Patologias Da Liberdade Individual

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    P A T O L O G I A S D AL IB E R D A D E I N D IV I D U A L

    O D I A G N S T IC O H E G E L IA N O D E P O C A E O P R E S E N T E 1

    Axel Honneth

    Traduo do alemo: Luiz Repa

    RESUMO

    O autor procura mostrar a atualidade do diagnstico de poca delineado na Filosofia do Direitode Hegel, segundo a qual a absolutizao das concepes limitadas de liberdade individual levana modernidade a um sofrimento de indeterminao. Os fenmenos psquicos de um sofrimentode indeterminao podem ser confirmados por investigaes psicolgicas contemporneas queconstatam uma substituio dos sintomas da neurose por aqueles da depresso. Por fim o autorsustenta uma interpretao da teoria hegeliana da eticidade como terapia filosfica para essaspatologias modernas, destacando a constituio comunicativa da liberdade individual.Palavras-chave: Hegel; filosofia do Direito; diagnstico de poca; liberdade.

    SUMMARY

    The author intends to show the actuality of epochal diagnosis drew in Hegel's Philosophy of Right,according to which the absolute-making of limited conceptions of individual freedom leads inmodernity to an indetermination distress. Contemporary psychological researches confirm thepsychical phenomena related to an indetermination distress by revealing that depressionsymptoms had replacing those of neurosis. Finally, the author presents an interpretation ofHegel's theoiy on ethicity as a philosophical therapy to such modem pathologies, stressing thecommunicative constitution of individual freedom.Keywords: Hegel; philosophy of right; epochal diagnosis; freedom.

    Raramente um empreendimento terico conduzido hoje de manei-ra mais precipitada e irrefletida que o do diagnstico de poca. J nopassa mais um ano sem que surja uma nova frmula mediante a qual os no-vos traos caractersticos de nossa sociedade so levados a um nicoconceito: se primeiro foi a tendncia geral "mudana de valores", logodepois foi a "ps-modernidade", em seguida "a sociedade de risco" e, fi-nalmente, a "sociedade da vivncia" que deveriam ter entrado no lugar dasociedade industrial, do capitalismo de massas ou da modernidade. Algu-mas dessas frmulas-guia sociolgicas puderam se ancorar mais firme-mente na conscincia cotidiana, e outras, mais debilmente; algumas influ-ram com grande xito nas arenas da esfera pblica cultural, enquantooutras chegaram a influir nos programas dos partidos polticos. Masnenhuma delas resistiu intacta fase subseqente do exame empricoconsciencioso: todas se revelaram rapidamente produtos de uma super-

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    (1) Recorro aqui s considera-es que desenvolvi em mi-nhas "Spinoza-Lectures": Hon-neth, Axel. Suffering from in-determinacy: a reactualizationof Hegel's Philosophy of Right.Assen, 2000. [N.E.: Este artigofoi publicado originalmente co-mo "Pathologien der individu-ellen Freiheit: Hegels Zeitdiag-nose un die Gegenwart". In:Huber, Jrg (org.). Darstellung:Korrespondenz. Viena/NovaYork: Springer, 2000.]

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    generalizao de desenvolvimentos sociais com alcance restrito, seja sobo aspecto histrico, seja sob o social.

    Em todo caso, da tendncia a uma "mudana geral de valores" ssobrou, depois que a pobreza e o desemprego voltaram a crescer drastica-mente em conseqncia da crise econmica, o pequeno resduo que con-siste em certas mudanas de atitude das camadas mdias; na afirmao deuma "ps-modernidade" social foi subestimada desde o incio a tenacidadecom que se fixaram na conscincia social cotidiana as convices religiosase as expectativas metafsicas de sentido, em suma, a orientao por "grandesnarrativas"; a tese da "sociedade de risco" tomou como relativa ao todo denossa sociedade uma determinada tendncia evolutiva, aquela do aumentodos riscos sobrevivncia tecnologicamente condicionados, a ponto deofuscar outras alteraes igualmente significativas; e, enfim, no diagnstico

    de uma "sociedade da vivncia" permanece desconsiderado, j na etapaelementar, que grande parte da populao ainda hoje tem de afrontarproblemas de sobrevivncia social e econmica. Se a essas unilateralidadesempricas so somadas ainda as discrepncias que as respectivas aborda-gens no raro apresentam em seus instrumentos tericos, torna-se logoclaro que preciso manter uma considervel dose de ceticismo em face dosdiagnsticos de poca sociolgicos feitos no passado recente.

    No entanto, vejo a principal debilidade de todos esses diagnsticos depoca no fato de no buscarem em absoluto uma crtica das atuais tendn-

    cias evolutivas de nossas sociedades: os fenmenos alegados em cada casoso tomados como tais, afirmativamente, sem que se tente pelo menos exa-minar se no se trataria talvez de patologias sociais. Para essa formadiferente, crtica, de diagnstico de poca encontra-se na sociologia e nafilosofia uma linhagem impressionante, que hoje parece quase esquecida.Seu fundador foi seguramente Rousseau, e ela prosseguiu com Hegel, Marxe os grandes socilogos da virada do sculo (Durkheim, Simmel, Weber) atnossos dias, quando Charles Taylor ou Jrgen Habermas, por exemplo, per-seguem de maneiras distintas o projeto de um diagnstico das patologias

    sociais. tpica dessa forma de diagnstico de poca, ou seja, da tentativa deuma crtica das patologias sociais, sua construo conceitual essencialmenteexigente: ela comea categorialmente pelas pretenses normativas de umadeterminada poca para em seguida se perguntar se no processo derealizao dessas pretenses no surgiram fendas ameaadoras na auto-relao e na relao social humanas, para as quais so empregados concei-tos to diversos como "alienao", "reificao", "anomia" ou, justamente,"patologia".

    Ora, minha tese que a anlise hegeliana do presente continua a re-presentar para o nosso tempo um dos mais convincentes diagnsticos dessegnero que podemos encontrar na tradio da filosofia social. A imple-mentao dessa tese requer porm um considervel esforo, dada a comple-xa constituio conceitual da anlise hegeliana do presente. Hegel afirmasobre a sua (e nossa) poca que sofremos de uma relao social e uma auto-relao falsas, porque conferimos autonomia sobremaneira a alguns aspec-

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    tos necessrios do que pertence em conjunto a uma cultura moderna daliberdade e fizemos da autonomia o nico ponto de referncia da nossacompreenso pessoal. Certamente na Filosofia do Direito que Hegeldesenvolve o ncleo desse diagnstico patolgico de maneira mais conse-

    qente, e por isso ela estar no centro de minha anlise. Em traos essenciaisela representa, como gostaria de mostrar na primeira parte deste ensaio, umesclarecimento sobre a confuso conceitual dos membros das sociedadesmodernas acerca de uma compreenso adequada da liberdade, cujas conse-qncias podem ser concebidas, talvez da melhor maneira, como um"sofrimento de indeterminao" [Leiden an Unbestimmtheit]. Num segundopasso, gostaria de sugerir de modo bastante breve em que medida pode teratualidade o diagnstico desse sofrimento de indeterminao. S no tercei-ro passo exporei ento como a terceira parte da Filosofia do Direito, isto , o

    grande captulo sobre a "Eticidade" [Sittlichkeit], pode ser entendida no todocomo uma espcie de terapia filosfica, que consiste em nos tornar clara aconstituio efetiva, ou seja, comunicativa, da liberdade. Todos os trspassos tm um carter apenas sugestivo e provisrio; para a implementaode cada um deles seria preciso mais espao do que disponho aqui.

    I

    Quando nos dedicamos Filosofia do Direito de Hegel, devemosdeixar claro antes de tudo o que esse livro procura propriamente realizar deacordo com sua idia fundamental inteira: trata-se de nada menos que umatentativa de traar as condies normativas sob as quais as sociedadesmodernas podem ser designadas, com boas razes, de "justas" em suma,trata-se para Hegel, e no diferentemente para seus contemporneos Kant eFichte, da constituio justa e boa das sociedades modernas. Ora, Hegel estconvicto, como alis toda a tradio da tica moderna, da tica poltica dosnovos tempos, de que um semelhante critrio de justia tem de estar talhado

    para o princpio da liberdade individual ou da autonomia: uma sociedademoderna somente justa se consegue colocar disposio de todos os seusmembros, na mesma medida, as condies para a realizao da liberdadeindividual.

    As dificuldades comeam quando Hegel procura clarificar, na famosa"Introduo" de sua Filosofia do Direito, sua prpria pr-compreenso doque deve ser entendido por "autonomia individual". Como j em seusprimeiros escritos por exemplo, no clebre ensaio acerca da tradio dodireito natural , ele se confronta com duas interpretaes da liberdade

    individual, consideradas insuficientes e limitadas. Em uma primeira com-preenso, que eu gostaria de designar por "modelo negativista de liberdadeindividual", a liberdade ou autonomia concebida como a rejeio subjeti-va a todas as limitaes que so impostas, de dentro ou de fora, efetuaoda subjetividade. Hegel v exemplos dessa compreenso da liberdade nas

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    tradies religiosas do Leste Asitico, mas tambm cr divisar pontos deapoio para isso em seu prprio presente. A objeo que ele levanta contraesse modelo negativista , na sntese mais tosca, a de que uma tendncia inao acompanha necessariamente a rejeio a todas as limitaes, vistoque no nvel elementar o agir individual consiste na fixao limitadora acertos fins ou objetivos. Uma segunda compreenso da liberdade individu-al, que por brevidade eu chamaria de "modelo optativo", Hegel v delineadanas tentativas de seus contemporneos de partir da idia de escolha reflexi-va de determinados objetivos da ao; o acento recai aqui no nexo internoentre a liberdade e a razo ou a reflexividade, uma vez que s podem serdenominadas autnomas ou livres as aes que so o resultado da auto-determinao racional. A objeo de Hegel contra esse segundo modeloconsiste em que sempre permanece conservado aqui um elemento de

    heteronomia, j que o prprio "material" da autodeterminao aparececomo algo indisponvel ao sujeito e no difcil ver que nessa objeo jse manifesta uma antecipao de sua crtica a Kant, segundo a qual em suarepresentao da autonomia individual os impulsos ou as inclinaes soconcebidos como algo oposto liberdade.

    Partindo da crtica a esses dois modelos de liberdade individual, Hegeldesenvolve, em traos bsicos, seu prprio modelo conceitual, que ele pro-cura apresentar formalmente na qualidade de uma sntese da limitaoreflexiva e da auto-experincia subjetiva: s se pode falar de liberdade

    individual num sentido integral quando ao mesmo tempo permanececonservada, na limitao racional a um determinado objetivo da ao, a ex-perincia da subjetividade ilimitada, visto que aquilo a que se limita tambmse pode compreender como expresso ou emanao da subjetividade livre.Por conseguinte, o prprio modelo de Hegel resulta na idia de que naefetuao da autodeterminao reflexiva o prprio "material" subjacentetambm deve ser considerado fluido o bastante para poder ser entendidopotencialmente como expresso da liberdade. Esse conceito exigente deveser possvel se se considera a vontade uma relao reflexiva em si, de acordo

    com a qual ela pode influir sobre si mesma enquanto vontade.Nesse ponto difcil, a famosa proposta de Harry Frankfurt de distinguirentre "first" e "second-order volitions" ajuda a prosseguir bem menos doque parece a princpio. Certamente essa distino capaz de tornar plaus-vel o que pode significar que Hegel fale da vontade fazendo-se "a si mesmaobjeto" e da vontade "querendo a si mesma". De acordo com a proposta deFrankfurt, isso se refere concepo de que podemos entender nossosimpulsos de agir ou inclinaes como manifestaes da vontade ("voli-tions") de primeira ordem, sobre as quais ns prprios podemos de novo to-mar posio, valorando-as numa perspectiva de segunda ordem. Portanto,com base nesse modelo conceitual realmente tem todo o sentido concebera vontade humana como uma relao de dois ou vrios graus, na qualpodemos querer novamente ou no querer nossas prprias manifestaesde vontade elementares e em cada caso subordinadas. Mas tudo isso auxiliapouco to logo se considera a formulao mais abrangente de Hegel,

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    conforme a qual a vontade "livre" tem de querer a si mesma "como livre", ouseja, tem de poder fazer do material, consistindo em seus impulsos de agir eem suas inclinaes, a matria da liberdade, pois em vista dessa determina-o a questo bvia consistiria ento em como se devem representar os

    impulsos de agir para que possam ser pensados como "livres", como no-finitos. A chave para a resposta que Hegel tem em mente, plena de conse-qncias, oferecida por uma discreta passagem no adendo ao pargrafo 7,na qual a amizade descrita como modelo paradigmtico da experincia deuma tal liberdade:

    Essa liberdade ns temos, porm, j na forma do sentimento, por

    exemplo, na amizade e no amor. Aqui no somos unilaterais em ns,

    limitamo-nos de bom grado em relao a um outro, mas nos sabemoscomo a ns mesmos nessa limitao. Na determinidade, o homem no

    deve se sentir determinado, mas, ao se considerar o outro como outro,

    tem-se a primeiramente seu sentimento de si. A liberdade, portanto,

    no reside nem na indeterminao nem na determinidade, seno que

    ambas. [...]A vontade no est ligada[...]a algo limitado, mas tem de

    ir mais alm, pois a natureza da vontade no essa unilateralidade e

    esse estar ligado, seno que a liberdade querer algo determinado,

    mas ser consigo mesmo [bei sich zu sein] e retornar novamente ao

    universal.

    Hegel responde aqui questo de como apreender a "vontade livre"de maneira realmente adequada, diferena daquelas duas definiesfalhas, mediante a seguinte linha de raciocnio: para que possa se querer a simesma como livre, a vontade precisa se limitar quelas suas "carncias,desejos e impulsos", em suma, quelas suas "first-order volitions", cujarealizao, por sua vez, pode ser experienciada como expresso, comoconfirmao da prpria vontade; isso, porm, s possvel se o prprioobjeto da carncia ou da inclinao possui a qualidade de ser livre logo,se uma outra pessoa, j que apenas um semelhante "outro" permite vontade realizar de fato a experincia da liberdade. Partindo dessa constru-o, fcil ver ento por que Hegel pode apresent-la sob o aspecto de umasntese dos dois modelos antes descritos como falhos: do segundo modelo,"optativo", retomada a idia de que a autodeterminao individual deveconsistir na limitao reflexiva a um determinado objetivo da ao; e doprimeiro modelo, em contrapartida, a idia de que a autonomia devepossuir sempre a forma da auto-experincia ilimitada, de sorte que, tomada

    em conjunto, a "vontade livre" possa depois ser descrita segundo o modelodo "ser-consigo-mesmo-no-outro"2.

    A partir daqui Hegel pode fazer uma primeira antecipao de sua teo-ria geral da justia moderna, visto que tambm partilha com Kant e Fichte aconvico de que uma tal concepo deve definir no essencial as condies

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    (2) Acerca da "liberdade co-municativa", cf. Theunis-sen, Michael. Sein und Sche-

    n. Frankfurt am Main, 1978,cap. 1; Henrich, Dieter. "He-gel und Hlderlin". In: He-gel im Kontext. Frankfurt amMain, 1971, pp. 9-40; Fink-Eitel, Heinrich. Dialektikund Sozialethik. Meise-nheim am Glan, 1978, par-tes D e E.

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    de realizao da autonomia ou da "vontade livre": se a liberdade individualdesigna primeiramente e sobretudo o "ser-consigo-mesmo-no-outro", entoa justia das sociedades modernas se mede pelo grau de sua capacidade deassegurar a todos os seus membros, em igual medida, as condies dessaexperincia comunicativa e, portanto, de possibilitar a cada um a participa-o nas relaes da interao no-desfigurada. Nesse sentido pode-se falarenfaticamente que em nome da liberdade individual que Hegel qualificaas relaes comunicativas como o "bem fundamental" de que as sociedadesmodernas dispem em essncia sob pontos de vista da justia. Natural-mente, o emprego da expresso econmica "bem" no deve aqui derivarpara a idia de que na definio da justia estariam em jogo, para Hegel, asregras de distribuio no sentido de Rawls; antes, ele parece partir dahiptese de que as relaes comunicativas incidem na classe daqueles bens

    que s podem ser gerados e conservados por meio de prticas comuns, desorte que podemos falar, no mximo, da preparao geral das condiesdessas prticas.

    No resultado desse breve resumo torna-se patente que Hegel perse-gue em sua Filosofia do Direito o propsito de fundamentar um princpionormativo de justia das sociedades modernas que consiste na soma detodas as condies necessrias para a auto-realizao individual; e o pontocrucial est para ele essencialmente no fato de que, como indica seu par-ticular emprego da categoria de direito, a justificao da existncia do

    Estado como rgo representativo de todos os cidados reside na tarefa degarantir a preservao das diversas esferas comunicativas, as quais, tomadasem conjunto, propiciam a todo sujeito individual a auto-realizao. Parauma maior clarificao, faamos aqui uma comparao com um autorcontemporneo, cuja teoria do direito pode concorrer em complexidadecom a Filosofia do Direito hegeliana: enquanto Habermas, em Faticidade evalidade, desenvolve uma concepo normativa segundo a qual a legitimi-dade da ordem jurdica estatal resulta do asseguramento das condies daformao democrtica da vontade, Hegel comea pela auto-realizao indi-

    vidual a fim de derivar de suas condies a tarefa de uma ordem jurdicamoderna; que para ele as esferas comunicativas entram em primeiro plano a conseqncia justamente do modo particular pelo qual ele define aestrutura da liberdade da "vontade livre".

    No menos difcil que esclarecer os propsitos perseguidos por Hegelem sua Filosofia do Direito decifrar o significado da articulao que elecoloca na base da elaborao de sua teoria, pois a construo peculiar dainvestigao tratando-se em primeiro lugar o "direito abstrato", depois a"moralidade" e por fim a "eticidade" torna quase impossvel primeiravista produzir um vnculo plausvel entre o propsito e a articulao. Nesseponto revela-se til a proposta de examinar a seqncia dos trs grandescaptulos do livro em paralelo com as trs compreenses de liberdade queHegel havia designado na "Introduo" como determinantes para as so-ciedades modernas, a saber, a compreenso "negativa", a "optativa" e a"comunicativa": o que introduzido ali como um elemento necessrio num

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    conceito abrangente e integral de "vontade livre" apresentado na imple-mentao da teoria em linha ascendente, sucessivamente, como esferassociais que s tomadas em conjunto podem propiciar ao sujeito individuala auto-realizao. Se seguirmos a proposta assim sugerida, resultar, na

    qualidade de chave para uma interpretao da construo da Filosofia doDireito, que h duas precondies para a auto-realizao dos sujeitos nasestruturas comunicativas da esfera tica. De um lado, conforme as predefini-es do direito abstrato, eles precisam ter aprendido a se entender comoportadores de direitos, como pessoas de direito; de outro, precisam terdesenvolvido ao mesmo tempo um senso para a fora dos argumentosmorais, a fim de se conceberem complementarmente como portadores deuma conscincia individual, como sujeitos morais. Como Hegel parecequerer dizer, s quando essas duas autocompreenses esto fundidas em

    um sujeito, formando uma nica identidade prtica, ele pode se realizar semcoeres no tecido institucional da eticidade moderna.

    Ora, essas consideraes certamente j antecipam a soluo de umproblema que causou a Hegel as maiores dificuldades e a que ele dedicou,por isso, todo o seu diagnstico do presente, pois a formulao antes esco-lhida desperta a impresso de que seria de antemo claro ou comprovadoem que teria de consistir o valor posicional dos dois modelos de liberdadesubordinados e incompletos no todo abrangente das condies modernasda liberdade. Que no se trata disso, e sim de que Hegel viu na resposta

    questo associada a isso o verdadeiro desafio de sua Filosofia do Direito,resulta j da perspectiva particular com que ele percebe as relaes prtico-morais de seu tempo, pois v sua peculiaridade na tendncia social de tomarj pelo todo da liberdade individual ou a liberdade juridicamente definidaou a autonomia moral, de modo que as duas concepes podem aparecercom pretenso de totalidade. Por conseguinte, so incontveis na obra deHegel as passagens em que ele aponta os perigos atuais de uma autono-mizao da moralidade, bem como aquelas em que aponta os efeitosnegativos de uma limitao s liberdades definidas de maneira meramente

    jurdica3.

    Contudo, se nessas duas tendncias autonomizao so discer-nveis os fenmenos socioculturais que caracterizam da maneira maisenftica a assinatura da poca, no plano do mundo cotidiano e no terico tudo menos claro em que deve consistir o lugar legtimo da liberdade

    jurdica ou da liberdade moral; antes, para Hegel, h realmente umaenorme confuso nas cabeas de seus contemporneos acerca de como osdiversos modelos recm-criados de liberdade poderiam ser colocadosnuma relao adequada. Nesse sentido, ele precisa pr-se como tarefa oque antes eu havia suposto como uma soluo relativamente bvia:

    salientar na demonstrao de sua teoria da justia a funo necessria quea liberdade moral e a jurdica assumem com vista s condies comunica-tivas da liberdade que lhe esto ante os olhos no conceito de eticidade4.Minha tese ento que Hegel, na soluo das tarefas antes esboadas,aplica um procedimento que consiste na comprovao dos efeitos patol-

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    (3) Sobretudo a Fenomenolo-gia do Esprito se deixa enten-der naturalmente como uma cr-

    tica, motivada pelo diagnsticode poca, a essas figuras daconscincia moderna, aos seusmodelos restritos de liberdadee suas conseqncias patolgi-cas. Na literatura mais recenteessa referncia histria con-tempornea enfatizada de ma-neira particularmente clara emPinkard, Terry. Hegel's pheno-menology: the sociality of rea-son. Cambridge, 1994, esp. cap.5; Falke, Gustav-H. H. Begriffe-ne Geschichte: das historischeSubstrat und die systematische

    Anordnung der Bewusstseins-gestalten in Hegels Phnome-nologie des Geistes. Berlim,

    1996. No sentido de uma visogeral sobre o diagnstico deHegel, esplndido o trabalhode Charles Taylor, Hegel andmodern society (Cambridge,1979).

    (4) Por essa formulao do ver-dadeiro propsito de Hegel po-de-se reconhecer j a diferenaentre minha proposta exeg-tica e a interpretao fascinantede Christoph Menke (Tragdieim Sittlichen: Gerechtigkeit undFreiheit nach Hegel. Frankfurtam Main, 1996): enquanto estecr reconhecer na filosofia pr-

    tica de Hegel sobretudo a expo-sio de uma tenso trgica en-tre os dois modelos de liber-dade da autonomia moral e daautenticidade individual, vejodelineada na Filosofia do Direi -to a tentativa promissora de su-perar as respectivas unilateri-zaes da autonomia jurdica emoral em um modelo comuni-cativo de liberdade; emMenk e,pelo contrrio, a Filosofia doDireito surge apenas como asoluo falsa da tenso funda-mental entre autonomia e au-tenticidade (cf. pp. 150 ss.). Pa-ra uma sustentao de minhaprpria proposta de interpre-

    tao, cf. tambm Winfield, Ri-chard D. "Freedom as interacti-on: Hegel's resolution to thedilemma of liberal theory". In:Stepelevich, L. S. e Lamb, D.(orgs.). Hegel's philosophy ofaction. Atlantic Highlands,1983, pp, 173-190.

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    gicos que devem resultar, para a auto-relao dos sujeitos, da autonomi-zao de cada uma das duas concepes incompletas de liberdade; e essesefeitos patolgicos podem ser colocados no denominador conceitual de

    um "sofrimento de indeterminao".Hegel procede negativamente em sua argumentao, no sentido deque procura cercar o "lugar" adequado, o "direito" especfico dos dois mo-delos incompletos de liberdade, mediante a demonstrao dos danos so-ciais a que levaria o emprego totalizante de cada um deles: com a absoluti-zao de uma daquelas duas representaes da liberdade individual, sejaem sua verso como pretenso de direito, seja na sua equiparao com aautonomia moral assim afirma a linha de raciocnio decisiva -, ocorremfendas patolgicas na prpria realidade social, que so um indicador se-guro, quase "emprico", de que os limites do domnio de validade legtimo

    foram transgredidos5. Dessa maneira, por meio de uma tal ilustrao dosefeitos negativos acarretados pela autonomizao social das concepes deliberdade em si incompletas e deficientes, pode-se sondar progressivamen-te o local que lhes deve caber, segundo sua estrutura, em nossa prxis co-municativa.

    sobretudo uma convico de fundo que permite a Hegel fazer usodesse procedimento de fundamentao indireto, prprio do diagnsticode poca: em termos fenomenolgicos, ele est realmente convicto no sde que em seu prprio presente aqueles dois modelos de liberdade se

    tornaram grandezas influentes e poderosas no mundo social, como tam-bm de que suas respectivas absolutizaes j levaram s primeiras fendasna auto-relao prtica dos sujeitos. Em uma srie de passagens de seutexto isso lhe possibilita entremear referncias a estados e fenmenospatolgicos que podem ser considerados indicadores de uma violaodos limites da esfera legtima do "direito abstrato" e da "moralidade", e osconceitos com que procura caracterizar patologias sociais dessa espcieso expresses prprias do diagnstico de poca, como "solido" ( 136),"vacuidade" ( 141) ou "abatimento" ( 149), que podem ser colocadas

    todas juntas no denominador de um "sofrimento de indeterminao".Como no posso aqui, mesmo que em traos bsicos, apresentar essaanlise de Hegel, na qual ele se pe a sondar o lugar adequado dos doismodelos incompletos de liberdade mediante o diagnstico dos efeitospatolgicos de suas respectivas absolutizaes, vou me restringir aoresumo dos resultados.

    O primeiro modelo de liberdade, o jurdico, no qual a liberdade indi-vidual apreendida somente como pretenso de direito, perfeitamenteadequado e legtimo se entendido como dispositivo de proteo legal

    contra as violaes por parte do Estado ou dos parceiros de interao, massua absolutizao, de acordo com a qual concebo minha liberdade apenascomo a de um sujeito de direito, conduz a uma patologia individual e mes-mo social, visto que me leva em ltima instncia incapacidade de participarnas relaes sociais afetivas. Essa crtica se torna particularmente clara napassagem da Filosofia do Direito em que Hegel objeta contra o modelo

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    (5) Nesse aspecto metodolgi-co, e apenas nesse, o procedi-mento de Hegel assemelha-seao qu e Alisdair MacIntyre colo-ca na base de sua argumenta-o em After virtue (Londres,1981): a defesa de uma outra eampliada compreenso de li-berdade desenvolvida luzde um diagnstico dos danossociais ou das patologias que acompreenso de liberdade cri-ticada, falsa ou incompleta, ge-ra na auto-relao individual.Uma estrutura argumentativaanloga, que associa sistemati-camente diagnstico de pocae teoria normativa, encontra-setambm em Theunissen, Mi-chel. Selbstverwirklichung undAllgemeinheit: zur Kritik des ge-genwrtigen Bewusstseins. Ber-lim/Nova York, 1982.

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    kantiano do contrato de casamento que os cnjuges ou os membros dafamlia tornam-se incapazes de participar de uma relao social mantidacoesa por ligaes afetivas, na medida em que se entendem somente comoportadores de direitos individuais. O segundo modelo de liberdade, omoral, no qual a liberdade individual pensada como autonomia moral, perfeitamente legtimo e necessrio se entendido como referncia necessi-dade do exame individual de conscincia em relaes de vida eticamentearruinadas, em relaes de vida no mais suficientemente racionais; suaabsolutizao, porm, conduz incapacidade de agir socialmente de modogeral, visto que priva o sujeito do ltimo resto de confiana na normativida-de dada de seu contexto de vida, de seu ambiente social.

    Para Hegel, vai de par com a adoo do ponto de vista moral a ten-dncia de se perder numa autocertificao abismal, da qual no h escape

    por faltarem normas ou obrigaes previamente aceitas. A reflexo moralcorre por assim dizer no vazio, porque no se pode perceber que aaplicabilidade do princpio de universalizao se deve confiana navalidade racional de uma srie de predefinies normativas; e o limiar paraa patologia social ultrapassado nesses casos to logo resulte da adoo doponto de vista moral uma absolutizao que conduza ao apagamento detodos os desgnios prticos e, desse modo, inao. Hegel viu no "sofrimen-to de indeterminao", que marca uma transgresso de limites dessa esp-cie, um trao to determinante de sua prpria poca que tambm atribuiu a

    isso dois outros fenmenos culturais: no individualismo romntico, o vaziointerior e a pobreza de ao so compensados por um retorno voz daprpria natureza; e porque essa orientao pelas disposies internas epelos estados emotivos tambm acaba impelindo cada vez mais profunda-mente a um processo de auto-reflexo infinita, busca-se por fim um apoionos poderes tradicionais da f de uma religio pr-crtica:

    Pode surgir portanto a nostalgia de uma objetividade em que o ho-

    mem prefere se degradara servo e dependncia completa, afim desimplesmente escapar ao tormento da vacuidade e da negatividade.

    Se recentemente muitos protestantes se converteram Igreja Catlica,

    isso aconteceu porque eles julgaram sem substncia o seu interior e

    procuraram alcanar algo firme, um apoio, uma autoridade, embo-

    ra no fosse firmeza de pensamento o que eles obtiveram ( 141,adendo)6.

    Antes de apresentar a terapia hegeliana das patologias da liberdadeesboadas, farei alguns breves apontamentos acerca da atualidade de seudiagnstico de poca. Essas consideraes sucintas visam apenas forneceras primeiras indicaes sobre o material emprico com que se pode demons-trar, tambm para a nossa poca, uma tendncia de "sofrimento de inde-terminao".

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    (6) Para uma reconstruo con-vincente do diagnstico hege-liano do "individualismo ro-mntico", cf. Eberlein, Undine.Das romantische Individuali-ttskonzept der Moderne. Ber-

    lim: dissertao apresentada Frei Universitt, 1988, esp. pp.53 ss.

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    PATOLOGIAS DA LIBERDADE INDIVIDUAL

    II

    Naturalmente, encontram-se na literatura e no cinema contemporneosilustraes o suficiente para a tese de que os sujeitos sofrem de uma profundaindeterminao, na medida em que, por conseqncia da absolutizao dedeterminadas compreenses da liberdade, deixam de estar em condiespara uma orientao pelo contedo racional de suas relaes sociais decomunicao. Pode-se pensar por exemplo nos filmes de Woody Allen emsuas duas ltimas fases e, no mbito da literatura, nos grandes romances deRichard Ford (como Dia da independncia) ou nas narrativas de MichelHouellebecq, hoje discutidos com tanta intensidade. Em Houellebecq, alis, aparticularidade no me parece estar no sarcasmo e na frieza glacial com que ossintomas de um sofrimento de "indeterminao" so registrados, mas muitomais nas conseqncias de se fazer disso o princpio estilstico de sua ex-posio. A certa altura da narrativa "Ampliao das zonas de luta" diz-se:

    Para o romance, a extino das relaes humanas acarreta algumas

    dificuldades. O que fazer para narrar as paixes veementes que se

    estendem por vrios anos e cujos efeitos s vezes continuam sensveis

    atravs de geraes? Estamos bem distantes das foras da tempestade,

    o mnimo que se pode dizer. A forma romance no foi criada para

    descrevera indiferena ou o nada: seria preciso inventar um modo de

    expresso mais plano, uma forma mais concisa, rida.

    Seja como for, porm, romances ou filmes certamente representamapenas uma forma insuficiente de ilustrao para demonstrar a atualidadedo diagnstico de um "sofrimento de indeterminao"; o mesmo talvez seaplique tambm para o diagnstico de poca filosoficamente nutrido em

    que Charles Taylor fala de uma unilaterizao realmente patolgica do idealmoderno de auto-realizao7. Um meio mais apropriado oferecido porinvestigaes que tentam mostrar que os sintomas da enfermidade psquicaque hoje grassam e recrudescem se deixam conceber como indicadores deuma sobrecarga causada por compreenses unilaterais e absolutizadas deliberdade individual. J faz anos que vm se multiplicando as observaesde psicanalistas e de psiclogos sociais de que hoje em dia temos de lidarcom uma mudana verdadeiramente dramtica na formao sintomtica in-dividual: enquanto as "neuroses" da poca de Freud, ou seja, distrbios

    psquicos ligados a conflitos de autoridade na fase edipiana, parecemperder importncia social, aumentam as depresses em escala alarmante, oque j perceptvel pela atividade econmica sem precedentes em tornodos antidepressivos.

    Em um livro fascinante, o socilogo francs Alain Ehrenberg tentoucolocar essas tendncias psicossociais no denominador conceitual de uma

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    (7) Taylor, Charles. The ethicsof authenticity. Cambridge,1992.

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    fatigue d'tre soi ["esgotamento de si mesmo"]8. Ele evoca o fato clnico jmencionado de que a neurose perdeu h muito tempo influncia social,visto que, ao se tomar por base novos padres de classificao, vm luzno diagnstico alteraes estruturais do carter. Ehrenberg procura mos-trar fundamentalmente que deveramos conceber as doenas psquicascomo fracassos do indivduo enquanto sujeito. Com a mudana dasrepresentaes da liberdade individual assim reza sua tese bastanteconvincente alteram-se tambm as formas mais disseminadas do fracas-so psquico do sujeito: enquanto na era do surgimento das democraciasocidentais o demente foi constitudo de certo modo como o antagonistado sujeito racional, no final do sculo XIX cresce o reconhecimento de queo sujeito o resultado do conflito entre as pulses naturais e as coerescivilizadoras; aqui, por conseguinte, a neurose se tornou o sintoma do

    fracasso subjetivo em virtude do conflito entre o desejo e a lei, entre ademanda pulsional e o controle do superego. No entanto, em umasociedade em que o individualismo romntico se tornou projeto generali-zado e em que as coeres morais foram amplamente decompostas, omalogro psquico veio a assumir uma nova forma, que Ehrenberg procuraconceber como "esgotamento de si mesmo" ou justamente como depres-so. Em suas prprias palavras, isso significa que a libertao, isto , aemancipao em relao s coeres morais, se torna "nervosa", ao passoque a mudana para o individualismo romntico, ou seja, a idia de se

    entender como fonte independente da prpria liberdade, acompa-nhada pela tendncia depresso. A liberdade de definir por si mesmo aprpria identidade se torna "sofrimento de indeterminao", cujo sintoma a depresso. Na psicanlise, a esses deslocamentos epistemolgicoscorresponde o aumento dos assim chamados fenmenos "borderline":casos de uma ciso interna que no leva mais ao conflito com a normamoral.

    No creio entretanto que a formulao de Ehrenberg em seu todoseja satisfatria ou completa, na medida em que reduz o espectro das

    compreenses atuais da liberdade somente idia do individualismoromntico, sem ver que h tambm tendncias de um afinco subjetivo aomodelo da liberdade meramente jurdica ou mal observado por Hegelem virtude de razes sistemticas ao modelo da mera liberdade deescolha, ou seja, idia de poder escolher livremente entre ligaes ouprticas sociais. Mas a perspectiva de Ehrenberg fascinante porque nosd uma primeira indicao, indiretamente emprica, sobre a atualidade deum diagnstico de poca que afirma que as patologias sociais constituem,sob condies modernas, o resultado da absolutizao de representaesincompletas da liberdade portanto, oferece indicadores para a suposi-o hegeliana de que temos de lidar na modernidade com patologias daliberdade. Mas qual o aspecto da proposta teraputica com que Hegeltentou corrigir essas unilaterizaes da liberdade individual na autocom-preenso de seus contemporneos?

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    (8) Ehrenberg, Alain. Fatigued'tre soi. Paris, 1998.

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    III

    So os efeitos anteriormente nomeados da autonomizao da morali-dade que fazem Hegel, em sua Filosofia do Direito, recorrer formulaosurpreendente de que a passagem para a eticidade tem de ser experienciadapelo sujeito individual como uma "libertao". No contexto em que essaexpresso se encontra pela primeira vez, refere-se inicialmente apenas superao daquele estado vivenciado como limitador, oneroso, resultanteda esterilidade da auto-reflexo moral. To logo nos percebemos em re-laes sociais cuja prpria normatividade j abrange deveres e direitos, emsuma, regras morais, isso nos liberta do vazio atormentador a que nos levoua autonomizao do ponto de vista moral. Assim que Hegel afirma, no

    sem um certo pathos:

    Mas no dever o indivduo tem antes sua libertao, em parte em

    relao dependncia em que ele se encontra no mero impulso natu-

    ral, assim como em relao ao abatimento em que est como particula-

    ridade subjetiva nas reflexes morais do dever-ser e do poder-ser [Sol-len und Mgen], em parte em relao subjetividade indeterminada,que no chega ao ser-a e determinao objetiva e permanece em si e

    como uma irrealidade ( 149).

    Contudo, o conceito de "libertao", que se encontra em muitas partes dapassagem para a eticidade, no se esgota para Hegel nesse nico significa-do, no qual ele se refere no essencial desonerao de uma situao nega-tiva e opressiva; pelo contrrio, alm do aspecto meramente subjetivo, tam-bm deve estar associada a ele a afirmao mais ampla de que o resultado daprpria desonerao primeiramente um estado de liberdade efetiva: "No

    dever", diz Hegel na frase subseqente, "o indivduo se liberta para a li-berdade substancial"9.

    Por esse duplo significado da expresso "libertao" fcil reconhecerque Hegel procura empreender sua justificao normativa da "eticidade" apartir de duas perspectivas complementares: enquanto da perspectiva dosujeito individual deve-se demonstrar que o discernimento acerca da nor-matividade interna das prticas sociais liberta do "sofrimento de indetermi-nao", da perspectiva de todos os sujeitos racionais deve-se poder mostrarao mesmo tempo que o estado assim alcanado racional, na medida em

    que garante de fato e suficientemente a realizao da liberdade individual.Tambm no captulo conclusivo sobre a "Eticidade", como se pode deduzirda, Hegel volta a proceder no sentido de um entrelaamento de teoria da

    justia e diagnstico de poca: o que normativamente deve poder serdemonstrado como condio suficiente da auto-realizao de cada sujeitoindividual tem de possuir simultaneamente as propriedades de uma forma

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    (9) Para uma anlise mais am-pla da idia hegeliana de que aassuno dos deveres dados"eticamente" deve ser entendi-da como "libertao", cf. Pe-perzak, Adrian Th. "Hegels Pfli-chten- und Tugendlehre". In:Siep, Ludwig (org.). Grundli-nien der Philosophie des Rechts.Berlim, 1997, pp. 167-191. Ameu ver, o ponto crucial doconceito hegeliano de "eticida-de" no alcanado, quand o apassagem do ponto de vistamoral para esfera tica inter-pretada meramente como "de-

    sonerao", no sentido da li-bertao em relao s exign-cias da reflexo, interpretaoa que se inclina Jrgen Haber-mas (cf. "Wege der Detranszen-dentalisierung von Kant zuHegel und zurck". In:Wahrheit und Rechtfertigung.Frankfurt am Main, 1999, pp.186-229).

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    de vida cultural por meio da qual todos podem ser libertados em comum dapatologia opressiva do presente.

    Vou agora traar, ainda de maneira breve, o procedimento terico comque Hegel busca solucionar o primeiro desafio, o normativo, desse duplocometimento; mas no se pode perder de vista que cada passo de suaargumentao deve demonstrar ao mesmo tempo em que medida o discer-nimento sobre a racionalidade normativa das relaes comunicativas signi-fica uma libertao em relao ao sofrimento de indeterminao. No derra-deiro captulo, Hegel de modo algum qualifica todas as relaes dadas dassociedades modernas com o ttulo de "eticidade"; pelo contrrio, seuprocedimento consiste em destacar do grande nmero de prticas institu-cionalizadas exatamente as trs esferas cujas regras constitutivas so de talespcie que j geraram em cada caso as condies da realizao comunica-

    tiva da liberdade individual. Portanto, conforme a premissa desenvolvidano captulo da "Moralidade", segundo a qual os contextos sociais de nossadeliberao moral j contm pontos de vista da razo prtica, o mtodoempregado por Hegel consiste em uma espcie de reconstruo normativa:as relaes dadas de vida social devem ser examinadas com vista a taiscomplexos de prticas que se tornaram usuais e que possuem uma norma-tividade interna no sentido de que s so de modo geral suscetveis dereproduo se h uma aceitao tcita de determinados deveres e direitos;aqui talvez fosse at mesmo melhor e mais adequado falar de prticas e

    instituies sociais cuja faticidade se deve em seu todo somente observa-o de certas regras morais. Mas naturalmente as esferas sociais que devemser qualificadas de "ticas" por essa via da reconstruo normativa tm desatisfazer tambm um outro critrio, e mesmo o critrio decisivo: s se podetratar daquelas prticas cujos deveres e direitos internos regram uma espciede relacionamento recproco e que podem ser entendidas como realizaocomunicativa da liberdade individual. Se nos lembrarmos do exemplo da"amizade" encontrado no comeo da Filosofia do Direito, resultar da, co-mo critrio normativo das relaes interativas dessa espcie, que os sujeitostm de ver reciprocamente, na observao dos deveres e dos direitos

    correspondentes, isto , em sua limitao, uma expresso de sua prprialiberdade.

    Sem dvida, Hegel estava convicto de que efetivamente conseguira,nas trs ltimas partes de seu captulo conclusivo, demonstrar a existnciadessas esferas de interao: na "famlia", na "sociedade civil burguesa" [br-gerliche Gesellschaft] e no "Estado" temos de lidar com deveres e direitosinternos que, tomados em conjunto, possibilitam a cada sujeito realizar sualiberdade individual pela via comunicativa; e, como consta das condiesda participao em p de igualdade nessas esferas a conscincia de poder,caso necessrio, retirar-se de todas as condies ticas, a legitimidade daordem jurdica estatal tambm se mede, complementarmente, pela proteodas possibilidades jurdicas de retirada e pela proteo das liberdades deconscincia moral. Mas o fato surpreendente de Hegel, em sua reconstruonormativa da "eticidade", no ter retomado a amizade, antes louvada

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    enfaticamente, d ensejo s primeiras dvidas: poderia ser at mesmo queele no tenha esgotado plenamente o potencial de sua prpria abordagem,ao orientar-se por fim somente pelas esferas juridicamente institucionaliza-

    das das prticas comunicativas; e devem despertar um ceticismo ainda maioras observaes com que ele retrata as prticas sociais na esfera do Estado, jque aqui parece ter entrado no lugar das aes comunicativas a subordina-o do indivduo autoridade do Estado10.

    Aprofundar aqui essas primeiras restries significaria no s escreverum outro ensaio, mas tambm postular uma crtica da filosofia hegeliana doDireito. Tratava-se para mim de mostrar que h boas razes para retomarhoje o projeto hegeliano, ou seja, ver a causa de nossas patologias sociaisem uma absolutizao de modelos incompletos de liberdade, que s fazemsentido para o indivduo na qualidade de componentes imanentes de umacultura comunicativa da liberdade. Desse modo, parece adequado comoterapia dessas relaes patolgicas uma espcie de mudana de enfoqueconceitual que nos propicie o discernimento acerca da constituio comuni-cativa da liberdade. Uma discusso em torno da soluo que Hegel de fatoofereceu no captulo da "Eticidade" de sua Filosofia do Direito tomaria, noentanto , uma inflexo bem diferente: aqui ele fracassa tal seria minha tese por conta de um excesso de determinao, j que s pode pensar aconstituio comunicativa da liberdade como a concatenao de umaordem de instituies j estabelecidas.

    (10) Uma notvel anlise desseproblema se encontra emTheunissen, Michael. "Die ver-drngte Intersubjektivitt inHegels Philosophie des Re-chts". In: Heinrich, Dieter eHorstmann, Rolf-Peter (orgs.).Hegels Philosophie des Rechts.Stuttgart, 1982, pp. 317-381.

    Recebido para publicao em

    30 de abril de 2003.

    Axel Honneth professor deFilosofia Social na Universida-de Johann Wolfgang Goethe(Frankfurt/M.).

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