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Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 1
CARTOGRAFIA SIMBLICA DE SALVADOR:
Espaos sacralizados pelo povo de santo
IRIS VERENA SANTOS DE OLIVEIRA*
Este texto prope uma leitura diferenciada dos espaos da cidade de Salvador
na primeira metade do sculo XX, atenta aos significados atribudos pelos adeptos do
candombl. Para tanto, utilizo como fontes jornais publicados no perodo, assim como
guias tursticos com o intuito de desenhar uma cartografia das prticas religiosas do
povo de santo, na capital da Bahia.
Exu1, para os adeptos dos cultos afro-brasileiros, representa o orix da rua, o
que estabelece o dilogo mais estreito com a cidade, aquele que espalhava o povo-de-
santo por diferentes territrios urbanos e deste modo parecia incentivar a ocupao dos
mais variados espaos citadinos. Por isso, em um trabalho que pretende acompanhar as
andanas do povo-de-santo pela cidade de Salvador nas primeiras dcadas do sculo
XX, e traar uma cartografia simblica dos candombls, as encruzilhadas - seu espao
por excelncia - devem ser objeto de especial ateno.
S ser possvel compreender a importncia dos lugares consagrados a Exu se
estiver claro a importncia dessa entidade dentro dos cultos afro-brasileiros. Sua
credibilidade tamanha que, nas obrigaes oferecidas para os orixs, Exu deve ser
servido primeiro, comer primeiro, como diz o povo-de-santo, o que significava que,
qualquer atividade religiosa deve ser precedida por um despacho2, uma oferenda para
* Professora da UNEB Campus XIV / Doutoranda do PS-AFRO UFBA / Bolsista CAPES.
1 Exu: a figura mais controvertida do panteo afro-brasileiro. No Candombl tradicional um mensageiro entre os deuses e os homens. o elemento dinmico de tudo que existe e o princpio de
comunicao e expanso. tambm o princpio da vida individual. Embora de categoria diferente dos
orixs, importantssimo, essencial mesmo, pois sem ele nada se pode fazer. Suas funes so as mais
diversas: leva pedidos, traz a resposta dos deuses, faz com que sejam aceitas as oferendas, abrindo os
caminhos ao bom relacionamento do mundo natural com o sobrenatural. No jogo do orculo If ele
quem traz as respostas. Tanto protege, como castiga quem no faz as oferendas devidas. (...) In: CACCIATORE, Olga Gudolle. Dicionrio de Cultos Afro-Brasileiros. Rio de Janeiro: Forense
Universitria, 1977. p. 121.
2 Despacho: Vrias so as maneiras do despacho. Por exemplo despacho de Exu, que so os cnticos com farfias e gua que so dados a Exu, na cerimnia inicial do candombl. Outros tipos de
despacho so aqueles, que a fim de coisas boas ou ruins, so postos em encruzilhadas, mato, estrada,
cemitrio, gua doce ou salgada ou na porta de algum. (...) Sacrifcio de animais aos orixs. Em geral
consiste numa gamela com farofa de azeite de dend, um galo, uma caveira de bode, moedas de cobre
ou de nquel, pedaos de pano vermelho, velas, uma boneca de pano. Muito comum nas encruzilhadas
ou ao p de gameleira branca (p de lko). O despacho quase sempre preparado sem intenes
ofensivas. In: BRAGA, Julio. Dicionrio de Etnologia Religiosa Afro-brasileira. No prelo.
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ele, preferencialmente nas encruzilhadas. Por isso, antes das cerimnias pblicas, os
candombls realizam o Pad de Exu, cerimnia tem o sentido de lhe pedir licena para
realizar a festa.
Tratando-se da Salvador das primeiras dcadas do sculo XX a grande
freqncia com que eram realizados despachos nas encruzilhadas, foi observada atravs
de denncias nos jornais, como aquela publicada no A Noite, de 25 de maro de
1925:
Queremos nos referir ao aspecto, que nos offerece a urbis todos os dias, pela manh, com o apparecimento nas encruzilhadas das ruas, de
immundos pacotes contendo farinha, milho, de cambrulhada com grossa
poro de azeite de cheiro e algumas moedas de cobre. De quando, em
quando, apparece tambm uma gallinha de ps amarrados e besuntada com
o alludido liquido, a que os crentes da feitiaria, chamam de despachos, com poderes de tirar a urubucaba de uns, ou de bota-las em outros.3(sic)
O testemunho do jornalista citado reflete uma viso preconceituosa, comum ao
perodo estudado, em se tratando de prticas religiosas de matriz africana. Contudo, a
denncia aponta elementos que permitem constatar a freqncia com que as
encruzilhadas eram utilizadas para fins mgicos. Alm disso, o reprter tenta explicar o
objetivo do despacho indicando que a sua dupla funo de botar e tirar, o que ele
chamou de urucubaca. Outros relatos tambm fizeram referncia aos objetos
relacionados a liturgia dos candombls nas ruas da cidade de Salvador. No Guia das
ruas e dos mistrios da cidade do Salvador de Jorge Amado consta uma referncia
sobre a presena dos ebs4 nas ruas, em meio s imagens mais representativas do
cotidiano da cidade de 1944:
Escorre o mistrio sbre a cidade como um leo. Pegajoso, todos
o sentem. De onde le vem? Vir do baticum dos candombls nas noites de
macumba? Dos feitios pelas ruas nas manhs de leiteiros e padeiros? Das
velas dos saveiros no cais do Mercado? Das inmeras igrejas? (...) De onde
vem sse mistrio que cerca e sombreia a cidade da Bahia?(sic) (AMADO,
1966; p. 33)
A utilizao das encruzilhadas para a realizao de prticas religiosas afro-
brasileiras era uma das formas, qui a mais importante, de apropriao constante da
cidade de Salvador pelo povo-de-santo o que, evidentemente, provocava diversas
3 Jornal A Noite 26/03/1925.
4 Eb: Conjunto de oferendas para Exu. Conjunto de materiais que se passam no corpo das pessoas para retirar fluidos de qualquer natureza, atrapalhaes e perturbaes do seu corpo e da sua vida.
Normalmente, tais objetos so depositados em lugares de muito movimento, preferencialmente as
encruzilhadas. Despacho. Pejorativamente, designado pelos leigos por boz. Os falantes do
candombl tambm o chamam de carrego, quando o eb para despachar um esprito maligno ou
restos de quem faleceu. In: BRAGA, Julio. Op. Cit.
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tenses entre diferentes grupos. Em 1925, o peridico A Noite reportou-se a respeito
dos despachos que apareciam at no prprio centro da cidade. Em outra matria,
dois meses depois, o mesmo jornal denuncia que tudo aquilo acontecia at na esquina
da rua, onde fica a nossa redaco (sic)5, que se situava na regio considerada central
na cidade, configurando as disputas pelo espao urbano. Uma vez que ali, era um local
considerado propcio para um pai ou me-de-santo realizar rituais, certamente pelo
grande fluxo de pessoas e veculos, enquanto que para o jornalista o centro deveria
configurar uma das referncias do progresso soteropolitano.
Essas informaes fornecidas pelos jornais e crnicas a respeito do costume de
arriar feitios no centro da cidade, auxiliam a compreenso de que a instalao de
diversos candombls em regies distantes dos distritos centrais6, no significou o
abandono de territrios, como as encruzilhadas, do centro ou outros locais, que por
ventura, fossem considerados ideais para a realizao dos ebs.
Talvez a disputa pelas encruzilhadas da cidade tenha motivado, at mesmo,
aes judiciais. o que parece ter concorrido para a condenao de Nelson Jos do
Nascimento pelo suposto crime de falsa medicina. Durante o processo, a denncia que
desencadeou a ao policial no foi mencionada e a nica informao anexada ao
sumrio de culpa, antes de se efetivar a priso de Nelson, resume-se a uma portaria,
redigida nos seguintes termos: Tendo chegado ao meu conhecimento que na casa onde
reside Nelson Jos do Nascimento (...) se pratica o culto de magia negra (feitiarias).7
Durante o interrogatrio Nelson assumiu a sua condio de pai-de-santo,
descrevendo inclusive o tipo de auxlio que prestava aos que lhe procuravam. Contudo,
o delegado parecia ter uma preocupao bastante especfica em relao ocupao das
encruzilhadas daquela localidade, como possvel perceber neste trecho do
interrogatrio:
Perguntado: porque o respondente botou um despacho (feitio)
hontem a noite na encruzilhada de Mont Serrat? Responde: que no foi o
respondente, mesmo porque, hontem a noite estava auzente de sua casa onde
5 Jornal A Noite, 26/03/1925.
6 A imprensa denuncia freqentemente como lugares como a Quinta da Barra, preferidos para a instalao
de terreiros talvez pela escurido que l reina e por ser distante os gans lhe do preferncia. A Tarde, 16/08/1921.
7 Processo Criminal movido contra Nelson Jos do Nascimento, Salvador, 1939. APEB. Judicirio. Srie:
Crimes. Portaria
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chegou as oito horas da noite agazalhando-se em seguida. Perguntado:
quem colocou o referido despacho? Respondeu: que no sabe. (sic)8
O questionamento do delegado sobre o suposto despacho tambm foi dirigido
s testemunhas que negaram conhecer o autor da ao. Diante da insistncia do
delegado em repetir esta questo para todas as testemunhas e o silncio quanto aos
motivos que levaram a priso de Nelson, suponho que o eb encontrado naquela
encruzilhada pode ter sido o motivo da ao policial, que culminou com a acusao de
Nelson pelo crime de feitiaria e falsa medicina.
Contudo, porque um feitio encontrado na encruzilhada de Mont Serrat teria
chamado tanto a ateno da polcia, j que isso tambm era verificado em outros
espaos da capital, sem as mesmas decorrncias? Trata-se de uma questo s pode ser
compreendida levando-se em considerao que, em meio s reformas urbanas
empreendidas com o intuito modernizar a capital baiana, a regio de Itapagipe, onde se
localizava aquele bairro, obteve ateno especial do governo estadual, uma vez que se
tratava de um arrabalde de grande beleza que atraa a ateno dos visitantes. No
Indicador e Guia Prtico da Cidade do Salvador um grande destaque dado quela
regio, que contava inclusive com uma hospedaria para imigrantes. Tal guia turstico,
referindo-se ao bairro de Mont Serrat, informava:
Mont-Serrat - De que j vos tenho falado linhas antes hoje um
dos [bairros] de maior futuro da capital, graas a iniciativa do Ilustre Sr.
Dr. Francisco Marques de Ges Calmon ento Governador do Estado que
iniciou obras no intuito de prover a cidade do Salvador de adaptaes para
o desembarque e hospedagem de immigrantes, foram depois ampliados pelas
construces de pavilhes de Serumtherapia, do Hospital de Isolamento e
execuo das obras de vulto do novo bairro, que vieram dotar a cidade de
um confortvel e saudvel arrabalde prprio para construces.9 (sic)
Com base no exposto, e na perspectiva das autoridades locais, uma regio para
qual o Estado destinou tantos investimentos no deveria ser lugar para a realizao de
feitios. Como Nelson no convenceu ao afirmar que no fora o responsvel pela
utilizao da afamada encruzilhada e ainda assumiu que era pai-de-santo, isto pode ter
lhe garantido a condenao. A leitura da cidade que faziam as pessoas que o condenaram
deveria ser semelhante a exposta nessa matria:
Em pleno sculo do rdio e do cinema falado, a velha Thom de
Souza, a nossa cara terra ainda conserva o trao das cousas antigas, a
8 Processo Criminal movido contra Nelson Jos do Nascimento, Salvador, 1939. APEB. Judicirio. Srie:
Crimes. Auto de Interrogatrio.
9 SAMPAIO, Lauro (org.). Indicador e Guia Pratico da Cidade do Salvador-Bahia. Salvador: Typografia
Agostinho Barboza & Cia, 1928, p. 173.
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ignorncia dos nossos antepassados. Em differentes pontos desta cidade e
quase no seu corao, a prtica da feitiaria coisa sabida. A policia, de
longe em longe, procura extinguir os candombls que reapparecem logo
mais com ardor do que antes. E a fama dos festejos corre a cidade de
Itapagipe Pituba (...)10 (sic)
Matrias como esta tornam evidente o carter de disputas pelo espao urbano,
protagonizadas pelos adeptos dos candombls, especialmente em se tratando das
encruzilhadas. Os rituais afro-brasileiros praticados nos cruzamentos das ruas da cidade
eram fundamentais para crena, em alguns momentos era o rito inicial, em outros casos
o auge da liturgia se dava com o ato arriar o eb, tendo isso em mente fica claro que as
disputas pelo espao das encruzilhadas eram na verdade uma batalha pela continuidade
das prticas religiosas de matriz africana. Nesse sentido, possvel perceber o quanto
era importante para os adeptos do candombl a ocupao da cidade, mesmo aquela que
extrapolava o territrio do ax.
As encruzilhadas no eram os nicos espaos da cidade que tinham grande
importncia para o povo-de-santo, e cujas formas diversificadas de utilizao
provocaram conflitos que evidenciaram os diversos projetos que se desenhavam para a
cidade de Salvador, durante as primeiras dcadas do sculo XX. Nesse sentido, a
apropriao dos mercados e feiras tambm causou conflitos, como indica a matria
publicada no jornal Dirio da Bahia de 1930:
O Mercado Modelo, ponto preferido pelas nossas famlias para o
abastecimento de nossas despesas est a merecer uma reforma por quem de
direito. (...) A falta de asseio existente nesse mercado muito deprime dos
foros de nossa cidade. E ademais, no somente a falta de meio que diz mal
do Mercado Modelo, h tambm falta de policiamento, falta de respeito, falta de tudo. Os palavres so trocados ahi como numa verdadeira Sodoma
e uma me de famlia, fica assim privada de pessoalmente ir fazer sua feira
semanal, pois no contrrio estar sujeita a ser desrespeitada, ouvir
inconvenincias, ou por fim, perder sua bolsa para as mos de um gatuno
qualquer que por alli ande farejando dinheiro como commumente acontece...
(sic)11
A reportagem acima revela conflitos de valores entre freqentadores do antigo
Mercado, face s diferentes formas de uso daquele espao. Alm das reclamaes
explicitamente declaradas pelo jornalista, tambm deveria incomodar as sucessivas
rodas de capoeira que ali eram realizadas, assim como o samba de roda, ambos com
lugar cativo no mercado, onde sempre havia uma presena constante de afro-brasileiros.
10 Jornal A Tarde 30/04/1931.
11 Jornal Dirio da Bahia, 07/08/1930, p.2.
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O Mercado Modelo localizava-se em um local estratgico, prximo ao porto de
Salvador, o que facilitava o desembarque de mercadorias, e no centro da cidade, local
de grande movimento. Alm disso, situava-se em frente do Elevador Lacerda facilitando
o acesso para quem vinha da cidade alta. Concentrava um grande sortimento frutas,
verduras, gros, carnes e peixes, aglomerando por esse motivo pessoas de diversos
segmentos sociais, o que no ocorria sem conflitos. Mesmo, porque ali perambulavam
indivduos com interesses diversos, o ponto de compra e venda era pretexto para a
concentrao de sambistas, capoeiras, funcionrios da Companhia Circular que
trabalhavam no Elevador, trabalhadores porturios e, tambm o povo-de-santo. A
comercializao de artigos utilizados nas cerimnias afro-brasileiras se dava em
diversas localidades da cidade, com destaque para as feiras e mercados. Como destaca
Amado:
Onde, se no no Mercado Modelo, podereis comprar as figas que vos
livraro de todo o mal, as bonecas baianas que recordao indispensvel
de passagem ou de uma estada na cidade, os fetiches para os candombls, as
ervas necessrias para os feitios fortes, as rdes magnficas, as cestas
tranadas, os panos de costa, os bzios para a roupa de Santo? (...)
Encontrareis pai-de-santo em busca de galos para sacrificar aos deuses ou
de pedra rituais. Encontrareis mestres capoeiristas de quando em vez
exercitando-se. (...) Ali sabereis das festas populares, dos candombls que
batero nesta noite, das viagens dos saveiros, ali encontrareis as mais belas
negras vendedoras da Bahia com seus turbantes e suas anguas ao lado dos
fogareiros para frigir os acarajs. (AMADO, 1986; pp.289-90)
A presena de adeptos do candombl nos mercados populares da cidade de
Salvador no se limitava ao ato de compra e venda de alimentos votivos. Faz-se
necessrio compreender que este comrcio de objetos que seriam sacralizados oferecia
uma configurao especial queles espaos. E isso, mudava completamente a forma
como filhos, mes e pais-de-santo liam e praticavam a cidade. O que s pode se
esclarecer, se entendermos vinculao do mercado com entidades do panteo afro-
brasileiro, especialmente convocados por quem ia fazer compras, e principalmente por
quem ganhava a vida comercializando nas feiras.
Dinheiro e mercadorias; narrativas, informaes e cumprimentos
tm em comum o fato de serem coisas trocadas. So regidas pelo princpio
que governa todas as formas de troca. E porque a troca movimento e o
movimento implica transitividade, todas elas esto subordinadas a s, o
grande princpio dinmico na cosmoviso do candombl. No pois de
estranhar-se que dentre os ttulos de s, que so muitos, se encontre
tambm o de Olj, isto , dono do mercado (BARROS, MELLO e VOGEL, 1993; p. 7)
Por conta do vnculo de Ex com o mercado recomendado aos compradores e
vendedores que lhe peam auxlio para que ocorram negociaes comerciais favorveis,
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oferecendo-lhe em troca uma oferenda. Crena to presente no imaginrio do povo-de-
santo baiano que a Exu foi atribudo um dos incndios que ocorreram na Feira de gua
de Meninos. Teria sido um castigo daquela divindade, por conta de sacrifcios que no
lhe foram atribudos pelos comerciantes.
Por vezes, Exu divide a sua primazia de dono do mercado com outra divindade
de grande prestgio entre os comerciantes. o que ocorria no Mercado de Santa
Brbara, localizado a Baixa dos Sapateiros no centro de cidade. Neste caso, alm das
manifestaes cotidianas de f na Santa, sincretizada com o orix Ians e a Exu, os fiis
realizavam no dia 04 de dezembro uma grande procisso, com participao macia do
povo-de-santo, geralmente vestindo roupas de cores vermelha e branca, que eram
atribudas a Ians. Ainda no sculo XIX Verger fez o registro deste evento:
A festa de Santa Brbara que cai no meio da novena de
Nossa Senhora da Conceio, passa um pouco desapercebida do
grande pblico. Ela celebrada, sobretudo, pelos africanos e pelas
pessoas que trabalham no mercado de Santa Brbara na cidade
baixa. A devoo a Santa Brbara reforada, entre os pretos, pelo
sincretismo estabelecido entre ela e uma divindade conhecida na
frica sob o nome de Oya ou Iansan cujo culto discretamente celebrado por alguns deles. A festa catlica consiste em uma missa e
uma procisso em torno dos Arcos de Santa brbara. Os devotos
desta santa organizam regozijos no interior do mercado onde sambam
e bebem cachaa em abundncia. (VERGER, 1999, p. 73)
O jornal A Tarde de 04 de dezembro de 1934 deu cobertura aos festejos
relativos ao dia de Santa Brbara que ocorreram no Mercado da Baixa dos Sapateiros.
Desde hontem noite, com a lavagem das barracas e o
embandeiramento geral do edificio, o mercado da rua J. J. Seabra, que tem
nome de Santa Brbara se preparou para a festana de hoje, que comeou
cedo, com a celebrao de missas em louvor da padroeira venerada. A nossa
reportagem visitando, hoje, o Mercado, onde a folia ia alta, surprehendeu
grande numero de crentes, em regosijo commemorando a alegre ephemeride.
Em conversa com um delles soubemos que a festa se prolongar at as 20
horas, havendo, porm, de tarde uma verdadeira procisso que ir levar um
sem numero de presentes para serem lanados ao mar. o presente de Y ou Me da gua no dizer delles. (sic)12
Alm de dar conta das comemoraes j sabidas que ocorriam no dia de Santa
Brbara a reportagem apresenta um detalhe que no foi encontrado nos folcloristas,
revela que aps a festa seriam entregues presentes para a me dgua, infelizmente no
foi publicado o local onde esta parte da comemorao se realizaria. Este aspecto
chamou a ateno porque apesar da ligao de Ians com os rios, como veiculado nos
12 Tradies que resistem. O dia de Santa Brbara festejado no Mercado de seu nome e em outros pontos
da cidade. (04/12/1934) Jornal A Tarde, p.2.
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mitos, em Salvador este orix mais comumente relacionado aos raios e troves13
.
Considerando-se entidades das guas apenas Nan, Oxum e Iemanj.
Somente estas informaes sobre a relao estabelecida entre deuses afro-
brasileiros e o ambiente do mercado j bastariam para demonstrar a forma peculiar
como tal espao era vivenciado pelo povo-de-santo. Contudo, alguns autores vo ainda
mais longe, ao incluir a ida ao mercado como um aprendizado necessrio para quem se
inicia nos cultos afro-brasileiros.
... as compras desempenham um papel importante na prpria
instruo do nefito. Verificamos, por exemplo, que so regidas pela etiqueta
da pedagogia inicitica. De acordo com ela deve o novio prestar a mxima
ateno, perguntando o mnimo possvel, e somente nos momentos
adequados. Comprar as coisas do ritual, mais do que uma necessidade,
uma arte. Quanto mais cedo e melhor o filho-de-santo dominar, tanto
maiores sero as probabilidades de xito em suas obrigaes e, com isso,
sua ascenso na hierarquia da seita. (BARROS, MELLO e VOGEL, 1993; p.
13)
Retornemos ento, para o objetivo principal que levava adeptos do candombl
aos mercados a busca por aviamentos para a realizao de rituais. Artefatos que durante
as batidas policias foram recolhidos para as delegacias policias e eram relatados nas
reportagens que davam conta do fechamento dos terreiros, dentre os quais, geralmente,
havia muitos alimentos, como os apreendidos no candombl de Virgilio Vieira no
Caminho do Rio Vermelho: ... uma garrafa de mel de abelha, oito pratinhos de barro
com farofia de azeite de dend, acaas, peixe e ef...14. E, tambm, objetos como os
que foram levados do terreiro de Manoel Dor, na Mata Escura: uma infinidade de
ganzs, um quadro da me dgua, capacetes, retratos de clientes, saiota vermelha e...
uma palmatria15
Em meio s notcias divulgadas nos peridicos localizamos uma lista de
produtos rituais, que deveriam ter sido comprados por um cliente, a pedido do pai-de-
santo Hylrio Jos do Nascimento, suposto sacerdote do Terreiro do Bogum, situado no
Engenho Velho. A relao era composta pelos seguintes ingredientes: 2 obis; 4 orobs;
7 eisum; 7 efum; 1 metro de panno verde; 1 metro de panno branco; 1 dito vermelho; 4
13 A cerca das ligaes de Ians com os rios na frica Verger informou: Oya Ynsn na frica Oya
(oi) a divindade dos ventos e tempestades e do rio Nger que, em iorub, chama-se Od Oya. (VERGER, 1997; p.168)
14 Um candombl varejado (19/04/1932) Jornal A Tarde.
15 A priso do pai-de-santo Dor. A polcia apprehende as bugigangas (02/10/1923) A Tarde.
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gallos; 33 buzos da costa; uma garrafa de mel de abelhas, uma dita de azeite de dend,
uma porcelana branca, casca de jurema e dand.16
H poca uma lista como esta devia dizer muito a respeito dos rituais
praticados. Ela poderia revelar, por exemplo, se o sacerdote seguia as prticas religiosas
de acordo com que apreendeu na casa em que se iniciou, indicando o conhecimento do
sacerdote em relao ao ato litrgico.
Alm do Mercado Modelo e o de Santa Brbara j citados, havia outro grande
plo de concentrao de pessoas de candombl; a Feira de gua de Meninos, que se
situava tambm na regio da cidade baixa. A leitura que Jorge Amado fez daquele
espao bastante ilustrativa:
uma festa. Os coloridos vestidos das baianas, os tabuleiros de
frutas, doces e acarajs, os montes de abacaxis e melancias maduras, as
gargalhadas do povo negro, as piadas trocadas entre martimos e mulatas, o
sarapatel fervendo nas panelas, os cegos cantores que pedem esmola, as
barracas de bugigangas que atraem os capoeiras e cozinheiras, as barracas
que vendem material para os ritos de macumbas, pedras e ervas, bzios e
fetiches, os montes de frutas. (AMADO, 1966, p. 271)
Os comerciantes que se dedicavam venda de produtos utilizados no cotidiano
dos candombls tinham grande vantagem comercial se pertencessem a algum terreiro.
Isso porque ele teria acesso ao calendrio litrgico da sua casa e de outras a ela
vinculadas, o que lhe permitiria comprar os artefatos mais procurados a depender da
ocasio. Alm disso, saberia como seriam empregados os produtos que vendia,
permitindo a realizao de um melhor controle qualidade dos bens comercializados, o
que certamente agradava a clientela. (BARROS, MELLO e VOGEL, 1993)
Alm da venda de produtos nos espaos de feiras e mercados poder-se-ia
encontrar comerciantes de ervas, por exemplo, em outros pontos da cidade. Em 1920, o
jornal Dirio da Bahia trata de um curandeiro que mercava nas ruas da cidade:
Ali, nas imediaes do Dirio da Bahia, que so o consultrio e
botica de preto Nascimento. Homem de mais de cinqenta anos, grisalho,
recebe os clientes em mangas de camisa, formula a folha, a raiz, a banha de
jacar ou de jibia para enfermo. Cura tudo. teraputica para todas as
doenas17.
No se pode afirma com certeza a relao do curandeiro Nascimento com os
cultos afro-brasileiros, contudo provvel que se no ele, certamente seus clientes
adquiriam ervas para a realizao de obrigaes religiosas do candombl.
16 Explorando a Bolsa e a Crena dos Incautos. Um antro em Bogum (02/08/1923) Jornal A Tarde.
17 Consultrio e botica ao ar livre (26/06/1920) Jornal Dirio da Bahia, p.4.
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Pelo que foi dito, a leitura dos espaos da cidade e seus significados para mes,
pais e filhos-de-santo no pode encarar os mercados populares como meros
fornecedores de apetrechos indispensveis confeco de diferentes atos e cerimnias
rituais dos candombls. A Feira de gua de Meninos, a Feira da Sete Portas, o Mercado
de So Miguel, o Mercado Modelo, assim como o Mercado do Ouro e o de Santa
Brbara faziam parte do universo dos candombls. Para os fins interpretativos que se
pretende so, indubitavelmente, espaos privilegiados para entender as relaes
dinmicas ou a dinmica das relaes entre os candombls e a cidade.
Os mercados eram ponto de encontro para o povo-de-santo, local de trabalho
para comerciantes que, se no pertenciam ao culto, precisavam compreender a sua
lgica para atender e atrair clientes. Alm disso, as feiras congregavam o segmento de
coletores de ervas, importadores de produtos africanos, artesos que faziam ferramentas
de orixs, peas de barro, colares de contas, instrumentos musicais, objetos tranados
em palha, e tantos outros usados nos candombls da Bahia.
O mercado era tambm o lugar do fuxico, onde era possvel olhar uma lista de
produtos feita por determinado pai ou me-de-santo e desacreditar suas habilidades
litrgicas, para aquela poca deveria tambm ser o espao onde circulavam as notcias a
cerca das batidas policiais, ou sobre os incidentes que teriam ocorrido em celebraes
ou rituais, em um ou outro terreiro. Por essas, e outras, era recomendvel ir a feira
sempre bem acompanhado, e para atender as dinmicas e necessidades daquele espao
ningum melhor que Exu, o dono do mercado, o Oloj.
Naquela Salvador vivenciada pelos adeptos do candombl, durante a dcada de
1930 destacavam-se os espaos considerados sagrados pelo povo-de-santo graas a
presena de elementos da natureza, que eram relacionados aos deuses do panteo afro-
brasileiro, servindo como territrio para entrega de oferendas, entre outros rituais.
No ambiente interno dos candombls de suma importncia a existncia de
uma rea verde, nela so realizadas diversas atividades do terreiro, como o cultivo de
ervas usadas em rituais, para a produo de banhos, defumadores e chs. Contudo, a
relao do povo de santo como a natureza no se limita ao espao da roa.
Alm das folhas utilizadas no culto a todos os orixs, o candombl
necessita ainda do espao da mata ou da floresta para cultuar as divindades
que presidem esses domnios, como Ossaim, o deus das plantas, Oxossi, o
deus caador, Iroco e Tempo, representados pela gameleira branca (Fcus
doliaria, M) ou ainda as entidades que, embora no pertencendo
propriamente a este domnio, esto relacionadas com as rvores cujas folhas
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lhes so consagradas, como Ogum, cultuado na mangueira (Mangifera
indica, L.) e Ians e Egum cultuados no bambu (Bambusa vulgaris L.).
(SILVA, 1995; p. 210)
Tambm interessava que o espao do terreiro tivesse fontes naturais ou
artificiais de gua que eram utilizadas tanto para o uso domstico, como para as
atividades rituais incluindo a a realizao dos banhos, o preparo da alimentao para os
filhos-de-santo, assim como cozimento dos animais sacrificados na matana ritual e das
demais comidas votivas. As guas tambm eram consideradas moradia para algumas
divindades.
Ainda que, no espao interno dos terreiros houvesse a disponibilidade destes
bens naturais, o que nem sempre era possvel, havia a necessidade de fazer
procedimentos em outros territrios da cidade, o que provocava um deslocamento dos
adeptos candombl, muitas vezes utilizando roupas especficas para rituais,
transportando objetos, alimentos e animais necessrios para a realizao das obrigaes.
O que conferia um grau de mobilidade especial ao povo-de-santo. essa possibilidade
dos adeptos do candombl de sarem do seu espao de celebraes e rituais que eram os
terreiros, para cumprirem obrigaes religiosas em territrios que compunham a
paisagem natural da cidade, lugares que no detinham a ateno especial dos demais
transeuntes, atribuindo a rvores, diques, parque e braos de mar um carter sagrado,
que possibilita proposio de uma leitura da cidade de Salvador, a partir das
experincias de filhos, pais e mes-de-santo.
Na esteira dessas observaes merecem ateno especial os espaos da cidade
em que pais, mes e filhos-de-santo realizavam suas obrigaes rituais. Seguindo a
trajetria do povo-de-santo em suas andanas pela cidade a reflexo sobre territrios
que apresentam elementos da natureza valorizados pelo povo-de-santo deve ser
precedida pela compreenso dos significados envoltos neste tratamento mgico dado
natureza.
Referindo-se queles espaos da cidade aos quais comunidades religiosas afro-
brasileiras atribuem significados especiais Everaldo Duarte, Og do Terreiro do Bogum,
apresentou alguns dos territrios utilizados pelas comunidades afro-brasileiras:
Esses espaos esto espalhados pela cidade, onde s nos
conhecemos. Espaos que, pouco a pouco, esto sendo devastados, a
exemplo do Bonoc (). Tal como o Bonoc, antigo espao religioso tradicional, a cachoeira de So Bartolomeu e adjacncias representam muito
para a sobrevivncia da cultura e da tradio religiosa da Bahia (). Poucos perceberam a quase destruio do Beiru, outro espao sagrado
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transformado no bairro Tancredo Neves, o que causou o desaparecimento de
um vasto santurio Afro. Na regio denominada Brasilgs desapareceu todo
o suporte natural composto da lagoa, das arvores e do rio que consolidava
um dos mais antigos terreiros da religio Jje Sawalu (DUARTE, 1998; pp.
20-1)
Duarte apresenta reas da cidade que desapareceram, ou que no recebem mais
um tratamento diferenciado pelas comunidades afro-brasileiras, mas que no incio do
sculo XX compunham a cartografia simblica dos terreiros de Salvador. A
identificao desses espaos sagrados pelas comunidades afro-brasileiras possibilita
vislumbrar a historicidade de tais prticas religiosas, uma vez que muitos espaos
desapareceram e outros foram modificados a fim de atender aos interesses pblicos, o
que demandou do povo-de-santo uma redefinio desses territrios.
Um exemplo disso o Dique do Toror, uma grande lagoa alimentada pelo rio
das Tripas e pelo rio Toror. Ia por S. Bento, S. Francisco, Carmo, Barris e Garcia,
desaguando no mar atravs do rio Lucaia que o levava at o largo da Mariquita, no Rio
Vermelho. Imortalizado nas imagens pela figura de lavadeiras em plena atividade o
Toror era largamente utilizado pelo povo-de-santo como lembra Everaldo Duarte:
O dique do Toror um santurio para todos ns. Ali reside a Oxum mais
doce e mais justa que se pde conhecer. Antes, com todos os requintes aos
quais se faz jus. Hoje, cercada de asfalto, buzinas e sirenes por todos os
lados.(...) Aos domingos, geralmente tarde, era um privilgio se colocar
margem do dique para ver os cerimonial que conduzia os presentes. Eram as
oferendas para Oxum que os terreiros tradicionais proporcionavam, cada
um ao seu dia. O movimento provocado pela chegada do cortejo era to
grande que parava tudo. Os bondes, as pessoas, os moradores, tudo se
juntava num nico cenrio que ficava pequeno quando se lhe acrescentava o
cortejo. O cortejo era de muita gente que acompanhava os atabaques que
reverenciavam a Deusa das guas doces, cantando e danando em ritmo de
ijex. (DUARTE, 1998, 264-5)
Certamente, a localizao do Dique cravado em uma regio cercada de
candombls favoreceu a sua escolha como local sagrado, uma vez que os cortejos eram
realizados a p, por um grande nmero de pessoas para entregar o presente, ou seja, as
oferendas dos fiis a Oxum. Como os mitos descreviam esta deusa como uma mulher
bastante vaidosa, os presentes geralmente continham inmeros pentes, espelhos e
perfumes.
Guardado na memria do povo-de-santo o Parque de So Bartolomeu, em
Piraj, foi bastante utilizado pelos adeptos do candombl nas primeiras dcadas do
sculo XX. Tratava-se de uma grande rea, um trecho de Mata Atlntica, que ainda
continha lagoas e quedas dgua. Em meio a literatura que trata do Parque de So
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Bartolomeu as referncias mais constantes de utilizao daquele espao diziam respeito
aos candombls de caboclos.
Essas festas paralelas no se resumem aos terreiros de
candombl. No Parque de So Bartolomeu, em Piraj, as homenagens aos
Caboclos ocorrem por todo dia. Palco de uma batalha decisiva contra os
portugueses, o parque um local onde os cultos afro-brasileiros se
misturam. Um barraco prximo cachoeira de Oxum serve as necessidades
da homenagem a esta divindade. comum os Caboclos descerem e depois banharem-se nessa cachoeira. As oferendas so colocadas em lugares onde
o mato cerrado, simbolizando um espao prprio dessas divindades. A rea
ocupada tanto por membros dos candombls quanto por adeptos da
umbanda, que tambm vo prestar reverncias aos Caboclos no Parque So
Bartolomeu. (SANTOS, 1995, p. 49)
Em meados do sculo XX o mesmo espao tambm era praticado pelos adeptos
do candombl jeje. Um membro do Candombl do Bogum guardou na memria a
utilizao que os filhos-de-santo daquele terreiro faziam do espao do Parque de S.
Bartolomeu, segundo ele:
No comeo dos anos 40, eu era menino ainda, aconteceu minha
primeira participao, junto a comunidade, nas caminhadas a So
Bartolomeu. Costume que j se verificava antes de meus avs. Naquela
poca no se destacava um parque, pois a cidade inteira era um parque. O que se destacava como monumento era a cachoeira. O Arco-ris se
mostrava e permanecia pleno de cores e de vida. Movimentava-se entre a
folhagem que pendia dos arbustos de tal forma que envolvia o espectador em
qualquer lugar que ele procurasse se esconder. Aquilo era manifestao de
Bessen aos nossos olhos. (...) Amanhecamos na estrada, pois as sadas eram
no final da noite. A caminhada era seguida de cantos e louvaes aos
presentes e aos Deuses, de preferncia em lngua Ijex. Chegvamos com
saudaes e reverncias aos donos do lugar, da mata, das guas e nos
acomodvamos para os rituais. E era deslumbrante o encontro com o Arco-
ris de Bessen. Felizardos os escolhidos por ele que conseguiam v-lo de
dentro das guas, que molhavam, frias, da cachoeira. (DUARTE, 1998; p. 20
e 22))
Resta ainda compreender a relao que o povo-de-santo estabelecia com o
orix consagrado as guas salgadas: Iemanj. Atualmente, os festejos atribudos a esta
entidade se concentram no bairro do Rio Vermelho, no dia 02 de fevereiro, sendo uma
das festas que compe o calendrio turstico do estado. A notcia mais antiga que tive
acesso em relao s esses festejos foi descrio de Manuel Querino ainda no sculo
XIX, quando os organizadores da festa ainda eram escravos africanos.
Entre estas, sobressaa a festa da me dgua (sereia) e a tradio
guardou, como a de maior nomeada, a que se realizou, por muitos anos
atrs, e em frente ao antigo forte de S. Bartolomeu, em Itapagipe, hoje
demolido, e na 3 dominga de dezembro, qual compareceriam para mais de
2.000 africanos. A ela se achavam-se presentes todos os pais de terreiro da
cidade, sob a direo do tio Atar, que residia rua do Bispo, no citado
bairro. Os pais de terreiro trajavam roupas de brim de linho branco, e
chapeu de Chile, ostentavam relgio, chapu de sol de sda,e comprido
corrento de ouro (...) Durava a festa quinze dias, nas quais abundavam os
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batuques (candombls), o ef, o abar, o carneiro, o bode, etc., com o azeite
de dend. Em certo dia, Atar anunciava multido que se iam realizar as
homenagens me dgua, e a grande talha ou pote de barro cozido se
enchia logo de presentes, como fssem: pentes, frascos de pomada, frascos
de cheiro, cvados de fazendas e era atirada ao mar, na meia travessa, ponto
muito conhecido dos marinheiros, principalmente quando reina vento forte.
Estava, pois, concluda a festa da me dgua e os festeiros se recolhiam s
casas do senhorio. (QUERINO, 1946, PP. 116-7)
Por volta de 1930 o presente entregue a Iemanj apresentava diferenas
significativas em relao quela festa descrita por Querino. Os festejos ocorriam em
diversos pontos da cidade, mas destacavam-se as celebraes realizadas no Rio
Vermelho, regio que como foi dito anteriormente, concentrava um grande nmero de
terreiros de candombl. Tratava-se de um evento de grande popularidade naquela
Salvador, um dos que davam grande visibilidade s prticas religiosas afro-brasileiras.
Durante a sua estadia em Salvador a pesquisadora Ruth Landes acompanhou a
entrega do presente da Me Dgua da roa de Me Sabina. No se tratava dos festejos
realizados no dia 02 de fevereiro, uma vez que antes disso ela j havia sido expulsa da
Bahia. Os adeptos do candombl seguiram andando em procisso para cumprir o ritual,
saindo das Quintas da Barra onde estava localizado o terreiro (trata-se do mesmo local
onde funciona atualmente o Shopping Barra) e seguindo a p at os saveiros localizados
na Barra, que lhes conduziram pennsula de Itapagipe, entregando o presente em
Mont-Serrat. No saveiro:
Vrias sacerdotisas levavam o navio de brinquedo e os presentes
que deviam ser jogados gua para a deusa, outras carregavam cntaros,
graciosos como nforas gregas, cheios de gua sagrada que devia ser
derramada sobre deusa no auge do sacrifcio. Cantavam-se hinos
acariciantes para a linda e rica Oxum, para a mais velha e voluptuosa
Iemanj, e confundiam-nas ambas, com Janana(...) [J no saveiro]
Comeou um novo cntico para a grande deidade das doenas, chamada
Omolu, conhecida no mundo catlico como So Lzaro e So Roque.
Mulheres caam em transe, de novo. Os cnticos e os transe se sucediam e
era evidente o contentamento de todos. Sabina mandou que servissem
comida - aca, laranjas, balas, po-de-l. Os atabaques roncavam o tempo
todo... (LANDES, 2002; pp. 221-2)
Outro ponto da cidade muito utilizado com fins religiosos pelo povo-de-santo
foi a Lagoa do Abaet, no fim do sculo de XIX e incio do XX. Ao ser entrevistada
pela pesquisadora Maria Elisabete Pereira dos Santos em 1988, a Ebmi Cidlia explica
porque no utilizava mais a Lagoa do Abaet para presentear Oxum:
Ali no lugar pra botar o presente de Oxum. O pessoal bota. Mas tem vez
que volta tudo. Os moradores apanham tudo, os sabonetes, tudo. que eu
tava andando por l, assim amido, os meninos panhavam pra vender
.(SANTOS, 1995, Anexos)
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Dentre os fatores enumerados pela Ebmi, para justificar sua recusa em realizar
obrigaes religiosas na Lagoa do Abaet, existiria uma explicao de cunho mgico,
ou seja, volta tudo, a entidade no aceita o presente. Mas, ela tambm apresenta
outros indicativos bem atuais para a recusa do lugar, os moradores panham tudo, o
que provavelmente no acontecia anteriormente, quando regio era parcamente
habitada.
Com isso fica evidente que apesar de algumas permanncias, os espaos
utilizados pelo povo-de-santo para a realizao de seus rituais foram se modificando ao
longo do tempo, por diversos motivos. Regies antes, admiradas por grande riqueza
natural, degradaram-se com o tempo ou foram invadidas pela violncia urbana,
enquanto outros pontos da cidade, passaram a sofrer com a especulao imobiliria, que
transformou completamente o ambiente. J outros lugares, transmudaram-se em cartes
postais com um grande apelo s prticas religiosas que ali eram realizadas, mas j no
atraem os terreiros para a entrega de presentes e outras obrigaes. Tudo isso, contribui
para a perspectiva apontada ao longo da pesquisa, compreende a cidade a partir dos
espaos que compunham as prticas religiosas, e que no eram entendidas como palco
no qual se desenrolavam os ritos. Por isso, mudavam as prticas e tambm os espaos
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