1 Comunicação apresentada à Área: Organizações e Alternativas Organizacionais da 57a. Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC; Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 17 a 22 de julho de 2005. Resumo da tese de doutoramento em Administração, EAESP/FGV, São Paulo, 1999, posteriormente publicada (MARTINS, Paulo Emílio Matos. A Reinvenção do Sertão: A Estratégia Organizacional de Canudos, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001). 2 Professor Titular na EBAPE/FGV e Coordenador do Programa de Estudos de Administração Brasileira.
BELLO MONTE: UM PROJETO DE REINVENÇÃO DO SERTÃO1
Paulo Emílio Matos Martins2
INTRODUÇÃO
Antônio Conselheiro e seus seguidores protagonizaram uma experiência social que, na tese euclidiana, é explicada pelo confronto entre o Brasil moderno do litoral e o universo retrógrado do seu interior. O imortal autor de “Os Sertões” - muito mais do que produzir uma obra de incomparável beleza estilística - legou à historiografia pátria a primeira explicação do trágico desfecho desse episódio ocorrido no Nordeste brasileiro no final do século XIX e testemunhado pelo jovem engenheiro-repórter de “O Estado de S. Paulo”. Nesta investigação o projeto de reinvenção do sertão intentado pelo Bom Jesus Conselheiro no seu Bello Monte é estudado com foco em três dimensões do espaço organizacional: a religiosa, a política e a econômica. O vigoroso, malgrado trágico, movimento social das margens do Vaza-Barris, estimula a curiosidade sobre o sistema administrativo que teria revelado um dos mais eloqüentes exemplos de liderança, crescimento demográfico e resistência militar de nossa História. Essa lógica administrativa, instituída pela vivência de uma fraternidade cristã, pela práxis da produção cooperativa e pelo vazio da completa ausência do Estado – substituída pelo mandonismo do “coronel” do sertão - os jagunços a elaboraram, sob a liderança do “taumaturgo” cearense, ao longo do quarto de século em que este peregrinou, pregou e realizou mutirões edificando obras sociais na mais árida região da caatinga.
METODOLOGIA
Investigação bibliográfica, documental e de campo, referenciada em mais de quatro mil obras e documentos e nos depoimentos de estudiosos do tema e de descendentes dos sobreviventes da guerra sertaneja. Estes últimos colhidos nos sertões da Bahia e Ceará entre novembro de 1994 e julho de 1996. A estratégia de pesquisa contrapõe as informações oriundas de textos e documentos produzidos pelos vencedores com os depoimentos dos descendentes dos perdedores, sobre o imaginário da cidadela santa do Bom Jesus Conselheiro. A análise dos referentes administrativos sobre poder/autoridade e organização social/divisão do trabalho no Bello Monte é feita com base num modelo semiológico de análise
2
organizacional (Martins, Paulo Emílio M. “A Reinvenção do Sertão: A Estratégia Organizacional de Canudos”. Rio de Janeiro, FGV Editora, 2001).
RESULTADOS
É provável que o arraial conselheirista tenha alcançado 24 mil habitantes (a Comissão de Engenharia do Exército recenseou 5200 ruínas de habitações após os combates). A economia do Bello Monte teria desenvolvido um sistema de produção capaz do auto-abastecimento local e, ainda, de algum excedente para exportação. Para César Zama: “Aquela povoação proporcionava ao Estado pingue fonte de receita do imposto de exportação de peles” (“Libelo Republicano ...”, 1899). A superioridade de desempenho bélico dos combatentes jagunços, em relação a seus oponentes, quer pela precisão de tiro, maior eficácia na movimentação e utilização do terreno, como ainda pela eficiência de seus sistemas logístico e de informações. Um fenômeno de liderança capaz de recrutar e manter unido um número de seguidores somente inferior à população dos 16 maiores municípios do Estado da Bahia de então. A eficácia do projeto de Antônio Conselheiro, expresso pelos seguintes indicadores: Mais de vinte obras sociais numa área de 25 mil quilômetros quadrados (superior ao Estado de Sergipe); fundação, organização e governo de duas cidades: o Arraial do Bom Jesus - hoje Município de Crisópolis - e o Belo Monte, no atual Município de Canudos; um fantástico crescimento populacional da ordem de 10335% em, apenas, quatro anos; capacidade de resistência, por quase dez meses, às investidas de um efetivo de quase metade da Força Terrestre brasileira de então, com superioridade de combatentes, equipamentos e demais recursos.
CONCLUSÕES
Canudos encerra um expressivo fenômeno administrativo e como tal é estudado nesta investigação. Sob a liderança de Antônio Conselheiro, o Bello Monte teria realizado o projeto de reinvenção da ordem social sertaneja, alcançando um razoável grau de institucionalização (Figura 1), a partir de um modelo de governo teocrático, de processo decisório participativo, inspirado nas comunidades cristãs primitivas. Essa sociedade parece ter conhecido, na sua dimensão hierárquica, os três níveis de estruturação de poder das organizações complexas: o institucional, o gerencial e o operacional (Figura 2) e, na sua dimensão funcional, um considerável grau de especialização e distribuição das tarefas (Figura 3). Os institutos determinantes da organização e do governo de Canudos foram: sistema colegiado de decisão; embrionária estratificação de poder e de divisão do trabalho e especialização funcional; e concepção teocrática de autoridade. A significação desses referentes culturais se fez entre os seguidores do Conselheiro segundo os traços ideológicos e estereótipos da práxis de um Estado completamente ausente no desempenho de suas funções sociais e identificado pelos sertanejos na figura cínica dos religiosos das prelazias locais e dos “coronéis” do Sertão. O fenômeno administrativo e organizacional de Canudos
3
pode ser resumido como um grande mutirão, cuja liderança assumiu uma forma de autoridade singular a qual identificamos como a de um “coronel com o sinal contrário” ou de um “coronel pelo avesso” (figura 4).
4
PRIMEIRA FASE
RELIGIOSA – ASSISTENCIAL
(GRUPO PEREGRINO)
TERCEIRA FASE
MILITAR [GUERRA (FINAL) E DESTRUIÇÃO DO
ARRAIAL]
Sertões de Sergipe e da Bahia (junho de1874 – maio de 1893)
Bello Monte (BA) (junho de 1893 – jun/jul de 1897)
Bello Monte (BA) (julho a outubro de 1897)
Paulo Emílio FIGURA 1
A Reinvenção do Sertão (projeto de Antônio Conselheiro)
Evolução da Estrutura de Organização / Processo de Institucionalização PRIMEIRA FASE
RELIGIOSA – ASSISTENCIAL
(GRUPO PEREGRINO)
SEGUNDA FASE
RELIGIOSA – ADMINISTRATIVA – MILITAR (FIXAÇÃO E CRESCIMENTO DO GRUPO)
CCOOMMUUNNIIDDAADDEE DDOO BBEELLLLOO MMOONNTTEE
TERCEIRA FASE
MILITAR [GUERRA (FINAL) E DESTRUIÇÃO DO
ARRAIAL]
O CONSELHEIRO
Antônio Vicente Mendes Maciel
Beatos:
Paulo José Rosa José Beatinho
Antônio Beatinho
Artífices:
Manoel Feitosa Ricardo Pedreiro
Vitório
O CONSELHEIRO
Antônio Vicente Mendes Maciel
COMPANHIA DO BOM JESUS “Os Doze Apóstolos”
Beatos e Jagunços
DEFESA
João Abade
DOUTRINA Antônio
Conselheiro
ADMINISTRAÇÃO
Antônio Vila Nova
JAGUNÇOS / CLAVINOTEIROS
Antônio Vila Nova / João Abade
COMANDANTES DE PIQUETES (Pajeú, Lalau, Joaquim Macambira,
Pedrão, José Venâncio, etc.)
Guarda Católica / Piquetes Avançados de Defesa Externa
Sertões de Sergipe e da Bahia (junho de1874 – maio de 1893)
Bello Monte (BA) (junho de 1893 – jun/jul de 1897)
Bello Monte (BA) (julho a outubro de 1897)
Paulo Emílio FIGURA 1
PROGRAMA DE ESTUDOS DE ADMINISTRAÇÃO BRASILEIRA
5
Paulo Emílio FIGURA 2
Estrutura de Organização do Bello Monte: Poder e autoridade (hierarquização) - provável configuração
LÍDER COMUNITÁRIO O Bom Jesus Conselheiro
NÍVEL OPERACIONAL
“OS DOZE APÓSTOLOS” (Companhia do Bom Jesus)
Colegiado do Santuário, formado pelos beatos e jagunços mais próximos a Antônio Conselheiro
NÍVEL ESTRATÉGICO-INSTITUCIONAL
ADMINISTRAÇÃO DA URBE
Antônio Vila Nova
SEGURANÇA E DEFESA João Abade
(Chefe do Povo ou Comandante da Rua)
NÍVEL TÁTICO-GERENCIAL
Fiéis, Famílias Camponesas, Artesãos e Combatentes
PROGRAMA DE ESTUDOS DE ADMINISTRAÇÃO BRASILEIRA
6
Estrutura de Organização do Bello Monte: Divisão do Trabalho (departamentalização) – provável configuração
GOVERNO LOCAL Antônio Conselheiro /
Companhia do Bom Jesus (Os Doze Apóstolos)
DOUTRINA / ASSISTÊNCIA SOCIAL O Bom Jesus Conselheiro
ADMINISTRAÇÃO Política / Econômico-Financeira
Antônio Vila Nova
DEFESA Externa e Ordem Interna
João Abade
PREGAÇÃO E ACONSELHAMENTO
Antônio Conselheiro
JUSTIÇA Antônio Conselheiro
OBRAS COMUNITÁRIAS Mestre Manoel Faustino
EDUCAÇÃO Profa. Maria (Francisca) de Vasconcelos ou
(Bibiana) Profa. Marta Figueira Prof. Moreira
SAÚDE Manuel Quadrado
ARRECADAÇÃO José Venâncio, Pedro (Nolasco) de
Oliveira, (José) ou Pedrão
CAIXA Antônio Vila Nova
PRODUÇÃO E ABASTECIMENTO
Antônio Vila Nova
COMÉRCIO Os irmãos, Antônio, Honório e Pedro
Vila Nova
GUARDA CATÓLICA Defesa e ordem Internas
Comandante Antônio Calixto do Nascimento
INFORMAÇÃO Chico Ema, Tiago
DEFESA EXTERNA Piquetes de Defesa Avançada
Comandante Antônio Pajeú / Lalau
FIGURA 3 Paulo Emílio
PROGRAMA DE ESTUDOS DE ADMINISTRAÇÃO BRASILEIRA
7
BBBEEELLLLLLOOO MMMOOONNNTTTEEE DINÂMICA SOCIAL
Teocracia carismática; Fraternidade cristã-libertária;
Produção cooperativa-mutualista
política
OORRGGAANNIIZZAAÇÇÃÃOO SSOOCCIIAALL EE PPOODDEERR NNOO BBEELLLLOO MMOONNTTEE
DD II MM EE NN SS ÕÕ EE SS
religiosa
econômica
poder
organização social
Paulo Emílio
Pensamento liberal-social dos: Iluminismo, Revoluções Burguesa e Industrial; Socialismo X Colônia/Império escravistas e o autoritarismo coronelista.
Cristianismo ibérico (medieval); moralista e proclamador de uma fraternidade universal X misticismo hedonista-telúrico das gentes ameríndia e africana.
Monocultura latifundiário-escravista X Tradição do trabalho cooperativo-mutualista, no cenário de uma economia de grande escassez.
Estado teocrático; comunitário-participativo; em processo embrionário de institucionalização (fraternidade cristã rústica); decisão colegiada; autoridade carismática. “Coronelismo com o sinal trocado”.
Estrurtura de organização informal com traços de hierarquização e “departamentalização” (especialização). “Grande mutirão”.
FIGURA 4
PROGRAMA DE ESTUDOS DE ADMINISTRAÇÃO BRASILEIRA