2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    1/85

    "#$%&' () *+,-$+'# .%$+'+# ) /01'-'#

    2)3'45'1)-5% () 6-54%3%&%7+'

    2% 8'3' '% 8'3)'1)-5%9 01' )5-%74':+' );3)4+1)-5'&$%1 &%$'5+$+' .%:+' () ?&+

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    2/85

    I

    "#$%&' () *+,-$+'# .%$+'+# ) /01'-'#

    2)3'45'1)-5% () 6-54%3%&%7+'

    2% 8'3' '% 8'3)'1)-5%9 01' )5-%74':+' );3)4+1)-5'&$%1 &%$'5+$+' .%:+' () ?&+

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    3/85

    II

    AGRADECIMENTOS

    Grata a Maria Jos Freire e Marco Freire;Grata aos meus amigos Samuel Roda Fernandes e Paulo Raposo;Grata aos participantes do laboratrio;Grata aos investigadores e artistas Paulo Favero, Christian Nold, Esther Polak, Dennis Woode Jeremy Wood;Grata ao orientador desta tese, Professor Doutor Filipe Reis.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    4/85

    III

    RESUMO

    Esta dissertao pretende analisar crtica e reflexivamente a transio do conceito

    mapa para o mapeamento, situando o mapa no seu amplo processo histrico de criao ecirculao, e questionando o seu estatuto de artefacto cultural, simblico, material e poltico.A noo de mapeamento apresentada recorrendo a um conjunto de contributos e estratgiasutilizadas na antropologia e na etnografia. Visitam-se tambm algumas aes artsticas queutilizamlocative media como processo de criao e comunicao, recorrendo a metodologiascolaborativas.

    A metodologia experimental utilizada na pesquisa etnogrfica teve como objectivo

    testar formas de mapeamento a partir de um processo demapping elicitation com os participantes. Pretende-se dar conta do impacto desta experincia na construo de ummapeamento cognitivo sobre os percursos realizados com gps e a transio destes dados paraum mapeamento criado na aplicaoGoogle Earth .

    Ao longo do trabalho interrogam-se e exploram-se as tenses existentes entre os

    locative media e o Google Earth enquanto ferramentas emancipatrias tendencialmentecolaborativas mas tambm como instrumentos de controlo e vigilncia. Assim, abordam-se as

    contradies que decorrem da naturalizao das imagens digitais georreferenciadas comoimagens da realidade, no susceptveis de uma interpretao cultural. Ser ento na ligaoentre a natureza das relaes que produzem informao e no tipo de compilao, inscrio ecirculao dessa mesma informao que se perspectiva o processo de mapeamentoapresentado nesta dissertao.

    Palavras-chave: cultura digital; antropologia dos media e da tecnologia; mapeamento digital; gps ; Google Earth; locative media; mapping-elicitation; mapeamento colaborativo.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    5/85

    IV

    ABSTRACT

    This thesis aims to analyze critically and reflectively the changeover from the concept mapfor mapping, placing the map in a larger historical process of production and circulation,questioning its status as a cultural, symbolic, material and political artifact.The concept of mapping is presented using a set of inputs and strategies used in anthropologyand ethnography. Also it is visited some art-actions with locative media as a process ofcreation and communication using collaborative methodologies.

    The experimental methodology used in the ethnographic research aimed to test ways ofmapping from a process of mapping elicitation with the participants. It is intended to give anaccount of the impact of this experience in the construction of a cognitive map of the routeundertaken with gps and the transition of data to a digital mapping process in the GoogleEarth application.

    Along this work are questioned and explored the tensions between locative media and GoogleEarth as emancipatory tools potentially collaborative but also as instruments of control andsurveillance. Are also addressed the contradictions arising from the naturalization of

    georeferenced digital images as images of reality, not subjected to a cultural interpretation. Itis between the nature of the reactions that produce information and the type of compilation,registration and circulation of such information that fits the mapping process presented in thisthesis.

    Key Words: media studies; digital culture; locative media; digital mapping, collaborative

    mapping, gps, mapping elicitation, Google Earth.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    6/85

    V

    NDICEndice ....Vndice de Figuras .........VIGlossrio de Siglas VIICaptulo I. Dos mapas aos mapeamentos ....11. Mapas na antropologia: da imposio participao....42. O impulso cartogrfico e o poder dos contornos.10Captulo II. Mapeamentos digitais comlocative media e realidade aumentada ....171. O conceito de mapeamento e de mapeamento digital com gps e

    realidade aumentada 171.1. O sistema de posicionamento global (GPS ) 191.2. A realidade aumentada (RA) ...192. Locative Media a tecnologia e as aes de representao espacial ..202.1. O mapeamento digital da aplicaoGoogle Earth .222.2. Mapeamentos digitais e mapeamentos artsticos comlocative media , realidade

    aumentada e metodologias colaborativas 252.2.1. Amsterdam RealTime , de Esther Polak ...262.2.2. Biomapping , de Christian Nold ...27

    2.2.3. San Francisco Baghdad , da srie Shadows from another places,de Paula Levine ...30

    2.2.4. GPSdrawing , de Jeremy Wood ....31Captulo III. O Laboratrio: viandar, imaginar e mapear. Anlise da experincia

    de mapping-elicitation e o mapeamento digital dos viandantes...351. O Laboratrio ...361.1. A localizao 36

    1.2. Os participantes 381.3. Viandar com um gps terrestre ..381.4. Reconstruo da experincia demapping-elicitation e a produo

    do mapa-memria.....391.5. A exportao de dados e a sua indexao noGoogle Earth .402. Anlise da experincia demapping elicitation e o mapeamento digital

    dos mapas-memria .44

    2.1. O mapa-memria dos viandantes e os ficheiros de mapeamento digital do BairroAlto noGoogle Earth ........44

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    7/85

    VI

    2.1.1. Mapeamentos de M ..442.1.2. Mapeamentos de P ...472.1.3. Mapeamentos de H ...482.1.4. Mapeamentos de J 522.1.5. Mapeamentos de MA ...54Captulo IV. Remapeamentos indexveis e o imprio digital daGoogle Earth ...59Bibliografia...............................................................................................................................71

    NDICE DE FIGURAS

    Captulo I

    Figura 1.1. Mapa circular em T e O..11Figura 1.2.Reproduo digital online deGerardi Mercatoris Atlas sivecosmographicae mediationes de fabrica mundi et fabricati figura (1608-1609).13Figura 1.3. Digitalizao de postal a partir da fotografia de Mateo Mat ...15

    Captulo IIFigura 2.1. Imagem da aplicaoStreetMuseum para IPhone .20Figura 2.2. Captura de ecr com a imagem inicial em 3D da aplicaoGoogle Earth 23

    Figura 2.3. Mapeamento da disponibilizao doGoogle Street View .24Figura 2.4. Amsterdam RealTime , de Esther Polak. 26Figura 2.5. Captura de ecr do Newham Sensory Deprivation Map , Christian Nold...............29Figura 2.6. Captura de ecr de Drawing Provocations , Christian Nold...................................30Figura 2.7. Captura de ecr deSan Francisco Emotional Map , Christian Nold. ........30Figura 2.8. Captura de ecr deSan Francisco Baghdad , Paula Levine.....31Figura 2.9.GPSdrawing Meridians , Jeremy Wood .....33

    Figura 2.10.GPSdrawing True Places , Jeremy Wood.... 34

    Captulo III Figura 3.1. Captura de ecr - Bairro Alto durante a noite noGoogle Street View ...37 Figura 3.2. Captura de imagem do Cedro do Buaco, Jardim Frana Borges, com gps ..38 Figura. 3.3. GPS Garmin 550, imagens do aparelho utilizado no laboratrio..38 Figura 3.4. Captura de ecr com linha padro em modo de visualizao BaseCamp ..41

    Figura 3.5. Captura de ecr com linha padro em modo de visualizao satlite doGoogleEarth ..41

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    8/85

    VII

    Figura 3.6. Capturas de ecr com indexao dos vdeos da sesso de M........ 42 Figura 3.7. Captura de ecr com indexao do mapa memria42 Figura 3.8. Captura de ecr com percurso gps de M... 43 Figura 3.9. Captura de ecr com percurso gps de J......43 Figura 3.10. Captura de ecr com percurso gps de P....43 Figura 3.11. Captura de ecr com percurso gps de H...43 Figura 3.12. Captura de ecr com marcao de fotografias georreferenciadas por MA com o gps ........43 Figura 3.13. Captura de ecr com indexao da conversa no gmail com M46 Figura 3.14. Captura de ecr com ficheiro kmz de P49Figura 3.15. Captura de ecr com vdeos inscritos no percurso de P.......49 Figura 3.16. Composio de duas capturas de ecr com texto e imagem referentes aomesmo marcador de local ............................50Figura 3.17. Captura de ecr com sobreposio do mapa-memria e padro do gps ...50 Figura 3.18. Imagem captada com gps por H...51Figura 3.19. Imagem captada com gps por H. .51Figura 3.20. Imagem captada com gps por H...51Figura 3.21. Captura de ecr do padro do gps de H (linha magenta) .....51

    Figura 3.22. Captura de ecr com a imagem digitalizada do mapa memria de J53 Figura 3.23. Captura de ecr com sobreposio de camadas (gps, mapa memria e vdeo)54 Figura 3.24. Captura de ecr de mapa memria digitalizado de MA ......55 Figura 3.25. Captura de ecr com indexao dos vdeos e imagem de MA 56Figura 3.26. Captura de ecr com indexao das fotografias de MA...57 Captulo IVFigura 4.1. Reproduo digital disponibilizada online pela NASA. O planeta visto da Lua...69

    GLOSSRIO DE SIGLAS

    SIG - Sistemas de Informao GeogrficaGE - Google EarthGPS - Global Positioning System (sistema de posicionamento global)RAI - Royal Anthropological Institute of Great Britain and Northern IrelandRA - Realidade Aumentada

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    9/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    1

    Captulo I. Dos Mapas aos Mapeamentos

    O gps marca um ponto, capta at uma imagem, e faz olink para tudo que pensei ou que senti,e realmente no precisei dele para me orientar.

    (excerto de P).

    Estima-se que 6 bilies de pessoas tm acesso a imagens digitais e que no consomemapenas imagens criadas por outros como tambm produzem as suas prprias imagens. ocaso da utilizao de um telemvel comGlobal Positionning System para fotografar umquotidiano georreferenciado que poder ser visionado por milhares de pessoas em diversoslocais atravs de redes sociais, por exemplo. A facilidade de acesso a tecnologias mveis comcmaras incorporadas e s aplicaes que as suportam digitalmente, como o Photoshop, o

    Google Earth, o Flickr, podem estar a transformar os habituais consumidores passivos deimagens em colaboradores ativos, sendo possvel, atravs de algoritmos, a criao de umolhar subjetivo em ambiente digital e, claro, a sua visualizao.

    A criao de sistemas de informao geogrfica e de mapeamentos digitais como aaplicaoGoogle Earth, suscita novas questes sobre a relevncia dos diversos tipos demapas e de processos de mapeamento como uma realidade indexvel na anlise da culturamaterial e da cultura espacial. Considerando a popularidade das ferramentas de mapeamento

    aberto colaborao de todos os utilizadores, sugere-se a questo: para que servem osmapas?, ou melhor, para que no servem os mapas? A partir de onde passam a ser poucoexatos? A cartografia teve incio com um impulso de poder: racionalizar o espao, delimitarfronteiras e referenciar as populaes nos territrios. Os modelos clssicos de mapascaracterizem-se exatamente pela sua semelhana. O que lhes interessa a geometria doespao, a criao de uma projeo cartogrfica na horizontal que suporte a esfericidade daterra e a sua necessria distoro bem como uma viso do mundo (curiosamente, o que estes

    dados revelam parece no caber neste formato). Tal como se podem sobrepor camadas deinformao nos mapas impressos, imprimindo ou desenhando folhas com diferentes tipos dedados, tambm o mapeamento digital comporta diversas camadas de informao. No entantoestas informaes tm mltiplas origens e contedos, criando grandes fluxos de informaosobre as imagens topogrficas que lhe servem de base.

    Para alm dos dados geogrficos e das marcas do ordenamento do territrio, omapeamento agora uma espcie de interface onde o territrio e o quotidiano dos utilizadorese dos mapeadores ganha espao para a representao. Ento j no so mapas, j no se tratade uma representao esttica dos contornos de um territrio possudo ou a possuir. So

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    10/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    2

    actantes, segundo a teoria Ator-Rede de Bruno Latour (2005). O GE, sendo uma aplicaoque gere e gera mapeamentos individuais e empresariais a nvel mundial, um actante(palavra que designa agentes de ao humanos e no humanos). O utilizador tambm umactante, e como tal tem o seu objetivo delineado. O mapa pretende orientar e o utilizador procura orientar-se. Quando se encontram acontece o que este autor designa por desvio, aotransformarem-se num terceiro actante com objetivos distintos dos iniciais. Esta transposiode um objetivo inicial para outro um processo de traduo que sublinha a deslocao, aderiva, a inveno, a criao de um elo de ligao que no existia anteriormente, dandoorigem a novos agentes, desvios, tradues e objectivos.

    Com a aparente democratizao das tecnologias de mapeamento aumentaram os tiposde interfaces digitais de georreferenciao e a prpria metodologia de mapear sofreu profundas transformaes. Surgiram modelos hbridos de combinao entre diversos mtodosde apuramento de dados e os Sistemas de Informao Geogrfica. So exemplo osmapeamentos digitais, os mapeamentos artsticos e digitais e os mapeamentos colaborativos,que sero mais frente apresentados, realizados com locative media e metodologias deelicitao e participao ativa dos intervenientes. Desde a enciclopdia britnica na internet wikipedia e aoGoogle Earth, em que possvel inserir novos dados ou alterar os jexistentes, o utilizador inscreve a sua marca, alimenta uma mquina que cresce diariamente.

    Assinalando pessoas nas fotografias ou inserindo um comentrio a uma imagem, o utilizadortambm agora um criador, j que no est apenas a consumir imagens de outros, masacrescentando a sua realidade local, a sua viso do mundo, a uma rede de partilha global. A performatividade perante estas imagens no termina nunca e a performatividade destasimagens sobre os seus visualizadores tambm no. Os lbuns de fotografias em papel, objetosfixados e finalizados, transformam-se, com a digitalizao, num ato interpretativo doconsumo de imagens. Ou seja, tanto as imagens como os seus manipuladores interpretam-se

    mutuamente. Esta aproximao s imagens digitais abre um interessante espao de ao,reconhecendo uma dualidade na agncia, quer de quem interage com estas imagens quer datecnologia que usada.

    Tendo em conta a popularizao destas tecnologias e a sua integrao nas prticasquotidianas; tendo tambm em conta as reflexes produzidas no mbito de vrias reas deestudo como a geografia cultural e a antropologia do espao e dos media; e, finalmente, umadiversidade de projetos artsticos e de investigao envolvendo mapeamentos e tecnologias

    digitais de georreferenciao em ambiente de realidade aumentada, procuro nesta dissertaorefletir acerca do conceito e da agncia de mapeamento. Como mostrarei ao longo deste

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    11/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    3

    trabalho, o mapeamento pode ser visto como uma estratgia de representao cultural eespacial que desafia a velha cartografia dos contornos do territrio e dos poderes imperiais.Aos contributos e s reflexes crticas provenientes das reas de estudo acima referidas,incorporo tambm neste trabalho a anlise de prticas artsticas que lanam pistas e desafios para discutir a agncia do mapeamento com gps e das plataformas digitais de inscrio dedados. O trabalho de pesquisa foi assim estruturado em torno dos contributos provenientes dascincias e das artes e em torno da realizao de uma experincia etnogrfica laboratorial deviandar com um gps, inscrio de mapeamentos subjetivos e criao de um mapeamento doBairro Alto atravs de ficheiros kmz para visualizao no Google. Os projetos artsticos quesero apresentados e discutidos no cap. II, tendem a basear-se na reunio de artistas, tcnicos,cientistas sociais, ativistas e intelectuais, esbatendo a separao entre a produo cientfica,tcnica e criativa. neste contexto que analiso o esvaziamento dos mapas entendidos comoobjetos de representao de fronteiras geogrficas e ideolgicas e a disseminao domapeamento atravs de tecnologias de comunicao digital e percepo de informao.

    Irei tentar aproximar-me atravs de uma reflexo terica, mas sempre que possveletnograficamente informada, acerca das caractersticas do mapeamento digital com locativemedia, tambm ele incorporado num contexto para o qual a antropologia, e outras cincias,tm vindo a tentar desenvolver ferramentas de anlise e interpretao (Roberts, 2012, Farman,

    2011, Lapenta, 2011, Nold, 2010, Corner, 2012, Latour, 2004, de Sousa e Silva, 2013, Wood,2010, Harley, 2001, Hardt e Negri, 2000, Edney,1990).

    Na continuao deste primeiro captulo so apresentados os conceitos de mapa e demapeamento. Procuro situar historicamente a criao, utilizao e circulao dos mapas elevantar uma srie de questes sobre o seu estatuto de artefacto cultural, simblico, material e poltico. A noo de mapeamento ser apresentada recorrendo a um conjunto de contributos eestratgias utilizadas na antropologia e na etnografia (mapeamento etnogrfico e

    mapeamentos participativos indgenas). No segundo captulo discuto o desenvolvimento recente da noo de mapeamento a

    partir de exemplos das artes e das tecnologias mas tambm de projetos e investigaes queusam locative media e realidade aumentada como processos de criao e comunicao,recorrendo a metodologias colaborativas. Neste captulo procuro tambm interrogar e exploraras tenses existentes entre perspetivas sobre, por um lado, os locative media enquantoferramentas emancipatrias tendencialmente colaborativas e, por outro, como instrumentos de

    controlo e vigilncia.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    12/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    4

    O terceiro captulo dedicado reconstruo da experincia etnogrfica demapeamento digital do Bairro Alto, em Lisboa. Esta experincia, denominada porLaboratrio, foi composta por trs momentos distintos: viandar com gps, mapping elicitatione construo de ficheiros kmz na aplicaoGoogle Earth. Neste captulo descrevo estaexperincia, que designo de mapping ellicitation, e apresento os resultados obtidos.

    No captulo final reafirma-se a ideia de que perspectivar as imagens digitaisgeorreferenciadas como imagens da realidade, no susceptveis de uma interpretao cultural,situa e privilegia quem detm o poder de as criar e disseminar. Ser ento na ligao entre anatureza das relaes que produzem informao e o tipo de compilao e circulao dessamesma informao que se perspetivam as redes e os mapeamentos sugeridos pelas distintascolocaesdos seus utilizadores, no priorizando o espao material ou o espao digital.

    1. Mapas na antropologia: da imposio participao

    Quando o Royal Anthropological Institute of Great Britain and Northern Ireland publica na sexta edi"# o revista do Notes and Queries on Anthropology,em 1951, que os

    mapas e as plantas das reas em estudo so essenciais para a compreenso das comunidadesestudadas, acrescentou que apenas seriam validados os mapas que inclussem os seguinteselementos (importados diretamente das distores geomtricas e clculos matemticos):escala, orientao e legenda (RAI 1951). O que est subjacente a esta ideia que possvelencontrar uma verdade cientfica na representao espacial, como se os contornos inscritosnum mapa no correspondessem a uma escolha do cartgrafo. Um exemplo simples: umalinha com 1,5 cm desenhada num mapa com uma escala de 1:100.000, o equivalente grficode uma estrada com 50 metros; se diminuir a escala para 1:500.000 esta estrada simplesmentedesaparece. Ento existemdetalhes que podem ser eliminados, falsificados e distorcidos,evitando desviar a ateno do motivo central do mapa. No entanto, Kuznar e Werner (2001)argumentam no guia para o mapeamento etnogrfico que os mapas s fazem sentido se lhes

    forem atribudos os elementos de orientao, escala, etc. Este argumento foi desenhado a partir das indicaes da RAI, embora admitam que a etnografia est sujeita a julgamentosmorais e polticos. Lee Roberts (2012) sugere que esta aproximao uma atitude positivista perante o arquivo e a visualizao de dados, como se qualquer verdade pudesse serdescortinada a partir de um clculo. Esta procura de objetividade everdade cientfica estassim sujeita ao que James Clifford (1986) denomina de parcialidade discursiva. Quer istodizer que os mapas so relatos incompletos (mas convincentes) do espao que se propem

    representar. A partir do aforismo o mapa no o territrio de Alfred Korzybski, GregoryBateson (2000) referia que se o real existe, ele s pode ser percepcionado atravs de uma

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    13/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    5

    operao mental de reconstruo do real, e no de captao. Isto significa concretamente quequando pensamos em cocos ou porcos no quer dizer que existam cocos ou porcosa priori nocrebro mas sim imagens que j foram vistas ou imaginadas atravs da retina. E os mapastornam-se mapas de mapas de mapas. Mas cada mapa reflete sempre uma escolha doterritrio, um tema, uma escala, um tipo de projeo, smbolos, cores, ttulo e legendas.Imaginar uma cartografia objectiva negar estes elementos e a natureza da prpria escolha.

    Neste sentido, a histria dos mapas indissocivel da histria do poder. Os domnioscoloniais europeus utilizaram os mapas para a construo, material e imaginada, de um corposimblico ligado aos interesses polticos, econmicos e ideolgicos do imprio. O mapadelimita e nomeia e ao faz-lo tem a capacidade de circunscrever, excluir, reunir ou separar.A delimitao cartogrfica de fronteiras territoriais e tnicas impuseram o afastamento decomunidades e lugares, ao servio de uma lgica imperialista e discriminatria. O mapamaterializa assim uma noo de soberania. Soberania sobre o territrio conhecido e possudo,sobre o inimigo que importa conhecer bem, sobre as conquistas longnquas, permitindoostentar um imprio ou uma colnia atravs da exibio de um mapa. E, por ltimo, asoberania que emana do poder de mapear que permite dominar com o olhar, este ou aquelefragmento do mundo representado numa folha de papel desenrolada sobre uma mesa ou pregada numa parede. Como explica Bruno Latour (1985) a histria das cincias e das

    tcnicas , em grande medida, a dos estratagemas que permitem trazer o mundo para umasuperfcie de papel. Por isso, tanto de se pode controlar atravs do segredo e das suas formasderivadas (censura, falsificao), como da visibilidade (propaganda): o mapa uma forma dedomnio e controle.

    No guia de Kuznar e Werner (idem), os etngrafos so acusados de negligenciarem aimportncia do espao e de ignorarem as prticas espaciais. Embora excessiva, esta acusaosurgiu num contexto em que as dimenses espaciais da cultura deixaram de ser apenas um

    background etnogrfico para se autonomizarem e ganharem sentidos mais complexos.A passagem dos mapas para os processos de mapeamentos testemunha o spatial

    turn na antropologia, em que a concepo naturalista do espao criticada por umaabordagem que evidencia os usos e a produo historizada de um espao humanizado,rejeitando a separao entre as representaes do imaginrio e as prticas sociais e espaciais.Observar o espao significa observar todas as prticas sociais que o constituem(Lefebvre,1992). Numa anlise crtica sobre etnografias realizadas entre populaes

    indgenas, os mapas foram utilizados pelos antroplogos como ilustraes para as etnografias(Chapin et al.,2005). As dimenses espaciais das prticas culturais revelaram-se de grande

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    14/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    6

    interesse. Mas estas descries e anlises no existiam (na maioria das vezes) per si, masantes para legitimar uma interpretao terica de aspectos considerados mais relevantes parao estudo das prticas culturais (Low & Ziga-Lawrence, 2003). Nesta linha merecemdestaque dois exemplos de mapas que acompanhavam textos com descries detalhadas doterreno: Ethnographic Atlas of Ifugao, da autoria de Harold Conklin (1980) e Atlas dunVillage Indien, de Jean Luc Chambard (1980). Com o intuito de estudar o eficaz esurpreendentedesign e funcionamento dos sistemas de irrigao entre os Ifugao (Filipinas),Conklin usa alternadamente as fotografias areas e as notas recolhidas durante o prolongadotrabalho de campo (com observao participante). O atlas, constitudo por 57 folhas comdesenhos coloridos e fotografias, sublinha a importncia da permanncia do terreno, sendoassim possvel entender as caractersticas e a complexa alterao da paisagem ao longo dotempo. O principal objetivo de Conklin era encontrar padres culturais de comportamentonesta comunidade atravs da categorizao do espao pelos seus habitantes. Com propsitosdiferentes, Chambard produziu 66 mapas e esquemas diagramticos de uma aldeia dePiparsod, na ndia central. Estes mapas descrevem a posio das rvores de fruto, das rvoressagradas, das zonas de habitao das diferentes castas, dos mercados e dos templos, e pretendem ajudar a revelar as negociaes individuais e coletivas constantes com aorganizao do espao, como por exemplo as relaes de poder entre castas e a distribuio

    geogrfica das casas e templos.Os mapas revelam narrativas que privilegiam o olhar e a visualizao de dados

    codificados numa projeo que um modelo e no uma cpia, do mundo fenomenolgico.Por exemplo, o mapa das Ilhas Belcher situadas na Baa de Hudson, foi desenhado dememria e mo por Wetalltok e posteriormente oferecido por este membro da comunidadeInuit a Robert Flaherty no incio das filmagens de Nannok of the north, em 1924. Pela sua preciso e beleza considerado um dos documentos cartogrficos mais importantes do

    arquivo da biblioteca da Sociedade Americana de Geografia. Acontece que a preciso destemapa reflete os levantamentos topogrficos que foram feitos a propsito das inmerasexpedies cientficas ao rtico durante o sculo XIX. A interveno de Franz Boas comvista inscrio da cartografia cognitiva1 e recolha de cartografia material2 Inuit pode ter

    1 Inscrio de mapas mentais solicitados a companheiros de viagem Inuit.2 Artefactos entendidos como mapas ou representaes espaciais, o que inclui cermica, escultura emmadeira, desenhos, pinturas e tecidos bordados.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    15/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    7

    sido, segundo Chapin et al (2005) um fator determinante para a alterao das tcnicas demapeamento e dos prprios materiais utilizados por esta comunidade. Os mapeamentosesculpidos em madeira para utilizao dos pescadores Inuit (sempre orientados no sentido domar para a terra) deram lugar a desenhos da costa que ajudavam os comerciantes eexploradores (a navegar nos mares gelados do rtico. Em 1981 o antroplogo Hugh Brody publicou um estudo intitulado Maps and dreams acerca da utilizao dos mapas entre oscaadores Athabaskans, no oeste do Canad. Para Brody, os mapas no referenciamgraficamente apenas caminhos para a utilizao do espao. Os mapas so tambm percepese ideias, j que estes caadores sonham onde iro caar nos dias seguintes. Aps o sonho, oscaadores vo procurar nos trilhos fsicos a visualizao do mapa sonhado, procurando ocorpo fsico do animal. Na tentativa de fornecer a esta comunidade instrumentos para defensao seu territrio, Brody produziu mapas no georreferenciados sobre as reas de caa e de pesca. Mas para esta comunidade os mapas impressos eram irrelevantes. Apenas os mapassonhados orientam os caadores (Brody 1981).

    O mapeamento de terras indgenas para garantir a propriedade, a gesto dos recursosnaturais e o empoderamento das comunidades um fenmeno recente. Ainda mais recente omapeamento participativo de terras indgenas com o objectivo de criar ferramentas delegitimao de reivindicaes e divulgao interna e externa da identidade cultural destes

    grupos. Os primeiros projetos de mapeamento indgena surgiram no Canad e no Alasca,entre 1950 e 1960 e integravam projetos de anlise e ocupao do solo que tinham comofinalidade renegociar os direitos indgenas terra. Durante este perodo, a maioria brancaamericana sustentava a narrativa de que se a populao indgena no pratica a agricultura,logo no precisa da terra. Apesar da variedade de metodologias, desde abordagens participativas que envolvem mapas cognitivos das aldeias at utilizao de instrumentos degeorreferenciao e controlo remoto, a distribuio geogrfica de projetos de mapeamento

    bastante desigual e as oportunidades diferem imenso em funo dos recursos disponveis. Oaumento do nmero de laboratrios de SIG entre comunidades indgenas nos Estados Unidose Canad, beneficiando de um apoio financeiro e tcnico sustentado, contrasta com os gruposna frica do Sul, na sia e na Amrica Latina, onde os recursos so muito mais escassos. Poroutro lado, grande parte das publicaes disponveis sobre mapeamentos de terras indgenas produzida por no-indgenas, como se pode observar nos sessenta e cinco projetos demapeamento que integraram o relatrio Indigenous Peoples, Mapping & Biodiversity

    Conservation: An Analysis of Current Activities and Opportunities for Applying GeomaticsTechnologies (1994), financiado pelo governo norte-americano em associao com algumas

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    16/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    8

    fundaes internacionais de defesa da vida selvagem e da biodiversidade. Este projeto tinhacomo objetivo documentar as diferentes formas de relacionamento com os mapas e mais precisamente com as tecnologias digitais de mapeamento. Um interesse especial erademonstrado caso as aplicaes locais se relacionassem com os objetivos da Conveno-Quadro das Naes Unidas para a Proteo da Diversidade Biolgica (1992). Esta conveno prev expressamente uma transferncia de tecnologias de mapeamento para os pases commaiores dificuldades, ao abrigo dos direitos sobre os recursos naturais e sobre as tecnologias3.Em termos metodolgicos, estes projetos aliam as prticas colaborativas com os sistemas deinformao geogrfica, no obstante a sua complexidade tcnica e dependncia de fatoresexternos, tais como a eletricidade, os satlites de comunicaes e o acesso internet. Emtermos ticos e polticos so suscetveis acusao de reproduzirem uma tecnologia elitista,reforando as estruturas de poder j existentes (Carver, 2001).

    A ideia de construo de nativo, isolado do mundo e encarcerado na sua cpsulaespacial e cultural, determinou uma anlise dos aspetos culturais em funo da ideia deadaptao ao meio. Num texto publicado na revistaCultural Anthropology, Arjun Appadurai(1988) questiona a construo antropolgica do nativo associado ideia do lugar. Para aetnografia clssica, cada nativo tinha o seu lugar e este era entendido como uma unidadeespacial e cultural. Afastando-se da anlise feita em funo da ideia de adaptao ao meio (o

    nativo preso s caractersticas do lugar e aos seus modos de pensar), odesencarceramentodiscursivo deste nativo foi realizado atravs do conceito de ethnoscape.

    Por ethnoscape entendo a paisagem de pessoas que constroem os mundos mutveis em que vivem(turistas, imigrantes, refugiados, exilados, trabalhadores estrangeiros e outros grupos e indivduosmveis); so uma caracterstica essencial do mundo e surgem para afetar a poltica de e entre as naes,num grau sem precedentes (); quero dizer que a urdidura das comunidades estveis (redes de trabalho,lazer, casamento, residncia, filiao) est sujeita s agresses da mobilidade humana, porque cada vez

    3 A organizao no-governamental Amazon Conservation Team, autora do manual Metodologia doMapeamento Cultural Colaborativo foi pioneira na formao sobre SIG em comunidades indgenasda Amaznia, nomeadamente Surui, Trio e Ikpengno com o projeto de gesto do carbono florestal datribo Surui, em Rondnia, que reclama 250.000 hectares de floresta. Os Surui desenvolveram ummapa cultural das suas terras que integrava os conhecimentos tradicionais da floresta com as ltimastecnologias de medio de carbono. Aps a concluso do mapeamento, foram treinados guardas paramanter a vigilncia sobre estas zonas e a monitorizao dos nveis de carbono no solo. Na NovaZelndia ecom intensa atividade desde 2009, a Maori GIS Association considera os SIG comopssaros que se elevam nos cus acumulando referncias espaciais e conhecimento () recordando-nos os nossos sbios e ilustrando conceitos espaciais de acordo com a nossa tradio oral.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    17/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    9

    mais pessoas e grupos se relacionam com a realidade de terem de se mover ou com a fantasia dequererem mover-se (Appadurai, 1988).

    Fica clara a ideia de que o comportamento construdo num determinado espao. Nestesentido, a alterao significativa que se deu ao nvel da Antropologia foi que os antroplogos

    passaram a repensar o seu entendimento de cultura tendo em conta factores associados construo e movimentao espacial. Esta alterao da abordagem antropolgica em relaoaos contextos espaciais deveu-se em grande medida ao desenvolvimento de estudos de outrasreas de conhecimento (arte, geografia, arquitetura, histria, filosofia e sociologia). Estesdados remetem-nos para uma outra dimenso, a da importncia da interdisciplinaridade para odesenvolvimento do conhecimento cientfico (Low & Ziga-Lawrence, 2003).

    Deleuze e Guattari (2007) celebravam a complexidade do mapa contra o falso

    realismo do decalque. Contra a lgica tradicional da rvore, da hierarquia e da reproduo,trabalha-se o conceito de rizoma e de mapeamento. O mapeamento construdo atravs dadinmica do movimento que o cria, no na sua materialidade. Mapear faz parte do rizoma, sujeito a inmeras ligaes em todas as suas dimenses. Ento, se organizao do espaocontm informaes simblicas, ou seja, se os espaos contm inscries culturais, quelgicas de representao sustentam estas formas de produo espacial? Um contexto terico para analisar esta questo surgiu da antropologia do espao e do lugar, das j referidas autoras

    M. Lowe e D. Lawrence-Ziga (2003), com temticas de trabalho relacionadas com oentendimento espacializado da cultura, nomeadamente a criao de conceitos comoespaosincorporados, espaos inscritos e tticas espaciais. O conceito de corpo entendido emrelao s caractersticas biolgicas e sociais e o conceito deincorporao como um termoassociado experincia perceptiva e aos modos de presena e compromisso no mundo. Oespao incorporadoser a localizao na qual a experincia e a conscincia assumiriam umaforma material e espacial. A noo de espao incorporado estaria relacionada, com a forma

    como ocorre a apropriao e a transformao do espao pelos indivduos, o que Hall (2003)categorizou como proxmia4. Os espaos inscritos revelam que o processo envolve oreconhecimento de propriedades percepcionadas atravs de narrativas e prticas. Muitasvezes, estas relaes de sentido produzem formas diferenciadas de produo do espao, nemsempre consensuais, transformando-os emespaos disputados. A expressottica espacialtem origem na obra de Michel de Certeau (1990), onde o quotidiano o espao privilegiado

    4 Numa perspectiva fenomenolgica, proxmia consiste na descrio e comparao dos diferentestipos de uso que as pessoas fazem do espao. As culturas habitam mundos sensoriais diferentes.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    18/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    10

    para subverter as formas de controlo social previamente inscritas no espao. Esta perspectivacoloca a vontade da ao do lado do cidado comum e parte do princpio de que a supostaneutralidade do espao e consequentemente do mapa do espao, oculta relaes de poder(Lefebvre, 1992; Soja, 1989; Harley, 2001; Black, 2002).

    2. O impulso cartogrfico e o poder dos contornos

    Um mapa uma figurao plana da superfcie do planeta, ou de outro corpo celeste,na qual so representadas as posies relativas de vrios objetos, numa determinada escala enuma determinada projeo geomtrica. Esta figurao teve como suporte inicial a impressoem papel e este estatuto de objeto legitimou a percepo de que a sua existncia em nadadependia do seu autor.

    Como um objeto, o mapa est encarcerado na sua forma, e selado entre linhas, curvasde nvel e projees, legendas e pontos cardeais, o que lhe confere aparentemente aautoridade da naturalidade, como se as linhas dos contornos traduzissem a realidade das paisagens, contivessem todas as perspectivas e o espao fosse naturalmente arrumado.Desta forma, o mapa como forma visual e grfica de representao de contornos geogrficostambm corporaliza uma retrica de delimitao territorial que permite classificar,representar e comunicar informao muito diversa sobre locais5. A inscrio e utilizao de

    uma viso ortogonal na vertical, devolve ao observador a impresso de um olhar autoritrio,hierrquico, de cima para baixo, sugerindo uma projeo geomtrica de uma viso do mundocom origem num olho celestial (Certeau, 2011). Mas no s. Os lugares assinalados noso apenas recortados por rios, montanhas, desertos, mas tambm por smbolos e legendasexpressamente codificadas em termos lingusticos, culturais e tecnolgicos. Na Europaocidental, sabe-se que a Terra redonda desde pelo menos o sculo IV antes de Cristo. Osgregos no s reconheceram a esfericidade do planeta como estabeleceram um sistema decoordenadas geogrficas. Ptolomeu descreve na sua obraGeografia uma projeo do mundoe demonstra a eficcia da utilizao destas coordenadas, apresentando uma lista de latitudese altitudes de milhares de lugares (Gaspar, 2005). Para os romanos, o tipo de mapa mais

    5 Por exemplo o postal Portugal no um pais pequeno, de Henrique Galvo, editado por ocasio da1 Exposio Colonial Portuguesa, em 1934. Como negar que a sobreposio da Europa e das colnias portuguesas visa algo mais do que a localizao, o conhecimento ou a mediao dos pases indicados?O mapa uma forma inflamada do ego do regime, ndice de uma incerteza identitria expressa comuma certa eficcia cartogrfica.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    19/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    11

    frequente era oOrbis Terrarum, uma envolvente circular que abarcava todo o imprio e quemais tarde foi estilizado nos chamados mapas T0. (Figura 1.1.).

    A partir do sculo XV, medida que se conhecem outras terras e se aperfeioam astcnicas de navegao, em grande parte devido ao trabalho de traduo e compilao demapas oriundos de vrias partes do mundo conhecido, coexistiram duas formas derepresentao cartogrfica.

    Uma forma erudita, baseada no modelo de Ptolomeu e uma forma popular, as cartasde marear. Foi com base nestas cartas de marear trazidas das grandes viagens por marinheirosque Diogo Ribeiro elabora em 1529 um mapa do mundo que no obedece projeo ptolemaica mas sim s medies da latitude recolhidas por astrolbios, noturlbios e

    quadrantes. Em 1569 inicia-se a publicao em fascculos doGerardi Mercatoris Atlas sivecosmographicae mediationes de fabrica mundi et fabricati figura(1608-1609), uma coleo

    Figura 1.1. Mapa circular em T e O. O exemplar mais famoso destes mapas TO foi atribudoa Isidoro de Sevilha, que no sculo XV desenha a terra como um disco circundado pelo MarOceano e os trs continentes conhecidos distribudos em torno da cidade de Jerusalm. Ahaste vertical do T o mar Mediterrneo e os seus braos so os rios Nilo e Don. Na zona superior est o Paraso (Oriens). Orientar um mapa significava disp-lo com o oriente

    ara cima.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    20/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    12

    de mapas do flamengo Gerhard Kramer (1512-1594), mais conhecido por Gerardo Mercator(Figura 1.2). No final do sculo XVIII os ingleses iniciam uma cartografia sistemticaterrestre da Gr-Bretanha e de todo o imprio ingls. Formam-se os departamentos dosServios Geogrficos nos pases da Europa Ocidental e Amrica do Norte, e as Sociedades Nacionais de Geografia financiam misses de explorao terrestre e levantamentosgeodsicos e topogrficos sistemticos. Com a fotografia area, o avano tecnolgico nasformas de gravar e imprimir, a introduo da altimetria e da deteco remota por satlites,assistiu-se nas ltimas dcadas a uma massificao do acesso e manipulao da informaogeogrfica.

    As representaes visuais da geografia terrestre a par das ferramentas de visualizaoe das imagens geradas, muitas vezes sob o pretexto de um empirismo objetivo e neutral, tmsido duramente criticadas por gegrafos culturais (Harley, 2001, Soja, 1989, Wood,2010,Wood e Fels, 2008, Edney, 1990). Os mapas entendidos como artefactos subjetivosdevem ser lidos como representaes no mbito do quadro mental da cultura que os produz e no como representaes da realidade. Num estudo sobre o mapeamento do imprio britnico, Mathew Edney (1990) cruza o impulso imperialista ingls e o impulso paracartografar o imprio mostrando como ambos se relacionam com o conhecimento, com odesenho e com o territrio utilizando as mesmas ferramentas de registo: a performance e a

    inscrio. O mapa veio definir o imprio ingls, ao representar e legitimar, visual egraficamente, a hegemonia territorial da Inglaterra. O imprio existe porque pode sermapeado e os seus signos e significados inscritos num mapa. O mapa materializa a soberaniaexercida sobre o territrio. Soberania sobre o inimigo que importa conhecer para conquistar,soberania sobre as conquistas longnquas, soberania simblica, que permite ostentar umdomnio ou uma colnia atravs da exibio de um mapa e, ainda, a soberania da cartografiaem si mesma, que permite dominar com o olhar um ou outro fragmento do mundo

    representado numa folha de papel desenrolada sobre uma mesa ou pregada numa parede6.Com efeito, um levantamento cartogrfico cientfico pode ser um ttulo de propriedade sobre

    6 O mapa-logo o expoente do mapa como definidor do poder dos contornos. Referindo-se aosgegrafos militares coloniais do sculo XIX no Sudeste Asitico, Anderson sintetiza: Avanavam para a colocao do espao sob a mesma vigilncia que os autores dos censos procuravam impor s pessoas. De triangulao em triangulao, de guerra em guerra, de tratado em tratado, o alinhamentoentre mapa e poder prosseguia (Anderson, 2005:232)

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    21/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    13

    umaterra incgnita j que o soberano dos mapas, ou seja, odescobridor de uma terra agorainventariada qual impe um novo nome e ao mesmo tempo um novo proprietrio.

    Este fenmeno assume uma maior relevncia tendo em conta que os mapas, comorepresentaes singulares, possuem uma agenda prpria e um ponto de vista ancorado numquadro mental e num corpo de intenes.

    Tal como sugere o ttulo da publicao How to lie with maps, para Mounmonier(1996) a projeo de Mercator, tal como as limitaes do olho humano, suportam umadeterminada quantidade de dados e a distoro o fator que os torna legveis7.

    7 A distoro da massa do planeta na projeo de Mercator facilitou a navegao nutica mas apenasfoi divulgada no final do sculo XVII. A sua ocultao revelou a existncia de uma agenda poltica de

    Figura 1.2. Reproduo digital online deGerardi Mercatoris Atlas sive cosmographicae mediationesde fabrica mundi et fabricati figura (1608-1609). Estes mapas apresentavam uma projeocartogrficaconforme , ou seja, a escala independente da direo considerada em cada ponto. Otermoconforme falacioso, na medida em que induz no erro de pensar que as projeesconformesmantm a forma de todos os objetos geogrficos. Na realidade, no h nenhuma projeocartogrfica que goze desta propriedade, uma vez que impossvel planificar uma superfcie esfrica sem a deformar.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    22/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    14

    Um bom mapa relata uma multiplicidade de mentiras; suprime a verdade para ajudar outilizador a ver o que algum quer que seja visto. A realidade tridimensional, rica em detalhes, no

    pode ser projetada num modelo de escala grfica bidimensional. Na verdade, um mapa que nogeneralize informao no ser muito til. E o valor do mapa depende do grau de perfeio com que

    um aspeto especfico da realidade reconhecvel na projeo geomtrica.

    A construo desta ideia de universalidade do mapa contribuiu para reforar a suacapacidade de persuaso num sentido mais amplo, e tambm mais metafrico, j que o termomapa utilizado em vrias disciplinas e tcnicas para estruturar um espao, um tempo ouum saber. So relativamente comuns as expresses mapa do texto, mapa do problema,mapa das naes, mapas cognitivos, mapa do genoma humano, mapa da fome,mapa astral e assim por diante. O hbito de manipular um mapa como uma forma de

    representao de territrio origina um desfoque sobre os seus fundamentos histricos efilosficos. Compare-se, por exemplo, o mapeamento geodsico (que fixa o territrioterrestre com dimenses geometricamente precisas) e o mapeamento geolgico (inscreve otempo geolgico na representao do territrio). Os gelogos dos sculos XVIII e XIXdesenvolveram uma nova relao com a paisagem e exploraram novas formas derepresentao visual. Uma vez convencionadas simbolicamente as caractersticas visveis da paisagem, os gelogos puderam utilizar os mapas geodsicos para representar o que no

    podia ser visto abaixo da superfcie. Os mapas geolgicos contm uma interpretao terica evisual que s pode ser inferida a partir das evidncias superfcie. E como mobilizam prticas figurativas ou diagramticas do trabalho de campo, os mapas exportam o trabalho dolaboratrio para o mundo exterior e simultaneamente importam imagens do mundo para olaboratrio. Esta transferncia de informao umarelao estabelecida entre dois lugares,em que a condio para a sua circulao a inscrio. Quando um cartgrafo desenha,domina a paisagem com o olhar mas tambm dominado por ela. Assim que entra nogabinete de trabalho opera-se uma inverso fantstica. Por muito diferentes que sejam, todosos lugares do mundo assumem, atravs do mapa, uma coerncia ptica que os tornacomensurveis e por conseguinte fixados numa imagem imutvel. Por serem planos, osmapas podem ser sobrepostos e permitem comparaes com outros mapas e outras fontes deinformao que explicam esta amplificao das fontes de informao, prpria dos centros declculo (Latour, 2005).

    reiterao da dominao colonial europeia, demonstrando a centralidade e a importncia global daEuropa em relao ao resto do mundo (Harpold,1999).

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    23/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    15

    Historicamente, os mapas permitem garantir o que foidescoberto atravs da suainscrio no globo. Durante a poca dos globos terrestres e dos imprios coloniais europeus,os mapas bidimensionais terrestres e martimos foram o principal meio artificial de localizar pontos no espao terrestre e no espao astral8. Mas os globos deixaram de assumir funes deorientao para se tornarem em objetos decorativos, enquanto os mapas assumiram umsignificado operacional crescente, respondendo com eficcia necessidade de uma descriogeogrfica pormenorizada. E desde que a geografia se tornou uma disciplina nos programasde ensino nas escolas primrias e secundrias europeias, a partir dos finais do sculo XIX, osestudantes europeus so educados a lanar olhares sobre mapas que durante centenas de anosos cartgrafos e outros cientistas desenrolaram diante dos prncipes e dos ministros como umacartilha poltica (Sloterdijk, 2008). A atrao por mapas no est apenas ligada geografia ou procura de uma informao, mas a uma aliana entre o encanto de um lugar-outro, ofascnio diante de um grupo de signos complexo e minucioso e o espanto de captar tantos eto vastos espaos numa imagem to reduzida. O mapa uma matriz da imaginao. Emesmo numa cartografia de lugares imaginados, o mapa uma fonte de inspirao evisualizao do territrio da aco (Figura 1.3.).

    8 No por acaso que na linguagem dos topgrafos se fazem levantamentos de uma determinadazona; metaforicamente levanta-se uma cortina que esconde o terreno.

    Figura 1.3. Digitalizao de postal a partir da fotografia de Mateo Mat (Espanha, 1964),Viajo para Conocer tu Geografia , 2003, coleco do artista.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    24/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    16

    talo Calvino (2002) retoma o filo da fico cartogrfica e revela a capacidadeevocativa de uma cartografia de cidades e pases mticos, invisveis na realidade querepresentam, mas que arrastam o leitor para um vasto imaginrio de mapeamentos possveis a partir de um exerccio artstico. A relao entre a atitude artstica e a atitude cientficaalimentou uma discusso que se prolongou demasiado tempo. Importa agora entender quaisso as ferramentas e metodologias que possibilitam a construo de outros mapas. E qual oimpacto social e cultural da introduo das tecnologias digitais de georreferenciao? Osexemplos tm vindo mais da arte do que da antropologia, e sobre esta questo que trata o prximo captulo.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    25/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    17

    Captulo 2. Mapeamentos digitais com locative media e realidade aumentada

    Neste captulo apresentam-se projetos artsticos que recorreram utilizao demapeamentos digitais a partir de metodologias colaborativas e locative media. Mas antesdesta abordagem importa definir o que o mapeamento, mais especificamente o mapeamentodigital, que ferramentas utiliza e quais as suas potencialidades. Se o mapeamento se definedoravante como agncia, como dispositivo, porque a enfse j no se coloca s nas tcnicasou nos modos de produo do mapa, mas sim no encontro entre um movimento, umamaterialidade que o encarna e o olhar de um decifrador. Os sofisticados dispositivos que permeiam a vida quotidiana no s se tornaram uma parte integrante da mesma, mas tambm produzem novos posicionamentos, e estes posicionamentos envolvem os utilizadores numaativa e contnua interatividade em tempo real. Isto implica novos modos de subjetividade.Embora os mapas, em certa medida, tenham cumprido estas funes, a tecnologia no s geranovos espaos dinmicos, como tambm permite avanar com novas estratgias demapeamento que permitem o improviso e o posicionamento subjetivo, com negociaesconstantes com o espao. Qual o aspecto destes mapas? Estaremos a refletir sobre uma novamudana de paradigma, semelhante que aconteceu na modernidade, quando os mapascientficos, concebidos pelas tcnicas cartogrficas, substituram o mapa narrativo,ilustrado, medieval? A pesquisa cartogrfica e a arte mixed-media juntam-se para teorizar as

    formas de mapeamento mas tambm para um dilogo entre cincias, arte e tecnologia.1. O conceito de mapeamento e de mapeamento digital com gps e realidade

    aumentada

    Os argumentos e as crticas expostas sobre o poder geopoltico e cultural dos mapas,deram origem a um conflito conceptual a propsito da utilizao, num contexto curatorial, da palavra mapeamento. Aconteceu em 1994, no MoMA, em Nova Iorque, numa das primeirasexposies dedicadas utilizao de mapas na arte contempornea e que se intitulava

    precisamente Mapping. Robert Storr, curador e responsvel pelo departamento de pintura eescultura deste museu, pretendia questionar a influncia que as imagens dos mapas exerciamnos artistas contemporneos. Os mapas foram apresentados como a matria-prima para a produo de obras de arte: pinturas, desenhos, fotomontagens, esculturas e instalaes. Paraalm da sua manipulao como smbolos de poder, interessava a este curador mostrar osmapas como a derradeira combinao pictogrfica entre a exatido da representao e aabstrao total. A principal crtica a esta abordagem partiu do curador e artista Peter Fend que,

    numa perspectiva mais conceptual, classifica esta exposio como um aglomerado de objetos, pinturas, esculturas e desenhos que tm em comum imagens de mapas. No catlogo da

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    26/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    18

    (contra) exposio que comissariou em 1995 no American Fine Arts, Mapping: a response toMoMa, Fend definemappingou mapeamento como a performance que faz corresponderuma imagem a um lugar fsico. Um plano de ao que inscreve e corporaliza uma interveno performativa num determinado espao. Fend apresenta como exemplo os mapasdesenhados pelos Inuit. Quando desenham no cho um crculo e o dividem em diferentes partes, indicando qual a zona de caa, onde obter gua, para onde se iro deslocar ou ondesepultar os mortos, esta inscrio uma estratgia visual da performance do corpo numdeterminado espao. So inscries sem projeo geomtrica, escala ou legenda. No somapas, mas sim processos de mapeamento da vida econmica, cultural e social, sem uma preocupao de representao cartogrfica rgida e imutvel baseada numa projeogeomtrica. So uma ao de mapeamento elaborada a partir da percepo sensorial e daelaborao intelectual que esta comunidade formula sobre a representao do espao.

    O Atlas de Mercator concebido como uma coleo de mapas encadernados em que aimagem do territrio triunfa sobre o prprio territrio. Mas a imagem de um territrio no o prprio territrio. A um mesmo mapa podem sobrepor-se outros mapas. Tal como nosmapeamentos em ambientes digitais, onde se sobrepem diferentes camadas de informao.S que aqui a informao so dados provenientes de um clculo numrico (algoritmo) ou deuma imagem gerada por um satlite. A empresa americanaGoogle, Inc., produtora,

    recolectora e arquivista de mapeamentos digitais, parece ser um poderoso centro de clculo,no sentido latouriano. Um computador em rede combina e traduz desenhos, fotografias emovimentos no espao. A sua fora deriva da capacidade de padronizao das inscries. Odomnio intelectual no se exerce diretamente entre os fenmenos galxias, bactrias,relaes econmicas mas sim sobre as inscries que lhes servem de veculo e as opes dearmazenamento e disponibilizao. O dilogo estabelecido entre o presente onde meencontro e a inscrio de locais distantes tornou-se uma atividade simultaneamente cientfica

    e ldica. A representao do espao tem assim um carter de mobilidade e de imutabilidade,so contornos medidos e fixados de uma forma relativamente permanente. Como exemplorefira-se os espcimes de plantas reunidas nos museus, os jardins zoolgicos ou os jardins botnicos, que funcionam como representantes de vidas distantes. Mas tambm aqui seincluem os mapas, as tabelas estatsticas, os resultados de questionrios, fotografias, vdeos enotas de campo (Andersen, 2005). Segundo J. Durham Peters (1997), so meios de descriosocial que representam o mundo como totalidades, tais como as estatsticas, as novelas ou

    a imprensa.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    27/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    19

    As ferramentas tecnolgicas bsicas que permitem estes processos de mapeamentodigital so o gps e a realidade aumentada. Importa definir de forma clara o que so e quefunes tm desempenhado.

    1.1. O sistema de posicionamento global ( gps )

    A caracterstica fundamental do gps a organizao e a manipulao de dadossituados geograficamente num determinado lugar. Em termos tcnicos, o gps um sistema deradionavegao constitudo por 24 satlites, que permite determinar uma posio no globoterrestre, a qualquer hora e com quaisquer condies atmosfricas. Estes satlites socomandados por quatro estaes terrestres. O comando principal situa-se na Schriever AirForce Base (Colorado, EUA). Inicialmente concebido para fins militares e disponvel parautilizadores autorizados desde 1973, o gps foi livremente autorizado para utilizao civilapenas em 1995. No sistema militar, a margem de erro entre a localizao geogrfica e adetectada pelos satlites atinge os vinte metros. No sistema standard , isto , civil, estamargem pode ser superior a cem metros. Cada receptor de rdio inserido num gps tem umaunidade de processamento que descodifica em tempo real a informao enviada por cadasatlite, estimando a posio pretendida. Os sinais so recebidos na Terra em intervalos de 30segundos e de 6 segundos. Para a determinao precisa da posio necessrio um minuto emeio de boa recepo dos vrios tipos de sinais enviados. O gps no possui um sistema de

    coordenadas prprio. Utiliza as coordenadas geogrficas j existentes, latitude, longitude ealtitude (ex.: 38.71340, -9.143140 N 38 42.30, W 9 835.30). Estes clculos sotransformados em sistemas visuais digitais mediante uma tecnologia-chave: a realidadeaumentada.

    1.2. A realidade aumentada (RA)

    A realidade aumentada um conceito que significa a criao num ambiente digital deuma imagem a trs dimenses de qualquer elemento fsico ou imagem real. Se o interface

    um satlite, ou simplesmente um IPhone apontado para um prdio, o que importa que ossignificados dos lugares so revelados devido sobreposio de dados, ou melhor, decamadas de percepo. O ambiente de realidade aumentada referencia uma amlgama derealidades atravs da utilizao de cmaras, permitindo aos utilizadores apontar os seusdispositivos para o espao envolvente e obterem inmeras camadas de dados.

    A RA pode ser utilizada para fins comerciais, como o caso da aplicao Layar , para IPhone. Mas tambm utilizada na comunicao de informao histrica, cientfica e

    artstica. Em 2010, o Museu de Londres lanou uma aplicao para IPhone, intitulada"Streetmuseum", em que os utilizadores quando posicionados em determinados locais obtm

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    28/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    20

    informaes sobre uma determinada imagem e o seu contexto histrico. Por exemplo, outilizador pode estar junto do Palcio de Buckingham e visualizar uma fotografia da priso deEmmeline Pankhurst, em 1914 Direcionando o IPhone ou o IPad para os portes possvelajustar a imagem ao vivo com a imagem antiga (Figura 2.1.). Tocando na imagem, surge alegenda da fotografia9.

    2. Locative Media a tecnologia e as aes de registo espacial

    Na sequncia da proposta de Fend

    iniciam-se na Europa ocidental uma srie demovimentaes artsticas sobre a relao entre o conceito de mapeamento e tecnologia digital.Em 2001, Jane England, galerista e curadora, escreve no catlogo da exposio Map is notthe territory que o impulso de mapear dos artistas uma resposta imposio daglobalizao e dos mapas das fronteiras e das hierarquias mundiais. Este projeto, dividido emtrs edies (2001, 2002 e 2003), apresentou obras dos anos 60, 70 e 80 que acompanham adesconstruo da fora poltica e social das imagens dos mapas e a utilizao de novastecnologias de comunicao e georreferenciao (inclua obras minimalistas, situacionistas,surrealistas,land art , conceptualistas emixed-media). Ainda em 2001 Patrick Lichty, artistaindependente e curador, promove a exposio [(re)distributors] e revela o potencialexpressivo de inscrio e comunicao de dispositivos mveis como o gps e os telemveis.

    9 The militant campaigner for women's suffrage, Emmeline Pankhurst, being arrested outsideBuckingham Palace, London, May 1914. A short time previously she had been released from prisonafter serving less than a year of a three-year sentence for a series of arson attacks in 1913. Esta ideiafoi inspirada no lbum do Flickr looking into the past, com 4013 membros e est em funcionamentodesde 2011.

    Figura 2.1. Imagem da aplicaoStreetMuseum paraIPhone sobrepondo a imagem da priso de Emmeline Pankhurst no porto do Palcio de Buckingham em1914 com a imagem atual do mesmo local. 2010,The Museum of London.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    29/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    21

    Foi neste contexto que surgiu o conceito delocative media.. A expresso inglesa designa umconjunto de tecnologias e processos de comunicao que localizam informao e identificamo lugar da produo dos contedos de acordo com tcnicas de georreferenciao, por exemplovia gps, integrado ou no num telemvel ou num computador porttil, ou atravs da simplesligao internet. A expresso surgiu inicialmente nos trabalhos de investigao acadmicade Karlis Kalnins, no RIXC Center for New Media, em Riga, Letnia. Em 2001, Kalninsfundou, com Marc Tuters, o Locative Media Lab, com a inteno de desenvolver projetosque explorassem a cartografia gerada pelos utilizadores doslocative media. Tinha como focus a distino entre as exploraes criativas e a utilizao institucional e corporativa delocation-based servicesconvocando trabalhos e reflexes de artistas e investigadores.Daqui resultaram projetos como oGPSter (2001),Geograffiti (2002) eWhere-FI(2003). Em portugus, locar e locao significa aluguer, delimitao de terreno (do latimlocare, alugar).Em portugus do Brasil a expresso foi traduzida por mdias locativos. Dada a inexistnciade um termo satisfatrio em portugus opto pela utilizao em lngua inglesa10.

    Em 2004, no decorrer do festival Futuresonic, em Manchester, o curador DrewHemment organiza a exposio Mobile connections. Esta exposio abordava a utilizaode locative media para explorar as fronteiras entre o que pode ser experienciado com as novastecnologias e a emergncia da arte digital, afastada das galerias de arte. Hemment sugeria que

    as tecnologias de comunicao reconfiguravam o espao geogrfico, cultural e sensorial. A proposta revelou o dilogo entre os artistas e novas formas de visualizar e inscrever o espaoe o tempo, mediante a utilizao de radares, sonares, gps e telemveis. Outros artistas einvestigadores acadmicos propuseram novas abordagens de mapeamentos comlocativemedia como os projetos de desenho no espao urbano de Jeremy Wood, GPS Drawing(2001-), e de Ester Polak, Amsterdam Realtime (2002-2003). Posteriormente surgiram projetos de escrita urbana digital que indexam dados digitais a um determinado lugar, como

    Yellow Arrow dos Counts Media, Inc. (2004-2011), Sonic City dos Soundworks (2006-2010), MurMur de Shawn Micallef, James Roussel e Gabe Sawhney (2003-2007); projetosde vigilncia e monitorizao, que equacionam as ameaas das novas tecnologias

    10 O socilogo Francesco Lapenta (2011) acrescenta uma nova categoria, os geomedia. Os geomediano so novos meios em si mas plataformas onde se fundem a electrnica, a internet, os meios digitaisde localizao (ex: gps) e a realidade aumentada (ex:Google Earth). So interfaces que permitem aosseus utilizadores organizarem os inmeros fluxos de informao que circulam no espao virtual,criando redes de amigos, comunidades imaginadas por onde circula apenas informaoselecionada.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    30/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    22

    privacidade e ao anonimato como Set to Discoverable do grupo LOCA (2006), TrackingTransient de Hasan Elahi (2003-2009), Life. A Users Manual, de Michelle Teran (2005);e mapeamentos criativos digitais como o projeto Biomapping, de Christian Nold (2002-)e Tactical Cartographies (2010), dos artistas Institute for Applied Autonomy. Maisrecentemente surgiram as narrativas literrias com gps (a fruio s possvel em movimentonum determinado local) GPS Film Location Based Mobile Cinema, de Scot Hessels(2009), 230 Miles of Love de Andrew Shanahan (2011) ou Nomadic Shopping gpstrackdocu-fiction, de Esther Polak (2012). Todos estes projetos tm em comum a mobilidadenuma determinada paisagem e a utilizao delocative media.

    2.1. O mapeamento digital da aplicao Google Earth

    Tendo surgido com o nome Earth Viewer , a aplicaoGoogle Earth foi adquirida pelaGoogle, Inc.11 em 2005. Esta aplicao enquadra-se na categoria dos SIG e pode serdescarregada gratuitamente para qualquer sistema operativo12. A manipulao feita peloutilizador num ambiente digital e permite mapear algumas zonas do planeta atravs dacompilao de imagens de satlite e fotografias areas da rea pretendida. Uma vez instaladono computador, a aplicao situa imediatamente o utilizador a cerca de 10 mil quilmetros dedistncia do planeta (Figura 2.2.).

    Clicando com o cursor numa zona do planeta inicia-se um voo picado em direo

    zona indicada, num movimento de aparentedetournement mas ao mesmo tempo focado. medida que a aproximao superfcie decorre, novas indicaes topogrficas so solicitadas,sob pena deste movimento ser interrompido e a viagem parar. A resoluo de referncia paraalgumas reas pode ser de quinze metros at um metro e meio (em reas muito povoadas daEuropa e da Amrica do Norte).

    Na verso gratuita do GE, o zoom mdio em grandes cidades como Londres e Tquio de aproximadamente noventa metros antes de ocorrer a pixelizao. Em reas como a frica

    11A Google, Inc. uma empresa multinacional norte-americana de servios online e software. Hospedae desenvolve uma srie de servios e produtos baseados na internet e obtm os seus lucros atravs da publicidade. A empresa foi fundada por Larry Page e Sergey Brin, a 4 de setembro de 1998 e oferta pblica inicial foi realizada a 19 de agosto de 2004. A misso declarada da empresa desde o incio "organizar a informao mundial e torn-la universalmente acessvel e til".Don't be evil o sloganda empresa, inventado pelo engenheiro Paul Buchheit.12 A verso Google Earth Pro paga (399 euros) e oferece uma melhor resoluo e outrasfuncionalidades, nomeadamente a possibilidade de filmar e editar filmes gravados a partir dosmovimentos efectuados na superfcie do globo.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    31/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    23

    Subsariana, a China, a Amrica Latina, a qualidade das imagens significativamente menor.Existem no GE atualmente trs tipos de visualizaes do planeta: imagem de satlite,Google Maps e Street View.

    O Google Maps um servio gratuito de pesquisa e visualizao de mapas e imagens de

    satlite que asseguram um zoom em cidades com mais de um milho e meio de habitantes,desde que situadas em territrio com acesso digital autorizado. Apresenta mapas e rotas para atotalidade do territrio nos Estados Unidos, Canad, Unio Europeia, Austrlia e Brasil (comexceo de algumas zonas da Amaznia). Esta aplicao permite insero de fotografias dosutilizadores registados na aplicao13 sem critrio temporal mas sujeita a uma filtragem decontedos realizada pela Google, Inc.14. O Street View outro recurso gratuito do GE quedisponibiliza uma paisagem panormica de 360 na horizontal e 290 na vertical e permite

    13 Para publicar um ficheiro naGoogle Earth Community necessrio ter uma conta de correioelectrnico no gmail (inscrio gratuita) e pedir permisso ao administrador desta comunidade.14 Por exemplo, um utilizador inseriu um marcador de local em Lhasa, no Tibete, com a frase Nohuman rights here. medida que os utilizadores foram abrindo este marcador, gerou-se umadiscusso sobre as violaes dos direitos humanos do governo chins no Tibete. Mas subitamente estemarcador foi retirado da aplicao. Apesar disso, muitos utilizadores registados continuaram a debateras disputas polticas e o desrespeito pelos direitos humanos na China e no Tibete. Note-se, a propsitodeste exemplo, que durante esta pesquisa no foi possvel encontrar um documento oficial da Google,Inc. com o enquadramento explcito dos critrios de eliminao ou aceitao de informao.

    Figura 2.2. Captura de ecr com a imagem inicial em 3D da aplicaoGoogle Earth.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    32/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    24

    que os utilizadores observem algumas regies do mundo a um metro de distncia do solo. Nomapeamento de acesso livre disponvel no site daGoogle observa-se a situao atual dasnegociaes globais para aplicao deStreet View (Figura 2.3.).

    Nesta categoria de visualizao, as imagens so captadas por uma cmara dentro de umautomvel ou amarrada ao tejadilho e esta circunstncia que condiciona o sentido do percurso pelas ruas, j que apenas circula por onde o fluxo rodovirio permite. As fotos

    podem ser vistas com diferentes dimenses e graus de legibilidade. A captao de imagensem 360 graus feita algumas vezes por ano, sem avisos prvios, consoante os locais. Anavegao sugere a possibilidade de se percorrer as ruas sem qualquer impedimento ao dobraruma esquina ou atravessar uma rua15.

    A manipulao de dispositivos digitais com gps integrado e a consequente possibilidade de cada utilizador construir os seus prprios mapeamentos num computador ounum telemvel tem implicaes significativas para o conceito de mapeamento que pretendo

    abordar neste trabalho: estas tecnologias operam uma deslocao do objeto mapa, para as suascondies de possibilidade. Opera-se uma mudana profunda no modo como a informaogeorreferenciada armazenada, representada e manipulada. Estas imagens, compostas porcamadas de informao que suportam dados com diferentes provenincias, para alm dacapacidade de atualizao, permitem tambm selecionar o tipo de dados que se pretende

    15 No imediatamente perceptvel que os percursos disponibilizados s so possveis atravs decirculao rodoviria. A intencionalidade da cmara parte integrante da experincia do pblico, emdiferido ou em tempo real, e da configurao do lugar (Pink, 2011).

    Figura 2.3. Mapeamento da disponibilizao doGoogle Street View. Quando foi lanado, a 25 de Agosto de2007, apenas cinco cidades americanas tinham sido includas (So Francisco, Las Vegas, Denver, Miami e

    ova Iorque). A cobertura total doStreet View est concentrada nos pases a azul escuro (Europa Ocidental, Estados Unidos da Amrica, frica do Sul, Austrlia e Japo). Com cobertura parcial surgem os pases eterritrios a azul claro (Antrtida, Rssia, Indonsia, Colmbia, Peru, Brasil e Chile) e com cobertura totallaneada mas ainda no concretizada, os pases com a cor laranja (ndia, Argentina, Malsia, Filipinas e

    Paquisto). A ndia e a Argentina possuem listas verdes j que tambm pertencem ao grupo dos pases queapenas autorizam imagens de museus e que esto sinalizados com a cor verde (China, Qatar, Egito, Turquia,Tanznia, Iraque e Equador). Com a cor cinza esto sinalizados os pases e territrios sem cobertura.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    33/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    25

    visualizar. Devido ao seu extraordinrio poder de clculo e de representao visual, oscomputadores e as tecnologias mveis permitem ao utilizador comum tornar-se, a um custorazovel, num produtor de mapas. O GE , nos termos de Latour, um actante, isto , colocaem relao algoritmos, pessoas e estratgias. Funciona por combinao e justaposio deinformao georreferenciada. , em si mesmo uma gigantesca operao de mapeamento escala global. Resta saber como que estas aplicaes de software livre ao serem apropriadas pelos utilizadores e ao proporcionarem novas formas de visualizao, contribuem para a produo de significados e de novas formas de representao do espao e do territrio; e,ainda, se esto ou no comprometidos com narrativas identitrias ou discursos manipuladores.A quem interessa uma determinada visibilidade de um espao?

    2.2. Mapeamentos digitais e mapeamentos artsticos com locative media , realidade

    aumentada e metodologias colaborativas

    Se o mapeamento se define como agncia, como dispositivo, porque a enfse j nose coloca nas tcnicas ou nos modos de produo do mapa, mas sim no encontro entre ummovimento social, uma materialidade que o encarna e o olhar de um decifrador. O mapaescapa ao real tanto quanto o revela; afirma-se como uma provocao, como evocao, umaespcie de fora motriz na transformao dos olhares e dos mundos. Desaparece a querelacincia/arte, a cartografia pode indiferentemente informar, comover, antecipar, unir ou dividir.

    Certos mapas podem mentir (Mounmonier, 1996) mas nenhum pode pretender refugiar-se soba tutela tranquilizadora mas ilusria, da verdade.

    Os mapas, valiosos instrumentos heursticos, tornaram-se mais visveis no ambientecontemporneo de interligao entre tecnologia e a vida das comunidades, exigindo umaatividade cognitiva contnua (Ljungberg, 2010). Os sofisticados dispositivos que permeiam avida quotidiana no s se tornaram uma parte integrante da mesma, mas tambm produzemnovos posicionamentos, e estes posicionamentos envolvem-nos numa ativa e continua

    interatividade em tempo real. Isto implica novos modos de subjetividade. A tecnologia no sgera novos espaos dinmicos, como tambm permite avanar com novas estratgias demapeamento que permitem o improviso e o posicionamento subjetivo, com negociaesconstantes com o espao.

    Esta questo tem sido colocada por vrios artistas e pensadores. Perante a necessidadede criar estratgias de novos mapeamentos, abandonam a estrutura sujeito-objecto e procuramum espao expansivo onde a agncia de qualquer presena conectada com outras agncias.

    Qual o aspecto destes mapas? Estaremos a refletir sobre uma nova mudana de paradigma,semelhante que aconteceu na modernidade, quando os mapas cientficos, concebidos pela

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    34/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    26

    projeo cartogrfica, substituram o mapa narrativo, ilustrado, medieval? Diversos camposdisciplinares juntam-se para revelar outras de formas de mapeamento espacial mas tambm para um dilogo entre antropologia, arte, tecnologia e cincia.

    Nos projetos de mapeamento que se seguem, interessa analisar os processos deconstruo e concretizao de um mapeamento colaborativo a partir da utilizao de locativemedia e realidade aumentada. Criados por artistas e investigadores, procuram reinterpretar ascontradies do manuseamento de uma tecnologia militar como o gps e ao mesmo tempoconfrontar as estruturas sociais (e autoritrias) utilizando as mesmas tecnologias mas comobjetivos muito distintas. Que processos so desenvolvidos para mediarem novas formas de produo de conhecimento cultural e social, criando outras perspectivas sobre o sentido dascoisas no fluxo dos encontros quotidianos? De uma panplia de combinaes possveis detecnologias, mapeamentos e inscries so apresentados os projetos Amsterdam RealTime(2002), de Esther Polak, Biomapping , de Christian Nold (2006-),San Francisco Baghdad , da srie Shadows from another places de Paula Levine (2006) eGPSdrawing , deJeremy Wood (2008-2013).

    2.2.1. Amsterdam RealTime , de Esther Polak

    Amsterdam RealTimefoi apresentado pela primeira vez no mbito da exposio promovida pela Amsterdam City Archive Waag Society, Maps of Amsterdam 1866-2000,

    em 2002. Esther Polak pretendia tornar visveis os mapas mentais que orientam os cidadosnas suas deslocaes dirias e criar um mapa interativo a partir de mapeamentos com gps.

    Durante dois meses foram convocados mil residentes da cidade para utilizarem um

    dispositivo porttil com gps integrado, de dimenses reduzidas e ligado a um servidor.Atravs dos dados georreferenciados recebidos por satlite, todas as coordenadas foram

    Figura 2.4. Amsterdam RealTime, de Esther Polak.Visualizao dos percursos dos automveis em Amsterdonuma tela negra de grandes dimenses. Fotografia gentilmente cedida pela artista.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    35/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    27

    enviadas para uma plataforma central digital. Esta plataforma de algoritmos permite avisualizao dos percursos num monitor de computador ou numa tela negra de grandesdimenses. Este projeto apresenta uma cartografia colaborativa profundamente conectadacom os corpos e os movimentos dos participantes no seu quotidiano. Os aparelhos mveis possibilitam a viso de um espao vivido atravs dos corpos que nele navegam.

    Os visitantes so envolvidos numa experincia esttica, mas tambm de identificao e participao na viso da cidade (Figura 2.4.) Este mapa representa a vida e o grau deincorporao de um determinado espao. Atravs dos movimentos dos seus residentes e datecnologia digital, o mapa da cidade constri-se a si prprio.

    2.2.2. Biomapping, de Christian Nold

    Biomapping foi um projeto de investigao que explorou novas formas visuais edigitais de registo e visualizao de informao biomtrica e emocional. Mas que tambm pretendeu mostrar que a obteno livre e a partilha de dados sobre o corpo e a sua relaocom o espao poderia alterar a percepo da vida em comum e do espao partilhado portodos, em comunidade16. O dispositivo tecnolgico Biomapping uma ferramenta porttil degravao de dados a partir de duas tecnologias: um sensor de medio biomtrica gsr(galvanic skin response) e um gps. O biossensor, construdo a partir de um detector dementiras, mede as alteraes do nvel de transpirao entre os dedos da mo. Nold assume

    que estas oscilaes de suor indicam uma intensidade emocional. O gps permite a localizaogeorreferenciada (latitude, longitude e altitude) do seu utilizador e assinala marcadores delocais (locais especficos onde aconteceu uma alterao emocional). Estes dados podem servisualizados digitalmente noGoogle Earth ou atravs da consulta dos mapas impressos por

    16 Para uma melhor compreenso do trabalho de Christian Nold, descrevo resumidamente o percursometodolgico que, segundo o prprio, esteve na origem das suas reflexes. Nold foi preso pela polcia

    londrina durante o MayDay de 2000, em Oxford Street16

    . Acompanhava a multido com algunsmilhares de pessoas e seguia simultaneamente os movimentos da polcia. Era um estudante de Design e investigava, na altura, ferramentas metodolgicas para entender e visualizar o comportamento dasmultides em manifestaes polticas pblicas. Foi imobilizado por um grupo de nove polcias emedido durante cinco horas consecutivas Segundo o prprio, no voltou ser um observadorneutral, mesmo que j soubesse que este conceito no existia, e mesmo que, em tempos, tenhaconsiderado que seria o nico posicionamento possvel para observar as multides durante asmanifestaes polticas. Surgiu assim o projeto Mobile Vulgus, em 2001, elaborado a partir dovisionamento e anlise de registos vdeo e udio de manifestaes em Londres e Bristol, e de cargas policiais. Nold perspectivou o seu trabalho numa contracorrente ativista de desenvolvimento demetodologias de ao e interveno pblica e poltica. Na mesma linha exploratria concebeu em2006 o projeto Biomapping.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    36/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    28

    Nold em papel. O resultado que cada caminho percorrido pelo utilizador do dispositivotransforma-se num percurso visual no mapa, em que os desnveis indicam supostamente osdiferentes estmulos psicolgicos ou a sua ausncia em determinados momentos e locais. Poroutro lado, a inverso do sentido do detector de mentiras, que tem como pressuposto que ocorpo fala sempre verdade, e que as mentiras so ditas apenas por palavras, questionam os participantes acerca dos resultados dos seus dados biomtricos como o registo verdadeiroda experincia vivida. Este dispositivo conecta um espao ntimo, individual, nico, com oespao dos satlites que orbitam volta do planeta. Umworkshop Biomapping rene umasrie de pessoas que so convidadas a dar um passeio nas proximidades do local onde est atrabalhar, com a durao de cerca de duas horas. Antes de partirem, entregue a cada participante um equipamento Biomapping e, pontualmente, uma cmara digital. Vo caminhare simultaneamente so estimuladas a pensar acerca das escolhas que fazem durante o percurso, carregando num boto vermelho sempre que se sentiram perturbadas por uma razoqualquer. No regresso, procede-se transferncia dos dados recolhidos pelo equipamento paraum computador, visualizando digitalmente os percursos inscritos pelo gps e as tensesregistadas pelo gsr . As ferramentas tecnolgicas que criou e (re)utilizou, determinantes naseleo e gravao dos dados recolhidos do terreno, so parte integrante do processo. Apscada participante terminar a conversa em torno do seu passeio, todos os percursos so

    combinados num mapa comum, relativo a toda a rea em questo. Pretende-se fazer ummapa emocional de cada participante e tambm dos locais que percorreram, do bairro, dacidade, ou apenas da rua. Este mapa regista os locais e as situaes em que as emoes tanto positivas como negativas, de desconforto como de prazer foram objecto de umadeterminada consciencializao. Este usualmente o quadro de fundo para uma sesso dedebate de encerramento, em que levantada a questo mais ampla acerca do que representaesse mapa e de que forma poder vir mais tarde a ser utilizado pelos participantes.

    O ponto de partida de Nold o conjunto das relaes humanas no seu contexto social,visando colocar em contacto diferentes nveis de realidade. Dois projetos exemplificam estaideia: Sensory Depravation Map of Newham, e Drawing Provocations and StockportEmotion Map, realizados entre 2007 e 2008. O Sensory Deprivation Map de Newham um mapa que resultou de umworkshop de trs dias, em Newham, Londres, em que participaram 36 estudantes do Newham Sixth Form College. A questo colocada foi: o queacontece quando passeamos pelas ruas sem ver nem ouvir? A um dos estudantes de cada

    dupla foi colocada uma venda nos olhos e auscultadores nos ouvidos, de maneira a que no pudesse ver ou ouvir absolutamente nada. Ao outro foi entregue um gps, papel e caneta.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    37/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    29

    Juntos, exploraram a rea em volta da escola durante uma hora. Enquanto o estudantevendado e privado de audio contava verbalmente a sua experincia sensorial, o outrotomava notas e assegurava que a viagem decorresse em segurana. No regresso, os dadosregistados durante o passeio foram descarregados do gps para um computador porttil e todasas observaes sensoriais realizadas durante o passeio inscritas num mapa (Figura 2.5.).

    No Vero de 2007, entre Julho e Setembro, cerca de 200 pessoas participaram na aointitulada Drawing Provocations & Emotion Mapping. Neste evento, foi pedido a cada umque desenhasse as suas respostas a uma srie de provocaes, segundo Nold, relacionadascom a vida quotidiana diria. Por exemplo, O que o/a incomoda mais em Stockport?, Ondeencontra os seus amigos?, Quais so as pessoas mais importantes na cidade?, Quais as pessoas mais perigosas?, Onde fica o rio?.

    Os desenhos dos participantes foram digitalizados e transpostos para o mapa digital,dando-lhe o contorno necessrio para a sua leitura como mapas. No documento de sntese,todos os desenhos foram colocados na posio geogrfica onde as pessoas os mencionavam(Figura 2.6.). Este mapa sugere um modelo de registo de conversaes aparentemente triviaise eventos quotidianos. Visualizando todo o mapa, estas impresses aparentemente desconexas

    formam um aglomerado de assuntos e preocupaes. No final de cadaworkshop impressoo mapa final e distribudo gratuitamente. Tambm possvel descarregar na internet. Nold

    Figura 2.5.Captura de ecr do Newham Sensory Deprivation Map, de Christian Nold. Detalhe domapeamento.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    38/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    30

    criou mapas em ficheiroskmz para serem visualizados noGoogle Earth, ou impressos em papel. Nos mapas dos diferentes eventos que organizou, os passeios so representados dediversas formas, por exemplo, linhas angulares evidenciando os picos emocionais, ou entomanchas de cores com temperaturas diferentes, sempre para evidenciar a localizaogeogrfica dos diferentes estados emocionais (Figura 2.7.). O seu objectivo construir novasferramentas que possam desenvolver possibilidades ou propor usos alternativos de recursosexistentes. Cada workshop parte por isso de uma cuidada investigao das ferramentastecnolgicas disponveis, para desvendar as suas camadas culturais e polticas.

    2.2.3. San Francisco Baghdad , da srie Shadows from another places de Paula

    Levine

    Este trabalho integra um conjunto de mapeamentos realizados por Paula Levine com gps. O projeto iniciou com um mapeamento do primeiro ataque das foras militaresamericanas a Bagdad, em maro de 2003. A latitude e longitude dos alvos das bombas foramgeorreferenciadas com um gps, a mesma tecnologia utilizada pelos militares para definio

    das zonas de combate. Seguiu-se o mapeamento com gps do centro da cidade de SoFrancisco e a sobreposio com o de Bagdad. O resultado a visualizao de um local bombardeado, no mapa de Bagdad, mas situado agora numa esquina de uma avenida de SoFrancisco (Figura 2.8.). Levine subverte a lgica militarista da informao georreferenciada,quando sobrepe estes dois mapeamentos. Os locais so legendados com fotografias sobre oque atualmente existe em cada um, e com uma relao dos nomes dos militares americanosque morreram desde 1 de maio de 2003, o dia em que o presidente americano George Bush

    declarou que as operaes de combate tinham terminado e que os Estados Unidos e os seusaliados se apresentavam como vitoriosos na guerra contra o Iraque. Os participantes e

    Figura 2.6.Captura de ecr de Drawing Provocations & Emotion Mapping, de Christian Nold. Detalhe do mapeamento da rea do mercado que domina a cidade de Stockport.Figura 2.7. Captura de ecr de San Francisco Emotional Map, de Christian Nold. Detalhe domapeamento no Google Earth.

  • 7/25/2019 2014 Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    39/85

    Do Mapa ao Mapeamento: uma etnografia experimental com locative media

    31

    espectadores incorporam assim um conflito histrico, entre os Estados Unidos e o Iraque, mastambm um sentimento dbio de admirao e medo, pela autoridade de quem sabe ondedespejar bombas e a proximidade de uma agresso. Levine subverte a estaticidade dos mapasreutilizando as tecnologias desenhadas pelas estruturas de poder. Atravs de um gps, convocanovas finalidades para a sua utilizao mas no s. Ela est a recriar formas de entender arepresentao das pessoas no espao. Ao mapear as cidades de Bagdad e S. Francisco, os participantes so envolvidos num conflito entre o mapa e a representao de um territriomassacrado. Atravs desta crtica s agendas imperialistas da guerra contra o Iraque, Levine procura anular o po