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Sonhos Lcidos A Experincia Onrica A Experincia Onrica A Experincia Onrica A Experincia Onrica
ConscienteConscienteConscienteConsciente
Cleber Monteiro Muniz
Edio especial para distr ibuio gratuita pela Internet,
atravs da Virtualbooks, com autorizao do Autor. O Autor gostaria de receber um e-mai l de voc com seus comentrios e crt icas sobre o l ivro. A VirtualBooks gostaria tambm de receber suas crt icas e sugestes. Sua opinio muito importante para o aprimoramento de nossas edies: [email protected] Estamos espera do seu e-mai l . Sobre os Direitos Autorais: Fazemos o possvel para cert i f icarmo-nos de que os materiais presentes no acervo so de domnio pbl ico (70 anos aps a morte do autor) ou de autoria do t itular. Caso contrrio, s publ icamos material aps a obteno de autorizao dos proprietrios dos direitos autorais. Se algum suspeitar que algum material do acervo no obedea a uma destas duas condies, pedimos: por favor, avise-nos pelo e-mail: [email protected] para que possamos providenciar a regularizao ou a ret irada imediata do material do site.
www.virtualbooks.com.br
3
Sonhos Lcidos A Experincia Onrica Consciente
Viagens da Conscincia ao Mundo dos
Sonhos
Cleber Monteiro MunizCleber Monteiro MunizCleber Monteiro MunizCleber Monteiro Muniz
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA COGEAE
So Paulo
2001
4 PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA
COGEAE
A Experincia Onrica Consciente
Viagens da Conscincia ao Mundo dos Sonhos
Cleber Monte i ro Muniz
Orientadora: Profa Dra Noely Montes Moraes
Monografia apresentada como exigncia parcial
para obteno do ttulo de Especialista
em Abordagem Junguiana
So Paulo 2001
5 Para refletir:
At agora tens pensado que teus cinco sentidos te informam sobre o mundo exterior. No assim, no h tal mundo exterior, nem h tal mundo interior. Estes so ilusrios conceitos que no podem penetrar mais alm das formas. O Real o que no forma, e sendo a Vida, tudo quanto .
Observa que o arco e as f lechas no apontam em uma mesma
direo, seno em duas simultneas. Entender e viver esta simultaneidade a primeira rebelio da mente, rebelio que terminar pelo despertar do todo.
E se refletir um pouco no que trata de expressar esta
simultaneidade, de pronto percebers tambm que no s teu corpo, seno aquele que vive em teu corpo, que anima teu corpo e que por falta de melhor expresso, aqui chamo de Deus-ntimo invisvel.
Com teus cinco sentidos, atributos do teu eu-pessoal, do eu-forma,
no te dado a penetrar mais alm da superfcie das formas. Quando sejas conscientes de que teu Deus-ntimo quem usa teus cinco sentidos, te ser dado a penetrar no signif icado, na Essncia, no Esprito de todas as coisas, que tambm Deus-ntimo.
(Trecho de uma carta recebida por Armando Cosani e
constante em seu livro O Vo da Serpente Emplumada)
6
Agradecimentos - A Snia Regina Dias dos Santos Muniz (minha amada imortal) e a Gabriela sis dos Santos Muniz, os dois maiores amores da minha vida que sempre me compreenderam e tiveram infinita pacincia comigo - Aos meus pais, irmos, familiares: Rubens de Lara Muniz (in memorian), Maria Dalzimar Monteiro, Eliana Monteiro Muniz, Srgio Monteiro Muniz, minhas avs Alice e Eudete, meus primos e tios (tantos!) - Aos meus amigos: Dnei Courel & Vera; Andrea, Paulinho, Vivi, Lilian & Dona Vanja; Prophetic Age; Gugu, John Crazy, Hilton, Tucano e Mendigo; Roberto, Cristiano Claudino & Hosana (in memorian); Henrique, Luzia, Ana Regina Gallo & Emerson; Roseli, Mauro, Luizo, Edson, Renata, Maria Lcia, Silmara, C. S. Brambilla, Marizete, Alessandra, Deise & Simone; Gilberto & Mrcia; Teresa & Daniel Marx; Sueli, Andressa, Daniel Caldeira e tantos outros que levariam muitos volumes para serem mencionados - professora Noely Montes Moraes, que me orientou neste trabalho - Aos professores do curso de especializao em Abordagem Junguiana que comigo compartilharam seus conhecimentos de psicologia analtica: Durval, Helosa e M Ruth - Aos colegas: Ivelise, Dbora, Fernanda, Dado, Francisco, Pedro, Vernica e s Elaines (Soria e Rocha) - A Wellington Zangari, Ftima Regina Machado e o grupo Interpsi da PUC. - A todos os grandes mestres acadmicos e extra-acadmicos que desbravaram os caminhos para o mundo da alma
7
Este trabalho dedicado a todos aqueles que anelam
conhecer a realidade dos mundos interiores.
( i ) M U N I Z , C l e b e r M o n t e i r o
(ii) A Experincia Onrica Consciente: Viagens da Conscincia ao Mundo dos Sonhos
O r i e n t a d o r a :
Profa Dra Noely Montes Moraes
P a l a v r a s c h a v e : sonhos conscincia inconsciente mundo imaginal introspeco
R e s u m o A l g u m a s p e s s o a s d e s p e r t a m d e n t r o d o s s o n h o s e c o m p r e e n d e m q u e s e u s c o r p o s f s i c o s d o r m e m , d e s f a l e c i d o s n a s c a m a s . E s t e u m e s t u d o d e t a i s c a s o s , d o s b e n e f c i o s e d a s p o s s i b i l i d a d e s d e e x p l o r a o q u e n o s a b r e m . N e s t a o b r a , o m u n d o o n r i c o a b o r d a d o c o m o f o r m a p a r t i c u l a r d e r e a l i d a d e , c o m o r e a l s u a p r p r i a m a n e i r a . u m a p o r o p s q u i c a d o m u n d o r e a l . N e l a , n o s e c o n c e b e a r e a l i d a d e c o m o l i m i t a d a a o m u n d o e x t e r i o r n e m o m u n d o i m a g i n a l c o m o i l u s r i o . A f u n o o n r i c a , a l i m i t a o c o g n i t i v a a r e s p e i t o d o s s o n h o s p o r p a r t e d o h o m e m o c i d e n t a l c o n t e m p o r n e o , a s e s t r a t g i a s p a r a o b t e n o d e e x p e r i n c i a s o n r i c a s c o n s c i e n t e s e o s e f e i t o s r e s u l t a n t e s d a s m e s m a s f o r a m a b o r d a d o s t e n d o e m v i s t a a c o m p r e e n s o d o o b j e t o . A o f i n a l , h t r s r e l a t o s d e e x p e r i n c i a s d e s s e t i p o . E s p e r o t e r c o n t r i b u d o , a i n d a q u e e m p e q u e n s s i m o g r a u , p a r a a a m p l i a o d o s h o r i z o n t e s h u m a n o s . D e s e j o q u e e s t a c o n t r i b u i o , a i n d a q u e m o d e s t a , s e j a v e r d a d e i r a e , p o r i s s o m e s m o , v l i d a .
8 ndice:
Introduo
1.A realidade do mundo dos sonhos nos tempos antigos e hoje
2.A funo dos sonhos
3.O estado no-usual da conscincia extra-vgil
4.A modalidade lcida de sonhar
4.1.O que so sonhos lcidos
4.2.Benefcios proporcionados
por experincias onricas conscientes
4.3.A prtica do despertar da
conscincia intra-onrica
5.Metodologia
6.Relatos de experincias onricas conscientes
Consideraes f inais
Bibliograf ia
9 Introduo
H ( . . . ) g r a n d e r i q u e z a e s p e r a
d a s p e s s o a s q u e s o p e r s e v e r a n t e s e q u e
p e r s i s t e m e x p l o r a n d o a s d i m e n s e s e a s
p r o f u n d i d a d e s d a p r p r i a a l m a .
( S a n f o r d )
O tema desta monograf ia conscincia intra-onrica e se relaciona com experincias onricas conscientes, s quais so tambm
denominadas sonhos lcidos e correspondem a viagens conscientes do ego ao mundo dos sonhos, um mundo de imaginao no interior do
homem. Optei pela adoo do pref ixo intra para designar especif icamente uma conscincia atuante no interior do prprio sonho e no durante a vigl ia. Desde a adolescncia, gosto muito de ler e de investigar
empiricamente o assunto.
Quando criana, eu gostava muito de lutar. Bruce Lee era, para
mim, o heri mais digno de admirao e no qual eu me espelhava. Aos
treze anos, t ive um sonho no qual um mestre me ensinava um golpe de
artes marciais cuja possibil idade de existir eu nunca havia cogitado. O
golpe, em si, no era muito efetivo, em situao de combate real, mas o
sonho em que surgiu me chamou a ateno por ter me instrudo sobre
algo que conscientemente ignorava. Alm do mais, havia uma falha
tcnica no movimento de contra-ataque ensinado que no pude suprir.
Comentei tal fato com meu irmo menor e ento subitamente t ivemos um
insight: o que poderia ser feito se, dentro do sonho que tive, eu me desse
conta de que estava sonhando? Poderia perguntar ao prprio mestre
onrico a respeito da falha e ele talvez pudesse me ensinar a super-la.
10 Cogitamos, ainda, a possibil idade de realizarmos durante o sonho os
desejos mais impossveis. Desde ento o tema me chama ateno.
Normalmente, quando uma pessoa dorme e sonha, no se d conta,
naqueles exatos momentos em o corpo est dormindo, de que est
sonhando. Em tais casos, as reaes do ego ante as cenas que presencia
sugerem que no compreende que est em um mundo de imagens e
sonhos desprovido de carter f sico. Quando se depara com um leo
ameaador, por exemplo, tende a fugir ou f icar aterrorizado. Quando a
imagem presenciada a de um assassino armado e perigoso, o ego pode
tentar se esconder com medo ou buscar refgio em algum ponto da cena
onrica que lhe parea seguro. So fatos que assinalam a ausncia de
discernimento, por parte do sonhador, de que est interagindo com cenas
e elementos interiores pois, se houvesse tal compreenso, possivelmente
a pessoa no se aterrorizaria ante as feras e assassinos. Entenderia que
estes no podem causar ferimentos f sicos, pelo menos no sentido literal
da palavra. A fuga, via de regra, se deve ao medo de sofrer danos ao ser
despedaado por dentes de lees, esfaqueado, perfurado por uma bala
ou lana, sangrar e at morrer. O teor deste medo (de sofrer leso fsica)
indica que o signif icado conferido s imagens visualizadas no instante do
sonho o de algo tridimensional. Caso contrrio, no haveria o medo de
que o corpo fosse prejudicado. Quem compreende que est sonhando
sabe que no est f isicamente presente cena que v.
A fuga de elementos onricos demonstra que o sonhador
possivelmente os teme, os considera perigosos e deles se protege ou
distancia. Se no os temesse, os enfrentaria e poderia at interagir de
com os contedos internos uma forma nova, transcendendo os padres
vgeis de contato com a psique.
11 Outro indicador do desconhecimento de estarmos oniricamente
presentes s cenas noturnas a indiferena que apresentamos
subverso dos nossos princpios lgicos usuais de realidade por certas
combinaes de acontecimentos. H acontecimentos que ultrapassam o
limite do possvel no mundo tridimensional e com os quais s vezes
sonhamos: cavalos falantes, cadveres que gritam etc. Ficamos, muitas
vezes, indiferentes ao fato desse contedo ser impossvel para o mundo
da vigl ia e com isso seu carter fantstico no percebido. Em geral,
no reagimos com estranheza ao carter pouco usual de algumas cenas
onricas. As imagens representadas em alguns quadros de Salvador Dali
no so por certo muito comuns no mundo fsico... assim como cachorros
falantes e esqueletos que tocam violino. Mas no mundo dos sonhos tudo
possvel e aquilo que aqui seria um acontecimento impossvel, l um
indicador inequvoco de que estamos em uma dimenso fantstica.
Mesmo assim, quase nunca nos damos conta da natureza onrica de uma
cena absurda quando a estamos experimentando, a despeito do fato de
que o inconsciente nos envia sinais indicadores disso, como ocorreu em
um sonho relatado por Jung (1963, p.153):
De repente um pssaro branco baixou; era uma gaivota pequena ou
uma pomba. Pousou graciosamente na mesa, perto de ns; f iz um sinal
s crianas para que no se movessem a fim de no assustar o belo
pssaro branco. No mesmo instante a pomba transformou-se numa menina de oito anos, de cabelos de um louro dourado. (grifo meu)
A transformao da pomba em garota um indicador do carter
onrico da cena relatada pois isso jamais se verif icaria nesta realidade
externa. At onde saibamos, aves no se transformam em garotas, no
sentido literal da expresso. Por isso podemos af irmar que a
transformao denuncia para o ego o carter interno do acontecimento
12 presenciado. Do mesmo modo, Filemon, a entidade com quem Jung
conversava em sonhos (idem), no era uma f igura que se pudesse
encontrar em qualquer rua do mundo fsico pois era um velho com
chifres de touro e possua asas semelhantes s do martim pescador,
com suas cores caractersticas. (p. 162). No se v pessoas assim neste
mundo.
A coerncia e a ordem de acontecimentos s quais o ego est
normalmente acostumado no mundo exterior so muitas vezes diferentes
e at incompatveis com a forma pela qual se organizam nos sonhos,
tornando-os incompreensveis se nos limitarmos a tom-los pela via
exclusivamente intelectual. A linguagem onrica muitas vezes apresenta-
se ilgica e desordenada, com representaes fantsticas, inacessveis a
uma compreenso puramente racional. (Farias, 1991)
As imagens que nos chegam noite muitas vezes apresentam uma
lgica pouco convencional. Podemos ver vacas voadoras, elefantes
arborcolas, nossa Anima na forma de uma fada ou de uma bruxa com
trs cabeas, a f igura arquetpica do puer ou do senex apresentadas sob
formas estranhas ao nosso estado de vigl ia e, mesmo assim,
interagirmos com tais elementos interiores como se fossem exteriores e
pertencessem ao mundo fsico por acreditarmos que o sejam. Raramente
percebemos que estamos em outro mundo. No atentamos para o fato de
que certas cenas absurdas para o mundo exterior no o so para o
mundo interno e que as mesmas podem estar nos indicando, naqueles
precisos instantes em que dormimos e sonhamos, o lado da existncia em
que nos encontramos. Considerando que o inconsciente sempre parece
apontar em alguma direo, o sentido das cenas i lgicas (para o mundo
fsico) que elabora poderia ser o de despertar a conscincia dentro dos
sonhos. Para Jung (1963), o inconsciente denuncia processos e nos
13 coloca certas questes que devem, na medida do possvel, ser alvo de
tentativas sinceras de compreenso:
(...) se uma idia se oferece a mim (...) - por exemplo, no decorrer
dos sonhos e nas tradies mticas - devo ento conceder-lhe ateno:
devo mesmo ter bastante audcia para edif icar uma concepo a seu
respeito, mesmo que permanea para sempre como uma hiptese
impossvel de ser verif icada. (p. 262)
Devemos prestar ateno s idias que nos so oferecidas pela via
onrica e construir concepes a respeito. No devemos nos evadir,
fazendo de conta que no existem. o caso das cenas impossveis para
o mundo fsico: surgem em nosso universo imaginal noite, durante as
horas do sono, nos sugerindo a idia de que estamos em um lado
diferente de nossa vida. E a ausncia da compreenso consciente de que
estamos sonhando quando presenciamos tais cenas uma questo
decorrente dessa mesma idia. Trata-se de um problema que nos posto
pelo inconsciente: como podemos estar diante de acontecimentos
absurdos para o mundo fsico, apenas possveis em sonhos, e no nos
darmos conta de sua natureza fantstica?
Mas o discernimento nem sempre est ausente. Conheci pessoas
que af irmaram saber, algumas vezes, que sonhavam enquanto o seu
corpo dormia. Disseram ter sonhado conscientemente de vez em quando
e garantiram que, em certos momentos, sua conscincia f icava
acordada dentro do sonho, tendo o discernimento do que se passava,
no sentido em que aqui tratamos. Me comunicaram que se deslocavam
atravs das cenas onricas mantendo este estado particular de lucidez.
Encarei o fato como um fenmeno psquico humano natural que valia a
pena ser estudado.
14
A referncia atividade intra-onrica consciente aguou minha
curiosidade a respeito do assunto. O que exatamente me intrigou foi a
possibil idade de desenvolvermos uma modalidade diferente de
experincia direta com os contedos ctnicos. Senti muita vontade de
descobrir se isso realmente existia e formulei a seguinte pergunta: Que
modif icaes ocorrem nos sonhos de quem sabe que est sonhando? H
alguma modif icao no contato entre a conscincia e os contedos
inconscientes nos instantes em que tal lucidez ocorre? Que efeitos
imediatos o discernimento tem sobre o desenrolar das cenas interiores?
O teor das vivncias noturnas de pessoas que af irmavam ter sonhos
lcidos poderia fornecer respostas para as questes acima. Anotaes e
relatos de vivncias durante o sonho e durante a imaginao ativa
poderiam ajudar na abordagem do tema e fornecer informaes
importantes. Util izei-os como recursos para investigar a forma de contato
que ocorria em casos assim. Ento, alguns aspectos da natureza do
contato foram revelados pela anlise do contedo dos relatos. A
psicologia analt ica forneceu instrumentos conceituais adequados para a
pesquisa: conscincia, inconsciente, sombra, ego, complexo, imagem,
smbolo, anima/us, arqutipo. Esses elementos se apresentaram nos
materiais estudados sob formas ou combinaes de formas que no
existiam no mundo exterior
Os sonhos nos mostram o que se passa nas pores subterrneas
da psique. Esta lt ima corresponde a um mundo real que apresenta
mistrios a serem desvendados. O mundo dos sonhos nos apresenta
paisagens imaginais nas quais identif icamos pessoas, condies
atmosfricas, luminosidade, fauna, configuraes geomorfolgicas,
coberturas vegetais, diversos graus de urbanizao e uma inf inidade de
15 outros elementos. Embora contenham diferenas em relao a seus
correspondentes exteriores no que se refere forma como se processam
e se relacionam, os elementos onricos so reais sua prpria maneira,
isto , enquanto imagens que existem dentro de ns. Paralelamente
realidade externa, h uma realidade interna cujo funcionamento
diferente por ser fantstico Jung (apud Saiani, 2000):
Quando voc observa o mundo, v gente, v casas, v o cu, v
objetos tangveis. Mas quando voc se observa interiormente, v imagens
animadas, um mundo de imagens que so, em geral, conhecidas como
fantasias. Entretanto, essas fantasias so fatos. um fato que um
homem tinha esta ou aquela fantasia, uma fantasia to tangvel que,
quando um homem tem uma certa fantasia, um outro homem pode perder
a vida ou uma ponte pode ser construda. Todas essas coisas foram
fantasias... Convm no esquecer isto: a fantasia no o nada. (p.34, grifo meu)
As fantasias precisam ser abordadas como fenmenos reais pois
isso o que so. Existem verdadeiramente dentro de ns, porm sua
maneira. Uma fantasia real a seu modo e este modo diverso do modo pelo qual a realidade exterior existe. Assim, h duas formas de
existir como realidade: externa e a interna. As fantasias existem sob a
segunda forma. A psique inconsciente possui tanta realidade quanto
corpos celestes distantes e concretos mas inobservveis diretamente:
A existncia de uma psique inconsciente (...) to plausvel,
poderemos dizer, quanto a de um planeta at agora no descoberto, cuja
presena se deduz pelos desvios de alguma rbita planetria conhecida.
Infelizmente, falta-nos o auxlio de um telescpio que certif ique sua
existncia (Jung apud Saiani, p.48)
16
Talvez as viagens conscientes ao mundo dos sonhos pudessem ser
o caminho para a construo desse telescpio... As experincias com o
mundo dos arqutipos so experincias humanas que precisam ser
acolhidas e compreendidas na medida do possvel. papel da cincia
investigar fenmenos sem preconceito, inclusive os de tipo onrico. Suas
cenas expressam acontecimentos que no so perceptveis ao ego
durante o estado normal de vigl ia. Vemos, desta maneira, que estar em
um sonho estar nas regies sombrias da nossa prpria existncia, no
sentido de que sombra a ausncia da luz da conscincia tal como a
conhecemos. O ego sonhador que compreende que est inserido em outra
dimenso da sua vida nos mesmos instantes em que o corpo dorme, tem
diante de si uma possibil idade nova de obteno de conhecimento: o
contato direto com os complexos nos instantes em que se personif icam e
se manifestam oniricamente na forma de pessoas, animais, elementos
naturais etc. Abre-se, assim, um leque de possveis experincias
conscientes e no usuais em torno do qual surgiu a indagao:
Poderia o sonho lcido fornecer algo diferente e novo, um
conhecimento interior adicional ao que se tem pela via comum e que lhe
completasse?
Na modalidade usual de sonho, a personif icao onrica dos
complexos e a abordagem consciente dos mesmos se do em momentos
diferentes, so separadas por um lapso de tempo: contatamos as zonas
profundas noite sem a conscincia de o estarmos fazendo e apenas
aps o despertar, pela manh ou quando o sono termina, nos damos
conta de termos estado no outro lado da fronteira entre os dois mundos.
Geralmente, abordamos conscientemente um contedo psquico apenas
aps o decorrer de sua apario sob forma onrica, usando para isso os
17 recursos da anotao e da gravao a partir das lembranas que
preservamos. Isso muito diferente de estar consciente dentro do prprio
sonho.
A f inalidade desta pesquisa foi auxil iar a compreender como se
processa o contato do ego com contedos psquicos subterrneos no
estado particular de lucidez intra-onrica. Parecia haver um caminho que
nos conduzisse a um modo muito direto de interao com elementos do
mundo interior e que talvez nos proporcionasse novos conhecimentos a
respeito do que se passa nas profundidades da alma, viabil izando um
meio de explorao interna diverso do normalmente uti l izado e abrindo
portas na via do auto-conhecimento. Tambm cogitei a possibil idade de
tentar abordar o mundo dos sonhos de maneira similar dos navegantes
e exploradores de todos os tempos: sondando seus vales, mares,
montanhas e habitantes, descobrindo o que ocultam. Considerei
importante penetrar em tal campo porque a investigao poderia
demonstrar, ou no, a existncia de uma via alternativa de contato. O
sonhador que fosse capaz de discernir que estivesse sonhando talvez
pudesse, sem ter que deixar o sonho, interagir com os elementos
psquicos de modo mais consciente do que se no o soubesse.
Considerei que, se a modalidade no-usual de interao direta com
os elementos subterrneos da psique atravs dos sonhos lcidos fosse
constatada, um novo horizonte poderia se abrir para aqueles que
quisessem conhecer a si mesmos: o de viajante onrico, explorador das
paragens interiores no sentido literal do termo. As viagens poderiam ser
fonte de emoes novas e auto-conhecimento. Eis uma das possveis
uti l idades da pesquisa.
18 O trabalho investigatrio desta monograf ia foi o de ajudar a
elucidar este ponto. Para tanto, analisei relatos de pessoas que
garantiram ter tais lampejos particulares de lucidez e tentei conhecer a
natureza dos sonhos que tinham.
1. A realidade do mundo dos sonhos nos tempos antigos e hoje
I w a s b u t a t r a v e l e r f l o a t i n g
e n d l e s s t h r o u g h t h e s e a o n t h e o t h e r s i d e
o f k n o w l e d g e t h r o u g h t h e p l i a n c y o f
d r e a m .
( S o l i t u d e A e t u r n u s )
Nos tempos antigos, os sonhos eram considerados como a
expresso de um mundo verdadeiro e diferente deste mundo vgil em que
vivemos. O lado espiritual da vida era visto como importante e real, ao
contrrio do que ocorre hoje. As vises onricas eram tomadas como o
contato do homem com a dimenso desconhecida de sua existncia.
Disso decorria a grande importncia atribuda aos sonhos nas culturas
antigas e confirmada por Sanford (1988) ao abordar a questo da
depreciao do onrico nos dias atuais:
(...) enquanto nosso tempo ignora e despreza o assunto dos
sonhos, nos tempos antigos eles eram muito mais valorizados. Tanto
quanto conheo, no existe nenhuma cultura antiga na qual os sonhos
no fossem vistos como extremamente importantes. (p.12)
19 Ao contrrio do que se v na cultura moderna, em que no se
presta ateno cuidadosa aos sonhos e se os considera desprezveis, o
homem antigo atribua importncia extrema s experincias onricas.
Essa valorizao demonstra que eram entendidos como portadores de
alguma forma de realidade pois do contrrio no seriam tomados em
tamanha considerao. No se d importncia ao que no existe. At
mesmo uma mentira ou um boato precisam existir, ainda que seja sob a
forma de uma idia vaga na cabea de algum, para que se d a eles
alguma importncia.
Os comportamentos irracionais do homem, presentes ainda no
mundo de hoje, seriam, para os primitivos, sinais da existncia de uma
realidade espiritual que envolveria foras que os ultrapassavam. Tais
foras, incompreensveis, moveriam os seres humanos e os arrastariam a
comportamentos subversores do controle consciente, sendo, alm disso,
parte de um universo invisvel e poderoso mas acessvel por meio dos
sonhos, nos quais tambm irromperiam. O mundo espiritual manifestado
em sonhos corresponderia a uma forma especf ica de realidade que seria
sinalizada pelo comportamento humano irracional. Haveria l igao entre o
ato de nos comportarmos como se estivssemos possessos e os sonhos
pois um seria sinal do outro:
O comportamento humano no racional e a humanidade se
comporta em todo o mundo como se fosse possessa. Para o homem
primitivo tudo isso era sinal bvio da realidade do mundo espiritual que lhe aparecia nos sonhos. (...) Persistimos em nosso materialismo racionalista, sob a iluso de que somos racionais e os outros no. Se h
distrbios em nossos sentimentos e em nossa afetividade, atribumos a
causa ao que os outros nos fazem e continuamos pensando que s tem sentido o que nos parece lgico e racional, que s real o que vemos, ouvimos, cheiramos, tocamos e provamos. Os sonhos tem
20 sentido, mas um sentido que no lgico. So muito reais, mas sua realidade no apreendida por nenhum dos sentidos do nosso corpo. (idem, p. 14, grifos meus)
Nos dias atuais, acreditamos que aquilo que no compreendemos
no existe. Segundo essa forma de pensar, a existncia no possuiria um
aspecto desconhecido, um lado no entendido; o incompreensvel seria
inexistente. Levada ao extremo, tal idia nos leva a crer que sabemos
tudo, que no h mistrios. Trata-se de uma violenta inf lao egica. Em
decorrncia dessa inf lao, rechaamos o mundo dos sonhos enquanto
modalidade especial de realidade por no compreend-lo. Nosso
ceticismo arbitrrio no nos permite aceitar a existncia daquilo que no
conseguimos compreender atravs dos cinco sentidos, os nicos
instrumentos que sabemos usar cognitivamente. Ignoramos que o
problema est em ns e no no mundo onrico e que temos uma
conscincia adormecida e medocre que nos impede de experimentar
outras realidades. No colocamos ateno sincera na limitao dos
nossos sentidos usuais. No percebemos os sonhos diretamente pelos
rgos sensoriais externos e, por tal razo, pensamos que no existem,
nos esquecendo de que a realidade possui nveis ou facetas usualmente
no-sensoriais. Em tais condies, tudo se passa, para ns, como se o
usualmente no-sensorial fosse o nada. Se isso fosse verdade, no
haveria um espectro contendo sons inaudveis e feixes luminosos
invisveis ao olho nu, detectveis apenas com o uso de equipamentos
modernos.
Nem mesmo a religio conseguiu ampliar nossa conscincia na
direo de captar mais diretamente as realidades internas, apesar de
aparentemente se posicionar contra o arbitrrio ceticismo reinante. A
igreja (...) j poderia nos ter resgatado dessa fi losofia materialista e
21 arrogante, se ela mesma no tivesse renegado suas prprias tradies
e, como tudo o mais, sucumbido ao materialismo racionalista dos nossos
dias.(...) Ao enfatizar a vida da instituio mais do que a da alma, deixou
de lado os sonhos.(...) Foi o que minou a base da vida espiritual da
igreja, expondo-a ao mesmo materialismo e racionalismo que ela
combatia e que se estendeu pelo mundo inteiro. A igreja preferiu ignorar
o fato de que a rejeio aos sonhos ia contra a viso contida na bblia e
no cristianismo primitivo. (ibidem, p.14).
O signif icado que o mundo dos sonhos possui para os religiosos de
hoje seria completamente estranho s comunidades crists do sculo I
Ao recha-lo, a igreja teve suas bases espirituais minadas. A vitalidade
espiritual perdeu seu alicerce.
Certos sonhos que servem de fundamento s experincias religiosas
possuem impresses de realidade to impactantes que chegam ao ponto
de aterrorizar o sonhador (Sanford, 1988). Eles (..) parecem carregados,
de modo especial, com energia psquica. So os sonhos chamados
numinosos. A palavra vem do latim numen, que signif ica a divindade ou
a fora espiritual atuante. Dizemos que experimentamos algo numinoso
quando isso parece nos levar a participar da natureza de uma realidade espiritual diferente , que existe para alm de nossa natureza pessoal. (...) A santidade de Deus a prpria numinosidade. [Rudolf ]
Otto enfatiza que, diante do Deus de Israel, o homem sente temor,
admirao, horror, enfim, sente o ser prprio de criatura. A numinosidade
constitui a matria-prima da experincia religiosa. (pp. 33-34, grifo meu).
Experincias onricas numinosas nos do a sensao de
participarmos de uma realidade transpessoal. Sentimos estar em contato
com algo verdadeiro que est alm de ns mesmos e nos ultrapassa.
22 Obviamente, a experincia no provocaria terror se seu contedo no
fosse tomado como real.
Segundo a Bblia, a realidade transcendente se revela ao homem
durante as horas do sono, embora ele no perceba:
(...)Deus fala de um modo, sim, de dois modos mas o homem no
atenta para isso.
Em sonho ou em viso de noite, quando cai o sono profundo sobre os homens, quando adormecem na cama , ento lhes abre os ouvidos e lhes sela a sua instruo, para apartar o homem do seu
desgnio e l ivr-lo da soberba; para guardar a sua alma da cova e a sua
vida de passar pela espada. (J 33. 14-18, grifo meu)
Deus instrui o homem dentro do mundo onrico e o torna receptivo
Sua instruo. O protege e ajuda a evitar a morte e a espada do inimigo.
Isso no seria possvel se o mundo dos sonhos fosse tomado como irreal.
Na autobiograf ia do f i lsofo e telogo persa do sculo XI, Al-
Ghazzali (apud James, 1995), a realidade dos sonhos chega a ser vista
como a de um estado similar ao de Deus e que fornece o dom da
profecia. Al Ghazzali considerava que:
Deus aproximou o profetismo dos homens ao dar-lhes um estado
anlogo a Ele em seus caracteres principais. Esse estado o sono. Se disssseis a um homem sem nenhuma experincia com um fenmeno
dessa natureza que existem pessoas capazes, em dados momentos, de desmaiar de modo que paream mortas e que [nos sonhos] ainda percebam coisas que esto ocultas, ele o negaria [e exporia suas
23 razes para isso]. No obstante, suas alegaes seriam refutadas pela
experincia real. (p. 253)
Segundo Harnisch (1999), os sonhos, enquanto acontecimentos
pertencentes a uma realidade paralela vgil, eram levados a srio pelos
ndios da Amrica do Norte. Os Sioux acreditavam que o mundo fsico era
apenas uma sombra do onrico, o qual chamavam de mundo real, como
vemos na histria de Cavalo Doido (Brown, 1987):
Desde o tempo da juventude, Cavalo Doido soubera que o mundo
onde viviam os homens era apenas uma sombra do mundo real. Para
chegar ao mundo real t inha que sonhar e, quando estava no mundo real,
tudo parecia f lutuar ou danar. No seu mundo real, seu cavalo danava
como se estivesse furioso ou doido e por isso que se chamou Cavalo
Doido. Aprendera que, se sonhasse consigo no mundo real antes de ir
para uma luta, poderia resistir a qualquer coisa. (p.210)
Segundo a histria, foi por meio do conhecimento adquirido em
sonhos que Cavalo Doido venceu sua maior batalha.
Para os antigos, o mundo dos sonhos apresentava conexes com o
mundo externo. Uma conexo de tal natureza pode ser encontrada em um
relato de Enoch, infelizmente depreciado pela igreja e pouco divulgado, a
respeito dos momentos que antecederam sua viagem atravs dos sete
mundos celestes:
24 No primeiro dia do primeiro ms, estava eu sozinho em minha
casa descansando no meu leito, quando adormeci. E quando estava adormecido, uma grande tristeza tomou conta do meu corao e chorei durante o sono, e no podia entender que tristeza
era aquela ou o que iria acontecer-me.
E ento me apareceram dois homens, extraordinariamente grandes,
como eu nunca vira antes na Terra; suas faces resplandeciam como o sol,
seus olhos eram como uma chama e de seus lbios saa um canto e um
fogo variados, de cor violeta na aparncia; suas asas eram mais
brilhantes do que o ouro, suas mos mais brancas do que a neve.
Eles estavam em p, na cabeceira do meu leito e puseram-se a
chamar-me pelo nome.
Acordei e vi claramente aqueles dois homens, de p, na minha
frente.
(O l ivro dos Segredos de Enoch 1: 4-8)
Os homens que Enoch viu em sonho estavam na cabeceira de sua
cama. Ao acordar, ele diz ter visto os mesmos homens sua frente. De
acordo com o relato, parece haver ocorrido uma sincronicidade: ele
sonhou com algo e logo em seguida vivenciou a mesma cena no mundo
externo. Os mesmos homens vistos por Enoch durante o sonho eram os
que estavam em p prximo sua cama quando ele acordou.
O contato com o mundo espiritual na ausncia da vigl ia tambm
pode ser encontrado em uma revelao de Isaas. O profeta teve uma
viso durante a qual perdeu os sentidos externos, se manteve em silncio
e foi dado como morto pelos que o observavam:
E enquanto Isaas falava sob a inspirao do Esprito Santo, e
todos o escutavam no mais profundo silncio, o seu esprito foi elevado
25 acima dele mesmo, e ele no mais enxergou os que estavam em p
diante dele.
E seus olhos permaneciam ainda abertos, mas a sua boca no
proferia mais palavras, e o seu esprito foi levado acima dele mesmo.
Ele, no entanto, vivia ainda; mas estava imerso numa viso celeste.
E o anjo que lhe fora enviado para revelar-lhe esta viso no era
um anjo deste f irmamento, nem um desses anjos gloriosos deste mundo:
era um anjo descido do stimo cu.
E o povo que l se encontrava com a assemblia dos profetas
acreditou que a vida de Isaas t inha-lhe sido subtrada.
E a viso do santo profeta no foi deste mundo aqui, mas uma viso
do mundo misterioso no qual no permitido ao homem penetrar.
(O Livro da Ascenso de Isaas 6: 10-15)
De acordo com o escrito, nos momentos em que os olhos de Isaas
deixaram de captar as pessoas sua frente, houve uma viso de outro
mundo, misterioso e impenetrvel. Seus olhos se mantiveram abertos
durante o contato, um possvel indicador de que seu estado era o de um
sonmbulo ou algo semelhante. O fato do povo reunido julg-lo sem vida
um indicador de que certas funes corporais tpicas de quem est vivo,
como o movimento e a fala, haviam sido suspensas (cadveres
normalmente no se movem). O estado do seu corpo no era vgil uma
vez que no havia conscincia da realidade externa. A mesma ausncia
de conscincia ocorre no sono usual, no sonambulismo, no desmaio, na
meditao, no transe ou no coma: em todos esses estados o
funcionamento das exo-percepes interrompido e o corpo desfalece.
Entendo que a conscincia deixou o mundo exterior e penetrou na
dimenso onrica ou fez algo muito prximo a isso, pois o profeta no
dava sinais de estar acordado. O universo onrico existe paralelamente ao
fsico sob a forma psquica (os mundos interno e externo so simultneos
26 e paralelos) e, em geral, quando se abandona um se vai para o outro.
Em todo caso, o mundo acessado na experincia foi considerado real, o
que favorece a af irmao de que os antigos no depreciavam a realidade
interior.
Como se v, os estados em que a conscincia deixava o corpo
fsico eram a ponte para a realidade espiritual. As experincias que se
tinha durante o sono funcionavam como portas ou portais, atravs dos
quais o homem poderia contatar outras realidades, distintas da usual. O
universo alm dos limites do estado vgil no era considerado irreal e
nem visto como algo vago e ilusrio. O fato de ser tratado como uma
forma de manifestao divina demonstra que era tomado em considerao
seriamente.
A experincia mstica era obtida enquanto se dormia. E nesse
estado se poderia obter a autoridade de quem teve uma revelao de
Deus. Uma autoridade de tal natureza, proporcionada pela experincia
religiosa profunda, pode, segundo Will ian James (1995) chegar a destruir
as bases da formal concepo lgico-racional de realidade pois os (...)
estados msticos, quando bem desenvolvidos (...) quebram a autoridade
da conscincia no mstica ou racionalista, que se baseia apenas no
intelecto e nos sentidos. Mostram que esta no passa de uma espcie de
conscincia. Abrem a possibilidade de outras ordens de verdade nas quais, na medida em que alguma coisa em ns responda vitalmente a
elas, possamos continuar l ivremente a ter f. (p. 263, grifo meu).
Para ele, h vrias formas de conscincia que do acesso a vrios
t ipos de realidades e a religiosa, aquela que se tem nos estados msticos,
seria uma. Deste modo, as experincias religiosas possuiriam um
fundamento real, peculiar ao tipo de conscincia que lhes corresponde, e
27 no falso. Foi o que ocorreu com Enoch e Isaas, que tiveram
experincias religiosas em estado extra-vgil e autnticas sua maneira,
desde um ponto de vista espiritual.
Atualmente, a valorizao dos sonhos parece estar retornando. O
ceticismo arbitrrio, f ixo na dvida unilateral e que busca adaptar os fatos
teoria (crena) e aos mtodos ao invs de adaptar estes lt imos s
evidncias, est retrocedendo e a realidade do mundo onrico sendo
levada em considerao. Sanford (1988) entende que hoje a cincia est
investigando com mais cuidado e seriedade os desafios cognitivos que
lhe so lanados pelos sonhos:
Atualmente, estamos nos aproximando da mudana. Durante o
sculo XX, o sonho volta a se tornar objeto vlido de estudo e
investigao. E temos, por exemplo, as pesquisas srias relativas ao
sono e aos sonhos que comearam a ser feitas depois da Segunda
Guerra Mundial. (p.15)
Compreender a importncia de explorar o mundo dos sonhos ao
invs de esquivar-se ingenuamente dos problemas postos pelo mesmo
ampliar as fronteiras da cincia. tambm aproximar-se mais da viso
de Isaas, Enoch, J, dos povos grafos atuais e das culturas antigas e
pags, recuperando as bases verdadeiramente espirituais do
cristianismo primitivo, descartadas pela igreja .
A idia de um mundo interior real comparti lhada por Saiani (2000)
para quem o pressuposto de que a realidade objetiva e o puramente
subjetivo diferem preconceituoso uma vez que a realidade abrange
eventos f sicos e psquicos. Isso signif ica que existem objetos psquicos
assim como existem objetos f sicos e que nem sempre o psquico
subjetivo.
28
Alm disso, Jung entendia que o eu est contido em um mundo, que
esse mundo era a alma e que seria razovel atribuir-lhe a mesma
validade que se atribui ao mundo emprico uma vez que um to real
quanto o outro. Segundo seu pensamento, a psicologia deveria
reconhecer que o f sico e o espiritual coexistem na psique e que, por
razes epistemolgicas, esse par de opostos foi cindido pelo homem
ocidental (1986).
Dentro do homem h um universo verdadeiro, feito de imaginao,
que se faz notar incessantemente por meio de pensamentos, sentimentos,
recordaes e dos sonhos, quando ento se faz mais espesso e tangvel.
um mundo no qual a cincia est penetrando aos poucos e que
pertence dimenso desconhecida do esprito humano. Ns a chamamos
de inconsciente porque no temos, usualmente, contatos conscientes e diretos com a mesma (Sanford, 1988):
(...) eis uma teoria bsica sobre os sonhos: originam-se em outra dimenso de nossa personalidade a qual, pelo fato de no termos conscincia da mesma, chamada de inconsciente. (p.29, grifo meu)
Alm desta dimenso em que vivemos durante a vigl ia, h outra: a
dimenso do inconsciente. As regies de onde os sonhos provm
parecem ainda ser pouco acessveis investigao cientf ica no nosso
atual estgio de desenvolvimento. Entretanto, a considerao sria dos
mesmos enquanto realidade passvel de estudo livre e os relatos de
pessoas que os experimentam conscientemente podem abrir novas portas
e ajudar a dissipar a ignorncia ainda reinante no campo, alm de ocupar
um espao que de outra forma poderia ser destinado ao charlatanismo e
s mistif icaes irresponsveis.
29 2. A funo dos sonhos
In s t range v is ions and through the
w indows o f dreams we so lemnly gaze beyond
(So l i tude Aeturnus )
Entre as funes dos sonhos, podemos destacar a compensao das carncias da vida consciente e a revelao de contedos ctnicos
individuais, coletivos e transpessoais.
A vida consciente no plena. O ego vgil no permite a expresso
de todas as tendncias arquetpicas. Como no podem ser extintas, as
tendncias excludas se expressam no universo onrico, no qual os
impulsos contrrios aos presentes conscincia so satisfeitos. Nele se
cumprem desejos diametralmente opostos aos conhecidos ou aceitos
(Jung, 1938). O inconsciente compensa a limitao da vida egica
expressando nos sonhos aquilo que no tem chance de expresso na vida
consciente. Os smbolos onricos apontam para partes de ns mesmos
que atuam fora do campo da conscincia.
Segundo Jung (1979), o inconsciente est em constante atividade
na vigl ia ou no sono. Seu trabalho compensatrio no cessa quando
dormimos. O fato de algumas pessoas no se lembrarem do que sonham
no signif ica que o inconsciente f ique inativo durante a noite: h pessoas
que falam dormindo mas no se lembram de terem sonhado. A fala
assinala uma atividade mental cuja ocorrncia desconhecida pelo ego.
O lado obscuro da psique no para de funcionar e de suprir as carncias
no atendidas na vida consciente. So necessidades que fazem parte do
si mesmo e tambm nos pertencem.
30 medida em que estudamos os sonhos, assimilamos contedos
internos antes no expressos por terem sofrido represso para adaptao
scio-cultural ou por nossa vida nunca lhes ter dado o seu lugar devido.
Nem todos os contedos inconscientes foram reprimidos. A represso
pressupe um desenvolvimento prvio, ainda que incipiente, e h
contedos que nem sequer chegaram a se desenvolver.
Esta , ento, uma das funes do sonho: regular o funcionamento
da psique permitindo a expresso daquilo que no encontra espao na
existncia vgil.
Outra funo onrica a revelao dos contedos ctnicos. Jung
(1938) considera que o sonho demonstra o que escondemos. Os
contedos mais secretos so acessados por meio de sua anlise. um
heraldo de lo inconsciente, que nos descubre los secretos ocultos a la
consciencia1 (p. 38).
O caminho do auto-conhecimento onrico. Temos que tri lh-lo se
quisermos descobrir pensamentos, associaes e tendncias
subterrneas que se do sem a participao da conscincia. No mundo
onrico h contedos autnomos, que se movimentam e atuam de modo
independente da nossa vontade, possuindo intencionalidade prpria. Ao
estud-los, estaremos estudando o que se passa nas profundidades de
ns mesmos:
Os sonhos contm imagens e associaes de pensamentos que
no criamos atravs da inteno consciente. Eles aparecem de modo
espontneo, sem a nossa interveno e revelam uma atividade psquica
1 um arauto do inconsciente , que nos descobre segredos ocul tos a conscincia.
31 alheia nossa vontade arbitrria. O sonho , portanto, um produto
natural e altamente objetivo da psique, do qual podemos esperar
indicaes ou pelo menos pistas de certas tendncias bsicas do
processo psquico. Este lt imo, como qualquer outro processo vital, no
consiste numa simples seqncia causal, sendo tambm um processo de
orientao teleolgica. Assim, podemos esperar que os sonhos nos
forneam certos indcios sobre a causalidade objetiva e sobre as
tendncias objetivas, pois so verdadeiros auto-retratos do processo
psquico em curso. (Jung, 1979, p. 7)
O controle das emoes, como o do sistema visceral, de difcil
acesso e percepo. nesse momento que se apresenta a importncia
dos sonhos, como ddiva da natureza a f im de que possamos, atravs
das experincias vivenciadas a cada noite, entrar em contato conosco
mesmos e, desta forma, aprender a l idar com nossas emoes profunda e
obscuramente entranhadas em nosso organismo. (Mendes, 1998, s/p.)
Jung considera que todo sonho possui um sentido, ainda que no o
compreendamos. Mesmo os que nos paream ridculos e
incompreensveis apresentam um direcionamento a ser descoberto
(1938), o qual nos revela o novo.
No sono REM, ocorre uma diminuio das exopercepes
acompanhada pela preservao das endopercepes (Mendes, 1998).
Nesse estado, o mundo interior pode ser percebido apesar da desconexo
sensorial com o meio externo:
Nesse estgio, o indivduo se encontra num ativo estado de
recuperao mental e psicolgica, abrigado por um profundo relaxamento
do tnus muscular e desconectado das informaes sensoriais
32 presentes no meio externo, exceto a audio. Nesse instante, se pode ento mergulhar nos sonhos. Neste estgio vai aflorar um oceano
de emoes e ento pode-se perceber e conscientizar-se do verdadeiro eu, detectando assim os problemas que precisam e podem ser
trabalhados atravs dos sonhos. (s/p, grifo meu)
Sendo o inconsciente um manancial inesgotvel, at onde se saiba,
de dados acumulados ao longo da histria, pode nos informar a respeito
de ns mesmos ou do mundo exterior em que vivemos. fonte de auto-
conhecimento e de conhecimento. H muito para descobrir a respeito de
quem somos e do mundo em que estamos inseridos. Uma possvel via de
acesso ao manancial onrica.
Uma demonstrao de como o inconsciente pode fornecer
informaes por meio de sonhos encontrada na histria de Cavalo
Doido. A vitria na luta contra o general Crook, chamada pelos ndios de
A Batalha em q u e a M o a S a l v o u s e u I r m o , f o i v e n c i d a p o r q u e
e s t e s l a n a r a m m o d e u m a n o v a t t i c a d e g u e r r a ,
d e s c o n h e c i d a a t p a r a o s s o l d a d o s , e o b t i d a p e l o c h e f e d u r a n t e
u m s o n h o ( Brown,1987). A estratgia inesperada confundiu totalmente
Crook e seus homens, dando a vitria aos Sioux. Cavalo Doido sonhou
com a estratgia, a aplicou na batalha e venceu. A importncia dada por
ele ao mundo dos sonhos no o levou a uma fuga do mundo da vigl ia. Ao
contrrio, forneceu-lhe conhecimento adicional e necessrio para a
superao de um problema que envolvia suas obrigaes enquanto chefe
guerreiro e protetor das famlias que aceitavam o seu direcionamento e
autoridade.
Pelo caminho dos sonhos, tri lhamos a senda do auto-conhecimento
e da descoberta do universo interior, ao longo da qual segredos so
33 revelados e a realidade fantstica resignif icada at um nvel religioso
ou mesmo alm dele. Os sonhos so a porta para o inf inito. Nesse
sentido, so o terreno onde a experincia religiosa pode se movimentar
(Hil lman ,1984): O p r o g r e s s i v o c o n t a t o a m i s t o s o c o m o s o n h o p r o m o v e a
r e u n i o d a s p a r t e s s e p a r a d a s d a p s i q u e , o q u e c o n f i g u r a u m
l u g a r h a b i t v e l e d e a m p l a m o v i m e n t a o p a r a a e x p e r i n c i a
r e l i g i o s a . ( p p . 5 8 - 5 9 )
Embora nem toda forma religiosa prestigie o sonho, muitas o
apreciam de modo especial e encontram nele o terreno favorvel para o
desenvolvimento de suas experincias. Isso se deve reunio, pelo
caminho onrico, de pores da psique que antes estavam isoladas. a
reunio do anteriormente isolado que abre espao para experincias de
teor mstico. O crescimento da intimidade com o mundo dos sonhos
permite um contato direto com entes arquetpicos e mitolgicos que o
povoam. Esses entes, ou contedos, no se revelam conscincia
quando o sonho desprezado. Nesse caso permanecem dela apartados.
Assim, uma das funes do sonho dar vazo ao impulso religioso
natural, satisfazendo necessidades de conforto e respeito com relao
existncia de foras que nos ultrapassam e podem, de acordo com a
crena da maior parte das religies, nos proteger, condenar, castigar,
perdoar, salvar e/ou receber antes e depois da morte.
34 3 . O e s t a d o n o - u s u a l d a c o n s c i n c i a e x t r a - v g i l
I b e g i n a g a i n a s t h e w o r l d o u t s i d e e n d s
L o v e S p i r a l s D o w n w a r d s
Estar desperto dentro de um sonho (no sentido literal da expresso)
estar em um estado no usual de conscincia. A modalidade de
discernimento e alerta que se tem durante sonhos lcidos pouco comum
na sociedade em que vivemos, no muito freqente. Para a maioria das
pessoas seria um estado de conscincia alterado, modif icado.
Para alguns estudiosos, o funcionamento consciente usual, aquele
que a maioria das pessoas possui no estado normal de vigl ia, no o
nico existente. o que af irmou Will ian James em uma obra conhecida
por muitos ( apud Capra, 2000):
Nossa conscincia normal do estado de viglia - a conscincia racional, como a denominamos - constitui apenas um tipo especial de conscincia , ao passo que, ao seu redor, e dela afastada por uma pelcula extremamente tnue, encontram-se formas potenciais de
conscincia inteiramente diversas (p. 31, grifo meu).
Alm do funcionamento consciente normal da vigl ia, ou seja,
aquele que se tem quando o corpo fsico est acordado, o ser humano
possuiria, em estado latente, outras modalidades de despertar. Seriam
modalidades de conscincia extra-vgeis, presentes nas horas em que o
homem no estivesse acordado. Obviamente, se no correspondem
conscincia de vigl ia, tudo indica que James se refere a uma conscincia
durante o sono.
35 Experincias conscientes nas quais se ultrapassa o mundo
tridimensional seriam conhecidas pelos msticos do oriente, os quais (...)
parecem estar em condies de atingir estados no-usuais de conscincia
nos quais transcendem o mundo tridimensional da vida cotidiana de modo
a experimentar uma realidade mais elevada, multidimensional. Assim, Aurobindo refere-se a uma mudana sutil, que faz com que a vista veja
numa espcie de quarta dimenso. (Capra, 2000, p. 133, grifo meu).
O mundo tridimensional no seria o nico passvel de
experimentao consciente. Outros nveis dimensionais tambm fariam
parte da realidade e poderiam ser acessados pela conscincia alterada.
Poderamos incluir aqui o mundo onrico pelo fato dele no ser
tridimensional: seus elementos componentes no possuem, desde um
ponto de vista f sico e externo, as caractersticas que chamamos largura,
altura e comprimento. As imagens noturnas no podem ser medidas em
centmetros ou pesadas e, no obstante, so reais pois esto vivas
dentro de ns.
O homem possuiria recursos internos para acessar o que no pode
ser visto, ouvido, tocado e palpado com o corpo fsico pois suas
experincias multidimensionais transcendem o mundo dos sentidos
(idem, p. 228), ou seja, conduzem ao contato com o que est alm do
universo sensorial. As f iguras arquetpicas que surgem em sonhos
possuem formas e, algumas vezes, cores. H uma forma de viso
psquica que nos permite detalhar caractersticas morfolgicas
relacionadas com as imagens sonhadas. Porm, bem sabemos que uma
modalidade de viso no pertencente aos cinco sentidos externos. Os
transcende e, ainda assim, pertence ao ser humano uma vez que est
presente nos relatos onricos.
36 Referindo-se a estados no-usuais de conscincia em culturas
primitivas, antigas e aborgenes, Grof (1998) nos diz que nelas (...)
existe a idia de que esta realidade visvel no a nica existente, h
outras realidades paralelas onde existem espritos, demnios, elementos
arquetpicos ou mitolgicos, entidades encarnadas, animais de poder e
assim por diante. (s/p.)
As referidas culturas no conceberiam como aberrante ou absurda
a idia de que o mundo fantstico , sua maneira, real. Paralelamente
realidade visvel, haveria uma realidade invisvel que poderia ser
acessada conscientemente (atente-se para o fato de que a af irmao do
estudioso com relao a estados de conscincia e no de inconscincia; ele no est tratando de processos que se do sem a
presena da lucidez). Tal realidade corresponderia ao mundo imaginal e
poderia abranger tambm seu aspecto onrico pois seria habitada por
entes arquetpicos fantsticos e mitolgicos, os quais sempre surgem em
sonhos.
Corroborando essa viso, Harnisch (1999) af irmou que os ndios
da Amrica do Norte consideravam os sonhos como vises de uma outra
realidade, que para eles traava um paralelo com o seu mundo desperto. De uma forma parecida compreendiam-se os sonhos na China. Atribua-se-lhes uma elevada qualidade vivencial e estes eram
vivenciados com uma intensidade to extraordinria que as pessoas se
perguntavam: qual ser pois a verdadeira realidade: o sonho ou aquilo
que se vivencia no estado de vigl ia? (p.7, grifo meu)
Nas culturas mencionadas, o universo dos sonhos e o universo vgil
so paralelos. Cada um real sua maneira.
37 Ao empreender uma descida consciente s profundidades do
oceano interior, o homem penetraria em um mundo real, verdadeiramente
existente, embora sob outra forma. Sobre este pormenor, Jung (1984)
escreveu:
muito difcil acreditar que a psique nada representa ou que um
fato imaginrio irreal. A psique s no est onde uma inteligncia
mope a procura. Ela existe, embora no sob uma forma fsica. um
preconceito quase ridculo supor que a existncia s pode ser de
natureza corprea [f sica]. Na realidade, a nica forma de que temos
conhecimento imediato a psquica. Poderamos igualmente dizer que a
existncia fsica pura deduo uma vez que s temos alguma noo da
matria atravs de imagens psquicas, transmitidas pelos sentidos.
(p. 14)
A existncia psquica seria real e vlida como a f sica e talvez at
mais. Conclui-se, por extenso, que adentrar a uma cena onrica
conscientemente adentrar a um mundo feito de imaginao mas nem
por isso menos verdadeiro. A realidade imaginal interna paralela
externa.
Nas j mencionadas culturas antigas e primitivas so (..) criados
espaos para que (...)[as experincias em estados de conscincia no-
usual] possam ser vivenciadas com segurana e mtodos para se
desenvolverem com intensidade. Nesses estados alterados de
conscincia que nascem a rica mitologia e a espiritualidade daqueles
povos. Estados no-usuais de conscincia so uti l izados por culturas
ancestrais para (...) [a realizao de] coisas prticas e corriqueiras tais
como encontrar objetos ou pessoas perdidas ou para localizar rebanhos
de animais a serem caados, inclusive elas desenvolveram cerimnias
38 para aumentar ainda mais a capacidade de modificar a conscincia,
com objetivos bastante prticos. (Grof, 1998, s/p.).
A realidade invisvel seria acessada conscientemente e seu acesso
estaria fortemente ligado ao cotidiano prtico e concreto desses povos,
os quais teriam inclusive aperfeioado ritos para intensif ic-lo e nele
minimizar a exposio a possveis perigos. A conscincia assim alterada
teria uma util idade no mundo tridimensional: caa e localizao de
pessoas perdidas. Ela no serviria a uma fuga da realidade externa mas a
completaria. O universo mtico brotaria de seu seio e por ele os homens
se orientariam.
Entretanto, haveria em nossa cultura uma limitao que a tornaria
avessa a tais experincias e a levaria a tom-las como estranhas:
Ns no apenas patologizamos estas prticas como tambm
proibimos a uti l izao de substncias ou cerimnias que possam levar
mudana de estados da conscincia. Por exemplo, dentro da psiquiatria
saxnica no h uma distino clara entre misticismo e estgios
psicticos. Em geral, esta diferena de viso de mundos entre as
sociedades tradicionais e a nossa sociedade industrial/ocidental
explicada pela superioridade fi losfica da nossa viso l imitada de
mundo. Depois de trabalhar 40 anos nessa rea do conhecimento, minha
opinio sobre isso que esta diferena de viso de mundo tem mais a ver
com a enfermidade e com a ignorncia da cincia ocidental em relao
aos estados no-usuais de conscincia. (idem)
Assim, nossa dif iculdade em lidar com os estados incomuns se
deveriam a bloqueios culturais fortes, relacionados com a possesso
coletiva por complexos de superioridade e que exerceria seus efeitos
39 principalmente sobre a cincia, aliada uma atrof ia ritualstica. A
incapacidade, presente na cincia em moldes eurocntricos, de
diferenciao entre a experincia mstica e os estgios psicticos seria
decorrente desse estado enfermo e da ignorncia ocidental com relao a
formas de conscincia presentes em culturas antigas, primitivas e
orientais e aos meios de se desenvolv-las. A ausncia de espao na
modernidade para o cult ivo prtico e alternativo da conscincia teria
ocasionado uma atrof ia dos seus estados no-usuais em modo no-
patolgico e estabelecido entre ns e outros povos um abismo. Em
virtude desse abismo, no seria possvel a correta comunicao de certas
experincias pois os relatos de teor extra-sensorial (tais como aparies
de entes fantsticos ou viagens a outros mundos) seriam vistos por ns
como manifestao de ignorncia pura e simples. Ao invs de
considerarmos cuidadosamente tais manifestaes desde o mesmo ponto
de vista cultural que as origina, como corresponderia a uma postura
legit imamente cientf ica, imporamos na abordagem das mesmas nossa
viso de mundo, nos esquecendo de que a realidade no se adapta aos
nossos caprichos tericos. Seramos surdos e cegos para certas
experincias psquicas pelo fato de no as enxergarmos tal como so
mas sim como nos parecem. Ao abord-las, veramos nelas apenas os
nossos prprios pontos de vista. A cincia ocidental relutaria em
reconhecer que a espiritualidade algo importante e profundo, (...) parte
da psique humana e no apenas uma questo de falta de educao
cientf ica (ibidem).
Essa confuso a respeito da natureza de certas experincias
conscientes transcendentais preservadas e aperfeioadas em outras
culturas atravs dos sculos se deveria l imitao do alcance do nosso
intelecto:
40 Quando se trabalha com estados no-usuais de conscincia,
comeamos a entender melhor esta confuso e vamos chegar ao que
Jung j havia descoberto h anos: o intelecto parte da psique e esta
csmica, abriga tudo o que existe. No podemos entender, com o
intelecto, como funciona a psique de uma outra pessoa (...). (Grof, 1998,
s/p.)
A abordagem exclusivamente intelectual seria um obstculo que
dif icultaria a compreenso do funcionamento psquico de algum. E,
parece-me, isso sobremaneira vlido no caso desse algum pertencer a
um contexto cultural completamente adverso ao nosso. Por abrigar tudo o
que existe no universo, a psique precisa ser abordada tambm sob
prismas no-intelectuais. Isso no signif ica que o intelecto seja intil mas
parcial. abordagem intelectual, dever-se-ia acrescentar outras que na
sociedade atual no so uti l izadas. Se buscamos a totalidade, no
podemos aderir teimosamente a apenas alguns instrumentos cognitivos.
Entre as abordagens vlidas est a simblica, com sua via analgica que
nos permite conceituar e expressar intelectualmente aquilo que
inacessvel mente racional. A metfora a ponte entre o compreensvel
e o incompreensvel e nos permite a comparao. Uma demonstrao
analgica torna o obscuro menos incompreensvel.
Para Jung (1984) a extroverso excessiva dos dias atuais levaria a
uma negligncia para com os acontecimentos internos, inclusive dentro
da cincia. Nos diz:
o preconceito, muito difundido, contra os sonhos, apenas um dos
sintomas da subestima muito mais grave da alma humana em geral. Ao
magnfico desenvolvimento cientf ico e tcnico de nossa poca,
correspondeu uma assustadora carncia de sabedoria e introspeco.
41 verdade que nossas doutrinas religiosas falam de uma alma imortal,
mas so muito poucas as palavras amveis que dirige psique humana
real; esta iria diretamente para a perdio eterna se no houvesse uma
interveno especial da graa divina. Estes importantes fatores so
responsveis em grande medida embora de forma no exclusiva pela
subestima generalizada da psique humana.
(pp. 18-19)
Embora tivssemos grande desenvolvimento tcnico, teramos
grande atraso introspectivo. Haveria uma averso bem difundida contra
as viagens do ego s vastides profundas do si mesmo e isso decorreria
da ignorncia a respeito da natureza da alma. Nem mesmo as nossas
religies seriam capazes de preencher essa lacuna. Haveria uma
subestima da psique e um preconceito contra os sonhos. Os sonhos
lcidos no seriam, portanto, cult ivados ou vistos com bons olhos em
nossa sociedade.
Entretanto, nos dias atuais a cincia estaria se abrindo para a
possibil idade de se desligar a conscincia dos rgos sensoriais externos
e transp-la para alm dos mesmos, mas essa abertura seria ainda
incipiente (Grof, 1998):
A tanatologia vem estudando casos de cegueira congnita, em que
as pessoas que viveram experincias fora do corpo descrevem o que acontece na sala de operaes ou em outros locais e, quando voltam,
descrevem o que viram, as explicaes so confirmadas, s que quando
retornam ao corpo fsico, continuam cegas como antes. Estas
experincias continuam sendo negadas pela comunidade cientf ica. (s/p,
grifo meu)
42 As pessoas investigadas seriam cegas. No teriam, portanto, o
poder da viso externa mas, durante cirurgias, visualizariam os
acontecimentos da sala de operaes em que estavam e at
acontecimentos fora dela e isso seria passvel de confirmao. As
imagens obtidas sem o recurso dos olhos seriam comparadas s
realidade visvel e haveria uma correspondncia entre ambas: de alguma
maneira os pacientes saberiam o que se passava nas imediaes. O fato
dessa percepo no-usual acontecer em salas de operaes sugere que
a pessoa estaria dormindo ou desmaiada experienciando, provavelmente,
uma modalidade no-usual de sonho.
Algumas pessoas com maior aprimoramento intelectual seriam
especialmente sensveis a ponto de perceberem outras realidades
conscientemente. A experincia que Grof (idem) teve principalmente com
pessoas que tm grande treinamento cientf ico e f i losfico e que tm Q.I. muito desenvolvido, (...)[foi] que estas, quando em trabalho com estados no-usuais de conscincia, entram em contato com experincias
espirituais e msticas. E elas, no podendo negar a realidade espiritual,
comeam a se interessar pelas tradies mstico-religiosas, tanto no
oriente quanto no ocidente. (s/p, grifo meu).
No seriam apenas pessoas pertencentes a culturas grafas ou
atrasadas que experienciariam conscientemente as realidades
paralelas, entre as quais podemos incluir a dimenso onrica. Isso parece
reforar ou sugerir a idia de que o funcionamento consciente que
consideramos no-usual arquetpico e est latente mesmo nas pessoas
ocidentais e intelectuais. Para que ele se desenvolvesse, precisaria ser
contatado e ativado. O aperfeioamento cientf ico-f i losf ico e a
inteligncia no o excluiriam. O que o excluiria seria o preconceito, o qual
resultaria em negligncia e impediriam o seu cult ivo. No obstante, o
43 prprio Grof (ibidem), um cientista que teve formao materialista em
um pas do leste europeu, af irmou transcender conscientemente os
limites do corpo fsico sob efeito do LSD. Referindo-se a uma experincia
feita na clnica em que trabalhava, o estudioso relatou:
Quando estava no ponto mximo do experimento, no ponto mais
intenso do efeito daquela substncia, eles me chamavam, para que se
fizesse a experincia do monitoramento das [minhas] ondas cerebrais.
Deitado com uma luz estetoscpica na minha frente, de repente me senti
como que no meio de uma exploso atmica. Hoje analiso que o que eu
vivi mesmo, naquele momento, foi a luz inicial da minha conscincia, que
foi catapultada para fora do meu corpo... e em um instante eu sa da
clnica, sa de Praga e sa para fora do planeta. Minha conscincia era o
reflexo de tudo que existia no universo. E aumentando a intensidade da
experincia com o aparelho, fui voltando ao meu corpo fsico. (s/p.)
Esta experincia apresenta contedos semelhantes aos de certas
experincias em meditao e de um sonho tido pelo prprio Jung (1963)
no qual ele nos relata ter voado at deixar o planeta Terra e v-lo das
alturas. interessante notar que a experincia de Grof apresenta o
abandono temporrio das percepes sensoriais corporais pela
conscincia, pois do contrrio a mesma no poderia ser lanada para fora
do corpo fsico, da clnica e da capital da antiga Tchecoslovquia. Ser
lanado para fora de algo deix-lo e, portanto, entendo que a
conscincia deixou as funes sensoriais externas do corpo fsico (fato
que, obviamente, no seria possvel sem que este, no decorrer da
experincia, perdesse o estado vgil; caso contrrio no se diria que a
conscincia saiu do corpo).
44 Quando dormimos em situaes comuns, sem recursos qumicos
adicionais, e adentramos s regies onricas, as percepes externas
cessam, nos casos em que no h sonambulismo, do mesmo modo que
na experincia de Grof. Evidenciamos, assim, que o abandono do corpo
fsico pela conscincia um ponto comum s experincias mencionadas.
Quando adormecemos, deixamos de perceber muitas coisas que se
passam conosco: que estamos deitados, mal posicionados, que temos
saliva escorrendo pela boca, que roncamos etc. Provavelmente, ningum
negaria que durante o sono as funes sensoriais externas f icam muito
reduzidas e que na morte elas param. O relato de Grof parece ser um
caso de experincia onrica consciente sob o efeito da droga.
A atuao da conscincia dentro do sonhos e relativamente
desligada dos sentidos corporais pode irromper durante certos pesadelos
(Sanford,1988):
A participao da conscincia num sonho responsvel pelo fato
de as pessoas dizerem s vezes que despertam dos sonhos pela prpria
vontade, especialmente quando se tornam aterrorizadores. s vezes
ouvimos das pessoas: Eu disse para mim mesmo para despertar, e o
fiz. (p. 56)
As pessoas diriam a si mesmas, principalmente durante sonhos
terrveis, que deveriam despertar e por este meio sairiam da cena onrica
indesejvel. Para que o ego chegue ao ponto de diz-lo para si mesmo,
preciso que tenha o discernimento de estar dormindo. Ningum afirmaria
que precisa acordar se no compreendesse que sonha.
A modalidade especial de conscincia seria uma variante da
capacidade de interferir conscientemente no contedo dos sonhos,
45 programando-os previamente. Isso facultaria ao ego a chance de
modif icar sua forma de reagir ao contato com os elementos onricos,
desde que no tentasse impor seus caprichos ao inconsciente (idem). Ao
modif icar as reaes no sonho, a pessoa poderia adquirir experincias
novas:
Uma das variaes do sonhar programado chama-se sonhar com
lucidez. Convida-nos a nos tornarmos despertos no sonho ou, por
outras palavras, a sermos capazes de reconhecer, no sonho, que
estamos sonhando. Dizem que isso nos capacitaria a redirecionar nossos
sonhos. Se conseguirmos faz-lo no sentido que quisermos, ou se formos
capazes de dar ao sonho um final agradvel ou favorvel, no meu modo
de pensar, isto seria uma grande perda (...). Contudo, se esse estado de
vigl ia for uti l izado com o objetivo de termos oportunidade de mudar
nossas reaes no sonho e podermos escolher outras respostas [e no
apenas as mesmas de sempre, aquelas nas quais nos mecanizamos e s
quais estamos apegados] , o assunto j diferente. Nesta hiptese,
teramos uma forma de imaginao atuante, o que seria [um] processo
auxil iar (...)[na interao com os contedos psquicos que esto se
expressando e personif icando durante o sonho]. H grande diferena
entre tentar manipular o inconsciente para adapt-lo nossa fantasia e
alterar as respostas de nosso ego de acordo com o que est acontecendo
em volta, e devemos nos lembrar e aproveitar essa distino. (p.57, grifo
meu)
A lucidez no decorrer do sonho deveria ser aproveitada, isto ,
explorada. Seria um fator auxil iar no processo de auto-conhecimento,
desde que o ego a uti l izasse corretamente ao invs de impor ao sonho os
seus caprichos.
46 No nvel psquico profundo, seria possvel at mesmo transcender
conscientemente o nvel pessoal e experimentar-se como parte da
mitologia dos povos ou confundir-se com a fora criadora da natureza
(Grof, 1998):
Em estado transpessoal voc pode ser qualquer t ipo de
experincia, entre f icar com o ego - a identidade- at o princpio criador.
Podemos nos experienciar como seres mitolgicos ou em nveis
mitolgicos de conscincia - onde o ser humano definido como um campo de possibil idades sem limites. (s/p, grifo meu).
Haveria a possibil idade de nos experimentarmos conscientemente
num nvel mitolgico: sermos unos com os heris lendrios e, ao mesmo
tempo, termos conscincia do teor daquilo que estamos experimentando.
Um nvel mitolgico de conscincia um estado psquico no qual somos
conscientemente uma f igura mitolgica.
Possuiramos vrios nveis conscientes em nosso interior que
poderiam ser conhecidos particularmente pelo homem que olha para
dentro e explora a sua conscincia em seus vrios nveis (Capra, 2000,
p. 227). A existncia de vrios nveis de conscincia dentro do homem e
a possibil idade de acesso aos mesmos signif icaria que no apenas uma
modalidade de conscincia, a do estado normal de vigl ia, seria a
realmente existente em ns mas que haveria outras, conhecidas h muito
tempo pelos orientais. Seus msticos exploraram, atravs dos sculos,
vrios modos de conscincia e as concluses a que chegaram so, com
frequncia, radicalmente diferentes das idias sustentadas no ocidente
(idem, p. 225).
47 Deste modo, o nvel onrico, que corresponde s camadas mais
profundas da psique, poderia apresentar funcionamentos conscientes,
faculdade no exclusiva do ego vgil.
De acordo com os estudiosos mencionados, haveria uma realidade
invisvel: a do mundo imaginal. Uma realidade que estaria fora do
universo consciente imediatamente acessvel ao ego durante o estado
normal de vigl ia mas que poderia ser atingida fora dele, sob condies
especiais nas quais o funcionamento da conscincia fosse alterado.
4 . A m o d a l i d a d e l c i d a d e s o n h a r ( a n o u s u a l l u c i d e z i n t r a - o n r i c a )
4.1. O que so as experincias onricas conscientes ou sonhos lcidos
Ao la rgo a inda arde a barca da fantas ia e
o meu sonho acaba tarde, de ixa a a lma de v ig ia .
Ao la rgo a inda arde a barca da fantas ia e o meu
sonho acaba tarde; acordar que eu no quer ia .
(Madredeus)
As viagens conscientes ao mundo dos sonhos so tambm
denominadas sonhos lcidos. O requisito exigido para se definir um
sonho como lcido o fato da pessoa que sonha reconhecer tal fato
enquanto dorme. A conscincia do carter onrico de uma experincia
pode ser simultnea ocorrncia da prpria experincia. Quando a
simultaneidade entre conscincia e sonho ocorre, diz-se que a pessoa
tem um sonho lcido:
48
Sonho lcido aquele no qual voc est conscientemente
informado do fato de que est sonhando (Harary & Weintraub, 1993,
p.35)
A definio bsica do sonho lcido no requer nada mais do que
tornar-se consciente de voc est sonhando. (Lucidity Institute, 1996,
s.p/)
Sonhar lcido sonhar enquanto voc sabe que est sonhando.(..)
Normalmente, a lucidez comea no meio de um sonho, quando o
sonhador percebe que o que est sendo vivido no ocorre na realidade
fsica; um sonho. (idem, s/p.)
Um sonho lcido , portanto, um sonho na qual h o discernimento
de se estar dentro dele. O termo foi cunhado por Frederik van Eeden
(1913), o qual uti l izou palavra lcido com o signif icado de discernimento
ou clareza mental sobre o que est se passando. A simultaneidade
entre essa compreenso e a ocorrncia do sonho indispensvel. Essa
forma particular de lucidez envolve a percepo de que no se est
participando conscientemente de uma realidade pertencente ao mundo
fsico. Muitas vezes, o despertar de conscincia acontece no decorrer do
processo onrico: a pessoa no inicia o sonho conscientemente mas disso
se d conta enquanto dorme. Aps entrar no mundo interior
inconscientemente, alguma vivncia, talvez estranha aos padres da
realidade externa, pode chamar ateno do sonhador para o fato de estar
do outro lado da existncia, alm do umbral da vida vgil.
Nesses sonhos os acontecimentos que transcendem a lgica da
realidade externa s vezes funcionam como indicadores do carter
49 onrico das imagens. Eles auxil iam no desenvolvimento da lucidez pelo
fato de serem tpicos de uma realidade fantstica, diferindo do que seria
coerente e possvel para a realidade tridimensional:
Muitas vezes esta percepo conseguida pela observao do
sonhador de um evento que impossvel ou improvvel de acontecer,
como o encontro com um falecido ou voar com ou sem asas. Algumas
vezes as pessoas se tornam lcidas sem observar nenhuma pista
particular no sonho; de repente, elas se do conta de que esto
sonhando. Poucos sonhos lcidos (segundo a pesquisa de LaBerge e
colaboradores, em torno de 10%) so o resultado de se retornar do
estado de vigl ia diretamente para um sono REM sem a quebra da
continuidade da conscincia. (Lucidity Institute, 1996, s/p.)
Encontro com mortos e certos vos so estranhos ao mundo da
vigl ia usual. Entretanto, em certos casos eles so tpicos do mundo dos
sonhos, subversor da lgica formal. As cenas tpicas da realidade
fantstica levam o sonhador a reconhecer a natureza do que est
presenciando. Ele reconhece o sonho pelos seus sinais peculiares: os
acontecimentos impossveis para a realidade fsica. Essa uma forma de
despertar no sonho. Em outros casos as pessoas levam a conscincia
desta realidade para aquela sem interrupo no seu f luxo, isto , num
estado de discernimento contnuo no qual no h perda temporria da
lucidez. Entretanto, na maioria das vezes h uma quebra pois as pessoas
esto conscientes no mundo vgil, perdem a conscincia e a recuperam
novamente dentro do sonho. Essa recuperao pode advir de imagens
que contenham estranhas combinaes de elementos que denunciem ao
ego seu esquecimento em atentar para o carter onrico da realidade
presente na qual est inserido enquanto o corpo dorme ou simplesmente
50 pela conscientizao direta disso, sem a observao prvia de
elementos denunciadores.
Segundo Hil lman(1984), nossos sonhos possuem contedos que
reclamam ateno. H animais, pessoas e lugares interiores que querem
ser vistos e reconhecidos. Ele sugere que, caso queiramos, nos tornemos
amigos do sonho para participar dele, entrar em suas imagens e animo,
querer conhec-lo melhor, entend-lo, brincar com ele, viv-lo, carreg-
lo, familiarizar-se com ele (p. 58). Isso implica em estud-lo e descobr-
lo, aumentando pouco a pouco a intimidade, estreitando os laos da
amizade. Desta forma, conhecemos as caractersticas tpicas e podemos
reconhecer o amigo sempre que ele voltar, isto , sempre que os
contedos onricos se mostrarem a ns. O que Hil lman sugere que ns
participemos do sonho ao invs de permanecermos ignorantes de sua
existncia. Para tanto, os prprios contedos onricos se revelam a ns
enquanto tal mas normalmente no lhes prestamos a ateno devida e
no atendemos sua reclamao.
Quando estamos lcidos, reconhecemos o nosso amigo, sabemos
que o sonho sonho. O ato de participar, brincar, viver, familiarizar-se e
entrar nas suas imagens se torna fato. Os sinais tpicos do mundo onrico
recebem ateno e so reconhecidos. medida em que nos
familiarizamos mais e mais com os nossos sonhos, aprendemos a
reconhec-los como tal nos momentos em que esto se processando e
no apenas depois, quando acordamos.
Os sonhos costumam revelar sua natureza extra-f sica e fantstica
por meio de combinaes de imagens que desafiam a lgica do mundo
externo. como se ele dissesse ao ego: No est vendo? Voc est em
um sonho. Isso no acontece no mundo tridimensional!
51
No absurdo que os acontecimentos onricos se dem de modo
diferente dos acontecimentos f sicos (Harnisch, 1999) pois os princpios
que regem estes lt imos nem sempre regero aqueles:
As leis cientf ico-naturais de causalidade esto suspensas no
sonho. (p. 16)
As dimenses de tempo e espao no tem a mesma validade com
que estamos acostumados em nossa conscincia desperta. (idem)
Isso explica a presena de elementos atpicos para o mundo
tridimensional. So justamente os elementos estranhos, que se mostram
como possibil idades exclusivamente onricas, que chamam a ateno do
sonhador e o ajudam a despertar a conscincia:
Est a sonhar. De repente, algo acontece que o faz perceber que est a sonhar. Talvez ocorra algo que no pode suceder na realidade, como voar, ou ter sexo com a pessoa dos seus sonhos. Portanto, ei-lo consciente de que est a dormir e a sonhar, mas a coisa continua!
Sabe que isto no real, e que no sofrer conseqncias, pelo que
pode fazer o que lhe der na gana. Violao, pilhagem, massacres! Tem o
que pediu. Se o pensa, tem-no. O seu pensamento controla as aes. O
nico problema que fica to excitado que acorda! (Carrol, 2001, s/p,
grifo meu)
A experincia consciente pode promover uma descarga de libido
represada com a diferena de que, estando consciente, a pessoa pode
se dar conta desse fato no momento em que ocorre. A pessoa pode fazer
tudo o que desejar e isso inclui aquilo que sofre restries neste mundo.
52 Se temos um desejo cuja satisfao pode repercurtir contra ns,
podemos realiz-lo no mundo dos sonhos.
Nas experincias onricas conscientes h o conhecer com referido
por Edinger (1999), aquele contato simultneo entre sujeito e objeto de
conhecimento. Para ele, tomar conscincia conhecer com,
participando desse processo como sujeito e objeto simultaneamente.
Isso exige o ver e o ser visto ao mesmo tempo. O sujeito domina o objeto
pelo poder logico com muito esforo e o objeto passa a ser vt ima do
conhecedor.
Nos sonhos lcidos somos simultaneamente sujeito (pois estamos
participando e observando os acontecimentos onricos) e objeto (pois a
nossa psique e seus contedos psquicos esto em funcionamento). O
sujeito conhecedor e o objeto de conhecimento esto simultaneamente
presentes um ao outro. Em tal circunstncia o contato direto. Isso no
ocorre durante o sonho usual porque nele o carter onrico das cenas
descoberto apenas pela manh, aps o sono. A falta de discernimento
durante o sonho nos impede de estud-lo in loco e nos deixa a via
indireta do estudo posterior como alternativa restante.
Uma simultaneidade obtida no sonho lcido: aquele que conhece
est presente e aquilo que est sendo conhecido tambm. H duas
presenas em um mesmo instante. Quando o sonho e seu estudo esto
separados temporalmente, ou seja, quando um ocorre noite e o outro
durante o dia, no h simultaneidade e, portanto, no h o conhecer
com.
Vrios estados ou graus de conscincia desperta podem se
apresentar nos sonhos lcidos. De acordo com a intensidade da lucidez,
53 a compreenso da realidade presente pode ser mais ou menos
profundidade:
Contudo, a qualidade da lucidez varia enormemente. Quando a
lucidez atingida em um alto grau, voc est consciente de que tudo que
experienciado est acontecendo na sua mente, que no existe um
perigo real, e que voc est dormindo na cama e ir despertar em breve.
Com um nvel baixo de lucidez voc pode ter a certeza de que est
sonhando, talvez consiga voar, ou modificar o que estiver acontecendo,
mas no ter a percepo suficiente de que as pessoas so
representaes onricas, ou que no pode ser ferido, ou que est
realmente na cama. (Lucidity Institute, 1996, s/p.)
As proezas realizadas dependem do grau de discernimento obtido.
Algumas vezes consegue-se viajar pelo ar, mudar o rumo dos
acontecimentos e no temer ferimentos e perigos. Quando a compreenso
no muito clara isso no possvel.
Harnisch (1999) chama essa modalidade de sonhos de sonhos
inteligentes e faz referncia ao trabalho que a pesquisadora norte-
americana Patricia Garf ield desenvolve sobre a formulao ativa de
sonhos seguindo o princpio de govern-los em seu prprio processo.
Para tanto ela sistematizou exerccios que levam o sonhador a tomar
conscincia dos sonhos nos momentos em que acontecem. Entretanto,
Sanford (1988) no aceita a proposta da pesquisadora no que se refere
manipulao total dos contedos onricos pelo ego por no dar espao
para as colocaes do inconsciente. Deixa claro, por outro lado, que no
contra a lucidez no sonho em si mesma mas apenas ao seu uso com a
f inalidade exclusiva de atender s aspiraes egicas. Segundo sua
concepo, o uso recomendvel do discernimento proporcionaria a
54 chance de realizarmos o que chama de imaginao atuante por meio
da qual aproveitaramos e exploraramos a oportunidade de modif icarmos
as reaes do ego aos acontecimentos circundantes. Isso o mesmo que
se faz em uma imaginao ativa (Sanford, 1987), prtica na qual a
conscincia participa ativamente.
possvel que o controle absoluto do sonho pela conscincia
egica reprima as necessidades inconscientes (Harary & Weintraub,
1993). Portanto, o discernimento deve ser uti l izado para permitir maior
expresso e assimilao dos contedos sombrios por meio da interao
lcida e no para impor-lhes nossas aspiraes .
H uma diferena entre reconhecer o sonho e control-lo. Pode-se
adquirir a lucidez sem conseguir (ou querer) controlar o contedo da
experincia, l imitando-se apenas a contempl-la e sent-la. O controle
depende da auto-confiana e esta depende da profundidade do
discernimento:
Lucidez e controle dos sonhos no so a mesma coisa. possvel
ter lucidez e um pequeno controle sobre o contedo onrico e,
opostamente, ter um grande controle sem uma conscientizao explcita
de que se est sonhando. No obstante, tornar-se lcido em um sonho
como aumentar deliberadamente sua influncia sobre o curso dos
eventos. Uma vez que voc saiba que est sonhando, voc pode escolher
realizar alguma atividade que s seria possvel em sonhos. Voc sempre
tem a possibil idade de escolher o grau de controle que quer exercer, ou o
t ipo dele. Por exemplo, voc pode continuar fazendo qualquer coisa
quando se torna lcido, com o conhecimento adicion