para conscientizar e

instrumentalizar seus irmãos para a luta, para a resistência com palavras, atitudes e ações

contra a inviabilização imposta por um racismo cordial. O poeta procura manter vivo as

tradições, os costumes, herdados de seus antepassados, através de projetos organizados e

selecionados pelo Centro Cultural Humaitá para o trabalho com crianças e adolescentes na

área da educação; atua como coordenador dos saraus de poesia cujo objetivo é mostrar a

poesia negra e dá visibilidade aos poetas negros; além de organizar as comemorações

religiosas e festivas da negritude em solo paranaense. Também já publicou artesanalmente

três coletâneas de poesia.

Um dos instrumentos de resistência negra é a poesia e o Zelador Candiero assim como

outros poetas negros paranaenses e curitibanos mostram suas dores, seus questionamentos

frente à realidade agressiva deste século.

Na poesia do Zelador Candiero, o eu-lírico enunciador traz à tona as memórias dos

antepassados, as lutas e a resistência. E a música, a dança, a arte, a religiosidade, o registro

das vivências servem como armas para luta, cujo objetivo é se mostrar, é ser sujeito. Sua

poesia fala do sincretismo religioso, da religiosidade africana ligada aos orixás, das rodas de

capoeira, o toque dos tambores, dos guerreiros e guerreiras africanas, dos terreiros, dos

egunguns (antepassados), das histórias, dos griots, das árvores sagradas as gameleiras

moradas do “tempo”, do seu compromisso com a história do negro e sua história.

Adegmar José da Silva é poeta ativista e zelador das tradições culturais negras no

Paraná. Em suas vivências exprime seus desejos, suas expectativas, suas dores, sua luta e

trajetória de negro brasileiro e paranaense. Falar da tradição, dos ancestrais, da luta e do

empoderamento é um dos vieses da poesia negra do Zelador Candiero. O registro de suas

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Especialista em Literatura Brasileira pela PUC-MG; Membro da Associação Brasileira de

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vivências é a luta contra o esquecimento da história e cultura africana. É o rememorar. É o

lembrar.

Antes conhecido pelo codinome “sombra”, apelido dado pelos amigos, colegas da

capoeira, recebeu o nome de Zelador Candiero - aquele que ilumina- após muito tempo de

observação pelos seus mestres , os quais chamam de “os mais velhos”.

O cotidiano do Zelador Candiero é fortemente marcado pelo sentimento de

pertencimento a cultura e as tradições negras herdadas dos ancestrais. O poeta descobriu-se

pedra alicerçante da sua história no rap, no break na música negra afro americana e foi

construindo sua identidade negra e se empoderando como sujeito transformador da sua

história e orgulhoso das suas tradições e origem negra. A partir desta descoberta muitas trilhas

foram surgindo e o caminhante ora passeia por elas, ora as desbrava deixando a sua marca de

rebeldia. Rebeldia essa, transformada em muitas formas lutas contra um único modelo de

cultura, de história e de conhecimento. O caminhante vai trançando seu caminho e registrando

suas vivências – como: capoeira, poeta, zelador das tradições culturais, além de militante das

causas negras no Paraná -, com uma linguagem cheia de significados e sentimentos. O poeta é

negro, e se orgulha em demonstrar sua luta e preferência pela temática negra.

Em entrevista que nos foi concedida em 09 de Fevereiro de 2016, o poeta e escritor

Zelador Candiero diz não escrever poesia e sim registrar em forma de poema suas vivências e

recordações. E que a cada passo, a cada atitude, cada irmão negro que encontra vai emergindo

em palavras, borbulhando, querendo mostrar e contar a história de seu povo. Assim, registra

na folha branca o pensamento, o sentimento e sua negritude.

Neste aspecto pode-se considerar que a memória atua na obra do Zelador Candiero

como uma um força de resistência pessoal e cultural, tal como indica Eduardo de Assis Duarte

(2005, p. 100) ao sugerir que

a força dessa memória ressalta o sentido da resistência cultural e de luta

ideológica (...) pois se trata de marcar posições para além do campo artístico,

visando atuar na construção psicológica e cultural desse sujeito, bem como na

definição de seu lugar na sociedade e na própria história.

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Especialista em Literatura Brasileira pela PUC-MG; Membro da Associação Brasileira de

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As vivências, expressão que o poeta usa para referir-se aos seus versos, traduz o

sentido dos costumes, recordações e tradições dos ancestrais, e conta suas experiências sociais

e individuais à comunidade.

Segundo o poeta, a escolha de pseudônimo é um ato político de empoderamento da

sua condição de homem negro. É chegada a sua vez de falar, de sair, deixar de ser “Sombra”,

agora é Candiero. Nome recebido dos mais velhos como manda a tradição. A luz que tem por

responsabilidade e objetivo nas rodas de conversas, nos saraus, nos festejos, nos sons dos

tambores despertar seu povo para as questões inerentes a tradição negra. Os costumes devem

ser relembrados, devem ser praticados pelos adultos e contados às crianças, pois “é necessário

uma comunidade inteira para educar uma criança” segundo um ditado africano, diz Candiero.

O poeta luta por equidade para seu povo, negros, afrodescendentes, acima de tudo negros

brasileiros e seus descendentes utilizando como arma, a palavra, nas suas vivências, no seu

cotidiano.

N’ZINGA, é um poema de tom forte, cujo conteúdo louva uma grande guerreira que

ofereceu resistência a Portugal, quando com grande visão de estrategista venceu a guerra

contra os portugueses, em sua terra natal, o reino de Angola. O poema é composto por 31

versos. O orgulho de sua negritude emerge no início do poema emerge através das palavras e

do ritmo o jogo de capoeira.

Dois capoeiras jogando

É como galo na rinha

Cada um de um lado

Dá esporada, canta

Se arrepia...”

O negro quando dança

Faz louvor a sua rainha

N’Zinga N’Bandi

Reino de Angola, da Matamba

Sozinha uniu todas as etnias

Enfrentou os portugueses com sabedoria

Uma guerreira estrategista

Conhecia de política

E a religião dos seus ancestrais

Venceu todas as demandas europeias

Viveu e morreu na sua terra

Seu nome espalhou-se pelo mundo

No Paraná, os Reis Congos

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Romilda Oliveira Santos – Especialista em Educação das Relações Étnicos Raciais pela UFPR;

Especialista em Literatura Brasileira pela PUC-MG; Membro da Associação Brasileira de

Pesquisadores Negros (ABPM) e Professora da Rede Estadual de Educação do Paraná.

Mantêm viva sua memória ancestral

Dos tempos da escravidão até nossos dias

Buscar fundo na história

É fundamental para o povo negro

Pois um povo sem memória é um povo sem história

Tratado como escória

Temos um futuro sim: aquele que nós construímos.

Valeu o exemplo, Rainha da nossa ginga!

EPARREI OYÁ

Senhora dos ventos e das tempestades

Aquela que cega os mentirosos

Mas protege quem anda com a verdade.

Motumbá (2015, p.52)

O eu enunciador trata a capoeira como uma dança para louvar a rainha N’Zinga

N’Bandi recontando a história de valentia e de resistência do povo negro, que aparece como

agregador de todas as etnias, indicando que a luta é de todos. Além de inteligente e grande

estrategista”, a guerreira tinha conhecimentos de política e da religião dos ancestrais. O poeta

trabalha assim para desconstruir através dessa imagem, “o estereótipo de negro que inferioriza

a inteligência e a capacidade dos povos negros”(Cuti, 2010, p.55) cunhado pela ideologia

racista da elite brasileira.

A memória cultural se faz presente no poema, identificando o lugar em que essa

memória está fincada e como. “No Paraná, os Reis Congos/ mantêm viva sua memória

ancestral” o eu poético fala do “enraizamento” do negro paranaense e de suas memórias

culturais reavivadas através das festas dos Reis Congos. O eu lírico saúda o orixá dos ventos e

das tempestades e diz que, quem mente é cegado por ela, assim faz referência às verdades

que são ocultadas sobre o continente africano para fazer os afrodescendentes se sentirem

pequenos e sem força. E diz que todos precisam conhecer a sua história, a sua origem, as

tradições dos antepassados para se orgulharem e não deixarem que os tratem como escória.

Que existe futuro, que podem construir seu futuro.

Andrade apud Cascudo, coloca que

A eleição de reis negros meramente titulares, a coroação deles, e as festas que

provinham disso, Congos, Congadas, sempre até hoje se ligaram intimamente à

festa, e mesmo à confraria do Rosário. Inda mais: as procissões católicas eram

cortejos que relembravam ao negro os seus cortejos reais da África.

(ANDRADE, 1965, p. 315)

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Romilda Oliveira Santos – Especialista em Educação das Relações Étnicos Raciais pela UFPR;

Especialista em Literatura Brasileira pela PUC-MG; Membro da Associação Brasileira de

Pesquisadores Negros (ABPM) e Professora da Rede Estadual de Educação do Paraná.

O poema faz referência à festa da Congada da Lapa, no Paraná, é uma celebração que

traz os reis do congo, sua coroação e séquito de súditos. A riqueza da congada tem por

objetivo de despertar as lembranças ancestrais de poder, beleza e riqueza do elemento negro

que em terras distantes, a terra dos antepassados, onde eram reis.

A escritura poética do Zelador Candiero traz para o debate e conhecimento dos negros

e seus descendentes a cultura negra reavivada nas congadas, nas rodas de samba, trazidas

pelos escravizados, através de suas memórias. A descendência negra do poeta lhe confere o

direito de ser o protagonista dos seus versos e clamar seu povo para o conhecimento da

história negra. O eu lírico afirma que “um povo sem memória é um povo sem história”. O

poeta como militante que é utiliza em seus poemas a frase de Chico de Assis, advogado,

jornalista, poeta e ex preso político.

As vozes ecoadas ao longo do poema mostram a identificação dos envolvidos com as

memórias dos ancestrais, individual e coletiva. O tom de celebração do orgulho negro

ancestral e o chamamento para o momento presente, reivindicando o reconhecimento da

cultura e das tradições de seu povo. O poeta relembra o tempo da escravização, o tratamento

recebido, ao pedir que seus irmãos busquem no fundo do baú da história suas memórias, o

contexto em que obrigados a viver, para logo depois afirmar que apesar do tratamento

indigno, o futuro do povo é aquele que cada um constrói.

O eu enunciador procura empoderar o povo negro ao chamar a atenção para a

inteligência e a valentia da rainha N’Zinga e assim forjar uma nova autoestima e para

despertar o orgulho de ser afrodescendente. A essa intenção Cuti (2010, p.43) intitula como

“gostar-se negro” aceitar-se negro de forma completa, sentimento normalmente recalcado

pelo racismo que por muito tempo levou o negro a se transvestir ao assimilar a moda, os

pensamentos, os modos de agir e sentir do branco, também conceituado por Frantz Fanon de

pele negra e máscaras brancas (2008, p.34).

O eu enunciador termina fazendo uma saudação a uma divindade africana Iansã, orixá

que domina os ventos e tempestades que protege e ilumina aqueles que estão com a verdade

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Romilda Oliveira Santos – Especialista em Educação das Relações Étnicos Raciais pela UFPR;

Especialista em Literatura Brasileira pela PUC-MG; Membro da Associação Brasileira de

Pesquisadores Negros (ABPM) e Professora da Rede Estadual de Educação do Paraná.

na linguagem dos nagôs, Motumbá é um pedido de bênçãos. O eu-lírico enunciador se mostra

comprometido com a religiosidade de matriz africana.

EPARREI OYÁ

Senhora dos ventos e das tempestades

Aquela que cega os mentirosos

Mas protege quem anda com a verdade.

Motumbá. ...”(2015, p.52)

No poema, “RESISTÊNCIA CULTURAL II” (2015, p.59), o poema apresenta 33

versos.

Combatentes do bom combate, uni-vos...

Ser representante de rainhas e reis africanos

Em solo brasileiro

Não é fácil

Trabalho duro

Tornei-me flexível... Sensível

Viver no mundo humano

Clamando por ajuda do Espirito

Santos...

Fazendo a colcha de detalhes

Costurando com a agulha de ouro

Os fios prateados da memória

Aparecem...

Minha alma transborda

Brada por justiça

No meio desta carnificina de verdades escondidas

Holocausto de sonhos

Combativo, assíduo

Sigo minha sina

Pelos poderes legados dos meus antepassados

Vou à luta

Não tenho o direito de ficar no cômodo silêncio

Respiro fundo

Atendo à minha consciência

Minhas lágrimas são de força

E não de fraqueza

Perdoem minha franqueza

Os estalos do chicote do Neo-Escravismo

Mostram-me um norte desconhecido

Enquanto muitos dormem...

Armado com meu berimbau

Invoquei o poder ancestral

Recomeço a caminhada (2015, p.59)

O eu lírico enunciador chama para a luta, os bons combatentes. Anuncia que é difícil

“ser representante de Rainhas e Reis africanos”, fazendo referência a toda carga de

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Especialista em Literatura Brasileira pela PUC-MG; Membro da Associação Brasileira de

Pesquisadores Negros (ABPM) e Professora da Rede Estadual de Educação do Paraná.

discriminação e racismo que existe na sociedade paranaense, afirma que é a luta “não é fácil”,

que “é trabalho duro” vencer os obstáculos colocados nos caminhos dos negros e seus

descendentes. Mas, afirma também que tornou-se mais flexível, referência talvez as

negociações por seus direitos, que às vezes cede um pouco para ganhar. Aqui aparece a

questão do misticismo religioso, quando diz que clama por ajuda do Espírito Santo(s), para

viver no mundo humano. O eu-lírico enunciador termina colocando no vocábulo Santo um (s)

seguido de reticências como que deixando no ar, dando outra conotação a palavra, talvez

implicitamente se referindo aos “Santos” da religiosidade africana.

O eu-enunciador ao mencionar “enquanto muitos dormem...” dá a entender que está

falando dos afrodescendentes que ainda não se conscientizaram da luta do seu povo para

conquistar seus espaços na sociedade.

E ao se referir à memória, diz que vai juntando “os fios prateados”, ou seja as

lembranças e vai costurando-as umas às outras com “agulha de ouro”, sugerindo talvez o

grande valor dessas lembranças, dessas memórias que juntadas umas às outras deixam vir a

tona “a verdade escondida” no meio de todo sofrimento.

Segundo, Michael Pollack as “memórias subterrâneas” são cultivadas e desenvolvidas nos

espaços da “informalidade” em rede de sociabilidades afetivas, “são zelosamente guardadas em estruturas de

comunicação informais e passam despercebidas pela sociedade englobante” (1989, p.8).

O eu poético grita por justiça, em meio a tantas mortes de sonhos, de expectativas. E

não se rende, segue adiante, combativo, assíduo. É o destino que lhe foi legado pelos

antepassados. O eu lírico diz não poder ficar calado, que suas lágrimas não são de fraqueza e

sim, por perceber novas formas de exploração do povo negro. E enquanto muitos dormem, ele

armado com seu berimbau (instrumento de toque da capoeira), invoca os ancestrais para

ajuda-lo e segue na sua caminhada de luta.

Nota-se neste posicionamento do eu poético o chamamento do conhecimento dos mais

antigos (os ancestrais) para direcionar a luta, os direitos pleiteados, e a conquista dos

objetivos pretendidos.

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Romilda Oliveira Santos – Especialista em Educação das Relações Étnicos Raciais pela UFPR;

Especialista em Literatura Brasileira pela PUC-MG; Membro da Associação Brasileira de

Pesquisadores Negros (ABPM) e Professora da Rede Estadual de Educação do Paraná.

Conclusão

Diversas são as possibilidades de leitura da poesia do Zelador Candiero. Entretanto, se

o pano de fundo for uma sociedade elitista que se acredita herdeira de tradições e culturas

unicamente europeias que prevalece o conceito de democracia racial, muita luta ainda tem a

população negra e seus descendentes para serem reconhecidos como sujeito coprodutores da

cultura brasileira e paranaense. O Zelador Candiero é um dos pilares dessa luta, no solo

paranaense. O poeta não esconde a sua negritude, orgulho, paixão pela tradição e costumes

dos ancestrais. Produz uma poesia carregada de simbologismo deixando transparecer através

do eu poético, que fala mesmo cansado não se cala ao ver e sentir os sofrimentos e dores do

povo negro. A sua poética deixa entrever nas linhas da sua escritura toda a riqueza cultural do

povo “subalterno”.

Como “subalterno” em sua negritude, o poeta dá voz e representatividade ao lugar de

onde fala das suas origens, da sua religiosidade e da sua história. Subalterno que apesar de

construir praças, igrejas e monumentos históricos com sangue e suor teve como pagamento, o

apagamento da sua história e a negação da sua presença.

O subalterno agora tem voz e fala e lutam para sair da penumbra, do esquecimento, ao

qual foram lançados. Não mais existe a história só de um único o ponto de vista . A literatura

negro-brasileira lança mão da poesia, a prosa, a dança, a música, os costumes como

instrumento de luta. São elas, as armas utilizadas pelos poetas, escritores, pesquisadores,

artistas, em geral, para contar a história e a cultura do povo cor de ébano e seus descendentes.

Ubuntu, para vocês ! “Sou quem sou, porque somos todos nós”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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