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CONSTITUIÇÃO E CONCRETIZAÇÃO DA DEMOCRACIA: DIREITOS DAS COLETIVIDADES E DEVIRES MINORITÁRIOS. Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega 1 Dimas Pereira Duarte Junior 2 INTRODUCAO O mundo contemporâneo passa por significativas transformações econômicas, sociais, culturais e estruturais, sobretudo nas últimas décadas. Isso se revela no Brasil notadamente à partir de práticas decorrentes de implantação de políticas governamentais de incentivos econômicos reforçando o modelo desenvolvimentista neoliberal. Nessa realidade, o direito se defronta com o surgimento de coletividades e devires minoritários, em que o homem sucumbe à dominação do homem ou dos homens. A 1 Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, Professora na Universidade de Ribeirão Preto, Professora Titular na Universidade Federal de Goiás, Professora na PUC GO. Pesquisadora do CNPq e em nível de Pósdoutorado da Universidade de Coimbra. 2 Doutor em Ciências Sociais: Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP. Professor Adjunto de Direito Internacional e pesquisador do Programa de Mestrado em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento da Universidade Católica de Goiás – UCG.

Constituicao e concretizacao da democracia

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CONSTITUIÇÃO E CONCRETIZAÇÃO DA DEMOCRACIA: DIREITOS

DAS COLETIVIDADES E DEVIRES MINORITÁRIOS.

Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega1

Dimas Pereira Duarte Junior2

INTRODUCAO

O mundo contemporâneo passa por significativas transformações econômicas,

sociais, culturais e estruturais, sobretudo nas últimas décadas. Isso se revela no Brasil

notadamente à partir de práticas decorrentes de implantação de políticas governamentais

de incentivos econômicos reforçando o modelo desenvolvimentista neoliberal. Nessa

realidade, o direito se defronta com o surgimento de coletividades e devires

minoritários, em que o homem sucumbe à dominação do homem ou dos homens. A

Constituição não faz mais que promover a democracia formal e garantir aquele modelo

hegemônico.

Os nichos produtivos influenciam diretamente a dinâmica das regiões, cidades e

coletividades com as quais se inter-relaciona e gera condições propícias para acelerar o

desenvolvimento econômico sem, contudo, se atentar para a concentração de renda e

para a reprodução de situações de exclusão-inclusão que acaba por desencadear.

Fluxos migratórios são deflagrados, marcados pela busca frenética por emprego

e utilidade econômica típicos do modelo de sociedade consumista e utilitarista

contemporânea. Crescimentos urbanos desordenados são desencadeados, revelando a

1 Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, Professora na Universidade de Ribeirão Preto, Professora Titular na Universidade Federal de Goiás, Professora na PUC GO. Pesquisadora do CNPq e em nível de Pósdoutorado da Universidade de Coimbra.2 Doutor em Ciências Sociais: Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP. Professor Adjunto de Direito Internacional e pesquisador do Programa de Mestrado em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento da Universidade Católica de Goiás – UCG.

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fragilidade e os déficits das políticas sociais que tangenciam com esses nichos

produtivos e com as novas coletividades que se fundam, quer seja pelo vínculo do

pertencimento, da identidade cultural, econômica, social, étnica, de gênero ou

ideológica.

A hipersegmentação da sociedade é característica do mundo pós-moderno,

apropriado e bastante utilizado pelos sistemas produtivos contemporâneos.

Por seu turno, certo também é que a hipersegmentação social traduz muito mais

nuances ensejadoras de uma dominação brutal do que propriamente de emancipação,

vez que, conforme afirma Deleuze e Guattari (1997), não foram capazes de promover

senão o alisamento do espaço social e uma rigorosa hierarquização social, linhas de fuga

que se revertem freqüentemente em linhas de destruição, tendendo assim a alimentar e

retroalimentar cada vez mais novas formas de violência, dominação e domesticação do

homem pelo homem, traduzidas em pobreza, miséria e demais formas de subjugo a que

o indivíduo é submetido em face de um mundo desterritorializado, repleto de devires

minoritários. Isso tudo legitimado por um modelo formalmente democrático que

camufla a violação dos direitos humanos pensados na perspectiva dessa mesma

proposta.

Nessa diretiva, pretende-se tecer considerações de ordem teórica para contribuir

para a compreensão do processo gerador dos “devires minoritários” que permeiam essa

realidade e representam um contingente cada vez mais significativo e expressivo da

sociedade brasileira.

Mas se os “devires minoritários” se apresentam como uma realidade tipicamente

pós-moderna a partir das perspectivas sociológica e antropológica, eles também

enunciam uma realidade tipicamente pós-moderna na perspectiva da ciência juridica,

alimentados por noções de democracia formal e de legitimidade constitucional. Novos

sistemas, regimes, códigos são criados tanto interna como externamente sob a

justificativa de que necessário se faz a tutela e a proteção dessas coletividades, quando

na verdade acabam por representar muito mais a intenção de domesticação do homem

indomado e a pacificação de relações conflituosas por sua própria natureza, tal qual se

apresentam as relações de produção no sistema capitalista.

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Assim, a análise que ora se propõe não se restringe à compreensão do modo de

funcionamento do aparato jurídico voltado a tutelar as novas coletividades produzidas

por um sistema de produção gerador de riqueza e pobreza, desenvolvimento econômico

e exclusão social, emancipação e aprisionamento sociais, mas à sua complexidade

democrática, por se apresentar esta como uma realidade velada e negligenciada

politicamente pelas forças produtivas e também por grande parte da comunidade

científica voltada à pesquisa dos fenômenos jurídicos e seus impactos nas novas

estruturas sociais contemporâneas. É mister refletir sobre a concretização democrática

diante dos devires minoritários, das novas coletividades submissas, subjugadas.

1. O que se falar sobre democracia, hoje.

Democracia, tem-se dito, é uma das formas de governo em que o poder não está

em mãos de um ou de alguns apenas, mas de todos ou da maior parte, contrapondo-se às

formas autocráticas como a monarquia e a oligarquia.(BOBBIO,1996:7) O que se pode

denominar democracia é preocupação imemorial de tal sorte que o debate

contemporâneo sobre o tema e sua importância passa pelas origens históricas. As

grandes tradições do pensamento político clássico contribuem na compreensão dos

modelos democráticos e na elaboração do conceito. Perante os devires minoritários esse

conceito se complexifica.

Segundo BOBBIO (2000: 319) três grandes correntes de pensamento confluem

para a formação da teoria democrática contemporânea . A primeira delas, a teoria

clássica ou aristotélica, das três formas de governo. Tem-se democracia como governo

do povo, de todos os cidadãos. É o governo daqueles que gozam dos direitos de

cidadania. Distingue-se da monarquia, enquanto governo de um só e da aristocracia

como governo de poucos. A segunda tradição do pensamento político é a teoria

medieval, de origem romana. Fundada na soberania popular, na base da qual contrapõe-

se uma concepção ascendente a uma outra descendente, da soberania, conforme o poder

supremo derive do povo e se torne representativo ou derive do príncipe e se transmita

por delegação, do superior para o inferior. A terceira corrente, fundada no pensamento

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de Maquiavel, originária do Estado na sua concepção moderna e organizado sob a forma

de grandes monarquias. Segundo essa corrente as formas históricas de governo são

essencialmente duas- monarquia e república. A democracia é uma forma de república. O

governo popular é denominado república. A outra forma é a aristocracia.

O pensamento medieval traz a gênese mais longínqua das bases do exercício e

da efetivação da democracia em sua atual noção, com a concepção da soberania popular

e com a possibilidade de criação do direito no âmbito da sociedade, como tradição,

funcionalmente como reserva de poder social. É na teoria medievo que surge o

pensamento de que a fonte do poder soberano é sempre o povo, ressalvadas as

diferenças específicas do pensamento contemporâneo.

Na noção de soberania popular estabelece-se a possibilidade de distinção entre a

titularidade e o exercício do poder. Funda-se o princípio democrático do Estado. Na

reserva de poder social enquanto legitimidade popular de criação do direito pela

tradição potencializa-se o controle das decisões. A plenificação da democracia é

assegurada pela idéia de que, o povo, ao transferir para outros o poder originário de

fazer as leis, conservara o poder de criar o direito através da tradição. A titularidade de

poder conferida aos representantes legitima a ação política, mas a possibilidade

substancial de pressupor o direito conserva-se com o povo. Essa reserva de poderes

legitima a participação política do cidadão nas decisões e no controle delas.

Dentro dessa concepção distinguem-se a noção de democracia formal e

substancial. O evoluir conceitual e, a partir das tentativas de doutrinas originariamente

contrárias à sua própria noção dela se aproximarem chega-se a uma concepção formal

de democracia. Nessa orientação, absolutamente abstrata, é ela alheia a qualquer

ideologia, é possível em qualquer contexto político e apresenta-se como um método ou

um conjunto de regras de procedimento para a constituição de governo e para a

formação das decisões políticas. Entenda-se aqui ideologia no significado de espécie

diversamente definida dos sistemas de crenças políticas, compreendendo o corpo de

idéias e de valores respeitantes à ordem pública com a função de orientar os

comportamentos políticos coletivos(STOPPINO, 1990:585).

Nesse sentido formal, a democracia é compatível com doutrinas de conteúdos

ideológicos contrapostos e com teorias com conteúdos cujas motivações originais

confrontam o pensamento democrático em sua essência. Do ponto de vista formal, a

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democracia tem sido considerada muito mais no seu aspecto comportamental do que

substancial. Assim, na teoria política contemporânea, sobretudo nos países de tradição

democrático liberal, a noção de democracia é apresentada como um rol de

procedimentos universais. A democracia é um método de legitimação, à medida que

conduz a uma decisão, sem questionar a qualidade dela. Fomenta, portanto, o

surgimento dos devires minoritários e se enquadra perfeitamente no sistema capitalista

excludente, hegemônico no mundo contemporâneo.

Esse procedimento desenvolve-se mediante as seguintes posturas elencadas por

BOBBIO(1990:327) Dentre essas arrolam-se: órgão político máximo, detentor da

função legislativa deve ser composto de membros direta ou indiretamente eleitos pelo

povo; eleições de primeiro ou segundo graus. Junto ao órgão máximo legislativo deve

haver outras instituições com dirigentes eleitos, como os órgãos da administração local

ou o chefe de estado. Todos os cidadãos que tenham atingido a maioridade, sem

qualquer distinção, seja ela de raça, de religião, de sexo devem ser eleitores.Todos os

eleitores devem ter voto igual. Os eleitores devem ser livres para expressar opinião

livremente formada. Essa possibilidade se dá em uma disputa livre de partidos políticos

que lutam pela formação de uma representação nacional. Os eleitores devem ter reais

possibilidades de escolhas alternativas. O princípio da maioria numérica vale tanto para

as decisões dos representantes quanto para as decisões do órgão político supremo.

Podem ser estabelecidas formas de maioria segundo critérios de oportunidades não

definidos definitivamente. Nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos

das minorias, de um modo especial o direito de tornar-se maioria, em paridade de

condições. O órgão do governo deve gozar de confiança do parlamento ou do chefe do

poder executivo, por sua vez eleito pelo povo.

Essas regras devem ser respeitadas, em sua maioria para um regime ser

considerado democrático. Afirma BOBBIO(1990:327) que certamente nenhum regime

jurídico histórico jamais as observou todas, em suas prescrições, sendo correto afirmar

que há regimes mais ou menos democráticos. Há que se considerar ainda a possibilidade

de criação de modos de aplicação dos enunciados. De fundamental interesse é que haja

a observação dessas regras de forma a conduzir à possibilidade de decisão política.

Isso não garante a participação democrática e o efetivo respeito às minorias. A

condução ao momento decisório permite a manipulação do processo democrático por

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interesses ilegítimos. Entre esses, via de regra prevalecem os interesses capitalísticos ou

de mercado. As regras estabelecem como se deve chegar a uma decisão política e não

pressupõe qualquer interferência no que decidir. Do ponto de vista substancial, da

qualidade das decisões, o método democrático é neutro. Só interfere para excluir

decisões que de qualquer modo contribuíram para invalidar as próprias regras.

Afirma-se por isso, que o contexto de uma democracia formal é aquele que há

um parlamento, pluralidade de partidos políticos, liberdade de imprensa e de opinião

pública, mas falta periodicidade de governo. É deficiente o sistema de garantias

individuais, gerando devires minoritários e coletividades desrespeitadas. O executivo

concentra poder. O caráter dialógico do sistema se não é excluído também não é

potencializado. A gestão pública na conformidade dos interesses populares, entretanto, é

fator de importância para a legitimação do poder. O repúdio do cidadão é evitado, vez

que considerado potencial propulsor do processo revolucionário. Assim há um

sufocamento das minorias.

A democracia formal como método, de acordo como formulado, permite o

desvirtuamento funcional do Estado em favor da hegemonia de alguns. Em virtude disso

tem-se afirmado a necessidade de participação cidadã no conteúdo das decisões. O

mandato eletivo não legitima as decisões políticas tomadas no exercício do cargo

eletivo. Para MOREIRA NETO (1992:37) a concordância popular no preenchimento

dos cargos eletivos é condição necessária mas não suficiente para realizar-se a

democracia. Essa só se torna plena com a decisão democrática e com o controle

democrático. A decisão política , tomada pelos escolhidos, deve ser também a expressão

da vontade popular. “...é mais importante que a decisão seja democraticamente tomada

do que o órgão decisório haja sido democraticamente provido.” As tendências

contemporâneas do direito público hoje, afastam os ditames da democracia formal como

legitimadores do governo democrático.

A democracia substancial, distinguindo-se da formal, é aquela que faz referência

a conteúdos preconizados pelos ideais da tradição do pensamento democrático,

sobrelevando-se o igualitarismo. Indica um conjunto de fins em que se sobressaem o da

igualdade jurídica, social e econômica, não importando os meios para se alcançá-

los(BOBBIO,1990:328-329). Em confronto com a idéia de governo do povo a

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democracia substancial caracteriza-se por ser um governo para o povo. Nesse sentido,

democracia formal e substancial tem significados distintos.

Adverte BOBBIO(1990:329) que ao longo da história da teoria democrática se

entrecruzam motivos de métodos e motivos ideais, fundidos na concepção maior em que

a democracia de valor enquanto ideal igualitário se realiza somente na formação da

vontade geral- democracia como método. Ambos, portanto, historicamente legítimos. A

democracia que se busca, carece de ideais e de instrumentos para sua concretização. A

democracia deve ser simultaneamente formal e substancialmente avançada.

Dentro de uma concepção formal da democracia é possível a distinção entre

espécies de regimes democráticos. Vários são os critérios adotados pelos diferentes

autores na tentativa de classificação desses regimes. O que interessa particularmente ao

desenvolver do pensamento expresso no decorrer desse trabalho é o apresentado por

DAHL em A preface to democratic theorie (1956), Mais do que modelos históricos

apresenta o autor modelos ideais de democracia, em que se fundem método e valor,

forma e substância. Pode-se resumir em três distinções. A democracia madisoniana que

se caracteriza por mecanismos de freio do poder. Coincide com o ideal constitucional do

Estado limitado pelo direito ou pelo governo da lei contra o governo dos homens.

Historicamente a tirania manifesta-se nesse modelo.

O segundo modelo consiste na democracia populista que tem por princípio

fundamental a soberania da maioria.

Por fim, a democracia poliárquica em que, as condições da ordem democrática

se fundam em pré-requisitos sociais antes de se consistir em expedientes de caráter

constitucional. Baseiam-se no funcionamento de certas regras fundamentais que

permitem uma participação cidadã efetiva. Essas regras fundamentais permitem e

garantem, entre outros, a livre expressão do voto, a prevalência das decisões mais

votadas, o controle das decisões.

A democracia poliárquica significa um avanço no contexto de democracias

tradicionais sobretudo porque ultrapassa os limites dos direitos e garantias

constitucionalmente assegurados e estabelece fundamentos pré-constitucionais para a

participação popular na tomada e no controle das decisões públicas.

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O contexto das democracias tradicionais apresenta normas de organização

fundamental do Estado que afirmam a representação popular, mas garantem a

hegemonia de grupos e a dominação das coletividades. Os poderes pretendem-se

autônomos e independentes. Existe respeito aos interesses individuais hegemônicos

consagrados constitucionalmente, estabelecidos como fundamento do sistema, mas não

há direitos para todos. Garantias do administrado (hegemônico) são asseguradas e não

podem deixar de ser considerados quando da elaboração de atos normativos. Há

exagerado apego a aspectos formais de participação, que poderiam ser superados na

direção de uma garantia mais substancial e efetiva.

A noção de democracia participativa é mais que isso e deve conduzir ao

entendimento de que a soberania é atribuída ao povo não apenas quoad titulum mas

quoad exercitium.(CRISAFULLI, 1958,v.2:139).

O exercício da democracia,acredita-se, se dá pela consolidação de valores

sociais e por meio de instrumentos formais, para todos.

A questão democrática para todos toca em outras reflexões sobre legitimidade e

legalidade, porque a lei é o mais forte instrumento de dominação porque pressupõe-se

sua legitimidade

2. Legitimidade democrática e devires minoritários

A legalidade do direito encerra em si a questão da constitucionalidade e da

coerência no sistema, para muitos autores. Afirma-se, de maneira indevidamente

reducionista, que a legitimidade se subsume na legalidade. Fundamenta-se com o

discurso da democracia formal, atribuindo, exclusivamente como critério de aferição da

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legitimidade (via legalidade) a forma de produção do direito. Sobretudo se há legalidade

constitucional. GRAU (2000:58) afirma que jamais se construiu uma noção de

legitimidade democrática afastada pela concepção de legalidade democrática, em razão

da construção histórica desses conceitos.

Na França monárquica, no período da Restauração, realistas defendiam a

monarquia como forma legítima de governo e liberais propunham a monarquia

constitucional como forma legal, consolidando uma cisão entre o legal e o legítimo e

afastando o interesse na discussão sobre a legitimidade dos atos públicos.

O conceito de legitimidade, nas democracias contemporâneas, evolui para a

acepção de racionalidade e adesão social. Há legitimidade racional quando o ato

sustenta-se em uma ideologia coerente que explica a detenção do poder pelo seu sujeito.

“Para esse tipo de legitimidade, o poder retira sua validade de normas que regulam sua

aquisição, exercício e limitações. A fonte do poder explica-se pela razão.”(BARACHO,

RDP, 70:59).

A legitimidade, no contexto democrático avançado, é também vista como um

atributo do Estado, que consiste na verificação do consenso social. “É por esta razão que

todo poder busca alcançar consenso, de maneira que seja reconhecido como legítimo,

transformando a obediência em adesão.”(BOBBIO,1990)

A legalidade tem-se considerado como atributo e requisito de poder. O poder é

legal ou age legalmente ou se lhe reconhece legalidade, quando é exercido no âmbito ou

de conformidade com as determinações da lei. Legalidade e legitimidade não se

contrapõem, tampouco se pode afirmar que o fato de ser legal o ato pressupõe a sua

legitimidade. O efetivo exercício da democracia exige além da legalidade dos atos

praticados no contexto, a legitimidade deles. E aí, mais do que nos contextos de

democracia formal, em que a legitimidade subsumida na legalidade, se constrói pela

formação de governo e possibilidade de decisão segundo um direito posto, ela é

considerada à luz das possibilidades de desenvolvimento das forças materiais produtivas

em determinada sociedade. Isso só pode ser dimensionado quando há efetiva

participação cidadã na administração do poder, em qualquer de suas esferas. Também

há de ser aferida pelo nível de exclusão e produção de devires minoritários originários.

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O direito que permite o pleno desenvolvimento das forças materiais produtivas,

segundo GRAU, é o direito legítimo. “Os padrões culturais e as aspirações que estão em

jogo , caracterizantes ou não caracterizantes da legitimidade de um direito, são os que

afirmam ou negam o estado de coexistência na sociedade ao qual é aplicado.” (2000:62)

A legitimidade do direito resulta da autoridade somada ao poder da qual emana.

A autoridade se constrói sobre a base do poder, dotado de legitimidade. Dessa forma, os

atos do poder público legítimos não são apenas aqueles dotados de legalidade, porque

originários de um poder legalmente constituído, mas porque tem a adesão da sociedade

conferindo-lhes autoridade. Autoridade enquanto captação de padrões histórico-

culturais, não apenas a regra da maioria do discurso formalista. A regra da não exclusão

e da pluralidade.

BARROS considera que a autoridade é “...a tradução em termos operacionais,

do conceito de poder legitimamente constituído e consentido ( e o conceito de

legitimidade não é senão a expressão de consensualidade quanto às regras de

convivência social em situações de conflito)”(1992:2).

O contexto democrático avançado requer, além da legalidade dos atos públicos,

a legitimidade deles por meio da não exclusão das coletividades, da participação cidadã

revelando as aspirações sociais e os padrões histórico-culturais.

O avanço nos contextos democráticos requer, além do aprimoramento das

noções de igualdade jurídica, social e econômica, o aprimoramento do método

democrático com a implementação de instrumentos de participação social na tomada e

controle das decisões políticas.

Nos ideais democráticos contemporâneos a noção de soberania popular

estabelece a possibilidade de distinção entre a titularidade e o exercício do poder. Na

reserva de poder social enquanto legitimidade popular de criação do direito pela

tradição potencializa-se o controle das decisões.

No contexto democrático politicamente avançado o direito de participação

ultrapassa o caráter de garantia formal para converter-se na essência do sistema. Existe

um comprometimento com um projeto político de desenvolvimento humano. Os

indivíduos são protegidos contra qualquer abuso ou hegemonia. As decisões políticas,

em regra, são coletivas e pressupõem amplo debate público e garantia das minorias. O

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governo é permanentemente controlado. Normas fundamentais não podem ser violadas.

A liberdade de expressão é afirmada.

Indivíduos têm o poder de influência nas decisões, quer através da ampliação

dos direitos-resistência, quer exprimindo seu consenso através de organizações

independentes. O caráter dirigente dos textos constitucionais estabelece mecanismos de

proteção de direitos. As decisões governamentais são fundamentadas, permitindo o

cotejo dos motivos da emanação do ato com situações fáticas efetivas.

Da perspectiva substancial a participação política ocorre em níveis crescentes de

intensidade, iniciando-se com mera informação passando à influência, à co-elaboração e

à co-decisão. De um ponto de vista do objetivo a ser atingido com a participação

política, ela se dá conforme o poder no Estado. Assim será destinação, atribuição,

exercício, distribuição, contenção e detenção do poder. De acordo com LOEWESTEIN

de um lado os detentores do poder necessitam da devida autoridade para levar a cabo as

tarefas estatais, por outra parte é indispensável que sob essa autoridade se garanta a

liberdade dos destinatários do poder. Evidentemente acrescentamos, respeitadas as

diferenças.

3. As violações da produção capitalista e os devires minoritários.

Boaventura de Sousa Santos (2006) afirma que vivemos em sociedades a braços

com problemas modernos, mais precisamente os decorrentes da não realização prática

dos valores da liberdade, da igualdade e da solidariedade, para os quais não dispomos de

soluções modernas. No caso do hemisfério sul, mais precisamente a América Latina e a

África, esses problemas, em larga escala, seriam remanescentes das formas de violência,

primeiramente, impostas pelo colonialismo e, posteriormente, pelo capitalismo, pois o

fim do colonialismo, enquanto relação política, não foi capaz de romper as amarras que

ainda sustentam e amparam formas cruéis de aprisionamento e dominação do homem

pelo homem e que encontram largo espectro no âmbito das relações sociais,

evidenciando a subsistência de uma mentalidade e forma de sociabilidade autoritária e

discriminatória.

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Se a forma de produção capitalista fez e ainda continua a fazer vítimas, ou seja,

produzir seres humanos que só integram os processos produtivos e decisórios pela

violência, exclusão e discriminação que esta lhes impôs, em esferas continentais o que

se infere dos dados da realidade é que ela também foi capaz de produzir contradições

em âmbito local, evidenciando antagonismos tão particulares, porém, advindos de uma

mesma força matricial: o colonialismo.

A expressão “epistemologias do Sul” utilizada pelo autor, como metáfora, para

explicar a matriz do sofrimento humano causado pela modernidade capitalista, coloca as

relações Norte-Sul no centro da reinvenção social.

Assim, partindo do pressuposto de que “o Sul é, ele próprio, um produto do

império”, compreender o “Sul” em face de toda a sua complexidade demanda levar-se

em conta a necessidade de desfamiliarização em relação ao Sul imperial, ou seja, em

relação a tudo o que no Sul é o resultado da relação colonial capitalista. Tarefa difícil,

haja vista a ampla repercussão que tais formas de dominação encontram, embora sob

nova veste, nas reinventadas formas de produção capitalista.

No caso brasileiro, essa premissa pode ser auferida por meio da análise do

processo de ocupação territorial que, remontando as raízes colonialistas, e sob a veste

do novo capitalismo, promoveu uma reestruturação do sistema produtivo que não foi

capaz de dar uma resposta adequada às aspirações éticas, políticas e sociais que

subjazem, nem pela via da regulação, nem tampouco pela via da emancipação.

Cumpre salientar que o embate entre regulação e emancipação social, nesse

contexto, evidencia uma tensão dialética bastante típica da modernidade, qual seja,

aquela fundada nas duas grandes tradições teóricas da modernidade ocidental: o

liberalismo e o marxismo. Conforme afirma Santos (2006), a regulação social, pautada

no princípio do Estado, do mercado e da sociedade, é adequada para compreender o

processo de construção de aparatos sociais típicos das realidades européias, mas não

daquelas que sofreram com a sua expansão.

Esse modelo de regulação social, que se contrapõe ao modelo emancipatório,

concebido como processo histórico da crescente racionalização da vida social, das

instituições, da política e da cultura, afirma Santos (2006)

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não dá conta das formas de (des)regulação colonial onde o

Estado é estrangeiro, o mercado inclui pessoas entre as

mercadorias (os escravos) e as comunidades são arrasadas em

nome do capitalismo e da missão civilizadora e substituídas por

uma minúscula sociedade civil racializada, criada pelo Estado e

constituída por colonos, pelos seus descententes e por

minúsculas minorias de assimilados.

Dessa constatação não se desvincula o caso da reestruturação dos sistemas

produtivos por que passou a o Brasil , que em larga escala é produto da intervenção

direta do Estado, com aparatos de regulação social amplamente excludentes do

campesinato brasileiro e acentuadores da tensão que envolve a questão fundiária.

Cumpre salientar que, se a intervenção estatal no domínio da questão agrária e

fundiária no Brasil,sob a égide de uma democracia formal, acentuou a tensão entre

detentores de terras e trabalhadores – até então –rurais, isso se deu em razão da

prioridade dada na adoção de instrumentos jurídicos capazes de fornecer segurança

jurídica ao direito de propriedade em detrimento da questão social, herdada da forma

brutal e avassaladora de colonização a que foram submetidos tanto os povos tradicionais

quanto os que para cá foram trazidos sob o domínio da força, desde o momento da

chegada do colonizador, nos anos de 1500.

A reestruturação produtiva do capital marcada por recentes transformações no processo

de ocupação, além de impulsionadas pelo poder político e econômico das elites

conservadoras – empresas rurais, Estado e transnacionais, impulsionadas pela

agroindustrialização – também demonstram o quanto serviu para reforçá-lo, uma vez

que se preocupou intensamente em produzir em larga escala e baixo custo em

detrimento do desenvolvimento de um aparato regulatório capaz de minimizar os

impactos sócio-ambientais decorrentes das atividades produtivas que passaram a

integrar a dinâmica da região.

Por certo que um dos aspectos mais observados na economia brasileira

recentemente tem sido a evolução do agronegócio evidenciando-se sua contribuição

para o aumento do PIB nacional, da geração de emprego, segurança alimentar, dentre

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outros fatores. No entanto, o enfrentamento de seu impacto no processo de distribuição

de renda e de geração de condições sociais emancipatórias tem sido relegado a um plano

secundário.

Análises de seus impactos apontam limitações nos postos de trabalho rural com

um aparente teto de demanda de trabalho de base agrícola. Há um esgotamento do

padrão de emprego, o que tem incentivado a adesão do trabalhador aos movimentos

sociais (NAVARRO, 2005, p.273).

O impacto do agronegócio na questão social brasileira, de modo geral, mostra

ainda, a descaracterização de um mercado rural e a ocupação em áreas rurais por

atividades não agrícolas (NAVARRO, 2005, p.273). Por outro lado, há o

enfraquecimento das organizações rurais mais tradicionais, tanto de produtores de maior

potencial econômico como dos pequenos. Como resultado, tem-se a proliferação de

formas de organização, de movimentos sociais que se institucionalizam, e outras

organizações regionais.

Essas mudanças, impactantes e marcantes no processo de transformação da

forma de produção agrícola no Brasil em larga escala têm atuado como fonte de

alimentação e retroalimentação das condições propícias ao surgimento de cada vez mais

“devires minoritários” e para contribuir com a reprodução do modelo de aprisionamento

do indivíduo, vez que o aparato jurídico-formal que emerge dentro desse contexto não é

capaz senão de promover o reconhecimento de direitos individuais, com a única

exceção do direito à autodeterminação, o qual, no entanto, foi restringido aos povos

subjugados pelo colonialismo europeu, negligenciando a persistência de práticas

subjugadora impregnada na consciência coletiva dos povos colonizados que sofrem, em

pleno século XXI, as conseqüências remanescentes dessa forma de sociabilidade

autoritária e discriminatória herdada do colonialismo europeu.

A democracia nesse contexto, subjugada ao sistema capitalista neoliberal, não

ultrapassa os limites do formal, desencadeando essa forma governo devires minoritários

e desrespeito a direitos humanos fundamentais, ainda que instituidos por um modelo de

dominação.

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4.Direitos humanos e devires minoritarios.

Desde as solenes declarações do século XVIII a questão da diferença nunca foi

tomada como um dado da realidade, nem sob o prisma ideológico, nem sob o prisma da

lei. O pressuposto adotado tanto na Declaração de Independência dos Estados Unidos da

América e quanto na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução

Francesa sempre foi o da igualdade, donde se infere que todo o constructo legal

decorrente desse momento da história da humanidade contribuiu mais para corroborar

práticas excludentes e fortalecedoras da desigualdade do que propriamente para

emancipar e fortalecer o homem, tomado quer seja na sua generalidade, quer seja nas

suas particularidades.

A afirmação histórica dos preceitos fundadores do moderno ideário dos direitos

humanos, fundamentador do Estado de Direito, que consagra a máxima do “direito a ter

direitos”, em que pese as particularidades de cada época, não se pode negar, sofreu forte

influência do ideário liberal que, vis-a-vis, acompanhou a construção da instituição

estatal, pautada nos princípios da territorialidade, da soberania absoluta do Estado e da

liberdade, atrelada, sobretudo, ao direito de propriedade.

Esse processo de afirmação histórica dos direitos do homem, pode ser

compreendido a partir de quatro perspectivas, distintas, porém inter-relacionadas e

interdependes.

A primeira é aquela que busca afirmar os direitos humanos como preceito

ideológico universal. Tendo como marco os movimentos revolucionários do final do

século XVIII essa perspectiva evidencia a influência dos ideais liberais no processo de

construção do Estado de Direito e na afirmação de que os direitos do homem servem

para proteger o indivíduo das arbitrariedades cometidas pelo Estado. Por certo que as

revoluções, bem como as declarações de direitos delas decorrentes, exerceram papel de

destaque no processo de queda das monarquias absolutistas e no reconhecimento do

indivíduo como sujeito de direito. Contudo, inegável também o é a forma excludente e

seletiva como o fizera.

A segunda perspectiva é decorrente da primeira e reflete o momento da

constitucionalização dos direitos, ou seja, a codificação, em âmbito interno, dos direitos

Page 16: Constituicao e concretizacao da democracia

do homem. As primeiras Constituições escritas que o mundo conheceu trataram de

incorporar ao ideário jurídico-político nascente a idéia de que o ponto de partida para a

construção de uma sociedade liberta das formas tradicionais de dominação é a

afirmação da igualdade formal, se abstendo de enfrentar a questão do reconhecimento

da diversidade. A negligência se repetiu e a constitucionalização dos direitos acabou por

se apresentar como uma ferramenta para a emergência de nacionalismos, autoritarismos

e totalitarismos.

Se por um lado a constitucionalização de direitos contribuiu para ampliar o rol

de sujeitos de direitos, mesmo que sob a égide da diferença e não da diversidade, por

outro também contribuiu para fortalecer a idéia de que a forma como cada Estado trata

seus cidadãos é questão de direito interno, logo, não suscetível de interferências

externas.

A terceira perspectiva é aquela que tenta demonstrar que, relegados

exclusivamente ao plano interno dos Estados, os Direitos Humanos são facilmente

negligenciados, a dignidade humana subjugada e o estabelecimento de autoritarismos,

totalitarismos e terrorismos de Estado amplamente difundidos como práticas de

sobrevivência da instituição estatal.

Nesse sentido, a Primeira Guerra Mundial (1914-1919) tratou de apontar os

primeiros indícios de que da guerra não saem vencedores. Os impactos negativos que

ela causa à humanidade são sensivelmente maiores do que qualquer situação que

sobrevenha. Com base nesse pressuposto é que surgem as primeiras manifestações do

direito internacional dos direitos humanos, sob a veste do direito humanitário e da

proteção internacional do trabalho.

Pelo direito humanitário restam acordados, pela comunidade de Estados

existentes, que o aprisionamento e a escravização de pessoas em decorrência da guerra

são práticas condenáveis pelo direito internacional.

Pela proteção internacional do trabalho, ficam estabelecidos parâmetros

“mínimos” a serem observados pelos Estados na construção de seus aparatos

regulatórios das relações de trabalho.

Mas se as conseqüências da Primeira Guerra foram nefastas para a humanidade,

a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) conseguiu superá-la imensamente. A adoção do

Page 17: Constituicao e concretizacao da democracia

extermínio como política de Estado e a utilização de armas de destruição em massa são

marcas indeléveis deixadas pela Segunda Guerra à humanidade, que nos dizeres de

Hannah Arendt (1999) são um retrato da banalização do mal e da institucionalização do

culto à virtude vazia.

Sob essa perspectiva é que se pode vislumbrar a feição que irá adquirir o

processo de codificação internacional dos direitos do homem, que tem como marco a

adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e dos Pactos dela

decorrentes, quais sejam, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto

Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos adotados pela

Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas em 1966.

Em que pese a relevância do sistema de proteção aos direitos humanos que se

criou após a Segunda Guerra Mundial, denota-se que o mesmo não foi capaz de

promover uma revolução copernicana nas relações entre indivíduo e Estado, nem

tampouco de contemplar a violência institucionalizada e amplamente difundida pelo

colonialismo europeu.

O que se infere é que o intento foi o de criar, no plano internacional, uma ordem

análoga à ordem político-jurídica fundada pelo constitucionalismo de direitos do século

XVIII. Em um cenário, onde impera a assimetria de poder e a ausência de um locus

central de sua manifestação, os sistemas de monitoramento instituídos pelo direito

internacional dos direitos humanos não conseguiram feito maior do que aquele deixado

pelo constitucionalismo. Mais uma vez repetiu. Repetiu o pressuposto da igualdade,

desconsiderou a diversidade e reforçou a desigualdade.

A quarta perspectiva talvez seja a que mais próximo tenha chegado da

necessidade de reconhecimento da diferença como uma construção histórica da

humanidade. Quando deflagra o processo de ampliação do rol de sujeitos de direitos por

meio da sua especificação o sistema fundado pelas Nações Unidas passa a levar em

conta o indivíduo não somente na sua generalidade, mas também na sua especificidade.

A partir da década de 1990, portanto, o reconhecimento formal desses novos

sujeitos de direitos reforça a idéia de que o momento é o do surgimento de novos

direitos, quando na verdade os direitos foram os mesmos, somente foram estendidos a

Page 18: Constituicao e concretizacao da democracia

grupos, minorias e coletividades, tradicionais ou não, até então negligenciadas pelo

aparato regulatório estatal.

Reconhecendo sob a mesma perspectiva de outrora, o direito internacional dos

direitos humanos, bem como as ordens jurídico-políticas fundadas sob sua influência,

mais uma vez repete. Repete o pressuposto da igualdade em detrimento da diferença,

segmenta a sociedade e, conseqüentemente, hierarquiza os sujeitos de direito.

A hierarquização dos sujeitos de direito, nessa diretiva, é pressuposto para a

compreensão da idéia de direitos humanos, sobretudo quando se fala de direitos

econômicos, sociais e culturais, como “devires”. “Devires minoritários” enquanto

reconhecimento e afirmação de cada vez mais categorias de pessoas que integram

grupos minoritários que, se tomados juntos, formam um verdadeiro meltting-pot,

majoritário. Primeiro segmenta a sociedade em classes sociais e depois na forma de

minorias étnicas, minorias religiosas, categorias de trabalhadores, categorias de

produtores, categorias de proprietários, e assim sucessivamente, demonstrando a

falibilidade do sistema que institui a igualdade formal como resultante de pressupostos

éticos e morais universais.

Já diria Gilles Deleuze (2006), “a repetição não é a generalidade. A repetição

dever ser distinguida da generalidade de várias maneiras. Toda forma que implique sua

confusão é deplorável. Entre a repetição e a semelhança, mesmo extrema, a diferença é

de natureza”.

Assim, o que se vislumbra desse cenário é que a repetição só se apresentaria

como pressuposto válido e como uma conduta necessária se levada em consideração

apenas em relação ao que não pode ser substituído, pois a repetição diz respeito a uma

singularidade não permutável, insubstituível.

Se a troca é o critério da generalidade, o roubo e o dom são os critérios da

repetição. Repetir é comportar-se, mas em relação a algo único ou singular, algo que

não tem semelhante ou equivalente (DELEUZE, 2006).

Evidenciado está, pois, que o constructo pós-moderno dos direitos humanos,

enquanto direito das coletividades, ao afirmar a generalidade como generalidade do

particular, e a repetição como universalidade do singular tratou de fundar antagonismos

que não dão conta da complexidade das relações de dominação, subjugação e violência

Page 19: Constituicao e concretizacao da democracia

advindas das relações de produção, quer seja no seu modo tradicional, quer seja em sua

forma reestruturada.

Vale ressaltar que a lei só é capaz de determinar a semelhança dos sujeitos que

estão a ela submetidos e sua equivalência a termos que ela designa. Se não designa, não

contempla. Se não contempla, não estabelece condições de equivalência. Forma vazia

da diferença, forma invariável da variação, a lei constrange seus sujeitos a só ilustrá-la à

custa de suas próprias mudanças.

E é nesse sentido que a repetição, do ponto de vista da lei, se apresenta como

fonte dicotômica, pois exprime, ao mesmo tempo, uma singularidade contra o geral,

uma universalidade contra o particular, um notável contra o ordinário, uma

instantaneidade contra a variação, uma eternidade contra a permanência, evidenciando

que a diferença não é um dado da realidade, mas fruto de uma construção histórica da

sociedade.

Na verdade a repetição se dá em razão ou em função das grandes permanências

da natureza. Fora disso a lei não passa de um aparelho de repetição. Repetição de

experiências frustradas e fundamentadoras de diferenças segregadoras e subjugadoras

da própria condição humana.

Desse desiderato, denota-se que o aparato jurídico regulatório dos direitos

humanos, quer seja no plano interno dos Estados, quer seja no plano internacional, não

foi capaz senão de veicular formas de aprisionamento, hierarquização, segregação e

domesticação do ser humano, o que acabou por encontrar forte repercussão no processo

de reestruturação das forças produtivas que se assentaram no novo cenário econômico

mundial.

E no que tange ao direito das coletividades isso se reforça, pois, vale ressaltar,

sua única manifestação formal, até então, tem sido sob a veste do direito à

autodeterminação que, por sua vez não contempla a herança indireta do colonialismo

europeu deixada aos povos colonizados.

Nessa trajetória, o direito das coletividades, como alternativa, passa a significar

a reprodução das formas de aprisionamento, hierarquização, segregação e domesticação

do ser humano. Na relação que se estabelece entre o não indivíduo e o Estado perde-se a

noção convencional de comunidade com o afrouxamento da influência das instâncias

Page 20: Constituicao e concretizacao da democracia

tradicionais de socialização, com o hiperindivíduo e a individualização dos modos de

vida. A construção de uma identidade comunitária, a partir da eleição de um grupo que

oferece ao indivíduo uma estrutura para relacionar-se com o mundo externo, determina

a construção da identidade pessoal.

A comunidade necessita do instrumento «direito» para instituir-se no espaço

público. Enquanto coletividade, para existir como grupo, para obter o reconhecimento

público, ela necessita fazer valer para si os direitos e liberdades fundamentais,

concebidos em favor do indivíduo. Tem-se direitos coletivos se sobrepondo às esferas

individuais, numa repetição de aprisionamentos, de coletividades e indivíduos.

Como nos fala Charles (2009) as reivindicações comunitárias são a arma do

fraco e servem para a afirmação dos direitos individuais garantidos pela Constituição.

Porém, no contexto real isso se dá num plano mais de democracia formal que efetiva

democracia substancial, além do que, na tensão entre a comunidade e o indivíduo esse é

estimulado a aceitar um discurso baseado na comunidade forte o que o aprisiona na

própria coletividade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Historicamente, o processo de afirmação dos direitos humanos norteou-se por

duas vertentes políticas, o que refletiu na validação democrática desses direitos. Guiada

ora pelo ideário liberal e ora pelo ideário socialista, resultou numa codificação com

contornos muito mais rígidos para os direitos civis e políticos do que para os direitos

sociais, evidenciando a máxima de que as violações de direitos civis e políticos sempre

foram consideradas mais sérias e mais patentemente intoleráveis que a maciça e

recorrente negação dos direitos sociais, e isso vale tanto para a perspectiva internacional

como para a perspectiva doméstica. Assim, as garantias constitucionais hão de ser

prioritariamente políticas e formalmente democráticas.

A exclusão das minorias, as coletividades subjugadas e os devires minoritários

relegam-se a um segundo plano, nesse contexto democrático constitucional substancial

concreto.

Page 21: Constituicao e concretizacao da democracia

Piovesan (2009) afirma que, “em geral, a violação dos direitos sociais,

econômicos e culturais é resultado tanto da ausência de forte suporte e intervenção

governamental como da ausência de pressão internacional em favor dessa intervenção”,

se apresentando, claramente, como uma questão de escolhas e prioridades

governamentais.

Mas se a ênfase dada ao processo de regulação dos direitos humanos pelos

Estados é uma questão de escolhas e prioridades governamentais, sua incorporação à

consciência coletiva de um determinado povo também se apresenta como fruto das

escolhas e das lutas sócias empreendidas ao longo dos tempos, dado o fato de que os

direitos humanos, quer sejam os de ordem civil e política, quer sejam os de ordem

econômica, social e cultural não são um dado de realidade mas, sim, um constructo da

sociedade.

No caso específico brasileiro, patente é a prevalência das lutas sociais no

processo de afirmação dos direitos civis e políticos, sobretudo, a partir da deflagração

do processo de reabertura política, redemocratização do país e institucionalização dos

direitos humanos no país, selado pela Constituição Federal de 1988.

Se a supressão de direitos e liberdades individuais se apresentaram como fontes

motivadoras de levantes da sociedade durante o período em que vigorou o regime

autoritário militar no Brasil, do início da década de 1960 até o início da década de 1980,

a negação dos direitos sociais, sempre presente na história do país e agravada pelos

ditames da globalização econômica, parecem não se constituírem verdadeiros

incômodos à sociedade brasileira.

Formas silentes de violência e de violação ao princípio da dignidade humana,

traduzidas em desemprego, subemprego, pobreza, miséria e pobreza extrema se

apresentam ainda como fatores aglutinadores, mas pouco motivadores de levantes e

clamores sociais. Formas que passam intocadas nos vagões da democracia formal.

Formas que só terão atenção num modelo de democracia poliárquica em que as

condições da ordem democrática se fundam em pré-requisitos sociais antes de se

consistir em expedientes de caráter constitucional.

No que tange especificamente às questões sociais atreladas à ocupação da terra o

que se denota é que as mesmas se apresentam como uma constante na história brasileira

Page 22: Constituicao e concretizacao da democracia

haja vista a recorrência de lutas contra o cativeiro, contra a exploração e

conseqüentemente contra o cativeiro da terra e contra a expulsão dos povos tradicionais

das terras que ocupavam desde a chegada do colonizador português. (FERNANDES,

2000).

Verifica-se assim, que tudo conflui para a preservação do modelo dominante. Ao

mesmo tempo em que a proposta mundial é a prevalência dos direitos politicos na seara

dos direitos humanos, o modelo democrático formal confere a necessária legitimidade

para práticas de dominação no âmbito das garantias sociais. Práticas essas que

continuam sendo evidenciadas tanto pelas preferências estatais quanto pelas

preferências da sociedade civil. Um terrificante incômodo que acaba por traduzir a

preferência por uma lógica hegemônica, vertical e excludente de globalização. Uma

lógica universalista fundamentadora da concepção de direitos humanos. Uma lógica da

repetição que cria todas as condições para que o presente se alastre sobre o passado e

também sobre o futuro, canibalizando-os.

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