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ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM TEOLOGIA
SIMONE FURQUIM GUIMARES
EFSIOS 5.21-33 COMO MODELO DE DISCURSO DE GNERO
So Leopoldo
2011
SIMONE FURQUIM GUIMARES
EFSIOS 5.21-33 COMO MODELO DE DISCURSO DE GNERO
Trabalho Final de Mestrado Profissional Para obteno do grau de Mestre em Teologia Escola Superior de Teologia Programa de Ps-Graduao Linha de pesquisa: Leitura e Ensino da Bblia
Orientador: Verner Hoefelmann
Segundo avaliador: Flvio Schmitt
So Leopoldo
2011
SIMONE FURQUIM GUIMARES
EFSIOS 5.21-33 COMO MODELO DE DISCURSO DE GNERO
Trabalho Final de Mestrado Profissional Para obteno do grau de Mestre em Teologia Escola Superior de Teologia Programa de Ps-Graduao Linha de pesquisa: Leitura e Ensino da Bblia
Verner Hoefelmann - Mestre em Teologia - Escola Superior de Teologia
Flvio Schmitt - Doutor em Cincias da Religio - Escola Superior de Teologia
Saber esperar, sabendo ao mesmo tempo forar aquela hora que no pode esperar (D. Pedro Casaldliga).
Em agradecimento quelas pessoas que esto envolvidas, de alguma forma, com a educao popular da Bblia e que, com pacincia, auxiliam outros e outras na desconstruo de leituras e interpretaes de textos (bblicos) que levam a opresso ou a submisso, tornando estes textos mais prximos ao seu desgnio.
AGRADECIMENTOS
A Deus/Deusa que, no seu misericordioso amor, nos d a vida e nos acolhe
em todos os momentos, mostrando os caminhos da justia.
Ao Centro de Estudo Bblico (CEBI), por onde iniciei a leitura libertadora da
vida e a leitura engajada da Escritura, e continuo lendo, junto s comunidades,
buscando antecipar os sinais do Reino.
Faculdades EST e seus professores, pois l trilhei os caminhos de
especializao em teologia e Bblia.
s/aos telogas/os e biblistas feministas que buscam a justia na
equiparao de gnero, a partir da desconstruo de ideologias patriarcais e
sexistas, e, em especial, ao Pe. Jos Comblin, falecido neste ano de 2011.
Aos meus pais e familiares que foram a base formadora do meu ser social e
cristo. In memoriam de Dom Miguel, bispo da Diocese de Jata/GO, smbolo de
simplicidade e presena amorosa.
minha querida filha, por alimentar minha esperana e me dar foras na
busca por um mundo mais justo.
Ao meu amado companheiro, que no aconchego de seus braos e de suas
palavras me revela um jeito novo de viver uma relao livre da dominao sexista.
RESUMO
A violncia tema recorrente na sociedade brasileira. Suas razes remontam antiguidade e seus efeitos permanecem, hoje, perceptveis no cotidiano de muitas mulheres em todo o mundo. Sabe-se que, no Brasil, a cada 15 segundos uma mulher agredida, e que a estatstica perversa de mulheres mortas em seus lares ainda motivo de tabu em muitos setores da sociedade. luz dessa perspectiva de violncia contra a mulher, a pesquisa bblico-teolgica de corte feminista vem produzindo anlises relevantes a respeito do contexto scio-religioso, e em dilogo com as pesquisas sociolgicas vem possibilitando novos olhares sobre o problema. Dessa forma, a inteno neste trabalho sondar o discurso presente na elaborao do texto de Efsios 5.21-33, o qual contm diretivas especficas para o comportamento da mulher crist, e avaliar at que ponto tal diretiva se apia em amplos movimentos culturais do contexto em que foi produzido e suas possveis vinculaes com a ulterior realidade religiosa. Palavras-chave: Discurso. Enunciado. Religio. Violncia. Mulher.
ABSTRACT
The violence is a recurring theme in Brazilian society. Its roots go back to antiquity and its effects remain, today, noticeable in the daily life of many women around the world. It is known that in Brazil every 15 seconds and 1 woman is assaulted, and this perverse statistics of women dying in their homes is still a taboo subject in many sectors of society. As the prospect of violence against women, the study of biblical and theological feminist cutting has produced relevant analysis regarding the socio-religious, and in dialogue with the sociological research has fostered new perspectives on the problem. Thus, the aim here is to probe the discursive discourse in drafting the text of Ephesians 5. 21-33, which contains specific directives for the conduct of the Christian woman, and assess how far such a policy is based on broad cultural movements of the context in which it was produced and their possible links with the later religious reality. Keywords: Discourse. Utterance. Religion. Violence. Women.
SUMRIO
INTRODUO ............................................................................................................9
1 O TEXTO BBLICO E SUA INTERPRETAO......................................................14
1.1 Introduo ........................................................................................................14
1.2 A religio, a lei e a filosofia domstica greco-romana........................................16
1.3 A cidade de feso.............................................................................................18
1.4 A carta aos Efsios ...........................................................................................19
1.5 A Carta de Paulo aos Efsios (cap. 5, vs. 21-33) ..............................................20
1.6 Exortao s mulheres.....................................................................................21
1.7 Exortao aos maridos.....................................................................................25
1.8 Consideraes finais do captulo ......................................................................27
2 ANLISE FOUCAULTIANA SOBRE O DISCURSO DE EFSIOS 5.21-33............32
2.1 Introduo ........................................................................................................32
2.2 Definindo discurso............................................................................................33
2.3 Elementos internos do discurso: enunciado e funo enunciativa.....................34
2.4 Elementos externos do discurso: modalidades enunciativas.............................38
2.5 A ordem do discurso: produo do discurso......................................................43
2.6 Consideraes finais do captulo ......................................................................45
3 A REALIDADE DA VIOLNCIA DOMSTICA ........................................................47
3.1 Introduo ........................................................................................................47
3.2 A linguagem, os smbolos e os discursos no imaginrio religioso cristo ..........48
3.3 O corpo como objeto de poder e dominao na cultura patriarcal.....................55
3.4 Consideraes finais do captulo ......................................................................58
CONCLUSO............................................................................................................60
BIBLIOGRAFIA .........................................................................................................65
INTRODUO
A violncia domstica1 contra as mulheres fruto de uma cultura que foi
naturalizada ao longo da histria, na qual se construiu um discurso de discriminao,
inferiorizao, subordinao e violncia contra a mulher. Neste discurso, foi
estabelecido o papel social do homem e o da mulher, as desigualdades das
relaes, em que o homem detm o poder sobre a mulher, alm de impor o
comportamento excludente e repressivo s mulheres, violentando sua liberdade e
autonomia, gerando assim uma cultura de violncia sexista.
Estamos acostumadas/os s diferenciaes de papis sociais, as quais
aprendemos a no questionar e que podem ter sido estabelecidas por diferentes
grupos e pessoas nas suas interpretaes convenientes, e em seus contextos
histricos.
A violncia contra as mulheres2 acontece em todas as classes sociais,
culturas e religies. A sociedade, via de regra, tem acobertado este tipo de violncia.
Na maioria das vezes no tomamos conhecimento sobre a violncia domstica e o
agressor fica impune, porque as mulheres/vtimas no procuram seus direitos
(delegacias de polcia, ministrio pblico, etc) por medo, por falta de informao ou
por falta de recursos. Percebemos a existncia da violncia somente por meio de
estatsticas feitas a respeito, sobre as quais elencaremos aqui alguns dados
pesquisados.
Segundo o relatrio A violncia Domstica contra as Mulheres e Crianas,
desenvolvido pelo Instituto Innocenti,3 a porcentagem de mulheres no mundo que
1 CUNHA, Rogrio Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violncia domstica: Lei Maria da Penha (Lei
n. 11.340/2006): comentada artigo por artigo. 2. ed. rev. atual. e ampl. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 30. De acordo com a Lei n. 11.340/2006 (art.5), entende-se por violncia domstica e familiar toda a espcie de agresso (ao ou omisso) dirigida contra a mulher (vtima certa), num determinado ambiente (domstico, familiar ou de intimidade), baseada no gnero, que lhe cause morte, leso, sofrimento fsico, sexual ou psicolgico e dano moral ou patrimonial.
2 Tanto as Naes Unidas quanto o Conselho da Europa consideram que a violncia contra as mulheres, decorrente das relaes de foras desiguais entre homens e mulheres, e que conduz a uma discriminao grave contra o sexo feminino, tanto na sociedade quanto na famlia, viola os direitos da pessoa humana e as suas liberdades fundamentais, impedindo de os exercer parcial ou totalmente; atenta contra a integridade fsica, psquica e/ou sexual das Mulheres. Disponvel em: . Acesso em: 10 jul. 2011.
3 FONDO DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LA INFANCIA. Centro de Investigaciones Innocenti. La Violncia. Domstica Contra Mujeres y Nias. Innocenti digest, Florencia, n. 6, jun. 2000.
10
sofreram algum tipo de mau-trato familiar oscila entre 20% e 50%. De acordo com
este relatrio, em todo o mundo foi constatado que a violncia domstica contra as
mulheres acontece tanto em pases desenvolvidos como naqueles em vias de
desenvolvimento.
Segundo pesquisa realizada pela Fundao Perseu Abramo, mais de 2
milhes de mulheres so espancadas por ano no Brasil, mas apenas 40%
denunciam. O Relatrio Nacional Brasileiro (2002),4 que retrata o perfil da mulher
brasileira, traz o dado estatstico de que a cada 15 segundos uma mulher agredida
no pas, isto , a cada dia, 5.760 mulheres so espancadas no Brasil.
Ainda segundo a pesquisa da Fundao Perseu Abramo,5 desenvolvida em
2001, e que envolveu 2.502 entrevistas com mulheres acima de 15 anos, em 187
municpios das cinco regies brasileiras, cerca de uma em cada cinco brasileiras
(19%) declarou ter sofrido algum tipo de violncia por parte de algum homem; casos
de violncia fsica foram relatados por 16% delas; enquanto 2% das entrevistadas
citaram alguma violncia psquica e 1% lembrou de algum episdio de assdio
sexual.
Trazemos esses dados que expem, estatisticamente, a realidade de
violncia contra a mulher no intuito de esclarecer e justificar o motivo da presente
pesquisa, pois os inmeros casos de violncia contra as mulheres nos instigam a
fazer algumas perguntas: qual a origem desta violncia? As igrejas influenciam a
cultura sexista? Existe discurso sexista na religio, na teologia e, especialmente, nos
textos bblicos? Se h, por que encontramos este tipo de discurso?
Com estas perguntas colocadas, queremos analisar com maior profundidade
a produo do discurso sexista. E, para investigar um desses possveis discursos,
tomaremos como objeto de pesquisa o discurso tecido na carta aos Efsios 5,21-33.
Vale ressaltar a importncia que teve o trabalho realizado na Monografia do Curso
Disponvel em: . Acesso em: 26 fev. 2011. p. 4.
4 DIAS, Maria Berenice. 15 segundos: pela eliminao da violncia contra as mulheres. ADITAL, Agncia de Informao Frei Tito para a Amrica Latina. Disponvel em: . Acessado em: 25 nov. 2010.
5 MACHADO, Benedito. Pelo fim da violncia contra as mulheres: um compromisso tambm dos homens. Braslia: AGENDE, 2006. p. 27.
11
de Especializao para a elaborao deste trabalho final de mestrado profissional,6
j que nessa experincia acadmica levantamos a possibilidade de existir
determinada interpretao sexista na carta aos Efsios 5.21-33, mas percebemos a
necessidade de ir alm deste estudo e adentrarmos em uma discusso terica sobre
a produo do discurso formado ao longo da histria, segundo o qual a violncia
estaria legitimada teologicamente. Assim, o objetivo deste trabalho retomar alguns
aspectos desenvolvidos na monografia com o intuito de dar um alicerce discusso
posterior.
Optou-se por Efsios 5.21-33 (que trata da admoestao ao comportamento
das mulheres) como objeto desta pesquisa, porque julgamos que nesse discurso
pode haver exerccio de poder para controlar as mulheres na comunidade crist. Ao
nos ocuparmos com a contextualizao, encontraremos neste perodo o poder
patriarcal oriundo da tradio popular greco-romana, galvanizada por certos
princpios provenientes do judasmo, os quais podem ter sido transpostos para a
comunidade crist no intuito de controlar as mulheres que lideravam essa
comunidade.
Note-se que na tradio por trs da discursividade elaborada em Efsios
5.21-33 h uma tomada do modelo de comunidade crist baseada na relao
existente entre o senhorio da casa e sua funo como membro do grupo social.
Verifica-se que nesse texto a produo do discurso de poder se coaduna com certos
discursos usados pela sociedade ocidental, o que invariavelmente promove o
sexismo e, consequentemente, os mais variados tipos de violncia contra as
mulheres.
Quando propomos analisar a questo do discurso contido no cdigo
domstico em Efsios 5.21-33 como exemplo bblico do possvel discurso gerador
de violncia domstica contra a mulher, nos perguntamos sobre qual o tipo de
violncia contra as mulheres que desejamos tratar. Neste caso, em particular,
pretendemos tratar da violncia simblica7 que foi construda por um setor
6 GUIMARES, Simone Furquim. A interpretao do cdigo domstico em Efsios 5,21-33 como
exemplo bblico da naturalizao da violncia contra a mulher. 2009. 60 f. TCCP (Especializao em Bblia) Programa de Ps-Graduao em Teologia, Escola Superior de Teologia, So Leopoldo, 2009.
7 Por violncia simblica adotar-se- o conceito elaborado pelo socilogo Pierre Bourdieu. Forma de coao que se apoia no reconhecimento de uma imposio determinada, seja esta econmica, social ou simblica. A violncia simblica se funda na fabricao contnua de crenas no processo
12
hegemnico na sociedade ocidental. Queremos analisar os smbolos que
diferenciam os papis sociais como, por exemplo, o homem como portador de fora,
de inteligncia e imbudo pelo sagrado de uma misso como chefe, e a mulher como
um ser frgil, impotente, pecadora e referendada como tendo a submisso natural
de estar ao lado de quem possui a misso, isto , o homem. Queremos avaliar
aquilo que historicamente construdo, pois resulta de relaes dinmicas e conduz
construo de hierarquias, de discriminao, de subordinao e dominao
sexual.
Tomaremos como referencial terico, sobretudo, a teologia bblica feminista.
Segundo Ivoni Reimer, essa teologia examina e constata que o processo de escrita
dos textos bblicos produto de uma poca, cultura e religio.8 A teologia bblica
feminista prope suspeitar das leituras que afirmam a subordinao e inferioridade
de mulheres e outras pessoas marginalizadas. Reimer acrescenta que:
[...] no basta analisar a existncia de estruturas de opresso, mas imprescindvel averiguar e pesquisar, no passado e no presente, onde e como essas estruturas foram e so construdas, questionadas, transgredidas, superadas, ou o que ainda pode e deve ser feito.9
O presente trabalho prope trs caminhos para discutir as questes
levantadas acima. No primeiro captulo, faremos uma anlise do discurso presente
na carta aos Efsios 5.21-33, por se tratar de um texto bblico muito proclamado e
lido no espao eclesial, sobretudo durante a celebrao do matrimnio. Efsios 5.21-
33 um desenvolvimento cristolgico, eclesiolgico e teolgico de uma carta paulina
(1Co 11.3b) e de outra carta deutero-paulina (Cl 3.18-19). Escolhemos Efsios
porque consideramos que este texto nos mostra vestgios suficientes para
compreender o contexto social, filosfico e poltico da poca em que foi escrito. Isto
nos fornecer elementos necessrios para entender a influncia desta sociedade
que naturalizou o comportamento machista no somente do homem como tambm
de socializao, que induzem o indivduo a se posicionar no espao social seguindo critrios e padres do discurso dominante. Devido a este conhecimento do discurso dominante, a violncia simblica manifestao deste conhecimento atravs do reconhecimento da legitimidade deste discurso dominante. Em Pierre Bourdieu, a violncia simblica o meio de exerccio do poder simblico. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simblico. Rio de Janeiro: Bertarnd Brasil; Lisboa: Difel, 1989. p. 7-16.
8 REIMER, Ivoni R. Grava-me como selo sobre teu corao: teologia bblica feminista. So Paulo: Paulinas, 2005. p. 25.
9 REIMER, 2005, p. 27.
13
da mulher. Para isso, teremos como referencial terico a exegese e hermenutica
bblica feminista, sobretudo de autoras latino-americanas.
No segundo captulo, analisaremos o discurso encontrado em Efsios 5.21-
33, porm, a partir dos instrumentos de anlise filosfica de Michel Foucault. Vamos
usar esta ferramenta filosfica com o propsito de verificar como foram
desenvolvidos os discursos de poder naquela sociedade. Usaremos a pesquisa
sobre discurso nos livros de Foucault que tratam do poder como um tipo de saber.
Este instrumental reforar a pesquisa outrora analisada e ser um suporte para
refletirmos o contexto da violncia domstica. Assim, este captulo far uma ligao
entre o primeiro, que trata do texto, com o terceiro, que trata do contexto.
O terceiro captulo pretende analisar a realidade atual da violncia contra a
mulher. Para isso sero levantadas entrevistas realizadas com mulheres/vtimas, por
meio de uma pesquisa exploratria bibliogrfica de um vdeo. Na fala das mulheres,
enfocaremos a influncia religiosa que produziu e reproduziu a linguagem, os
discursos, os smbolos e o imaginrio androcntrico que levou dominao dos
corpos, sobretudo das sexualidades femininas. Para tanto, usaremos os seguintes
referenciais tericos: poder, saber, discurso e microfsica, encontrados nos livros
Microfsica do Poder, Histria da Sexualidade e O sujeito e o poder, bem como os
estudos de telogas/os, biblistas e socilogas/os feministas.
Em geral, optamos pela abordagem foucaultiana, pois ela pode ser
apropriada pelo estudo de cunho feminista, tendo em vista que ao analisar a
produo do discurso, tambm se analisa o discurso de poder presente nas redes
das relaes que nos constituem. Isto facilita entender a violncia sexista.
1 O TEXTO BBLICO E SUA INTERPRETAO
1.1 Introduo
Comecemos nosso trabalho com a anlise do texto bblico. Nele tentaremos
levantar elementos que indiquem um possvel discurso sexista que foi apropriado
pela sociedade ocidental ao longo da histria e que acabou por influenciar o
comportamento de violncia contra as mulheres. Para isso, vamos desenvolver uma
anlise da linguagem contida na carta aos Efsios 5.21-33. Nesta linguagem, vamos
atentar para o discurso e para os smbolos. Utilizaremos, como instrumental de
anlise, o mtodo crtico feminista, pois com ele tentaremos romper o silncio do
texto, buscar chaves e aluses que mostrem a realidade que no est dita
explicitamente no texto, pois o objetivo de tal trabalho o de desconstruir
interpretaes do texto bblico que legitimem, justifiquem e fundamentam a violncia
contra a mulher.
importante esclarecer que o presente trabalho no tem a pretenso de fazer
uma exegese do texto bblico, mas sim de analisar a eisegese realizada na
construo de interpretao do texto, especificamente quanto s palavras de forte
expresso androcntrica e de sentido patriarcal. Isto ser feito na inteno de
desconstruir o texto, isto , analisar sua construo histrica, a qual contm, em seu
todo, A Palavra de Deus; e desfiar possveis interpretaes atuais destas palavras e
sentidos especficos, que vm, ao longo do tempo, sendo usadas para balizar o
pensamento preponderante, e que legitima a relao patriarcal na sociedade
ocidental judaico-crist.
Optamos pela leitura bblica feminista porque a mesma tenta romper com
paradigmas ideolgicos patriarcais10 e androcntricos,11 profundamente arraigados
em nossa sociedade. Ivoni Reimer informa que:
10 FIORENZA, Elisabeth S. Caminhos da Sabedoria: uma introduo Interpretao Bblica
Feminista. So Bernardo do Campo: Nhanduti, 2009. p. 229-238. Sistema patriarcal significa literalmente o domnio do pai e geralmente entendido no mbito do discurso feminista num sentido dualista de afirmar a dominao invarivel de todos os homens sobre todas as mulheres. Discute-se se esse termo adequado porque, p. ex., homens negros no tm controle sobre mulheres brancas, e algumas mulheres (senhoras de escravas/os) tm poder sobre mulheres e homens subalternos (escravas/os).
11 FIORENZA, 2009, p. 30. Literalmente centrao no homem, da palavra grega aner, homem, varo, macho, masculino. Trata-se de um sistema lingustico e cultural que entende
15
Essa leitura nasceu e se desenvolveu no seio da Teologia da Libertao. E uma das preocupaes desta perspectiva teolgica, que possui em seu ramo a Teologia Feminista a recuperao da memria de mulheres na Bblia. Nesse processo de reapropriao histrica, vamos afirmando nossa dignidade e nosso valor na sociedade, na igreja, na casa, na rua, na poltica, na tica.12
Reimer explica que a leitura bblica feminista trabalha com a categoria de
gnero13 com o seguinte objetivo:
[...] observar alguns elementos no texto que ajudam a entender a realidade das relaes sociais que esto tecidas na vida do texto e na vida que o texto reflete. Um desses elementos o smbolo. Atravs dos smbolos podemos conhecer as relaes de poder na organizao scio-cultural.14
Por isso, para analisar o texto bblico na perspectiva de leitura15 e
hermenutica feminista,16 utilizaremos a categoria de gnero como instrumental de
anlise.17 E, a partir da chave simblica e de linguagem, faremos algumas perguntas
na abordagem do texto: perceber quais os principais smbolos e linguagens
utilizados tanto em relao s mulheres quanto aos homens; entender e aprofundar
o significado de um smbolo/linguagem; perceber quais as imagens de feminino e
masculino que um smbolo produz ou reproduz, e como elas vo fazendo histria
nos nossos corpos.
Inicialmente traaremos o contexto histrico em que foi escrito a carta aos
Efsios, tendo em vista que por trs do texto existe um contexto especfico
constitudo por determinadas religies, leis, filosofias, economias, culturas, etc.
macho/masculino/homem/varo como a norma e as mulheres como secundrias, perifricas e desvio do padro.
12 REIMER, 2000, p. 20. 13 A categoria gnero aponta para o conjunto de prticas, smbolos, representaes, normas e valores sociais que as sociedades elaboram a partir da diferena sexual antomo-fisiolgica e que do sentido satisfao dos impulsos sexuais, reproduo da espcie humana e, em geral, aos relacionamentos entre as pessoas. STRHER, Marga Janete. Caminhos de resistncia nas fronteiras do poder normativo: um estudo das Cartas Pastorais na perspectiva feminista. 2002. 283 f. (Doutorado em Teologia) Ps-Graduao, Escola Superior de Teologia, So Leopoldo, 2002.
14 REIMER, 2000, p. 20. 15 Para Fiorenza, a leitura bblica feminista, visa romper o silncio sobre a experincia e contribuio
histricas e teolgicas de mulheres no texto bblico, buscando chaves e aluses que indiquem a realidade sobre o que os textos antropocntricos calam. FIORENZA, Elisabeth S. As origens crists a partir da mulher: uma nova hermenutica. So Paulo: Paulinas, 1992. p. 65.
16 Do verbo grego hermeneuein, que pode ser traduzido como interpretar, submeter exegese, explicar, traduzir. O termo hermenutica se refere tanto teoria quanto prtica da interpretao.
17 Para Fiorenza, a hermenutica feminista um mtodo crtico de anlise que permite s mulheres ir para alm de textos bblicos androcntricos a seus contextos scio-histricos. Ao mesmo tempo, essa hermenutica deve procurar modelos tericos de reconstruo histrica, que coloquem as mulheres no s na periferia mas no centro da vida e da teologia crists. FIORENZA, 1992, p. 63.
16
Partimos do pressuposto de que estes aspectos influenciaram a escrita da carta. Em
seguida, exporemos o texto em comento para analisarmos os versculos que tratam
das exortaes s mulheres e aos homens. Concluiremos o captulo tentando
buscar algumas respostas sobre a origem da tica crist para a criao destes
cdigos, e como se deu a sua interpretao ao longo dos tempos, de forma a
legitimar a relao de dominao do homem sobre a mulher.
1.2 A religio, a lei e a filosofia domstica greco-romana
importante estudar a religio, a lei e a filosofia greco-romana, porque as
instituies e as crenas que encontramos nos perodos do cristianismo primitivo
nada mais so que o natural desenvolvimento de crenas e de instituies
anteriores. Por isso, torna-se preciso procurar-lhes as razes em um passado bem
longnquo.
Fustel de Coulanges informa que:
[...] tanto na Grcia como em Roma a famlia compem-se do pai, da me, de filhos e escravos. E cada casa possui sua religio domstica e seu altar para cultuar o deus considerado sagrado. O deus cultuado na casa o senhor do lar, estia despoina, e que os latinos conhecem por Lar familiae Pater.18 Essa religio que vai determinar a condio de cada membro. O pai o primeiro junto ao fogo sagrado: ele que o acende e o conserva; o seu pontfice. Em todos os atos religiosos desempenha a funo mais elevada. No pai repousa o culto domstico. A religio no coloca a mulher em posio to elevada. verdade que toma parte nas funes religiosas, mas no como senhora absoluta do lar.19
A partir da organizao religiosa no lar, a famlia se estruturava em um corpo
organizado, era uma pequena sociedade com o seu chefe e o seu governo.
Coulanges diz que:
O pai, alm de ser o homem forte protegendo os seus e tendo tambm a autoridade para fazer-se por eles obedecer, tambm era o sacerdote, o herdeiro do lar, o continuador dos antepassados, o tronco dos descendentes, o depositrio dos ritos misteriosos do culto e das frmulas secretas da orao. Toda a religio reside no pai.20
18 Segundo COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. So Paulo: Martins Fontes, 1998, o sentido
primitivo da palavra lar o de senhor, prncipe, mestre. p. 10. 19 COULANGES, 1998, p. 68. 20 COULANGES, 1998, p. 71.
17
Segundo o direito grego e romano, que se originaram dessas crenas
religiosas, era concorde na sociedade considerar a mulher como inferior na
estruturao social. Proibia-se s mulheres terem um lar para si ou serem chefe do
culto. Coulanges diz que em Roma a mulher recebe o ttulo de materfamilias, porm
perde-o quando seu marido morre.21 Jamais d ordens, no mesmo livre, nem
senhora de si prpria, sui juris. No lar, est sempre ao lado de outrem, repetindo a
orao desse outro; para todos os atos da vida civil necessita de tutor.
As leis greco-romanas diziam que:
[...] enquanto a mulher estiver moa, est sujeita a seu pai; morto o pai, a seus irmos e aos seus agnados; casada, a mulher est sob tutela do marido; morto o marido, no volta para a sua prpria famlia porque renunciou a esta para sempre, pelo casamento sagrado; a viva continua submissa tutela dos agnados de seu marido, isto , tutela de seus prprios filhos, se os tem, ou, na falta destes, dos mais prximos parentes do marido. O marido tem sobre ela tanta autoridade que pode, antes de morrer, designar-lhe tutor, e at mesmo escolher-lhe novo marido.22
Irene Foulkes situa a origem da estrutura dos cdigos domsticos nos
escritos de Aristteles (sculo IV a.C) e a seo de sua Poltica que versa sobre a
administrao da casa.
Como na Grcia antiga, a casa estava organizada com base em trs conjuntos de pessoas: amo-escravo, esposo-esposa, pai-filhos, em cada uma destas relaes se exige autoridade por um lado e subordinao por outro, porque, no pensamento de Aristteles, o macho por natureza superior e a fmea inferior, o macho governa e a fmea sujeito (Poltica I.1254b).23
Assim como os documentos aristotlicos, os escritos posteriores dos
pensadores e moralistas do sculo I (os esticos e os Padres da Igreja, Flon de
Alexandria e Flvio Josefo), que receberam influncia de Aristteles, so dirigidos
explicitamente a leitores vares situados no estrato superior da sociedade, os
homens encarregados das empresas familiares.
Reimer informa que na sociedade romana tambm havia pensadores que
refletiam filosoficamente sobre o papel das mulheres, como o filsofo Ccero.
21 COULANGES, 1998, p. 69. 22 COULANGES, 1998, p. 69. 23 FOULKES, Irene. Os cdigos de deveres domsticos em Colossenses 3,18-4,1 e Efsios 5,22-6,9:
estratgias persuasivas, reaes provocadas. RIBLA: Deuteropaulinas: um corpo estranho no corpo paulino?, Petrpolis, Vozes, n. 55, 2006. p. 55.
18
Segundo ela Ccero defendia que a liberdade sexual para as mulheres tem por
consequncia tambm a participao delas no exerccio do poder pblico. E tal
situao parece-lhe tornar a sociedade catica.24 No entanto, parece que naquela
poca j existia insubordinao de mulheres, apesar das prticas do poder oficial,
pois, segundo Ccero: deve existir um educador que ensine aos homens como ter
influncia determinante sobre as mulheres. 25
1.3 A cidade de feso
Segundo informaes obtidas na internet,26 feso era uma das ricas cidades
situadas na costa oeste da sia Menor, de fcil acesso ao mar Egeu. Durante o
Imprio Romano, era o centro do comrcio martimo e rodovirio, centro da indstria
txtil. Era a quinta cidade mais populosa do Imprio Romano. Em feso se
destacavam a lei, a filosofia e as manifestaes religiosas. Havia um importante
culto romano deusa Diana, conhecida como a deusa da fertilidade, reconhecida
pelos gregos como rtemis. Nos tempos apostlicos, feso foi uma das cidades do
Imprio Romano em que o cristianismo mais se difundiu.
Em feso, Colossos e outras cidades da provncia romana da sia, no
sculo I, a economia e a poltica estavam dominadas por uma pequena elite de
proprietrios, que representavam no mais que 5% a 7% da populao total. Um
tero da populao era constituda por escravos e escravas. A casa era o local que
estas famlias ricas organizavam sua empresa particular. Podia ser uma oficina de
tecido ou cermica, um comrcio de produtos como o vinho ou o azeite, um negcio
de transporte martimo ou terrestre.27
24 REIMER, 2005, p. 78. 25 REIMER, 2005, p. 80. 26 feso (cidade). In: Infopdia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2011. Disponvel em:
. Acesso em: 23 fev. 2011. 27 FOULKES, 2006, p. 54.
19
1.4 A carta aos Efsios
Conforme encontrado em diversos comentrios bblicos,28 a epstola aos
Efsios uma carta circular, dirigida a vrias comunidades crists da sia Menor. O
carter circular da epstola confirma-se pelo fato de a meno a feso, no verso
1,1 faltar em muitos manuscritos antigos considerados importantes.29 Oscar
Cullmann argumenta que possvel que ela fosse enviada a diversas igrejas e que o
nome do destinatrio ficasse em branco no original, sendo preenchido nas cpias
que foram ento remetidas para essas igrejas.30 Jos Comblin acrescenta que o
ttulo aos Efsios fora colocado somente no final do sculo II, na lista do cnon.31
A epstola aos Efsios aborda questes tpicas das comunidades crists em
torno do ano 90 d.C. Por causa da sua datao tardia, a carta no de autoria de
Paulo, pois o apstolo morreu na dcada de 60. Alm disso, em Ef 2.20 pressupe-
se que os apstolos esto mortos, pois afirmado que a Igreja est construda
sobre o fundamento dos apstolos e profetas. Comblin considera que se Paulo se
autodenominava apstolo e intermedirio de Cristo, no poderia ele ter escrito uma
carta sob seu prprio fundamento. Portanto, no perodo em que foi escrita a carta
aos Efsios, Paulo j morrera e tornara-se fundamento da Igreja. Os cristos agora
vivem da herana dos apstolos. Portanto, possvel que a carta tenha sido
escrita por um discpulo de Paulo, morador da regio da sia, comprometido com a
herana paulina.
Os versculos 5. 21-6. 9 regulamentam os comportamentos familiares entre
esposas e maridos, filhos e pais, escravos e senhores. So os chamados cdigos
domsticos ou tbuas de posies. Os cdigos domsticos tambm podem ser
encontrados em: Cl 3.18-4.1; 1Pe 2.18-3.7; 1Tm 2.11-15; 5. 3-8; 6. 1-2; Tt 2. 2-10.
28 Ver Introdues Carta aos Efsios nas seguintes edies da Bblia: BBLIA. Portugus. TEB.
1995. BBLIA TEB: com o Antigo e o Novo Testamento traduzidos dos textos originais hebraico e grego com introdues, notas essenciais e glossrio. So Paulo: Paulinas, Loyola, 1995; BBLIA. Portugus. CNBB. 2001. CONFERNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. BBLIA Sagrada: traduo da CNBB com introdues e notas. So Paulo: Ave Maria, 2001; bem como nas obras de BORTOLINI, Jos. Como ler a carta aos Efsios: o universo inteiro reunido em Cristo. So Paulo: Paulus, 2001. COMBLIN, Jos. Epstola aos Efsios. Petrplis: Vozes, 1987.
29 Ver aparato crtico em BBLIA. N.T. Grego. Nestle-Aland. 1979. NESTLE, Eberhard; NESTLE, Erwin; ALAND, Kurt. Novum Testamentum Graece. 26. Aufl. ed. Stuttgart: Deutsche Bibelstiftung, 1979. p. 503. A expresso no est presente no papiro Chester Beatty (o manuscrito mais antigo da carta aos Efsios, de cerca do ano 200), nos cdices Sinatico e Vaticano e em outras fontes, entre elas em Marcio, que se refere a esta carta como a destinada aos Laodicenses.
30 CULMANN, Oscar. A formao do Novo Testamento. So Leopoldo: Sinodal, 1984. p. 78. 31 COMBLIN, 1987, p. 18.
20
Marga Strher nos explica que:
[...] os cdigos orientam-se pela direo vertical da construo sociolgica da antiga concepo de casa, concentrada no homem como marido, pai e senhor, e, ao mesmo tempo, se estende de forma horizontal a todas as casas.32
E que:
Os cdigos domsticos expem os deveres das esposas (5,22-24.33), dos maridos (5,25 e 28), dos filhos (6,1-2); dos pais (6,3); dos escravos (6,5-8) e dos senhores (6,9). Percebe-se que o interesse maior do cdigo de Ef o relacionamento entre esposa e marido.33
Como mencionado anteriormente, a casa era o local em que as famlias
ricas organizavam suas empresas. A administrao da casa tambm serviu de
modelo para o governo das cidades organizarem sua administrao. Apreende-se
da que se dava muita importncia relao que havia entre os integrantes da
famlia.
1.5 A Carta de Paulo aos Efsios (cap. 5, vs. 21-33)
As palavras em negrito so as que pretendemos analisar a posteriori. Este
texto foi tirado da verso de Almeida Revista e Atualizada.34
21 subordinando-vos uns aos outros no temor de Cristo. 22 As mulheres sejam submissas ao seu prprio marido, como ao Senhor;
23 porque o marido a cabea da mulher, como tambm Cristo a cabea da igreja, sendo este mesmo o salvador do corpo.
24 Como, porm, a igreja est sujeita a Cristo, assim tambm as mulheres sejam em tudo submissas ao seu marido.
25 Maridos, amai vossa mulher, como tambm Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela,
26 para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de gua pela palavra,
27 para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mcula, nem ruga, nem coisa semelhante, porm santa e sem defeito.
32 STRHER, 2002, p. 156. 33 STRHER, 2002, p. 152. 34 BIBLE WORKS LLC: software for Biblical Exegesis & Research 6. Norfolk: Bibleworks LLC, 2006.
Verso 6. CD-ROM.
21
28 Assim tambm os maridos devem amar a sua mulher como ao prprio corpo. Quem ama a esposa a si mesmo se ama.
29 Porque ningum jamais odiou a prpria carne; antes, a alimenta e dela cuida, como tambm Cristo o faz com a igreja;
30 porque somos membros do seu corpo. 31 Eis por que deixar o homem a seu pai e a sua me e se unir sua
mulher, e se tornaro os dois uma s carne. 32 Grande este mistrio, mas eu me refiro a Cristo e igreja. 33 No obstante, vs, cada um de per si tambm ame a prpria esposa
como a si mesmo, e a esposa respeite o marido.
1.6 Exortao s mulheres
Vs que temeis a Cristo, submetei-vos uns aos outros; mulheres, sede submissas aos vossos maridos, como ao Senhor. Pois o marido a cabea da mulher, assim como Cristo a cabea da Igreja, ele, o Salvador do seu corpo. Mas, como a Igreja submissa a Cristo, sejam as mulheres submissas em tudo aos seus maridos[...].e a mulher, respeitar o seu marido. (Ef 5.21-24,33b)35
Aqui vamos analisar Ef 5.21-24,33 que trata do discurso de exortao s
mulheres. Mas, no verso 21, est inserido um princpio que serve de ttulo para toda
a percope em questo. A frase subordinai-vos uns aos outros (
) afirma que no pode haver superiores e nem inferiores, todos so iguais
perante ao Senhor. Porm, as conseqncias que o autor tira disso so insuficientes
e culturalmente condicionadas.
Da exortao que se faz do verso 22 ao verso 24, pode-se perceber, no
conjunto, o uso da retrica36 como discurso de persuaso para os grupos
particulares (esposas, esposos). Foulkes37 nos informa que se trata de uma tcnica
muito usada, neste perodo, pela sociedade e filosofia greco-romana. Estudar esta
tcnica nos fornecer algumas chaves para analisar o texto. Foulkes nos d uma
explicao sobre o uso da retrica em Efsios 5. 22-24:
35 BBLIA Edio Ecumnica: TEB. So Paulo: Loyola, 1994.
36 A pesquisa da retrica afirma que textos e interpretaes bblicas so discursos argumentativos e persuasivos que implicam objetivos de autoras/es e estratgias lingustico-simblicas, bem como a percepo e construo da parte da audincia. Reconhece que a interpretao de textos e a produo de sentido so determinadas pelos lugares scio-poltico-histricos particulares e pelo interesse e poder poltico-cultural-religioso. CROATTO, Jos Severino. Hermenutica Bblica: para uma teoria da leitura como produo de significado. So Leopoldo: Sinodal, 1986.
37 FOULKES, 2006, p. 63-64.
22
[...] o autor estabelece uma relao direta com um grupo particular (esposa, esposo) por meio de um vocativo que encabea um mandato. Para justificar o mandato, o autor usa a tcnica de desenvolver uma srie de metforas e comparaes interconectadas que a explique:
Imperativo esposas, submetem-se a seus prprios esposos [...]
Metfora 1 o esposo cabea de sua esposa.
Metfora 2 Cristo cabea e salvador da Igreja.
Comparao o esposo cabea da esposa assim como Cristo cabea da Igreja.
Metfora 3 a qual seu corpo (a Igreja o corpo de Cristo).
Metfora 4 a Igreja se submete a Cristo.
Analogia com comparao as esposas devem submeter-se a seus esposos como a Igreja se submete a Cristo.38
Os retricos da poca usavam metforas, comparaes e analogias com o
intuito de ampliar ou modificar a compreenso que o auditrio tinha sobre alguma
coisa que j conhecia. Neste sentido, o que j era conhecido era o dever da esposa
de submeter-se ao esposo.
O verbo repetido nos versos 21, 22 e 24 significa subordinar-
se, submeter-se, sujeitar-se, obedecer.39 A palavra grega subordinar-se, muito
geral e significa toda dependncia requerida por uma ordem fsica, jurdica ou moral.
Nesse sentido, Strher afirma que a exortao supe uma sociedade em que as
esposas esto num nvel inferior ao dos seus maridos40 e para confirmar isto, expe
alguns filsofos que usavam a mesma expresso em seus tratados:
[...] a exortao Vs mulheres, subordinai/submetei-vos aos homens como convm no Senhor, foi muito usada por filsofos judeu-helenistas, como Plutarco, Epteto, Pseudo-Calistenes, Filo, Josefo, alm de governos como Alexandre. Nos cdigos domsticos usado na voz mdia, u`pota,ssesqtai, que literalmente quer dizer colocar-se debaixo de ou sob a ordem de algum ou de alguma situao.41
Nos versculos 22, 23 e 24 h um discurso moral para exortar as mulheres a
se submeterem aos seus maridos, assim como se submetem ao Senhor. Para isso,
o autor faz a relao marido-cabea, mulher-corpo assim como Cristo-cabea,
igreja-corpo para fundamentar a subordinao da mulher ao homem. A palavra
Igreja () feminina. A palavra Cristo masculina. Para Jos Comblin,
38 FOULKES, 2006, p. 63-64. 39 RUSCONI, Carlos. Dicionrio do Grego do Novo Testamento. So Paulo: Paulus, 2005. p. 475. 40 STRHER, 1998, p.128. 41 STRHER, 1998, p.128.
23
[...] teologicamente trata-se de um argumento eclesiolgico para legitimar a mulher como devendo estar subordinada ao homem porque a Igreja est subordinada a Cristo. Este argumento j conhecido pela ideologia patriarcal da poca. Provavelmente uma estrutura recebida da tradio judeu-helenstica. Uma vez que existe tal subordinao, a relao entre Cristo e Igreja invocada para suavizar a subordinao da esposa ao marido como um dever religioso.42
Em Efsios, podemos encontrar um sincretismo do imaginrio judaico dos
profetas do Primeiro Testamento. Osias, Jeremias e Ezequiel falam da relao
matrimonial de Deus como o esposo e o povo de Israel como sendo a esposa.
Acredita-se que Efsios pretendia que a sociedade fizesse a mesma relao
hierrquica entre Deus e o seu povo, entre Cristo e a Igreja, entre o homem e a
mulher.
No entanto, Martinez diz que:
[...] a anlise da metfora do matrimnio no se limita a esclarecer a relao que h entre Deus e o seu povo. Ela fornece a possibilidade de observar e imaginar as relaes de gnero e poder que sustm a estrutura social da poca. Imaginar Deus como homem/varo fortalecia o poder masculino e a submisso das mulheres.43
Imaginar Deus como homem/varo antropomorfiz-lo e torn-lo como
modelo para construir e legitimar a masculinidade hegemnica presente na
sociedade ocidental. Martinez argumenta ainda que: [...] essa ideologia patriarcal
que nasceu no seio do pensamento judaico e que corroborada no contexto do
Novo Testamento, viaja pela histria, e conduzida pela teologia e filosofia para
perpetuar o status quo.44
Outro termo muito usado na sociedade greco-romana, que podemos
identificar como sendo uma expresso androcntrica, est inserido no verso 22: ao
Senhor ( ). A sociedade era constituda de um poder piramidal, no qual o
senhor est no topo dessa pirmide, o kyrios. Fiorenza entendeu que a sociedade
da poca era constituda por uma estrutura kiriarcal e no patriarcal, porque a
expresso kyrios denota um poder que supera o crculo familiar (esposa, filhos/as),
42 COMBLIN, Jos. Epstola aos Efsios. (Srie Comentrio Bblico). Petrpolis: Vozes, 1987. p. 85. 43 MARTNEZ, Raquel C. R. Rompendo velhas mortalhas: a violncia contra a mulher e sua relao
com o Imaginrio Androcntrico de Deus na Igreja Metodista do Chile. So Bernardo do Campo: FFCR, 2004. p. 119.
44 MARTINEZ, 2004, p. 119.
24
visto que o kyrios tem poder sobre todos aqueles e aquelas que estejam
subordinados a ele:
A melhor maneira de conceber o kyriarcado como um sistema piramidal complexo de estruturas sociais interseccionais e multiplicativas de sobreordenao (dominao) e subordinao, de domnio e opresso. As relaes kyriarcais de dominao so construdas sobre o direito de propriedade dos homens da elite, e sobre a explorao, dependncia, inferioridade e obedincia de mulheres.45
Fiorenza diz ainda que o modelo kyriarcal romano de poder imperial era
legitimado pela filosofia neoaristotlica, que penetrou nas Escrituras crists sob a
forma de prescries patriarcais que exigiam a submisso.
A Primeira Carta de Pedro, por exemplo, admoesta crist (o)s que so servas/os a serem submissas/os, at mesmo a amos brutais (2,18-25), e instrui esposas nascidas livres a se submeterem a seus maridos, at mesmo a maridos no cristos (3,1-6). Pede tambm s pessoas crists a sujeitar-se ao imperador e a seus governadores e a honr-los como soberanos (2, 13-17). A antiga igreja ps-constantina tem o mximo de semelhana com esta pirmide imperial romana, apenas em roupagem crist.46
O termo (cabea)47 refere-se fonte e fora que possibilita a
existncia, o crescimento e o aperfeioamento do corpo. Este sentido pode ser
entendido em Ef 4.13-16, segundo o qual se exorta que os cristos deixem para trs
a infncia espiritual, com sua instabilidade e vulnerabilidade, e cresam at chegar a
serem como Cristo, aquele que cabea.
Strher informa que:
[...] na antropologia grega cabea tem a precedncia sobre os demais membros; ela representa o princpio de autoridade e a razo. Isso tem implicaes para a formao das estruturas de liderana posteriores nas comunidades crists. Para o homem, como cabea da famlia que se destinam as funes de direo da comunidade. A organizao da comunidade ter como fundamento o modelo de famlia patriarcal. Neste sentido, a mulher, tanto no espao da casa como da comunidade, ocupar uma posio de submisso. Em contrapartida, o homem ocupar posio de direo, pois se a cabea da casa, dotado de razo e superioridade; na igreja ocupar tambm a funo de direo, pois ser representante de Cristo (cabea da igreja).48
45 FIORENZA, 2009, p. 137. 46 FIORENZA, 2009, p. 139. 47 RUSCONI, Carlos. Dicionrio do Grego do Novo Testamento. So Paulo: Paulus, 2005. p. 265. 48 STRHER, 1998, p. 157.
25
No v.24 se repete o v.22 com o acrscimo em tudo. A subordinao resulta
da situao de cabea do homem. A mulher vista como quem recebe e o homem
como quem d. A mulher passiva e o homem ativo. Essa a mesma relao
encontrada na tradio Greco-romana a respeito da situao do homem em relao
aos rapazes e mulheres.49
1.7 Exortao aos maridos
Maridos, amai as vossas mulheres como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela; ele quis com isto torn-la santa, purificando-a com a gua que lava, e isto pela Palavra; ele quis apresent-la a si mesmo esplndida, sem mancha nem ruga, nem defeito algum; quis a sua Igreja santa e irrepreensvel. assim que o marido deve amar a sua mulher, como o seu prprio corpo. Aquele que ama a sua mulher ama a si mesmo. Ningum jamais odiou a sua prpria carne; ao contrrio, ns a nutrimos e cercamos de cuidado como Cristo faz para com a sua Igreja; no somos ns membros do seu corpo? por isso que o homem deixar o seu pai e a sua me, ele se ligar sua mulher, e ambos sero uma s carne. Este mistrio grande: eu, por mim, declaro que ele concerne ao Cristo e Igreja. Em todo caso, cada um, no que lhe toca, deve amar a sua mulher como a si mesmo.(Ef 5. 25-33a).50
No discurso retrico, encontrado na exortao acima, j no se v mais as
metforas e comparaes anteriores. O autor inicia o discurso usando o imperativo
homens, amai as mulheres que ser acompanhado de analogias do tipo: como
tambm Cristo amou a igreja.51 Esta tcnica serve para persuadir o grupo dos
homens, considerados, na poca, superior e, por conseguinte, com direitos e
deveres de governar as mulheres.
Em Efsios, repete-se por trs vezes (5. 25.28,33) a exortao para os
esposos amarem suas esposas. Amor traduz aqui a palavra ()52 agpe que
significa tambm afeio.
Comblin diz que amor: [...] a relao entre Deus e o seu povo, a relao
entre os membros do povo, entre Cristo e o Pai, entre Cristo e os discpulos, entre o
Pai e os discpulos, entre os discpulos.53 Amor um ato de oferta, sacrifcio e
preocupao. O autor desenvolve este preceito com a comparao com Cristo.
49 FOUCAULT, Michel. Histria da Sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984. p. 237-259.
50 BBLIA Edio Ecumnica: TEB. So Paulo: Loyola, 1994
51 FOULKES, 2006, p. 64. Aqui ela exemplifica a explicao sobre o discurso retrico para o grupo de homens.
52 RUSCONI, Carlos. Dicionrio do Grego do Novo Testamento. So Paulo: Paulus, 2005, p. 17. 53 COMBLIM, 1987, p. 91.
26
Cristo tambm amou. Segundo a doutrina paulina, Cristo amou os seres humanos e
se entregou por eles (Gl 2.20). Em Ef 5.2 se usam as mesmas palavras que
encontramos aqui: Cristo tambm nos amou e se entregou por ns. A novidade
aqui que o amor e a entrega tm por destinatria a Igreja. Comblin faz uma crtica
sobre o destinatrio da referida exortao:
[...] h uma desigualdade permanente em todo este contexto, porque somente se fala do amor do marido. A mulher no chamada a amar. A mulher concebida como passiva, receptiva do amor do homem. O uso da comparao com Cristo-Igreja a partir do binmio cabea-corpo, levou a reduzir a mulher a um papel passivo. Pois, no esquema da salvao, Cristo ativo e a Igreja receptiva.54
Fiorenza acrescenta a seguinte percepo:
Percebe-se o uso da cristologia para consolidar a posio inferior da esposa no relacionamento matrimonial, visto que enquanto as exortaes aos maridos consistem em persuadi-los a viver a relao de casamento como cristos, ao passo, que as exortaes s esposas de manterem um comportamento social de submisso.55
E Strher concorda que: [...] ao exigir aos maridos cuidar e alimentar as
mulheres (5.29) ratifica-se aqui a dependncia das mulheres aos seus maridos, pois
at a prpria alimentao depende da boa vontade deles.56 J para Comblin:
[...] a citao de Gn 2,24 em Ef 5,31, tomada como o texto fundador do casamento e tambm como anncio de Cristo e da Igreja. Ao largar sua famlia e unir-se mulher (V.31), o homem se coloca sob um pater famlias de outro grupo familiar.57
E, em Efsios 5. 32: Grande este mistrio [...], de acordo com Comblin, a
traduo de para sacramentum na Vulgata, levou a Igreja, na Idade
Mdia, a considerar o matrimnio como um dos sete sacramentos.
Na concluso da percope (Ef 5.33), o autor exorta mais uma vez para que
os esposos amem suas mulheres e que as mulheres temam seus maridos. Verifica-
54 COMBLIN, 1987, p. 92. 55 FIORENZA, 1992, p. 309. 56 STRHER, 1998, p. 159. 57 COMBLIN, 1987, p. 92.
27
se novamente o papel de passividade conferido s mulheres na exirtao a temer
ou respeitar (fobh/tai).58
Deste ltimo verso, Comblin faz uma crtica feminista:
Do conjunto do texto o autor tira o essencial dos deveres do homem e da mulher. Da parte do homem, o essencial est na palavra amar que saiu vrias vezes durante a exposio. Amar significa no concreto ser fiel. Do lado da mulher o dever o respeito (o temor reverencial). Por que esta diferena nos deveres? Por que o amor s para o homem e o temor s para a mulher? Apesar das frmulas de igualdade insinuadas ou aludidas no conjunto, o autor pensa em termos de desigualdade. Por um lado est a iniciativa, da o amor. Por outro lado est a passividade, da o temor ou o respeito. Naturalmente este texto no constitui a totalidade da mensagem crist ou bblica sobre a relao homem-mulher.59
1.8 Consideraes finais do captulo
Ao analisarmos Efsios 5. 21-33, a partir das idias dos/as autores/as
citados/as, constatamos que este discurso imbudo de temas teolgicos e
cristolgicos pode ter sido usado para argumentar, defender e legitimar as duas
relaes de poder pretendidas no texto, quais sejam, o de hierarquizar as relaes
eclesiais e o de hierarquizar, ao mesmo tempo, as relaes familiares.
Constatamos da anlise da percope60 uma relao intrnseca com os
costumes da sociedade da poca. Os discursos retricos de persuaso, a linguagem
e simbologia, so chaves que podem nos levar a este tipo de constatao. No
entanto, nos vem a pergunta: por que o movimento cristo tomou os cdigos de
deveres domsticos como tpico tico? Strher61 levanta trs possveis hipteses:
1) Os cdigos domsticos mostram a ligao da experincia de f com o
cotidiano. Os cristos da segunda e terceira gerao no adotam a posio
de sair do mundo, mas adotam regras e instrues j conhecidas e
praticadas pela filosofia popular greco-romana.
58 RUSCONI, 2005, p. 484. 59 COMBLIN, 1987, p. 93. 60 FIORENZA, Elisabeth S. Caminhos da Sabedoria: uma introduo Interpretao Bblica
Feminista. So Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2009. p. 229-238. Do grego perikope, ao de cortar em volta um trecho, pequeno ou longo, retirado de um texto que tem sentido completo.
61 Aqui elencaremos os trs tpicos defendidos por STRHER, Marga J. Casa Igualitria e Casa Patriarcal: espaos e perspectivas diferentes de vivncia crist: o caminho da patriarcalizao da igreja no primeiro sculo do cristianismo. 1998. 211 f. (Mestrado) Programa de Ps-Graduao em Teologia, Instituto Ecumnico de Ps-Graduao da Escola Superior de Teologia, So Leopoldo, 1998. p. 168.
28
2) Os cdigos domsticos podem ter surgido no contexto de aculturao na
sociedade romana como defesa contra a perseguio e a calnia da
sociedade e do Estado romano. Essa aculturao significa no somente
submisso ao pater familias, mas tambm ao Estado romano.
nessa direo que tambm Foulkes aponta:
[...] um setor da liderana das Igrejas de tradio paulina via que os valores radicais do movimento cristo e sua exclusividade religiosa levavam suas comunidades a tornar-se, potencialmente pelo menos, suspeitas de subverter a ordem estabelecida. Sua sobrevivncia no contexto scio-poltico totalitrio estava em perigo. Por isso, os cristos e crists tinham de mostrar-se de acordo com a estrutura hierrquica, comportando-se de um modo que afugentasse toda suspeita de insubordinao de sua parte.62
Nesta perspectiva, os cdigos de deveres domsticos representam uma tica e uma
prxis crists para uma situao de sobrevivncia, mas com o problema de que
contribuem para legitimar um sistema sociopoltico opressor. A terceira hiptese
levantada por Strher:
3) As comunidades crists se integraram realidade que as envolvia na poca.
No havia conflito com a sociedade greco-romana, mas sim integrao. Se a
sociedade greco-romana era composta por uma hierarquizao entre as
camadas sociais, o cristianismo da poca que crescia
consubstancialmente e enfrentava problemas de ordem social precisou se
integrar a este modelo para manter-se em harmonia, resolvendo, portanto,
os problemas prticos das comunidades, como as desigualdades sociais
presentes na comunidade. Por isso, a subordinao era a aceitao de um
patriarcalismo do amor em Cristo.
Uma vez adaptados ao sistema patriarcal da sociedade, os cdigos
domsticos possibilitaram grupos ortodoxos cristos a manterem o poder de
dominao na comunidade crist, at mesmo para ir de encontro a grupos herticos
(montanistas e gnsticos). Por isso, entende-se que a adaptao ao patriarcalismo
foi uma opo dos grupos cristos da poca. Essa interpretao prope que o
movimento cristo primitivo somente sobreviveria historicamente institucionalizando-
se de forma patriarcal.
62 FOULKES, 2006, p. 60.
29
[...] o interesse maior da nfase ao casamento poderia ser o de exercer algum controle sobre a autonomia que a vida asceta conferia s mulheres. Nos primeiros sculos cristos, inclusive j a partir do primeiro sculo, mulheres integravam ordens celibatrias de virgens e vivas. As mulheres celibatrias abraavam um ascetismo que lhes permitia criar para si mesmas vidas livres de padres de comportamento socialmente esperados. Comparando a posio das mulheres nas comunidades paulinas e nas cartas pastorais, percebe-se que as mulheres foram gradualmente afastadas dos servios de liderana das comunidades crists.63
Koester tambm concorda com esta anlise quando diz que:
[...] a carta uma teologia doutrinria da moral e tica crist para combater o gnosticismo. Exemplo disto, so os catlogos elaboradamente interpretados de virtudes e vcios que eram extrados da doutrina dos dois caminhos (4,17-5,20) e a lista de deveres domsticos que o autor tomou de Colossenses (Ef 5,22-6,9).64
Percebe-se que a interpretao dada aos cdigos domsticos e os discursos
que foram apropriados pela comunidade crist, tiveram como contexto um mundo
hierarquizado no qual os vares esto no topo (seres superiores) e as mulheres na
base (seres inferiores). Lamentavelmente esta interpretao foi se reproduzindo,
sobretudo, pelos grupos que defendiam o sistema explorador. E algo parecido
acontece hoje nos debates sobre a questo da mulher, com o manuseio e a
manipulao do cdigo por parte dos que procuram amparar uma estrutura patriarcal
j cambaleante.
Muitas pesquisas acadmicas contriburam para manter interpretaes
sexistas dos textos bblicos. Porm, o trabalho de telogas/os e biblistas feministas
na anlise de textos bblicos nos fornece subsdios para romper com interpretaes
tradicionais. Fiorenza assevera que [...] a corrente teoria e pesquisa acadmicas
so deficientes porque deixam de considerar as vidas e contribuies das mulheres
e constroem uma humanidade e uma histria humana enquanto de vares.65
Reimer elenca algumas caractersticas que tornam opressoras as
epistemologias encontradas nos textos bblicos:
[...] 1) so essencialistas: a essncia humana corresponde realidade anterior queda de Ado e Eva. Ou seja, antes da queda tudo era perfeito, o ser humano no tinha pecado. E isto proclamado nas
63 STRHER, 1998, p. 165. 64 KOESTER, Helmut. Introduo ao Novo Testamento, v.2: histria e literatura do cristianismo
primitivo. So Paulo: Paulus, 2005. p. 290. 65 FIORENZA, 1992, p. 12.
30
catequeses ainda hoje, como uma verdade histrica; 2) so monotestas: modelo divino centralizador. H estudos que levantam a questo do monotesmo ser preponderante mesmo na cultura dos povos de Israel do Primeiro Testamento. H estudos que demonstram o politesmo na religiosidade judaica tanto antes como depois do exlio da Babilnia; 3) por ter como imagem de Deus exclusivamente patriarcal. Assim como havia o politesmo, nas culturas antigas tambm existiu a sociedade matriarcal, mas este assunto no exposto nos cursos bblicos, muito menos na catequese; 4) por ser androcntrica. Sendo que j no Movimento de Jesus, a inteno era romper com este modelo de sociedade. Isto no claramente exposto nos estudos bblicos; 5) por inviabilizar a atuao de mulheres. Nas leituras dos textos no se questiona a ausncia de lideranas femininas, de atuaes femininas; 6) por possuir verdades eternas: o que se disse uma vez vlido para sempre e para todos os lugares; e 7) por ser dualista: existir as contradies de bem e mal, sagrado e profano, homem e mulher, boa sexualidade e m sexualidade.66
Fazer anlise feminista da histria das mulheres na Bblia tem como funo
no apenas a desconstruo de uma hermenutica de discriminao e opresso da
mulher, mas tambm tem uma funo poltica importante, visto que deslegitima as
estruturas religiosas patriarcais e, consequentemente, as estruturas sociais que, por
serem patriarcais, invariavelmente, produzem violncia contra a mulher.
A anlise feminista de textos bblicos revela rostos, falas e aes de
mulheres, muitas vezes silenciadas ou ocultadas pela leitura patriarcal. Por exemplo,
Leonardo Boff desconstri as diferenciaes de gnero na teologia quando
demonstra que:
[...] em Gnesis 1,27, escrito pela tradio sacerdotal, por volta do sculo VI-V a.C., se afirma a igualdade dos sexos e a sua origem divina: Deus criou a humanidade adam, em hebraico, significa os filhos e filhas da Terra, derivado de adamah, que quer dizer terra frtil sua imagem... criou-os homem e mulher. Deus aqui afirma a igualdade fundamental dos sexos, porm a histria nos afastou deste entendimento e, consequentemente, do entendimento do ser humano, homem e mulher.67
No Segundo Testamento, o apstolo Paulo parte da teologia para afirmar a
igualdade entre os sexos: No h homem nem mulher, pois todos so um em Cristo
Jesus (Gl 3.28). Em I Corntios 11.12 diz: Em Cristo no h mulher sem homem
nem homem sem mulher; como verdade que a mulher procede do homem,
66 REIMER, Ivoni R. O Belo, As Feras e o Novo Tempo. So Leopoldo: CEBI, 2000. p. 32. Conforme
Reimer, Fiorenza percebe que o conceito de essencialismo est ligado ao fato de pessoas individuais e grupos imaginarem possuir caractersticas imutveis inerentes e das quais se podem fazer afirmaes universais sobre qualquer grupo (p. ex., mulheres) ou indivduo a respeito de tais caractersticas. O essencialismo no compreende a diferena entre mulheres nem reconhece que essncias so constitudas por estruturas de dominao.
67 BOFF, 2002, p. 105.
31
tambm verdade que o homem procede da mulher e tudo vem de Deus. Boff
tambm menciona que:
Na histria de Israel surgiram mulheres politicamente ativas como Miriam, Ester, Judite, Dbora, Ana, Sara e Rute que sero bem lembradas benfazejamente pelo povo. A partir do sculo III a.C. a teologia judaica elaborou uma reflexo sobre a graciosidade da criao e da eleio do povo na figura feminina da divina Sofia (Sabedoria) conforme o livro da Sabedoria.68
Por isso, atualmente as/os feministas atuam no campo da interpretao de
textos bblicos androcntricos, como a carta aos Efsios, na tentativa de
desconstruir e desmitificar a linguagem masculina, bem como desconstruir a
influncia que exerce no imaginrio coletivo.
68 BOFF, 2002, p. 106.
2 ANLISE FOUCAULTIANA SOBRE O DISCURSO DE EFSIOS 5.21-33
2.1 Introduo
At aqui, fizemos uma anlise da carta aos Efsios a partir do instrumental
terico de biblistas e telogos/as feministas. Pudemos perceber que o discurso
teolgico, eclesiolgico e cristolgico fundamentaram a estrutura patriarcal (ou
melhor, kyriarcal) na igreja crist e a estrutura do Pater familias na comunidade
crist.
Neste captulo, tentaremos fazer uma anlise do discurso do mesmo texto,
porm, a partir dos pressupostos filosficos de Foucault. Acreditamos que estes
instrumentais de anlises nos auxiliam a compreender como se produzem os
discursos de poder, discursos sexistas, os quais acabam por naturalizar a violncia
contra a mulher, realidade que ser tratada com maior profundidade no captulo trs.
Optamos por este caminho porque Foucault estudou a sociedade ocidental
na perspectiva da relao existente entre o discurso e a histria, da relao
existente entre a constituio do saber para o exerccio do poder. Portanto, este
instrumental reforar a pesquisa outrora analisada e ser um suporte para
refletirmos o contexto da violncia domstica. Assim, neste captulo ser feito uma
ligao entre o primeiro, que trata do texto, e o terceiro, que trata do contexto. Pode-
se dizer que a anlise filosfica em questo costura as duas realidades: a de ontem
e a de hoje.
Primeiro, vamos definir a ideia de discurso e entender sua prtica, depois,
conhecer os elementos existentes no discurso (internos e externos) e, por fim,
entender sua produo.
Para compreender como se produz o discurso, Foucault estuda a medicina,
a gramtica e a economia poltica, a partir de seus enunciados. Podemos transpor
suas anlises ao nosso trabalho, uma vez que elas podem ser transferidas para
qualquer tipo de discurso. Por isso, aqui utilizaremos oportunamente seu
instrumental terico, tomando como exemplo o texto bblico em questo, a fim de
tentar demonstrar a formao de um discurso sexista.
33
A iniciativa de analisar o texto bblico a partir das teorias filosficas de
Foucault surgiu a partir da pesquisa acadmica produzida por Karen Bergesch.69
Nela h um estudo sistemtico da dinmica do poder na relao vinculada
violncia domstica. Para esclarecer estes elementos do discurso, Karen utiliza
entrevistas com mulheres e homens envolvidos numa relao conjugal de violncia.
Oportunamente, usaremos o trabalho de Bergersh como referencial terico para nos
ajudar a entender a filosofia foucaultiana.
2.2 Definindo discurso
Segundo Foucault, discurso:
[...] um conjunto de enunciados, na medida em que se apiem na mesma formao discursiva [...] um fragmento de histria, unidade e descontinuidade na prpria histria, que coloca o problema de seus prprios limites, de seus cortes, de suas transformaes, dos modos especficos de sua temporalidade, e no de seu surgimento abrupto em meio s cumplicidades do tempo.70
Em linhas gerais, enunciado um conjunto de ideias que, num determinado
contexto, d sentido e coeso a este mesmo conjunto de perspectivas denominado
discurso.71 Esta explicao ser mais bem definida no prximo item, mas aqui, em
sentido heurstico, tomemos como exemplo o discurso de Efsios 5. 22-23: As
mulheres sejam submissas ao seu prprio marido, como ao Senhor; porque o
marido a cabea da mulher, como tambm Cristo a cabea da igreja. Conforme
visto no captulo anterior, neste enunciado, a ideia convencer os leitores quanto ao
comportamento mais aceitvel diante de Deus (submisso/obediente), a partir das
comparaes que fazem entre Cristo-cabea, homem-cabea, igreja-corpo, mulher-
corpo.
Se o discurso da histria fragmento, est determinado em um espao-
tempo, ou seja, num contexto histrico, geogrfico, econmico, social, poltico, etc, e
69 BERGESCH, Karen. A dinmica do poder na relao de violncia domstica: desafios para o aconselhamento pastoral. 2006. 204 f. (Mestrado) Instituto Ecumnico de P-Graduao em Teologia, Escola Superior de Teologia, So Leopoldo, 2006.
70 FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2009. p. 132. 71 CARDOSO, Darlete. O jornalismo como (re)produtor de enunciados. Revista Linguagem em
(Dis)curso, v. 1, n. 2, jan./jun., 2001. Disponvel em: . Acesso em: 21 jan. 2011.
34
marcado pelos modos especficos de sua temporalidade. O enunciado vai se apoiar
na formao discursiva j existente, pois h um horizonte de sentido j
compartilhado pelos agentes envolvidos no discurso. Por isto, no criado de forma
abrupta, mas apropriado por um sujeito. Conforme explica Karen Bergersh.
[...] o sujeito que se coloca em um determinado discurso para se expressar enquanto sujeito social. A escolha de um discurso em detrimento do outro surge da histria de cada sujeito e da dinmica da correlao de foras em que cada sujeito est colocado.72
Nesta perspectiva, o discurso sobre submisso em Efsios 5. 21-33 um
fragmento da histria que j conhecemos bem, que trata do perodo do pensamento
e prxis do imprio greco-romano. O sujeito (ou os sujeitos), que escreveu e pregou
sobre o tema submisso em Efsios 5. 21-33 no inovou nas suas ideias, nem
mesmo o copiou do Movimento de Jesus, mas sim, apropriou-se de um pensamento
corrente na poca, o do Pater famlias, para us-lo na assembleia crist. Acredita-se
que o pensamento doutrinador do comportamento da famlia greco-romana pode ter
sido apropriado pelos cristos da poca para impor a correlao de foras entre
dirigentes e fiis, no mbito eclesial cristo, bem como para ressaltar esta correlao
de foras entre homens e mulheres, no mbito domstico cristo. Isto ser
detalhado no prximo item.
2.3 Elementos internos do discurso: enunciado e funo enunciativa
Segundo Foucault enunciado a unidade elementar do discurso.
uma funo de existncia que pertence, exclusivamente aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela anlise ou pela intuio, se eles fazem sentido ou no, segundo que regra se sucedem ou se justape, de que so signos, e que espcie de ato se encontra realizado por sua formulao (oral ou escrita).73
Noutras palavras, o enunciado est relacionado aos signos lingusticos para
lhes dar sentido ou no em um discurso. Segundo o dicionrio Houaiss da Lngua
Portuguesa,74 o termo enunciado 1. a exposio de uma afirmao a ser definida,
explicada ou demonstrada; 2. parte de um discurso oral ou escrito. Segundo
72 BERGESCH, Karen. A dinmica do poder na relao de violncia domstica: desafios para o
aconselhamento pastoral. Srie Teses e Dissertaes: So Leopoldo: IEPG, 2006. p. 27. 73 FOUCAULT, 2009, p. 98. 74 HOUAISS, Antonio. Minidicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.
35
Foucault, os enunciados so o pano de fundo da produo do discurso e que
possuem quatro funes (enunciativas), e, por meio delas, podemos analisar melhor
o discurso. Bergesch esclarece cada funo,75 que exemplificaremos junto ao objeto
desse trabalho:
1 Funo: o enunciado se preocupa com o espao de correlaes.
Ao definir a que ele se refere, ser possvel dizer se uma proposio tem ou
no um referente:
O enunciado o campo de [...] leis de possibilidades, de regras de existncia
para os objetos que a se encontram nomeados, designados ou descritos,
para as relaes que a se encontram afirmadas ou negadas.76
O enunciado, ento, somente cria sentido num campo de correlaes, pois o
mesmo enunciado, na mesma frase, pode ter significados diferentes, dependendo
do seu campo de correlaes. Por exemplo, um dito filosfico do perodo do imprio
greco-romano diz que:o homem superior mulher. Nesta sociedade, aplicava-se
tal filosofia na administrao da casa, que foi estendida para a administrao do
Estado. O campo de correlao era a casa e o governo. No entanto, o mesmo dito
filosfico, quando reproduzido num espao eclesial cristo, cria um novo significado:
a correlao de foras passa a ser entre dirigentes das igrejas e seus fiis.
Portanto, um dito popular corrente na poca pode ter sido apropriado para
ser usado num espao eclesial com novas vestimentas (a cristologia), segundo o
qual Cristo seria o cabea da Igreja, cujo corpo seria a comunidade crist, e nessa
correlao haveria uma homologia entre os gneros. Percebe-se, assim, que o
enunciado uma possibilidade estratgica para a constituio do cdigo domstico
eclesial.
2 Funo: especifica a relao que o enunciado mantm com o sujeito.
O sujeito do enunciado uma funo vazia, podendo ser exercida por indivduos, at certo ponto, indiferentes, quando chegam a formular o enunciado; e na medida em que um nico e mesmo indivduo pode ocupar,
75 BERGESCH, 2006, p. 21. 76 FOUCAULT, 2009, p. 103.
36
alternadamente, em um srie de enunciados, diferentes posies e assumir o papel de diferentes indivduos.77
Bergesch explica que o lugar do sujeito do enunciado vazio, o que significa
que pode ser ocupado por um mesmo indivduo, e que pode ocupar diferentes
posies, ou mesmo ser ocupado por indivduos diferentes.
Portanto, o enunciado mantm com o sujeito uma relao determinada. A
pergunta, ento, para se reconhecer o sujeito do enunciado deve ser: qual a
posio que pode e deve ocupar todo indivduo para ser seu sujeito?. Os discursos
em torno da relao entre homens e mulheres na sociedade greco-romana j
estavam formulados. Cada indivduo, por sua vez, relacionar-se- com estes
discursos, muito provavelmente, de acordo com a posio que ocupar na sociedade.
Ao assumir determinado discurso, torna-se seu sujeito. Nas comunidades crists
primitivas, formularam-se discursos doutrinrios a respeito dos comportamentos dos
fieis que tambm se estenderam para a casa de seus membros. Os sujeitos
formuladores parecem ter tido a inteno de criar uma hierarquia nas comunidades
de f, nas quais o topo da hierarquia era ocupado por bispos e presbteros, seguidos
por diconos. Suas posies refletiam, assim como na sociedade greco-romana, o
ser social fundado na diferena e na excluso. Portanto, tendo o Cristo como cabea
da Igreja, ao corpo cabe a obedincia, este representado pelos fieis.
3 Funo: considera o que o autor chama de domnio associado, ou seja, o contexto.
No basta que uma frase seja pronunciada ou escrita. Para que nela haja um
enunciado, necessrio considerar um contexto maior. Considera-se o
enunciado num campo enunciativo, o qual aparece como elemento singular.
Assim, um enunciado sempre supe outros. Portanto, a funo enunciativa s
pode ser exercida a partir de um contexto. O enunciado sempre faz parte de
uma srie ou de um conjunto, considerando em torno de si, um campo de
coexistncia.78
Por exemplo, a frase: o homem a cabea e a mulher o corpo,
compreendida isoladamente, pode ser interpretada de vrias formas, entre elas,
77 BERGESCH, 2006, p. 105. 78 BERGERSH, 2006, p. 23.
37
homem superior, mulher inferior, homem pensa, mulher age, homem manda, mulher
obedece, etc. A frase ou proposio somente participar da funo enunciativa,
quando estiver num jogo enunciativo que o extrapole. Ao vermos o contexto de uma
relao conjugal na sociedade greco-romana, diremos que esta frase legitima o
controle e a dominao do homem sobre a mulher.
Quando se enuncia que Cristo a cabea e a Igreja o corpo, de forma
isolada, podemos interpretar que Cristo o mestre, o que ensina, e a Igreja o
discpulo, quem pratica seus ensinamentos. Porm, num jogo enunciativo, que
ser esclarecido pelo contexto da organizao das comunidades crists, percebe-se
que a frase legitima a relao hierrquica dos dirigentes (bispos, presbteros e
diconos) sobre os fiis.
4 Funo: Por ltimo, o enunciado deve ter existncia material para ser considerado como tal.
O regime de materialidade a que obedecem necessariamente os enunciados
, pois, mais da ordem da instituio do que da localizao espao-temporal
[...] o enunciado precisa ter uma substncia, um suporte, um lugar e uma
data.79
A repetio de uma mesma afirmao atravs do tempo cria um novo
enunciado. Repetir a frase: mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos!, no contexto
da sociedade greco-romana criou novos enunciados para a comunidade de f
organizada naquela poca. Agora j no era somente a mulher ser sujeita ao
esposo, mas tambm a igreja ser sujeita a Cristo (que aqui representado pelos
dirigentes).
Em linhas gerais, para se entender um discurso necessrio que
verifiquemos o seguinte: a correlao de foras que nele existe, a posio do sujeito
que dele se apropria, o contexto em que dito ou escrito e, por ltimo, a instituio
que o materializa e o legitima. Estas so as funes enunciativas do discurso. O
esquema abaixo pode servir como ilustrao:
79 FOUCAULT, 2009, p. 116.
38
CORRELAO DE FORAS
INSTITUIAO DISCURSO POSIO DO SUJEITO
CONTEXTO
Foucault procura entender como se forma a discursividade numa
determinada configurao social. Ele diz que:
[...] descrever enunciados, descrever a funo enunciativa de que so portadores, analisar as condies nas quais se exerce essa funo, percorrer os diferentes domnios que ela pressupe e a maneira pela qual se articulam tentar revelar o que se poder individualizar como formao discursiva.80
Com base no estudo exposto, acreditamos que, segundo os enunciados
evidenciados em Efsios 5. 21-33, a correlao de foras existentes se refere
constituio de uma hierarquia nas comunidades crists no final do primeiro sculo
pelos dirigentes sobre seus fiis, nos moldes do Pater famlias, cujo esposo
domina a esposa, os filhos e os escravos. Os sujeitos de apropriao das duas
instituies aqui mencionadas (comunidade e famlia) so, respectivamente,
bispos/presbteros e marido/pai.
O contexto, como j foi dito anteriormente, o perodo do imprio greco-
romano, uma sociedade patriarcal e androcntrica, na qual comea a se desenvolver
algumas comunidades que vo gradativamente se institucionalizando nos moldes do
patriarcado e do kyriarcado, cujo senhor est no topo e os fiis na base, bem como o
homem na esfera superior e a mulher na esfera inferior de poder na casa. A
instituio que legitima o discurso proferido na poca a prpria sociedade greco-
romana estruturada com base na filosofia corrente. Essa foi uma tendncia social
instaurada pouco a pouco dentro das comunidades.
2.4 Elementos externos do discurso: modalidades enunciativas
A partir de Foucault, quando observamos os enunciados, podemos perceber
quais so as posies que ocupam os sujeitos que produzem estes discursos e os
80 FOUCAULT, 2009, p. 131.
39
sujeitos para os quais so dirigidos. Esta relao entre os sujeitos e os enunciados
ser elaborada por meio da modalidade enunciativa, que so os diferentes modos
pelos quais o sujeito se apresenta em seu discurso, tais como: a descrio, a
formao de hipteses, formulao de regulaes, ensino, etc.
As diversas modalidades de enunciao, em lugar de remeterem sntese ou funo unificante de um sujeito, manifestam sua disperso: nos diversos status, nos diversos lugares, nas diversas posies que pode ocupar ou receber quando exerce um discurso, na descontinuidade dos planos de onde fala.81
Por meio da modalidade enunciativa, Foucault tenta conhecer o sujeito, mas
fora do seu discurso, para saber as suas intenes bem como os motivos que o
levaram a construir seu discurso dessa e no daquela forma.
O discurso no a manifestao, majestosamente desenvolvida, de um sujeito que pensa, que conhece, e que o diz: , ao contrrio, um conjunto em que podem ser determinadas a disperso do sujeito e sua descontinuidade em relao a si mesmo. um espao de exterioridade em que se desenvolve uma rede de lugares distintos.82
Ele analisa o discurso e a posio do mdico na sua prtica profissional.
Aqui, no analisaremos o discurso do texto bblico com a abrangncia filosfica de
Foucault, mas por meio do instrumento filosfico que evidencia as modalidades
enunciativas. Assim nos aproximaremos melhor do texto em questo.
Da anlise das relaes dos sujeitos que Foucault faz do discurso clnico, h
algumas investigaes que so importantes para identificarmos nas relaes
apresentadas no texto de Efsios 5. 21-33. Foucault prope identificar:
Quem fala? Quem, no conjunto de todos os sujeitos falantes, tem boas razes para ter esta espcie de linguagem? [...], Qual o status dos indivduos que tm o direito regulamentar ou tradicional de proferir semelhante discurso e Quais os lugares institucionais de onde o sujeito da enunciao obtm seu discurso.83
O lugar institucional garante ao sujeito que discursa sua competncia do
saber e reconhecimento social. Porm, ainda existe uma indagao: quais so os
81 FOUCAULT, 2009, p. 61. 82 FOUCAULT, 2009, p. 61. 83 FOUCAULT, 2009, p. 56.
40
elementos que agiram na histria para que o discurso do sujeito recebesse esta
formao e no outra?
No discurso de Efsios 5. 21-33, exemplificamos como modalidade
enunciativa os cdigos domsticos que, conforme Strher: [...] configuram-se como
um corpo de doutrinas ou regras de comportamento ou de deveres referentes s
relaes existentes entre as categorias sociais que constituam o antigo oikos
(casa).84
Estas regras vo estabelecer uma estrutura de desigualdade domstica na
sociedade greco-romana, as quais sero tomadas como exemplo de comportamento
para as famlias e para as comunidades crists.
A partir da anlise de Foucault, queremos descobrir os sujeitos deste
discurso: os que enunciam e os que recebem. As perguntas, ento, so as
seguintes:
quem fala para a assemblia crist?
quem tem boas razes para usar tbuas domsticas para fazer teologia?
qual o status do indivduo na assembleia?
em que lugar este indivduo discursa ou que elementos agiram na histria do cristianismo para que este indivduo usasse este discurso e no outro?
para responder a tais questes, precisamos entender a organizao da igreja nos primeiros sculos.
Em primeiro lugar, importante afirmar que a discusso sobre a autoria da
carta aos Efsios nos obriga levantar algumas questes em relao autoridade
paulina e ao princpio de apostolicidade. Isto j responde sobre o status ou a
autoridade de quem discursa. Se uma afirmao de Paulo, tem crdito,
legitimidade e autoridade apostlica. No entanto, foi esta viso exclusivista de
autoridade que dificultou a percepo do protagonismo de outras pessoas como
condutoras da misso crist, nos primeiros sculos. Segundo Strher:
[...] mais fcil assumir uma autoria paulina dos textos neotestamentrios, chamados de corpus paulinum, do que perder a autoridade paulina e ter que reconstruir os fundamentos de nossa f...porm essa discusso em torno da
84 STRHER, 2002, p. 74.
41
autoridade paulina dos textos, dificulta a possibilidade de conhecer melhor a histria das primeiras comunidades crists a partir de outros critrios e olhares a ampla participao de outras pessoas como protagonistas da histria.85
Strher considera que Paulo no o grande precursor da misso crist e da
organizao de comunidades crists, mas um dos tantos apstolos e apstolas
engajadas no movimento cristo missionrio e na organizao das primeiras
comunidades crists.
Ento, a proposta lanar outro olhar e tentar perceber a descoberta das
comunidades que continuaram a se estabelecer depois de Paulo. Nessa direo,
focaremos outro olhar para a carta aos Efsios, num esforo de compreender os
textos luz de um maior conhecimento da histria dos primeiros cristos, j no final
do sculo I e incio do sculo II, das relaes comunitrias e interpessoais e das
implicaes da organizao destas comunidades.
Tendo em vista que j foi levantada a afirmao de que Efsios ,
provavelmente, uma carta deutero-paulina, a questo central que se coloca a
pergunta sobre que tipo de estruturas de liderana funcionaram nas comunidades
crists que apelavam para a autoridade de Paulo em sua ausncia. Segundo
Strher:
As pessoas que esto por trs das Cartas aos Efsios buscam demonstrar s comunidades que existe um vnculo com a tradio paulina que consolida a unidade da comunidade. Respondem a perguntas da poca e tentam resolver problemas, como, por exemplo, o de tendncias no-padronizadas de compreenso de comunidade, chamadas de heresia, ou talvez algum constrangimento ou desconforto por haver mulheres liberadas e lderes nas comunidades.86
Alguns textos ps-apostlicos podem atestar a preocupao que as
lideranas comunitrias tinham sobre a questo hierrquica e da obedincia
doutrinal a esta hierarquia. Isto se d at mesmo como forma de se defender dos
movimentos herticos, comuns na poca. Dentre os textos ps-apostlicos, temos
as cartas de Incio de Antioquia, datada em torno de 107-110 d.C.
Na carta que Incio envia comunidade de feso, ele faz tambm uma
exortao para que a comunidade obedea aos bispos e presbteros. Ele escreve
85 STRHER, 2002, p. 75. 86 STRHER, 2002, p. 78.
42
para a comunidade de feso porque est preocupado com a heresia. Ele faz um
elogio comunidade que resiste s heresias. Tambm recomenda comunidade se
submeter ao bispo. preciso glorificar de todos os modos a Jesus Cristo, que vos
glorificou, a fim de que, reunidos na mesma obedincia, submetidos ao bispo e ao
presbtero, sejais santificados em todas as coisas.87
Temos tambm a Didaqu,88 outro texto ps-apostlico, com instrues
prticas para a comunidade, escrita em torno do final do sculo I e incio do sculo
II, composta na Sria. Na Didaqu podemos ver a organizao local, representada
pelos bispos e diconos. A escolha de bispos e diconos indica o surgimento de
ministrios diferenciados e definidos em seus papeis na comunidade.
Havia problemas tambm com a liderana das mulheres na comunidade
crist. Fiorenza informa que missionrios cristos foram acusados de perturbar a
ordem patriarcal romana. Isto est, sobretudo, nos Atos Apcrifos, os quais
circulavam nas comunidades da sia Menor na poca em que a primeira carta de
Pedro e as cartas Pastorais foram escritas.
De acordo com os Atos de Paulo e Tecla, Paulo acusado de corromper todas as mulheres. Os Atos de Paulo mencionam mulheres profetisas como Teonoe, Estratnica, ubula, Fila, Artemila e Ninfa. Tecla, uma mulher de classe alta de Icnio, renuncia a seus papis de filha, esposa, me e patroa. por isso que condenada morte, e no o seu cristianismo. Sua prpria me pediu ao governador: Queima essa mulher fora da lei. Queima-a para que fiquem com medo todas as mulheres que foram ensinadas por esse homem(3:20.3-5). Levantavam-se contra as mulheres acusaes de imoralidade e abandono dos maridos.89
Isto implica dizer que por trs das exortaes feita s mulh
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