Capitalismo, Egoismo, Natureza Humana
BY RAFAEL AZZI – 19/02/2013
Há séculos, ideia de que ser humano é “em essência” egoísta-
competitivo justifica relações capitalistas. Descobertas recentes estão
derrubando tal crença
Por Rafael Azzi | Imagem: Marinus van Reymerswaele, O banqueiro e sua
esposa
O modelo capitalista de sociedade premia e estimula o comportamento
individualista, utilitário e egoísta. Diversos pensadores, como o
economista Alan Greespan, acreditam que tal comportamento apenas
reflete a verdadeira essência da natureza humana e, portanto, não há
muito a fazer a respeito. Entretanto, essa visão do ser humano foi
moldada ao longo da história e, na verdade, os estudos de hoje
discordam da noção de que somos essencialmente individualistas e
agressivos.
Alguns filósofos, como Thomas Hobbes, John Locke e Adam Smith,
contribuíram para a consolidação da ideia de que o ser humano é, por
natureza, racional, autônomo, utilitário e voltado principalmente para a
satisfação egoísta de seus próprios interesses. As principais instituições
políticas e econômicas que hoje moldam a sociedade foram fundadas a
partir desses preceitos sobre a natureza humana.
O modelo social adotado pelos princípios capitalistas põe em cena uma
perspectiva de Estado-Nação que tem como objetivo estimular as forças
do livre mercado e proteger a propriedade privada. O homem é então
considerado um indivíduo autônomo e racional que, ao optar por viver
em sociedade, acredita que esta é a melhor forma de proteger seus
próprios interesses, evitando assim um estado de selvageria natural
representado pela expressão hobbesiana “guerra de todos contra
todos”.
Da mesma forma que os indivíduos proclamam sua autossuficiência, os
Estados são vistos na política internacional como autônomos na busca
do próprio interesse. Sob tal perspectiva, as nações encontram-se em
eterna batalha em busca de poder e de bens materiais. A narrativa
histórica é construída a partir de uma constante dicotomia estabelecida
entre Estados e indivíduos isolados, público e privado, termos
ocasionalmente unidos apenas por razões de utilidade ou de lucro.
O mito do homem que sobrevive como indivíduo é difundido na literatura
universal em heróis como Robinson Crusoé: o homem que consegue,
sozinho, através do uso da razão, utilizar a natureza a seu favor e
sobrevive sem o auxílio de outras pessoas. Porém, o que não está dito é
que Crusoé é um homem adulto, que cresceu em uma sociedade
complexa, na qual dependia diretamente de outras pessoas. Além disso,
ele apenas aprendeu os conhecimentos necessários para a sua
sobrevivência na ilha deserta através do contato com experiências de
outras pessoas e outras gerações.
Essa visão filosófica, que se transformou em política, foi naturalizada por
um conjunto de teorias científicas. O darwinismo social é uma
interpretação estreita da teoria de Darwin aplicada à sociedade humana.
Tal teoria enfatiza a ideia de que a evolução se relaciona à competição e
à sobrevivência do mais forte, pondo-a em prática na sociedade
humana. Dessa forma, características como individualismo,
agressividade e competição seriam os agentes naturais da evolução.
Argumenta-se que a competição pela sobrevivência fundamenta a
evolução humana, a fim de justificar a sociedade capitalista como o
modelo natural a ser adotado.
Atualmente, tal noção é considerada bastante reducionista. Já se
observou, por exemplo, que não apenas a competição mas também a
cooperação entre os indivíduos são fatores de extrema importância na
sobrevivência de espécies sociais. Recentes estudos de sociobiologia
vêm comprovando a hipótese de que o ser humano é, na verdade, um
dos animais mais sociais que existe. Não é difícil comprovar esse fato:
vivemos em grupos cada vez maiores, em sociedades cada vez mais
complexas com indivíduos interdependentes. Temos a necessidade
constante de nos sentir conectados a outras pessoas e de pertencer a
um grupo, em um sentimento que remonta às ideias ancestrais de
coletividade e de comunidade.
Uma descoberta biológica recente vem corroborar essa ideia. Os
neurônios-espelhos fazem parte de um importante sistema cerebral que
atua diretamente em nossa conexão com outros indivíduos. Esse
conjunto de neurônios é mobilizado quando vemos outra pessoa fazendo
algo. Pesquisadores constataram que, quando uma pessoa observa outra
realizando uma ação, no cérebro do observador são estimuladas as
mesmas áreas que normalmente regem a ação observada. Portanto, ao
que tudo indica, nossa percepção visual inicia uma espécie de simulação
ou duplicação interna dos atos de outros.
Os neurônios-espelhos são a base do aprendizado e da aquisição da
linguagem humana. Mais do que isso, eles tornam fluida a fronteira entre
nós e os outros; são a origem da empatia, que é a capacidade de nos
colocar no lugar de outra pessoa. Pode-se dizer que, ao observar alguém
sorrindo, imediatamente nos sentimos impelidos a sorrir também.
Quando percebemos alguém que está em uma situação que causa dor, a
reação natural é partilhar o sentimento de dor alheia.
A capacidade empática e a necessidade de fazer parte de um grupo
formam as bases, por assim dizer, das religiões organizadas e do
sentimento de nacionalismo. O problema é que, ao mesmo tempo em
que fomentam a empatia coletiva, estas instituições limitam o
sentimento empático pelos indivíduos que não fazem parte do mesmo
grupo. Assim, o indivíduo que faz parte de outra ordem — seja ela uma
nação, uma religião, uma etnia ou uma classe social — é considerado
diferente, distante e, eventualmente, intolerável. Tais rótulos limitam a
capacidade empática e impedem de ver o outro como um semelhante na
partilha de sentimentos, desejos e angústias intrínsecos à natureza
humana.
Um exemplo de que a empatia é natural ao ser humano é a forma como
ela ocorre de maneira livre e instintiva nas crianças. Quando uma
criança observa outra pessoa em situação desfavorável, como a
mendicância e a falta de moradia, a primeira reação é o
questionamento. Invariavelmente, as respostas que fazem uso de rótulos
auxiliam a explicar a situação: “é apenas um mendigo” ou “é só um
menino de rua”. Com frases assim, está-se afirmando que o outro não é
alguém como nós; trata-se apenas de alguém diferente, em uma
realidade distante da nossa. Portanto, ao estimular constantemente o
egoísmo e o interesse individualista, a sociedade baseada no modelo
atual desestimula a capacidade empática existente em cada um.
Dessa forma, pode-se afirmar que o desafio do nosso tempo é
desnaturalizar o egoísmo social que foi imposto e recuperar nossa
empatia natural, não apenas em relação aos grupos de pertencimento,
mas sobretudo ampliada em relação a toda nossa espécie.
Uma perspectiva marxista da natureza humana
De todas as histerias reacionárias contra a teoria do Marxismo e
contra a defesa da necessidade e viabilidade da revolução,
nenhuma preocupa mais que esta relacionada à “natureza
humana”. De acordo com os capitalistas, os seres humanos são
fundamentalmente mesquinhos, seres egocêntricos que somente
podem ser compelidos para a ação com a promessa de lucro
pessoal. Essa interpretação concebe o capitalismo, o “livre
mercado”, como um produto natural desta ambição, desta sede
social-darwinista por domínio e extravagância material, e que
qualquer sistema que ignorar esta “natureza humana” essencial
está condenado à corrupção no topo e à letargia na base. A
propaganda burguesa concernente à história do socialismo
reforça este entendimento , afirmando que a combinação de
“malignos déspotas vermelhos” e da “falta de motivação”
supostamente condenaria o Marxismo como um modelo obsoleto
de organização social. Contudo, se olharmos para a história sem
as lentes da reação neoliberal, veremos que , de fato, existiu outras
formas de comportamento social sem o primitivo fetichismo da
mercadoria e sem o sistema mercantil do capitalismo moderno.
Além disso, há significativos motivos para se acreditar que existe
mais na condição humana que mera ganância.
A “Natureza Humana” capitalista e sua invenção por Smith e
Hobbes
A iniquidade da vida burguesa NÃO é natural.
Mas o que é esta “natureza humana” que os críticos burgueses
tanto falam? Quais são suas características? Quais são seus
componentes? O capitalista sustentaria que o interesse próprio
puro e simples na forma de uma devastadora ganância material é
seu fundamento, e para expressar esta “necessidade”, os seres
humanos naturalmente se voltam para a exploração de outros. A
“mão invisível do mercado” ocupou o papel do “Leviathan” de
Thomas Hobbes e consequentemente sem capitalismo, sem um
sistema organizado de exploração baseado em normas, a vida
humana seria “imunda, brutal e curta” tal como Hobbes concebia
a vida dos humanos pré-civilizados. A soturna visão de Hobbes
sobre a sociedade humana cai no mesmo equivoco da análise em
causa própria da burguesia sobre a natureza humana. Sociedades
pré-agrícolas, organizadas em torno de um primitivo modo de
produção, estavam longe de ser “imundas, brutais e curtas” tal
como Hobbes pensava, de acordo com as conclusões dos modernos
estudos históricos e antropológicos. No mesmo caminho, a
burguesia tem sido refutada em seu entendimento acerca da
impossibilidade do socialismo, visto que as economias socialistas
foram capazes de fazer na Rússia e na Albânia em algumas
décadas o que o capitalismo levou pelo menos dois séculos para
realizar. A falha destas definições burguesas sobre a “natureza
humana” está não apenas no fato de que elas são incapazes de
explicar todas as diversas atividades que os seres humanos
empreendem sem buscar lucro, mas também porque elas veem a
“natureza humana” como estática, e não como algo que se adapta
às condições materiais. Portanto, tal análise metafísica é inútil
para a compreensão de um fenômeno tão fluido e diverso.
Então, o que é esta “natureza humana” senão uma concepção
abstrata, imutável e metafísica? A verdade é que se tal coisa
realmente existe, só pode constituir o meio dinâmico pelo qual os
seres humanos adaptam a si mesmos a fim de satisfazer
necessidades específicas. Quais são estas necessidades as quais os
seres humanos devem adaptar-se para satisfazê-las? Primeiro,
existem, obviamente, as essenciais: comida, água, abrigo, etc. Mas
isto é suficiente para que um animal tão desenvolvido como o ser
humano possa se satisfazer? É suficiente simplesmente
sobreviver? Marx afirmava que os seres humanos desenvolveram
uma capacidade mais elevada que o definiu como espécie. Tal
capacidade, que torna a espécie humana única dentro do reino
animal, é a produção, a habilidade de adaptar o meio circundante
a seus propósitos, para além de simplesmente viver nele. Os seres
humanos são definidos por esta produção e consequentemente
precisam produzir ,e quando eles são alienados de sua própria
produção, eles conhecem apenas o desespero. Mas espere, alguém
pode questionar, como explicar o “trabalhador feliz” que é
explorado e completamente alienado dos produtos de seu
trabalho, mas que, ainda assim, persiste com um sorriso
estampado no rosto? A resposta é que, embora ele seja , de fato,
alienado do que ele produz em seu local de trabalho, há outra
produção em que ele é capaz de satisfazer sua necessidade de
produzir. Então que produção existe fora de seu local de trabalho
que gratifica o trabalhador? A resposta é que este trabalhador
também participa na produção social; a produção da sua
realidade social fora do local de trabalho, que preenche o vazio de
um trabalho alienado e explorado.
A interação humana como produção social
O que é esta “produção social”? Como os trabalhadores
“produzem sua realidade social”? A resposta é que construir e
manter relações com outras pessoas constitui produção social.
Assim como as pessoas podem produzir amizades e animosidades,
manter laços de afinidade e camaradagem, criar as crianças e ser
criado pelos mais velhos, eles trabalham para produzir e manter
uma rede de conexões que constitui sua vida social. Esta é a
produção em que uma pessoa pode ativamente trabalhar para
construir a sua realidade social, ao invés de simplesmente viver
dentro de circunstâncias sociais pré-ordenadas, como é o caso de
outras formas de produção. Assim como não podemos extrair aço
diretamente do solo para nossas ferramentas e obras, devendo
antes refinar o minério naturalmente encontrado na natureza, não
podemos reunir amigos e relações em nosso meio social sem
trabalhar para construir estas relações específicas. Os seres
humanos são criaturas sociais, e para obter a produção social, eles
incorporam seus esforços individuais dentro da superestrutura
cultural da sociedade em que vivem.
Ideologia como reforço social
Para ser aceito na sociedade e ter a chance de expressar sua
necessidade de produção social, os seres humanos são
frequentemente forçados a obedecer à ideologia predominante na
sua sociedade. O trabalhador típico chega a um ponto em que,
mesmo que ele esteja completamente consciente das injustiças que
enfrenta nas condições sociais em que vive, ele deve fazer uma
escolha entre sacrificar suas relações sociais para se opor à
exploração, ou então prostrar-se diante dos poderes existentes.
Dadas estas opções, muitos recuam para meios de resistência mais
socialmente aceitáveis, ou ainda pior, rendem-se e se submetem à
hegemonia da classe capitalista. Trabalhadores são levados a
aceitar os fins extravagantes e os métodos de pilhagem do sistema
capitalista, não porque eles concordem com estes métodos e fins,
não porque eles sejam gananciosos e selvagens , mas porque eles
são forçados a sentir que não têm escolha. Se eles decidem
resistir , correm o risco de ficar sozinhos e se eles ousam se rebelar
contra seu patrão ou seu governo, correm o risco de serem
socialmente e economicamente excomungados, tornando-se
incapazes de continuar sua produção social. Um pai trabalhará
horas e horas por um salário miserável a fim de sustentar seus
filhos, suportando dificuldades e injustiças a cada passo de seu
caminho sem reclamar, pelo temor justo de perder seu emprego.
Um trabalhador em um país colonizado será desencorajado a se
empenhar em ações anti-imperialistas se ele for convencido de que
seu envolvimento na rebelião poderá custar a vida de seus entes
queridos. Podemos culpá-los por sua fragilidade? Quando é dada
a escolha entre permanecer alienado de sua produção no local de
trabalho e ser ainda capaz de manter amizades e relações
familiares, ou arriscar-se a tornar-se incapaz de alcançar
qualquer objetivo na vida, podemos realmente culpar a vítima da
coerção sob o capitalismo acusando-a de conformismo quando se
tem tanto para perder? Responder afirmativamente é exigir que o
ser humano deixe de ser humano. As ideias dominantes em
qualquer época são as ideias da classe dominante, e quando esta
classe pode decidir o destino social e econômico dos dominados,
espera-se que os últimos adaptem sua natureza a estas
circunstâncias.
Duas dimensões da Produção Social: necessidade de depender,
necessidade de ser protetor
De que modos a produção social se manifesta? Ou ainda melhor,
que necessidades sociais específicas a produção social busca
satisfazer? A primeira destas necessidades é a necessidade de
depender, saber que não se está sozinho e, se preciso, poder contar
com a ajuda ou companhia de outros quando estiver em
dificuldades. Independente de qualquer desdém em relação às
interações sociais ou de noções misantrópicas que uma pessoa
possa professar, todos nós em algum nível tememos ficar sozinhos
e impossibilitados de contar com outras pessoas. Pergunte a
qualquer um o que é pior: quebrar a perna em uma estação de
metrô lotada ou quebrar a perna sozinho em uma caminhada por
uma trilha no mato? Naturalmente responderão que a última
opção é a pior, visto que ao menos na estação de metrô pode-se ter
a certeza de que uma ambulância irá cuidar de você e prestar os
primeiros socorros. Nós necessitamos estar seguros de que nossos
gritos por socorro serão ouvidos e respondidos. Nós precisamos
saber que não estamos sozinhos, e desta forma, nós dependemos
do outro.
A segunda necessidade, a necessidade de ser protetor, se manifesta
no desejo de ter outros sob sua dependência. Assim como a
primeira necessidade se constitui em ter parentes de quem
depende, há a necessidade oposta de ter pessoas sob dependência,
ser pai (ou mãe) ou ter alguém que precise de você. Um
determinista biológico alegaria que as crianças são trazidas a este
mundo unicamente como meio de transmitir o DNA de seus pais,
no entanto esta concepção ignora a necessidade social
fundamental destas crianças. Contudo, pode alguém argumentar,
nem todo mundo tem filhos. Como pode a criação de filhos ser
considerada uma necessidade social se há aqueles que preferem
não ter ou adotar crianças, que não parecem ser guiados por esta
“necessidade de ser protetor”? A resposta está na existência de
substitutos dos filhos no contexto desta necessidade de proteção,
de cuidado para com outros. Por que as pessoas criam animais de
estimação? Por que as pessoas se engajam em trabalhos mal-
pagos ou mesmo voluntários em escolas ou asilos, onde não parece
haver qualquer incentivo econômico real para prosseguir em sua
atividade? Por que existem pessoas que cuidam de plantas apenas
para as ver crescer? Não é por lucro, não é por ganância nem
desejo de domínio, mas por que tem a necessidade de ser útil
arraigada em sua mais profunda natureza social.
Conclusão: a natureza humana é social
Os capitalistas argumentam que os seres humanos são compelidos
ao interesse próprio sozinhos, já que eles não conseguem
compreender que esta conduta está dialeticamente relacionada
com os interesses das massas na sociedade. Nós somos definidos
pelos outros, e servimos como meios para permitir a outros que se
definam. A condição humana, frágil, gregária, nos torna
dependentes dos outros, assim como nos compele a ter outros sob
nossa dependência. No final das contas, os seres humanos
relacionam-se com outros não meramente para o propósito de
exploração, que opõe os interesses de uma minoria na produção à
maioria no sentido social e material, mas para satisfazer suas
necessidades comuns. Nós temos e sempre teremos necessidade
um do outro, e considerando isto, a revolução comunista é
essencial para salvaguardar nossos interesses coletivos contra os
poucos que nos alienam de nossos interesses socialmente definidos
e construídos.
Trabalhadores do mundo, uni-vos!
O incentivo em uma sociedade revolucionária
Seguindo a típica narrativa acerca do socialismo e partindo das
concepções capitalistas sobre a natureza humana como base, os
críticos do modo de produção socialista argumentam que há nele
um incentivo inadequado ao “trabalho duro”. “Se você paga o
mesmo para as pessoas, não importando o que elas façam... se
você não pode lucrar não importando o quanto trabalhe duro,
porque alguém se preocuparia em se destacar?”, eles questionam.
Agora, que já temos demonstrado a falsidade das concepções da
natureza humana em que se baseia esta perspectiva, examinemos
o problema do incentivo a partir de uma perspectiva marxista da
natureza humana (ver post publicado a respeito aqui no
Trincheira Vermelha). Se nós prosseguirmos a partir desta última
perspectiva, em que a natureza humana é concebida constituindo
os meios pelos quais os seres humanos se adaptam para satisfazer
necessidades humanas (para produzir, tanto no sentido material
quanto no sentido social), então o incentivo na sociedade socialista
deverá ser analisado levando-se em conta a satisfação destas
necessidades.
Benefícios Coletivos como Incentivo
Vamos examinar o mundo de hoje. O que vemos? Um mundo
onde a maioria deve batalhar diariamente para garantir, não
apenas seu sustento, mas a reprodução das condições materiais da
sociedade, enquanto uma minoria seleta se apropria da maior
parte do trabalho social em virtude de serem proprietários dos
meios necessários para que todos produzam. Os membros desta
elite não trabalham tão duro quanto um trabalhador comum (de
fato, o que eles fazem dificilmente pode ser chamado de
“trabalho”), contudo a mais-valia do sangue, suor e lágrimas dos
trabalhadores é utilizada para seus propósitos pessoais, de luxúria
, esbanjamento e decadência. O produto do trabalho conjunto de
toda uma coletividade é concentrado nas mãos de uma classe
exploradora que se beneficia dele. As migalhas, na forma de
salários, é tudo pelo qual os trabalhadores competem no mercado
de trabalho. É como uma loteria, em que muitos participam, mas
poucos realmente “vencem”.
Agora, imagine se todos os ganhos pertencessem ao povo que de
fato os torna possíveis. Imagine uma situação social em que os
trabalhadores, ao invés de trabalharem para as metas de lucro de
um investidor privado, trabalhem para o benefício de outros
trabalhadores. No socialismo, os produtos do trabalho social são
desfrutados diretamente pelos próprios produtores como classe.
Então, ao invés de trabalhar para o lucro pessoal de alguém, ou
competir para conseguir mais migalhas que seu vizinho, você
estará trabalhando para seu próprio benefício no contexto mais
amplo da sociedade. Porque é assim? É devido ao fato de que seu
trabalho (assim como o de todos) contribuirá para incrementar a
produção geral da sociedade, cujas recompensas serão
desfrutadas pela sociedade como um todo. Como um membro
desta sociedade, como um trabalhador sob o socialismo, você deve
trabalhar e compartilhar os produtos deste trabalho. É desta
forma que o socialismo funcionará para satisfazer as necessidades
e desejos de todos os membros da sociedade de uma forma que a
exploração capitalista não permite.
Liberdade para o trabalho, liberdade da alienação
O capitalista seria rápido em denunciar tal visão como utópica.
Seguindo sua perspectiva da natureza humana, as pessoas
estariam preocupadas demais com seus interesses próprios para se
interessar por estes abstratos benefícios coletivos. Para ele, a
única maneira de estimular o trabalho duro é ter uma cenoura
pendurada em uma vara motivando o trabalhador, em que a
riqueza material é a cenoura e a pobreza abjeta , a vara. Sua
compreensão das coisas o faz acreditar que o capitalismo é a
verdadeira meritocracia; que os ricos são ricos em virtude do
valor de seu trabalho, e que se sua habilidade de acumular
riqueza for prejudicada, eles não terão qualquer incentivo para
contribuir com este trabalho para o bem social. O exemplo de um
médico é frequentemente citado. Porque trabalhar duro, passar
por vários anos de educação, para tornar-se um médico se não se
pode ganhar mais dinheiro fazendo isso?
Sabemos que o lucro não é o único incentivo para o trabalho duro,
visto que muitos realizam importantes trabalhos sem a mesma
remuneração desfrutada pelo nosso médico. Em qualquer
hospital, há técnicos, enfermeiros e outros trabalhadores que não
são tão bem pagos como os médicos (embora façam o mesmo
trabalho, se não mais, que um médico típico) e que fazem seu
serviço muito bem, sem este incentivo financeiro. Somando-se ao
pagamento das contas e o provimento de alguns fundos de pensão
pessoal e gastos, as pessoas realizam tais trabalhos para colher
outros benefícios, seja por realmente apreciarem o trabalho que
fazem ou por se sentirem úteis e produtivos. Tais benefícios vem
ao encontro de necessidades humanas de produção, seja material
ou social.
São estes benefícios que
conduzirão o trabalhador individual no que ele ou ela deseje
realizar na sociedade socialista, ao invés da pulsão consumista ou
da busca constante de fuga da pobreza, já que ambos os extremos
serão eliminados em virtude da posse proletária dos próprios
meios de produção. A questão muda de “Como posso fazer lucro”
ou “Como posso cumprir as metas” para “Como posso ajudar ,
enquanto gosto do que faço?”. Esta mudança na questão essencial
que conduz o trabalho foi posta à tona durante a construção das
relações socialistas de produção, assim como pelo desenvolvimento
da consciência dos trabalhadores na sociedade. Na medida em que
as massas trabalhadoras não mais temerem a fome e a privação
apesar do trabalho duro que realizam, na medida a propriedade
do meios de produção for social, a elas será permitido decidir que
trabalho desejaria empreender. Além do mais, elas terão todo
recurso necessário para empreender o trabalho, incluindo
educação pública de qualidade até o nível superior, assistência
médica, dias de folga para cuidado com as crianças, direito à
moradia e ao emprego. Levando-se em conta estas condições, os
trabalhadores serão livres para realizar o trabalho que desejarem
fazer.
Consciência socialista e novas prioridades sociais
Além das tendências já expostas, existe uma outra questão que
compelirá os trabalhadores na construção do socialismo: a
prioridade que deve ser dada a determinados tipos de trabalho
que correspondem a necessidades sociais mais importantes. No
capitalismo, onde a busca por lucro de uma classe proprietária
decide que trabalho será feito por qual salário, compensação e a
necessidade social para a produção raramente coincidem. Por
exemplo, professores são fundamentalmente mais importantes
para todos os membros da sociedade que modelos, atores ou
apresentadores de televisão. Educação é uma necessidade social
vital, no entanto, os educadores são mau pagos, visto que eles não
se encontram em uma posição mais lucrativa para os interesses
dos capitalistas. A maior parte das pessoas que constroem esta
sociedade são parcamente compensadas pelo seu trabalho
essencial, enquanto alguns que ajudam parasitas nos seus
empreendimentos edificados em cima de trabalhadores
explorados, levam uma vida de rei. Não é preciso mais que uma
breve análise para perceber que esta situação é radicalmente
absurda.
No socialismo, as prioridades sociais são diferentes. Ao invés da
“cenoura pendurada na vara” do capitalismo, a necessária
ameaça do desemprego sob o capitalismo a fim de forçar os
trabalhadores a assumir serviços que são pagos inadequadamente
(e logo, insatisfatoriamente); ao invés do estilo de vida decadente
apreciado por aqueles que são os mais beneficiados na
distribuição dos ganhos do sistema capitalista, a ênfase no
socialismo está no trabalho que énecessário para a melhoria das
condições sociais. O ponto fundamental é que cada trabalhador no
socialismo tem seu interesse individual investido no sucesso do
socialismo. A fim de proteger estes interesses individuais e
coletivos, o trabalhador é encorajado a empreender o trabalho
que melhor se encaixa nas necessidades sociais correntes. A força
que irá prover este encorajamento é aconsciência socialista, a
compreensão de que as ambições pessoais podem coincidir com os
interesses das massas do proletariado, se esta consciência
compreende que sua melhoria pessoal depende do crescimento
orgânico e sustentável de todos, do desenvolvimento do produto
social a serviço de todos.
Interdependência humana como um fato social
“Mas espere um minuto”, contesta o capitalista, “porque eu
deveria me preocupar com o que acontece com quem quer que
seja?” É aqui que se poderia ainda falar da teoria do “homem
bem-sucedido” e argumentar que é irracional colocar as
necessidades de outras pessoas acima das suas próprias. Porém,
este argumento ignora completamente toda a experiência humana.
Ignora o fato de que os seres humanos são criaturas sociais, que
fundamentalmente dependem do esforço de cada um para a
mútua sobrevivência. Ignora o fato de que nós temos uma relação
básica com todas as massas trabalhadoras do mundo apenas por
estar vivendo nele. Considere as roupas que veste, a comida que
come, o carro que dirige. De onde vem estas coisas? Que força as
torna possíveis? A resposta é trabalho; o trabalho de nossos
companheiros seres humanos.
O fato de que este trabalho seja, em sua maior parte, coagido
pelos capitalistas em diversos países, que pagam miseravelmente a
seus trabalhadores e frequentemente recrutam crianças por
constituírem uma frágil e desesperada força de trabalho em
regiões desassistidas; o fato de que a exploração da imensa
maioria promova o conforto material de uma minoria, já deveria
por si só despertar a consciência de uma moralidade elevada. A
realidade essencial é que nesse sistema construído em torno da
busca por lucros, o sucesso de poucos só é possível através do
sofrimento e perda de muitos. Nós precisamos uns dos outros, no
entanto o corrente modo de produção requer que as vastas massas
de trabalhadores se sujeitem a algumas das piores condições
imagináveis ( o proletário , esse trabalhador sem dono e que não é
dono de nada, é o que tem em termos comparativos, piores
condições de existência e sobrevivência). Podemos continuar a
viver em um mundo caracterizado por tal opressão? A resposta
DEVERIA ser NÃO. Para que qualquer um seja livre das forças
de exploração e alienação, todos devem ser livres destas forças.
O camarada Guevara considerava que o socialismo deveria construir um "Novo Homem".
O necessário compromisso entre o indivíduo e a sociedade
Para nos defender da exploração, devemos estar dispostos a
defender a nós mesmos, uns aos outros. É simplesmente racional
agir deste modo, visto que dependemos uns dos outros de toda
forma para nossa produção (e reprodução) material e social.
Portanto, a fim de proteger o indivíduo, compromissos
necessariamente são assumidos entre os desejos e necessidades
individuais e sociais.
Tais compromissos já são fatos da vida social. Nós já aceitamos
em algum nível que precisamos nos estabelecer limites e realizar
sacrifícios em benefício de outros. Considere a situação de um
ônibus lotado, em que uma grávida precise sentar. Não
aparecerão duas ou três pessoas que cederão seu lugar? Agora,
considere um sacrifício mais sério, digamos diante de um desastre
natural. Não haverá sempre aquelas pessoas que sacrificarão seu
próprio tempo, esforços e até a segurança para ajudar
companheiros e companheiras? Esta consciência socialista já
existe , de uma forma ou outra, como um componente de nossos
seres sociais.
Conclusão: há mais incentivo sob o Socialismo
Os inimigos do Socialismo argumentam que não há incentivo para
o trabalho no socialismo, ainda que existam inúmeras evidências
contrárias. De fato, pode-se dizer que efetivamente
há mais incentivo para trabalhar sob o socialismo do que no
regime capitalista. O incentivo para o trabalhador produzir no
socialismo é o mesmo que motiva o capitalista a continuar
explorando seus trabalhadores: defender sua posição de domínio.
Assim como a burguesia trabalha incansavelmente para manter
sua ditadura aos trabalhadores, estes farão o máximo para
manter a ordem social em que os trabalhadores governam. Eles
trabalharão para defender os ganhos de sua revolução, para
defender a si mesmos e todos os membros da sociedade da
exploração, trabalhando para satisfazer as necessidades coletivas
e fazer avançar as metas sociais. Nós já lutamos para defender a
nós mesmos e nossos entes queridos da miséria e das piores
formas de exploração, no entanto no socialismo, esta luta será
para defender os trabalhadores coletivamente, e não os lucros de
nossos mútuos exploradores.