APHES_2011
Estado e centralização na monarquia portuguesa. A administração e a defesa do Brasil entre o Erário Régio e as
Juntas da Fazenda (1761-1801).
Autor: Miguel Dantas da Cruz, Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Centro de Estudos de História Contemporânea
Palavras-Chave: Erário Régio, Juntas da Fazenda, centralização, Pombalismo, guerra, arrematações,
INTRODUÇÃO
Este estudo trata o problema do Estado e da centralização política no império
português na segunda metade de Setecentos, e fá-lo-á a partir da interacção do Erário
Régio, um dos principais instrumentos do poder central, com as Juntas da Fazenda do
Brasil, acrescentadas ao dispositivo tradicional da administração periférica da coroa no
império a partir de 17611.
A consolidação de um aparelho de Estado mais desenvolvido (e mais
centralizado) durante o período pombalino é um tema que não tem recolhido uma
atenção generalizada por parte da comunidade académica. Tratou-se de algo tão
evidente que a demonstração se tornou quase supérflua. Em regra, articulando a reforma
institucional levada a cabo pelo principal ministro de D. José com a concentração de
poder na sua pessoa, assume-se (não sem alguma razão) que se tratou de uma
conjuntura marcada pelo irresistível avanço da centralização estruturada e eficaz.
Paralelamente, alguns autores defendem também que o Pombalismo marca o
momento em que o governo político, baseado numa «administração activa», superou em
definitivo a administração de cariz corporativo vigente até esse momento2. Porém, se o
programa centralizador de Carvalho e Melo parece evidente por si mesmo quando
tomado na sua globalidade, a sua eficácia tem ficado frequentemente por esmiuçar. De
facto, têm faltado abordagens que acompanhem de perto o funcionamento de algumas
das estruturas fundadas na sequência do afã reformador de Pombal (certamente uma
excelente maneira de captar o significado prático da mudança).
1 O ritmo de criação das Juntas da Fazenda não foi particularmente rápido. A primeira a ser instalada foi em Goiás, em 1761, mas as últimas só se instalaram na segunda década do século XIX. 2 Por exemplo, Subtil, 1998, p. 143.
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Isto não é dizer, naturalmente, que as transformações operadas no aparelho de
Estado por Carvalho e Melo tenham sido de todo ignoradas. Por exemplo, em 1989,
José Vicente Serrão procurou decompor e sintetizar as linhas de força do programa
pombalino, insistindo na inovadora identificação das forças de mudança com o próprio
Estado3. Mais recentemente, e ainda que vinculados a perspectivas opostas, José Subtil4
e Nuno Gonçalo Monteiro5 seguiram de perto, quer os mecanismos inerentes à tomada
de poder por parte de Pombal, quer o sentido global desta mudança. Todavia, em
nenhum dos casos referidos houve a preocupação expressa de avaliar quão centralizado
se tornou o aparelho de Estado. O Estado cresceu e expandiu-se, submetendo no
processo a sociedade civil, mas fica por compreender muitas das nuances envolvidas
nesta transformação. Será que a concretização do projecto político pombalino canalizou
para Lisboa a resolução de todas as matérias? Não terá este avanço do Estado sido
secundado por uma (indispensável) delegação de poderes nas instâncias da
administração periférica da coroa? A mesma questão é naturalmente extensível ao
governo dos territórios ultramarinos. Aliás, parece especialmente importante saber em
que medida as reformas institucionais pombalinas transformaram a relação do centro
político com as conquistas.
Tal tarefa – compreender as dinâmicas centralizadoras da política pombalina –
apresenta contudo um grau de dificuldade assinalável; sendo particularmente difícil
encontrar uma plataforma de diálogo historiográfico. A ‘nova’ história institucional da
monarquia brigantina, e em especial do império português, renovada que foi pela
aproximação pós-estruturalista de autores como António Hespanha6, rejeitou a ideia de
Estado ao mesmo tempo que deitou fora a ideia de centralização política (em especial
para o século XVII). Em resultado dessa opção metodológica, e ainda que os graus de
adesão sejam variáveis7, a história da administração da América portuguesa passou a ser
sobretudo a história das elites e da negociação que mantinham com a coroa distante (e
implicitamente irrelevante). Em regra, o resultado passa pela elaboração de
prosopografias, na generalidade muito interessantes, mas com menor poder explicativo
acerca do aparelho de Estado propriamente dito. Importa notar que isto acontece, não só
3 Serrão, 1989, p. 19. 4 Subtil, 2007. 5 Monteiro, 2008. 6 Hespanha, 1994 e sobretudo 2005. 7 Autores como Fernanda Olival (2001), Laura de Mello e Sousa (2006) e Francisco Bethencourt (2007) têm resistido à ideia de uma monarquia quase acéfala, em que a coroa representava apenas mais um poder.
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porque tal investigação pressupõe enquadramento teórico hostil à operatividade
conceptual do Estado, como porque o foco específico das pesquisas são mesmo as
elites.
Naturalmente, dentro destas recorrentes opções, o Estado, seus equipamentos
(tribunais, armazéns, arsenais, vedorias, secretarias, etc.) e seus principais
desenvolvimentos institucionais fenecem e, com raras excepções, ficam submersos
numa espécie de azáfama historiográfica exclusivamente orientada para estratégias e
trajectórias individuais ou grupais com resultados de qualidade indiscutível, mas que
tendem a contribuir para a formação de um quadro historiográfico muito fragmentado, a
espaços desconcertante, e quase sempre incompatível com as ‘grandes explicações’.
Veja-se o exemplo do Erário Régio e do sistema de Juntas da Administração da
Real Fazenda8, que ele encimava. Veja-se que hoje, graças a alguns trabalhos notáveis
(como os de Ângelo Carrara), sabe-se mais sobre os contratadores de receitas da coroa,
suas estratégias e património, do que se sabe sobre o grau de dependência institucional
das Juntas da Fazenda relativamente ao Erário Régio. Presumidamente assume-se que
tal subordinação seria enorme, porque, no limite, isso expressa melhor o teor
reformador da iniciativa de Carvalho e Melo.
Por seu turno, o Estado, e sobretudo as nuances de maior ou menor centralização
que lhe estão associadas, continuam numa certa penumbra, mesmo quando a sua
presença aparece aos olhos dos historiadores com contornos mais definidos (segunda
metade de Setecentos). Em grande medida, a questão parece situar-se dentro dos
seguintes termos: até Pombal, considera-se não existir Estado nem centralização (quer
no reino quer nas conquistas), sendo a coroa apenas mais um poder; depois de Pombal,
assume-se que o Estado avançou de forma irrepreensível, passando a ser tudo decidido
em Lisboa, numa dinâmica preservada durante o reinado de D. Maria I. A máquina
institucional trazida pela reforma pombalina tem sido portanto interpretada de forma
monocromática, sem se tomar em atenção as contradições e resistências inerentes ao
próprio processo de centralização.
Neste texto são os desenvolvimentos ocorridos dentro do aparelho de Estado
(que aqui se postula como realidade efectiva no século XVIII) que assumidamente se
quer seguir, procurando-se compreender em especial o carácter e a eficácia formal da
centralização política e administrativa trazida pela reforma pombalina. Para isso,
8 Doravante e para facilitar o discurso recorrer-se-á a expressão Junta da Fazenda.
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abordar-se-á a interacção mantida entre o Erário Régio e a Junta da Fazenda do Rio de
Janeiro. Trata-se, portanto, de avaliar os limites da iniciativa centralizadora ou, por
outras palavras, os limites e contradições inerentes à expansão do Estado, dando
especial atenção a duas matérias tradicionalmente sensíveis aos governos de Antigo
Regime: os recursos financeiros para a guerra e as arrematações dos contratos
(adjudicação para o recebimento de direitos régios).
No plano da organização, o texto divide-se em duas partes. A primeira parte
pretende sinteticamente pôr em evidência o significado político da criação do Erário
Régio, destacando-se as repercussões sentidas pelos restantes tribunais e repartições do
reino. Aborda-se também a forma como a jurisdição do Erário Régio se estendeu às
conquistas. A segunda parte, seguindo de perto os contornos da interacção da Junta da
Fazenda do Rio de Janeiro com o Erário Régio, procura compreender melhor as nuances
da centralização política no império.
PARTE I
1. Antes do Erário Régio: alguns aspectos de dispersão político-administrativa.
A negligência de que tem sido alvo o Erário Régio enquanto objecto de estudo
específico, é tanto mais estranha quanto na altura da sua instituição foi tido como um
ápice da administração Josefina. Jacome Ratton, por exemplo, referiu que se tratava «de
um monumento que por si só bastaria para eternizar a memória deste grande Monarca»9.
Apesar de ser bastante esquecida pela bibliografia do período pombalino, mesmo a mais
recente, é muito razoável defender a criação do Erário Régio como uma das principais
alterações do sistema político português na segunda metade de Setecentos. Pode mesmo
ter sido a principal. O Erário Régio passou ‘tão-somente’ a absorver directamente quase
todos os rendimentos que antes se consignavam às demais repartições e tribunais do
Estado. A célebre lei de 22 de Dezembro de 1761 impôs a criação de um tesouro geral
onde deveriam ser recolhidas todos rendimentos da monarquia, agora expressamente
denominados «públicos». Por tal tesouro deveriam ser igualmente suportadas todas as
despesas da monarquia. Dificilmente poderia existir maneira mais directa de restringir
as autonomias e as jurisdições anteriores.
Até esse momento cada repartição ou tribunal tinha autonomia suficiente para
administrar rendas, direitos ou quaisquer outros bens que lhe tivessem sido
9 Ratton, 2007 [1813], p. 226.
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concedidos10, frequentemente para o cumprimento de funções atribuídas ou para o
sustento dos seus membros. Assim era o caso, por exemplo, do Conselho Ultramarino,
por onde, para fazer face à sua obrigação de socorrer as conquistas com munições e
outros materiais, D. Pedro II ordenara que corresse parte substancial das receitas
ultramarinas que chegavam a Lisboa.
Em regra estes rendimentos eram recolhidos por contratadores, rendeiros,
almoxarifes e recebedores e entregues na repartição estipulada, sendo as suas contas
posteriormente conferidas em uma repartição específica (embora organicamente ligada
ao Conselho da Fazenda): Contos do Reino e Casa. Tal era o procedimento adoptado
para o reino e, desde 1627, para todas as partes ultramarinas. O capítulo XVIII do
regimento dos Contos revogou a prática de serem quitados nas próprias conquistas os
oficiais que recebessem rendimentos da fazenda. Daí em diante, tudo deveria ser
confirmado no reino11.
Como é do conhecimento geral, a dispersão da administração de receitas e
despesas da fazenda real exorbitava mesmo os espaços mais directamente vinculadas à
coroa. No Brasil, até meados do século XVIII, as câmaras municipais não só recolhiam
tributos consignados ao custeamento de despesas militares, como os administravam
directamente. Ou seja, na América portuguesa, e diferentemente do que acontecia no
reino onde funcionava a Junta dos Três Estados, os concelhos geriam livremente os
recursos fiscais (auto-tributados) até ao pagamento final das tropas em mostras, às quais
exigiam estar presente12. O período de guerra com os holandeses, em meados do século
XVII, foi especialmente ilustrativo desse papel desempenhado pelas câmaras na colecta
fiscal para posterior satisfação dos encargos com a tropa13.
Naturalmente, esta autonomia camarária não recolhia (provavelmente nunca
recolheu) um consenso alargado e em 1727 o governador do Rio de Janeiro, o coronel
Vahia Monteiro, recebeu instruções para verificar a possibilidade de se transferir a
administração daquelas rendas para a Fazenda Real14. Alguns anos antes, por alturas da
Guerra de Sucessão de Espanha, também no reino, mais propriamente no Conselho de
10 Silva, 2005, p. 255. 11 Regimento dos Contos (1627). Sousa, 1785, tomo III, pp. 367-446. 12 Assentos da Câmara da Baía relativos aos fornecimentos das tropas de infantaria (Julho de 1652), DHBNRJ, vol. 79, pp. 349-367. 13 Bicalho, 2003 e Barros 2008. 14 Carta de Vahia Monteiro para o rei, de 7 de Fevereiro de 1729. PHANRJ, nº 15, pp. 307-310.
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Estado, se discutiu as vantagens de retirar a cobrança das terças às Câmaras15. Os
tempos estavam de facto a mudar para as autonomias dos poderes locais16.
Ainda no que tocava aos recursos para a defesa do Brasil, importa referir que a
ausência de um ponto central de «arrecadação» da fazenda (por onde simultaneamente
se expedissem os pagamentos) gerou pelo menos três décadas de conflitos entre o
Conselho Ultramarino e o Conselho da Fazenda (1710-1736?). Os rendimentos para a
defesa terrestre, geridos pelo Conselho Ultramarino, e os rendimentos destinados à
defesa marítima, administrados pelos Armazéns da Coroa, tendiam a confundir-se,
transformando-se a defesa militar do Brasil em um enorme desafio para as articulações
do sistema poli-sinodal português.
Ilustrativo da tensão provocada por tais dificuldades foi um parecer, emitido
pelo então vedor dos Armazéns (marquês de Fronteira), onde se exigiu a preservação
das práticas entre os tribunais, referindo então que o Conselho Ultramarino deveria
pagar o que devia «porque neste reino se observa inviolavelmente estilo, que passa por
Lei, de que a dívida que se contraiu por um tribunal se não pague pelos bens que outro
tribunal administra»17. Pela mesma altura, o mesmo marquês chegou a propor a
incorporação do Conselho Ultramarino (e da Junta do Comércio) na Repartição dos
Armazéns, o que, por outras palavras, implicava a extinção do primeiro18. Para
Fronteira, só centralizando a direcção colonial no Conselho da Fazenda, sobretudo na
Repartição dos Armazéns, seria possível fazer convergir os múltiplos interesses
envolvidos na administração ultramarina. Naquele momento, o plano de absorção
institucional foi rejeitado, mas a sua contemplação nos principais círculos de poder da
monarquia, inclusivamente em pareceres do duque de Cadaval (que o considerou um
produto da desmedida ambição de Fronteira)19, ilustra a viabilidade com que foi
encarado.
Este panorama, de uma certa anarquia institucional, sofreria uma modificação
essencial com a reorganização financeira do Estado, ou melhor, com o estabelecimento
do Erário Régio em 1761. Financeiramente dependentes de um novo organismo, as
15 Consulta do Conselho de Estado, de Setembro de 1713. Biblioteca da Academia das Ciências (BAC), Série Azul, nº 127, Papéis do Conselho de Estado, fls. 4-13v. 16 Cf. Bicalho, 2007. 17 Parecer do marquês de Fronteira, provavelmente do período da Guerra da Sucessão de Espanha. ANTT, Arquivos particulares Casa Fronteira e Alorna, nº 120, pasta Conselho da Fazenda e Casa da Moeda. 18 Proposta do marquês de Fronteira, 24 de Outubro de 1712. Rau, 1958, Vol. II, doc. 161, pp. 108-110. 19 Parecer do duque de Cadaval sobre a proposta de incorporação do Conselho Ultramarino e da Junta do Comércio na Repartição da Índia e Armazéns, 28 de Novembro de 1712. Rau, 1958, Vol. II, doc. 164, pp. 110-111.
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repartições e tribunais da coroa perderam não só influência como perderam também a
razão para se envolverem em disputas entre si. Num certo sentido, é legítimo referir que
Carvalho e Melo disciplinou a generalidade do sistema político português quando
retirou à maioria das instâncias de poder a administração de consignações particulares.
Salvo raras excepções, aliás mais tarde corrigidas20, o espectro institucional português
ficou numa espécie de subordinação implícita ao Erário e, consequentemente, ao seu
inspector-geral e (de 1777 em diante) aos seus presidentes. Na realidade, mais do que os
poderes periféricos (como as câmaras municipais), as primeiras vítimas da centralização
trazida pelo Erário podem muito bem ter sido as outras instâncias do poder central.
2. Prescrições centralizadoras do Erário Régio: assumindo o controlo da periferia
ultramarina
A constituição de um ponto central para a arrecadação e distribuição da fazenda
real, exclusivamente administrado pelo Erário Régio, limitou fortemente portanto a
capacidade de os demais tribunais actuarem livremente, impossibilitando-os de emitir
ordens de pagamento, mesmo quando as matérias eram por si tuteladas. Na prática, o
Erário Régio passava a custear o funcionamento do restante aparelho de Estado,
transferindo verbas para onde fosse necessário.
A administração das conquistas não foi diferente. Os tribunais e repartições que
de alguma forma intervinham na gestão do ultramar, sobretudo o Conselho Ultramarino,
eram agora obrigados a elaborar as folhas que deveriam ser remetidas ao Erário Régio,
para posterior expedição dos mandatos de pagamento. E foi aqui que residiu a grande
inovação. A expedição de folhas de pagamento não constituía novidade de maior. Na
verdade elas sempre existiram. A diferença é que de 1761 em diante elas tinham de ser
canalizadas para o Erário, que autorizaria (ou não) o pagamento. A única excepção
prevista a este procedimento pressupunha a carta assinada pela «Real Mão», que, sem
prejuízo da indispensável participação da conta ao presidente do Erário, autorizaria o
pagamento de qualquer importância. Na eventualidade de uma urgência, relacionada
com «algumas despesas e pagamentos no Brasil», os presidentes dos diferentes tribunais
20 A maioria dos tribunais, como a Junta dos Três Estados, ficou de imediato na dependência do Erário Régio; outros, porém, mantiveram alguma forma autonomia que, de qualquer modo, não durou muitos anos. Foram os casos da administração da Casa de Bragança (1765); da Casa das Rainhas (1769); dos Contos da Mesa da Consciência e Ordens, Contadorias das Três ordens Militares e da Tesouraria Geral dos Cativos (1774); do donativo dos 4% (administrado pela Junta do Comércio até 1780); e da Contadoria do Subsídio Literário (1794). No início do século XIX raros seriam os rendimentos do Estado não directamente absorvidos pelo Erário. Moreira, 1977, pp. xiv-xvi.
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ou repartições deveriam tratar pessoalmente com o presidente do Erário Régio, para que
por ele se mandasse expedir as «Ordens necessárias». O presidente do Erário Régio (e
antes dele o inspector-geral) podia, por seu turno, questionar e mandar averiguar junto
dos tribunais os motivos subjacentes às despesas feitas. Podia também mandar aferir
quais as resoluções régias em que elas se apoiavam.
As matérias que a lei de 22 de Dezembro de 1761 deixara omissas, e que
estariam na origem da perpetuação de práticas contrárias ao espírito dessa lei, foram
corrigidas anos mais tarde, já depois do afastamento de Sebastião de Carvalho e Melo.
Na altura, foi especialmente contemplado o caso das conquistas. Relembrou-se então ao
Conselho Ultramarino (e a todos os outros) a proibição de mandarem satisfazer
despesas nas conquistas21. Outras objecções (posteriores) à preeminência do Erário
Régio não foram bem sucedidas, como aconteceu já em 1800, quando a Junta da
Fazenda da Marinha (criada especificamente para gerir o aprovisionamento e a
construção de navios) se viu forçada pelo regente a observar as instruções orçamentais
transmitidas pelo Erário22.
O protagonismo exercido sobre as finanças do Estado transformou o Erário
Régio no espaço privilegiado para o exame de todas as matérias que dissessem respeito
ao funcionamento da estrutura institucional e administrativa da fazenda real, quer no
reino, quer nas conquistas americanas. No caso de estas últimas, e na sequência de um
processo que passou pela marginalização explícita do Conselho Ultramarino, a
canalização das representações dos súbditos e agentes espalhados pelo império passou a
ser direccionada para a nova estrutura pombalina.
Na realidade, e ainda que subissem pelo Conselho Ultramarino muitos papéis
(relacionados com pagamentos, despesas ou tributos), era sobretudo no Erário que a sua
apreciação final era realizada. Por isso, muitos requerimentos encaminhados para o
Conselho Ultramarino não obtiveram aí a resposta desejada, nem mesmo chegaram a
subir para consulta ao monarca. Tal foi o caso da frustrada representação dos oficiais da
Câmara do Sabará sobre as dificuldades que encontravam para pagar os soldos dos
21 Decreto de 12 de Junho de 1779. Acerca das Juntas da Fazenda do Ultramar, e dos processos e jurisdição para pagamentos. Silva, 1844, pp. 471-473. 22 Consulta do Conselho da Junta da Fazenda da Marinha, de 22 de Agosto de 1800. Biblioteca Central da Marinha - Arquivo Histórico (BCM-AH), Livro 2384, fls. 212v-213.
9
sargentos-mores e ajudantes, entretanto nomeados para disciplinar as tropas auxiliares
(1777)23.
No Erário Régio também se passaram a dirimir disputas de fronteira registadas
entre diferentes capitanias (não resolvidas com a criação das Juntas da Fazenda),
frequentemente relacionadas com o controlo sobre certos recursos ou com o desejado
direito a arrematar contratos. Por exemplo, no final da década de sessenta, depois de se
ter verificado que os contratos das passagens de Curítiba e Viamão tinham sido
arrematados quer por São Paulo, quer pelo Rio de Janeiro, a capital fluminense foi
advertida para não se intrometer naqueles negócios24. Ordem que foi reforçada pelo
próprio conde de Oeiras, quando referiu explicitamente «que por essa Junta da Fazenda
se não torne a rematar daqui em diante os contratos dos governos do Brasil relativos aos
distritos das outras capitanias gerais e os das capitanias mores a eles subordinados, mas
sim e tão-somente fará rematar os que se compreenderem no território dessa
capitania»25.
Da mesma forma, foi também o Erário Régio que, perante as queixas do governo
paulista (incapaz de suportar os custos das suas tropas no Rio Grande sem o apoio
fluminense), censurou as opções da Junta da Fazenda do Rio de Janeiro. Ordenou então
que gastos excessivos nas obras públicas se deveriam evitar «para se fazerem as
assistências à dita capitania de São Paulo [entre outras coisas]»26.
As próprias Secretarias de Estado – instâncias muitíssimo dinamizadas durante o
consulado pombalino – não se deveriam substituir ao Erário Régio quando a matéria em
causa era a administração da fazenda. Por exemplo, no início da década de 1770, o
marquês do Lavradio, vice-rei do Brasil, por via da Secretaria de Estado do Reino,
propôs a Pombal uma alteração que passava pela maior regularidade com se conferiam
as contas aos almoxarifes na Junta da Fazenda do Rio de Janeiro. Ainda que bem
recebida por Pombal, o vice-rei foi recordado do circuito por onde deveria transitar
aquela proposta. Carvalho e Melo referiu então que «É muito próprio o projecto de
estabelecer um método perpétuo e inalterável para se governarem as Provedorias
sujeitas a essa Capitania, o qual deve V. Ex.ª remeter ao Erário Régio, para que Sua
23 Representação dos oficiais da Câmara do Sabará. De 4 de Agosto de 1777. AHU, CU, Brasil/Minas, Cx. 111, doc. 47 (8842) 24 Provisão de 13 de Julho de 1769. Tribunal de Contas (doravante TC), Erário Régio (doravante ER), nº 4055, fl. 108. 25 Carta do conde de Oeiras de 29 de Agosto de 1769. TC, ER, nº 4055, fls. 115-116. 26 Provisão 13 de Outubro de 1773, TC, ER, nº 4055, fls. 217-219.
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majestade à vista dele, o aprove no que lhe parecer justo,»27. Dois anos depois, por
provisão dirigida à Junta da Fazenda fluminense (via Erário Régio), a proposta de
Lavradio acabou por ser mesmo aprovada28.
Importa, contudo, notar que ao contrário do que aconteceu a outras repartições
do Estado, as Secretarias mantiveram uma coexistência maioritariamente equilibrada
com o Erário Régio, constituindo ambos dispositivos essenciais da governação Josefina
e Mariana. O poder encontrar-se-ia partilhado por esferas distintas, cabendo às
Secretarias de Estado a gestão das matérias iminentemente políticas do reino e das
conquistas e recaindo no Erário a direcção financeira da monarquia. Naturalmente, esta
direcção acabava por ter também um cariz político, porque mexia com o poder das
instituições, retirando-lhes ou concedendo-lhes mais margem de manobra. Por esse
motivo, tal arranjo não deixou de produzir pontos de fractura, sobretudo depois da
queda de Pombal – simultaneamente secretário de Estado do reino e inspector-geral. A
este respeito a defesa do Brasil (ou de qualquer outro território), porque tinha uma
componente político-militar e uma componente financeira, era matéria particularmente
propensa a causar desentendimentos, que de facto aconteceram. Por exemplo, por
ocasião da chegada ao Rio de Janeiro da frota do ano de 1791, a Junta da Fazenda
participou ao Erário que já não tinha condições para continuar a custear sozinha os
gastos provocados pelos navios de guerra do comboio. Pediu então para se libertar
daquele encargo, levantando a possibilidade de aqueles navios fazerem os seus
reabastecimentos em outros portos da costa brasileira. Porque se tratava de uma matéria
que exorbitava o seu quadro de funções, o Erário preferiu encaminhar a participação
para o secretário da Marinha Martinho de Melo e Castro, não deixando contudo de
vincar bem a sua posição junto de D. Maria I: «Como as despesas com as ditas embarcações declara a Junta se costumam fazer por
ordens expedidas nas respectivas conjunturas, as quais considero serem emanadas da Secretaria
de Estado dos Negócios da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, sendo certo, que por decreto
de 12 de Junho de 1779 [a que já se aludiu] ficou privativo ao Tribunal deste Real Erário da
expedição das Ordens para qualquer pagamento da Real Fazenda, ainda relativo àqueles
Domínios; para se obviar inconciliável contradição às mesmas ordens, na que se deve expedir em
consequência desta Conta; parece, que só Sua Majestade pode determinar ao que for mais
conforme ao seu Real Agrado.»29
27 Carta de Pombal para Lavradio, 20/2/1770, Mendonça, 1989, pp.513-514. 28 Provisão de 18 de Setembro de 1772. TC, ER, nº 4055, fls. 164-165. 29 Exposição do contador geral, de 19 de Novembro de 1791 (à margem: representação enviada a Martinho de Melo e Castro). TC, ER, nº 4044, fls. 110-112.
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As observações feitas por D. Fernando José de Portugal (penúltimo vice-rei do
Brasil) ao capítulo 32 do regimento de Roque da Costa Barreto confirmam a
persistência das dificuldades associadas a convivência institucional das Secretarias de
Estado com o Erário Régio. O futuro marquês de Aguiar referiu que no Rio de Janeiro,
no início de Oitocentos, ainda se recebiam ordens que acabavam por originar algum tipo
de dispêndio da fazenda real, e que eram passadas por via da Secretaria de Estado da
Marinha e Domínios Ultramarinos. Ao contrário do que estava prescrito na lei de 22 de
Dezembro de 1761, muitas dessas ordens não eram assinadas pela «Real Mão».
Todavia, apontou que fazia «constar» todo esse tipo de ordens na Junta da Fazenda
fluminense, por onde se informava o presidente do Erário30.
PARTE II
3. Dinâmicas de centralização no império português: administração e guerra entre
o Erário Régio e a Junta da Fazenda do Rio de Janeiro
No império, o Erário Régio actuava sobretudo por meio do sistema de Juntas da
Fazenda, gradualmente instituídas na América portuguesa da década de sessenta de
Setecentos em diante (até 1820). Em princípio, tratava-se de uma relação hierarquizada
feita num quadro de evidente subordinação formal. Nas páginas seguintes procurar-se-á
avaliar os limites dessa subordinação, ou seja, procurar-se-á compreender o alcance da
frequentemente aludida mas menos vezes demonstrada centralização política levada a
cabo no império na segunda metade setecentos.
3.1 Dependências orgânicas e estruturais
Cada Junta da Fazenda integrava-se na estrutura maior do Erário Régio por via
de uma contadoria geral –, que filtrava e enformava boa parte da comunicação dirigida
ao monarca ou ao inspector-geral/presidente do Erário. A comunicação podia ser feita
pelo corpo da Junta, mas também a título individual por cada um dos seus membros.
Parece, contudo, que somente os seus presidentes, ou seja, vice-reis e governadores,
teriam acesso directo ao inspector-geral e ao rei. Os restantes membros da Junta
escreviam necessariamente para o contador geral, em Lisboa. Tal privilégio não
isentava a correspondência dos presidentes das Juntas da Fazenda do escrutínio (muitas
30 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ), 09, 02, 026, fls. 45v-48v.
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vezes crítico) do contador geral, mesmo quando a comunicação chegava via Secretaria
de Estado.
As restrições administrativas das Juntas não se ficavam na censura de que a sua
actividade era alvo na mesa do contador geral, muito embora tal constituísse uma óbvia
limitação da sua influência simbólica enquanto instituição. Mais relevantes eram os
limites das suas competências judiciais, sobretudo se se tomar em consideração que
constituíam tribunais. Na verdade, enquanto tribunais, as Juntas da Fazenda nunca
conseguiram uma autonomia privativa, sendo a generalidade das querelas relacionadas
com a fazenda real despachadas para a metrópole.
O esforço empreendido para reverter ou minorar os seus limites jurisdicionais
sobre esta matéria não foi contudo bem sucedido. Ainda que a Junta do Rio de Janeiro
tivesse requerido a D. José o uso da jurisdição contenciosa nas matérias relacionados
com a fazenda real31, referindo até que só assim seria viável cumprir a lei de 22 de
Dezembro de 1761, este não desanexou tal competência do Conselho da Fazenda/Erário
Régio. As partes, insatisfeitas com decisões tomadas localmente, deveriam fazer chegar
os seus papéis a Lisboa, onde seriam posteriormente sentenciados. Assim aconteceu,
por exemplo, a Marcelino Quaresma, patrão-mor do porto do Rio de Janeiro. Nomeado
no posto por Bobadela em 1755, Marcelino Quaresma entrou em conflito com vários
artífices dos armazéns da cidade, que o terão acusado de praticar roubos e extorsões32.
Investigado por ordem do Erário Régio foi entretanto destituído do cargo. Mais tarde, e
tendo provado junto da rainha – via Erário Régio – quão «insubsistentes e cavilosas»
eram as queixas que lhe moveram, foi reempossado com todos os privilégios do cargo,
mediante ordem enviada ao vice-rei33.
31 Cartas do vice-rei, conde da Cunha, provedor da fazenda, procurador da coroa e fazenda e chanceler da Relação (1766). AHU_ACL_CU_Cx. 78, doc. 7080. 32 Exposição de de 14 de Outubro de 1774. TC, ER, nº 4047, fls. 38-39. 33 Provisão de 30 de Janeiro de 1779. TC, ER, nº 4055, fls. 461.
13
Igualmente importantes parecem ter sido as alterações na composição do corpo
da Junta fluminense, promovidas pelo inspector-geral do Erário Régio, que sugerem o
reforço da intenção metropolitana em controlar a actividade daquela Junta. A
remodelação passou então pela nomeação do escrivão João Correia Lemos, homem que
em resultado dos seus conhecimentos na escrituração contábil ganhou a confiança de
Carvalho e Melo. O poder de que fora investido pelo inspector-geral depressa se fez
notar, quando depois de se antagonizar com o procurador da coroa e da fazenda (tipo de
ministro com assento em quase todas as Juntas da Fazenda), Alexandre Nunes34,
conseguiu obter a sua prisão e deportação para Lisboa.
Não muito tempo depois foi concedido ao novo escrivão (e ao tesoureiro geral
da Junta, entretanto nomeado) um lugar no mesmo órgão em condições de paridade
absoluta com os demais membros: «terão na mesma Junta o assento espaldar do mesmo
modo em que o têm os Ministros pelas respectivas antiguidades reguladas pelas posses
que cada um tomar». Explicitava-se que o seu voto (do escrivão e do tesoureiro geral)
seria indispensável nas «matérias próprias da dita Junta que nela se tratarem, como
pessoas versadas na formalidade e método das contas na Administração das rendas, e
34 «Conta que se faz menção à carta acima dada pelo escrivão da Fazenda Real da Capitania do Rio de Janeiro João Carlos Correia Lemos», de 12 de Agosto de 1767. TC, ER, nº 4055, fls. 55-60.
Erário Régio: Contador Geral dos governos do Rio de Janei-ro, África Oriental e Ásia
Junta da administração da Fazenda (do Rio de Janeiro)
Figura A - Base do circuito de comunicação Erário Régio - Junta da Fazenda do Rio de Janeiro
Inspector Geral / Presidente do Erário
Partes
Vice-rei - presidente da Junta
Chanceler da Relação
Provedor da fazenda
Procura-dor da coroa e fazenda
Escrivão da Junta
Tesourei-ro da Junta
14
arrecadação delas»35. Procurar-se-ia diluir (pela força do número de votos) poderes
naturalmente mais ascendentes, presentes há mais tempo no território, e logo mais
difíceis de controlar à distância, como eram os provedores da fazenda e os procuradores
da coroa e fazenda? A este respeito importa recordar que o mesmo documento (da
concessão da paridade ao escrivão), exigia que os despachos relativos às despesas
fossem sempre assinados por todos os membros. Referia então que «todos os papéis que
hão-de servir de título para despacho do referido tesoureiro geral serão autorizados com
as rubricas de todo o corpo da Junta».
Os próprios governadores/vice-reis poderão não ter ficado fora de tal objectivo.
Pelo menos em tese, as Juntas da Fazenda, em virtude da colegialidade imposta no seu
processo decisório, constituiriam elas próprias mecanismos de condicionamento de
poder, e em certos casos do poder mais individualizado do vice-rei/governador. A
incorporação formal do governador ou do vice-rei naquele tribunal, e a sua sujeição à
burocracia do mesmo, pode e provavelmente deve ser lida como uma restrição ao seu
poder efectivo. Neste sentido e pelo menos para as matérias da real fazenda, as Juntas
da Fazenda não faziam apenas parte de um sistema integrado e completamente
dependente de Lisboa. Elas, por via do seu funcionamento, constituíam agentes activos
no aprofundamento da centralização lisboeta, limitando de certa forma a jurisdição dos
governadores quando exercida de forma desenquadrada da Junta.Um caso verificado
durante o governo de António Carlos Furtado de Mendonça em Minas Gerais (1773-
1775) mostra como o modus operandi das Juntas da Fazenda se reflectiu na diminuição
da jurisdição dos governadores.
Informado pelo tesoureiro geral da Junta da Fazenda de Minas Gerais acerca do
comportamento de Furtado de Mendonça, que suspendera o novo método de
escrituração e determinara que a «despesa daquela repartição fosse feita somente por
despachos do governador […] dirigidos ao provedor da Fazenda», o contador geral
participou severamente o sucedido ao conde Oeiras. Referindo então que tinha sido a
«má forma e irregularidade com que a Fazenda Real era administrada na América
deram o motivo do estabelecimento das Juntas da Fazenda às quais foi Sua Majestade
servido encarregar toda a administração da Sua Fazenda sem excepção de ramo algum».
Todavia, e ainda segundo o contador geral, alguns governadores ficaram muito
insatisfeitos com «o tirar-se lhes a mesma administração das suas disposições», e
35 Carta do conde de Oeiras para o conde de Azambuja, de 6 de Abril de 1769. TC, ER, nº 4103, fls. 261-263.
15
procuravam manter a sua anterior jurisdição. Tal era inaceitável e segundo a exposição
de Luís José de Brito, «muito contrária às ordens de Sua Majestade», por isso o próprio
contador geral tomou a iniciativa de elaborar a provisão, que submeteu à ratificação de
Oeiras, e que deveria ser enviada para Minas com o objectivo de corrigir aquele
procedimento introduzido pelo governador36. No mesmo dia a provisão foi assinada e
despachada, referindo-se explicitamente que jamais deveria «o tesoureiro geral
respectivo fazer despesa alguma pertencente àquela repartição que não seja por
despacho da mesma Junta»37.
É também dentro desta lógica de condicionamento implícito da autonomia dos
governadores que se encontra a supressão do dentro desta lógica, de condicionamento
implícito da autonomia dos governadores, esteve a supressão do direito que por tradição
lhes assistia de proverem privativamente as serventias dos ofícios da fazenda e da
justiça. Por via da carta régia de 24 Outubro de 1761, o poder de decisão sobre esta
importante matéria foi canalizado para a Junta da Fazenda do Rio de Janeiro38, onde se
passaram a arrendar todos os ofícios da capitania, com excepção das propriedades e das
serventias vitalícias (reservadas ao arbítrio do monarca)39.
A resistência que a espaços os governadores terão montado esta determinação
real, em especial no que tocava ao provimento dos postos da fazenda, foi
definitivamente debelada quando em Agosto de 1799, por provisão do Erário Régio, se
confirmou a prerrogativa da Junta fluminense. Foi com evidente desagrado que o já
referido D. Fernando José de Portugal (ao comentar o capítulo 7 do regimento de Roque
da Costa Barreto) escreveu que a Junta da Fazenda do Rio de Janeiro provia a serventia
de todos os ofícios da capitania, quer fossem de fazenda, quer fossem de justiça. Ao
vice-rei passara somente a caber o provimento das serventias dos ofícios da Relação do
Rio de Janeiro40, «quando pelo seu regimento e pelos das Relações da Baía e do Rio de
Janeiro podia prover uns e outros»41, ou seja, todos (os de fazenda e de justiça).
36 Exposição de Luís José de Brito, de 13 de Março de 1776. TC, ER, nº 4048, fls. 52-52v. 37 Provisão de 13 de Março de 1776. TC, ER, nº 4073, fls. 322-323. 38 Carta Régia de 24 de Outubro de 1761. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), lata 220, doc. 1. 39 BNRJ, 09, 02, 026, fls. 7-12v. 40 Segundo Arno Wehling e Maria José Wehling, a generalidade dos lugares para funcionários daquele Tribunal (onde não se incluem naturalmente os magistrados) era preenchida em propriedade, vitalícia ou temporária. O assalariamento ou contratação eram menos frequentes. Wehling e Wehling, 2004, pp. 157-158. 41 BNRJ, 09, 02, 026, fls. 7-12v.
16
3.2 Autonomias concedidas: alguns aspectos da racionalização administrativa
pombalina
O quadro acima abordado evidencia o carácter essencialmente centralizador da
política colonial pombalina. Existem, porém, indícios que aparentam ir em sentido
contrário e que interessa detalhar. O já chamado reforço da administração colegiada nos
governos ultramarinos42, de que as Juntas da Fazenda foram provavelmente o melhor
exemplo, foi acompanhado pelo concomitante reforço das competências desses mesmos
governos. Às Juntas da Fazenda foi portanto delegado um poder formal que em certos
aspectos ultrapassou bastante o quadro de funções anteriormente concedido à
administração periférica da coroa na América portuguesa.
A prestação de contas de todos os oficiais que recebiam ou despendiam rendas
reais passou a ser grandemente assegurada nos territórios que se encontravam debaixo
da influência da respectiva Junta. De 1760 em diante (ano em que a Junta do Rio de
Janeiro se reuniu pela primeira vez), os tesoureiros, almoxarifes e recebedores da
fazenda real deixaram de ser obrigados a prestar contas em Lisboa precisamente aos
Contos do Reino e Casa. A explicação para está súbita mudança encontra-se na carta
régia de 18 de Agosto de 1760. Aí referia-se que os homens mais abonados (das
conquistas) rejeitavam servir os ofícios da fazenda por causa das muitas «dilações» a
que «comummente» estavam sujeitos nos Contos43.
O acerto passou a ser feito na contadoria anexa à Junta, onde se extraiam as
cartas de quitação interinas, posteriormente expedidas para ratificação final em Lisboa
(naquele ano de 1760 a conferência seria feita no Conselho Ultramarino e na Secretaria
de Estado, mas de 1761 em diante caberia ao Erário Régio aprovar tais ajustes). Importa
notar que a conferência de contas não se fazia apenas aos ofícios de menor
consideração, que naturalmente administravam pequenas somas. O próprio tesoureiro
geral das tropas, Manuel Joaquim de Azevedo, que durante os anos críticos de 1774-
1777 efectuou pagamentos a um exército que só no Rio Grande do Sul contava com
mais 6.300 homens44, acertou as suas contas na Junta da Fazenda do Rio de Janeiro, e só
depois pôde regressar ao reino45.
42 Kantor, 2003, p. 119. 43 Carta Régia de 18 de Agosto de 1760, inclusa no processo AHU-Rio de Janeiro, Cx. 86, doc. 16 / AHU_ACL_CU_Cx. 78, doc. 7080 44 Peregalli, 1986, p. 99. 45 Provisão de 19 de Agosto de 1779, em que Manuel Joaquim de Azevedo recebeu a quitação geral da rainha, depois te terem sido vistas as 3 cartas de quitação passadas pela Junta da Fazenda do rio de Janeiro. TC, ER, nº 4055, fl. 493.
17
A já mencionada questão dos provimentos de ofícios, em especial a nomeação
das serventias de ofícios da fazenda e justiça, fornece outro bom exemplo do reforço do
poder político das Juntas da Fazenda, em particular da Junta fluminense. Os deputados
desta Junta puderam naturalmente nomear os escriturários necessários ao seu
funcionamento e ao funcionamento da contadoria anexa. De resto, importa referir que
em muitos casos se tratou de criação de empregos46 – prerrogativa raramente atribuída e
que estava proibida desde 1602.
A mesma Junta obteve de Lisboa o direito a intrometer-se explicitamente nos
recursos humanos da Alfândega da cidade, passando por exemplo a nomear «os oficiais
que lhe parecerem mais idóneos para bem exercerem os ofícios da Alfândega». Podia
mesmo arbitrar-lhes os ordenados, sobrepondo-se em tudo ao provedor e ao
administrador da Alfândega, que deveriam ser mantidos sob vigilância apertada47. Mas,
como se referiu, as prerrogativas da Junta iam muito mais longe. Relembre-se que
em1761 lhe fora concedido o direito de arrendar todos os ofícios da capitania.
Por último, importa destacar que a Junta da Fazenda do Rio de Janeiro passou a
absorver e administrar, quase exclusivamente, a generalidade dos rendimentos gerados
na capitania (excepto as receitas da Mesa da Inspecção). Mesmo o rendimento da Casa
da moeda do Rio de Janeiro, para insatisfação do seu provedor, passou a ser entregue na
tesouraria geral da Junta, de onde era despachado para Lisboa48.
Em uma escala diferente, as Juntas da Fazenda terão beneficiado da tendência, já
verificada na metrópole: fazer convergir as receitas e as despesas da fazenda real numa
única instituição. Tratar-se-ia de um refinamento institucional que a jusante, e por via da
delegação de certas funções, produziu uma certa forma de descentralização controlada.
Ou seja, as Juntas, ao concentrarem poderes e competências na sua área de jurisdição,
estariam a cumprir os objectivos da racionalização de procedimentos imposta por
Pombal. Não se tratava (provavelmente nunca se tratou) de fazer convergir para Lisboa
todas as decisões sobre a administração ultramarina. Pelo menos no que tocava ao
funcionamento do novo aparelho fazendário – instituído em 1761 e fundado na relação
de subordinação explícita das Juntas da Fazenda americanas ao Erário Régio –, o afã
reformador de Carvalho e Melo deve ser visto à luz dessa ideia de delegação formal e
racionalizada de poderes. 46 Carta do conde de Oeiras a Lavradio, de 30 de Agosto de 1769. TC, ER, nº 4055, fls. 116-117. 47 Provisão de 26 de Agosto de 1769. TC, ER, nº 4055, fls. 114-115. 48 Carta do conde Oeiras para o provedor da Cada da Moeda, de 13 de Agosto de 1767. TC, ER, nº 4103, fls. 143-144.
18
O relevo adquirido pelas Juntas no espectro institucional da governação da
América portuguesa pode ser confirmado na reacção do príncipe regente e de D.
Rodrigo de Sousa Coutinho a uma representação do senado da câmara do Rio de
Janeiro, expedida em 1798, no sentido de fazer regressar à jurisdição das câmaras
algumas das competências que entretanto lhes tinham sido retiradas (inclusive a
administração da fazenda real). O Conselho Ultramarino foi então avisado para dar o
seu parecer acerca da longa petição daquele município, «com a excepção de tudo o que
pode dizer respeito a tirar a administração das Rendas das Juntas da Fazenda». O
aparelho fazendário da monarquia deveria ser preservado. Para o futuro presidente do
Erário Régio, reentregar a administração da fazenda real às câmaras era «contrário aos
mais fundados princípios de toda a Pública e Económica Administração»49.
3.3 Insubmissões imprevistas
A sujeição estrutural das Juntas ao inspector-geral e presidentes do Erário Régio,
inequívoca ao nível do enquadramento legal, foi de certa forma compensada pela
concessão de uma margem de manobra assinalável, mesmo em matérias a que Lisboa
sempre fora muito sensível (como nomeações e acertos de contas). É, todavia, legítimo
referir que estas manifestações de autonomia foram em todos os casos previamente
consentidas e até programadas, e que o seu único propósito correspondeu a algumas
cedências de ordem prática por parte de um aparelho tão centralizado e hierarquizado
quanto possível. Tal argumento é sólido mas, de modo algum, equivale a dizer que no
território brasileiro a administração periférica da coroa incorporou obedientemente
todas as prescrições provenientes do Erário (do qual formalmente dependia). Como
abaixo se procurará demonstrar, o caminho da centralização esteve longe de ser pacífico
e, independentemente do motivo, o Erário Régio nem sempre conseguiu impor os seus
desejos sobre um território distante e sujeito a circunstâncias que Lisboa não podia
controlar.
De seguida, abordar-se-á dois problemas determinantes na relação mantida entre
o Erário Régio e a Junta da Fazenda do Rio de Janeiro, que se consideram ilustrativos
do percurso particularmente acidentado da centralização (enquanto processo de decisão
49 Aviso de D. Rodrigo de Sousa Coutinho ao Conselho Ultramarino, de 20 de Agosto de 1799. AHU-Rio de Janeiro, Cx. 180, doc. 36; Cx. 175, doc. 86; Cx. 176, doc. 45 / AHU_ACL_CU_017_Cx. 168, doc. 12536.
19
política, económica e militar) levada a cabo no império nas últimas décadas de
Setecentos.
3.3.1 As arrematações e a sua localização
O primeiro problema remete para uma espécie de combate institucional que
envolveu a Junta fluminense e o Erário pelo direito à arrematação dos contratos da
América portuguesa. A escolha não é obviamente inocente, já que a arrematação de
contratos tanto mexia com a vontade fiscalista do Estado como mexia com a influência
de redes mais ou menos subterrâneas, que estariam pouco dispostas a ver despromovido
um espaço de arrematação que controlavam.
Ainda que encerre várias lacunas (relacionadas com carência de dados para
alguns intervalos cronológicos), o gráfico A permite perceber sem dificuldades as linhas
de força da questão da localização dos espaços de arrematação dos contratos no Brasil
meridional nos segundos 50 anos de Setecentos. Nele é possível confirmar uma ideia
muito divulgada pela historiografia brasileira, que aponta os anos 60 do século XVIII
como momento de reorientação geográfica para a dita escolha. De facto, a generalidade
dos contratos passaram a ser arrematados nas conquistas. Todavia, pode-se também
verificar que a ultrapassagem do Conselho Ultramarino nunca foi completa, já que este
0
5
10
15
20
25
30
35
40
45
50
1751‐1760 1761‐1770 1771‐1780 1781‐1790 1791‐1807
C. Ultramarino
Erário Régio
Secretarias de Estado
Desconhecido
J. Fazenda/Provedorias
GRÁFICO AESPAÇO DE ARREMATAÇÃO DOS CONTRATOS DA AMÉRICA MERIDIONAL PORTUGUESA (POR ANO DE ARREMATAÇÃO)
Fonte: TC, ER, nº 4104 e 4106
20
manteve alguma participação nas arrematações (claro, em nada semelhante à
exclusividade que D. João V lhe tinha concedido em 173650).
A transferência da decisão sobre uma matéria tão delicada constitui uma
relocalização de poder, operada em prejuízo de uma instituição do centro da monarquia
(o Conselho Ultramarino) e para benefício de uma instância da administração periférica
da coroa (as Juntas da Fazenda). Ainda que pareça estranho o sentido dessa mudança,
ela encontra-se desajustada do carácter mais geral da postura pombalina relativamente
ao Conselho Ultramarino, marcada por uma certa hostilidade51. Para Carvalho e Melo,
ainda que se encontrassem muito distantes de Lisboa, as Juntas da Fazenda americanas,
por se encontrarem na dependência explícita de uma instituição que ele criara e dirigia,
ofereciam garantias de lealdade incomparáveis.
A justificação formal para a concessão daquele direito às Juntas da Fazenda
encontra-se em alguma documentação do arquivo do Tribunal de Contas.
Aparentemente, e segundo o próprio conde de Oeiras, em meados do século XVIII,
alguns contratos lançados no Conselho Ultramarino ficariam desertos, não aparecendo
interessados52. Uma exposição posterior da contadoria geral aponta as recorrentes
«desordens […] nas arrematações que se faziam pelo Conselho Ultramarino nos
contratos da América, sendo a maior parte delas feitas a homens a quem [se] chamavam
testas de ferro e que de ordinário eram desconhecidos e faltos de abonação»53. Estes
dois motivos teriam sido suficientes para se retirar ao Conselho Ultramarino o direito a
arrematar os contratos régios, tendo entretanto constituído mais uma demonstração do
processo de decadência do status institucional vivida pelo Conselho Ultramarino,
apenas surpreendente pela inércia com que os seus membros a experienciaram.
Pela mesma altura, e como também se pode constatar pelo gráfico A, as Juntas
da Fazenda passaram a beneficiar de um período de vitalidade administrativa,
50 É desconcertante seguir o sentido das disposições legais que durante a primeira metade do século XVIII se enviavam para o Brasil com o objectivo de ordenar a arrematação de contratos. A resolução régia de 10 de Maio de 1723 referiu explicitamente que «todos os contractos que são da minha Real Fazenda se arrematem nesta Corte por tempo de três anos ainda os que são anuais» (DHBNRJ, vol. 1, pp. 92-93). Em 26 de Março de 1733 a decisão sobre a arrematação dos contratos é de novo transferida para o Brasil (DHBNRJ, vol. 1, pp. 372-373). Em outra resolução, tomada em consulta do Conselho Ultramarino, com a data de 2 de Março de 1736, corrigia-se a mão, passando a ser de novo obrigatório arrematar os contratos no Conselho Ultramarino (DHBNRJ, vol. 1, pp. 291-292). 51 Provavelmente a maior demonstração dessa hostilidade terá acontecido em 22 de Novembro de 1765, quando vários governadores da América portuguesa receberam ordens para não enviarem cópias ao Conselho Ultramarino de qualquer comunicação mantida com as Secretárias de Estado. Alden, 1968, p. 10. 52 Provisão de 29 de Agosto de 1769. TC, ER, nº 4055, fls 115-116. 53 Exposição da contadoria geral, de 22 de Dezembro de 1794. TC, ER, nº 4044, fls. 142-157.
21
arrematando contratos a seu talante. Naturalmente, qualquer alteração a este quadro,
mesmo que promovida pelo Erário, não seria bem recebida, e foi isso que aconteceu
quando no início da década de noventa o presidente do Erário Régio, o visconde de Vila
Nova da Cerveira, decidiu canalizar para Lisboa a decisão sobre aquela matéria. Por
provisão de 23 de Março de 1790, a Junta da Fazenda do Rio de Janeiro foi informada
de que a arrematação dos contratos da Aguardente do Reino e Ilhas, da Aguardente da
Terra, das Passagens do Rio Paraíba e Paraíbuna, dos Dízimos da Ilha de Santa
Catarina, dos escravos para as Minas e dos Quintos dos couros do Rio Grande de São
Pedro se passariam a fazer na corte (embora não entrasse em detalhes)54. Dois anos
depois, as prescrições centralizadoras foram um pouco mais longe, e a Junta do Rio de
Janeiro recebeu ordens para apenas arrematar contratos de valor inferir a 10.000.000
reis por triénio55.
Conscientes do que seria uma evidente restrição à sua autonomia e, mais
importante, à sua capacidade de gerir interesses locais, os membros da Junta do Rio de
Janeiro reagiram, levantando de imediato obstáculos às orientações recebidas de Lisboa.
Por um lado, adoptaram uma estratégia dilatória, protelando o envio dos traslados das
condições das arrematações anteriores que o Erário tinha entretanto requisitado. Na
prática, esta medida deixava o Erário Régio na ignorância, sem saber exactamente quais
eram os termos de negociação tradicionais, e logo mais propenso a subavaliar os
rendimentos em causa56. Por outro lado, e perante o escândalo quer do contador mor
Luís José de Brito, quer do presidente do Erário, o agora marquês de Ponte de Lima, a
Junta carioca optou por desobedecer abertamente, continuando a arrematar os contratos
que lhe haviam sido retirados (o de Escravos para Minas, o das passagens dos Rios
Paraíba e Paraíbuna e dos registos de Vimão e Santa Vitória57). Por último, a Junta
fluminense terá procurado influenciar o monarca, elencando uma lista de inconvenientes
que decorriam da nova localização atribuída às arrematações. Terão, em particular,
questionado os métodos de arrematação (por lanços particulares sem que os lançadores
se conhecessem), e mesmo os próprios resultados financeiros obtidos. A exposição
defensiva, em jeito de réplica, que se fez no Erário sobre as vantagens alcançadas com a
54 Provisão de 23 de Março de 1790. TC, ER, nº 4056, fl. 195. 55 Provisão de 10 de Março de 1792. TC, ER, nº 4056, fl. 257. 56 Provisão do visconde de Vila Nova da Cerveira, de 4 de Setembro de 1793. TC, ER, nº 4056, fl. 290. 57 Provisão para o corpo da Junta, de 1 de Março de 1794. TC, ER, nº 4056, fl. 299. Provisão para o escrivão da Junta, de 28 de Março de 1794. TC, ER, nº 4056, fl. 301.
22
nova localização confirma a repercussão das queixas. Confirma também o alcance da
resistência montada pela administração periférica, ou seja, pelas Juntas.
Não deixa de ser muito interessante notar que na última década de Setecentos
emergisse uma batalha institucional entre um dos principais espaços de poder do reino e
um representante da administração periférica da coroa (que, além do mais lhe deveria
ser subordinado); e em que o primeiro se viu na necessidade de explicar as vantagens
das opções que tomava58.
3.3.2 Recursos financeiros para a guerra
Outra reacção explícita à diligente observância das ordens emanadas pelo Erário
encontra-se na delicada gestão dos recursos financeiros para a guerra. Assunto que
Lisboa tinha, por tradição, grandes dificuldades em controlar, sobretudo quando a
guerra se instalava ou ameaçava instalar-se na América portuguesa.
Com a intensificação do conflito com os espanhóis no Brasil meridional, entre os
anos de 1774 e 1777, o marquês de Pombal autorizou a Junta da Fazenda do Rio de
Janeiro a gastar «todo o dinheiro quanto preciso for», incluindo os rendimentos da
contribuição voluntário, do subsidio literário e ainda as remessas feitas pela Junta da
Fazenda de Angola (para o que a Mesa da Inspecção deveria concorrer). Contudo, as
mesmas instruções deixavam clara a proibição de recorrer aos rendimentos dos reais
Quintos, que deveriam continuar a ser remetidos ao reino59.
Perante a pressão colocada por Ceballos em Santa Catarina e no Rio Grande do
Sul, Lavradio acabou mesmo por socorrer-se dos Quintos. Ainda que perdoado,
Lavradio foi repreendido, via Erário Régio, e informado para não voltar a praticar
«semelhante extracção contra as positivas ordens que jamais permitiram que esta
consignação se distribuísse nessa capitania por qualquer urgente motivo que
ocorresse»60.
Aproximadamente vinte anos depois (1797-98), já em pleno período
napoleónico, o problema repetiu-se, agora com o conde de Resende. Na ocasião, a
mesma Junta, perante os gastos efectuados por uma frota de vários navios de guerra,
resolveu reter os Quintos. No Erário depressa se censurou aquela opção. Em uma longa
exposição do contador geral, refere-se que perante as verbas que na altura a Junta
58 Exposição da contadoria geral, de 22 de Dezembro de 1794. TC, ER, nº 4044, fls. 142-157. 59 Provisão do marquês de Pombal, de 30 de Junho de 1774. TC, ER, nº 4055, fl. 442. 60 Provisão do marquês de Angeja, de 24 de Setembro de 1778. TC, ER, nº 4055, fls. 410-413.
23
administrava não havia razão para se ter retido os Quintos, sobretudo quando o reino se
via na iminência de uma invasão franco-espanhola. Acusando a Junta de falta de
cuidado na administração das «rendas reais» e de má «economia nas suas despesas», o
contador geral parecia recomendar a imposição de restrições à autonomia daquela
instância. Referiu então que as «deliberações da Junta combinadas com as circunstâncias do tempo em que elas se
tomaram dependem de uma grande providência, que a acautele para o futuro os inconvenientes
que podem resultar […] se continuarem as despesas que lhe encarregaram e que servem de
pretexto para absorver a Junta todos os cabedais que chegue a entrar nos cofres como a este Real
Erário pela falta das remessas que para ele se devem fazer»61.
A especificidade do incumprimento repetido, que deu o mote à exposição crítica
do contador geral, prende-se sobretudo com a dificuldade de compatibilizar a jurisdição
do vice-rei e capitão general do Estado com as prescrições do Erário em assuntos
político-militares. Porém, a mesma exposição exorbita aquela circunstância particular,
aconselhando uma «grande providência» no sentido de retirar às Juntas da Fazenda a
autonomia que elas tinham entretanto alcançado.
Importa notar que a resistência montada pela Junta da Fazenda carioca às
directrizes emanadas pelo Erário, ainda que remetesse para um quadro de autonomia
estrutural que alguns julgavam excessiva, nem sempre era resultado de um desrespeito
ostensivo (decorrendo da defesa da jurisdição que se julgava ameaçada). Por vezes, as
circunstâncias tornavam impossível a boa cooperação institucional. A esse respeito, a
pressão colocada pelos custos associados à protecção marítima do Brasil continuou a ser
particularmente fracturante da desejada solidariedade administrativa entre o centro e a
periferia. Custear o dispositivo naval que a Secretaria de Estado da Marinha e dos
Negócios Ultramarinos enviava para o Brasil (e que se tornou permanente em Maio
1797) deixava a Junta do Rio de Janeiro e o seu presidente (o vice-rei) com grandes
dificuldades de tesouraria, impondo o recurso a rendimentos oficialmente destinados ao
Erário.
Assim aconteceu em Setembro de 1801 quando o vice-rei, o conde de Resende,
perante as exigências financeiras do comandante da esquadra, Donald Campbell (40
contos de reis), se viu forçado a socorrer-se dos fundos que a Mesa da Inspecção da
cidade administrava autonomamente e que se deveriam expedir para Lisboa (tratava-se
61 Exposição do contador geral, de 6 de Maio de 1799. TC, ER, nº 4044, fl. 167.
24
sobretudo do rendimento do Donativo). Justificou-se então com as ordens que o próprio
Donald Campbell tinha recebido do príncipe regente, por via da Secretaria de Estado.
Nada deveria faltar ao abastecimento dos navios de guerra que patrulhavam a costa
brasileira.
O vice-rei teve contudo grandes dificuldades para persuadir os deputados da
Mesa da Inspecção, certamente receosos da reacção do presidente do Erário Régio.
Aceitaram depositar o dinheiro pretendido no cofre da tesouraria da Junta unicamente
mediante a condição de o conde de Resende assumir a responsabilidade integral da
operação, o que este fez. Com a teatralidade coetânea muito vulgar referiu «que tudo o
que me pertence é de Sua Alteza Real e pelo seu serviço nunca tive nem terei a menor
hesitação em derramar o meu sangue até à última gota»62.
O cuidado colocado pelo vice-rei no ofício que escreveu a D. Rodrigo de Sousa
Coutinho revelou o desconforto inerente à sua posição. Enquanto vice-rei, o conde de
Resende era o principal responsável pela defesa do Brasil contra os ataques dos
corsários franceses e espanhóis. Contudo, ao dar cumprimento a tal função via-se
obrigado a desrespeitar muitas das ordens que lhe eram transmitidas pelo presidente do
Erário.
Em Lisboa e escrevendo também em Setembro de 1801, D. Rodrigo de Sousa
Coutinho veiculava parte das queixas que o contador geral apontara em 1799. No
mesmo documento63 em que salientou a importância «de se conservar no Brasil uma
grande esquadra que possa impedir qualquer golpe de mão de parte de um inimigo», o
presidente do Erário associou sintomaticamente a resolução do problema financeiro
colocado pela esquadra com o cumprimento das obrigações burocráticas da Junta da
Fazenda. Referiu então «que nestas circunstâncias S.A.R. não dá por ora maiores e mais
amplas providências porque também a Junta da Fazenda não tem mandado os Balanços
da receita e despesa da capitania». Simultaneamente, advertiu o conde de Resende no
sentido deste adoptar uma gestão mais criteriosa dos recursos da capitania, canalizando-
os maioritariamente para a defesa. O vice-rei deveria procurar «evitar toda a Despesa
inútil e fazer as competentes economias em tudo o que não for necessária para a
conservação do Exército e da Marinha que seguram a defesa da Capitania».
62 Ofício do vice-rei para D. Rodrigo de Sousa Coutinho, de 11 de Setembro de 1801. AHU-Rio de Janeiro, Cx. 194, doc. 22; Cx. 191, doc. 89; Cx. 185, doc.110 / AHU_ACL_CU_017_Cx. 195, doc. 13900 63 Ordem de D. Rodrigo de Sousa Coutinho para D. Fernando José de Portugal e Castro, de 9 de Setembro de 1801. AHU-Rio de Janeiro, Cx. 194, doc. 49 / AHU_ACL_CU_017_Cx. 195, doc. 13918.
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Nos primeiros anos do século XIX – 50 anos depois da entrada no governo de
Sebastião de Carvalho e Melo e 40 anos depois do estabelecimento do Erário Régio –
era este o quadro que, em grande medida, pautava as relações entre uma das principais
instâncias da administração central e um espaço que lhe estava formalmente submetido.
CONCLUSÃO
Pela relevância que deteve, justifica-se antes de mais deixar aqui bem vincado o
significado associado à constituição do Erário Régio para a generalidade do sistema
político português de Setecentos, quer ao nível da administração do reino, quer ao nível
da administração do império. A subordinação financeira (com consequências
administrativas e políticas) que se impôs à generalidade das repartições e tribunais pode
e provavelmente deve ser vista como um dos mais importantes pilares da governação
pombalina. Tratou-se de um claro sinal da natureza centralizadora da sua política. Como
forma de afirmação pessoal de Carvalho e Melo, o único paralelo será mesmo o
episódio dos Távoras. Como instrumento de centralização política à escala da
monarquia não há medida que se assemelhe, nem mesmo o controlo informal que
Carvalho e Melo exerceu sobre alguns postos do sistema poli-sinodal (alcançado através
da criteriosa colocação de homens da sua confiança). Repare-se que a Intendência-Geral
da Polícia – outra das principais criações do período Josefino – tinha a sua acção
limitada ao reino.
Ao retirar às demais repartições do Estado a administração das consignações
particulares – medida decorrente da criação de um cofre geral –, Pombal não só
restringiu autonomias e jurisdições, como fez canalizar para o Erário parte substancial
da decisão política sobre matérias antes dispersas e, até certo ponto, corporativamente
defendidas. Quase todas as actividades do Estado que envolvessem arrecadação de
receitas e pagamentos, incluindo as que se reportavam à defesa, dificilmente poderiam
fugir à avaliação ou à censura do Erário. Tratou-se, portanto, de fazer convergir –
centralizar – o que antes se encontrava disseminado pelo restante sistema político
metropolitano.
Esta mesma tendência centralizadora foi transposta para as conquistas, em
especial para o Brasil, tendo-se procurado impor um circuito integrado e estruturalmente
hierarquizado entre o Erário e as Juntas da Fazenda. A subordinação de partida era
indiscutível e terá sido reforçada por um conjunto de outras medidas de cariz menos
sistematizado, como foi o caso das alterações promovidas na composição tradicional das
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Juntas (incorporando elementos da absoluta confiança do ministro de D. José). Os sinais
de aparente sentido contrário, por seu turno, constituíram fenómenos circunscritos,
ilustrativos de um certo refinamento institucional ou racionalização administrativa que a
jusante implicavam a delegação de competências para o exercício de uma determinada
função, mas que não colocavam em causa a natureza centralizadora da política colonial
pombalina.
Isto não significa que o caminho da centralização tivesse sido ‘perfeito’. Pelo
contrário. Os problemas relacionados com as arrematações de contratos e com a gestão
de recursos para a guerra fizeram emergir uma dinâmica de oposição às ordens
emanadas pelo Erário Régio, tendo-o mesmo levado a assumir uma posição defensiva e
a justificar as opções que tomava. Na verdade, as dificuldades colocadas à
administração central no final do século XVIII, em especial a insubordinação
institucional que aqui se detectou, insinuam a persistência de um quadro de resistência
que não era propriamente novo. Por outro lado, o facto dessa resistência se encontrar
grandemente concentrada na última década de Setecentos torna muito tentador explicá-
la à luz do fim da maior rigidez do consulado pombalino. Isto não é dizer que a sua
reforma tenha sido colocada em causa. Os governos subsequentes conservaram os
fundamentos essenciais da administração de Carvalho e Melo, onde se incluiu
naturalmente a estrutura institucional encimada pelo Erário Régio. É, contudo, legítimo
associar a falta de eficácia registada quer com a eventual sedimentação do poder da
Junta do Rio de Janeiro, que com o passar do tempo conquista uma margem de manobra
significativa, quer com a fragilidade (e consequente incapacidade) do centro político nos
primeiros anos da regência de D. João VI (um período de discórdia e disputa política64).
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64 Alexandre, 1993, pp. 116-140; Pedreira e Costa, 2006, pp. 65-83 e 86-95; Amaral, 2010, pp. 7-29.
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