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IX REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL
10 A 13 DE JULHO DE 2011 - CURITIBA, PR
GT 37: Etnografias e Culturas Escolares no Mundo Ibero-Latino-Americano
Título do trabalho: Etnografia na educação infantil: novos contornos no
encontro entre adultos e crianças pequenas
Nome da autora: Juliane Di Paula Queiroz Odinino- UFSC
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Etnografia na educação infantil: novos contornos no encontro entre
adultos e crianças pequenas
Juliane Di Paula Queiroz Odinino1
O ambiente escolar tem se configurado há muito tempo como o lugar
privilegiado de encontro e socialização de crianças, tanto entre seus coetâneos
como nas relações estabelecidas junto a adultos, neste caso profissionais da
instituição. Compreendido como um espaço onde é produzida e reproduzida a
vida social, devido ao seu papel institucional que o delega a principal instância
de produção e reprodução de conhecimento, entendemos que aí há um
imbricado e conflituoso conjunto de visões de mundo e significados culturais.Tal teia é atravessada por dimensões que podem ser tomadas em seus níveis
macro e microssociais. Do ponto de vista mais estrutural, devemos partir dos
contornos históricos e sociais que ajudaram a delinear a educação infantil tal
qual é concebida hoje a partir de uma perspectiva mais abrangente de âmbito
nacional. Por outro lado, num nível mais localizado, compreendemos que tais
significados adquirem sentido nas vivências e práticas cotidianas, onde
efetuam-se diferentes concepções que vão desde as próprias noções decriança e de educação que estão sendo colocadas em jogo, num determinado
contexto, até os jogos políticos dos diferentes sujeitos que atuam, co-
participam e negociam cotidianamente esses significados. Entre esses atores
sociais privilegiaremos as categorias adulto e criança devido ao fato de que no
contexto da chamada educação infantil estas serem percebidas como o
principal divisor de águas no dermarcamento dos papéis sociais e,
consequentemente, determinantes para as configurações sociais que são aítecidas.
Esse trabalho tem o objetivo de trazer para o debate os principais
dilemas e reflexões realizados na oportunidade da prática de estágio
supervisionado em educação infantil, ocorridas durante dois semestres – nos
anos de 2010 e 2011 - com duas turmas de estágio, numa determinada
instituição de educação infantil ligada à universidade. Ali se articularam
1
Doutora em Ciências Humanas pelo Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da UniversidadeFederal de Santa Catarina e professora substituta do curso de pedagogia desta instituição. E-mail:
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diferentes vozes e concepções, tendo em vista as expectativas mútuas entre
adultos, adultos e crianças e crianças entre si. Trata-se de uma análise
interpretativa cujo interesse é o de captar a maneira como diferentes
significados são veiculados e construídos num contexto de tensão e
sociabilidade, onde há tanto trocas como divergências. Na construção dessa
narrativa e posterior análise, as identidades serão preservadas assim como as
instituições educacionais aqui envolvidas. Tendo em vista que o intuito aqui se
concentra na compreensão das visões de adulto e criança que por hora
aparecem em jogo, não vemos portanto a necessidade de realizar um
aprofundamento sistemático das instituições em questão, uma vez que neste
universo pudemos recolher uma complexidade de interpretações pelas quais o
leitor ou a leitora podem reconhecê-las (ou não) como práticas comuns
vivenciadas nos cotidianos da educação infantil. Nesta direção, serão
pontuadas as visões de criança, de educação infantil e de formação docente
que povoaram os discursos e os diálogos transcorridos no cotidiano,
consolidando-se numa polissemia cultural.
Nosso primeiro objetivo era o de entender os processos desencadeados
no contexto da educação infantil como os de sociabilidade, observando os
códigos de convívio e as negociações travadas entre os diferentes sujeitos. O
termo socialidade é compreendido como a ideia que concebe o social
requerendo agência individual. Segundo Overing e Raport (apud SILVA, p. 94,
2008) “em vez do termo sociedade que ainda carrega o significado modernista
de uma coletividade pesada e unificada hoje preferimos o termo socialidade,
uma ideia em que o social precisa da agência individual e por isso os dois se
interpenetram”. Assim, o termo é entendido como um estado momentâneo na
vida social de um grupo, onde se inscreve um auto-reconhecimento dosenvolvidos. Mafesolli (1996) afirma que a socialidade constituiria uma marca
comum aos agrupamentos contemporâneos devido ao fato de se constituírem
nas relações banais do cotidiano, nos momentos não institucionais. Esses
agrupamentos não são fixos nem claramente definidos quanto a sua forma e
coerência interna, daí a importância das suas manifestações cotidianas.
Apesar desses grupos de adultos e crianças estarem inseridos em um
ambiente institucionalizado, um centro de educação infantil que contém suasespecificidades e particularidades, o foco recai para a situação cotidiana, onde
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novas formas de sentir e novas figuras de socialidade desenham uma aparente
desordem cultural. Neste horizonte, são continuamente questionadas pelos
sujeitos/agentes as formas implícitas de poder, iluminando “cer tos saberes-
mosaico, feitos de objetos móveis, nômades, de fronteiras difusas, de
intertextualidades e bricolagens” (MARTIN-BARBERO, 2001, p.18). A análise
que lança mão das falas, situações, agenciamentos e negociações ocorridas
no encontro entre adultos e crianças num determinado contexto deve
considerar as dinâmicas das micropolíticas que Michel de Certeau (1994)
chama de “maneiras de fazer”, que “constituem as mil práticas pelas quais
usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção
sócio-cultural” (p.41). O espaço, nesse caso, é o presente, ou seja, os
mecanismos acionados ocorrem justamente na interação social.
Compreendemos assim o caráter subjetivo como um constante perfazer-se, no
qual se travam pequenos conflitos diários, obrigando os sujeitos a reafirmarem
constantemente sua posição, ressignificando a todo momento seu estatuto de
criança, menino ou menina, adulto, profissional, estagiária, dentre outras
denominações identitárias.
A vivência junto ao grupo de crianças e adultos na instituição de
educação infantil, inicia-se já no momento de definição do campo. Nesta etapa,
a supervisora de estágio se dirige à equipe pedagógica, respeitando a
hierarquia da própria organização escolar, para negociarem a presença e o
caráter do estágio. A proposta de estágio supervisionado em educação infantil
da universidade pública em questão vem se desenhando a partir de uma sólida
experiência junto a inúmeras instituições públicas que atendem crianças
pequenas, de modo que isso vem se consolidando ao longo dos anos e tem se
orientado no sentido de “problematizar a prática educativa entre os grupos de
crianças, a partir do encontro, como já foi dito, entre educadores em formação
inicial e educadores em serviço” (OSTETTO, 2000, p. 21).
Além da preocupação no estabelecimento de uma relação de troca de
experiências, de partilha de olhares e inquietações vivenciadas no cotidiano e
na prática pedagógica, a atenção recai com a mesma importância na direção
do vínculo e da parceria construída com as crianças. Por consolidar-se numa
perspectiva que a encara como importante interlocutora consolida-se umdesafio de aceitação que neste último caso nos imputa na direção de uma
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superação dos limites que separam os universos de crianças e adultos.
Corsaro (2005) aponta que tais diferenças se dão em termos de maturidade
cognitiva e comunicativa, de poder, tanto o real como o percebido e de
tamanho físico. Assim, o recurso da observação participante aos moldes
etnográficos tem sido utilizado desde os primeiros contatos como etapa
fundamental para a garantia de uma inserção dentro dessa realidade cultural já
existente e com vida própria, cenário de interação entre diferentes atores
sociais, sejam adultos ou crianças.
O emprego da etnografia orienta-se na busca pela compreensão dessa
realidade “de dentro”, isto é, em suas redes de significados, o que requer dos
adultos envolvidos, especialmente o grupo de estagiárias2, uma postura
comprometida com a ética, o respeito e o olhar atento e sensível. A partir dos
três principais atos cognitivos apontados por Roberto C. de Oliveira (1998):
olhar, ouvir e escrever, é que gradativamente vai se consolidando tanto a
aproximação do grupo de oito a dez estagiárias com a equipe pedagógica e as
crianças, quanto a própria inserção em campo, a partir de uma compreensão
obtida pela vivência no interior desta cultura.
Em relação à prática do estágio supervisionado, nos interessa aqui
compreender em que moldes acontece essa aproximação e esse contato,
tomando, além das vozes, as inúmeras expressões que remetem e dão
significado ao jogo de interação entre os sujeitos envolvidos. Neste cenário
presenciamos diferentes visões de criança e concepções pedagógicas, o que
salienta seu caráter político. Mas o maior de todos os desafios que
recuperamos aqui neste artigo localiza-se nas próprias relações sociais tecidas
num espaço onde os lugares e os papéis não encontram-se tão claramente
definidos, o que traz à tona as negociações e os agenciamentos dos sujeitosenvolvidos. Neste emaranhado de significados e visões distintas, emergem os
jogos de poder que em alguns momentos encontram-se pautados e legitimados
por discursos oficiais e em outras ocasiões os sujeitos utilizam-se de diferentes
táticas para defenderem seus pontos de vistas e concepções, no
perfilar/desenrolar de uma constante negociação que modela essa cultura.
2
Optamos em falar estagiárias, no feminino, devido a ambas experiências de estágio terem contadosomente com alunas que assim se reconhecem e são reconhecidas. O mesmo é válido para a referência
às professoras da creche.
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A criança na educação infantil brasileira
A partir da perspectiva educacional, incluindo aquelas preocupadas com
a especificidade do jardim-da-infância, da pré-escola ou creche, os estudos
sobre a infância vêm sendo tomados por uma hegemonia de uma
conceitualização que se pretende científica, universal e racional, que na maior
parte das vezes herda princípios elaborados na realidade dos países mais
desenvolvidos e influentes do ponto de vista global. Tal conceitualização da
primeira infância, como denomina Peter Moss (2002), tem forte influência dos
países de língua anglo-americana, a saber: Estados Unidos e Reino Unido.
Esta é moldada, segundo o autor, pelo projeto da Modernidade, de inspiração
iluminista, que toma uma perspectiva disciplinar específica, a psicologia do
desenvolvimento, e uma perspectiva econômica e política também específica, o
neoliberalismo. A educação infantil encontraria-se como a primeira etapa de
preparação tendo em vista esse cenário: um mundo pronto, ordenado,
controlável, construído sobre fundamentos de leis. Nesse sentido, os
pressupostos que têm orientado as práticas pedagógicas têm partido da ideia
de “criança” ou “infância” como um ser essencial e universal que fica à espera
de ser descoberto, definido e realizado.
Muitos autores em diversas partes do mundo têm problematizado a
infância como categoria histórico-social, onde podemos presenciar uma
pluralização dos modos de ser criança em todo o mundo (COHN 2005,
CORSARO 2005, PINTO & SARMENTO 1997, BENJAMIN 1984, SARMENTO
& CERISARA 2002). Em nosso país tem se consolidado nos últimos anos
diversas frentes de pesquisa cuja abordagem nos oferece a possibilidade decompreender a existência de muitas e diversas infâncias, construídas para e
por crianças em contextos específicos.
Longe de pretendermos realizar um exame histórico acerca da educação
infantil em nosso país, o que além de não constituir como tarefa fácil
demandaria muito mais do que o propósito desse artigo, gostaríamos de
salientar para a coexistência de múltiplas concepções acerca da educação da
criança pequena. Estas foram sendo modificadas a partir de situações sociaisconcretas que, por sua vez, geraram regulamentações e leis enquanto parte
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das políticas públicas historicamente elaboradas. De qualquer modo, a
educação infantil brasileira deve ser pensada no âmbito da expansão do
trabalho feminino na atividade industrial e no setor de serviço nos anos de 1960
e 1970, dentro de uma perspectiva de urbanização cada vez maior. Ainda
assim, não constatamos uma coerência ou uniformidade quanto à forma de
atendimento à primeira infância, de onde podemos partir seguindo orientação
de Zilma Oliveira (2007) de uma primeira grande separação em dois tipos
dentro da chamada pré-escola3: as instituições que atendem às crianças
oriundas de famílias de baixa renda e aquelas que trabalham com os grupos
mais privilegiados. As do primeiro tipo adotaram predominantemente um
modelo mais assistencialista voltado para a satisfação das necessidades de
guarda, higiene e alimentação, enquanto que as do segundo aperfeiçoaram
propostas educacionais como de Froebel e Montessori no intuito de oferecerem
um atendimento mais estimulador para o desenvolvimento afetivo e cognitivo,
fortemente marcado pelo cientificismo.
As mudanças ocasionadas a partir desse período resultaram no
reconhecimento da educação em creches e pré-escolas como um direito da
criança e um dever do Estado, tal como promulga a constituição de 1988. Com
a lei 9394 de 1996, a educação infantil foi colocada como etapa inicial da
educação básica, o que significou uma conquista histórica, pois tirava as
crianças pequenas (e pobres) de seu confinamento em instituições vinculadas
a órgãos de assistência social. A mesma lei passa a determinar que os
sistemas de ensino garantam às unidades escolares graus progressivos de
autonomia pedagógica, administrativa e de gestão financeira, com a
participação dos profissionais da educação e da comunidade na elaboração e
gestão de seus projetos pedagógicos. Ter a creche incluída no sistema deensino significa elaborar uma proposta pedagógica a ser planejada,
desenvolvida e avaliada por toda a comunidade escolar. Essa gestão, segundo
3Até o século XIX não existia o que hoje denominamos educação infantil. Com a expansão da escola
obrigatória, todo atendimento fora da família a crianças e adolescentes que não freqüentavam ao que
era conhecido como escola, era denominado pré-escola. Hoje em dia esse termo tem sido
compreendido dentro de uma perspectiva que toma a educação infantil destacando-a pelo seu caráter
preparatório para o ensino escolar subsequente, a saber, o fundamental e médio. Usualmente o termo
pré-escola tem compreendido a etapa de atendimento às crianças “maiores” de 4 a 6 anos de idade,enquanto creche corresponderia a etapa anterior junto aos pequenos de 0 a 3 anos, menos marcado
pelo viés educativo.
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Oliveira deve ser voltada para o aperfeiçoamento pedagógico de seu cotidiano.
Neste âmbito, os novos marcos legais trazem novas implicações para a área.
Segundo a autora, além de conceberem a criança como sujeito de direito,
dispõem sobre os princípios de valorização dos profissionais da educação e
preocupam-se com o estabelecimento de padrões de qualidade pelos sistemas
de ensino, incluindo a creche e a pré-escola. Para estas últimas, as
implicações vão do repensar acerca das rotinas até uma possível modificação
na relação educador/criança e na relação criança/família.
Gostaríamos de destacar o fato da pretensa autonomia conferida a
organização das situações cotidianas ocorridas na educação infantil abrir
campo para pensar numa redefinição sobre as práticas pedagógicas. Assim, ao
mesmo tempo ficou o legado à educação infantil de um escorregadio desafio:
sem a obrigatoriedade de ter que seguir um modelo pré-determinado quanto ao
seu papel na educação básica abriram-se inúmeras possibilidades ligadas à
compreensão do que esta consistiria em seu propósito. De um lado foi exaltado
seu caráter político, fruto de escolhas e concepções acerca do que nós,
adultos, queremos para nossas crianças ou mesmo sobre qual seria o lugar
dessa criança em tal contexto – rica, participativa, co-construtora do
conhecimento ou simples reprodutora, receptáculo - e em outra via abriu-se
uma fenda obscura e contraditória quanto aos reais princípios educacionais, os
quais muitas vezes tomaram o comodismo como forma de simplesmente
reproduzir, de maneira irrefletida e descompromissada, uma certa visão de
creche e pré-escola, pouco problematizada e/ou mesmo quase nada
fundamentada. Essas concepções, contaminadas por um certo senso comum
que se arrasta pela própria história do desenvolvimento da educação infantil
em nosso país, carregam em si imagens difusas acerca do que seria a“criança” e o papel do adulto no interior da educação infantil. De certo modo
averiguamos que esta nebulosa concepção sobrevive implicitamente no
imaginário coletivo, se perfazendo no cotidiano das práticas pedagógicas. É
justamente no dia a dia das creches e das pré-escolas que esse conjunto de
saberes comuns se perpetuam nas entrelinhas, nos gestos, falas e trejeitos,
enfim, nos interstícios da convivência entre adultos e crianças. Se por um lado
é permitido problematizar o caráter instrumentalista e conteudístico daeducação, por outro a concretização de uma educação infantil comprometida e
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atenta às suas demandas exige dos educadores e educadoras uma postura
que busque conhecer essa realidade de perto e sua contingência histórico-
social. Para todos os efeitos, os e as profissionais da área se deparam com a
incumbência de um aprofundamento teórico-metodológico-epistemológico de
suas práticas, de tal modo que um primeiro passo seria o de atentar às
escolhas que se colocam a sua frente. Dentre as mais importantes estariam
aquelas que dizem respeito à própria concepção de criança e do papel do e da
educador/adulto no interior da educação infantil.
Apesar de não atentarmos a análise do caráter político das práticas
pedagógicas, entendendo que as relações estabelecidas no contexto da
educação infantil se delineiam por esse princípio, nosso intuito aqui além de
chamar a atenção para essas questões é o de trazer para a reflexão algumas
dessas vivências que fazem emergir certas visões acerca da criança e do
adulto. Para esta finalidade, partiremos de uma perspectiva antropológica que
toma a categoria social geracional infância como experiência que cruza
diferentes tempos e espaços, além de só poder ser compreendida de fato por
ser atravessada por outras categorias como classe social, gênero, etnia.
Apesar da tentativa de relegar um lugar específico para a criança em nossa
sociedade, aprisionando-a em sua pluralidade, o movimento que deve ser feito
para sua compreensão é o de tomá-la como sujeito de sua própria ação, isto é,
como ator social. Mesmo reconhecendo que ainda não dominem os recursos
comunicativos da fala, devido a pouca idade, não significa que elas não se
comuniquem ou não se expressem de outras formas. Daí a importância de
conhecer suas múltiplas linguagens: os gestos, os balbucios, os ruídos, o choro
(EDWARDS, GANDINI, FORMAN, 1999) a fim de conhecê-las melhor. Além
disso, não podemos perder a dimensão de que as crianças também produzemsua própria cultura. Além da participação de outras redes de significados, como
a comunidade, a família e as mídias4, podemos compreender esta cultura nos
inspirando no conceito de cultura de pares, definido por Corsaro (2009) como:
“um conjunto estável de atividades ou rotinas, artefatos, valores e interesses
que as crianças produzem e compartilham na interação com seus pares” (p.32)
4Ver STEIMBERG, S. & KINCHELOE, J. (org) Cultura infantil: a construção corporativa da infância. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2004
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Pela sua dimensão relacional, o adulto será compreendido tomando-se
os mesmos princípios: buscamos exaltar a dimensão que destaca seu papel
social na educação infantil. Como resultado, ao buscarmos definir a criança
enquanto sujeito de sua ação, ao mesmo tempo temos o desenho desse adulto
que interage com ela. Este constitui um grande desafio, pois nos incita a nos
colocarmos e problematizarmos acerca desse lugar ocupado nas redes de
interações, onde povoa uma hierarquia que ultrapassa a relação adulto/criança.
Desafios da etnografia com crianças pequenas e o exercício da alteridade
no contexto da educação infantil
Sobre o processo de descoberta antropológica: umadescoberta que é um "diálogo", não entre indivíduos --pesquisador e nativo -- mas, sim, entre a teoria acumulada dadisciplina e o confronto com uma realidade que traz novosdesafios para ser entendida e interpretada; um exercício de"estranhamento" existencial e teórico, que passa por vivênciasmúltiplas e pelo pressuposto da universalidade da experiênciahumana. (...) Na antropologia, a pesquisa depende, entreoutras coisas, da biografia do pesquisador, das opções teóricasda disciplina em determinado momento, do contexto históricomais amplo e, não menos, das imprevisíveis situações que seconfiguram no dia a dia no local da pesquisa, entre
pesquisador e pesquisados (PEIRANO, 1995, p.9)
William Corsaro (2005) é uma referência hoje no desenvolvimento da
pesquisa etnográfica com crianças pequenas, o autor afirma que sua
experiência aos poucos o possibilitou realizar “pesquisa com, e não mais sobre,
crianças, ou seja, como os métodos de coleta de dados acabaram se tornando
gradualmente mais abertos à contribuição direta das crianças” (p. 443). Suas
produções descrevem e analisam as estratégias de pesquisa que visam, a
partir da imersão do pesquisador na vida do grupo, a obtenção de elementos
empíricos que possam colaborar para o delineamento dos modos de atuação
dos grupos sociais específicos. Os desafios interpostos pela presença do
adulto, pesquisador, frente às crianças e suas culturas de pares, tem ocupado
um papel fundamental em suas produções. Sua preocupação consiste no
desenvolvimento de um olhar que, sem invadir as culturas infantis, procura
preservá-la, mantendo um distanciamento necessário e ao mesmo tempo uma
aproximação sensível para capturar momentos significativos dessa vivência.
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Para atingir esse objetivo, o autor se propõe portar-se como um adulto atípico,
de modo contrário ao adultocentrismo que comumente intervém de forma
dominadora nos espaços infantis.
No nosso convívio junto aos pequenos presenciamos correntemente
aquela ideia preconcebida de que a criança, por sua condição, estaria sempre
à mercê dos ensinamentos e orientações dos adultos. Mesmo em situações de
pesquisa, como proposta do nosso próprio estágio supervisionado, nos
deparávamos com essa dificuldade quanto ao desenvolvimento de estratégias
de aproximação com o grupo de crianças. Em primeiro lugar pela circunstância
de que, enquanto adultos vindos de fora, já existiam expectativas mais ou
menos definidas tanto das crianças quanto dos profissionais da instituição.
Com relação aos pequenos e em se tratando de um espaço bastante
comprometido no acolhimento de grupos de formação das mais diferentes
áreas, a presença das estagiárias ao mesmo tempo era vista com olhos
curiosos que indagavam: “o que você está fazendo aqui?” e, dada a alta
rotatividade desses estudantes e pesquisadores circulando pelos espaços da
creche, por outro lado tínhamos a nosso favor o fato de que nossa presença
não causava tanto estranhamento ou algum tipo de intimidação na rotina
dessas crianças, acostumadas com essa tramitação. Desse ponto de vista,
inicialmente tratava-se de um terreno privilegiado para o exercício de
aproximação, entretanto ainda assim foi necessário desconstruir um suposto
lugar do adulto.
A cena a seguir se deu no primeiro dia no campo de estágio quando
uma dupla de estagiárias realizava o contato inicial com o grupo de crianças
mediado pela coordenadora da instituição. Nesta oportunidade a professora
não estava presente e os pequenos, com idade entre quatro e cinco anos,brincavam de pirata, todos juntos, num brinquedo de trepar do parque.
Coordenadora da Instituição: Essas meninas vieram conhecer vocês.Crianças: Mas a gente está brincando.Estagiária: Vocês tão brincando de quê?Crianças: De navio pirata.Coordenadora da Instituição: Elas podem entrar no barco?Menina de outra turma: Não. Elas são bruxas.menino: Elas são bruxas malvadas.
Coordenadora da Instituição: Mas todas as bruxas têm que ser malvadas?(menino olha pensativo)Estagiária: Nós somos bruxas legais, deixa a gente brincar...
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Essa situação aponta para alguns importantes elementos que podem ser
interpretados à luz de uma análise mais minuciosa. Um primeiro aspecto
confirma a familiaridade da presença daquelas duas meninas, estagiárias,
ainda que estranhas, sendo recebidas como parte da rotina. Entretanto, a
situação em que uma criança retruca “mas a gente está brincando” é bastante
elucidativa: a ideia de que naquele momento estavam ocupados não apenas
vivenciando um momento particular entre seus coetâneos, a brincadeira, mas
também tratava-se de uma situação em que “gente grande” (ao menos as
desconhecidas) não seria bem-vinda naquela ocasião. Assim, pela tentativa da
parte dos adultos de adentrarem na brincadeira, as crianças responderam ao
seu modo e apelaram afirmando que as estagiárias não poderiam participar por
serem “bruxas malvadas”. No final das contas, as meninas não foram
“autorizadas” a participar daquela situação performática, mesmo se definindo
como “bruxas legais”. Nosso palpite é o de que, para tanto, seria necessário
quebrarem a barreira que as separa do universo das crianças, definido pelo
contexto da brincadeira5 – que nos revela como um terreno legitimado –
através do desenvolvimento de estratégias de aproximação e aceitação, tal
como pontua Corsaro.
Como superar essas expectativas no sentido de estabelecer uma
aproximação que ao mesmo tempo preservasse as culturas infantis, sem
obviamente ter a pretensão de sermos neutras; condição humanamente
impossível em qualquer campo de pesquisa? Mais ainda, como proceder
buscando fazer uso dos recursos etnográficos, sendo de fora e estando numa
situação de estágio? Um importante aspecto a ser destacado quanto à
metodologia reconheceu que nossa estratégia se nortearia a partir de duas
frentes, ambas abertas e comprometidas: uma com as crianças e outra com osadultos daquela instituição. Por mais que o foco do estágio estivesse focado na
centralidade da criança nos cenários educativos, parte fundamental desses -
até mesmo por questões hierárquicas e estratégicas –consistia em se levar
igualmente em conta as relações estabelecidas com os adultos. Nesse sentido,
convém esclarecer um pouco melhor sobre o caráter do estágio em educação
infantil da universidade em questão.
5A brincadeira é entendida acima de tudo como produção cultural infantil. Segundo Brougére (2008),
por intermédio da brincadeira, a criança se cria e recria dos códigos culturais e sociais.
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Pois bem, o estágio supervisionado em educação infantil até o momento
tem acontecido no último ano da formação do curso de pedagogia desta
universidade federal e trata-se de uma modalidade específica. Os grupos de
formandas interessadas nesta área de formação desenvolvem um trabalho,
divididas em duplas, sendo orientadas por professores ou professoras da área
que as acompanham e dão subsídios para o desenvolvimento da pesquisa e da
intervenção pedagógica. Cada grupo de estágio desenvolve as atividades
durante certo período, numa determinada instituição pública de educação
infantil. Cada um desses subgrupos contém até quatro duplas de estagiárias e
basicamente inicia-se com um aprofundamento teórico no primeiro semestre e
no seguinte há uma imersão das alunas no campo de estágio – a creche.
Normalmente o acompanhamento em campo das duplas de estagiárias
procede numa determinada turma de crianças, de acordo com a faixa etária,
respeitando a organização interna das instituições. Neste segundo semestre, o
primeiro desafio que nos foi colocado – na oportunidade, falo na posição de
professora supervisora de um grupo de estagiárias – refere-se ao exercício
dessa aproximação junto às pessoas envolvidas. Apesar de o estágio ser muito
mais amplo e complexo do que o aqui brevemente exposto, é especialmente
esse último ponto que nos interessa aqui, isto é, a imersão das estagiárias na
condição de pesquisadoras. Nesse sentido, reforçamos: a entrada no campo
primeiramente pressupõe o estabelecimento de uma negociação não apenas
com as crianças, mas junto aos adultos, profissionais e dirigentes da
instituição. É de fundamental importância que os objetivos e o caráter do
estágio sejam explicitados e, na medida do possível, compartilhados6 desde o
início.
Sem empreender esse diálogo aberto, interessado e constante juntocom todas as pessoas que compõem essa realidade social, não há a menor
possibilidade do estabelecimento de um encontro e, consequentemente, de
uma posterior análise interpretativa. Inclusive, tal estratégia funciona como
6Sobre o caráter do estágio na educação infantil ver ROCHA, E. & OSTETTO, L. (2008): “O estágio
curricular, ao aproximar formação inicial e campos de atuação, universidade e instituições de educação,
prevendo diferentes níveis de observação, análise e intervenção na realidade educacional, possibilita
melhorar o diálogo teoria-e-prática (...) Uma proposta desta natureza só se realiza quando ambas asinstituições implicadas no estágio (universidade e creche, no nosso caso) verdadeiramente estabelecem
diálogo, se envolvem com o processo, com o que ele tem de risco e possibilidade” (p. 108).
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forma de compreender e integrar-se nessa realidade em suas redes de
significados compartilhados. Para tanto, na direção da importância da
contextualização e do relativismo cultural, partimos de um exercício do olhar
que consiste em buscar estranhar o familiar e se familiarizar com o estranho:
“O que vemos e encontramos pode ser familiar mas não necessariamente
conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser exótico mas, até certo
ponto, conhecido” (VELHO, 1999, p.126). Ainda segundo o autor, o
estranhamento aqui não consiste numa ruptura, mas como possibilidade de
aproximação no sentido de confrontar intelectual e emocionalmente diferentes
versões e interpretações existentes a respeito de acontecimentos e situações.
No contexto da educação infantil, buscávamos enxergar as situações
cotidianas, a configuração dos tempos e espaços7, as relações sociais que ali
se davam e sobretudo a forma como os significados eram construídos,
ressignificados e apropriados pelos diferentes sujeitos.
Uma das tônicas de nossa imersão a campo teve a ver com a usual
verticalização das relações que acontecem nos cotidianos escolares e pré-
escolares. As relações calcadas na autoridade ainda ecoam de modo muito
corrente, como pudemos perceber. Segundo Arendt (1991), se referindo à
criação e educação dos filhos, “a autoridade no sentido mais lato sempre fora
aceita como uma necessidade natural, requerida obviamente tanto por
necessidades naturais, como o desamparo da criança, quanto por necessidade
política, a continuidade de uma civilização estabelecida” (p. 128). Por inúmeras
vezes, em nossas conversas de orientação, as estagiárias relatavam acerca da
dificuldade de se “encontrarem” neste outro lugar de pesquisa, do adulto
atípico, como diria Corsaro. Normalmente, as próprias crianças incitavam essa
primordial expectativa de controle, orientação ou guia de suas ações, ainda quesob alguma resistência ou enfrentamento. Nestas situações vigora veemente o
predomínio de uma relação calcada em aspectos como ensino-aprendizagem,
7Em relação a importância da organização cotidiana, elemento fundamental de nosso estranhamento
no contexto da educação infantil, nos inspiramos na seguinte colocação de Maria C. S. Barbosa (2000):
“A questão do cotidiano e das rotinas que regram e normalizam, isto é, a vida cotidiana em sua
integralidade, nas instituições de creche e pré-escola, pode ser vista como elemento central nas
pedagogias da educação infantil. As rotinas das pedagogias da educação infantil são vistas, nesse
trabalho, como um dos elementos integrantes das práticas educativas e didáticas que são previamente
pensadas e planejadas e reguladas com o objetivo de ordenar e operacionalizar o cotidiano dainstituição e construir a subjetividade de seus integrantes. Tais objetivos estão bem determinados,
apesar de nem sempre estarem explícitos.”(p. 96)
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encaminhamentos e aprovação ou não dos atos infantis. No início, as alunas
relatavam que as crianças se dirigiam a elas na maioria das vezes para
pedirem autorizações, fazerem reclamações ou solicitações seguindo uma
prática comum de mediação adulta num complexo de rotina definida. Ora, nos
estava sendo interposto o desafio de quebrar esses estereótipos e construir um
novo lugar, esse que, respeitando o fluxo das relações humanas, pudesse ser
decorrente do tipo de encontro estabelecido com as crianças, essencialmente
pessoal e afetivo, ainda que alerta à situação de pesquisa.
Entretanto, é bastante oportuno destacar que nas observações das
relações das professoras dos grupos junto com as crianças, foi unânime a
constatação de um quadro diferenciado, possivelmente dada a especificidade
da instituição. Neste caso definida como bastante compromissada com o
desenvolvimento de uma prática pedagógica refletida, onde destaca-se,
enquanto terreno privilegiado de pesquisa e formação, por uma trajetória
marcada pelo vínculo junto a comunidade acadêmica. Verificamos em nossas
observações que muitas das educadoras8 buscavam realmente sair desse
lugar estereotipado e construir uma relação mais horizontalizada com as
crianças, sobretudo aproveitando os momentos da brincadeira para isso.
Sendo assim, os momentos de uso do parque9 foram considerados os mais
oportunos para alcançar esse objetivo, como forma de os adultos usufruírem
dos mesmos lugares (físicos) que as crianças, revolvendo-se numa atmosfera
de paridade pelos significados que são suscitados em tal ocasião10. Ao longo
da experiência em campo, elegemos essa oportunidade como a mais propícia
para o desenvolvimento de laços e outros vínculos com as crianças, momento
e local revestidos, devido à organização da rotina e seus significados, de um
sentimento de maior liberdade e autonomia, de forma que podiam revelar-selivres em suas manifestações culturais e em suas culturas de pares.
8Grande parte das professoras atuantes neste núcleo de educação infantil tem formação acadêmica em
nível de mestrado ou doutorado.9
Corsaro (2005) também nos chama a atenção quanto ao uso desses espaços usualmente mais
habitados por crianças e relata: “Percebi que os adultos (professores ou visitantes) restringiam seu
contato com as crianças a áreas específicas da pré-escola. Os adultos raramente entravam nas casas de
boneca, nas caixas de areia, nas barras de escalada ou no trepa-trepa. (p. 448)10
Kátia Agostinho (2003) em sua dissertação confere um lugar especial sobre esse “lugar de liberdade”,
ela nos faz compreender que o parque, a brinquedoteca, “a sala ao lado” como tais: “nele as criançasencontram chance instituída, permitida da brincadeira livre (...) nele era possível ir e vir de forma mais
fluida, fazer escolhas por si só.” (p.68).
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Nestas vivências pudemos constatar como a presença dos conteúdos
midiáticos são frequentes e influenciam diretamente no reconhecimento
identitário dos grupos infantis. Personagens de desenho animado não apenas
são apropriados pelas crianças em suas brincadeiras, conferindo legitimidade e
reconhecimento geracional, como também exercem uma forte influência na
delimitação e dicotomização entre os gêneros. Bem como verificado em minha
pesquisa de doutorado, realizada com crianças em 2007, confirmou-se que a
cultura dos meninos é povoada e reforçada pelas mídias principalmente com os
seguintes elementos: futebol, carros e super-heróis. Já a cultura das meninas é
predominantemente cor-de-rosa11 levando em conta toda a áurea que reveste
de significados essa cor: beleza, docilidade, fragilidade, sedução, força,
delicadeza. Percebemos que ainda havendo uma intencionalidade pedagógica
que tem se esforçado no sentido de procurar trazer outros elementos e
conteúdos identitários e culturais, nos momentos livres, a saber quando a
interferência do adulto é diminuída e vivencia-se mais plenamente a cultura de
pares, tais significados são reavivados e partilhados de forma exponencial e
marcante.
No tocante aos desafios das relações estabelecidas entre estagiárias e
crianças, uma estagiária nos relatava sobre sua dificuldade, enquanto
pesquisadora, em se situar num outro lugar daquela do adulto típico: sua
experiência como professora e suas referências acerca desse papel social
estavam a priori definidos e bastante internalizados por essa figura de
autoridade, de modo que no início ela tinha que ficar constantemente “se
policiando” para não “se deixar levar” pela força do hábito. Foi necessário todo
um empreendimento no sentido de desconstruir esse posicionamento e aos
poucos ir tecendo um outro tipo de relação junto às crianças. Esse momento,nos conta que tratou-se de um exercício de muita aprendizagem, onde as
crianças tiveram um papel fundamental nos sentido de ajudarem-na a rever
suas atitudes, comportamentos e expressões. Com o tempo começou a se
sentir mais “desprendida” desse lugar adultocêntrico e aos poucos passou a
interagir mais intimamente com as crianças, se deixando levar “pela brincadeira
11
Esta análise pode ser vista em: ODININO, Juliane. Meninas Super-Poder-Rosas: Imagem de umacultura midiática feminina e infantil IN GROSSI, Miriam P.; LAGO, Mara C. S.; NUERNBERG, Adriano H.
(orgs). Estudos In(ter)disciplinados: gênero, feminismo, sexualidade. Florianópolis, Ed. Mulheres, 2010.
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e pela imaginação” e não se sentindo “menos profissional” por conta disso. Russo (2007) traz uma fala inspiradora, ao nosso entendimento, sobre o se
sentir professor(a) na educação infantil, atento a relação estabelecida com as
crianças:
Não me sinto diminuído como professor, não me sintoinfantilizado como pessoa quando passo o máximo possível domeu tempo de trabalho brincando, já que tenho a sorte de queo meu trabalho seja com crianças. Nesse sentido, quanto maisme proporciono a possibilidade de comunicar livremente comeles, fazendo, ao mesmo tempo, atividades que são livres paratodos, pois parece que estou fazendo algo inteligente emrelação à parte que me compete. E quanto mais me divirto,menos me pesa a função.(p. 84-85)
Além da relação hierárquica adulto/criança, há aquela entre os próprios
adultos e suas diferentes funções dentro da escola, todas elas mais ou menosdefinidas. Gostaríamos de chamar a atenção aqui para a relação
estagiária/professora, também implicitamente cercada por uma tênue, porém
necessária, ligação hierárquica. É claro, que além da diferença quanto à
experiência na área que qualifica a posição da professora em exercício, há
também o fato muito discutido entre nós de que “vínhamos de fora” e portanto
ocupávamos um lugar que carecia ser cultivado por nós mesmas. No entanto,
haviam expectativas por parte de algumas dessas professoras que muitasvezes não correspondiam a real intenção de nossa observação. Um exemplo
aconteceu numa ocasião em que as estagiárias estavam bastante interessadas
na observação dos “tempos livres” das crianças, situação esta entendida como
privilegiada para o contato com as culturas de pares infantis como já
mencionado acima. Metodologicamente, as alunas haviam optado interferirem
minimamente a fim de captarem as redes de significados a partir das
expressões, preferências e relações que ali eram vivenciadas. No entanto,houve queixa de uma professora quanto ao fato de as estagiárias não
“colaborarem” ou “fazerem vistas grossas” no desempenho das atividades
rotineiras de cuidados e afazeres das crianças; como “ajudá-las” a lavarem as
mãos, serem trocadas, entre outros. Esse episódio ressalta a importância do
estabelecimento do diálogo e do tom de parceria, ilustrando o quanto é de
suma importância negociar com a instituição além de constantemente
reavaliarmos o lugar que está sendo delegado, já que todas estão numa
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posição “de quem vem de fora” e ao mesmo tempo que querem ver “com os
olhos de dentro”, o que implica inserir-se no contexto social.
Uma outra estagiária durante toda a etapa de observação também se
sentia bastante incomodada por não estar conseguindo achar esse lugar, tendo
em vista o peso de seu receio relacionado às expectativas da professora com
quem lidava diariamente. Neste caso, nos contou que a via como aquela que
enxerga o adulto ocupando esta posição de poder, no contexto do “trato
infantil” – comumente encarado como central no atendimento dos de menor
idade. De modo que o sentimento relacionado à aprovação da professora era
fundamental para ela, como garantia do desempenho de um “bom estágio”. A
estagiária nos relatava que isso até dificultava a construção de uma relação
mais legítima junto às crianças, já que prevalecia o peso da “responsabilidade”
por ser “adulta”. Para ela, o foco de sua reflexão sobre a experiência de estágio
foi trazer à baila essas questões sobre a relação adulto/criança, onde constatou
uma série de atitudes, comportamentos, tons de voz e até pequenos gestos
que constantemente reforçavam tal superioridade. Como resultado constatou
que o papel do adulto estava muito vinculado à organização do coletivo de
crianças, o que aparece implícito sobretudo nas falas do tipo: “um de cada
vez”, “quem terminar tal coisa, poderá brincar”, “vocês devem pedir
autorização”, “vamos esperar todos terminarem”. Essas falas bastante comuns
nos cotidianos escolares revelam uma hierarquia da própria organização da
rotina, onde a figura da professora além de exercer uma centralidade tende a
privilegiar determinados momentos como a hora da atividade, do lanche, da
higiene12.
Finalmente dentre os desafios vinculados ao desenvolvimento de uma
relação de alteridade, estes são exponenciados em se tratando de criançasbem pequenas, os bebês. Partimos do pressuposto de que as crianças além de
serem produtoras de cultura, não entendem menos, mas “os significados
elaborados pelas crianças são qualitativamente diferentes dos adultos, sem por
isso serem menos elaborados ou erronêos e parciais.” (COHN, 2005, p. 33-4).
Desse modo, carecíamos do desenvolvimento de estratégias de leitura e
compreensão desse universo infantil, o qual passávamos a fazer parte. Apesar
12Sobre essa questão da organização da rotina na educação infantil ver: BARBOSA, M. C. “Por amor e
por força: rotinas na educação infantil” Porto Alegre: Artmed, 2006
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de não dominarem a linguagem oral, cabia a nós compreender suas múltiplas
expressões. Assim, nosso aprendizado consistiu em tomá-las como ponto de
partida, através de uma escuta atenta e sensível. A observação nos exigiu um
olhar focado nas ações e nas múltiplas linguagens das interações entre as
crianças e entre as crianças e os adultos. Sobre esse olhar recorremos a uma
fala de Gandini, Edwards & Cols (2002), em que afirmam:
Através da observação e da escuta atenta e cuidados àscrianças, podemos encontrar uma forma de realmente enxergá-las e conhecê-las. Ao fazê-lo, tornamo-nos capazes derespeitá-las pelo que elas são e pelo que elas querem dizer.Sabemos que, para um observador atento, as crianças dizemmuito, antes mesmo de desenvolverem a fala. Já nesseestágio, a observação e a escuta são experiências recíprocas,pois ao observarmos o que as crianças aprendem, nós
mesmos aprendemos.(p. 152)
É justamente na experiência aparentemente caótica dos primeiros
contatos com as crianças bem pequenas – nos referimos às menores de um
ano de idade, já que as instituições de educação infantil acolhem crianças a
partir dos quatro meses de vida – que nos saltam aos olhos a importância das
interações sociais para a conformação cultural. Explicita-se o papel dos atores
sociais para o acionamento do sistema simbólico a cada pequena experiência o
que confere sentido na elaboração cultural. Desse ponto de vista, a culturaencontra-se justamente como simbologia das relações sociais que são tecidas
e que a conformam e dão sentido, por isso compreendida sempre em formação
e mudança. Sob esse ângulo, as crianças pequenas desempenham um papel
ativo na definição de sua própria condição. Por serem seres sociais plenos,
ganham legitimidade como sujeitos nos estudos que são feitos com a
participação delas. A perspectiva antropológica nos circunscreve nos espaços
das relações, tomando as tessituras das redes criadas nos contatos, onde osbebês para além de “objeto de cuidado” são acima de tudo sujeitos
configurantes dessas relações.
Tendo em vista que os modos de relação com os bem pequenos são
tradicionalmente marcados por um viés disciplinador e de controle, pelo qual
Daniela Guimarães (2011) pontua “o bebê acaba ocupando o lugar da
necessidade, da desproteção e da fragilidade” (p. 35). A autora em sua
pesquisa aponta que a organização do tempo/espaço das crianças encontra-se
intimamente ligada às necessidades biológicas, de forma que a relação se
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reduz ao tipo de atendimento “dado” às crianças. Nesta rotina, definida por
Maria Carmen Barbosa (2006) como estruturadora de controle do tempo, do
espaço, das atividades e dos materiais, há uma forte tendência à padronização.
Neste caso, se perde muito dos sentidos possíveis nas relações estabelecidas
entre educadoras e crianças. A ânsia pela satisfação das necessidades
fisiológicas acaba se sobressaindo na ordem das prioridades, o que dificulta
qualitativamente um contato mais pessoal e o reconhecimento da alteridade
nas crianças, como destaca Guimarães. Ao nosso ver se perde o que é “dado”
pelas crianças, priorizando-se o que é “dado” pelo adulto – como o agente
privilegiado desta relação desigual.
Na turma dos menores de um ano de idade, na instituição que nos
acolheu, observamos uma realidade um pouco diferente. Apesar de ainda ser
bastante ressonante a rotina tal como apontada acima, constatamos sim uma
preocupação maior no estabelecimento de vínculos junto aos bebês. Isso é
favorecido inclusive pela limitação institucional quanto ao número de crianças,
de modo que há no máximo sete crianças neste grupo. Percebemos também, o
que nos serviu de grande aprendizado, que a preocupação em não dicotomizar
o cuidar/educar13 resulta em maior atenção e favorece a criação de laços
afetivos mais sólidos, o que substancia a produção de uma cultura onde as
crianças pequenas exercem um papel igualmente importante. Além disso, todo
o empreendimento na busca em estabelecer uma boa comunicação com os
pequenos exige um exercício de aprendizagem que atente a formas
comunicacionais mais complexas, a exemplo da linguagem corporal, do choro
e do contato visual.
Apesar de tratar-se de uma realidade bastante marcado pelo caráter
escolar, ainda que exista toda a crítica em torno da especificidade da educaçãoinfantil, a identidade do pré-escolar determina sobremaneira o predomínio da
linguagem oral e escrita, ofuscando e diminuindo a atenção a outras formas
expressivas de construções de significados comuns. No âmbito do educativo,
há a primazia do legado cultural que deve ser transmitido às gerações mais
jovens e mais uma vez destaca-se o papel do adulto no desempenho dessa
13Partilhamos da mesma opinião de Cerisara (1999) que defende que“essa dicotomização entre educar
e assistir as crianças devia ser superada e avançar em direção a uma proposta menos discriminadora,que viesse atender às especificidades que o trabalho com crianças de zero a seis anos exige na atual
conjuntura social” (p. 13)
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tarefa. Em resumo, a ênfase nas relações de ensino-aprendizagem acaba por
dificultar qualitativamente as inúmeras possibilidades de interações, o que se
evidencia no trato com os menores de um ano de idade, onde as estagiárias se
deparam com a dificuldade relacionada ao que “fazer” com os pequenos. O que
constatamos é um profundo desencontro, a partir do desenvolvimento de uma
relação que se revela primordialmente como uma via de mão única do ponto de
vista do “adulto que sabe e ensina”, com tendência a homogeneização. Apesar
desta tendência constata-se um quadro onde as crianças criativa e
diferenciadamente se apropriam das propostas pedagógicas, o que as leva a
enfatizarem suas culturas de pares, de maneira distinta ou mesmo em
oposição à dos adultos.
Nas relações instituídas com os bebês, percebemos de forma mais
escancarada tal tendência de uma concepção do adulto que “entende” e a da
criança que “nada sabe”. Isso se revela nas linguagens infantilizadas que
acabam por diminuir o estatuto das crianças enquanto sujeitos atuantes, até a
dificuldade que nós, adultos, temos de enxergá-las a partir de suas agências.
Aliás, o que pudemos constatar foi que o espaço social relegado aos bebês,
ainda que com toda a discussão da área, mostra-se tendencialmente restrito e
marginalizado, o que requer um aprofundamento teórico no sentido de reverter
esse quadro, como vinha acontecendo no campo, no compartilhamento das
inquietações cotidianas. Para tanto, precisamos primeiramente rever nossa
própria concepção de educação infantil quanto a sua função social.
Novamente retomamos a dimensão da identidade das creches e pré-
escolas e seus antagonismos, fruto dos conflitos históricos que lhes dão forma
e conteúdo. Tal identidade, longe de ser una, tal como qualquer cultura, vem
sendo construída no dia a dia, por meio das práticas, dos debates dentro dasinstituições, das pesquisas, da atuação de fóruns de educação infantil, das
lutas políticas que envolvem diversos agentes sociais, da mídia e da sociedade
como um todo. Neste campo, a visibilidade da criança precisa ser evidenciada:
mais do que simplesmente dar vozes – atitude de quem está no comando da
situação - precisamos ouvi-las (reconhecê-las) – o que implica repensarmos
epistemologicamente sobre “nosso lugar”. Neste sentido, a prática vigilante e
reflexiva da alteridade constituiria o primeiro importante passo na direção deum encontro possível e genuíno.
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