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2 | a cabra | 23 de outubro de 2012 | terça-feira deStAque á vivemos assim há dez anos. A minha mulher também é bolseira e temos um filho”, conta o estudante de pós-doutoramento (pós-doc) e bolseiro de investigação científica, Tiago Natal da Luz. Ele sabe que é um “bocado doentio” viver na dependência da possibili- dade de no ano seguinte não haver bolsa. Mas move-o a “magia” pela investigação. No Departamento das Ciências da Vida da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universi- dade de Coimbra (FCTUC), contí- guo à Sé Nova, Tiago está sentado numa mesa como qualquer outro estudante. O laboratório fica para trás, mas a situação em que está do- mina toda a conversa. “As pessoas acham que é um desprestígio ter bolsa, não é visto como um em- prego sequer”, la- menta o doutorado em ecologia. se sentiu seguro ao inscrever o filho no infantário dos Serviços de Ação Social da Univer- sidade de Coimbra. Nos outros, quando disse que era bolseiro, as pessoas ficavam a examiná-lo. Achavam que era uma “irresponsa- bilidade” delegar uma mensalidade numa pessoa que pode ficar sem rendimentos ao fim de cada ano. “É um privilégio pagarem-me para fazer o que gosto”, ressalva Tiago Luz. O décimo ano de investigação do eco- logista corresponde ao início do seu pós-doc. E os resultados da sua ex- periência com os “bichinhos do solo”, como afirma, são avaliados diariamente. Por outras palavras, analisa a reprodução desses mes- mos bichos em função da maior ou menor quantidade de tóxicos apli- cados na experiência no laborató- rio, exemplifica o investigador. Dar aulas fica fora do cenário. As alterações feitas ao Estatuto do Bol- seiro de Investigação Científica (EBI) deram origem a uma contro- vérsia entre a classe. Porque muitos reivindicam que o projeto de inves- tigação a par com a docência é uma mais-valia. Ao contrário de Tiago, que quer testar a ciência no labora- tório, Ana Rita Alfaiate quer testá- la nas salas da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. É proessora assistente convidada na aula de Direito Penal, e leciona ao primeiro ciclo de estudos da licen- ciatura de Direito. No entanto, em agosto surgiu uma alteração ao EBI que desconfigurou a sua vontade: “surge um decreto-lei (DL 202/2012) que, para além de vir dizer que não podemos dar aulas aos estudan- tes de 1º ciclo, diz também que só os estu- dantes de pós- doutoramento podem lecio- nar”, aclara Ana Rita. Por muito confuso que possa parecer à vista desarmada, tal significa que agora, e como Ana Rita é estudante de doutoramento, fica impedida de ser professora. No entanto, isso só acontecerá no próximo ano letivo. O Governo, num comunicado em Conselho de Ministros no mês seguinte ao de- creto, “aprovou o diferimento para o início do próximo ano letivo”, ou seja, não aplica as novas alterações durante um ano porque procura o evitar os constran- gimentos nas uni- versidades dado que já tinham o corpo docente dis- tribuído. “Isto é uma saga, o pro- cesso da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) é como um curso intensivo de resistência. Tira muita energia e disponi- bi- lidade mental para pensar no que devia ser pensado – a tese”, con- dena a bolseira de doutoramento Ana Rita Alfaiate. A FCT é a enti- dade que atribui anualmente bolsas do Estado para financiar projetos de investigação científica. Mas há uma grande precariedade nisso. “Andámos a viver quase como sem saber como vai ser a nossa vida amanhã”, diz revoltada a profes- sora. Não há um vínculo como um con- trato laboral, exige-se à mesma uma exclusividade e há perda nos direitos sociais. As regras do jogo alteraram-se e de “forma completa- mente unilateral”, realça a mesma. Proteção social deficiente Os direitos sócio-laborais dos bol- seiros entram em disputa com os de um trabalhador normal. Na opinião do bolseiro de investigação em sociologia, Alfredo Cam- pos, um “horário de trabalho, u m A luta pela estabilidade na investigação A produção científica portuguesa encontra-se instável. Ser bolseiro de investigação já não significa uma rampa de lançamento para o prestígio na área. Muitos vivem de corda ao pescoço sem saber o que pode acontecer no ano a seguir e lutam por um vínculo que os faça ter um lugar na sociedade. Por Liliana Cunha e João Martins “Não somos elegíveis nem para um crédito” Vera Dantas Moura Catarina Silva ainda não está a par de nenhuma alteração “J

2 a cabra | 23 de outubro de 2012 | terça-feira deStAque A luta …saladeimprensa.ces.uc.pt/ficheiros/noticias/6386_Investi... · 2012. 10. 24. · 2 |a cabra | 23 de outubro de

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2 | a cabra | 23 de outubro de 2012 | terça-feira

deStAque

á vivemos assim há dezanos. A minha mulhertambém é bolseira etemos um filho”, conta o

estudante de pós-doutoramento(pós-doc) e bolseiro de investigaçãocientífica, Tiago Natal da Luz. Elesabe que é um “bocado doentio”viver na dependência da possibili-dade de no ano seguinte não haverbolsa. Mas move-o a “magia” pelainvestigação. No Departamento dasCiências da Vida da Faculdade deCiências e Tecnologia da Universi-dade de Coimbra (FCTUC), contí-guo à Sé Nova, Tiago está sentadonuma mesa como qualquer outroestudante. O laboratório fica paratrás, mas a situação em que está do-mina toda a conversa. “As pessoasacham que é um desprestígio terbolsa, não é visto como um em-prego sequer”, la-menta odoutorado emecologia. Só sesentiu seguro aoinscrever o filhono infantário dosServiços de Ação Social da Univer-sidade de Coimbra. Nos outros,quando disse que era bolseiro, aspessoas ficavam a examiná-lo.Achavam que era uma “irresponsa-bilidade” delegar uma mensalidadenuma pessoa que pode ficar semrendimentos ao fim de cada ano.

“É um privilégio pagarem-mepara fazer o que gosto”, ressalvaTiago Luz. O

décimo ano de investigação do eco-logista corresponde ao início do seupós-doc. E os resultados da sua ex-periência com os “bichinhos dosolo”, como afirma, são avaliadosdiariamente. Por outras palavras,analisa a reprodução desses mes-mos bichos em função da maior oumenor quantidade de tóxicos apli-cados na experiência no laborató-rio, exemplifica o investigador.

Dar aulas fica fora do cenário. Asalterações feitas ao Estatuto do Bol-seiro de Investigação Científica(EBI) deram origem a uma contro-vérsia entre a classe. Porque muitosreivindicam que o projeto de inves-tigação a par com a docência é umamais-valia. Ao contrário de Tiago,que quer testar a ciência no labora-tório, Ana Rita Alfaiate quer testá-la nas salas da Faculdade de Direito

da Universidade de Coimbra. Éproessora assistente convidada naaula de Direito Penal, e leciona aoprimeiro ciclo de estudos da licen-ciatura de Direito. No entanto, emagosto surgiu uma alteração ao EBIque desconfigurou a suavontade:

“surge um decreto-lei (DL202/2012) que, para além de virdizer que não podemos dar aulasaos estudan-tes de 1º ciclo,diz tambémque só os estu-dantes de pós-doutoramentopodem lecio-nar”, aclaraAna Rita. Por muito confuso quepossa parecer à vista desarmada, talsignifica que agora, e como AnaRita é estudante de doutoramento,fica impedida de ser professora.

No entanto, isso só aconteceráno próximo ano letivo. O Governo,num comunicado em Conselho deMinistros no mês seguinte ao de-creto, “aprovou o diferimento parao início do próximo ano letivo”, ou

seja, não aplica asnovas alteraçõesdurante um anoporque procura oevitar os constran-gimentos nas uni-versidades dado

que já tinham o corpo docente dis-tribuído. “Isto é uma saga, o pro-cesso da Fundação para a Ciência eTecnologia (FCT) é como um cursointensivo de resistência. Tira muitaenergia e disponi-b i -

lidade mental para pensar no quedevia ser pensado – a tese”, con-dena a bolseira de doutoramento

Ana Rita Alfaiate. A FCT é a enti-dade que atribui anualmente bolsasdo Estado para financiar projetos

de investigação científica.Mas há uma grande

precariedaden i s s o .

“Andámos a viver quase como semsaber como vai ser a nossa vidaamanhã”, diz revoltada a profes-

sora. Não háum vínculocomo um con-trato laboral,exige-se àmesma umaexclusividade ehá perda nos

direitos sociais. As regras do jogoalteraram-se e de “forma completa-mente unilateral”, realça a mesma.

Proteção social deficienteOs direitos sócio-laborais dos bol-seiros entram em disputa com os deum trabalhador normal. Na opinião

do bolseiro de investigação emsociologia, Alfredo Cam-

pos, um “horáriode trabalho,

u m

A luta pela estabilidade na investigaçãoA produção científica portuguesa encontra-se instável. Ser bolseiro de investigação já não significa uma rampa

de lançamento para o prestígio na área. Muitos vivem de corda ao pescoço sem saber o que pode acontecer

no ano a seguir e lutam por um vínculo que os faça ter um lugar na sociedade. Por Liliana Cunha e João Martins

“Não somos elegíveisnem para um crédito”

Vera Dantas Moura

Catarina Silva ainda nãoestá a par de nenhuma alteração

“J

Page 2: 2 a cabra | 23 de outubro de 2012 | terça-feira deStAque A luta …saladeimprensa.ces.uc.pt/ficheiros/noticias/6386_Investi... · 2012. 10. 24. · 2 |a cabra | 23 de outubro de

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local de trabalho, e uma supervisãodireta, fazem do bolseiro um traba-lhador por conta de outrem comooutro qualquer”. Entenda-se comooutrem a FCT e o Estado. Contudo,as proteções sociais transversais àclasse não se verificam: “não temdireito a subsídio de desemprego,de férias ou natal, e apenas temcondições de maternidade muito li-mitadas”, lembra Alfredo Campos.

“Que haja saúde”, roga o investi-gador Tiago Natal Luz. O seu pe-dido explica-se, uma vez que, aindadentro da proteção social relativa amotivos por doença, o bolseiro, seficar de baixa médica, receberá ocorrespondente a um trabalhadorque ganhe um sa-lário mínimo. Istoporque o mon-tante que lhe éatribuído é maisdo dobro do que oordenado mínimo.

“Sou bolseiro há seis anos eestou a descontar para o serviço so-cial voluntário a contar como sefosse o ordenado mínimo”, sustentaAlfredo Campos. Encontra-se a ten-tar pagar para uma reforma, “seainda existirem e será uma misé-ria”.

“Foi tudo centrado em coisasmuito particulares que teriam inte-resse do Governo, mas não é paramelhorar as questões dos bolsei-ros”, diz o vice-presidente da Asso-ciação dos Bolseiros deInvestigação Científica (ABIC),André Janeco. O regime de exclusi-vidade previsto no EBI, obriga aque o bolseiro não possa obter maisnenhum rendimento à parte doprojeto anulando “a capacidade dese inserir no emprego científicocom condições”, alerta.

Os bolseiros de investigação nãopodem ter dois projetos em simul-tâneo e ganhar dos dois lados. Só deum. “Acho discutível ver a ciênciaou a produção de conhecimentocientífico como concorrencial”, co-menta o investigador de Sociologia.“Não se aumenta o valor das bolsas,ainda se impõe uma exclusividade

enão sep e r m i t ebuscar recursoseconómicos a maislado nenhum, torna-se in-sustentável a vida dos bolseiros”,suporta o sociólogo.

Uma fuga para o empreendedorismoVera Dantas Moura saiu da estabi-lidade de um emprego fixo numafarmácia e decidiu concorrer a umabolsa de doutoramento na FCT. Econseguiu-o por quatro anos, desde2005 até 2009, numa investigação

onde desenvolveu um fármaco quese destina a proteger com mais se-gurança os doentes oncológicos. Adescoberta no primeiro ano de dou-toramento de uma partícula “paratransportar um fármaco até aotumor de uma forma exclusiva”,trouxe a possibilidade de patenteara descoberta e depois transformá-la numa coisa rentável. Acrescen-tou um ano extra “porque auniversidade apresentou-nos aoscursos de empreendedorismo ehouve muita aceitação da ideia”,adianta Vera Moura. Até agora, asua equipa ganhou o prémio daideia de negócio, a alavanca que alançou para o mundo empresarial.Conseguiu financiamento por partede fundos europeus e, legalmente,a empresa existe há um mês.Vera deixou a bancada da far-mácia para ser gerente deuma empresa: “é umagrande aventura, masnão teria chegado aquise não tivesse sidobolseira da FCT, edigo hoje que foia melhor deci-são quetomei”.

Ridicularização da “pro-fissão”Há uma história que Vera Mouranão esquece: “lembro-me de sercontactada pelo [banco] Barclaysvárias vezes nas campanhas de lan-çamento de cartões de crédito”. Du-rante o questionário

perguntaram-lhe pelos seusrendimentos.Disse que erabolseira e res-ponderam-lhe

que não era elegível. “Nós nemsomos elegíveis para um cartão decrédito. Não há confiança no bol-seiro”, indigna-se a ex-farmacêu-tica. Recorda ainda uma situação,de quando um colega seu teve o de-sejo de comprar um carro. “Ele re-cebia uma bolsa aquatro anos equis fazer umf i n a n c i a -m e n t opara umcarro.O

pai teve de ir como fiador”.O facto de o filho ter uma ligação

que dizia que durante quatro anosganhava 980 euros por mês, reno-vados a cada ano, não bastou.“Como é que podem dizer que umapessoa que recebe o ordenado mí-nimo nacional é um trabalhador eoutra que recebe o dobro não o é?”,questiona Vera Moura. Asseveraque “não há estímulo nenhum, nãosomos vistos como cidadãos”.

Tiago Luz quer-se manter inves-tigador mas tem medo de ser um“bolseiro crónico”. Alfredo Camposestá em vias de se candidatar a maisuma bolsa, desta feita de doutora-mento, para ter a garantia de ren-dimento nos próximos quatro anos.Ana Rita, no próximo ano letivo po-

derá deixar de

dar aulas: “vai ser um grande sacri-fício se em vez do sonho de daraulas tiver de ficar três anos fe-chada em casa ou numa biblioteca”.Apesar da polémica, ainda há genteque nada sabe. Catarina Silva, quejá foi bolseira, é uma delas. Mastem como objetivo avançar com umprojeto de doutoramento, na áreada Psicologia, mesmo assim.

A revolta leva à luta. “Temos umano para provar por a+b que nãofaz sentido. Há tanta coisa mal noestatuto que ninguém questiona”,deixa no ar a professora convidadada FDUC, Ana Rita Alfaiate. Até aquestão da não remuneração de co-legas seus “que dão aulas em cata-dupa. Isso não está a serinvestigado”, refere revoltada.

Para Tiago, há “magia”na investigação