Rebeliaodasmassas

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História do Direito UFBA 2011.1

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1. Apresenta A REBELIO DAS MASSAS Jose Ortega y GassetCopyrightAutor: Jos Ortega y GassetTradutor: Herrera Filho Edio eletrnica: Ed Ridendo Castigat MoresNelson Jahr Garcia (in memorian!)NDICEApresentaoBiografia do autorPRLOGO PARA FRANCESESPRIMEIRA PARTEA REBELIO DAS MASSAS 2. I - O fato das aglomeraesII - A ascenso do nvel histricoIII - A altura dos temposIV - O crescimento da vidaV - Um dado estatsticoVI - Comea a dissecao do homem-massaVII - Vida nobre e vida vulgar, ou esforo e inrciaVIII - Porque as massas intervm em tudo e porque s intervmviolentamenteIX - Primitivismo e tcnicaX - Primitivismo e histriaXI - A poca do "mocinho satisfeito"XII - A barbrie do "especialismo"XIII - O maior perigo, o EstadoSEGUNDA PARTEQUEM MANDA NO MUNDO?XIV - Quem manda no mundo?XV - Desemboca-se na verdadeira questoEPLOGO PARA INGLESESQuanto ao pacifismoDINMICA DO TEMPO 3. As vitrinas mandamJuventudeMasculino ou feminino?NOTASAPRESENTAONlson Jahr Garcia"A Rebelio das Massas", obra prima de Jos Ortega y Gasset,comeou a ser publicado em 1926 num jornal madrilenho ("El Sol"). Retrata as grandes transformaes do sculo XX, especialmentena Europa, com nfase no processo histrico de crescimento dasmassas urbanas. No se refere s classes sociais mas s multides eaglomeraes. Tendo esse contexto como pano de fundo, Ortegadiscute temas, aparentemente contrrios entre si, mas que se fundem(ou devem fundir-se) numa unidade de sentido. assim que contrapeindividualismo e submisso ao coletivo; comunidade, nao e estado;histria, presente e porvir; homens cultos e especialistas; poderarbitrrio e respeito opinio pblica; juventude e velhice; guerra epacifismo; masculino e feminino. So tpicos que, inevitavelmente, nos induzem reflexo crtica.Em alguns casos so apresentados de forma extremamenteprovocativa.Referindo-se ao poder do dinheiro, minimiza seu significado eafirma:", talvez, o nico poder social que ao ser reconhecido nosrepugna. A prpria fora bruta que habitualmente nos indigna acha emns um eco ltimo de simpatia e estima. Incita-nos a recha-lacriando uma fora paralela, mas no nos inspira asco. Dir-se-ia que 4. nos sublevam estes ou os outros efeitos da violncia; porm elamesma nos parece um sintoma de sade, um magnfico atributo doser vivente, e compreendemos que o grego a divinizasse emHrcules."Discutindo o fato de que os antigos gregos expressavam um certodesprezo pelas mulheres, acaba por concluir que estas acabaram semasculinizando:"A Vnus de Milo uma figura msculo-feminil, uma espcie deatleta com seios. E um exemplo de cmica insinceridade que tenhasido proposta tal imagem ao entusiasmo dos europeus durante osculo XIX, quando mais brios viviam de romanticismo e de fervorpela pura, extrema feminilidade. O cnone da arte grega ficou inscritonas formas do moo desportista, e quando isto no lhe bastou preferiusonhar com o hermafrodita." Sobre a guerra, chega a afirmar: "O pacifismo est perdido e converte-se em nula beateria se notem presente que a guerra uma genial e formidvel tcnica de vida epara a vida." Sua interpretao do modelo escravista bastante sugestiva: "Do mesmo modo, costumamos, sem mais reflexo, maldizer daescravido, no advertindo o maravilhoso progresso que representouquando foi inventada. Porque antes o que se fazia era matar osvencidos. Foi um gnio benfeitor da humanidade o primeiro que ideou,em vez de matar os prisioneiros, conservar-lhes a vida e aproveitarseu labor."So essas aparentes contradies que estimulam nosso espritocrtico. Ortega defendeu suas concepes com vigor, fundamentosslidos e uma lgica irreprensvel. Em poucos momentos foitotalmente conclusivo, mas deixou uma enorme abertura para quepossamos repensar as idias que defendeu em seus dias, adaptando-as ao nosso tempo e ao que viveremos no futuro.BIOGRAFIA DO AUTOR 5. Jos Ortega y Gasset nasceu em Madrid, a 9 de maio de 1883. Afamlia de sua me era proprietria do jornal madrilenho "El Imparcial"e seu pai jornalista e diretor desse mesmo dirio. Essa relao com o jornalismo foi essencial para odesenvolvimento de sua formao intelectual e seu estilo deexpresso literria. Grande parte de seus escritos filosficos foramproduzidos a partir do contato com a imprensa. Ortega, alm deconsiderado um dos maiores filsofos da lngua espanhola tambm lembrado como uma das maiores figuras do jornalismo espanhol dosculo XX. Tendo adquirido as primeiras letras em Madrid foi enviado a cursaro bacharelado em um colgio jesuta de Mlaga. Emborareconhecendo o valor da educao jesutica recebida, reagiu contra ostnues fundamentos da cincia adquirida, formulando um projetopessoal de reforma da filosofia europia. Terminando os estudos em Mlaga iniciou seus estudosuniversitrios em Deusto e depois na Universidade de Madrid, onde sedoutorou em Filosofia. Buscando uma formao intelectual mais slidacontinuou seus estudos em Marburgo, na Alemanha, onde prevaleciao neokantismo. Acabou por adotar uma atitude crtica em relao aosseus mestres e a Kant, que se refletiu na afirmao: "Durante dezanos vivi no mundo do pensamento kantiano: eu o respirei com a umaatmosfera que foi, ao mesmo tempo, minha casa e minha priso (...)Com grande esforo, consegui evadir-me da priso kantiana e escapeide sua influncia atmosfrica." A partir de 1910 iniciou uma vida pblica repartida entre a docnciauniversitria e atividades polticas e culturais extra acadmicas. Com o incio da guerra civil espanhola, em julho de 1936, Ortegadecidiu andar pelo mundo, viajando Frana, Holanda, Argentina,Portugal, pases onde proferiu inmeras conferncias.Suas obras se revestem de um carter extremamente crtico, asmais polmicas das quais foram: "Meditaciones del Quijote", "Que s 6. filosofia?", "En torno a Galileo", "Historia como sistema","Rebelin delas masas", "Obras Completas". Foi tambm co-fundador do dirio "ElSol" e fundador e diretor da "Revista de Occidente".Faleceu em Madrid no dia 18 de outubro de 1955.PRLOGO PARA FRANCESESIEste livro - supondo que seja um livro - data... Comeou a serpublicado num jornal madrilenho em 1926, e o assunto de que trata demasiado humano para que pudesse escapar ao do tempo. Hsobretudo pocas em que a realidade humana, sempre instvel, seprecipita em velocidade vertiginosa. Nossa poca dessa classeporque de descidas e quedas. Da que os fatos ultrapassaram olivro. Muito do que nele se enuncia foi logo um presente e j umpassado. Alm disso, como este livro circulou muito durante estesanos fora da Frana, no poucas de suas frmulas chegaram ao leitorfrancs por vias annimas e so puro lugar comum. Teria sido, pois,excelente ocasio para praticar a obra de caridade mais adequada anosso tempo: no publicar livros suprfluos. Eu fiz tudo que me foipossvel em tal sentido - vai para cinco anos a Casa Stock me propsa sua verso -; mas me fizeram ver que o organismo das idiasenunciadas nestas pginas no corresponde ao leitor francs, e que,acertada ou erroneamente, seria til submet-lo a sua meditao e asua crtica.No estou convencido disso, mas no h motivo para formalismo.Importa-me, entretanto, que no entre na sua leitura com ilusesinjustificadas. Conste, pois, que se trata simplesmente de uma sriede artigos publicados num jornal madrilenho de grande circulao.Como quase tudo que escrevi, estas foram pginas escritas para unsquantos espanhis que o destino colocou minha frente. No sobremodo improvvel que minhas palavras, mudando agora dedestinatrio, consigam dizer aos franceses o que elas pretendemexprimir. No posso esperar melhor sorte quando estou persuadido deque falar uma operao muito mais ilusria do que se supe, 7. certamente, como quase tudo que o homem faz. Definimos alinguagem como o meio de que nos servimos para manifestar nossospensamentos. Mas uma definio, se verdica, irnica, encerratcitas reservas, e quando no a interpretamos assim, produz funestosresultados. Assim esta. O de menos que a linguagem sirva tambmpara ocultar nossos pensamentos, para mentir. A mentira seriaimpossvel se o falar primrio e normal no fosse sincero. A moedafalsa circula apoiada na verdadeira. No final das contas, o engano vema ser um humilde parasita da ingenuidade.No; o mais perigoso daquela definio o acrscimo otimista comque costumamos escut-la. Porque ela mesma no nos assegura quemediante a linguagem possamos manifestar, com suficiente justeza,todos os nossos pensamentos. No se arrisca a tanto, mas tampouconos faz ver francamente a verdade estrita: que sendo ao homemimpossvel entender-se com seus semelhantes, estando condenado radical solido, esgota-se em esforos para chegar ao prximo.Desses esforos a linguagem que consegue s vezes declarar commaior aproximao algumas das coisas que acontecem dentro de ns.Apenas. Mas, habitualmente, no usamos estas reservas. Aocontrrio, quando o homem se pe a falar, isto faz porque cr que vaipoder dizer tudo que pensa. Pois bem, isso o ilusrio. A linguagemno d para tanto. Diz, mais ou menos, uma parte do que pensamos epe uma barreira infranquevel transfuso do resto. Servebastantemente para enunciados e provas matemticas; j ao falar defsica comea a ser equvoco e insuficiente. Porm quanto mais aconversao se ocupa de temas mais importantes que esses, maishumanos, mais "reais", tanto mais aumenta sua impreciso, suainpcia e seu confusionismo. Dceis ao prejuzo inveterado de quefalando nos entendemos, dizemos e ouvimos com to boa f queacabamos muitas vezes por no nos entendermos, muito mais do quese, mudos, procurssemos adivinhar-nos. Esquece-se demasiadamente que todo autntico dizer no s dizalgo, como diz algum a algum. Em todo dizer h um emissor e umreceptor, os quais no so indiferentes ao significado das palavras.Este varia quando aquelas variam. Duo si idem dicunt non est idem.Todo vocbulo ocasional (l). A linguagem por essncia dilogo, etodas as outras formas do falar destituem sua eficcia. Por isso eucreio que um livro s bom na medida em que nos traz um dilogo 8. latente, em que sentimos que o autor sabe imaginar concretamenteseu leitor e este percebe como se dentre as linhas sasse ua moectoplstica que tateia sua pessoa, que quer acarici-la - ou bem, muicortesmente, dar-lhe um murro. Abusou-se da palavra e por isso ela caiu em desgraa. Como emtantas outras coisas, o abuso aqui consistiu no uso sem preocupao,sem conscincia da limitao do instrumento. H quase dois sculosque se acredita que falar era falar urbi et orbi, isto , a todos e aningum. Eu detesto essa maneira de falar e sofro quando no seiconcretamente a quem falo. Contam, sem insistir demasiado sobre a realidade do fato, quequando se celebrou o jubileu de Victor Hugo foi organizada umagrande festa no palcio do Elseo, da qual participaram, levando suashomenagens, representaes de todas as naes. O grande poetaachava-se na grande sala de recepo, em solene atitude de esttua,com o cotovelo apoiado no rebordo de uma chamin. Osrepresentantes das naes adiantavam-se ao pblico e apresentavamsua homenagem ao vate da Frana. Um porteiro, com voz estentrica,anunciava-os:"Monsieur le Reprsentant de lAnglaterre!" E Victor Hugo, com vozde dramtico trmulo, virando os olhos, dizia: "LAnglaterre! Ah,Shakespeare!" O porteiro continuou: "Monsieur le Reprsentant delEspagne"! E Victor Hugo: "LEspagne! Ah, Cervantes!" O porteiro:"Monsieur le Reprsentant de LAllemagne!" E Victor Hugo:"LAllemagne! Ah, Goethe!" Mas ento chegou a vez de um senhor baixo, atarracado, balofo ede andar desgracioso. O porteiro exclamou: "Monsieur le Reprsentantde la Msopotamie!"Victor Hugo, que at ento permanecera impertrrito e seguro de simesmo, pareceu vacilar. Suas pupilas, ansiosas, fizeram um grandegiro circular como procurando em todo o cosmos algo que noencontrava. Mas logo se viu que o achara e que recobrara o domnioda situao. Efetivamente, com o mesmo tom pattico, com a mesmaconvico, respondeu homenagem do rotundo senhor dizendo: "LaMsopotamie! Ah, LHumanit!" 9. Contei isso a fim de declarar, sem a solenidade de Victor Hugo,que no escrevi nem falei Mesopotmia, e nunca me dirigi Humanidade. Esse costume de falar para a Humanidade, que aforma mais sublime, e, portanto, a mais desprezvel da demagogia, foiadotada at 1750 por intelectuais desajustados, ignorantes de seusprprios limites e que sendo, por seu ofcio, os homens do dizer, dologos, usaram dele sem respeito e precaues, sem perceberem quea palavra um sacramento de mui delicada administrao.IIEsta tese que sustenta a exiguidade do raio de ao eficazmenteconcedido palavra, podia parecer invalidada pelo fato mesmo de queeste volume tenha encontrado leitores em quase todas as lnguas daEuropa. Eu creio, todavia, que este fato de preferncia sintoma deoutra coisa, de outra grave coisa: da pavorosa homogeneidade desituaes em que vai caindo todo o Ocidente. Desde o aparecimentodeste livro, pela mecnica que nele mesmo se descreve, essaidentidade cresceu de modo angustioso. Digo angustioso porque,realmente, o que em cada pas sentido como circunstncia dolorosa,multiplica ao infinito seu efeito deprimente quando quem o sofreadverte que apenas h lugar no continente onde no aconteaestritamente o mesmo, Outrora podia ventilar-se a atmosferaconfinada de um pas abrindo-se as janelas que do para outro. Masagora esse expediente no serve de nada, porque em outro pas aatmosfera to irrespirvel como no prprio. Da a sensaoopressora de asfixia. Job, que era um terrvel pince-sans-rire, perguntaa seus amigos, os viajores e mercadores que rodaram pelo mundo:Unde sapientia venit et quis est locus intelligentiae? "Sabeis de algumlugar do mundo onde a inteligncia exista?"Convm, entretanto, que nessa progressiva assimilao dascircunstncias distingamos duas dimenses diferentes e de valorcontraposto. Este enxame de povos ocidentais que alou vo sobre a histriadesde as runas do mundo antigo, caracterizou-se sempre por uma 10. forma dual de vida. Pois aconteceu que medida que cada um iaformando seu gnio peculiar, entre eles ou sobre eles se ia criando umrepertrio de idias, maneiras e entusiasmos. Mais ainda. Este destinoque os fazia, a par, progressivamente homogneos eprogressivamente diversos, h de entender-se com certo superlativode paradoxo. Porque neles a homogeneidade no foi alheia diversidade. Pelo contrrio: cada novo princpio uniforme fertilizava adiversificao. A idia crist engendra as igrejas nacionais; alembrana do Imperium romano inspira as diversas formas do Estado;a "restaurao das letras" no sculo XV impele as literaturasdivergentes; a cincia e o princpio unitrio do homem como "razopura" cria os distintos estilos intelectuais que modelamdiferencialmente at as extremas abstraes da obra matemtica.Finalmente e para cmulo: at a extravagante idia do sculo XVIII,segundo a qual todos os povos ho de ter uma constituio idntica,produz o efeito de despertar romanticamente a conscincia diferencialdas nacionalidades, que vem a ser como estimular em cada um suavocao particular.E que para esses povos chamados europeus, viver sempre foi -claramente desde o sculo XI, desde ton III - mover-se e atuar emum espao ou mbito comum. Isto , que para cada um viver eraconviver com os demais. Esta convivncia tomava indiferentementeaspecto pacfico ou combativo. As guerras inter-europias mostraramquase sempre um curioso estilo que as faz parecer muito com asaltercaes domsticas. Evitam a aniquilao do inimigo, e soverdadeiros certames, lutas de emulao, como as dos jovens numaaldeia ou disputas de herdeiros pela partilha de um legado familiar.Um pouco de outro modo, todos vo ao mesmo. Eadem sed aliter.Como Carlos V dizia de Francisco I: Meu primo Francisco e euestamos de perfeito acordo: ambos queremos Milo". de somenos importncia que a esse espao histrico comum,onde todos os povos do Ocidente se sentiam como em sua casa,corresponda um espao fsico que a geografia denomina Europa. Oespao histrico a que aludo mede-se pelo raio de efetiva eprolongada convivncia - um espao social. Ora, convivncia esociedade so termos equivalentes. Sociedade o que se produzautomaticamente pelo simples fato da convivncia. De sua essncia einelutavelmente esta segrega costumes, usos, lnguas, direito, poder 11. pblico. Um dos mais graves erros do pensamento "moderno", cujassalpicaduras ainda padecemos, tem sido confundir a sociedade com aassociao, que , aproximadamente, o contrrio daquela. Umasociedade no se constitui do acordo das vontades. Ao contrrio, todoacordo de vontades pressupe a existncia de uma sociedade, depessoas que convivem, e o acordo no pode consistir seno emprecisar uma ou outra forma dessa convivncia, dessa sociedadepreexistente. A idia da sociedade como reunio contratual, portantojurdica, o mais insensato ensaio que se fez de pr o carro adiantedos bois. Porque o direito, a realidade "direito" - no as idias sobreele do filsofo, jurista ou demagogo - , se me permitem a expressobarroca, secreo espontnea da sociedade e no pode ser outracoisa. Querer que o direito reja as relaes entre seres quepreviamente no vivem em efetiva sociedade, parece-me - perdoe-se-me a insolncia - ter uma idia muito confusa do que o direito.No deve estranhar, por outra parte, a preponderncia dessaopinio confusa e ridcula sobre o direito, porque uma das mximasdesditas do tempo que, ao toparem os povos do Ocidente com osterrveis conflitos pblicos do presente, se encontraram aparelhadoscom instrumental arcaico e ineficiente de noes sobre o que sociedade, coletividade, indivduo, usos, lei, justia, revoluo, etc.Boa parte da inquietao atual provm da incongruncia entre aperfeio de nossas idias sobre os fenmenos fsicos e o atrasoescandaloso das "cincias morais". O ministro, o professor, o fsicoilustre e o novelista soem ter dessas coisas conceitos dignos de umbarbeiro suburbano. No perfeitamente natural que seja o barbeirosuburbano quem d a tonalidade do tempo? (2)Mas voltemos a nossa rota. Queria insinuar que os povos europeusso h muito tempo uma sociedade, uma coletividade, no mesmosentido que tm estas palavras aplicadas a cada uma das naes quea integram. Essa sociedade manifesta todos os atributos possveis: hcostumes europeus, usos europeus, opinio pblica europia, direitoeuropeu, poder pblico europeu. Mas todos esses fenmenos sociaisse do na forma adequada ao estado de evoluo em que se encontraa sociedade europia, que no , evidentemente, to avanado comoo de seus membros componentes, as naes. Por exemplo: a forma de presso social que o poder pblico 12. funciona em toda sociedade, inclusive naquelas primitivas em que noexiste ainda um organismo especial encarregado de manej-lo. Se aesse rgo diferenciado a quem se entrega o exerccio do poderpblico se quer chamar Estado, diga-se que em certas sociedades noh Estado, mas no se diga que nelas no h poder pblico. Onde hopinio pblica, como poder faltar um poder pblico se este no mais que a violncia coletiva suscitada por aquela opinio? Ora bem,que h sculos e com intensidade crescente existe uma opiniopblica europia e at uma tcnica para influir nela - incmodo neg-lo.Por isso, recomendo ao leitor que poupe a malignidade de umsorriso ao deparar que nos ltimos captulos deste volume se faz comcerto denodo, ante o cariz oposto das aparncias atuais, a afirmaode uma possvel, de uma provvel unidade estatal da Europa. Nonego que os Estados Unidos da Europa so uma das fantasias maismdicas que existem e no me solidarizo com o que os outrospensaram sob esses signos verbais. Mas, por outra parte, sumamente improvvel que uma sociedade, uma coletividade tomadura como a que j formam os povos europeus, ande longe de criarpara si seu artefato estatal mediante o qual formalize o exerccio dopoder pblico europeu j existente. No , pois, debilidade ante assolicitaes da fantasia nem propenso a um "idealismo" que detesto,e contra o qual hei pugnado toda a minha vida, o que me leva apensar assim. Foi o realismo histrico que me ensinou a ver que aunidade da Europa como sociedade no um "ideal", mas um fato develhssima cotidianidade. Ora bem, uma vez que se viu isso, aprobabilidade de um Estado geral europeu impe-se necessariamente.A ocasio que leve subitamente a trmino o processo pode serqualquer, por exemplo, a clera de um chins que aparea pelos Uraisou uma sacudida do grande magma islmico. A figura desse Estado super-nacional ser, claro, muito diferentedas usadas, como, segundo nesses mesmos captulos se tentamostrar, foi muito diferente o Estado nacional do Estado-cidade que osantigos conheceram. Eu procurei nestas pginas pr em franquia asmentes para que saibam ser fiis sutil concepo do Estado esociedade que a tradio europia nos prope. Nunca foi fcil ao pensamento greco-romano conceber a realidade 13. como dinamismo. No podia desprender-se do visvel ou seussucedneos, como um menino no entende do livro seno asilustraes. Todos os esforos de seus filsofos autctones paratranscender essa limitao foram vos. Em todos os seus ensaiospara compreender atua, mais ou menos, como paradigma, o objetocorporal, que , para eles, a "coisa" por excelncia. S conseguem veruma sociedade, um Estado onde a unidade tenha carter decontinuidade visual; por exemplo, uma cidade. A vocao mental doeuropeu oposta. Toda coisa visvel lhe parece, como tal, simplesmscara aparente de uma fora latente que a est constantementeproduzindo e que sua verdadeira realidade. Ali onde a fora, adynamis, atua unitariamente, h real unidade, embora vista se nosapaream como manifestao dela apenas coisas diversas.Seria recair na limitao antiga no descobrir unidade de poderpblico apenas onde este tomou mscaras j conhecidas e comosolidificadas de Estado; isto , nas naes particulares da Europa.Nego redondamente que o poder pblico decisivo atuante em cadauma delas consista exclusivamente em seu poder pblico interior ounacional. Convm cair de uma vez na compreenso de que h muitossculos - e com conscincia disso h quatro - vivem todos os povos daEuropa submetidos a um poder pblico que por sua prpria purezadinmica no tolera outra denominao que a extrada da cinciamecnica: o "equilbrio europeu" ou balance of Power. Esse o autntico governo da Europa que regula em seu vo pelahistria o enxame de povos, solcitos e pugnazes como abelhas,escapados s runas do mundo antigo. A unidade da Europa no uma fantasia, mas de fato a prpria realidade, e a fantasia precisamente a crena de que a Frana, a Alemanha, a Itlia ou aEspanha so realidades substantivas e independentes. Compreende-se, entretanto, que nem todo o mundo perceba comevidncia a realidade da Europa, porque a Europa no uma "coisa",mas um equilbrio. J no sculo XVIII o historiador Robertsonqualificou o equilbrio europeu de the great secret of modern politics. Segredo grande e paradoxal, sem dvida! Porque o equilbrio oubalana de poderes uma realidade que consiste essencialmente naexistncia de uma pluralidade. Se essa pluralidade se perde, aquela 14. unidade dinmica se desvaneceria. A Europa , com efeito, enxame;muitas abelhas e um s vo.Esse carter unitrio da magnfica pluralidade europia o a queeu chamaria boa homogeneidade, a que fecunda e desejvel, a quefazia Montesquieu dizer: LEurope nest quune nation compose deplusieurs, (3) e Balzac, mais romanticamente, falava da grande famillecontinentale, dont tous les efforts tendent je ne sais quel mystre decivilisation. (4)III Esta multido de modos europeus que brotam constantemente desua radical unidade e reverte a ela mantendo-a, o maior tesouro doOcidente. Os homens de cabeas toscas no conseguem congeminaruma idia to acrobtica como esta em que preciso saltar, semdescanso, da afirmao da pluralidade ao reconhecimento da unidadee vice-versa. So cabeas pesadas nascidas para existir sob asperptuas tiranias do Oriente.Triunfa hoje sobre toda a rea continental uma forma dehomogeneidade que ameaa consumir completamente aqueletesouro. Onde quer que tenha surgido o homem-massa de que estevolume se ocupa, um tipo de homem feito de pressa, montado tosomente numas quantas e pobres abstraes e que, por isso mesmo, idntico em qualquer parte da Europa. A ele se deve o triste aspectode asfixiante monotonia que vai tomando a vida em todo o continente.Esse homem-massa o homem previamente despojado de suaprpria histria, sem entranhas de passado e, por isso mesmo, dcil atodas as disciplinas chamadas "internacionais". Mais do que umhomem, apenas uma carcaa de homem constitudo por meros idolafori; carece de um "dentro", de uma intimidade sua, inexorvel einalienvel, de um eu que no se possa revogar. Da estar sempre emdisponibilidade para fingir ser qualquer coisa. Tem s apetites, cr ques tem direitos e no cr que tem obrigaes: o homem semnobreza que obriga - sine nobilitate - snob. (5)Este universal snobismo, que to claramente aparece, por 15. exemplo, no operrio atual, cegou as almas para compreender que,embora toda estrutura dada da vida continental tenha de sertranscendida, tudo isso h de se fazer sem perda grave de sua interiorpluralidade. Como o snob est vazio de destino prprio, como nosabe que existe sobre o planeta para fazer algo determinado eimpermutvel, incapaz de entender que h misses particulares emensagens especiais. Por essa razo hostil ao liberalismo, com umahostilidade que se assemelha do surdo em relao palavra. Aliberdade significou sempre na Europa franquia para ser o queautenticamente somos. Compreende-se que aspire a prescindir delaquem sabe que no tem autntico mister.Com estranha facilidade todo o mundo se colocou de acordo paracombater e injuriar o velho liberalismo. A coisa suspeita. Porque aspessoas no costumam pr-se de acordo a no ser em coisas umpouco velhacas ou um pouco tolas. No pretendo que o velholiberalismo seja uma idia plenamente razovel: como pode ser se velho e se ismo! Mas sim penso que uma doutrina sobre asociedade muito mais profunda e clara do que supem seus detratorescoletivistas, que comeam por desconhec-lo. Ademais, h nele umaintuio do que a Europa tem sido, altamente perspicaz. Quando Guizot, por exemplo, contrape a civilizao europia sdemais fazendo notar que nela no triunfou nunca em forma absolutanenhum princpio, nenhuma idia, nenhum grupo ou classe, e que aisso se deve o seu crescimento permanente e seu carter progressivo,no podemos deixar de pr o ouvido atento (6). Este homem sabe oque diz. A expresso insuficiente porque negativa, mas suaspalavras chegam-nos carregadas de vises imediatas. Como domergulhador emergente transcendem olores abismais, vemos que estehomem chega efetivamente do profundo passado da Europa ondesoube submergir. , com efeito, incrvel que nos primeiros anos dosculo XIX, tempo retrico e de grande confuso, se tenha compostoum livro como a Histoire de la Civilisation en Europe. Todavia ohomem de hoje pode aprender ali como a liberdade e o pluralismo soduas coisas recprocas e como ambas constituem a permanenteentranha da Europa. Mas Guizot teve sempre pssima publicidade, como em geral, osdoutrinrios. No me surpreendo. Quando vejo que para um homem 16. ou grupo se dirige fcil e insistente o aplauso, surge em mim aveemente suspeita de que nesse homem ou nesse grupo, talvez juntoa dotes excelentes, h algo sobremodo impuro. Talvez isto seja umerro em que incorro, mas devo dizer que no o procurei, que o foidentro de mim decantando a experincia. De qualquer maneira, queroter a coragem de afirmar que este grupo de doutrinrios, de quem todoo mundo riu e fez mofas truanescas, , a meu ver, o mais valioso quehouve na poltica do continente durante o sculo XIX. Foram os nicosque viram claramente o que havia que fazer na Europa depois daGrande Revoluo, e foram alm disso homens que criaram em suaspessoas uma atitude digna e distante, no meio da rusticidade e dafrivolidade crescente daquele sculo. Rotas e sem vigncia quasetodas as normas com que a sociedade presta uma continncia aoindivduo, no podia este constituir-se uma dignidade se no a extraado fundo de si mesmo. Mal pode fazer-se isso sem algumaexagerao, ainda que seja somente para se defender do abandonoorgistico em que vivia seu contorno. Guizot soube ser, como BusterKeaton, o homem que no ri (7). No se abandona jamais.Condensam-se nele vrias geraes de protestantes nimeses quehaviam vivido em alerta perptuo, sem poder flutuar deriva noambiente social, sem poder abandonar-se. Havia chegado a converter-se neles em um instinto a impresso radical de que existir resistir,fincar os calcanhares no cho para se opor correnteza. Numa pocacomo a nossa, bom tomar contacto com os homens que no "sedeixam levar". Os doutrinrios so um caso excepcional deresponsabilidade intelectual; quer dizer, do que mais tem faltado aosintelectuais europeus desde 1750, defeito que , por sua vez, uma dascausas profundas do presente desconcerto Mas eu no sei se, ainda que me dirigindo a leitores franceses,Posso aludir ao doutrinarismo como a uma magnitude conhecida. Poisse d o fato escandaloso de que no existe um s livro onde se tenhatentado precisar o que aquele grupo de homens pensava, (8) como,ainda que parea incrvel, no h tampouco um livro medianamenteformal sobre Guizot nem sobre Royer-Collard (9). verdade que nemum nem o outro publicaram jamais um soneto. Mas, enfim, pensaramprofundamente, originalmente, sobre os problemas mais graves davida pblica europia, e constituram o doutrinal poltico maisestimvel de toda a centria. Nem ser possvel reconstruir a histriadesta se no se estabelece intimidade com o modo em que se 17. apresentaram as grandes questes ante estes homens (10), Seu estilointelectual no s diferente em espcie, mas o de outro gnero ede outra essncia em face de todos os demais triunfantes na Europaantes e depois deles. Por isso no os entenderam, apesar da suaclssica lucidez. E, todavia, muito possvel que o porvir pertena atendncias de intelecto muito semelhantes s suas. Pelo menos,asseguro a quem se proponha formular com rigor sistemtico as idiasdos doutrinrios, prazeres de pensamento no esperados e umaintuio da realidade social e poltica totalmente diferente das usadas.Perdura neles ativa a melhor tradio racionalista em que o homem secompromete consigo mesmo a procurar coisas absolutas; masdiferentemente do racionalismo linftico de enciclopedistas erevolucionrios, que encontram o absoluto em abstraes bon march,descobrem eles o histrico com o verdadeiro absoluto. A histria arealidade do homem. No tem outra. Nela chegou a fazer-se tal ecomo . Negar o passado absurdo e ilusrio, porque o passado "onatural do homem que volta a galope". O passado no est presente eno teve o trabalho de acontecer para que o neguemos, mas para queo integremos (11). Os doutrinrios desprezavam os "direitos dohomem" porque so absolutamente "metafsicos", abstraes eirrealidades. Os verdadeiros direitos so os que absolutamente estoa, porque foram aparecendo e se consolidando na histria: tais so as"liberdades", a legitimidade, a magistratura, as "capacidades". Sealentassem hoje reconheceriam o direito de greve (no poltica) e ocontrato coletivo. A um ingls tudo isso pareceria bvio; mas oscontinentais ainda no chegamos a essa estao. Talvez desde otempo de Alcuino tenhamos vivido cinqenta anos pelo menosatrasados a respeito dos ingleses.Igual desconhecimento do velho liberalismo sentem os coletivistasde agora quando supem, nem mais nem menos, como coisainquestionvel, que era individualista. Em todos estes temas andam,como eu disse, as noes sobremodo turvas. Os russos desses anospassados costumavam chamar a Rssia de "o coletivo". No seriainteressante averiguar que idias ou imagens se espreguiavam invocao deste vocbulo na mente um tanto gasosa do homem russoque to freqentemente, como o capito italiano de que falava Goethe,bisogna aver una confusione nella testa? Diante disso tudo eu rogariaao leitor que tomasse em conta, no para aceit-las, mas para quesejam discutidas e passem depois sentena, as seguintes teses: 18. Primeira: o liberalismo individualista pertence flora do sculoXVIII; inspira, em parte, a legislao da Revoluo francesa, masmorre com ela. Segunda: a criao caracterstica do sculo XIX foi precisamente ocoletivismo, a primeira idia que inventa apenas nascido e que aolongo de cem anos no fez seno crescer at inundar todo ohorizonte.Terceira: esta idia de origem francesa. Aparece pela primeiravez nos arquireacionrios de Bonald e de Maistre. No essencial imediatamente aceita por todos, sem outra exceo que no sejaBenjamim Constant, um "atrasado" do sculo anterior. Mas triunfa emSaint-Simon, em Ballanche, em Comte e pulula por toda a parte (12).Por exemplo: um mdico de Lyon, M. Amard, falar em 1821 docollectivisme em face do personnalisme (13). Leiam-se os artigos queem 1830 e 1831 publica LAvenir contra o individualismo.Mais importante, porm, que tudo isso outra coisa. Quando,avanando pela centria, chegamos aos grandes teorizadores doliberalismo - Stuart Mill ou Spencer - surpreende-nos que sua supostadefesa no se baseia em mostrar que a liberdade beneficia ouinteressa a este, mas pelo contrrio, em que interessa e beneficia sociedade. O aspecto agressivo do ttulo que Spencer escolhe paraseu livro - O indivduo contra o Estado - tem sido causa de que o noentendam teimosamente os que no lem dos livros seno os ttulos,Porque indivduo e Estado significam nesse titulo dois meros rgosde um nico sujeito - a sociedade. E o que se discute se certasnecessidades sociais so melhor servidas por um ou pelo outro rgo.Nada mais. O famoso "individualismo" de Spencer boxeiacontinuamente dentro da atmosfera coletivista de sua sociologia. Oresultado, no final, que tanto ele como Stuart Mill tratam osindivduos com a mesma crueldade socializante com que os termitas acertos de seus congneres, os quais cevam para depois chupar-lhes asubstncia. At esse ponto era a primazia do coletivo o fundo por simesmo evidente sobre o qual ingenuamente danavam suas idias!De onde se infere que minha defesa lohengrinesca do velholiberalismo , completamente, desinteressada e gratuita. Porque o 19. caso que eu no sou um "velho liberal". O descobrimento - semdvida glorioso e essencial - do social, do coletivo, era demasiadorecente. Aqueles homens apalpavam, mais do que viam, o fato de quea coletividade uma realidade diferente dos indivduos e de suasimples soma, mas no sabiam bem em que consistia e quais eramseus efetivos atributos. Por outra parte, os fenmenos sociais dotempo camuflavam a verdadeira economia da coletividade, porqueento convinha a esta ocupar-se em cevar bem os indivduos. Nochegara ainda a hora da nivelao, da espoliao e da partilha emtodas as ordens. Da que os "velhos liberais" se abrissem sem suficientesprecaues ao coletivismo que respiravam. Mas quando se viu comclareza o que no fenmeno social, no fato coletivo, simplesmente ecomo tal, h por um lado de benefcio, porm, por outro, de terrvel, depavoroso, s se pode aderir ao liberalismo de estilo radicalmentenovo, menos ingnuo e de mais destra beligerncia, um liberalismoque est germinando j, prximo a florescer, na linha mesma dohorizonte.Nem era possvel que sendo estes homens, como eram, fartamenteperspicazes, no entrevissem de quando em quando as angstias queseu tempo nos reservava. Contra o que si acreditar-se tem sidonormal na histria que o porvir seja profetizado (14). Em Macaulay, emTocqueville, em Comte, encontramos pr-desenhada nossa hora.Veja-se, por exemplo, o que h mais de oitenta anos escrevia StuartMill: " parte as doutrinas particulares de pensadores individuais,existe no mundo uma forte e crescente inclinao a estender em formaextrema o poder da sociedade sobre o indivduo, tanto por meio dafora da opinio como pela legislativa. Ora bem, como todas asmudanas que se operam no mundo tm por efeito o aumento dafora social e a diminuio do poder individual, este desbordamentono um mal que tenda a desaparecer espontaneamente, mas, aocontrrio, tende a fazer-se cada vez mais formidvel. A disposio doshomens, seja como soberanos, seja como concidados, a impor aosdemais como regra de conduta sua opinio e seus gostos, se acha toenergicamente sustentada por alguns dos melhores e alguns dospiores sentimentos inerentes natureza humana, que quase nunca sereprime seno quando lhe falta poder. E como o poder no pareceachar-se em via de declinar, mas de crescer, devemos esperar, a 20. menos que uma forte barreira de convico moral no se eleve contrao mal, devemos esperar, digo, que nas condies presentes do mundoesta disposio nada far seno aumentar" (15). Mas o que mais nos interessa em Stuart Mill sua preocupaopela homogeneidade de m classe que via crescer em todo oOcidente. Isso o faz acolher-se a um grande pensamento emitido porHumboldt na sua juventude. Para que o humano se enriquea, seconsolide e se aperfeioe necessrio, segundo Humboldt, que exista"variedade de situaes" (16). Dentro de cada nao, e tomando emconjunto as naes, preciso que se dem circunstncias diferentes.Assim, ao falhar uma restam outras possibilidades abertas. Einsensato pr a vida europia numa s carta, num s tipo de homem,numa idntica "situao". Evitar isso tem sido o secreto acerto daEuropa at hoje, e a conscincia desse segredo a que, clara oubalbuciante, moveu sempre os lbios do perene liberalismo europeu.Nessa conscincia se reconhece a si mesma como valor positivo,como bem e no como mal, a pluralidade continental. Importava-meesclarecer isso para que no se tergiverse a idia de uma superaoeuropia que este volume postula.Tal e como vamos, com a mngua progressiva da "variedade desituaes", caminhamos em linha reta para o Baixo Imprio. Tambmfoi aquele um tempo de massa e de pavorosa homogeneidade. J notempo dos Antoninos se nota claramente um estranho fenmeno,menos sublinhado e analisado do que devera: os homens tornaram-seestpidos, O processo vinha de tempos atrs. Disse-se, com algumarazo, que o estico Possidnio, mestre de Ccero, o ltimo homemantigo capaz de se colocar ante os fatos com a mente porosa e ativa,disposto a investig-los. Depois dele, as cabeas se obliteram, e salvoos Alexandrinos, no faro outra coisa seno repetir, estereotipar. Mas o sistema e documento mais terrvel desta forma, a um tempohomognea e estpida - e uma eqivale outra - que adota a vida deum a outro extremo do Imprio, est onde menos se podia esperar eonde todavia, que eu saiba, ningum o procurou: no idioma. A lngua,que no nos serve para dizer suficientemente o que cada um de nsquisramos dizer, revela pelo contrrio e grita, sem que o queiramos, acondio mais arcana da sociedade que a fala. Na poro maishelenizada do povo romano, a lngua vigente a que se chamou "latim 21. vulgar", matriz de nossos romances. No se conhece bem este latimvulgar e, em boa parte, s se chega a ele mediante reconstrues.Mas o que se conhece basta e sobra para que nos espantem dois deseus caracteres. Um a incrvel simplificao do seu mecanismogramatical em comparao com o latim clssico. A saborosacomplexidade indo-europia, que conservava a linguagem das classessuperiores, ficou suplantada por uma fala plebia, de mecanismomuito fcil, porm, ao mesmo tempo, ou por isso mesmo,pesadamente mecnico, como material; gramtica balbuciante eperifrstica, de ensaio e rodeio como a infantil. E, efetivamente, umalngua pueril ou gaga que no permite a fina aresta do raciocnio nemlricas cambiantes. uma lngua sem luz nem temperatura, semevidncia e sem calor de alma, uma lngua triste, que avana scegas. Os vocbulos parecem velhas moedas de cobre, imundas esem rotundidade, como fartas de rolar pelas tabernas mediterrneas.Que vidas evadidas de si mesmas, desoladas, condenadas eternacotidianidade se adivinham atrs desse seco artefato lingstico!O outro carter aterrador do latim vulgar precisamente suahomogeneidade. Os lingistas, que so talvez, depois dos aviadores,os homens menos dispostos a assustar-se com coisa alguma, noparecem admirar-se ante o fato de que falassem da mesma maneirapases to dspares como Cartago e Glia, Tingitnia e Dalmcia,Hispnia e Rumnia. Eu, pelo contrrio, que sou bastante tmido, quetremo quando vejo como o vento fatiga uns canios, no possoreprimir ante esse fato um estremecimento medular. Parece-mesimplesmente atroz. E verdade que trato de me representar como erapor dentro isso que olhado de fora nos aparece, tranqilamente, comohomogeneidade; procuro descobrir a realidade vivente de que essefato a quieta marca. Consta, claro, que havia africanismos,hispanismos, galicismos. Mas ao constar isto quer dizer-se que o torsoda lngua era comum e idntico, apesar das distncias, do escassointercmbio, da dificuldade de comunicaes e de que no contribuapara fix-lo uma literatura. Como podiam vir coincidncia o celtiberoe o belga, o morador de Hipona e o de Lutcia, o mauritnio e o dcio,seno em virtude de um achatamento geral, reduzindo a existncia sua base, nulificando suas vidas? O latim vulgar est a nos arquivos,como um arrepiante empedernimento, testemunho de que uma vez ahistria agonizou sob o imprio homogneo da vulgaridade por haverdesaparecido a frtil "variedade de situaes". 22. IVNem este volume nem eu somos polticos. O assunto de que aquise fala prvio poltica e pertence a seu subsolo. Meu trabalho obscuro labor subterrneo de mineiro. A misso do chamado"intelectual" , em certo modo, oposta do poltico. A obra intelectualaspira, com freqncia baldada, a esclarecer um pouco as coisas,enquanto a do poltico si, pelo contrrio, consistir em confundi-lasmais do que estavam. Ser da esquerda , como ser da direita, umadas infinitas maneiras que o homem pode escolher para ser imbecil:ambas, com efeito, so formas da hemiplegia moral. Ademais, apersistncia destes qualificativos contribui no pouco a falsificar maisainda a "realidade" do presente, j fala de per si, porque se encrespouo crespo das experincias polticas a que respondem, como odemonstra o fato de que hoje as direitas prometem revolues e asesquerdas propem tiranias. H obrigaes de trabalhar sobre as questes do tempo. Isto, semdvida. E eu o fiz durante toda a minha vida. Sempre estive naestacada. Mas uma das coisas que agora se dizem - uma "corrente" - que, incluso a custo da claridade mental, todo o mundo tem de fazerpoltica sensu stricto. Dizem-no, claro, os que no tm outra coisaque fazer. E at o corroboram citando de Pascal o imperativodabtissement. Mas h muito tempo que aprendi a ficar em guardaquando algum cita Pascal. E uma cautela de higiene elemental.O politicismo integral, a absoro de todas as coisas e de todo ohomem pela poltica, uma e mesma coisa com o fenmeno derebelio das massas que aqui se descreve. A massa em rebeldiaperdeu toda a capacidade de religio e de conhecimento. No pode terdentro mais que poltica exorbitada, frentica, fora de si, posto quepretenda suplantar o conhecimento, a religio, a sagesse - enfim, asnicas coisas que por sua substncia so aptas para ocupar o centroda mente humana -. A poltica despoja o homem de solido eintimidade, e por isso a predicao do politicismo integral uma dastcnicas que se usam para socializ-lo. 23. Quando algum nos pergunta o que somos em poltica, ou,antecipando-se com a insolncia que pertence ao estilo de nossotempo, nos adscreve simultaneamente em vez de responder devemosperguntar ao impertinente que pensa ele que o homem e a naturezae a histria, que a sociedade e o indivduo, a coletividade, o Estado,o uso, o direito. A poltica apressa-se a apagar as luzes para quetodos estes gatos sejam pardos. preciso que o pensamento europeu proporcione sobre todosestes temas nova claridade. Para isso est a, no para fazer o lequedo pavo real nas reunies acadmicas. E preciso que o faaprontamente ou, como dizia Dante, que encontre a sada,studiate il passoMentre que lOccidente non sannera.(Purg. XXVII, 62-63) Isso seria o nico de que poderia esperar-se com algumaprobabilidade a soluo do tremendo problema que as massas atuaisaventam.Este volume no pretende, nem de longe, nada parecido. Comosuas ltimas palavras fazem constar, s uma primeira aproximaoao problema do homem atual. Para falar sobre ele mais seriamente emais profundamente no haveria mais remdio seno pr-se em roupaabissal, vestir o escafandro e descer ao mais profundo do homem.Importa fazer isso sem pretenses, mas com deciso, e eu o tenteinum livro prximo a aparecer em outros idiomas sob o ttulo El hombrey la gente. Uma vez que nos afiguramos bem de como esse tipo humanohoje dominante, e que eu chamei o homem-massa, quando sesuscitam as interrogaes mais frteis e mais dramticas: Pode-sereformar este tipo de homem? Quero dizer: os graves defeitos que hnele, to graves que se no os extirpamos produziro de modoinexorvel a aniquilao do Ocidente, toleram ser corrigidos? Porque,como ver o leitor, se trata precisamente de um homem hermtico,que no est aberto de verdade a nenhuma instncia superior. A outra pergunta decisiva, da qual, a meu juzo, depende toda 24. possibilidade de sade, esta: podem as massas, ainda quequisessem, despertar a vida pessoal? No cabe desenvolver aqui otremendo tema, porque est demasiado virgem. Os termos com quedeve ser levantado no constam na conscincia pblica. Nem sequerest esboado o estudo da distinta margem de individualidade quecada poca do passado deixou existncia humana. Porque purainrcia mental do "progressismo" supor que conforme avana ahistria, assim cresce a folga que se concede ao homem para poderser indivduo pessoal, como cria o honrado engenheiro, mas nulohistoriador, Herbert Spencer. No; a histria est cheia de retrocessosnesta ordem, e talvez a estrutura da vida em nossa poca impeasuperlativamente que o homem possa viver como pessoa.Ao contemplar nas grandes cidades essas imensas aglomeraesde seres humanos, que vo e vm por suas ruas ou se concentramem festivais e manifestaes polticas, incorpora-se em mim,obsedante, este pensamento: Pode hoje um homem de vinte anosformar um projeto de vida que tenha figura individual e que, portanto,necessitaria realizar-se mediante suas iniciativas independentes,mediante seus esforos particulares? Ao tentar o desenvolvimentodesta imagem em sua fantasia, no notar que , seno impossvel,quase improvvel, porque no h a sua disposio espao em quepossa aloj-la e em que possa mover-se segundo seu prprio ditame?Logo advertir que seu projeto tropea com o prximo, como a vida doprximo aperta a sua. O desnimo o levar com a facilidade deadaptao prpria de sua idade a renunciar no s a todo ato, comoat a todo desejo pessoal e buscar a soluo oposta: imaginar parasi uma vida standard, composta de desiderata comuns a todos e verque para consegui-la tem de solicit-la ou exigi-la em coletividade comos demais. Da a ao em massa. A coisa horrvel, mas no creio que exagera a situao efetiva emque se vo achando quase todos os europeus. Em uma priso ondese amontoaram muito mais presos dos que cabem, ningum podemover um brao ou uma perna por iniciativa prpria, porque chocariacom os corpos dos demais. Em tal circunstncia, os movimentos tmde se executar em comum, e at os msculos respiratrios tm defuncionar a ritmo de regulamento. Isto seria a Europa convertida emformigueiro. Mas nem sequer esta cruel imagem uma soluo. Oformigueiro humano impossvel, porque foi o chamado 25. "individualismo", que enriqueceu o mundo e a todos no mundo e foiesta riqueza que prolificou to fabulosamente a planta humana.Quando os restos desse "individualismo" desaparecessem, faria suareapario na Europa o esfomeamento gigantesco do Baixo Imprio, eo formigueiro sucumbiria como ao sopro de um deus torvo e vingativo.Restariam muito menos homens, que o seriam um pouco mais.Ante o feroz patetismo desta questo que, queiramos ou no, estvisvel, o tema da "justia social", apesar de to respeitvel,empalidece e se degrada at parecer retrico e insincero suspiroromntico. Mas, ao mesmo tempo, orienta sobre os caminhosacertados para conseguir o que dessa "justia social", possvel e justo conseguir, caminhos que no parecem passar por uma miservelsocializao, mas dirigir-se em linha reta para um magnnimosolidarismo. Este ltimo vocbulo , alm do mais, inoperante, porqueat hoje no se condensou nele um sistema enrgico de idiashistricas e sociais, pelo contrrio ressuma s vagas filantropias.A primeira condio para um melhoramento da situao presente perceber bem sua enorme dificuldade. S isto nos levar a atacar omal nos estratos fundos de onde verdadeiramente se origina. , comefeito, muito difcil salvar uma civilizao quando lhe chegou a hora decair sob o poder dos demagogos. Os demagogos tm sido apenas osgrandes estranguladores de civilizaes. A grega e a romanasucumbiram nas mos desta fauna repugnante, que fazia Macaulayexclamar: "Em todos os sculos, os exemplos mais vis da naturezahumana deparam-se entre os demagogos" (17). Mas um homem no demagogo somente porque se ponha a gritar ante a multido. Issopode ser em ocasies uma magistratura sacrossanta. A demagogiaessencial do demagogo est dentro de sua mente, radica em suairresponsabilidade ante as idias mesmas que maneja e que ele nocriou, mas recebeu dos verdadeiros criadores. A demagogia umaforma de degenerao intelectual, que como amplo fenmeno dahistria europia aparece na Frana em 1750. Por que ento? Por quena Frana? Este um dos pontos nevrlgicos do destino ocidental eespecialmente do destino francs. Isso o que, desde ento, cr a Frana, e por sua irradiao,quase todo o continente, que o mtodo para resolver os grandesproblemas humanos o mtodo da revoluo, entendendo por tal o 26. que j Leibnitz chamava uma "revoluo geral" (18), a vontade detransformar de chofre tudo e em todos os gneros (19). Graas a issoessa maravilha que a Frana chega em ms condies difcilconjuntura do presente. Porque esse pas tem ou cr que tem umatradio revolucionria. E se ser revolucionrio j coisa grave,quanto mais s-lo, paradoxalmente, por tradio! verdade que naFrana fez-se uma Grande Revoluo e vrias torvas ou ridculas;mas, se nos atemos verdade nua dos anais, o que encontramos que essas revolues serviram principalmente para que durante todoum sculo, salvo uns dias ou umas semanas, a Frana tenha vividomais que outro qualquer povo sob formas polticas, em maior oumenor escala, autoritrias e contra-revolucionrias. Sobretudo, agrande depresso moral da histria francesa que foram os vinte anosdo Segundo Imprio, deveu-se bem claramente extravagncia dosrevolucionrios de 1848 (20), grande parte dos quais confessou oprprio Raspail que haviam sido antes clientes seus.Nas revolues tenta a abstrao sublevar-se contra o concreto;por isso consubstancial s revolues o fracasso. Os problemashumanos no so, como os astronmicos ou os qumicos, abstratos.So problemas de mxima concreo, porque so histricos. E onico mtodo de pensamento que proporciona alguma probabilidadede acerto em sua manipulao a "razo histrica". Quando secontempla panoramicamente a vida pblica da Frana durante osltimos cento e cinqenta anos, salta vista que seus gemetras,seus fsicos e seus mdicos se equivocaram sempre em seus juzospolticos, e que conseguiram ao contrrio, acertar seus historiadores.Mas o racionalismo fsico-matemtico tem sido na Frana demasiadoglorioso para que no tiranize a opinio pblica. Malebranche rompecom um amigo seu porque viu sobre sua mesa um Tucdides (21). Estes meses passados, impelindo minha solido pelas ruas deParis, compreendi que eu no conhecia ningum na grande cidade,salvo as esttuas. Algumas destas, entretanto, so velhas amizades,antigas incitaes ou perenes mestres de minha intimidade. E comono tinha com quem falar, conversei com elas sobre grandes temashumanos. No sei se algum dia sairo luz estas Conversaciones conestatuas, que dulcificaram uma etapa dolorosa e estril de minha vida.Nelas se raciocina com o marqus de Condorcet, que est no QuaiConti, sobre a perigosa idia do progresso. Com o pequeno busto de 27. Comte que h em seu departamento da rue Monsieur-le-Prince faleisobre pouvoir spirituel, insuficientemente exercido por mandarinsliterrios e por uma Universidade que ficou completamente excntricadiante da efetiva vida das naes. Ao mesmo tempo tive a honra dereceber o encargo de uma enrgica mensagem que esse busto dirigeao outro, ao grande, erigido na praa de Sorbonne, e que o busto dofalso Comte, do oficial, do de Littr. Mas era natural que meinteressasse sobretudo em ouvir uma vez mais a palavra do nossosumo mestre Descartes, o homem a quem a Europa mais deve.O puro acaso que ciranda minha existncia fez que eu redija estaslinhas tendo vista o lugar da Holanda em que habitou em 1642 onovo descobridor da raison. Este lugar, chamado Endageest, cujasrvores do sombra a minha janela, hoje um manicmio. Duas vezesao dia - em admoestadora vizinhana - vejo passar os idiotas e osdementes que arejam por momentos intemprie sua malogradahumanidade. Trs sculos de experincia "racionalista" obrigam-nos arememorar o esplendor e os limites daquela prodigiosa raisoncartesiana. Esta raison s matemtica, fsica, biolgica. Seusfabulosos triunfos sobre a natureza, superiores a quanto puderasonhar-se, sublinham tanto mais seu fracasso ante os assuntospropriamente humanos e convidam a integr-la em outra razo maisradical, que a "razo histrica" (22).Esta nos mostra a vaidade de toda revoluo geral, de tudo quantoseja tentar a transformao sbita de uma sociedade e comear denovo a histria, como pretendiam os confusonrios do 89. Ao mtododa revoluo ope o nico digno da larga experincia que o europeuatual tem atrs de si. As revolues to incontinentes em sua pressa,hipocritamente generosa, de proclamar direitos, violaram sempre,espezinhado e esfarrapado, o direito fundamental do homem, tofundamental que a definio mesma de sua substncia: o direito continuidade. A nica diferena radical entre a histria humana e a"histria natural" que aquela no pode nunca comear de novo.Khler e outros mostraram como o chimpanz e o orangotango no sediferenciam do homem pelo que, falando rigorosamente, chamamosinteligncia, mas porque tm muito menos memria que ns. Ospobres animais cada manh esquecem quase tudo que viveram no dia 28. anterior, e seu intelecto tem de trabalhar sobre um mnimo material deexperincias. Semelhantemente, o tigre de hoje idntico ao de seismil anos, porque cada tigre tem de comear de novo a ser tigre, comose no houvesse outro antes. O homem, pelo contrrio, merc de seupoder de recordar, acumula seu prprio passado, possui-o e oaproveita. O homem no nunca um primeiro homem: comea desdelogo a existir sobre certa altitude de pretrito amontoado. Este otesouro nico do homem, seu privilgio e sua marca. E a riquezamenor desse tesouro consiste no que dele parea acertado e digno deconservar-se: o importante a memria dos erros, que nos permiteno cometer os mesmos sempre. O verdadeiro tesouro do homem otesouro dos seus erros, a extensa experincia vital decantada gota agota em milnios. Por isso Nietzsche define o homem superior como oser "de memria mais desenvolvida." Romper a continuidade com o passado, querer comear de novo, aspirar a descer e plagiar o orangotango. Apraz-me que seja umfrancs, Dupont-White, que em 1860 se atrevesse a clamar: "Lacontinuit est un droit de lhomme; elle est un hommage tout ce qui ledistingue de la bte" (23).Diante de mim est um jornal em que acabo de ler o relato dasfestas com que a Inglaterra celebrou a coroao do novo rei. Diz-seque h muito a Monarquia inglesa uma instituio meramentesimblica. Isso verdade, mas dizendo-o assim deixamos escapar omelhor. Porque, efetivamente, a Monarquia no exerce no Impriobritnico nenhuma funo material e palpvel. Seu papel no governar, nem administrar a justia, nem mandar o Exrcito. Mas nempor isso uma instituio vazia, carente de servio. A Monarquia daInglaterra exerce uma funo determinadssima e de alta eficcia: a desimbolizar. Por isso o povo ingls, com deliberado propsito, deuagora inusitada solenidade ao rito da coroao. Ante a turbulnciaatual do continente quis afirmar as normas permanentes que regulamsua vida. Deu-nos mais uma lio. Como sempre - j que a Europasempre pareceu um tropel de povos -, os continentais, cheios degnio, mas isentos de serenidade, nunca maduros, sempre pueris, eao fundo, atrs deles, a Inglaterra... como a nurse da Europa. Este o povo que sempre chegou antes ao porvir, que seantecipou a todos em quase todas as ordens. Praticamente 29. deveramos omitir o quase. E eis aqui que este povo nos obriga, comcerta impertinncia do mais puro dandysmo, a presenciar seu vetustocerimonial e a ver como atuam - porque no deixaram nunca de seratuais os mais velhos e mgicos utenslios de sua histria, a coroa e ocetro que entre ns regem apenas a sorte do baralho. O ingls fazempenho de nos fazer constar que seu passado, precisamente porquepassou, porque lhe passou, continua existindo para ele. Desde umfuturo ao qual no chegamos mostra-nos a vigncia lou de seupretrito (24), Este povo circula por todo o seu tempo, verdadeiramente senhor de seus sculos, que conserva em ativaposse. E isso ser um povo de homens: poder hoje continuar no seuontem sem por isso deixar de viver para o futuro, poder existir noverdadeiro presente, j que o presente s a presena do passado edo porvir, o lugar onde pretrito e futuro efetivamente existem. Com as festas simblicas da coroao, a Inglaterra ops, mais umavez, ao mtodo revolucionrio o mtodo da continuidade, o nico quepode evitar na marcha das coisas humanas esse aspecto patolgicoque faz da histria uma luta ilustre e perene entre os paralticos e osepilticos.V Como nestas pginas se faz a anatomia do homem hojedominante, procedo partindo de seu aspecto externo, por assim dizer,de sua pele, e depois penetro um pouco mais em direo a suasvsceras. Da por que sejam os primeiros captulos os que maiscaducaram. A pele do tempo mudou. O leitor deveria, ao ler essescaptulos, retroceder aos anos 1926-1928. J comeou a crise naEuropa, mas ainda parece uma de tantas. As pessoas ainda sentem-se em segurana. Ainda gozam os luxos da inflao. E, sobretudo,pensava-se: a est a Amrica! Era a Amrica da fabulosa prosperity. O nico do que vai dito nestas pginas que me inspira algumorgulho, no haver incorrido no inconcebvel erro de tica quesofreram ento quase todos os europeus, inclusive os prprioseconomistas. Porque no convm esquecer que ento se pensava muiseriamente que os americanos haviam descoberto outra organizao 30. da vida que anulava para sempre as perptuas pragas humanas queso as crises. Eu me envergonhava de que os europeus, inventoresdo mais elevado que at agora se inventou - o sentido histrico -,mostrassem carecer dele completamente. O velho lugar comum deque a Amrica o porvir havia nublado por instantes sua perspiccia.Tive ento a coragem de me opor a semelhante deslize, sustentandoque a Amrica, longe de ser o futuro, era, na realidade, um remotopassado porque era primitivismo. E, tambm contra o que se cr, era-oe o muito mais a Amrica do Norte do que a Amrica do Sul, ahispnica. Hoje a coisa vai sendo clara e os Estados Unidos noenviam j ao velho continente senhoritas para - como me dizia umanaquela ocasio - "convencer-se de que na Europa no h nadainteressante" (25).Violentando-me isolei neste quase-livro, do problema total que epara o homem e especialmente para o homem europeu seu imediatoporvir, um s fator: a caracterizao do homem mdio que hoje se vaiapoderando de tudo. Isto me obrigou a um duro ascetismo, absteno de expressar minhas convices sobre tudo quanto toco depassagem. Mais ainda: a apresentar freqentemente as coisas emforma que se era a mais favorvel para aclarar o tema exclusivo desteestudo, era a pior para deixar ver minha opinio sobre estas coisas.Basta assinalar uma questo, embora fundamental. Medi o homemmdio quanto a sua capacidade para continuar a civilizao modernae quanto a sua adeso cultura. Dir-se-ia que essas duas coisas - acivilizao e a cultura - no so para mim questes. A verdade queelas so precisamente o que ponho em questo quase desde meusprimeiros estudos. Mas eu no devia complicar os assuntos. Qualquerque seja nossa atitude ante a civilizao e a cultura, est a, como umfator de primeira ordem com que se deve contar, a anomaliarepresentada pelo homem-massa. Por isso urgia isolar cruamenteseus sintomas. No deve, pois, o leitor francs esperar mais deste volume, queno , no final das contas, seno um ensaio de serenidade em meio tormenta. JOSE ORTEGA Y GASSET. "Het Witte Huis". Oegstgeest-Holanda, maio, 1937. 31. PRIMEIRA PARTEA REBELIO DAS MASSASI. O FATO DAS AGLOMERAES (26) H um fato que, para bem ou para mal, o mais importante na vidapblica europia da hora presente. Este fato o advento das massasao pleno poderio social. Como as massas, por definio, no devemnem podem dirigir sua prpria existncia, e menos reger a sociedade,quer dizer-se que a Europa sofre agora a mais grave crise que apovos, naes, culturas, cabe padecer. Esta crise sobreveio mais deuma vez na histria. Sua fisionomia e suas conseqncias soconhecidas. Tambm se conhece seu nome. Chama-se a rebelio dasmassas. Para a inteligncia do formidvel fato convm que se evite dar,desde j, s palavras "rebelio", "massas", "poderio social", etc. umsignificado exclusivo ou primariamente poltico. A vida pblica no spoltica, mas, ao mesmo tempo e ainda antes, intelectual, moral,econmica, religiosa; compreende todos os usos coletivos e inclui omodo de vestir e o modo de gozar. Talvez a melhor maneira de aproximar-se a este fenmenohistrico consista em referir-nos a uma experincia visual, sublinhandouma feio de nossa poca que visvel com os olhos da cara. Simplicssima de enunciar, ainda que no de analisar, eu adenomino o fato da aglomerao, do "cheio". As cidades esto cheiasde gente. As casas cheias de inquilinos. Os hotis cheios dehspedes. Os trens, cheios de viajantes. Os cafs, cheios deconsumidores. Os passeios, cheios de transeuntes. As salas dosmdicos famosos, cheias de enfermos. Os espetculos, desde queno sejam muito extemporneos, cheios de espectadores. As praias,cheias de banhistas. O que antes no era problema, comea a s-loquase de contnuo: encontrar lugar. Nada mais. H fato mais simples, mais notrio, mais constante, navida atual? Vamos agora puncionar o corpo trivial desta observao, enos surpreender ver como dele brota um repuxo inesperado, onde a 32. branca luz do dia, deste dia, do presente, se decompe em todo o seurico cromatismo interior.Que o que vemos e ao v-lo nos surpreende tanto? Vemos amultido, como tal, possuidora dos locais e utenslios criados pelacivilizao. Apenas refletimos um pouco, nos surpreendemos de nossasurpresa. Mas qu, no o ideal? O teatro tem suas localidades paraque se ocupem; portanto, para que a sala esteja cheia. E do mesmomodo os assentos o vago ferrovirio e seus quartos o hotel. Sim; noh dvida. Mas o fato que antes nenhum destes estabelecimentos eveculos costumavam estar cheios, e agora transbordam, fica foragente afanosa de usufru-los. Embora o fato seja lgico, natural, nose pode desconhecer que antes no acontecia e agora sim; portanto,que houve uma mudana, uma inovao, a qual justifica, pelo menosno primeiro momento, nossa surpresa.Surpreender-se, estranhar, comear a entender. E o esporte e oluxo especfico do intelectual. Por isso sua atitude gremial consiste emolhar o mundo com os olhos dilatados pela estranheza. Tudo nomundo estranho e maravilhoso para umas pupilas bem abertas.Isso, maravilhar-se, a delcia vedada ao futebolista e que, aocontrrio, leva o intelectual pelo mundo em perptua embriaguez devisionrio. Seu atributo so os olhos em pasmo. Por isso, os antigosderam a Minerva a coruja, o pssaro com os olhos sempredeslumbrados. A aglomerao, ou cheio, antes no era freqente. Por que o agora? Os componentes dessas multides no surgiram do nada.Aproximadamente, o mesmo nmero de pessoas existia h quinzeanos. Depois da guerra pareceria natural que esse nmero fossemenor. Aqui topamos, entretanto, com a primeira nota importante. Osindivduos que integram estas multides preexistiam, mas no comomultido. Repartidos pelo mundo em pequenos grupos, ou solitrios,levavam uma vida, pelo visto, divergente, dissociada, distante. Cadaqual - indivduo ou pequeno grupo - ocupava o lugar, talvez o seu, nocampo, na aldeia, na vila, no bairro da grande cidade. Agora, de repente, aparecem sob a espcie de aglomerao, e 33. nossos olhos vm por toda a parte multides. Por toda a parte? No,no; precisamente nos lugares melhores, criao realmente refinadada cultura humana, reservados antes a grupos menores, em definitiva,a minorias. A multido, de repente, tornou-se visvel, e instalou-se nos lugarespreferentes da sociedade. Antes, se existia, passava inadvertida,ocupava o fundo do cenrio social; agora adiantou-se at sgambiarras, ela o personagem principal. J no h protagonistas: sh coro.O conceito de multido quantitativo e visual. Traduzamo-lo, semalter-lo, terminologia sociolgica. Ento achamos a idia de massasocial. A sociedade sempre uma unidade dinmica de dois fatores:minorias e massas. As minorias so indivduos ou grupos deindivduos especialmente qualificados. A massa o conjunto depessoas no especialmente qualificadas. No se entenda, pois, pormassas s nem principalmente "as massas operrias ". Massa "ohomem mdio". Deste modo se converte o que era meramentequantidade - a multido - numa determinao qualitativa: a qualidadecomum, o mostrengo social, o homem enquanto no se diferenciade outros homens, mas que repete em si um tipo genrico. Queganhamos com esta converso da quantidade para a qualidade? Muitosimples: por meio desta compreendemos a gnese daquela. Eevidente, at acaciano, que a formao normal de uma multidoimplica a coincidncia de desejos, idias, de modo de ser nosindivduos que a integram. Dir-se- que o que acontece com todogrupo social, por seleto que pretenda ser. Com efeito; mas h umadiferena essencial. Nos grupos que se caracterizam por no ser multido e massa, acoincidncia efetiva de seus membros consiste em algum desejo, idiaou ideal, que por si exclui o grande nmero. Para formar uma minoria,seja qual seja, preciso que antes cada qual se separe da multidopor razes essenciais, relativamente individuais. Sua coincidncia comos outros que formam a minoria , pois, secundrio, posterior a haver-se cada qual singularizado, e , portanto, em boa parte umacoincidncia em no coincidir. H casos em que esse cartersingularizador do grupo aparece a cu descoberto: os grupos inglesesque se chamam a si mesmos "no conformistas", isto , a agrupao 34. dos que concordam s em sua desconformidade a respeito damultido ilimitada. Este ingrediente de juntarem-se os menosprecisamente para separar-se dos demais vai sempre misturado naformao de toda minoria. Falando do reduzido pblico que ouvia ummsico refinado, diz graciosamente Mallarm que aquele pblicosalientava com a presena de sua escassez a ausncia multitudinria.A rigor, a massa pode definir-se, como fato psicolgico, semnecessidade de esperar que apaream os indivduos em aglomerao.Diante de uma s pessoa podemos saber se massa ou no. Massa todo aquele que no se valoriza a si mesmo - no bem ou no mal -por razes especiais, mas que se sente "como todo o mundo", e,entretanto, no se angustia, sente-se vontade ao sentir-se idnticoaos demais. Imagine-se um homem humilde que ao tentar valorizar-sepor razes especiais - ao perguntar de si para si se tem talento paraisto ou para aquilo, se sobressai em alguma ordem - adverte que nopossui nenhuma qualidade excelente. Este homem sentir-se-medocre e vulgar, e mal dotado; mas no se sentir "massa".Quando se fala de "minorias seletas", a velhacaria habitual costumatergiversar o sentido desta expresso, fingindo ignorar que o homemseleto no o petulante que se supe superior aos demais, mas o queexige mais de si que os demais, embora no consiga cumprir em suapessoa essas exigncias superiores. E indubitvel que a divisomais radical que cabe fazer na humanidade, esta em duas classesde criaturas: as que exigem muito de si e acumulam sobre si mesmasdificuldades e deveres, e as que no exigem de si nada especial, masque para elas viver ser em cada instante o que j so, sem esforode perfeio em si mesmas, bias que vo deriva.Isto me lembra que o budismo ortodoxo se compe de duasreligies distintas: uma, mais rigorosa e difcil; outra, mais frouxa etrivial; ou Mahayana - "grande veculo" ou "grande carril" - e oHinayana - "pequeno veculo", "caminho menor". O decisivo sepomos nossa vida num ou no outro veculo, a um mximo deexigncias ou a um mnimo. A diviso da sociedade em massas ou minorias excelentes no ,portanto, uma diviso em classes sociais, mas em classes de homens,e no pode coincidir com a jerarquizao em classes superiores e 35. inferiores. Claro est que nas superiores, quando chegam a s-lo eenquanto o forem de verdade h mais verossimilitude em acharhomens que adotam o "grande veculo", enquanto as inferiores estonormalmente constitudas por indivduos sem qualidade. Mas, a rigor,dentro de cada classe social h massa e minoria autntica. Comoveremos, caracterstico do tempo o predomnio, ainda nos gruposcuja tradio era seletiva, da massa e do vulgo. Assim, na vidaintelectual, que por sua prpria essncia requer e supe aqualificao, adverte-se o progressivo triunfo dos pseudo-intelectuaisinqualificados, inqualificveis e desclassificados por sua prpriacontextura. O mesmo nos grupos sobreviventes da "nobreza"masculina e feminina. A seu turno, no raro encontrar hoje entre osobreiros, que antes podiam valer como o exemplo mais puro disto quechamamos "massa", almas egregiamente disciplinadas.Ora bem: existem na sociedade operaes, atividades, funes daordem mais diversa, que so, por sua mesma natureza, especiais, e,conseqentemente, no podem ser bem executadas sem dotestambm especiais. Por exemplo: certos prazeres de carter artstico eluxuoso, ou bem as funes de governo e de juzo poltico sobre osassuntos pblicos. Antes eram exercidas estas atividades especiaispor minorias qualificadas - qualificadas, pelo menos, em pretenso -. Amassa no pretendia intervir nelas: percebia-se que se queria intervirteria congruentemente de adquirir esses dotes especiais e deixar deser massa. Conhecia seu papel numa saudvel dinmica social.Se agora retrocedermos aos fatos enunciados a princpio, eles nosaparecero inequivocamente como nncios de uma mudana deatitude na massa. Todos eles indicam que esta resolveu avanar parao primeiro plano social e ocupar os locais e usar os utenslios e gozardos prazeres antes adstritos aos poucos. evidente que, por exemplo,os locais no estavam premeditados para as multides, posto que suadimenso seja muito reduzida e o povo transborde constantementedeles, demonstrando aos olhos e com linguagem visvel o fato novo: amassa, que, sem deixar de s-lo, suplanta as minorias.Ningum, creio eu, deplorar que as pessoas gozem hoje em maiormedida e nmero que antes, j que tm para isso os apetites e osmeios. O mal que esta deciso tomada pelas massas de assumir asatividades prprias das minorias, no se manifesta, nem pode 36. manifestar-se, s na ordem dos prazeres, mas que uma maneirageral do tempo. Assim - antecipando o que logo veremos -, creio queas inovaes polticas dos mais recentes anos no significam outracoisa seno o imprio poltico das massas. A velha democracia viviatemperada por uma dose abundante de liberalismo e de entusiasmopela lei. Ao servir a estes princpios o indivduo obrigava-se asustentar em si mesmo uma disciplina difcil. Ao amparo do princpioliberal e da norma jurdica podiam atuar e viver as minorias.Democracia e Lei, convivncia legal, eram sinnimos. Hoje assistimosao triunfo de uma hiperdemocracia em que a massa atua diretamentesem lei, por meio de presses materiais, impondo suas aspiraes eseus gostos. falso interpretar as situaes novas como se a massase houvesse cansado da poltica e encarregasse a pessoas especiaisseu exerccio. Pelo contrrio. Isso era o que antes acontecia, isso eraa democracia liberal. A massa presumia que, no final das contas, comtodos os seus defeitos e vcios, as minorias dos polticos entendiamum pouco mais dos problemas pblicos que ela. Agora, por sua vez, amassa cr que tem direito a impor e dar vigor de lei a seus tpicos decaf. Eu duvido que tenha havido outras pocas da histria em que amultido chegasse a governar to diretamente como em nosso tempo.Por isso falo de hiperdemocracia.O mesmo acontece nas demais ordens, muito especialmente naintelectual. Talvez cometa eu um erro; mas o escritor, ao tomar dapena para escrever sobre um tema que estudou intensamente, devepensar que o leitor mdio, que nunca se ocupou do assunto, se o l,no com o fim de aprender algo dele, mas, pelo contrrio, parasentenciar sobre ele quando no coincide com as vulgaridades queeste leitor tem na cabea. Se os indivduos que integram a massa seacreditassem especialmente dotados, teramos no mais de um casode erro pessoal, mas no uma subverso sociolgica. O caractersticodo momento que a alma vulgar, sabendo-se vulgar, tem o denodo deafirmar o direito de vulgaridade e o impe por toda a parte. Como sediz na Amrica do Norte: ser diferente indecente. A massa atropelatudo que diferente, egrgio, individual, qualificado e seleto. Quemno seja como todo o mundo, quem no pense como todo o mundo,corre o risco de ser eliminado. E claro est que esse "todo o mundo"no "todo o mundo". "Todo o mundo" era, normalmente, a unidadecomplexa de massa e minorias discrepantes, especiais. Agora todo omundo s a massa. 37. II. A ASCENSO DO NVEL HISTRICO Este o fato formidvel do nosso tempo, descrito sem ocultar abrutalidade de sua aparncia. , ademais, de uma absoluta novidadena histria de nossa civilizao. Jamais, em todo o seudesenvolvimento, aconteceu nada semelhante. Se temos de acharalgo semelhante, teramos de pular fora de nossa histria e submergir-nos em um orbe, em um elemento vital, completamente diferente donosso; teramos de insinuar-nos no mundo antigo, e chegar a sua horade declinao. A histria do Imprio romano tambm a histria dasubverso, do imprio das massas que absorvem e anulam asminorias dirigentes e se colocam em seu lugar. Ento se produztambm o fenmeno da aglomerao, do cheio. Por isso, comoobservou muito bem Spengler, foi preciso construir, como se fazagora, edifcios enormes. A poca das massas a poca do colossal(27).Vivemos sob o brutal imprio das massas. Perfeitamente; jchamamos duas vezes "brutal" a este imprio, j pagamos nossotributo ao deus dos tpicos; agora, com o bilhete na mo, podemosalegremente ingressar no tema, ver por dentro o espetculo. Ousupunha-se que eu ia contentar-me com essa descrio, talvez exata,mas externa, que s a fachada, o frontispcio sob os quais seapresenta o fato tremendo quando olhado desde o passado? Se eudeixasse aqui este assunto e estrangulasse meu presente ensaio,ficaria o leitor pensando, muito justamente, que este fabuloso adventodas massas superfcie da histria no me inspirava outra coisaseno algumas palavras displicentes, desdenhosas, um pouco deabominao e outro pouco de repugnncia; a mim, de quem notrioque sustento uma interpretao da histria radicalmente aristocrtica(28) radical, porque eu no disse nunca que a sociedade humanadeva ser aristocrtica, mas muito mais que isso. Eu disse e continuocrendo, cada dia com mais enrgica convico, que a sociedadehumana aristocrtica sempre, queira ou no, por sua prpriaessncia, at o ponto de que sociedade na medida em que sejaaristocrtica, e deixa de s-lo na medida em que se desaristocratize.Bem entendido que falo da sociedade e no do Estado. Ningum pode 38. acreditar que diante deste fabuloso encrespamento da massa, seja oaristocrtico contentar-se com fazer um breve trejeito amaneirado,como um fidalgote de Versalhes. Versalhes - entende-se esseVersalhes dos trejeitos - no aristocracia, o seu oposto: a mortee a putrefao de uma magnfica aristocracia. Por isso, deverdadeiramente aristocrtico s restava naqueles seres a graa dignacom que sabiam receber em seu pescoo a visita da guilhotina;aceitavam-na como o tumor aceita o bisturi. No: a quem sinta amisso profunda das aristocracias, o espetculo da massa o incita eaviva como ao escultor a presena do mrmore virgem. A aristocraciasocial no se parece nada a esse grupo reduzidssimo que pretendeassumir para si ntegro o nome de "sociedade", que se chama a simesmo "a sociedade" e que vive simplesmente de convidar-se ou deno convidar-se. Como tudo no mundo tem sua virtude e sua misso,tambm tem as suas dentro do vasto mundo este pequeno "mundoelegante", mas uma misso muito subalterna e incomparvel com afaina herclea das autnticas aristocracias. Eu no teria inconvenienteem falar sobre o sentido que possui essa vida elegante, em aparnciato sem sentido; mas nosso tema agora outro de maiorespropores. Certamente que essa mesma "sociedade distinta" est deacordo com o tempo. Muito me fez meditar certa damazinha em flor,toda juventude e atualidade, estrela de primeira grandeza no zodacoda elegncia madrilenha, porque me disse: "Eu no tolero um baile aoqual tenham sido convidadas menos de oitocentas pessoas". Atravsdesta frase vi que o estilo das massas triunfa hoje sobre toda a reada vida e se impe ainda naqueles ltimos rinces que pareciamreservados aos happy few. Repilo, pois, igualmente, toda interpretao de nosso tempo queno descubra a significao positiva oculta sob o atual imprio dasmassas e das que o aceitam, beatamente, sem estremecer deespanto. Todo destino dramtico e trgico em sua profundadimenso. Quem no tenha sentido na mo palpitar o perigo dotempo, no chegou entranha do destino, no fez mais senoacariciar sua mrbida face. No nosso, o ingrediente terrvel postopela atropelante e violenta sublevao moral das massas, imponente,indomvel e equvoca como todo destino. Para onde nos leva? ummal absoluto, ou um bem possvel? A est, colossal, instalada sobrenosso tempo como um gigante, csmico sinal de interrogao, o qualtem sempre uma forma equvoca, com algo, efetivamente, de 39. guilhotina ou de forca mas tambm com algo que quisera ser um arcotriunfal! O fato de que necessitamos submeter a anatomia pode formular-sesob estas duas rubricas: primeira, as massas exercitam hoje umrepertrio vital que coincide, em grande parte, com o que antesparecia reservado exclusivamente s minorias; segunda, ao mesmotempo as massas tornaram-se indceis diante das minorias; no lhesobedecem, no as seguem, no as respeitam, mas, pelo contrrio, aspuseram de lado e as suplantam. Analisemos a primeira rubrica. Quero dizer com ela que as massasgozam dos prazeres e usam os utenslios inventados pelos gruposseletos e que antes s estes usufruam. Sentem apetites enecessidades que antes se qualificavam de refinamentos, porqueeram patrimnios de poucos. Um exemplo trivial: em 1820 no haviaem Paris dez quartos de banho em casas particulares; vejam-se asMemrias da comtesse de Boigne. Mais ainda: as massas conheceme empregam hoje, com relativa suficincia, muitas das tcnicas queantes s os indivduos especializados manejavam.E no apenas as tcnicas materiais, mas, o que mais importante,as tcnicas jurdicas e sociais. No sculo XVIII, certas minoriasdescobriram que todo indivduo humano, pelo mero fato de nascer, esem necessidade de qualificao alguma, possua certos direitospolticos fundamentais, os chamados direitos do homem e do cidado,e que, a rigor, estes direitos comuns a todos so os nicos existentes.Todo outro direito imposto a dotes especiais ficava condenado comoprivilgio. Isto foi, primeiro, um puro teorema e idia de uns poucos;depois, esses poucos comearam a usar praticamente dessa idia, aimp-la e reclam-la: as minorias melhores. No obstante, durantetodo o sculo XIX a massa, que se ia entusiasmando com a idiadesses direitos como com um ideal, no os sentia em si, no osexercitava nem fazia valer seno de fato, sob as legislaesdemocrticas, continuava vivendo, continuava sentindo-se a si mesmacomo no antigo regime. O "povo" - segundo ento era chamado -, o"povo" sabia j que era soberano; mas no acreditava nisso. Hojeaquele ideal converteu-se numa realidade, no j nas legislaes, queso esquemas externos da vida pblica, mas no corao de todoindivduo, quaisquer que sejam as suas idias, inclusive quando as 40. suas idias so reacionrias; quer dizer, inclusive quando esmaga etritura as instituies onde aqueles direitos se sancionam. A meu juzo,quem no entende esta curiosa situao das massas no podecompreender nada do que hoje comea a acontecer no mundo. Asoberania do indivduo no qualificado, do indivduo humano genricoe como tal, passou, de idia ou ideal jurdico que era, a ser um estadopsicolgico constitutivo do homem mdio. E note-se bem: quando algoque foi ideal se faz ingrediente da realidade, inexoravelmente deixa deser ideal. O prestgio e a magia autorizante, que so atributos do ideal,que so seu efeito sobre o homem, se volatilizam. Os direitosniveladores da generosa inspirao democrtica converteram-se, deaspiraes de ideais, em apetites de supostos inconscientes. Ora bem: o sentido daqueles direitos no era outro seno tirar asalmas humanas de sua interna servido e proclamar dentro delascerta conscincia de senhorio e dignidade. No era isto que se queria?Que o homem mdio se sentisse amo, dono, senhor de si mesmo e desua vida? J est conseguido. Por que se queixam os liberais, osdemocratas, os progressistas de h 30 anos? Ou que, como osmeninos querem uma coisa, mas no suas conseqncias? Quer-seque o homem mdio seja senhor. Ento no estranhe que atue por si,que reclame todos os prazeres, que imponha decidido sua vontade,que se negue a toda servido, que no continue dcil, que cuide desua pessoa e seus cios, que componha sua indumentria: so algunsdos atributos perenes que acompanham a conscincia de senhorio.Hoje os achamos residindo no homem mdio, na massa.Julgamos pois, que a vida do homem mdio est agora constitudapelo repertrio vital que antes caracterizava s as minoriasculminantes. Ora bem: o homem mdio representa a rea sobre quese move a histria de cada poca; na histria o que o nvel do marna geografia. Se, pois, o nvel mdio se acha hoje onde antes stocavam as aristocracias, quer dizer-se lisa e lhanamente que o nvelda histria ascendeu de repente - depois de largas e subterrneaspreparaes, mas em sua manifestao, de repente -, de um salto,numa gerao. A vida humana, em totalidade, ascendeu. O soldadodo dia, diramos, tem muito de capito; o exrcito humano se compej de capites. Basta ver a energia, a resoluo, o desembarao comque qualquer indivduo luta hoje pela existncia, agarra o prazer quepassa, impe sua deciso. 41. Todo o bem, todo o mal do presente e do imediato porvir tem nesteascenso geral do nvel histrico sua causa e sua raiz.Mas agora nos ocorre uma advertncia impremeditada. Isso, que onvel mdio da vida seja o das antigas minorias, um fato novo nahistria; mas era o fato nativo, constitucional, da Amrica. Pense oleitor, para ver clara minha inteno, na conscincia de igualdadejurdica. Esse estado psicolgico de sentir-se amo e senhor de si eigual a qualquer outro indivduo, que na Europa s os grupospreeminentes conseguiam adquirir, o que desde o sculo XVIII,praticamente desde sempre, acontecia na Amrica. E novacoincidncia, ainda mais curiosa! Ao aparecer na Europa esse estadopsicolgico do homem mdio, ao subir o nvel de sua existnciaintegral, o tom e maneiras da vida europia em todas as ordensadquire de repente uma fisionomia que fez muitos dizer: "A Europaest se americanizando". Os que isto diziam no davam ao fenmenoimportncia maior; acreditavam que se tratava de uma leve mudananos costumes, de uma moda, e, desorientados pelo parecido externo,o atribuam a no se sabe que influxo da Amrica na Europa. Comisso, a meu juzo, banalizou-se a questo, que muito mais sutil esurpreendente e profunda.A galanteria tenta agora subornar-me para que eu diga aos homensde Ultramar que, com efeito, a Europa se americanizou e que isto devido a um influxo da Amrica na Europa. Mas no: a verdade entraagora em coliso com a galanteria, e deve triunfar. A Europa no seamericanizou. No recebeu ainda influxo grande da Amrica. Tantoum como outro, eventualmente, iniciam-se agora mesmo; mas no seproduziram no prximo passado, de que o presente broto. H aquium cmulo desesperante de idias falsas que nos estorvam a visotanto aos americanos como aos europeus. O triunfo das massas e aconseguinte magnfica ascenso de nvel vital aconteceu na Europapor razes internas, depois de dois sculos de educao progressistadas multides e de um paralelo enriquecimento econmico dasociedade. Mas isso que o resultado coincide com o trao maisdecisivo da existncia americana; e por isso, porque coincide asituao moral do homem mdio europeu com a do americano,aconteceu que pela primeira vez o europeu entende a vida americana,que antes lhe era um enigma e um mistrio. No se trata, pois, de um 42. influxo, que seria um pouco estranho, que seria um refluxo, mas doque menos se suspeita ainda: trata-se de uma nivelao. Desdesempre se entrevia obscuramente pelos europeus que o nvel mdioda vida era mais alto na Amrica que no velho continente. A intuio,pouco analtica, mas evidente deste fato, deu origem idia, sempreaceita, nunca posta em dvida, de que a Amrica era o porvir.Compreender-se- que idia to ampla e to arraigada no podia virdo vento, como dizem que as orqudeas se criam sem razes no ar. Ofundamento era aquela entreviso de um nvel mais elevado na vidamdia de Ultramar, que contrastava com o nvel inferior das minoriasmelhores da Amrica comparadas com as europias. Mas a histria,como a agricultura, nutre-se dos vales e no dos cumes, da altitudemdia social e no das eminncias.Vivemos em tempo de nivelaes: nivelam-se as fortunas, nivela-sea cultura entre as diferentes classes sociais, nivelam-se os sexos. Poisbem: tambm se nivelam os continentes. E como o europeu se achavavitalmente mais baixo, nesta nivelao no fez seno ganhar.Portanto, olhada deste lado, a subverso das massas significa umfabuloso aumento de vitalidade e possibilidades; tudo ao contrrio,pois, do que ouvimos to amide sobre a decadncia da Europa.Frase confusa e tosca, onde no se sabe bem de que se fala, se dosEstados europeus, da cultura europia ou do que est sob tudo isso eimporta infinitamente mais que tudo isto, a saber: da vitalidadeeuropia. Dos Estados e da cultura europia diremos algum vocbulomais adiante - e talvez a frase supradita valha para eles -; mas quanto vitalidade, convm desde logo fazer constar que se trata de um errocrasso. Dita de outro modo, talvez minha afirmao parea maisconvincente e menos inverossmil; digo, pois, que hoje um italianomdio, um espanhol mdio, um alemo mdio, se diferenciam menosem tom vital de um ianque ou de um argentino que h trinta anos. Eeste um dado que os americanos no devem esquecer.III. A ALTURA DOS TEMPOS O imprio das massas apresenta, pois, um aspecto favorvelenquanto significa uma subida de todo o nvel histrico, e revela que avida mdia se move hoje em altura superior que ontem pisava. O 43. que nos faz compreender que a vida pode ter altitudes diferentes, eque uma frase cheia de sentido a que sem sentido si repetir-sequando se fala da altura dos tempos. Convm que nos detenhamosneste ponto, porque ele nos proporciona a maneira de fixar um doscaracteres mais surpreendentes de nossa poca.Diz-se, por exemplo, que esta ou a outra coisa no prpria daaltura dos tempos. Com efeito: no o tempo abstrato da cronologia,que todo ele cho, mas o tempo vital, o que cada gerao chama"nosso tempo", tem sempre certa altitude, eleva-se ontem sobre hoje,ou se mantm a par, ou cai por baixo. A imagem de cair, embainhadano vocbulo decadncia, procede desta intuio. Do mesmo modocada qual sente, com maior ou menor claridade, a relao em que suaprpria vida se encontra com a altura do tempo onde transcorre. Hquem se sinta nos modos da existncia atual como um nufrago queno consegue sair a flutuar. A velocidade do tempo com que hojemarcham as coisas, o mpeto de energia com que se faz tudo,angustiam o homem de tmpera arcaica, e esta angstia mede odesnvel entre a altura do seu pulso e a altura da poca. Por outraparte, quem vive com plenitude e a gosto as formas do presente, temconscincia da relao entre a altura de nosso tempo e a altura dasdiversas idades pretritas. Qual essa relao?Fora errneo supor que sempre o homem de uma poca sente aspassadas, simplesmente porque passadas, como mais baixas de nvelque a sua. Bastaria recordar que, ao parecer de Jorge Manrique,Qualquer tempo passadofoi melhor.Mas isso tampouco verdade. Nem todas as idades se sentiraminferiores a algumas do passado, nem todas se supuseram superioresa quantas foram e recordam. Cada idade histrica manifesta umasensao diferente ante esse estranho fenmeno da altura vital, e mesurpreende que no tenham reparado nunca pensadores ehistorigrafos em fato to evidente e substancioso. A impresso que Jorge Manrique declara tem sido certamente amais geral, pelo menos se se toma grosso modo. maior parte daspocas no lhes pareceu seu tempo mais elevado que outras idadesantigas. Ao contrrio, o mais habitual tem sido que os homenssuponham em um vago pretrito tempos melhores, de existncia mais 44. plenria: a "idade de ouro", dizemos os educados por Grcia e Roma;a Alcheringa, dizem os selvagens australianos. Isso revela que esseshomens sentiam o pulso de sua prpria vida mais ou menos falto deplenitude, decado, incapaz de encher por completo o canal das veias.Por esta razo respeitavam o passado, os tempos "clssicos ", cujaexistncia se lhes apresentava como algo mais amplo, mais rico, maisperfeito e difcil que a vida de seu tempo. Ao olhar para trs e imaginaresses sculos mais valiosos, parecia-lhes no domin-los, mas, aocontrrio, ficar debaixo deles, como um grau de temperatura, setivesse conscincia, sentiria que no contm em si o grau superior;mas antes, que h neste mais calorias que nele mesmo. Desde centoe cinqenta anos depois de Cristo esta impresso de encolhimentovital, de diminuio, de decair e perder pulso, cresceprogressivamente no Imprio Romano. J Horcio havia cantado:"Nossos pais, piores que nossos avs, nos engendraram ainda maisdepravados, e ns daremos uma prognie todavia mais incapaz".(Odes, Livro III, 6.)Aetas parentum peior avis tulitnos nequiores, mox daturosprogeniem vitiosorem. Dois sculos mais tarde no havia em todo o Imprio bastantesitlicos medianamente valorosos com os quais preencher as praas decenturies, e foi necessrio alugar para este ofcio dlmatas, e depois,brbaros do Danbio e do Reno. Enquanto isso, as mulherestornaram-se estreis e a