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Capitalismo, Egoismo, Natureza Humana BY RAFAEL AZZI – 19/02/2013 Há séculos, ideia de que ser humano é “em essência” egoísta- competitivo justifica relações capitalistas. Descobertas recentes estão derrubando tal crença Por Rafael Azzi | Imagem: Marinus van Reymerswaele, O banqueiro e sua esposa O modelo capitalista de sociedade premia e estimula o comportamento individualista, utilitário e egoísta. Diversos pensadores, como o economista Alan Greespan, acreditam que tal comportamento apenas reflete a verdadeira essência da natureza humana e, portanto, não há muito a fazer a respeito. Entretanto, essa visão do ser humano foi moldada ao longo da história e, na verdade, os estudos de hoje discordam da noção de que somos essencialmente individualistas e agressivos. Alguns filósofos, como Thomas Hobbes, John Locke e Adam Smith, contribuíram para a consolidação da ideia de que o ser humano é, por natureza, racional, autônomo, utilitário e voltado principalmente para a satisfação egoísta de seus próprios interesses. As principais instituições políticas e econômicas que hoje moldam a sociedade foram fundadas a partir desses preceitos sobre a natureza humana. O modelo social adotado pelos princípios capitalistas põe em cena uma perspectiva de Estado-Nação que tem como objetivo estimular as forças do livre mercado e proteger a propriedade privada. O homem é então considerado um indivíduo autônomo e

Uma Perspectiva Marxista Da Natureza Humana

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Uma perspectiva da "natureza humana", numa óptica marxista

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Capitalismo, Egoismo, Natureza Humana

BY RAFAEL AZZI – 19/02/2013

Há séculos, ideia de que ser humano é “em essência” egoísta-

competitivo justifica relações capitalistas. Descobertas recentes estão

derrubando tal crença

Por Rafael Azzi | Imagem: Marinus van Reymerswaele, O banqueiro e sua

esposa

O modelo capitalista de sociedade premia e estimula o comportamento

individualista, utilitário e egoísta. Diversos pensadores, como o

economista Alan Greespan, acreditam que tal comportamento apenas

reflete a verdadeira essência da natureza humana e, portanto, não há

muito a fazer a respeito. Entretanto, essa visão do ser humano foi

moldada ao longo da história e, na verdade, os estudos de hoje

discordam da noção de que somos essencialmente individualistas e

agressivos.

Alguns filósofos, como Thomas Hobbes, John Locke e Adam Smith,

contribuíram para a consolidação da ideia de que o ser humano é, por

natureza, racional, autônomo, utilitário e voltado principalmente para a

satisfação egoísta de seus próprios interesses. As principais instituições

políticas e econômicas que hoje moldam a sociedade foram fundadas a

partir desses preceitos sobre a natureza humana.

O modelo social adotado pelos princípios capitalistas põe em cena uma

perspectiva de Estado-Nação que tem como objetivo estimular as forças

do livre mercado e proteger a propriedade privada. O homem é então

considerado um indivíduo autônomo e racional que, ao optar por viver

em sociedade, acredita que esta é a melhor forma de proteger seus

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próprios interesses, evitando assim um estado de selvageria natural

representado pela expressão hobbesiana “guerra de todos contra

todos”.

Da mesma forma que os indivíduos proclamam sua autossuficiência, os

Estados são vistos na política internacional como autônomos na busca

do próprio interesse. Sob tal perspectiva, as nações encontram-se em

eterna batalha em busca de poder e de bens materiais. A narrativa

histórica é construída a partir de uma constante dicotomia estabelecida

entre Estados e indivíduos isolados, público e privado, termos

ocasionalmente unidos apenas por razões de utilidade ou de lucro.

O mito do homem que sobrevive como indivíduo é difundido na literatura

universal em heróis como Robinson Crusoé: o homem que consegue,

sozinho, através do uso da razão, utilizar a natureza a seu favor e

sobrevive sem o auxílio de outras pessoas. Porém, o que não está dito é

que Crusoé é um homem adulto, que cresceu em uma sociedade

complexa, na qual dependia diretamente de outras pessoas. Além disso,

ele apenas aprendeu os conhecimentos necessários para a sua

sobrevivência na ilha deserta através do contato com experiências de

outras pessoas e outras gerações.

Essa visão filosófica, que se transformou em política, foi naturalizada por

um conjunto de teorias científicas. O darwinismo social é uma

interpretação estreita da teoria de Darwin aplicada à sociedade humana.

Tal teoria enfatiza a ideia de que a evolução se relaciona à competição e

à sobrevivência do mais forte, pondo-a em prática na sociedade

humana. Dessa forma, características como individualismo,

agressividade e competição seriam os agentes naturais da evolução.

Argumenta-se que a competição pela sobrevivência fundamenta a

evolução humana, a fim de justificar a sociedade capitalista como o

modelo natural a ser adotado.

Atualmente, tal noção é considerada bastante reducionista. Já se

observou, por exemplo, que não apenas a competição mas também a

cooperação entre os indivíduos são fatores de extrema importância na

sobrevivência de espécies sociais. Recentes estudos de sociobiologia

vêm comprovando a hipótese de que o ser humano é, na verdade, um

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dos animais mais sociais que existe. Não é difícil comprovar esse fato:

vivemos em grupos cada vez maiores, em sociedades cada vez mais

complexas com indivíduos interdependentes. Temos a necessidade

constante de nos sentir conectados a outras pessoas e de pertencer a

um grupo, em um sentimento que remonta às ideias ancestrais de

coletividade e de comunidade.

Uma descoberta biológica recente vem corroborar essa ideia. Os

neurônios-espelhos fazem parte de um importante sistema cerebral que

atua diretamente em nossa conexão com outros indivíduos. Esse

conjunto de neurônios é mobilizado quando vemos outra pessoa fazendo

algo. Pesquisadores constataram que, quando uma pessoa observa outra

realizando uma ação, no cérebro do observador são estimuladas as

mesmas áreas que normalmente regem a ação observada. Portanto, ao

que tudo indica, nossa percepção visual inicia uma espécie de simulação

ou duplicação interna dos atos de outros.

Os neurônios-espelhos são a base do aprendizado e da aquisição da

linguagem humana. Mais do que isso, eles tornam fluida a fronteira entre

nós e os outros; são a origem da empatia, que é a capacidade de nos

colocar no lugar de outra pessoa. Pode-se dizer que, ao observar alguém

sorrindo, imediatamente nos sentimos impelidos a sorrir também.

Quando percebemos alguém que está em uma situação que causa dor, a

reação natural é partilhar o sentimento de dor alheia.

A capacidade empática e a necessidade de fazer parte de um grupo

formam as bases, por assim dizer, das religiões organizadas e do

sentimento de nacionalismo. O problema é que, ao mesmo tempo em

que fomentam a empatia coletiva, estas instituições limitam o

sentimento empático pelos indivíduos que não fazem parte do mesmo

grupo. Assim, o indivíduo que faz parte de outra ordem — seja ela uma

nação, uma religião, uma etnia ou uma classe social — é considerado

diferente, distante e, eventualmente, intolerável. Tais rótulos limitam a

capacidade empática e impedem de ver o outro como um semelhante na

partilha de sentimentos, desejos e angústias intrínsecos à natureza

humana.

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Um exemplo de que a empatia é natural ao ser humano é a forma como

ela ocorre de maneira livre e instintiva nas crianças. Quando uma

criança observa outra pessoa em situação desfavorável, como a

mendicância e a falta de moradia, a primeira reação é o

questionamento. Invariavelmente, as respostas que fazem uso de rótulos

auxiliam a explicar a situação: “é apenas um mendigo” ou “é só um

menino de rua”. Com frases assim, está-se afirmando que o outro não é

alguém como nós; trata-se apenas de alguém diferente, em uma

realidade distante da nossa. Portanto, ao estimular constantemente o

egoísmo e o interesse individualista, a sociedade baseada no modelo

atual desestimula a capacidade empática existente em cada um.

Dessa forma, pode-se afirmar que o desafio do nosso tempo é

desnaturalizar o egoísmo social que foi imposto e recuperar nossa

empatia natural, não apenas em relação aos grupos de pertencimento,

mas sobretudo ampliada em relação a toda nossa espécie.

Uma perspectiva marxista da natureza humana

De todas as histerias reacionárias contra a teoria do Marxismo e

contra a defesa da necessidade e viabilidade da revolução,

nenhuma preocupa mais que esta relacionada à “natureza

humana”. De acordo com os capitalistas, os seres humanos são

fundamentalmente mesquinhos, seres egocêntricos que somente

podem ser compelidos para a ação com a promessa de lucro

pessoal. Essa interpretação concebe o capitalismo, o “livre

mercado”, como um produto natural desta ambição, desta sede

social-darwinista por domínio e extravagância material, e que

qualquer sistema que ignorar esta “natureza humana” essencial

está condenado à corrupção no topo e à letargia na base. A

propaganda burguesa concernente à história do socialismo

reforça este entendimento , afirmando que a combinação de

“malignos déspotas vermelhos” e da “falta de motivação”

supostamente condenaria o Marxismo como um modelo obsoleto

Page 5: Uma Perspectiva Marxista Da Natureza Humana

de organização social. Contudo, se olharmos para a história sem

as lentes da reação neoliberal, veremos que , de fato, existiu outras

formas de comportamento social sem o primitivo fetichismo da

mercadoria e sem o sistema mercantil do capitalismo moderno.

Além disso, há significativos motivos para se acreditar que existe

mais na condição humana que mera ganância.

A “Natureza Humana” capitalista e sua invenção por Smith e

Hobbes

A iniquidade da vida burguesa NÃO é natural.

Mas o que é esta “natureza humana” que os críticos burgueses

tanto falam? Quais são suas características? Quais são seus

componentes? O capitalista sustentaria que o interesse próprio

puro e simples na forma de uma devastadora ganância material é

seu fundamento, e para expressar esta “necessidade”, os seres

humanos naturalmente se voltam para a exploração de outros. A

“mão invisível do mercado” ocupou o papel do “Leviathan” de

Thomas Hobbes e consequentemente sem capitalismo, sem um

sistema organizado de exploração baseado em normas, a vida

humana seria “imunda, brutal e curta” tal como Hobbes concebia

Page 6: Uma Perspectiva Marxista Da Natureza Humana

a vida dos humanos pré-civilizados. A soturna visão de Hobbes

sobre a sociedade humana cai no mesmo equivoco da análise em

causa própria da burguesia sobre a natureza humana. Sociedades

pré-agrícolas, organizadas em torno de um primitivo modo de

produção, estavam longe de ser “imundas, brutais e curtas” tal

como Hobbes pensava, de acordo com as conclusões dos modernos

estudos históricos e antropológicos. No mesmo caminho, a

burguesia tem sido refutada em seu entendimento acerca da

impossibilidade do socialismo, visto que as economias socialistas

foram capazes de fazer na Rússia e na Albânia em algumas

décadas o que o capitalismo levou pelo menos dois séculos para

realizar. A falha destas definições burguesas sobre a “natureza

humana” está não apenas no fato de que elas são incapazes de

explicar todas as diversas atividades que os seres humanos

empreendem sem buscar lucro, mas também porque elas veem a

“natureza humana” como estática, e não como algo que se adapta

às condições materiais. Portanto, tal análise metafísica é inútil

para a compreensão de um fenômeno tão fluido e diverso.

Então, o que é esta “natureza humana” senão uma concepção

abstrata, imutável e metafísica? A verdade é que se tal coisa

realmente existe, só pode constituir o meio dinâmico pelo qual os

seres humanos adaptam a si mesmos a fim de satisfazer

necessidades específicas. Quais são estas necessidades as quais os

seres humanos devem adaptar-se para satisfazê-las? Primeiro,

existem, obviamente, as essenciais: comida, água, abrigo, etc. Mas

isto é suficiente para que um animal tão desenvolvido como o ser

humano possa se satisfazer? É suficiente simplesmente

sobreviver? Marx afirmava que os seres humanos desenvolveram

uma capacidade mais elevada que o definiu como espécie. Tal

capacidade, que torna a espécie humana única dentro do reino

animal, é a produção, a habilidade de adaptar o meio circundante

a seus propósitos, para além de simplesmente viver nele. Os seres

Page 7: Uma Perspectiva Marxista Da Natureza Humana

humanos são definidos por esta produção e consequentemente

precisam produzir ,e quando eles são alienados de sua própria

produção, eles conhecem apenas o desespero. Mas espere, alguém

pode questionar, como explicar o “trabalhador feliz” que é

explorado e completamente alienado dos produtos de seu

trabalho, mas que, ainda assim, persiste com um sorriso

estampado no rosto? A resposta é que, embora ele seja , de fato,

alienado do que ele produz em seu local de trabalho, há outra

produção em que ele é capaz de satisfazer sua necessidade de

produzir. Então que produção existe fora de seu local de trabalho

que gratifica o trabalhador? A resposta é que este trabalhador

também participa na produção social; a produção da sua

realidade social fora do local de trabalho, que preenche o vazio de

um trabalho alienado e explorado.

A interação humana como produção social

O que é esta “produção social”? Como os trabalhadores

“produzem sua realidade social”? A resposta é que construir e

manter relações com outras pessoas constitui produção social.

Assim como as pessoas podem produzir amizades e animosidades,

manter laços de afinidade e camaradagem, criar as crianças e ser

criado pelos mais velhos, eles trabalham para produzir e manter

uma rede de conexões que constitui sua vida social. Esta é a

produção em que uma pessoa pode ativamente trabalhar para

construir a sua realidade social, ao invés de simplesmente viver

dentro de circunstâncias sociais pré-ordenadas, como é o caso de

outras formas de produção. Assim como não podemos extrair aço

diretamente do solo para nossas ferramentas e obras, devendo

antes refinar o minério naturalmente encontrado na natureza, não

podemos reunir amigos e relações em nosso meio social sem

trabalhar para construir estas relações específicas. Os seres

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humanos são criaturas sociais, e para obter a produção social, eles

incorporam seus esforços individuais dentro da superestrutura

cultural da sociedade em que vivem.

Ideologia como reforço social

Para ser aceito na sociedade e ter a chance de expressar sua

necessidade de produção social, os seres humanos são

frequentemente forçados a obedecer à ideologia predominante na

sua sociedade. O trabalhador típico chega a um ponto em que,

mesmo que ele esteja completamente consciente das injustiças que

enfrenta nas condições sociais em que vive, ele deve fazer uma

escolha entre sacrificar suas relações sociais para se opor à

exploração, ou então prostrar-se diante dos poderes existentes.

Dadas estas opções, muitos recuam para meios de resistência mais

socialmente aceitáveis, ou ainda pior, rendem-se e se submetem à

hegemonia da classe capitalista. Trabalhadores são levados a

aceitar os fins extravagantes e os métodos de pilhagem do sistema

capitalista, não porque eles concordem com estes métodos e fins,

não porque eles sejam gananciosos e selvagens , mas porque eles

são forçados a sentir que não têm escolha. Se eles decidem

resistir , correm o risco de ficar sozinhos e se eles ousam se rebelar

contra seu patrão ou seu governo, correm o risco de serem

socialmente e economicamente excomungados, tornando-se

incapazes de continuar sua produção social. Um pai trabalhará

horas e horas por um salário miserável a fim de sustentar seus

filhos, suportando dificuldades e injustiças a cada passo de seu

caminho sem reclamar, pelo temor justo de perder seu emprego.

Um trabalhador em um país colonizado será desencorajado a se

empenhar em ações anti-imperialistas se ele for convencido de que

seu envolvimento na rebelião poderá custar a vida de seus entes

queridos. Podemos culpá-los por sua fragilidade? Quando é dada

Page 9: Uma Perspectiva Marxista Da Natureza Humana

a escolha entre permanecer alienado de sua produção no local de

trabalho e ser ainda capaz de manter amizades e relações

familiares, ou arriscar-se a tornar-se incapaz de alcançar

qualquer objetivo na vida, podemos realmente culpar a vítima da

coerção sob o capitalismo acusando-a de conformismo quando se

tem tanto para perder? Responder afirmativamente é exigir que o

ser humano deixe de ser humano. As ideias dominantes em

qualquer época são as ideias da classe dominante, e quando esta

classe pode decidir o destino social e econômico dos dominados,

espera-se que os últimos adaptem sua natureza a estas

circunstâncias.

Duas dimensões da Produção Social: necessidade de depender,

necessidade de ser protetor

De que modos a produção social se manifesta? Ou ainda melhor,

que necessidades sociais específicas a produção social busca

satisfazer? A primeira destas necessidades é a necessidade de

depender, saber que não se está sozinho e, se preciso, poder contar

com a ajuda ou companhia de outros quando estiver em

dificuldades. Independente de qualquer desdém em relação às

interações sociais ou de noções misantrópicas que uma pessoa

possa professar, todos nós em algum nível tememos ficar sozinhos

e impossibilitados de contar com outras pessoas. Pergunte a

qualquer um o que é pior: quebrar a perna em uma estação de

metrô lotada ou quebrar a perna sozinho em uma caminhada por

uma trilha no mato? Naturalmente responderão que a última

opção é a pior, visto que ao menos na estação de metrô pode-se ter

a certeza de que uma ambulância irá cuidar de você e prestar os

primeiros socorros. Nós necessitamos estar seguros de que nossos

gritos por socorro serão ouvidos e respondidos. Nós precisamos

Page 10: Uma Perspectiva Marxista Da Natureza Humana

saber que não estamos sozinhos, e desta forma, nós dependemos

do outro.

A segunda necessidade, a necessidade de ser protetor, se manifesta

no desejo de ter outros sob sua dependência. Assim como a

primeira necessidade se constitui em ter parentes de quem

depende, há a necessidade oposta de ter pessoas sob dependência,

ser pai (ou mãe) ou ter alguém que precise de você. Um

determinista biológico alegaria que as crianças são trazidas a este

mundo unicamente como meio de transmitir o DNA de seus pais,

no entanto esta concepção ignora a necessidade social

fundamental destas crianças. Contudo, pode alguém argumentar,

nem todo mundo tem filhos. Como pode a criação de filhos ser

considerada uma necessidade social se há aqueles que preferem

não ter ou adotar crianças, que não parecem ser guiados por esta

“necessidade de ser protetor”? A resposta está na existência de

substitutos dos filhos no contexto desta necessidade de proteção,

de cuidado para com outros. Por que as pessoas criam animais de

estimação? Por que as pessoas se engajam em trabalhos mal-

pagos ou mesmo voluntários em escolas ou asilos, onde não parece

haver qualquer incentivo econômico real para prosseguir em sua

atividade? Por que existem pessoas que cuidam de plantas apenas

para as ver crescer? Não é por lucro, não é por ganância nem

desejo de domínio, mas por que tem a necessidade de ser útil

arraigada em sua mais profunda natureza social.

Conclusão: a natureza humana é social

Os capitalistas argumentam que os seres humanos são compelidos

ao interesse próprio sozinhos, já que eles não conseguem

compreender que esta conduta está dialeticamente relacionada

com os interesses das massas na sociedade. Nós somos definidos

Page 11: Uma Perspectiva Marxista Da Natureza Humana

pelos outros, e servimos como meios para permitir a outros que se

definam. A condição humana, frágil, gregária, nos torna

dependentes dos outros, assim como nos compele a ter outros sob

nossa dependência. No final das contas, os seres humanos

relacionam-se com outros não meramente para o propósito de

exploração, que opõe os interesses de uma minoria na produção à

maioria no sentido social e material, mas para satisfazer suas

necessidades comuns. Nós temos e sempre teremos necessidade

um do outro, e considerando isto, a revolução comunista é

essencial para salvaguardar nossos interesses coletivos contra os

poucos que nos alienam de nossos interesses socialmente definidos

e construídos.

Trabalhadores do mundo, uni-vos!

O incentivo em uma sociedade revolucionária

Seguindo a típica narrativa acerca do socialismo e partindo das

concepções capitalistas sobre a natureza humana como base, os

críticos do modo de produção socialista argumentam que há nele

um incentivo inadequado ao “trabalho duro”. “Se você paga o

mesmo para as pessoas, não importando o que elas façam... se

você não pode lucrar não importando o quanto trabalhe duro,

porque alguém se preocuparia em se destacar?”, eles questionam.

Agora, que já temos demonstrado a falsidade das concepções da

natureza humana em que se baseia esta perspectiva, examinemos

Page 12: Uma Perspectiva Marxista Da Natureza Humana

o problema do incentivo a partir de uma perspectiva marxista da

natureza humana (ver post publicado a respeito aqui no

Trincheira Vermelha). Se nós prosseguirmos a partir desta última

perspectiva, em que a natureza humana é concebida constituindo

os meios pelos quais os seres humanos se adaptam para satisfazer

necessidades humanas (para produzir, tanto no sentido material

quanto no sentido social), então o incentivo na sociedade socialista

deverá ser analisado levando-se em conta a satisfação destas

necessidades.

Benefícios Coletivos como Incentivo

Vamos examinar o mundo de hoje. O que vemos? Um mundo

onde a maioria deve batalhar diariamente para garantir, não

apenas seu sustento, mas a reprodução das condições materiais da

sociedade, enquanto uma minoria seleta se apropria da maior

parte do trabalho social em virtude de serem proprietários dos

meios necessários para que todos produzam. Os membros desta

elite não trabalham tão duro quanto um trabalhador comum (de

fato, o que eles fazem dificilmente pode ser chamado de

“trabalho”), contudo a mais-valia do sangue, suor e lágrimas dos

trabalhadores é utilizada para seus propósitos pessoais, de luxúria

, esbanjamento e decadência. O produto do trabalho conjunto de

toda uma coletividade é concentrado nas mãos de uma classe

exploradora que se beneficia dele. As migalhas, na forma de

salários, é tudo pelo qual os trabalhadores competem no mercado

de trabalho. É como uma loteria, em que muitos participam, mas

poucos realmente “vencem”.

Page 13: Uma Perspectiva Marxista Da Natureza Humana

Agora, imagine se todos os ganhos pertencessem ao povo que de

fato os torna possíveis. Imagine uma situação social em que os

trabalhadores, ao invés de trabalharem para as metas de lucro de

um investidor privado, trabalhem para o benefício de outros

trabalhadores. No socialismo, os produtos do trabalho social são

desfrutados diretamente pelos próprios produtores como classe.

Então, ao invés de trabalhar para o lucro pessoal de alguém, ou

competir para conseguir mais migalhas que seu vizinho, você

estará trabalhando para seu próprio benefício no contexto mais

amplo da sociedade. Porque é assim? É devido ao fato de que seu

trabalho (assim como o de todos) contribuirá para incrementar a

produção geral da sociedade, cujas recompensas serão

desfrutadas pela sociedade como um todo. Como um membro

desta sociedade, como um trabalhador sob o socialismo, você deve

trabalhar e compartilhar os produtos deste trabalho. É desta

forma que o socialismo funcionará para satisfazer as necessidades

e desejos de todos os membros da sociedade de uma forma que a

exploração capitalista não permite.

Liberdade para o trabalho, liberdade da alienação

Page 14: Uma Perspectiva Marxista Da Natureza Humana

O capitalista seria rápido em denunciar tal visão como utópica.

Seguindo sua perspectiva da natureza humana, as pessoas

estariam preocupadas demais com seus interesses próprios para se

interessar por estes abstratos benefícios coletivos. Para ele, a

única maneira de estimular o trabalho duro é ter uma cenoura

pendurada em uma vara motivando o trabalhador, em que a

riqueza material é a cenoura e a pobreza abjeta , a vara. Sua

compreensão das coisas o faz acreditar que o capitalismo é a

verdadeira meritocracia; que os ricos são ricos em virtude do

valor de seu trabalho, e que se sua habilidade de acumular

riqueza for prejudicada, eles não terão qualquer incentivo para

contribuir com este trabalho para o bem social. O exemplo de um

médico é frequentemente citado. Porque trabalhar duro, passar

por vários anos de educação, para tornar-se um médico se não se

pode ganhar mais dinheiro fazendo isso?

Sabemos que o lucro não é o único incentivo para o trabalho duro,

visto que muitos realizam importantes trabalhos sem a mesma

remuneração desfrutada pelo nosso médico. Em qualquer

hospital, há técnicos, enfermeiros e outros trabalhadores que não

são tão bem pagos como os médicos (embora façam o mesmo

trabalho, se não mais, que um médico típico) e que fazem seu

serviço muito bem, sem este incentivo financeiro. Somando-se ao

pagamento das contas e o provimento de alguns fundos de pensão

pessoal e gastos, as pessoas realizam tais trabalhos para colher

outros benefícios, seja por realmente apreciarem o trabalho que

fazem ou por se sentirem úteis e produtivos. Tais benefícios vem

ao encontro de necessidades humanas de produção, seja material

ou social.

Page 15: Uma Perspectiva Marxista Da Natureza Humana

São estes benefícios que

conduzirão o trabalhador individual no que ele ou ela deseje

realizar na sociedade socialista, ao invés da pulsão consumista ou

da busca constante de fuga da pobreza, já que ambos os extremos

serão eliminados em virtude da posse proletária dos próprios

meios de produção. A questão muda de “Como posso fazer lucro”

ou “Como posso cumprir as metas” para “Como posso ajudar ,

enquanto gosto do que faço?”. Esta mudança na questão essencial

que conduz o trabalho foi posta à tona durante a construção das

relações socialistas de produção, assim como pelo desenvolvimento

da consciência dos trabalhadores na sociedade. Na medida em que

as massas trabalhadoras não mais temerem a fome e a privação

apesar do trabalho duro que realizam, na medida a propriedade

do meios de produção for social, a elas será permitido decidir que

trabalho desejaria empreender. Além do mais, elas terão todo

recurso necessário para empreender o trabalho, incluindo

educação pública de qualidade até o nível superior, assistência

médica, dias de folga para cuidado com as crianças, direito à

moradia e ao emprego. Levando-se em conta estas condições, os

trabalhadores serão livres para realizar o trabalho que desejarem

fazer.

Consciência socialista e novas prioridades sociais

Page 16: Uma Perspectiva Marxista Da Natureza Humana

Além das tendências já expostas, existe uma outra questão que

compelirá os trabalhadores na construção do socialismo: a

prioridade que deve ser dada a determinados tipos de trabalho

que correspondem a necessidades sociais mais importantes. No

capitalismo, onde a busca por lucro de uma classe proprietária

decide que trabalho será feito por qual salário, compensação e a

necessidade social para a produção raramente coincidem. Por

exemplo, professores são fundamentalmente mais importantes

para todos os membros da sociedade que modelos, atores ou

apresentadores de televisão. Educação é uma necessidade social

vital, no entanto, os educadores são mau pagos, visto que eles não

se encontram em uma posição mais lucrativa para os interesses

dos capitalistas. A maior parte das pessoas que constroem esta

sociedade são parcamente compensadas pelo seu trabalho

essencial, enquanto alguns que ajudam parasitas nos seus

empreendimentos edificados em cima de trabalhadores

explorados, levam uma vida de rei. Não é preciso mais que uma

breve análise para perceber que esta situação é radicalmente

absurda.

No socialismo, as prioridades sociais são diferentes. Ao invés da

“cenoura pendurada na vara” do capitalismo, a necessária

ameaça do desemprego sob o capitalismo a fim de forçar os

trabalhadores a assumir serviços que são pagos inadequadamente

(e logo, insatisfatoriamente); ao invés do estilo de vida decadente

apreciado por aqueles que são os mais beneficiados na

distribuição dos ganhos do sistema capitalista, a ênfase no

socialismo está no trabalho que énecessário para a melhoria das

condições sociais. O ponto fundamental é que cada trabalhador no

socialismo tem seu interesse individual investido no sucesso do

socialismo. A fim de proteger estes interesses individuais e

coletivos, o trabalhador é encorajado a empreender o trabalho

Page 17: Uma Perspectiva Marxista Da Natureza Humana

que melhor se encaixa nas necessidades sociais correntes. A força

que irá prover este encorajamento é aconsciência socialista, a

compreensão de que as ambições pessoais podem coincidir com os

interesses das massas do proletariado, se esta consciência

compreende que sua melhoria pessoal depende do crescimento

orgânico e sustentável de todos, do desenvolvimento do produto

social a serviço de todos.

Interdependência humana como um fato social

“Mas espere um minuto”, contesta o capitalista, “porque eu

deveria me preocupar com o que acontece com quem quer que

seja?” É aqui que se poderia ainda falar da teoria do “homem

bem-sucedido” e argumentar que é irracional colocar as

necessidades de outras pessoas acima das suas próprias. Porém,

este argumento ignora completamente toda a experiência humana.

Ignora o fato de que os seres humanos são criaturas sociais, que

fundamentalmente dependem do esforço de cada um para a

mútua sobrevivência. Ignora o fato de que nós temos uma relação

básica com todas as massas trabalhadoras do mundo apenas por

estar vivendo nele. Considere as roupas que veste, a comida que

come, o carro que dirige. De onde vem estas coisas? Que força as

torna possíveis? A resposta é trabalho; o trabalho de nossos

companheiros seres humanos.

O fato de que este trabalho seja, em sua maior parte, coagido

pelos capitalistas em diversos países, que pagam miseravelmente a

seus trabalhadores e frequentemente recrutam crianças por

Page 18: Uma Perspectiva Marxista Da Natureza Humana

constituírem uma frágil e desesperada força de trabalho em

regiões desassistidas; o fato de que a exploração da imensa

maioria promova o conforto material de uma minoria, já deveria

por si só despertar a consciência de uma moralidade elevada. A

realidade essencial é que nesse sistema construído em torno da

busca por lucros, o sucesso de poucos só é possível através do

sofrimento e perda de muitos. Nós precisamos uns dos outros, no

entanto o corrente modo de produção requer que as vastas massas

de trabalhadores se sujeitem a algumas das piores condições

imagináveis ( o proletário , esse trabalhador sem dono e que não é

dono de nada, é o que tem em termos comparativos, piores

condições de existência e sobrevivência). Podemos continuar a

viver em um mundo caracterizado por tal opressão? A resposta

DEVERIA ser NÃO. Para que qualquer um seja livre das forças

de exploração e alienação, todos devem ser livres destas forças.

O camarada Guevara considerava que o socialismo deveria construir um "Novo Homem".

O necessário compromisso entre o indivíduo e a sociedade

Page 19: Uma Perspectiva Marxista Da Natureza Humana

Para nos defender da exploração, devemos estar dispostos a

defender a nós mesmos, uns aos outros. É simplesmente racional

agir deste modo, visto que dependemos uns dos outros de toda

forma para nossa produção (e reprodução) material e social.

Portanto, a fim de proteger o indivíduo, compromissos

necessariamente são assumidos entre os desejos e necessidades

individuais e sociais.

Tais compromissos já são fatos da vida social. Nós já aceitamos

em algum nível que precisamos nos estabelecer limites e realizar

sacrifícios em benefício de outros. Considere a situação de um

ônibus lotado, em que uma grávida precise sentar. Não

aparecerão duas ou três pessoas que cederão seu lugar? Agora,

considere um sacrifício mais sério, digamos diante de um desastre

natural. Não haverá sempre aquelas pessoas que sacrificarão seu

próprio tempo, esforços e até a segurança para ajudar

companheiros e companheiras? Esta consciência socialista já

existe , de uma forma ou outra, como um componente de nossos

seres sociais.

Conclusão: há mais incentivo sob o Socialismo

Os inimigos do Socialismo argumentam que não há incentivo para

o trabalho no socialismo, ainda que existam inúmeras evidências

contrárias. De fato, pode-se dizer que efetivamente

há mais incentivo para trabalhar sob o socialismo do que no

regime capitalista. O incentivo para o trabalhador produzir no

socialismo é o mesmo que motiva o capitalista a continuar

explorando seus trabalhadores: defender sua posição de domínio.

Page 20: Uma Perspectiva Marxista Da Natureza Humana

Assim como a burguesia trabalha incansavelmente para manter

sua ditadura aos trabalhadores, estes farão o máximo para

manter a ordem social em que os trabalhadores governam. Eles

trabalharão para defender os ganhos de sua revolução, para

defender a si mesmos e todos os membros da sociedade da

exploração, trabalhando para satisfazer as necessidades coletivas

e fazer avançar as metas sociais. Nós já lutamos para defender a

nós mesmos e nossos entes queridos da miséria e das piores

formas de exploração, no entanto no socialismo, esta luta será

para defender os trabalhadores coletivamente, e não os lucros de

nossos mútuos exploradores.